INFORMÁTICOS Mar (Ia Sem Ver) Gonha
INFORMÁTICOS Mar (Ia Sem Ver) Gonha
INFORMÁTICOS Mar (Ia Sem Ver) Gonha
corpos informticos
performance, corpo, poltica
UNIVERSIDADE DE BRASLIA
Reitor Jos Geraldo de Sousa Jr.
Vice-reitor Joo Batista de Sousa
INSTITUTO DE ARTES
Diretora do Instituto de Artes Izabela Brochado
Vice-diretora Nivalda Assuno
Coordenadora da Ps-graduao em Arte Maria Beatriz de Medeiros
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Este livro contm um DVD-encarte com vdeos documentrios e videoartes sobre as atividades
citadas nos textos
Todas as fotografias so de autoria do Corpos Informticos: Felipe Olalquiaga, Laurem Crossetti,
Alexandra Martins, Mrcio H. Mota e quem mais tiver fotografado
Tratamento de imagens: A. Martins, Bia Medeiros, Camila Soato, F. Olalquiaga e outros
Projeto grfico: Minas Padro (www.tabuletas.net)
Edio de vdeos: Camila Soato, Jackson Marinho, Juliana Rodrigues e outros.
Reviso de texto: Bianca Tinoco
Capa: A Festa. Espetculo Mar(ia-sem-ver)gonha. Teatro SESC Garagem, Braslia, 2009. Foto:
Laurem Crossetti
Agradecimentos aos artistas Henrique Oliveira e Paulo Bruscky pela cesso das imagens
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corpos informticos
performance, corpo, poltica
mar(ia-sem-ver)gonha
Fernando Aquino
Maria Beatriz de Medeiros
(organizadores)
sumrio
in tro duo | 09
Fernando Aquino, Maria Beatriz de Medeiros
mar(ia-sem-ver)gonha | 50
Diego Azambuja, Fernando Aquino, Maria Beatriz de Medeiros
11 | 90
Diego Azambuja, Fernando Aquino, Mrcio H. Mota, Maria Beatriz de Medeiros
in
in Arte
in Corpo
in Performance
in Poltica
in Linguagem, no
in formticos, Corpos
in existe
in vergonha, maria sem
in ver sem ia
in urbana, como composio
in fuleiro
in fuleragem
in mixuruca
nos olhos da mosca
in finita, Amarelinha Binria
in Anticorpos
in Duro, doce e
in visvel, Mulher
in Aquino, Fernando; in Azambuja, Diego; in
Marinho, Jackson; in Medeiros, Maria Beatriz de
in Mota, Mrcio H.; in Soato, Camila
in Omolu eletrnico
in Defeitas, unhas
in UI, UAI
in Deleuze, Gilles; in Derrida, Jacques; in Heidegger,
Martin; in Serres, Michel; in Stiegler, Bernard
Incorucolubilubil
9
tro
tri
tre
traa
braa
trb oo
trao
trama
treco
troo
trato
tanto na fuleragem, perto do animal, do verbal cotidiano, nesse grito polido. no tanto, seu entanto, na rua,
o quanto custa, o quanto se escuta; aqui, o duro, o
spero, o fosco.
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duo
traado na fuleragem do desvio, como detalhes de
um processo artstico feito em alcateia denominada
corpos informticos que ativa, na prova dos nove. o
que se sente o corpo fazendo poltica, performance,
jogando pique-bandeira, inserindo parafernlias.
este processo se inicia em 1992. Aqui escorre o trecho
recente 2009/2011, no estratificado, no maquiado:
pipoca nas mos das vizinhanas.
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MEDEIROS, M.B. Pequeno ensaio sobre o tempo na/da arte e SABOYA, L. Uma interpretao
do tema o tempo na/da arte. In: Arte Pesquisa. vol.1. Anais do XII Encontro Nacional da ANPAP
(284-294 e 270-284, respectivamente).
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Escreve Derrida (2002, 37 a 39): essa nominao [nominao dos animais pelo homem] apregoada permanece ao mesmo tempo livre e vigiada, sob vigilncia [...] Deus deixa Ado, ele deixa
o homem, o homem s, ele o deixa gritar livremente os nomes. Ele o deixa, s, dedicar-se s
denominaes. Mas ele o espreita, o homem s. Ele vigia com uma mescla de curiosidade e de
autoridade. Deus observa: Ado observado, ele est em observao. Traduo de Chouraqui:
Ele os faz vir [os animais], at o homem da gleba para ver o que este lhes apregoar. [...] Este
para ver marca ao mesmo tempo a infinitude do direito de um Deus todo-poderoso e a finutude
de um Deus que no sabe o que lhe vai ocorrer com a linguagem. E com os nomes. [...] Pergunto-me frequentemente se essa vertigem quanto ao abismo de um tal para ver no fundo dos olhos
de Deus, no o que me toma quando me sinto to nu diante de um gato, de frente, e quando
cruzando ento seu olhar, escuto o gato ou Deus se perguntar, me perguntar: ele vai me chamar?
Vai dirigir-se a mim? Como vai ele me chamar, esse homem nu.
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Heidegger (2004, 30) diz que toda procura retira do procurado sua direo
prvia. Em arte, seria dizer que a linguagem do artista-produtor-interrogador,
fazendo teoria sobre seu prprio trabalho, seria retirada de seu caminho pelo
fato dele realizar pesquisa sobre sua prtica. Isto implica, necessariamente,
alteridade, introduo do distinto na prtica deste artista. Se o artistainvestigador procurar sua linguagem artstica por meio de outra linguagem
(falada ou escrita) estar retirando da primeira sua direo prvia? Sim, o
investigar desloca a pesquisa prtica e vice-versa. Isso implica forosamente
mudana de direo de ambas as pesquisas.
De fato, este deslocamento acontece tanto se o investigador for o artistaprodutor-interrogador fazendo teoria sobre seu prprio trabalho (como no caso
do presente livro), quanto se o investigador for um crtico ou um historiador
da arte. No caso do artista, o deslocamento do trabalho ser potente, presente,
imediato, sem mediao.
No caso do terico, historiador ou crtico, escrevendo sobre a pesquisa
prtica de um artista, este deslocamento ser efetuado de fora para dentro
podendo implicar em maior ou menor alteridade. Isto depender do impacto,
da concordncia, de aceitao por parte do artista. O mesmo ocorrer junto
ao pblico confrontado ao texto produzido pelo terico. O texto sobre uma
exposio, colado na parede de entrada da sala, necessrio? Ele modifica a
surpreenso do pblico? Este modificao interessa?
A arte por si e em si, ela se basta, um texto, se procurado, interessa. Mas um
texto imposto, antes mesmo do contato com o trabalho, neutraliza e direciona
o sentir, anestesia a aisthesis, recruta o crebro para uma leitura. A exceo
so os textos poticos. Fazer outra arte, poesia, para falar de arte, afirma
Barthes em algum lugar ad tempura da minha memria.
Heidegger (2004, 30) prossegue: A procura ciente pode transformar-se em
investigao se o que se questiona for determinado de maneira libertadora.
Interessante notar essa condio da investigao ser libertadora, isto , no
buscar nem por meios estreitos nem com fins restritos. Esta liberdade, para
falar de arte, no seria a poesia?
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Esse texto foi pronunciado por Bernard Stiegler no colquio Le passages des frontires. Autour
du travail de Jacques Derrida (Cerisy, 1994), e posteriormente publicado nos Anais de mesmo
nome (Paris: Galile, 1994. 271-283). Parte foi publicada em Stigler (1996). A ntegra foi traduzida para o portugus por M. B. de Medeiros e publicada em reVISta: PPG-Arte/UnB, Braslia,
n. 3, 9-20, 1999.
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Dasein (presena)5 entendido por Heidegger como aquilo que sendo coloca
em jogo seu prprio ser; aquilo que se compreende em seu ser, isto , sendo;
como ente determinado em seu ser pela existncia. O dasein tem seu sentido
na temporalidade. Assim as cincias, inclusive a arte, como atitude do ser
humano, possuiriam aquilo que sendo coloca em jogo o prprio ser.
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Heidegger recusa a traduo francesa de dasein por tre-l, ser-a. O dasein, pode ser entendido como, ser aberto-para-sempre (ouvert--tout-jamais), ser aberto do homem. O outro
nome do dasein alethia. Outra forma de entender o dasein v-lo como conscincia necessria da morte que leva fuga da angstia, do nada e da prpria morte, tornando assim o sujeito
ligado ao mundo, clamando o mundo. O sujeito, este ser-jogado, pelo dasein, que sozinho se
angustia, se coloca no espao mundano. Isto, com o tempo avanando.
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Derrida explica, em Marges de la philosophie (Paris: Minuit, 1972, 326 e seguintes), que, para J.
L. Austin, o discurso comunicao e esta para um conceito apenas semitico, lingstico,
simblico. Deste discurso, para sua anlise, quando diferencia discurso constativo e performativo, Austin exclui as pragas reflexas, o no-srio, a parasitagem e o estiolamento. Ao Corpos Informticos interessa a parasitagem (oratio obliqua). Derrida afirma, e interessa que, de fato, todo
discurso constativo pode, assim como o performativo, ser transformador, efetuar ao, operar.
Derrida lembra que Austin sabe e afirma que todos os gestos esto sujeitos ao fracasso e que h
sempre risco. Ao Corpos Informticos, assim como lembra Evando Nascimento em Performar o
discurso: teatro, travestismo, corpo-cidade (www.performancecorpopolitica.net ver tambm palestra na ntegra em www.ustream.tv/recorded/11100126), interessa o fracasso, o imprevisvel, o
resto, o outro de toda proposta artstica. (grifos nossos).
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poesia
Para Martin Heidegger (2000, 60. grifo do autor): Uma obra s real como
obra na medida em que nos livramos do nosso prprio sistema de hbitos e
entramos no que aberto pela obra, para assim trazermos a nossa essncia a
persistir na verdade do ente. [...] Toda arte [...] na sua essncia Poesia.
Mesmo crendo que a performance no busca a obra, mas a fuleragem, o
parasitismo, pensem em livrar-se do nosso prprio sistema de hbitos,
em entrarmos no aberto da obra e estaremos em performance. Digo, ns
espectadores estaremos em performance.
Penso em A origem do Terceiro Mundo de Henrique Oliveira na Bienal de So
Paulo, 2010. Ao entrar, solitrio, sem milhares de criancinhas felizes a correr
a seu lado, nos livramos de nosso prprio sistema de hbitos: o andar outro,
a perspectiva se inverte, silncio e odores. Cad a sada? E ao sair: quero
entrar de novo!
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O cdigo gentico que temos hoje decifrado o de uma mulher. O grupo Emmagenetics, EUA,
entre outros grupos feministas, protesta contra o fato da cincia, sempre e novamente, investir,
no por acaso, (contra) o corpo da mulher.
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mais linguagem
O ser humano muito pouco conhece sobre processos de aparecimento da
linguagem nas diferentes civilizaes, muito pouco sabe sobre a formao da
linguagem na mente infantil e sobre os processos de aprendizagem. E ainda,
o ser humano muito pouco sabe sobre o funcionamento de seu crebro em
relao linguagem: onde se estoca? Por onde passam os estmulos? Como se
do as perdas e reaquisies da funo da linguagem? Por que desejo quando
apenas leio? Por que leio quando apenas desejo? Por que leio quando apenas
fuleragem, performance, brin-cadeira?
De aorcdo com uma pqsieusa de uma uinrvesriddae ignlsea, no ipomtra
em qaul odrem as lrteas de uma plravaa etso, a ncia csioa iprotmatne
que a piremria e tmlia lrteas etejasm no lgaur crteo. O rseto pdoe ser
uma ttaol bguana que vco pdoe anida ler sem pobrlmea. Itso poqrue
ns no lmeos cdaa lrtea isladoa, mas a plravaa cmoo um tdoo. Vdaerde!
(ANNIMO, 2003).
O texto acima, recebido por e-mail, vem evidenciar a nossa ignorncia no que
diz respeito ao conhecimento do processo de construo, de compreenso e
de apreenso da linguagem. Com esse texto, toda a questo da alfabetizao,
para cada lngua, se retorna, novamente, enigma no que se acreditava existir
algum consenso.
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Recomendo vivamente Monstrutivismo. Reta e curva das vanguardas, de Lcio Agra (So
Paulo: Perspectiva, 2010)
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Da dificuldade de traduzir jouissance: rapidamente diremos que jouissance tem como traduo gozo, j que jouir ter prazer. No entanto, a terminao sance nos deixa pressentir
a impreciso dessa traduo. Alguns tradutores de lngua portuguesa tm optado por fruio,
termo que nos parece por demais fugaz. Carter a-social do gozo (jouissance). Ele a perda
abrupta da sociabilidade e, ainda assim, no se segue nenhuma recada em direo ao sujeito
( subjetividade), pessoa, solido: tudo se perde, integralmente. Fundo extremo da clandestinidade, negro de cinema (BARTHES, 1973, 63). Mergulhar nas guas de uma chuva de
vero era, exatamente, aquilo que ns chamvamos jouissane (MEDEIROS, 1989). Segundo
Franoise Duroux (1985), para Lacan, no sabemos nunca do que falamos quando falamos de
jouissance .
