Arena Conta Zumbi
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Arena Conta Zumbi
Introduo
As discusses em torno de uma caracterizao tnico-racial da literatura esto
cada vez mais no horizonte da crtica, com especial destaque aos pases de lngua
inglesa, bero dos estudos culturais 3. Neste texto, no pretendemos (tampouco
poderamos dado os limites do artigo) retomar a relevncia desse debate no cenrio
internacional. Optamos por aproximarmo-nos ao modo como a crtica literria brasileira
lida com os questionamentos que a cultura e identidade afro trazem literatura nacional.
Um dos nomes de grande reconhecimento na rea o de Regina Dalcastagn. A
autora no se restringe a questes relacionadas ao espao do negro na literatura
brasileira, mas aborda como as minorias so marginalizadas na esfera social e tambm
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interpretao daquele que analisa uma determinada obra, refletindo sobre seu
pertencimento literatura afro-brasileira. A cor da pele dos autores , portanto, um dado
superficial simplista, que no determina o resultado desse complexo jogo. No entanto,
algo que deve ser levado em conta na nossa reflexo, a fim de que nos questionemos
sobre os motivos que levam a haver to poucos autores e personagens negros no
contexto do teatro brasileiro.
As peas selecionadas trazem questes afro-brasileiras, abordadas com solues
estticas diferenciadas para colocar em xeque a condio do negro na literatura e na
sociedade brasileira. Desse modo, mais que apontar para uma especificidade afrobrasileira, elas trazem, marcados no texto, os sinais da violncia da sociedade e da
cultura nacional que, como sabemos, est longe de responder a um ideal de democracia
racial, ainda que se declare uma sociedade mestia, portanto brasileira, tambm afro.
1. O Negro no Teatro
O teatro tem a misso de exorcizar demnios, visando libertar o homem, diz
Touchard, em O teatro e a angstia dos homens (1970:10). E lembra a origem religiosa
do teatro: para ele, os ritos religiosos e sociais surgiram porque o homem quis participar
do sentimento dos deuses. A partir disso, explica-nos que a prece nasceu da recusa da
impotncia humana, da necessidade (...) de atuar sobre o acontecimento que nos escapa
e a prece se fez dilogo na medida em que os deuses se dividem em bons e maus. Dessa
oposio, ele diz, surgiu o dilogo dramtico que supe que um diz sim e o outro
no, criando, assim, a incerteza do futuro, fora profunda de toda ao dramtica
(1970: 9). Desse modo, o texto de Touchard nos faz refletir sobre se, na medida em que
exige o dilogo nascido do conflito sim X no , poderamos considerar o teatro
como o espao do confronto.
Esse o ponto de partida para pensar se o teatro brasileiro consegue promover a
libertao do homem, especialmente quando analisamos as peas brasileiras cujos temas
esto relacionados a questes de preconceito, discriminao e racismo. E a que somos
obrigados a pensar no teatro brasileiro como expresso artstica de conflitos sociais que
parecem condenados a serem eternamente mascarados e negados, o que nos leva
pergunta: em que medida esse teatro pode chegar perto de libertar o homem?
Desde a origem do teatro brasileiro, o negro no esteve marcadamente no palco,
especialmente como protagonista. No estudo de personagens negros em nosso teatro,
Miriam Garcia Mendes lembra que negros e mulatos predominavam nos elencos
teatrais, especialmente at a vinda da famlia real para o Brasil, em 1808. Pintavam o
rosto com uma camada de tinta branca e uma vermelha e os atores brancos, raramente
vistos no palco, interpretavam apenas personagens estrangeiros. muito provvel que
isso acontecesse, diz a autora, devido ao preconceito contra a profisso de ator,
considerada desprezvel, situao que no se alterava para o escravo ou liberto, j por
si de condio degradada (1982: 2-3). Com a chegada da famlia real, houve uma srie
de melhorias, inclusive no setor artstico. E a, diz Mendes, o ator negro desaparece dos
palcos fluminenses, pelos menos os que representavam papis importantes. A partir de
ento, atores brancos pintados de preto desempenhavam inclusive papis de
personagens negros que, diga-se, eram bem poucos (1982:3). Extinta a escravido,
somente na metade do sculo XX comeam a surgir peas que incluam, com destaque,
personagens negros. Entre os ttulos importantes, destacamos, nesta anlise, Arena
conta Zumbi (1965), de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, e A revolta da
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Trata-se de uma revolta, liderada por Jernimo Barbalho, contra o monoplio da produo e
comercializao da cachaa, bebida que o prprio Barbalho produzia em seu engenho e da qual o negro
liberto Joo Angola participou ativamente. Barbalho e Angola foram decapitados em abril de 1661. (cf.