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Essas reflexes foram retiradas das notas de aulas de Antonia Soulez, durante o curso Supposez
que...: langage et exprience, realizado no Collge International de Philosophie, Paris, 1999.
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Cabe ressaltar que nosso interesse reside na arte contempornea e que entendemos as definies e abrangncias do conceito de performance nas cincias
sociais, na msica, no sentido da performance de um instrumentista, assim
como o entendemos no que diz respeito indstria e economia. Certamente
este termo nestas reas bem-vindo e pertinente. No entanto, para o presente
texto, no os estaremos pensando.
A performance, entendida como possibilidade artstica, nascida nos anos
1920, na Europa, com os futuristas, dadastas, com os grupos Fluxus e Gutai,
muito realizada nos anos 1970, em galerias, museus ou nas ruas, nosso foco
de interesse. Estamos pensando em Allan Kaprow, Gina Pane, Michel Journiac, Benjamin Vautier (conhecido como Ben), Yves Klein, Joseph Beuys, Marina Abramovc, Orlan. Estaremos nos referindo Hlio Oiticica, Lygia Clark,
Lygia Pape, Celeida Tostes, Wesley Duke Lee, Ronald Duarte, Ricardo Basbaum, Alex Hambrguer, Grupo Empreza, entre outros, a cada vez que dissermos performance.
Em 2009, comprei o livro La folie Kennaway (1988) no sebo da SCLRN 407,
Braslia, escrito por Christian Lehmann, autor que desconhecia. O romance
se passa em Londres e seu protagonista (Kennaway) um escritor fracassado
que foi amante de um pintor (Henry Childss) aos poucos reconhecido no mercado de arte. Por frequentarem o meio artstico, quando eles viviam juntos, no
ano de 1976, certo dia de vero, conta o romance, os dois personagens vo a
uma soire de performance, assim descrita:
O Hangar era como uma ferida purulenta, ftida, no centro da cidade.
Tudo que a cidade continha de artistas da moda (branchs) tinha marcado encontro para expor nesta quermesse de vmito. [...] vinham excitar suas conscincias burguesas ao contato ntimo desta imundice.
Foi no meio destes quadros vivos repugnantes, onde conviviam vsceras
e pus [...]. Esta corja habitual de masturbadores se entrega s delcias
do body-art, cobertos de chocolate derretido ou de iogurte de frutas, escorregavam nus, lvidos como cadveres, sob carcaas de boi rgidos de
gordura e de pintura, suas erees murchas batiam no ritmo de copulaes lobotomizadas. Cada um dos artistas presente procurava arrancar
a ateno dos espectadores. Os limites do ignbil foram rompidos muitas vezes, em uma ambincia de blasfmias derrisrias. [...] eu tentava,
como eles, levar a conscincia de mim mesmo alm dos limites comumente admitidos, at tocar a escria. (LEHMANN, 1988, 109-110)
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Ao final, Childss convida os presentes para sua prpria performance, denegrindo suas aes:
A incapacidade trgica de meus colegas a ir alm de sua prpria humanidade... Que aprenderam vocs hoje sobre o mundo e sobretudo sobre
vocs mesmos ? Nada... O nada no to vazio... Vocs assistiram a uma
doente obscenidade, mas o que aprenderam seno o fato de que a maior
parte de vocs no foi alm do estgio anal? (idem)
Chroniques: les archives. Otto Muelh et laccionisme viennois. Entrevista entre Daniele Rousset e Thierry Laurent. www.visuelimage.com/ch/muelh.html
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Vale dizer que, se a performance aos poucos foi parando de atirar com armas de fogo, por vezes no prprio corpo, foi deixando de incorporar animais
sacrificados, simulao de pnis decepado, isto no implica que ela tenha de
todo abandonado estas possibilidades. Nem a capacidade de chocar, mesmo
no mundo de hoje, globalizado, onde, no Brasil, 70% das notcias so: prenderam 15, mataram 31, 72 foram encontrados mortos, baleados, sequestrados,
2500 vtimas de terremoto, 2 milhes de desabrigados etc.3
Por outro lado, outras formas de expresso artsticas foram tomando o rumo
da denncia.
A exposio Sensation, por exemplo, na Royal Academy of Arts, Londres, em
1997, apresentando a coleo de Charles Saatchi, chocou por ter este carter
de mundo cru, erotismo, violncia, vulgaridade e humor, abandono de
praticamente toda experincia abstrata, e uma forte preocupao com a
natureza corporal, disse Felipe Fortuna sem fazer referncia existncia de
performances nesta exposio4. A arte aqui mostrada teria acontecido sem a
performance? Ningum poder provar, mas ela certamente leva uma forte influncia das experincias da arte da performance, sobretudo o mundo cru, o
corpo real, os sentidos todos flor da pele, pele da flor.
Sensation foi aberta na Royal Academy, em Londres de 1997, com 110 trabalhos de 42 artistas jovens ingleses, em sua maioria pintura e escultura. Depois
foi para o museu Hamburger Bahnhof de Berlim, em 1998, e para o Brooklin
Museum em New York, sempre causando tumulto e protestos.
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Em que medida este tipo de notcia pe ou retira humanidade? Como e quando ele anestsico
ou estimulante? Que fatos encobre ou descobre? Qual a causa da formao da quadrilha? Estudaram? Leram? Em quem votaram os que morreram? Por que os ditos traficantes mataram os
imigrantes ilegais? Eram de fato traficantes? O que os levou a tornarem-se traficantes? No h
nenhuma reflexo que torne estas notcias de alguma forma reveladoras de realidades, incitao
maior participao nos processos polticos cotidianos ou partidrios. Quanto s catstrofes
naturais, que fazem temer o fim do mundo, que sentimentos, atitudes, geram estas notcias?
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Neste exemplo vemos que, na arte, o corpo sempre esteve presente, foi delator e agressor, mas as dimenses dissimulavam a dor deste corpo. Talvez,
na poca em que foi pintado, este quadro tenha feito efeito, causado afectos,
chocado. Mas pinturas de pequenos formatos so capazes de nos chocar, hoje,
como nos faz esta escultura de Chapman?
Alis, por que a gerao 80, liderada por Luiz quila da Rocha Miranda, resolveu pintar em grandes formatos? Eu o vi afirmar, em conferncia no Rio de
Janeiro, por volta de 1990, que tinha sido necessrio pintar muito grande para
chamar a ateno diante da performance que paralisava o mercado de arte,
sedento de mexer com dinheiro.
Talvez Guernica, de Pablo Picasso, tenha feito chorar. Hoje, para mim, quando
pude me deparar com ela, vi apenas, tinta, riscos, rastros, sombras e tcnica.
Estou cega, tornei-me rude, meus sentidos esto calejados? Ou esta pintura,
tornada estampa de bolsa, perdeu seus suores e lgrimas? E a Monalisa, de
Leonardo da Vinci, que nem lgrimas tem para chorar?
Laymert Garcia dos Santos6, comentando a exposio Sensation, toma Gilles
Deleuze, em seu livro sobre Francis Bacon (2002), onde este apresenta a lgica dos sentidos, que dirige-se ao crebro, age por intermdio do crebro, e
a lgica da sensao, que age imediatamente sobre o sistema nervoso que
carne.
As fotografias de Robert Mappelthorpe e Cindy Sherman seriam da ordem da
lgica da sensao por agirem sobre a carne, por pulsarem na interseco
entre o mundo da Natureza e o mundo sufocante da Cultura Contempornea.7
Porm fotografias no podem ser consideradas performances, por mais fortes
e envolventes que sejam. Sero arte, certamente, e sero registros, recortes
de aes retiradas de seus contextos, arrancadas de seus sons e cheiros, sero
registros, fragmentos de instantes desterritorializados. O tempo, elemento esttico imprescindvel da performance, ter sido desintegrado.
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SANTOS, Laymert Garcia dos, Sensao da contemplao, in Folha de So Paulo, Caderno
Mais!, 23 de novembro de 1997, 6.
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ibdem.
Alguns autores, como Peggy Phelan e Regina Melim, deixam entrever, crer,
que fotografias so performances. De nosso ponto de vista, registro no vida.
Uma fotografia pode se referir a algo que houve, que esteve presente, mas ela
s presente enquanto fotografia como tal.
Bianca Tinoco, em O corpo presente e o conceito ampliado de performance
(2009, 235-236) salienta esta exagerada ampliao do conceito de performance por Regina Melim:
[...] medida que a performance tornou-se mais e mais dependente do
registro fotogrfico para eternizar a imagem de uma ao, a fotografia
tornou-se a base para uma forma hbrida de performance, como no caso
de Cindy Sherman. Melim [Performance nas artes visuais (2008)] estende tal concluso aos demais meios de registro e objetos envolvidos em
uma ao, os quais, longe de serem apenas estmulos para a memria,
serviriam de encorajamento para que esta se torne presente e real, podendo se apresentados como suas expanses.
Zhu Yu comeu um feto de ser humano, cozido, em Eating a dead baby. Afirma
ele (in Art Press, 2001, 63): meu projeto consistia em encontrar nos hospitais
um beb fruto de um aborto natural, o conservar na geladeira, comprar um
belo jogo de mesa, preparar um prato delicioso com a carne do bebe e enfim o
comer. Este projeto foi realizado em 2000.
Em 2000, temos tambm Sun Yuan, do Grupo Cadver de Pequim, expondo
cadveres, ou mesmo apresentando a morte como obra de arte: eu escolhi a
vida (e no o animal em si mesmo) como suporte de expresso: deixar a vida
desaparecer sob uma forma dada e permitir ao pblico assistir este desaparecimento (in Art Press, 2001, 61). Do lado destas aes, Cindy Sherman e JoelPeter Witkin so apenas fotografia. Eles no fazem performance.
O horror, o vmito, a imundcie, os limites do ignbil sempre estiveram presentes na arte e no so privilgio da performance. Como exemplo, podemos citar Judith e Holofernes (1597-1598), de Caravaggio. Este quadro foi pintado por
outros artistas, como Valentin de Boulogne (1626) e Artemisia Gentileschi (1612).
Fotografias das performances de Hermann Nitsch, do Acionismo Vienense,
muito se parecem com este quadro. Lembremos tambm do filme A Cela8, que
possui, dentre outras referncias histria da arte, um frame do martrio de
So Erasmo.
Voltando no tempo, citaremos as decoraes das igrejas medievais, com seus infernos, monstros, mrtires, mortos etc. Vontade de temor por parte da populao.
Uma outra questo se colocaria aqui
Happening, performance, body art?
Dirigido por Tarsem Singh com Jennifer Lopez, Colton James e Dylan Baker, texto de Mark
Protosevich. 2000. 107 min.
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Em espaos in situ, normalmente, o pblico vacinado, certamente est preparado para a arte, ainda que, muitas vezes, no saiba o que arte. Na rua, a
performance possui potncia de surpresa. Ela desloca o espao e pode modificar o tempo do errante. Ele encontra aquele que no ousa entrar em instituies por no se sentir convidado.
Alguns afirmaro que, mesmo na rua, uma ao, quando identificada como arte,
sofre um processo de separao da vida. como se uma redoma imaginria
fosse criada em torno da ao. Como quebrar a redoma para o verdadeiro
contato, com-tato? Com a participao do errante como participador, qui
como criador.
Na rua, em rodovirias e estaes de trem ou metro, com grande circulao
de pessoas, a performance pode atingir mil, trs mil, vinte mil pessoas. Que
dizer da obra Wave UFO de Mariko Mori? Montada no Centro Cultural Banco
do Brasil de Braslia, de 25 de janeiro a 03 de abril de 2011, com um custo
provavelmente superior a 4 milhes de reais, esta obra s pode ser visitada por
trs pessoas a cada 20 minutos.
A performance no precisa ameaar, sendo lenta, pouca, gerando imprevisvel,
ela possui forte manancial para deslocar membros e membranas. Corpos
Informticos se interessa por esta delcia: expectativa. Fazer aguardar regando
lentamente o desejo e penetrar, com os poros sugando o vento, com as narinas
perseguindo o movimento. No interessa a ferida purulenta, ftida. Nossos
quadros vivos oscilam entre a sensualidade, a nudez e a brincadeira.
Tambm pulam corda pelados e se divertem vendo o pinto e os peitos subindo
e descendo em cmera lenta. Esta nudez no cadavrica nem se esconde em
quermese de vmitos. Ela acontece em plena luz do dia, no leito do lago ou no
prdio da CAPES, em Braslia. No interessamos ao mercado. No pintamos
quadros nem fazemos monumentos. Criamos momentos de preferncia
deliciosos e plenos de sabores.
Para a performance, no conceito do Corpos Informticos, so necessrias distenso, abstrao e negao positiva. Para a insegurana de todos, aquela que
garante a possibilidade de evento, a mosca circula com as portas e janelas
abertas, o teto foi levado pela carcia, as paredes derreteram. Ajudem-se brincando tambm! E deixemos os lamentos para o velho mundo.
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nibus
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mar(ia-sem-ver)gonha
ao I
ideia | disciplina | apresentao
ao II
o roteiro / a rua | CUestionrio 1984 | CUestionrio 1983
ao III
parada 1 | parada 2 - casa da Dina | parada 3 - placa w/u
parada 4 - amarelinha binria | parada 5 - alongamento
ao IV
festa pique | momento TV | jogral
ao V
Omolu eletrnico | ciranda | reverberaes
Colaboradores
Ana Carolina Mendes
Cinara Barbosa
Gabrielle Corra
Larissa Ferreira
Bianca Tinoco
Cmeras
Joo Angelini
Pedro Oswald
Mara Nobre
Mrcio Mota
Maria Beatriz de Medeiros
Mariana Tesch Morgon
Maria Vitria Canesin
Pedro Moura Santos
Rafaela Rezende
Taiom Almeida
50
Sonoplastia
Anbal Alexandre
Victor Valentim
Consultoria figurino
Cyntia Carla
ao 1
ideia
Desde 2007, a pesquisa do Grupo Corpos Informticos se encaminhou para
a reflexo sobre Composio Urbana (CU). Este conceito entendido tanto
como composio da arte com a cidade (instalao ou performance), como da
arte com a internet - a rede mundial de computadores - ou seja, a nossa urbis
virtual.
Para a cidade, seja ela fsica ou virtual, relaes pessoais ou redes sociais inclusive: Composio Urbana (CU). Esta arte, parte da vida, com a urbis, compe (Spinoza, Deleuze e Guattari) e ao compor decompe, sempre.
Fruto de extenso trabalho prtico, CU percebe a obra de arte em contnua
transformao com a cidade e seus habitantes, ao invs de isolar, ferir, intervir (interveno: processo de fora para dentro, onde algo do fora se impe ao
dentro), inferir, inter-ferir.
Especificamente para a world wide web, desenvolvemos o conceito de UAI:
Ueb Arte Iterativa. Composio iterativa, isto , relacional, participativa, colaborativa, realizada na rede internet. Para a rede mundial de computadores
diz-se web. O desprezo do brasileiro por sua prpria lngua tendncia: lngua
de portugus. Alis, somos todos donos de padarias e aougues. O que escondemos? Fugimos de ns mesmos? E que tal pensar a brasilidade: mineiro-carioca-baiano-portugus-judeu-libans-ndio-manioba-feijoada-baru-holands-azedo-semvergonha?
Ns, Corpos Informticos, tambm queremos ser VIP (very important people) e tambm dizemos web, porm somos Macunama, mneirins, uai! Fuleiros e propomos o termo ueb, por preguia, por mixurucagem, para rir. A ueb
cidade, mas tambm paisagem. Nela pode chover, ter enchente. Ela pode
beber, cair e levantar, pode coneco, afeio, distanciamento incgnito.
Ambas ideias, CU e UAI, nos levaram ao conceito de Maria-sem-vergonha, e
posteriormente Mar(ia-sem-ver)gonha. Aqui a irreverncia da maria-sem-vergonha, rizoma de Pindorama, vai sem ver, realiza arte sem dar privilgio
viso. Ela pode tornar-se Mar( )gonha ou Margonha e tambm ( ).
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disciplina
Realizada no 1 semestre de 2009 pela Profa. Maria Beatriz de Medeiros, a
disciplina Interveno, Performance, Instalao, do curso de Graduao em
Artes Visuais da Universidade de Braslia, teve como co-autoras a doutoranda
Ana Carolina Mendes e as mestrandas Bianca Tinoco, Larissa Ferreira e Gabrielle Corra.
O trabalho (4h semanais) foi conduzido por meio de metodologia desenvolvida no seio do Corpos Informticos desde 1992. Cada encontro foi dividido da
seguinte maneira:
- Leitura e anlise crtica de textos sobre performance (1h30)
- Alongamento e exerccios corporais (40 min)
- Propostas performticas individuais (30 min)
- Propostas performticas individuais expandidas para o grupo (1h)
- Avaliao sobre os trabalhos
Em cada encontro, o alongamento foi proposto de forma diferenciada: puro
alongamento feito em academias de ginstica; propostas mais soltas utilizadas para preparao em dana; brincadeiras e jogos diversos; massagens individuais e coletivas etc.
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apresentao
_______________________
Criao coletiva. [...] o trabalho ganha forma a partir da interao do elenco com a plateia e
os pedestres em ruas da Barra Funda. A interveno sai da Casa de So Jorge (Barra Funda) e
segue para frente do Teatro So Pedro. No trajeto de quinze minutos [...]. S depois da volta pelo
quarteiro, os trinta espectadores da sesso se acomodam no teatro para acompanhar a pea.
http://vejasp.abril.com.br/teatro/quem-nao-sabe-mais-quem-que-onde-esta-precisa-se-mexer
1
55
Teclados desmontados muito renderam: teclas so chocalhos; circuitos eletrnicos, que existem no interior do teclado, so mapas e foram distribudos para
o pblico como roteiros do espetculo; alguns teclados possuem uma folha de
silicone sobre as teclas, com relevos semelhantes a mamilos, e se tornaram roupas juntamente com fios e placas de circuito eletrnico. Colocados lado a lado
de forma vertical lembram sanfonas com timo som. A parte de trs dos teclados foi o cho da Mulher Invisvel: andar sobre eles era realmente perigoso.
ao 2
0 roteiro / a rua
Ficou decidido que comearamos na parada de nibus mais prxima ao
teatro (713 sul, sentido sul). Durante a pesquisa do espao de ao, chegamos
p no ponto de nibus. Num compor constante de ideias, ficou claro que
deveramos iniciar o espetculo descendo de um nibus. Da parada ao teatro
cantaramos. Isto representava um percurso e, como tal, deveria ter um guia
(Bianca Tinoco). E se guia haveria, mapas seriam necessrios. Os mapas distribudos eram as folhas de acetato com circuito integrado que retiramos de
cerca de 30 teclados de computador.
Vieram de nibus Eva Maria, Taiom, Diego Azambuja e uma cmera (Joo
Angelini). Taiom levava enrolado um tapete de 20/2 m feito de TNT e plstico bolha. O texto dizia mais ou menos isto:
Boa noite, no queria incomodar. Eu poderia estar roubando, mas
estou aqui anunciando e convidando vocs para uma performance:
Mar(ia-sem-ver)gonha, que vai acontecer na parada de nibus da
713 e convido a todos para descerem conosco para participar.
57
CUestionrio
Larissa Ferreira
Carlos Fino
Felipe Oalquiaga
Iteratores
CUestionrio 01 (1984)
01.01 Data de nascimento: ___\___\____
02.01b Quantos anos mais ou menos?* ____
01.02 Signo do zodaco:* ___________________________________
___________________
01.02 Signo do horscopo chins:* ____________________________
_______
01.04 Se no se chamasse assim se chamaria:* (___) Morgana Saionara
(___) Ivan Weshlwy ?Andrei
01.05 Qual a diferena que tem do sexo de baixo pro seio? Cite 02.*______
____________________________________________________
____________________________________________________
_______________________________________
01.06 Gosta de esquema A vontade?* Sim(_) No(_)
b pegar sol a vontade? Sim(_) No(_)
01.07 Como o cheiro do amor?* _______________________ ______
____________________________________________________
___________________
01.07b Qual perfume voc mais gosta?*
___________________________
01.08 Todo mundo sabe o que vc tem??* __________________
B) De que outra maneira voc pode mostrar?*_______________ ______
____________________________________________________
__________________________________________
01.09 Se ficasse numa ilha se chatearia muito: s (_) n (_)
O que faria?* __________________________________ _________
____________________________________________________
____________________________________________
* Campos de preenchimento obrigatrio.
NOME:___|___|___|___|___|___|___|___||___|___|___|___|___|
SOBRENOME: ___|___|___|___|___|___|___|___|___|___|___|_
Telefone para CONTATO - cel.:___|___|___|___|___|___|___|
60
CUestionrio 02 (1983)
02.01 Sua popularidade aumenta a cada dia fruto de:*
( ) uma estratgia ( ) casualidade (
______________
02.05 O que gostaria de ser?* ( ) estrela
la ( )cadela
) Luxury
( ) fruto proibido
( ) superstar
( )
( ) ex-estre-
ou
( )Madri
ou ( )pescado
ao 3
parada 1
Quando os performers do nibus chegaram, Bianca, a guia, com seu megafone, convocou os espectadores para o espetculo.
Intimao do pblico presente! Meu nome Bianca e serei a guia de vocs
na visita guiada Mar(ia-sem-ver)gonha.
Este aqui o mapa do nosso passeio. muito importante que todos prestem
ateno no mapa para se perderem. Estamos todos aqui, no quadrante inferior externo da mesma mama identifica-se um ndulo slido.2
Ns seguiremos agora um trajeto em que aprenderemos mais sobre a
Mar(ia-sem-ver)gonha e as composies urbanas. Aqui neste ponto de nibus, por exemplo, vimos nos ltimos minutos uma srie de composies
urbanas, e veremos outras pelo caminho.
_______________________
62
Para alegrar nosso passeio, contratamos uma banda do Rio Grande do Norte, a dor sincera do Rio Grande do Norte, narrador sincero do Rio Grande do
Norte3. As letras do repertrio da banda j esto sendo distribudas.
Mas, importante! Toda vez em que eu for dar uma explicao, usarei este
apito vermelho (mostra apito). Quando eu soprar o apito, a banda vai parar
de tocar e importante que todos faam silncio, pois darei uma explicao
fundamental para a compreenso da Mar(ia-sem-ver)gonha. Entenderam?
Ouviram o apito, silncio!
Todos com o mapa na mo? Prontos? Se tiverem alguma dvida, no perguntem para mim, guardem para vocs que assim mesmo, nem tudo na
vida tem explicao.
Banda pode comear!
Internet
Internetinha
Vamos logo deslogar
Vamos dar a volta ao mundo
Volta ao mundo
Vamos dar
Celular que tu me destes
era vivo e timganou
O e mail tinha vrus
E o computador lascou
Rio Grande do Norte, a dor sincera do Rio Grande do Norte, narrador sincero do Rio Grande
do Norte, o texto final do filme CU. O filme. Interessante ressaltar que este trecho, retirado
de Os Sertes de Euclides da Cunha, e manipulado no momento da edio do vdeo, criou
coincidncias, ou no, divertidas: do Rio Grande do Norte no h ningum no Grupo (somos
de Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, ou Braslia), a dor sincera resultado
da repetio entrecortada de narrador sincero e torna-se, no filme, a doce encera. Como, no
filme, enceramos a via W3 e a rodoviria de Braslia. Uma doce encera, sugestiva.
3
63
65
[Apito]
parada 2
casa da Dina
Senhoras e senhores. Em nosso dia-a-dia, muito comum encontrarmos
composies urbanas que nem mesmo sabem que so composies urbanas, como aqueles cartazes dizendo: Dona Mrcia traz a pessoa amada em
trs dias, bzios e tar 3273-4977. Aqui neste porto temos um deles (l o
cartaz da Dina). um cartaz muito interessante, at porque, algum aqui
sabia onde encontrar uma costureira especialista em cintas? Do lado deste cartaz, h um pedido, uma solicitao, um apelo clamoroso da estilista:
CHAMAR DINA AQUI. Sendo assim, vamos chamar a Dina para vir conosco. Todos bem alto, um dois trs e j: DIIIIIIINAAAAAA!!!
De novo: DIIIIIIINAAAAAA!!!
[Espera para ver se algum aparece]
Pronto, atendemos ao pedido da Dina, vamos continuar nosso trajeto. Gira
o frango!
66
parada 3
placa W / U
Aqui, visualizem uma linha imaginria, como a do Equador, exatamente
nesta extenso que leva do conjunto W, desta placa minha direita, ao conjunto U da placa do outro lado da rua4. Temos aqui a passagem do reino da
Web, com W, da WWW, para o mundo da Ueb arte iterativa, tambm conhecido como UAI. Como o nome ento? (repete) UAI UAI UAI UAI UAI
UAI. Passando por esta linha imaginria, todos ns seremos tomados pelo
devir criana: vamos perder a vergonha, como a Mar(ia-sem-ver)gonha! E
cad a siririca? Banda, p de siririca!
[O cortejo prossegue com msica]
Na minha casa tem um p de siririca
Mas minha me disse que pode viciar
Mas da janela parecia to bonita
Que dessa fruta resolvi provar
P de siririca
P de siririca que eu dou (2x)
Maracuj, goiaba, amora tangerina
Como gostosa essa fruta siririca
Maracuj, goiaba, amora, tangerina
Como cheirosa essa flor de siririca
P de siririca
P de siririca que eu dou (2x)
Mas minha filha isso no flor que se cheire
E dessa fruta no se deve lambusar
Eu j te disse que essa tal de siririca
perigosa ela pode viciar
P de siririca
P de siririca que eu dou (2x)5
_______________________
Letra e msica: Camila Soato, Laurem Crossetti e Roberta Senda. http:// vimeo.com/9522185.