Ligia Chiappini, Apresentao da pea. In: Callado 2004: 109).
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social, a de que o ator negro no tem lugar no centro do palco e que isso, na verdade,
apenas o reflexo da situao que ele enfrenta na vida. O negro tornou-se protagonista da
pea de Callado, a pea concluda, cujo final ratifica a posio da qual Ambrsio
ambicionava sair.
Se o dilogo teatral nasceu do confronto entre os deuses, ele continua entre os
homens, colocando o negro em situao de excluso porque o conflito que daria forma
ao dilogo ultrapassa esse limite. Desce do palco e vai para a rua, onde cotidianamente
o branco vence o negro, sintetizando o que nos diz Antonio Callado com essa pea: o
negro continua excludo. Nesse sentido, vale a pena destacar que no fcil encontrar o
nome de Joo Angola em artigos que tratam da revolta da cachaa. Personagem
importante da revolta, Joo Angola parece ter seu papel negado ou esquecido pela
Histria, algo muito semelhante ao que acontece com Ambrsio que, melancolicamente,
sai da pea, da sociedade e da vida.
Desse modo, no temos a impresso de que o teatro brasileiro tenha conseguido
libertar o homem, a no ser, romanticamente falando, atravs da morte; se isso puder ser
considerado, de fato, uma forma de ser livre. Porque quando queremos ser livres, no
queremos ser romnticos, queremos ter nossos direitos garantidos 5. Direitos, como a
pea de Ambrsio, sempre adiados, cnica e permanentemente deixados para amanh,
para daqui a quinze dias, pela sociedade brasileira ali representada por Vito. Trata-se
de uma promessa que nunca se concretiza porque o Brasil resolver esse problema
amanh, um amanh que nunca chega. Se pensarmos que Vito trata Ambrsio de
modo paternalista, e se pensarmos que essa uma relao mediada pelo favor (Schwarz
2000: 16), temos que Ambrsio o brasileiro pobre sujeito a pedir o que lhe de direito
e que Vito (ou a sociedade) lhe dar como um favor que ser concedido amanh.
nesse sentido que no podemos dizer que o teatro, ao menos aqui, liberta o homem,
porque a sociedade brasileira no libertou o negro (nem o pobre, que, j dizia um
personagem de Martins Pena (2000: 22), em 1842, menos que pouca coisa). Ele
continua condenado a ser marginal. Ele est preso nesse lugar e s se tornar
protagonista amanh.
3. Con(fron)tar: Arena Conta: Zumbi
Zumbi, um dos nomes mais importantes de nossa Histria, smbolo de
resistncia e luta. Ento por que to pouco se fala dele? Quantas pessoas sequer
saberiam a data de sua morte se ela no estivesse, h alguns anos, relacionada ao feriado
da Conscincia Negra? Quantas pessoas apenas tiram o dia de folga sem saber que h
sculos uma guerra foi travada em solo nacional, causando grande preocupao ao
Imprio?