67
parada 4
amarelinha binria
Senhoras e senhores, agora que j estamos sem vergonha e incorporamos
o devir criana, vamos comear a trabalhar com nosso corpo. Temos aqui
uma amarelinha, como aquelas do tempo de criana. Mas no uma amarelinha qualquer, uma amarelinha binria! S tem dois nmeros, e vocs
precisam sair pulando at o final que no o cu, vocs vo ver o que .
Sugerimos que vocs no pulem sozinhos, se juntem aos amigos ou aos desconhecidos, faam corpo sem rgos, pois estamos no Brasil e precisamos
aglutinar! A banda estar do outro lado, esperando por todos. Todo mundo
em um p s e no treme, no treme, no treme!
[Todos pulam amarelinha e atingem o C.U.]
parada 5
alongamento
[Apito]
Senhoras e senhores, ns j cantamos, danamos, pulamos, e estamos um
pouco cansados, no? Precisamos de um alongamento para continuar, certo? Chamamos ento o professor Diego MaxSteel para uma rpida aula de
alongamento antes de continuarmos nosso trajeto.
[Diego Azambuja, sentado no asfalto, comanda
o MaxSteel que comanda o alongamento]
68
Esta Mulher Invisvel foi retirada de algum recanto de minha memria: anos
1980, no Morro da Urca, eu havia experienciado uma Mulher Invisvel: corredor, feito de panos pendurados, de cerca de 3 metros de comprimento onde
havia uma mulher invisvel, isto , nada alm de badulaques pendurados que
roavam os corpos cegos pela escurido no interior do tnel. Nossa montagem
da Mulher Invisvel tinha 3 metros de altura, 1 de largura e 6 de profundidade.
Um dos iteratores, Marco Antonio Siqueira, relatou posteriormente por email
a experincia de atravessar a extenso da mulher que ia sem ver:
O mestre de cerimnia anunciava e convidava: Venham ver a Mulher Invisvel!. Resisti, inconscientemente, o quanto pude, mas enfim me meti naquele tnel negro. A escurido claustrofbica me remeteu ao desconforto
que ainda sinto em parques de diverso; o emaranhado catico de penduricalhos, um puxozinho aqui, um toquezinho ali, lembrou de Hlio e Lygia, Freud e Lacan, e, de uma tal vagina dentada, senti um alvio catrtico
quando sa. Que bacana, invaginando numa obra de arte psicanalizei um
de meus medinhos inconscientes, gostei. Parabns Bia, parabns Corpos...
69
ao 4
festa pique
Ao entrar no espao do teatro em si, totalmente livre, sem cadeiras, Carlos e
Ingrid dividiram o pblico em dois times: pique-bandeira. A banda tocava
solenemente o Hino Nacional.
Para o pique-bandeira, Carlos havia iluminado a cena com luzes verdes e amarelas. Esta iluminao delimitava suavemente os campos para o jogo. Melhor
de trs. Ao final, a luz se transmutou em luz negra e o som foi de festa. Este
momento foi denominado a festa e durou cerca de 5 minutos.
momento TV
O Momento TV pediu pipoca. Um verdadeiro pipoqueiro de rua foi convidado
a adentrar a cena com seu carrinho e distribuir saquinhos de pipoca. No sendo atletas, nem danarinos, nem atores, verificamos que no tnhamos pique
para correr, danar, cantar sem momentos de descanso. Entre o pique-bandeira e o jogral foi introduzido um Momento TV: puxamos cinco televisores e
cinco DVDS para o centro do espao e nos instalamos confortavelmente vendo
televiso. Um performer, Maria Vitria Canesin, foi deslocada para ver uma
televiso diferente: um retro-projetor e na projeo radiografias e imagens
medicinais. Assim afirmou Maria Vitria:
Pedi, desesperada, uma pipoca para a moa que me olhava espantada. Eu
no podia perder ali aquela vescula registrada por ultra-sonografia, era a
melhor parte do filme! Ela trouxe a pipoca, se abaixou e disse:
_ Se precisar de alguma coisa, pode me pedir que eu fao.
_ (eu) Sente aqui, esse filme imperdvel!
Ela no sentou. Provavelmente achou que eu estava louca por uma pipoca e,
por estar ali, atuando, e compondo o espetculo, no poderia sair daquele
lugar quela hora. Eu era, para ela, uma obra viva em uma moldura em uma
exposio [...] E nessa vivncia que a performance se solidificou, cada palavra que eu dirigi a essa garota, no era espetculo e ao mesmo tempo era,
e, ela, trazendo a pipoca, tambm performava. Mas ela no devia ter perdido
aquela cena: aquela vescula era demais!6
_______________________
CANESIN, Maria Vitria. Trabalho final, escrito, da disciplina Interveno, Performance, Instalao, julho de 2009.
6
70
jogral
[Deixamos os iteratores instalados, vendo TV e comendo pipoca, e samos
subrepticiamente para vestirmos nossas roupas de teclado]
[jogral binrio]
[braos esquerdos esticados]
0 - Intimao do pblico
presente!
[abaixa o brao]
0 - Intimamos o pblico
presente para cincia
audincia de uma oitava
abaixo marcada para...
Agora. Sob as penas da
lei verifica-se: Em muitos
lugares rareavam, eram
poucos
1 - No Quadrante inferior externo da mesma
mama identifica-se um
ndulo slido.
0 - Tecido celular subcutneo e musculatura
retromamaria sem alteraes [sinal da cruz] na
f do chocolate. TAIOM:
palavra do Senhor.
[mos e olhos para cima]
Todos: graas a deus
[3 vezes]
1 - No treme, no treme.
[balana o quadril]
0 - No Quadrante inferior externo da mesma
mama identifica-se um
ndulo slido
1 - Oh Luis, porra!
0 - Linfonodos em regies axilares
[cheira o sovaco do cara
a esquerda]
1 - isso, agora aqui, isso.
isso, agora aqui, isso.
isso, agora aqui, isso.
0 - No Rio Grande do
Norte
Todos: nnnnnnnnnnnnn.
1 - Jackson: antena neutra.
0 - Estamos em el brasil e reivindicamos aglutinar
1 - Ele chama o Nietzche
de - Coldoco de calibre
normal, de bigode.
[olhos arregalados]
0 - Mediatismo sem alteraes.
1 - Dona mrcia traz a
pessoa amada na palma
da sua mo em 3 dias,
buzios e tar, 32734977.
32734977. 32734977. Tu
Tu Tu. 1 - Coldoco de
calibre normal, gira o
frango
71
[todos giram]
1 - Imagens csticas sem
contedo
egocntrico,
exceto no quadrante superior na regio
retro-areolar.
[todos fazem os gestos
correspondentes ao texto]
- De aparelhos que so
jogados fora, a gente recicla eles e um Real, no
tem utilidade nenhuma,
voc que d utilidade.
1 - Pique-bandeira alcana este privilgio
0 - prstata em anteversoflexo da fossa ilaca
ultra-sonogrfica sem alterao
0 - JACKSON:
a ideia arrumar 10 carrinhos de supermercado
e pendurar, acorrentar
eles l no lugar que a
gente determinou, como
quem vai pro Iate, sabe?
Vem pela L2 sul e cai pro
Iate assim...
1 - No treme, no treme
[todos giram]
0 - pique-bandeira um
jogo que tambm alcana
esse privilgio.
1 - Seios custo-frenticos,
permeveis pelo narrador sincero.
1 - Privilgio do abandono
0 - [abaixa] prazer ambincia, [levanta] ambincia criana, gera um novo
jogo.
[senta]
0 - esse barulho.
1 - Ausncia de lquido
livre em cavidade penial
[levanta]
0 - o privilgio do abandono.
1 - Ausncia de massas
no andar superior
72
1 - Ausncia de colees
[pula]
[mos em orao- voz aguda]
0 - O chocolate da f.
1 - Ecogenicidade do pbis homognea
0 - [espirro] articulares.
0 - ! vai quebrar.
1 - TAIOM: prstata em
anteversoflexo da fossa
ilaca ultra-sonogrfica
sem alterao.
TODOS: com alteraes
[balana a perna como um co que tivesse terminado de urinar]
1 - Fino e liso
[os dois grupos do jogral se enfrentam
como torcidas, trocam de lado 3 vezes
no espao e gritam, 3 vezes,m como se
gritassem flamengooo]
0 - Flagelo
1 - Flagelo
0 - Ps miccional
1 - CAMILA: Exame realizado com transdutor
convexo multifrequencial, na freqncia media de trs ponto cinco
megahertz.
0 - MI!
1 - Coro, cerca, ono, CU,
composio urbana, no
ivel. Possi, possi, l, sl.
POS - S - VEL. POSSVEL.
1 - Em muitos lugares
rareavam, eram poucos,
diz aquele narrador do
Rio Grande do Norte. A
dor sincera do Rio Grande do Norte. Narrador
sincero, adoce sincero, a
dor sincera, a dor se encera. Enceradeira.
[se embolando]
0 - Estamos Brasil e reivicamos aglutinar!
[um passo para frente, balanando a
perna como um co que tivesse terminado de urinar]
1 - Ps miccional
0 - Jogo.
73
ao 5
Omolu eletrnico
Aps o jogral, entrou em cena Larissa Ferreira paramentada do que foi denominado Omolu. Ao montar as roupas para o jogral, feitas de teclados desmontados, uma quantidade enorme de fios restou. Ao arrum-los, eles sugeriram uma roupa de Omolu: rosto e corpo inteiramente cobertos por fios. Logo
nos lembramos da performance Electric Dance de Atsuko Tanaka do grupo
Guta (Japo, anos 1956). A nossa vestimenta era composta apenas de fios,
mas, de fato, ainda que sem lmpadas, o que fizemos foi muito semelhante,
como resultado imagtico. O movimento de Tanaka no Japo desconhecemos,
Larissa rodopiou por cerca de 10 minutos7.
ciranda
Neste nterim, trocamos nossas roupas de teclados por roupas diversas, porm todas bem coloridas. E chamamos o pblico a participar de mais uma
brincadeira: a ciranda A linda rosa juvenil parodiada para a seguinte letra:
Uma segunda verso do Omolu, apresentada no 7 Art. Encontro de Arte e Tecnologia da UnB,
Braslia, 2008, pode ser vista em http://vimeo.com/9173251.
7
76
A ciranda foi brincada trs a quatro vezes, conforme disposio dos iteratores. Na ltima vez, letra da msica seguiu-se um grito: cu. Este grito foi
estendido at transformar-se apenas em u, uma grande vaia que finalizava o
espetculo em si e impedia aplausos. Ao fim do grito, a sala estava semi-escura
e o filme CU. O filme foi projetado em um telo. Nos sentamos com rolos de
papel higinico na mo e, todos, assistimos ao filme refazendo parte da performance de Mara: cortando os pedacinhos de papel higinico e arrumando-os
em montinhos.
reverberaes
de Alice Stefnia para MBM
[...] eu acho muito bacana o conceito do ldico, o devir-criana e
essa festa que se instala. me diverti pacas! mas confesso que preciso
sempre me dizer que no teatro pra justificar a ausncia de um
desenho mais preciso das coisas, saca? s vezes sinto falta disso: no
de uma lgica (acho que isso eu superei rsrsrs) mas de uma preciso
na execuo. uma Carlinha8 pra organizar a orgia. por que fica um
pouco anos 60 demais a baguna solta, e por vezes parece que vocs
se divertem mais que a gente... no que isso seja um problema. tb
acho tudo muito. h um excesso de propostas e no se vai to longe
em nenhuma. mas isso faz parte do devir-criana, ento, neste aspecto, o conceito por traz da ao suplanta-a. e justifica o excesso
de trocas - desterritorizalizao - a zona - ausncia de ordem... fica
ento a questo (pra mim tambm): a perspectiva potica-esttica
est mais nos conceitos que a regem do que na elaborao da prpria
obra? ou no?
beijos,
por outro lado, me diverti pacas! mas teria me divertido tanto se no
conhece ningum por ali?
mais beijos.
Alice
_______________________
Referncia a Carla Rocha, membro fundador do Corpos Informticos, assim como Alice
Stefnia, muito organizada.
8
77
78
Mara Nobre
80
81
ar gonh
86
Pique-bandeira
87
88
esta
89
om ento T
91
92
93
jogral
94
98
Bianca Tinoco
Termo utilizado por pesquisadores iberoamericanos, com destaque para o mexicano Felipe
Ehrenberg, em substituio ao anglicismo performer, e que denomina o artista de performance.
No Brasil, foi amplamente adotado por Renato Ferracini (UNICAMP/Grupo Lume) e Fernando
Pinheiro Villar (UnB), entre outros.
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como msica e comunicao social. Vale ressaltar que tal atmosfera de afinidade e igualdade de condies foi em muito influenciada pela prpria Bia
Medeiros, cuja estratgia foi a de evitar o uso da autoridade de professora e
liderar as atividades apenas como algum com mais experincia no assunto.
Foi da coletividade que saiu a sugesto de iniciar a performance-espetculo
no no SESC Garagem, mas em um ponto de nibus na W3 Sul, uma das vias
com mais forte fluxo de veculos no Plano Piloto. E assim ficou estabelecido,
mesmo no material de divulgao das apresentaes: incio s 20h30 no ponto de nibus. A ao comeava simultaneamente dentro de um nibus em movimento, onde um grupo de performadores convidava os passageiros para o
espetculo, e na ponto de nibus, com diversas aes individuais. Uma pessoa
cortava metodicamente um rolo de papel higinico, picote a picote; outro, no
alto da estrutura de cobertura do ponto, lia passagens de um livro ali encontrado e fazia sinais para os nibus que percorriam a via; outro ainda, ostentando uma caixa com doces e balas, negava-se a vender os quitutes e os comia
na frente dos participadores.
Quando o primeiro grupo de performadores enfim chegava ao ponto, o grupo
completo e o pblico eram convidados a executar um tour por aquelas redondezas, conduzidos por uma guia vestida a carter de terninho, leno no
pescoo, coque e salto alto. Com um megafone na mo e a cabea nas seratas
futuristas e no discurso dad, ela ora falava sobre a grama de um jardim na
calada (onde performadoras vestidas como mulheres-planta faziam s vezes
de maria-sem-vergonha), ora chamava aos berros uma costureira, de nome
Dina, que havia deixado no porto de sua casa o aviso: se precisar, chame. Nas
duas noites, o pblico clamou por Dina, sem sucesso.
A mesma guia estabelecia uma linha imaginria, espcie de Equador no meio
de Braslia, onde se instaurava o reino do UAI, bem na divisa dos blocos W e U
da quadra 713/913 sul. Rompidos os limites da linha, os participadores eram
convidados a pular uma enorme amarelinha binria, numeradas no cho da
rua apenas com nmeros 0 e 1, como a linguagem de programao dos computadores. No final, em vez do cu, encontravam a inscrio CU.
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Cujo nome tem como referncia uma instalao realizada na dcada de 1980 no Morro da
Urca, Rio de Janeiro.
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Larissa Ferreira entrava no palco com um adereo de cabea formado por inmeros e longos fios de computador. Enquanto ela girava, a banda e outros
performadores exploravam sonoridades percussivas, estes ltimos a partir
dos teclados sobre seus corpos. Este momento era chamado de Omulu, em
referncia ao orix responsvel pela sade, cuja vestimenta no candombl envolve um adorno de cabea que lembra o ostentado pela performadora. Omulu
tambm o intercessor da passagem dos espritos do plano material para o
espiritual e, coincidncia ou no, esta parte da apresentao era transmitida
em telepresena via internet. O transe em que Larissa se instalava ao girar sem
parar, durante cerca de cinco minutos, igualmente remetia ao aspecto mstico,
de conexo em um sentido mais amplo.
O ato de girar se interligava ao ponto seguinte da performance-espetculo, a
brincadeira de Maria-sem-vergonha uma adaptao da cantiga de roda A
linda rosa juvenil. A letra da cantiga foi alterada pelo coletivo de maneira a remeter a conceitos pesquisados pelo Corpos Informticos. Participadores eram
convidados a protagonizar os papis da Maria-sem-vergonha, da beladona, do
belo gay, no meio da roda que se formava. Ao final, os performadores, despidos dos teclados e com trajes coloridos, mais uma vez exploravam o conceito
de CU, agora acoplado ao ritmo da cantiga.
Terminada a roda, cada performador buscava no fundo do palco um rolo de
papel higinico e passava a pic-lo metodicamente. Cada pedao era empilhado, em uma atividade silenciosa. O ambiente ficava s escuras e ento era
projetado CU. O filme. Terminado o curta-metragem, cansados e realizados,
ramos aplaudidos e aplaudamos. Palmas para qu, se no era teatro? E por
que no? Palmas para todos, por aceitarem a proposta do grupo, por serem
todos artistas, cada qual com seu grau de envolvimento.
Depois desta descrio, torna-se difcil enquadrar Mar(ia-sem-ver)gonha em
alguma categoria das artes cnicas, mesmo que ela tenha tomado o palco como
espao in situ. Performance demarcada? Pea teatral sem enredo, sem script?
Um retorno aos happenings de Allan Kaprow? Homenagem aos brincantes
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Um pedao de calada, um caminho de praa ou mesmo uma faixa de pedestres bastavam para que integrantes do coletivo comeassem a riscar no cho
a amarelinha binria, por vezes com a palavra RUA, outras com a sigla CU.
Formada a amarelinha, o coletivo todo pulava e convidava os passantes a se
tornarem participadores. A amarelinha trouxe tona situaes engraadas,
pois muitos pedestres perguntavam qual era a regra, e no havia regras. Sem
perguntar, um grupo de crianas em Ceilndia criou a sua: S pode pisar no
1, no pode no 0! E assim compuseram com a ambincia riscada no cho.
Os momentos do espetculo de 2009, com exceo do jogral, da Mulher Invisvel e da participao do pipoqueiro, foram dessa vez cartas na manga a serem
lanadas de acordo com a resposta dos participadores. O ato de pular corda, o
alongamento liderado pelo boneco Max Steel, as partidas de pique-bandeira,
a roda com a cantiga da Maria-sem-vergonha eram provocados conforme a
disposio do pblico e as condies de espao necessrias.
Performadores de outros estados tambm se juntaram ao coletivo foi o caso
de ZMrio, do Coletivo Osso, que deslocou-se de Salvador para integrar a
apresentao em Braslia e Ceilndia, e de componentes do Grupo Empreza,
que participaram da ao no Praa do Sol, em Goinia.
Quanto ao pblico, como a performance aparecia para eles como algo inesperado, relativamente poucos se atreveram a aceitar o convite e entrar no
cortejo. As crianas, em todas as apresentaes, foram as que tiveram menos
reservas, pulando corda, amarelinha, jogando bandeirinha e girando a roda
em igualdade com os performadores. Duas jovens, na Rodoviria de Braslia,
aceitaram fazer o alongamento do Max Steel, e rapazes grafiteiros em Goinia
aproveitaram os giz da amarelinha para gravarem seu nome na calada do Parque Vaca Brava. Entre os adultos, aqueles privilegiados pelo abandono foram
os que melhor se engajaram, como um inesperado danarino em frente tela
de exibio do curta-metragem, em Ceilndia, e a moradora de uma barraca
de camping no Praa do Sol. Se as adeses no foram tantas, a curiosidade
foi imensa. Os pedestres estranhavam, procuravam entender. Perguntavam o
que significava, se era um culto, uma seita, um protesto. Alguns foram picados
pela mosca e a aproveitaram, sem amarras. [...] a experincia artstica do sensvel a sur-preenso mais do que a com-preenso. (STIEGLER, 2007, 49)
110
da teoria rua
Embora a primeira vida de Mar(ia-sem-ver)gonha, em 2009, tenha oferecido
ao Corpos Informticos um repertrio de aes e composies riqussimo, foi
na itinerncia de 2010 que se realizou com profundidade um dos principais
desejos do coletivo: a Composio Urbana em si, desprovida da redoma imaterial que o ambiente de um museu ou teatro inevitavelmente evoca.
Ns trabalhamos em galerias, museus, espaos institucionais, isto , espaos in situ, mas acreditamos muito em um trabalho ex situ, trabalhos
em locais pblicos, ou como quer Abraham Moles, espaos da polcia,
os quais acreditamos serem espaos pblicos: praas, rodovirias... O
prprio da linguagem artstica Performance acontecer ao vivo, na vida,
e estar aberto participao do pblico, por vezes tornando-o o co-autor. A Performance em espaos pblicos, por retirar o transeunte de seu
quotidiano, por redimensionar os espaos, e conseqentemente os hbitos deste, geram maior participao do pblico. (MEDEIROS, 2006, 9)
De acordo com os artigos e livros publicados pelo coletivo e por sua porta-voz,
Bia Medeiros (2005, 103), [...] para ser verdadeiramente ex situ, o trabalho
no deveria nem ser anunciado como arte. Pois, quando se declara algo uma
obra de arte, o espectador ser motivado a colocar o objeto artstico em uma
classificao inibidora ligada arte dos museus, elitizada, sem apelo. Em vez
da redoma, o Corpos Informticos chama para o jogo. O jogo inverte a institucionalizao da arte, questiona o mercado de arte, dilui a posio enrijecida
de esteticistas, crticos, historiadores. (MEDEIROS, 2009, 107)
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Retornando aos conceitos vasculhados no incio deste artigo, tais como Composio Urbana, Ueb Arte Iterativa, ambincia e, claro, mar(ia-sem-ver)
gonha, verificamos que a presena deles no cerne das performances aqui relatadas no apenas evidente, mas essencial. O exerccio da performance-espetculo Mar(ia-sem-ver)gonha, aliado ao da escrita pr e ps ao ex situ,
pode ser interpretado como o que Basbaum (2007, 29) define como
Pensamento com arte (e no um pensamento meramente aplicado na
arte), isto , um pensamento que seja pura prtica, que seja essencialmente mvel, que exera-se nos espaos de problematizao provocados pelo choque dos signos plsticos com mltiplos enunciados, que
crie formas de ao novas e diferenciadas, s h possibilidade de um
verdadeiro pensamento plstico se houver, inequivocamente, primazia
da forma visvel sobre a forma enunciativa. As artes plsticas seriam,
deste modo, uma espcie de campo invertido do pensamento, um saber
ao avesso ou um avesso do saber , constantemente pressionado e
provocando turbulncias no conjunto dos pensamentos estabelecidos.
Planta-rizoma fugidia, de difcil definio, Mar(ia-sem-ver)gonha desabrocha, portanto, como materializao mais madura do complexo e incessante exerccio de reflexo esttica do Grupo de Pesquisa Corpos Informticos.
Nela, em suas vidas e apresentaes, a Composio Urbana se deu com leveza,
como que por brincadeira.
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paisagem contraditria
meu sopro de vida no permanecer para sempre no homem, pois ele carne, e no viver
mais do que cento e vinte anos.
Gnesis, 6:3
optica
Quando desta necessidade de entendimento e apreenso do que se move, desta circulao hipntica, configurada na hipottica do princpio fogo e sua investida no plasmar ou, o desejo de fazer esttico o impossvel: eis a imagem.
Logo, nesta contradio suavemente materializada, existe luz no logos da iluso, no prato fundo invertido, que ordene o caos, o cncavo longitudinal, a
banha de porco encerrada nos planos euclidianos, o vaso puro do trabalho.
Sua obteno, espelho atlntico, olho hdrico, 3 cavalos, 7 cnticos e candelabros, por a nos veremos refletidos nos celulares, no gro audiovisual, na poa,
que bosta, no furo informtico, essa agulha de movimento, o mecnico, o ouro
pela migaia, o real pelo cartesiano, newtoniano, darwiniano e pela bunda.
Imersos na iluso, o sexo da imaginao pelo concreto, naquilo onde a linguagem encontra sua repetio moribunda mais frmulas mais balanas vezes a
lgica como conjugado entre a flmula e o ponto; raiz quadrada: tecido.
Poderamos conceber diferentemente imagens, outdoors, buzinas, comida ou
virtualidade? Hoje, palitos de fsforo fazem fogo sem qualquer dificuldade.
a cincia uma nova compreenso? Coisa inerente ao corpo, assim como o a
linguagem?
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babel
Naquelas alturas houve um grande sobressalto sobre a possibilidade do jirau
cair. A estrutura natural j estava de tal forma prejudicada que a mnima alterao da presso fundamental geraria a catstrofe plena, ou seja, a mitografia
estril de uma cambaleante arquitetura que sequer seria possvel nesta estrutura mundana atual: torre camos.
A maquinria da eloquncia movimentou-se pela considerao do desfeito
aglutinado, no argumento sutil que diz no haver vcuo, uma vez ser possvel
que todas as coisas sejam preenchidas. Sua vergonha, suas unidades, por princpio, diferentes entre si. Algo contnuo nunca pode ser composto, ou seja, se
contnuo no muda.
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energoumenoi
A percepo fugaz desta materialidade joga a pura abstrao ao estigma social
do c com as cala. A classificao massiva de todo e qualquer compacto
revelam concepes mentais com ares de realidade. Nesta, o mundo desliza
maionese abaixo e tropea nos galhos da floresta: algazarras da vaidade, jibias, seriemas, canrios, ona pintada, papa-capim.
Quando essa grandeza veio abaixo no liquidificador das eras foi tal qual sua
diferena, sua forma espacial. O tempo foi modificado de maneira irreverssvel nesta grande noite dormida, quando o tato e a cincia fundiram-se na sexta
camada massiva e etrea da mente.
Quando metforas tornam-se inutilidades comunicativas e desafiam a glamorosa ocidental, vitimando o circulatrio do gado, baixando o sarrafo no poltico da representao, no bailado grosso das classificatrias da copa.