Hoje poderamos responder a essas perguntas dizendo, com tranquilidade, que
poucos conhecem a histria de Zumbi. Isso est relacionado a uma tradio voltada
manuteno do mito da democracia racial, que permanece, de muitas formas, no
imaginrio nacional, especialmente na negao do preconceito em nosso pas, como
explicam Bastide e Fernandes: Ns brasileiros, dizia-nos um branco, temos
preconceito de no ter preconceito. E esse simples fato basta para mostrar a que ponto
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[o preconceito racial] est arraigado no nosso meio social. Muitas respostas negativas
[que dizem no haver preconceito racial no Brasil] explicam-se por esse preconceito de
ausncia de preconceito, por esta fidelidade do Brasil ao seu ideal de democracia
racial (1955: 123). Tal pensamento alimenta-se de um silncio em relao a temas
fundamentais da nossa Histria, como as revoltas escravas:
A marginalizao das revoltas escravas obedeceu a mltiplos e fortes
interesses histricos, entre os quais ressaltam como mais bvios os de
preservar os mitos habilmente elaborados e hoje solidamente arraigados
do carter pacfico daquele processo e da brandura do sistema escravista
brasileiro (Freitas 1978: 11).
Se atualmente o conhecimento desse passado de resistncia precrio, h mais
de cinquenta anos, o quadro era, por certo, ainda mais desolador. Naquele contexto, o
simples ato de contar se torna um confronto: con(fron)tar, como indica o ttulo deste
tpico, no qual se buscou assinalar o fato de que, quando a prpria histria negada, a
narrao j , em si, um ato de resistncia, de provocao.
Foi com o sentido de con(fron)tar que um dos grupos teatrais mais politizados do
pas encenou Arena conta: Zumbi. A pea, considerada a melhor expresso da fase dos
musicais do Arena, no se limita apenas personagem do ttulo, pois recobre as aes
de homens marcados por uma profunda virtuosidade: desde o afamado rei Zambi
trazido para o Brasil em um navio negreiro, passando por Ganga Zona, seu neto, at
chegar, por fim, a Ganga Zumba, que apenas ao final, nomeado Zumbi por seu povo.
Com essa linhagem de guerreiros, Zumbi assemelha-se a um heri clssico, cuja
nobreza era constantemente relembrada por seus eptetos familiares. Os atos de bravura
somam-se a essa herana elevada, o que justifica a apresentao da pea como a
epopeia de Zumbi (Guarnieri & Boal 1965: 12), de modo que o aspecto pico no
seja, aqui, apenas relacionado forma teatral desenvolvida por Brecht, que, como
mostra Magaldi (s/d: 9), foi abrasileirada pelo Arena aps sua fase marcadamente
realista.
Zumbi apresentado em sua nobreza e coragem, de modo no muito distinto ao
que ocorre com os outros lderes. No entanto, seu destaque, marcado desde o ttulo,
deve-se ao fato de ele comandar uma luta que encerra a pea, sem se encerrar na pea.
a afirmao de seu nome Ganga Zumba Zumbi que d fora aos combatentes, que o
clamam em coro nos momentos em que a batalha contra os brancos parece tomar rumos
perversos. Na identidade do lder reside a energia da resistncia, o que no significa, no
entanto, que sua morte implicaria no fim da luta. Zumbi corporificava a histria de uma
nobreza que, arrancada de Angola, tornou-se coragem no Brasil. a rememorao do
passado e a necessidade de ao presente que no morrem e so entoados sob o nome de
Zumbi, da mesma forma como acontece ainda hoje entre alguns movimentos sociais.
Nesse lembrar e contar que se tornam formas de agir sobre o conflito racial, a
encenao do Arena encontra resultados interessantes. Como Os atores tm mil caras /
fazem tudo nesse conto / desde preto at branco / direitinho ponto por ponto.
(Guarnieri & Boal 1965: 12), a figura de Zumbi acaba sendo destacada por extrapolar
seus limites individuais, correspondendo, assim, ao seu forte valor simblico. Nas
palavras de Campos:
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Magaldi (s/d: 67-68) afirma: Impressionou-me a violncia da montagem. Nada houve entre
ns, at aquele momento, que significasse uma condenao to radical da ditadura instalada pelos
militares. Todos os aspectos do golpe so analisados, sem que se poupe um. [...] tudo meticulosamente
composto, a fim de estimular o espectador no propsito de protesto. A narrativa flui com espontaneidade
e inteligncia, e as aluses so claramente apreensveis. Alm dele, ver Campos (1988: 74) e Costa
(1998: 188).
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