Este o drama infinito desta criao como vantajoso alimento para sua cpia
circular, sendo o fluxo apropriao da cambota polar norte, o espartilho espacial do discurso, a coisificao da moral. Da, a eficincia desta cosmologia
impondervel do vazio verbal: onde adulamos? Onde est a sada?
0-1
++
8-1
= po
Cada uma destas esferas surgem como prima-substncia deste processo etreo. Nestas duas vlvulas escapulares, intacta matemtica desta delirante lgica: sntese disjuntiva da cincia com o saber efetivo.
Caranguejos vo tir-lo do puro saber enquanto franksteins caminham pelas
metrpoles remendados com mil e um trejeitos colados. A matria prega. Preciosa definio desta fisicalidade comum.
+ +
+ = canga
1
9+3
8-1
0-1
fuleragem
Mas que xumbreca, que olor, que boicote na prestao. A sujeira carcomeu o
pano e o preo da ladainha vai cada vez mais baratinho. quando a compra
faz vezes de gula e o absurdo se engoma nesta carne de chiclete.
Pssaros, peixes, animais ariscos de toda espcie, como a gerarda-tataca: que
renca na xuleta, canalha, torxica, vai duma vez, pega no solta, derriba cerca,
derruba casa, se destina ao matadouro ou cobaia dos ranca-bago. Ou ir pro istrupcio do mundo para refrescar a mente, ou realizar a profecia do lambe-c.
O cmico alucina sua trupe rumo aos confins do paraso; vai no passo, no
deslize e se eterniza como inferno. Numerosas so nossas pras nesta salada
de abacaxi! Javali assado me vale cabrito, canela fina na nave louca, janelas,
sanfonas, foca rouca, p de coqueiro rla coxa, sacola de plstico mela cueca.
Mosca varejeira, l vai seu gigol, na lambreta do vov: ai que calor! ai que calor nenm!
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Da, a bunda desbunda serafina pelo mundo, orgulhosa de sua extrema situao, desgasta suprema suas engrenagens. Marola, estivador no suor, na
confuso do recato varola esfregada na prexeca, no carburador. Desce at
embaixo, no beijinho, no beicinho da corneta, na vuvuzela da lambreta, na
vulva, na tula.
Mas que cafonice acelerada dessa mquina do corao que bate, que entorta
por voc no calhau da madrugada, quando o bicho rola e solta na corneta sapecada, na vuvuzela do mai: que tica? A prpria!
Volpia, mas que ladainha, que conversa mole pra dormir... tica moleza,
agora me mostra a bunda: bitela confiscada! Ai da mtrica, vejo piriquitos
correndo pasto afora. Pelas bundas de agosto, co que ladra perde o osso, no
poo, no fosso.
A vadiagem caduca na gonorria, dignssima diarria! Do corao ao pescoo
levo a marmita, as batidas, que atia, que trumbica, que cospe na bigorna.
Mexe a bundinha, sa borboleta, chora piriquita, peida na farofa, d uma rodadinha, jura califrnia, cravo e mequetrefe, maionese, fala qu te chupe. Mas
que adrenalina, queee adrenalina! Sonhou, confirme!
pulmo
Em princpio, a pedra tornou-se dura no se sabe pela ocasio de dilvios
ou escrituras. Pelas contas, nossa realidade comeou em formao marcha-lenta. Pelos cus, o sol brotava corao. Por causa deste ente, sobrevido da
antiguidade, nossa soluo foi achar o caminho do fogo. Fogo como verbo. No
comeo era o verbo? Mas o verso o mistrio.
Onde esgota esta influncia de espiral? Pormenores so descritos: onde o verbo torna-se nulo e o trans faz verossmel sua existncia.
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caosgonia
No princpio havia o caos, a floresta como hiptese. No curso deste rio avaria do destino, lavanderia do vil metal, tua destruio, mcula endiabrada do
crime inverossmel. Ouro, prata, bronze. No se sabe como restilo ou como
comdia: cambota de uma natividade.
Prato sujo no recinto escuro, farinhada. A escria retumbou incgnita perante
sua forma bruta. Havia o jogo natural rumo energia mundana. Deserto em
meio ao labirinto, edifcio de um vilarejo s, altares meticulosos do espao, da
desordem, milheiros de peixes, cardume de Moebius, no espelho, que nesta
lida remexe com arado os elementos terrestres.
porcos
po-de-sal
7.3=77
= mosca
A noite foi ento vlvula, o tingimento nativo, arisco, bombardeado pelas naes retilneas, nesta concepo de morte. O morro corte-de-pedra com suas
bandas metdicas, seus rastros sociais e calvalgadas em meio ao caos, ao caos
contguo, zero um.
A caosgonia e sua probabilidade estatstica, ou equao para o equilbrio, passa pela elasticidade do tempo. Os instrumentos observam prticas oriundas
do incognoscvel que, de prontido, so vocacionadas para a transmutao do
bagao em translcido. O processo da feitura, da fazenda-medicina, da moenda-mineral, recebe o sol comum depurado no mosaico da virtude, no espiral
mundano, sua lua antiga morta. Planta-se a cana em regimento fogo, mi o
milho em produto incolor: rubra-incgnita deste processo rumo ao caos.
Berros, flmulas imantadas e jurubebas perdem-se diante do fato. O finito vrio deslocou-se como dimenso, sua resoluo lgica ante o rastro metafsico,
como gordura, como se fossem avenidas de carnaval: aipim do conhecimento,
plantaes, caminhos desconhecidos, galxias de fub, o desvario do todo, sua
cachaa.
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padaria
Massa a massa que devassa a predileo do brasileiro, pois o po amassado
nesta padaria parte do mito especulado em sculos passados. Ali, haveria
uma nao cujo interesse maior seria o lado mais mixuruca do corpo: a bunda.
Da, de tanto olhar bunda acabaria dando merda. Tornozelos do biscoito: a
cara quadrada que hoje eu vi, tm olhos, tem boca e um pequeno nariz; pescoo comprido com ombros iguais; chapu na cabea com laos atrs.
Um redemuinho atingiu a especulao. Vira trs quando falta uma perna.
Pode ir reto em meio sacanagem, ou uma dose de quentume, neste restilo.
Como po amassado no dia-a-dia, a sargada do projeto padro. Ouro pela
migaia no sobe e desce da serra pelada.
Conta-se a grama, o p miolo quente da colheita do trigo processado no alimento-esquema mvel. Nesta serventia o incorubirbil alicera certezas deste
instrumento de insero matinal.
Eis a rebelio. Eis a viscula e o olho binico. Sobrevoa no caos urbano a caracterstica que divide a estrutura em trs, em seis e em dez. Escapole da lei
o que catiola, enfurece a predileo, enquanto se carrega a espingarda pela
boca. Quem tem por objeto a paisagem ficar submerso no audiovisual, quem
vai no trote da mula estar descobrindo a predileo. As caixas so guardadas,
o olho e a muda, o visual perfeitamente mentiroso, o circulo-de-gis e o cerne
do vento.
Zero entre o dez e o uno. Nesta fornada guas abaixo versus guas arriba projetaram nossa cosmologia caracterstica de aluvio. Eis o circo primeiro. Vai e
volta pelo desenvolvimento abstrato: fundao-parede-socar canteiros como
captulos. Acabamento, instalaes, estrutura hidrulica rumo ao cu. Esgoto,
orientao, circulao-ar-respirao. Aquecimento, fornalha. Eis o hospcio
babilnico. Sem-fim e papa-capim. O n do ns. Peneira abstrata, vo mecnico, trs olhos sendo um detrs. Vagos pelos espaos, dois luzeiros, presidentes
do dia e garganta da noite necessria. Fogo, apetite, mistura: eis os primrdios
da geometria, do dente que morde sorrindo. Espelho destinado ao carnaval,
rei momo, rainhas fatais, ouro, prata, orichalcum. Entrudos pelas ruas em ginstica de fluxo. Habitantes da remeleca do abstrato vingativo, que permeiam
na coexistncia presunto, do bezuntado que cambaleia no bom dia claro que
me l! Eis voc, na companhia das ndias orientais: o bao, a unha, o cone,
o dedo, a bunda, a compra, a pompa, a lngua, a pelota, a xoxota, a vacina, a
anilina, a boca, o cabelo, o saco, a olheira, o frango, o tanto, a barriga, a intriga.
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Este texto, em verso resumida, foi publicado nos Anais do #9 Congresso de Arte e Tecnologia
da UnB. 2010.
Amarelinha Binria | Galeria CAL | 2010
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A guerra busca a dominao por se pretender verdade universal. Busca a submisso do outro, a excluso. A guerra invade, devora, deforma e silencia desejos. Ela artifcio em sendo natural. Ela usa procedimentos mistos para se
camuflar em roupagens cuidadosas, verdadeiros esconderijos, fugidios. Suas
armas so meios de comunicao unidirecionais que privilegiam texto e imagem. A rostificao pulula: o rosto uma poltica. Os olhos de Panoptes1 vigiam tudo. Ateno: mesmo quando dorme, mantm 50 dos seus 100 olhos
despertos. Mas e hoje, ele s vigia? Pune? A polcia nos impede de remanejar
o trnsito para proteger os corpos de atropelamentos. A proibio no gera
desejo de transgresso como queria Georges Bataille, gera criao do outro,
do novo. Implantamos uma rvore no meio da rua.
O grande rosto, gigantesco rosto que habita as cidades. Os grandes mares da
dominao precisam de rostos perfeitos que no possuem os traos do povo.
A pobre comunicao unidirecional estica seus braos para manter qualquer
um do rebanho ciente de suas responsabilidades. Duro, o povo permanece
manipulado. Duro, os olhos continuam abertos. Doce, a significao se rebate na beleza: acar-refinado-de-bacharis-sacarticos, ticos, panpticos,
que anestesia o paladar. O final da histria que Hera homenageou Panoptes
transformando-o em pavo. Para completar colocou os cem olhos em sua cauda. Criao! Fantasiaram o corpo, de verbo: televiso, tele-viso. Vestiram o
desejo de pavo: linguagem.
O rosto escava o buraco que a subjetivao necessita para atravessar,
constitui o buraco negro da subjetividade como conscincia ou paixo, a
cmera, o terceiro olho. (DELEUZE & GUATTARI, 1996, 32).
_______________________
Argos Panoptes (Argo de muitos olhos) , na mitologia grega, um gigante com cem olhos. Inspira a reflexo foucaultiano sobre o panptico.
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A guerra associa, cria scios, cadeias generativas lineares, a partir de indivduos dceis, adocicados pela linguagem saturada: fidelidade, acar. So gomas
de mascar doces, maquiadas, que logo perdem seu sabor. Restam como manchas de ltex pregadas no cho de rodovirias, corredores de metr, nibus
ftidos e decadentes da sociedade capitalista.
A guerra prope pular amarelinha2. Aqui, o cu a mentira, o doce. A vida
dura, cuja propulso gasosa e puro mpeto, pertence guerra, mas difere
do doce. Em sendo humana, e concomitantemente ps-humana, sempre artificial, porm aqui, no duro, o natural tenta fugir quarta-feira tarde para a
cachoeira. Por vezes consegue: na volta, talvez a blitz.
Na vida dura, fontes desconexas de formao, pura forma que no fala, toca,
sopra, joga o ser na incerteza que permite o nascimento do pensar, da meditao, sem palavras. Quieto, mergulho no rio a aprender com seus fluidos e o
corpo quente de sol pede um outro outro. Este tambm capaz de fluxos, flutua. No cria paredes, abre janelas, compe. Desejo e logo carcia, do erotismo
pornografia sem fronteiras.
Aqui h agregao, so disritmias reunidas, peles profundas de densidades diferenciadas se pregando, se soltando, se atraindo, expelindo, sugando nas asas
do suor desenfreado por movimento e circulao: pitada, aafro, pimenta e
manioba; feijo, manga, jabuticaba e aa; banana, mel, o no dito e ventania.
_______________________
Amarelinha vem do francs marelle, que por adaptao popular ganhou a associao com amarelo e o sufixo diminutivo. conhecida por diversos nomes: Em Portugal: jogo da macaca, jogar
ou saltar macaca (no norte), e ainda jogo-do-homem e p-coxinho; em Moambique chama-se avio, como no Rio Grande do Sul, ou neca; no Rio de Janeiro pode ser ainda academia ou
cademia e marelinha; na Bahia e no Par, diz-se pular macaco ou macaca; em Minas Gerais,
mar; no Rio Grande do Sul, sapata; na Espanha a brincadeira chamada: cuadrillo, infernculo, reina mora, pata coja ou rayuela, como no Chile e no Peru; no Chile o luche; na Colmbia
chamada coroza ou golosa; nos Estados Unidos hopscotch. Pode tambm ser chamada de
chapa, truco, mariola, peletre, cotelo, estrcula, entre outros. Ainda que hoje a sua prtica esteja
muito reduzida, tempos atrs jogou-se em mais de 40 desenhos diferentes. Seu objetivo claro,
sua lgica linear, crescente e seu objetivo, o cu. Fonte: FERREIRA, Aurlio Buarque de Holanda. Novo Dicionrio Aurlio, Record, So Paulo, 1996.
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Mas o que traz a fruta? A fruta traz o tempo til e invencvel. O doce d lugar
ao annimo, ao sistema complexo natural da difuso da semente, estudado e
captado pelas prticas agrcolas ao longo da histria. Ver a fruta no suficiente, descrev-la ou plasm-la cientificamente em uma folha de papel no
faz a fruta. Fora e estratgia de disperso, a constituio do fruto em nossa sensibilidade: tempo, sutileza e carcia. Frutos de todos os tipos arremessando a semente-potncia; formas, estruturas e sabores, trabalhando ainda
seu acar depois de cortada (Co sem plumas, Joo Cabral de Melo Neto).
Mar(ia-sem-ver)gonhas explodem; frutos carnosos passam pelo intestino dos
animais para germinar; frutos com alas rodopiam para o desconhecido; frutos
com espinhos atravessam abismos grudados pelagem dos animais.
Tratam-se de moscas. Sutilezas que nos lanam no tempo do processo, no espao da resistncia. O que pousa fugaz, o que apodrece necessrio. Diferente da linguagem doce, a do acar, a fruta produzida pelo solo e retorna
para o solo em potncia. O verbo produto mimtico, rebate no muro branco
da significao e reverte em interpretaes.
O corpo se configura na carcia, pela carcia. O tato, como propulso do desejo,
ir-sem-ver, a carcia versus a mquina.
No princpio, era aisthesis. Filsofos e acadmicos no sabem porque s veem,
s falam o que veem. Os sete sentidos comprometidos. Cidados preocupados
padecem do mesmo mal. Mas o que eles veem? O que eles falam? Quem matou
Odete Roitman?
No processo de produo mundial, a seta do consumo o corao do sistema
capitalista. No o lucro, barreira intransponvel, grande objetivo e do qual o
capital no pode se afastar. O lucro o sangue. Mas, qual o preo do sangue?
Qual o preo do beijo na histria? Qual o preo da escrita? R$500 pagam uma
morte? R$5.000 pagam uma vida? E R$1 milho?
Fbricas, engenhos, usinas e fbricas lotadas de vidas vendidas a preo de banana. Pessoas em posse de empregos pblicos recebem e devolvem o mesmo
documento durante 30 anos.
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No somos mais do que uma linha abstrata, como uma flecha que atravessa o vazio. (DELEUZE & GUATTARI, 1996, 73)
Carcia, o essencial fruta, tem quatro sentidos. Designa uma resistncia alegre
ao duro, quando produz a sacarose, e, por outro lado, emana a sensao do
fato acontecido, ou da dana. Estes agenciamentos, estas aes imperceptveis, fogem para longe das palavras. A sacarose (C12H22O11), tambm conhecida como acar de mesa, estvel, tem uma frmula, um porm, uma mentira: reduz todo o nosso paladar a uma maaroca adocicada e grudenta na goela.
Toda uma variedade contaminada, sabores comprometidos, gradaes de douras, acares coloridos, densos, sonoros. A C12H22O11 homogeneza, destri, prega! Balas, chicletes e pirulitos para o desejo forjado. Guerra contra a
pamonha, o cuscuz, o biscoito amor-perfeito de Natividade (TO), o doce de jil
de Gois, o tacac, a pitanga e o teso. O elemento frutose circulao.
A fruta, considerada elemento da resistncia, dura e doce, doce e dura, faz
sentir a mltipla face de suas guerras e de seus desejos. Mas existe, como a
fruta na natureza, uma carcia cotidiana, dentro do povo, no seio das cidades?
Mas, por que separar os dois valores? Fruta e cidade se confundem, espcie de
violncia. Por que separar a escritura da cidade? O tato e o colorido se agarram, espcie de gozo.
A escritura est na cidade, faz parte da cidade, a cidade. Reparem Ouro Preto
(MG): por fora tudo limpo e belo; j nos fundos tudo muito sujo e histrico,
cheio de camadas. Reparem a msica, o colo e cenestesia3 de seus becos.
J na fachada das casas, h C12H22O11 para os turistas; tambm nas ruas
e nos comrcios, h C12H22O11 para os endinheirados; e, no cafezinho, h
C12H22O11 para os fregueses.
_______________________
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amarelinha binria
Amarelinha Binria e ANTI CORPOS so sistemas
complexos artificiais, doces, linguagem; naturais,
lquidos, gasosos, sexuados, animalescos e mistos,
prontos para agregar.
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A composio urbana Amarelinha Binria surge a partir de aes denominadas Mar(ia-sem-ver)gonha: composies urbanas (CU) com o objetivo de
compor arte, corpo, errante, vizinhana, grupo, ambincia, rua, atravs de jogos e brincadeiras. O pblico iterator, busca-se iterao. Amarelinha Binria, logo incompossvel, infinita, devir.
Mar(ia-sem-ver)gonha vai sem ver, tateia. No busca a lgica da linguagem
do acar, se quer fruta, siririca, e apodrece em odores desafiando a lgica. As
sementes diro?
Prope-se o jogo, desenhados descaminhos abertos em todos os sentidos. A
numerao se alterna: zero, um, um, zero, zero, um, um, um. A escritura aqui
da ordem da garatuja. A dimenso aquela do corpo inteiro correndo como
fruta escorrendo pelos lbios da cidade. O corpo inteiro se incrustando no
asfalto: Setor Comercial Sul. Aqui, de dia, vive o comrcio mesclado de todas
as raas, cores at incomuns para aqueles que pouco conhecem Braslia. Digamos a verdadeira Braslia, aquela do CONIC, de Taguatinga, Sobradinho
e Brazlndia. De noite, desfilam travestis, saem das tocas os frutos da terra,
i-mundo-intuitivos: UAI UI4. A polcia ronda cega.
Da galeria rua, a Amarelinha Binria ocupa um espao de cerca de 100m2.
Prope-se quele que, s cegas, chega de manh bem cedo para o rduo trabalho; prope-se, noite, aos lcidos infiis que saboreiem as frutas. Uma televiso jorra, a partir da galeria, videoartes de outras amarelinhas anteriores:
espetculo Mar(ia-sem-ver)gonha realizado em outros pontos de Braslia,
nas satlites, em Goinia. Tudo periferia, local da fruta, da rvore, do rizoma,
mas, sobretudo da maria-sem-vergonha. E a Mar( )gonha tambm chupa fruta? Qual o preo da Mar( )gonha?
A Amarelinha Binria no prope o cu como limite, no infernculo, nem
jogo do homem: prope soltar, e no saltar, a macaca. A Amarelinha Binria
no amarela, no amarela, colore, prope devir animal, macaco, lobo, ma_______________________
Referncia fuleragem Unhas defeitas em UAI UI, realizada pelo Corpos Informticos, no
CONIC, Braslia, 2010.
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tilha, gua viva, grupelho, carrapato (e agregao), devir mulher, anta, hiena,
girafa: soltar a macaca. Seu objetivo inexistente ou talvez apenas sugira ao,
caminhos mltiplos: acertar impossvel ou incompossvel. Um dos finais audveis atingir o CU: o cu como limite (vide corpus terico queer). O outro
final inexistente. A Amarelinha buraco no tempo, mquina do tempo, transparece Braslia, transparece um tempo de subir em rvores, roubar mangas,
chupar jabuticaba. O engenho no resgatara a cana-de-acar para transform-la em escravos e disciplina.
Trabalhando na contradio, o Corpos Informticos, corpos inacabados, escreveu. Renovao na contradio (propulso) para atualizao. Outro corpos
que ativa seu sistema imunolgico e inscreve, literalmente, escreve. O doce a
linguagem. A escrita aqui atitude poltica, puro silncio-denncia, (im)puro
negar a cidade e percorrer o cerrado.
Em ANTI CORPOS, realizado em agosto de 2010 na galeria ECCO, pela primeira vez na histria de 18 anos do Corpos Informticos, utilizamos o verbo,
a palavra deliberadamente escrita, palavra desgastada, intil para o mundo
i-mundo-intuitivo, aquela que fala com letras, ou simplesmente fala, diminuindo a potncia do inaudito da fruta. Utilizamos o doce, com todas as letras:
A N T I
C O R P O S
Com anticorpos combatemos, deixamos de com-bater o verbo, criamos o debate, o utilizamos para falar a quem s conhece este conhecer, o dito, o mercado de arte. Corpos se protegeram e protegeram o espao da contaminao:
luvas cirrgicas, camisinhas para o contato manual.
Ambientes doces pedem proteo. Na ECCO, muitos artistas presentes se dispuseram a envergar as luvas. Alguns rapidamente as retiraram. Corpos Informticos aguardou tranquilamente, se deliciou com o C12H22O11, sem contgio.
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Anti Corpos. ECCO. 2010.
Cal, cal viva ou cal virgem, uma das substncias mais importantes da indstria, obtida por decomposio. Corpos Informticos busca a composio e concomitantemente a decomposio.
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imunizao de anticorpos, em analogia com a ao que propusemos para a exposio na galeria ECCO, pintam ANTI CORPOS, referem-se a ns enquanto
grupo, enquanto negao de fora motora criativa e produtiva.
Os anticorpos curam, resistem e tem como princpio a i-mundo-intuitividade,
sendo o i, indcio, infiel: infidelidade que parte da ideia de que a fidelidade
exclusiva, e nos anunciamos, ou melhor, negamo-nos. Imenso ANTI CORPOS,
em maisculas, na calada em frente galeria/concessionria, espao este que
reservou um palmo e meio de paredes de borracharia, para um grupo competir com imensas obras-plotagens, outros instrumentos, mais C12H22O11. Tirou destas obras sua textura, o tato, o dedo, o contanto da obra, suas uniformidades, suas deformidades: photoshopadas, chapadas em plotagens imensas,
uniforme-mente distribudas no consrcio da arte, na era da reprodutibilidade tcnica onde se pretende consumir at mesmo o inconsumvel (in-com-sumvel), o no sumvel com. A arte no se consome.
Nem toda arte doce, chiclete, goma de mascar. Toda arte pode ser fruta, virar
doce, ser doce, virar fruta. Ns, Grupo de Pesquisa Corpos Informticos, com
essa ao, nos denunciamos infiis! Nossa infidelidade ao doce. Infidelidade
na in(ter)disciplinaridade. Esta pressupe, inclusive, a inclusividade e no a
exclusividade - e se exclumos algo ou algum em nossa inclusividade, exclumos os exclusivos.
No entanto, nos permitimos ir alm, e em nossa infidelidade nos permitimos
nos trair. E vamos alm, somos capazes de nos trair, traras que somos, que
somamos. No consumir, consumar, com-somar, somar com. Capazes de incluir at mesmo os exclusivismos, no de graa, sem fico, sem frico, sem
atrito. Trituramos tudo e de-volvemos, volvemos outros.
sentimento concluso?
A palavra usurpou a inteligncia, que ao invs de ser danante, se tornou
discursante o movimento sempre diferente foi se fazendo palavras
sempre as mesmas... (BORGES, 2006, 12-13)
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Amarelinha Binria | Galeria CAL | 2010 | Fuleiros: Diego Azambuja e Jackson Marinho
_______________________
Os verbos ser e estar, em tupi guarani: ser, iko serve para exprimir o sentido do verbo ser. Iko
pode ser traduzido como morar e viver, habeas corpus. O verbo estar, exprime-se por meio de
uma forma predicativa adjuntiva. Essa forma predicativa faz-se por colocar o pronome fixo com
o adjuntivo: estou bem, estamos bem, estou homem, estou. Estar como estados de transio, de
metamorfose.
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Este texto, em verso resumida, foi publicado nos Anais do Congresso da ABRACE 2010.
www.portalabrace.org/vicongresso/territorios
Unhas defeitas em UAI-UI | CONIC-DF | 2010 | Fuleiro: Diego Azambuja
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Sem ttulo | Performance/vdeo | 2010 | Fuleiro: Diego Azambuja | Direo e Edio: Mrcio Mota
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A tatuagem linguagem, escolha direita, discurso, sensorium prprio induzido. Mesmo plena, ndice, semitica, cincia. A fuleragem inverte a comstica, escorre por lugares nunca valorizados do corpo indigesto.
A mulher nua [...] fora o olho e o olhar (idem). Interessa ao Corpos Informticos, deformado, o corpo inteiro, o corpo animal, a cutcula, o calo, aquele
que dana quadrilha com o desconhecido, aquele que compe, sua e se espreme: meu desejo na tua coxa est ornado pelo seu peixe elasmobrnquio,
pleurotremado, da famlia dos esfirndeos. Estamos no Centro-Oeste e a seca
persiste, sinto odor de mar e ostra, vagina, mexilho.
O corpo tatuado marca dgua no papel e na rede mundial onde elas se maquiam no meio do bombardeio de eltrons das telas dos computadores impessoais. Na cicatriz, a janela no window, pois no h mais janela, ningum
mais se interessa pelo trabalho. Todos bebem, fumam. Corpos distribui cachaa, cigarro barato e, na atitude quase degradante das manicures, se senta aos
ps dos convivas para defazer unhas.
No somos nem moralistas nem jovens. Somos muitos, rpteis e baratas, deixamos a persona em casa, vestimos o vermelho das veias dos becos do CONIC.
No traamos mapas, aferimos em Mar(ia-sem-ver)gonha, isto , em privilgio da carcia sobre o olhar.
No, a mulher no pe uma mscara como dizem os moralistas, nem
remedeia o irremedivel como pretendem os jovens; ela traa o Mapa
da Ternura1 do tato, e seus riachos de ouvido, rios de paladar, lagos de
escuta, guas misturadas frementes de onde se ergue a beleza (SERRES,
1985, 29)
Ver Carte de tendre por Madeleine de Scudry, tambm conhecida como Mademoiselle de
Scudry (15 de novembro de 1607 - 2 de junho de 1701).
1
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leza, certa dimenso para a morte, ovo, erro desassociado da punio. Quem
est autorizado a revelar o segredo? Quem poderia autoriz-lo? Disso no sabemos, no pode ser dito, esculpido, remodelado. Ateno!
sofrendo aquela lmina
e seu jato to frio
passa, lcido e insone,
vai fio contra fios
Joo Cabral de Melo Neto. Uma faca s lmina
a conveno contratual trabalhar o esmalte desassociado de sua funo fugaz. As coisas que chamamos grosseria e cafonice, defeito mesmo, jato frio na
sensibilidade, cujo ponto nunca demonstrado ou localizado, onde escritos e
discursos, tratados, mapas e informaes, desmoronam ao tentar captar sua
mstica, sua existncia de fruta, o detalhe maior, as circunstncias, sua dissociao.
Entre o mar perigoso e o lago da indiferena - pequenos cuidados, negligncia,
probidade, grande corao - cacos se unem e se refazem nos cantos empoeirados. Ventos incessantes que acumulam plsticos velhos nas entradas de bueiros j entupidos, sopram os cabelos, muitos, alisados, outros desgrenhados.
A beleza impera e desliza gorda, banhas em shortinhos, cabelos archi-longos
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Grupo Empreza | Sero Performtico | 2010 | Performer: Keith Richard | Foto: Grupo Empreza
_______________________
A inaugurao do CONIC se deu por volta de 1967, ou seja, sete anos aps a inaugurao da
nova capital, sendo o primeiro edifcio voltado para a Esplanada dos Ministrios. Foi batizado
informalmente por CONIC a partir do nome da construtora pernambucana que o edificou, com
seu nome numa enorme placa durante a obra, terminando por se fixar na memria dos passantes como uma das referncias da rea. Na poca Braslia contava com aproximadamente 90.000
habitantes, a maioria moradora do Plano Piloto (ainda em fase de implantao) e algumas poucas cidades satlites (Taguatinga, Ceilndia, Sobradinho, Ncleo Bandeirantes).
E diz o site: overmundo.com.br
http://www.overmundo.com.br/guia/o-conic-tem-de-tudo-1 Compreender esta diversidade
de tipos sociais que a circulam pode ser um exerccio interessante para analisar os efeitos do
projeto de Lucio Costa para o Plano Piloto de Braslia. [...] uma multiplicidade de atividades que
termina por ser os verdadeiros responsveis para que o Plano Piloto seja um verdadeiro espao
urbano. ltimo acesso em 16 de agosto de 2010.
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Arte de uma vida frgil e inesgotada como um fedor barato, sem desodorante,
sem spray, vida nua, cicatriz. UAI UI: ueb arte iterativa, urbanos irrisrios,
ns desprezveis contaminando o rosto: rugas, perebas, micoses penetrando a
paisagem dos jardins do poder. Quadrilha, como cheiro desprezado infiltrando o elevador do adversrio.
O desespero pezo calcula desejos esmaltados e inaugura a eficcia, elemento desrtico de uma intensidade controlada. Respirar anncios publicitrios (sntese da escrita verbal com a escrita visual) perder o instinto da caa,
do movimento na calada da noite. Caar ocorrer outros sentidos, corroer o
sentido atualmente absoluto: o da viso.
O trfico no se traga a qualquer hora. Segredo, ele se cala na noite, sopra
baixinho no ouvido co. No CONIC, ningum recebe, todo mundo soube, mas
esqueceu, deixou a agenda, perdeu o celular. A caa fareja, tateia, pula corda e
dana quadrilha ao som da fuleragem.
A cincia do verbo linguarudo trs mil msseis de rostidade para cada indivduo: banners, paredes, muros, prdios, internet, lojas, veculos, mtodos,
roupas, cdigos, bandeiras, relaes de poder e trabalho. Colapso. As palavras
no pertencem ao interlocutor, pertencem ao cabeo. As palavras so degustadas pelo coletivo: X9, polcia, boca de tramela, caguete.
Na imensa parede/prdio, o vdeo indaga. Algum nu tem pinto? E desde
quando voc no pula corda? Pula corda em Taguatinga Centro, em Ceilndia
no meio dos camels, ao som do CD pirata. o vento e todos correm, por que
aqui o vento polcia, palavra, cabeo e linguarudo. Pula corda nu no deserto
da cidade/poder que , ou melhor, pensa ser, Braslia. Pula corda dura, colorida, mato verde, cu azul, parede cinza, janelas que escondem o segredo. As
windows se transformaram em buracos negros do imenso vdeo projetado.
Cidados preocupados padecem do mesmo mal. Mas, por que eles correm? O
que ocorre? Igreja, internet, cinema porn, restaurante, sebo, videogame, emprego. Percebam o conceito de necessidade incorporado em cada um desses
afazeres, caminhem no ritmo do trnsito. O que gramado? Desejo imediato, informaes fugazes, religiosidade do NO, fast-food, jogo, alimento pra
alma. Desprezamos o cio quando o confundimos com a televiso.
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Unhas defeitas | Lago Parano-DF | 2010 | Fuleira: Bia Medeiros | Foto: Camila Soato
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AI UI UI AI AI UI UI AI
AI UI UI AI AI UI UI AI
AI UI UI AI AI UI UI AI
Abdias dos oito baixos - Forr do ai ui - Baio
Sentimos que no convenceremos ningum se no enumerarmos certas caractersticas aproximativas do rizoma (DELEUZE & GUATTARI, 1995a, 15).
Caractersticas aproximativas de Unhas defeitas em UAI UI:
Escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensar, cartografar (Deleuze e Guattari, 1995a, 13).
Isto queriam Deleuze e Guattari nos idos dos anos 1970. Hoje todos tornaram
estes gnios palavra, linguagem, semitica, lingustica, e at mesmo ideologia.
Todos se querem rizoma, falam em devir, acontecimento, hecceidade; discutem plats.
Corpos Informticos, ornicofagia, UAI UI, Ceilndia, CONIC, espreitam o
odor da mar(ia-sem-ver)gonha, se defeitam de unhas vermelhas, danam com
enceradeiras, pulam corda e brincam: quadrilha, e no matilha. Deixaremos
aos cartgrafos o trabalho de agrimensar. Desenhando garatujas haver apenas alquimistas e o verbo se calar.
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O presente texto testa, nariz e orelhas. O presente texto atesta, tempera e por
vezes incendeia algumas aes, talvez arte, talvez parte, um pulo de corda, um
abrao. Neste nterim, tanto ns pedao de mundo, tanto mundo, caquinho
em todos ,se pensa em movimento, corpo inteiro e seus 11 sentidos.
Certo dia, em uma cidade planejada, um bando (conjunto de bandidos que se
creem artistas) resolveu se divertir, chamar ateno para a distrao. Festejou nomeando estes momentos reunies, pois era preciso assegurar o mingau ralo da galera, mas, sobretudo, por que era necessrio viajar. Sim, comer
e viajar, as quatro melhores coisas da vida. Nestas reunies, tomou cervejas
inexistentes que, no entanto, enchiam seus copos, e planejou pequenos saltos,
sobressaltos, verdadeiros assaltos cotidianidade hiperindustrial. A, cavou
buracos e escondeu segredos, parafernlias indefesas que tinham alcanado
o privilgio do abandono. Jogou pique-bandeira sob aquela outra bandeira e
pensou fazer arte, desastre, abate de neurose, ceifagem de parania. Inclusive
inventou que era pronico
O bando tambm conversava com os mortos. Essas conversas eram unilaterais, isto , os mortos estavam mortos. Assim descobriu, sem destampar a
tumba, um portugus judeu entalhando culos em Amsterd, que escreve em
_______________________
Este texto, em verso resumida, foi publicado nos Anais do #9 Congresso de Arte e Tecnologia
da UnB. 2010.
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Guileta,
baleba,
bilosca,
biloca,
bila,
birosca,
bolita,
bugalho,
braca,
brica,
bute,
cabiulinha,
clica,
firo,
guelas,
peteca,
pirosca,
ximbra,
filistrinho,
boleba,
bolega
ou bola-degude.
cintas modeladoras
Dina, aquela que faz cintas modeladoras para traar o corpo como outdoor.
Depois joga o vestido por cima e sente a carne comprida, comprada, comprimida. Melhora a circulao, tecnologia alem.
Dina!!!
Aqui nos trpicos de farto calor, tambm tem a opo das ladeiras e dos jogos
mundanos. Entre esquinas e bueiros j sentem o desvario rupestre, buscando
no movimento do corpo a forma primeira do riso.
Dina!!!
Trapacear como carcia faz parte do blefe, mas tambm aproxima os que gostam do jogo e suas vlvulas de segredos e secrees. Com a carne comprimida,
devem ser mais difceis movimentos rpidos. O instinto tambm se comprime. Mas no me importa se cintinha ou se cortam as mos para meter o
brao todo. Estamos abertos para novos jogos, jogo sem identidade, jogo que
se faz no ato, cutucando o outro e fazendo cara de sacana.
O primitivo jogo de roar nas coisas para provocar efeito sem causa e ver como
elas reagem. Tem efeito sem causa? Tem efeito sem causa quando roo na
ponta do sof e de repente siririca? Prossigo e orgasmo. Trata-se de efeito sem
causa ou de causa causada, muito bem desejada, na hora certa, no momento
exato de levantar a angstia, parar o tempo e derramar o gozo. Roar no efeito, acariciar a causa, entrar no jogo e deixar reagir. Deixar o efeito, entrar na
causa, roar no jogo, acariciar no teso.
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Jogo sem identidade, ramificando-se na lgica abstrata do presente, multiplicando-se e contaminando o centro do estmago, fazendo suar a pele a ponto
de dar vontade de estar nu, quieto, sentindo o cheiro do vento, olhando ao
redor, outros corpos exaustos. Depois do riso, a Bar gelada para os garotos.
Para a alma crescida, banho de cevada.
Dina, essa cinta no t funcionando, devolve meu dinheiro. Porra!
Dina responde:
Vai tomar no cu! cinta, segura um pouco, mas no faz milagre, porra!
Dinheiro o caralho, v se tira o cu da cama e trata de rebolar essa coisa.
Chegamos ao ponto bom da idia, a possibilidade de ser coisa alguma, ser coisa, ser coiso. Minha alma uma coisa. Minha tara uma coisa. Esse a uma
coisa. Ia-sem-ver tateando as coisas. Coisa morada do segredo que guarda a
possibilidade de ser qualquer.
Dina mora na 713, transa com 7, aposta 15 no 8, ganha 6, devolve 4, empresta 5 e vende cintas modeladoras. Coisa de Dina acreditar no 8. Quando me
esqueo das coisas, removo o significado inicial, vermelho-delete, sigo para o
preto das tinteiras, desenho, acho outro, represento a nova forma, me lembro
do sobrenome, sobreponho ao esquecido, perco o senso, canto.
Sinto como as coisas podem ser um jogo de perder o medo e misturar-se
terra, ao asfalto, ao couro do inimigo, ao bafo das torcidas. Perder o medo,
cintilando em ignorncia e raciocnio, fazer carne moda no asfalto, fazer alongamento no meio da rua, fraturar as estruturas.
Foi a que a velha voou, deu pra ver o riso no ar antes da dor na terra. Assim,
corajosa, como quem trepa sem camisinha, indo-sem-ver. Criando identidades
mltiplas, buscando uma sada na transa e no transe como processo de entrega
que no busca imagem exata ou fixa, mas a sensao da perturbao, do movimento, da irradiao randmica. Esquivando-se das certezas, indo em direo
s provocaes que compem. Nada de fato limpo, mas poeira, poro, muco,
misturas fluidas com fome e dentes. Embaixo do pano preto, a orquestra.
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Danar noite adentro na boate nos deixa excitados. Continuum de movimento, corpo voltil, vibrao, seguimos danando no infinito do led, no caminho
de volta pra casa.
Danar lcido? Ldico? So?
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so
...por dentro ou tem por propriedade o gosto pela dana que, alegrando os
msculos, as articulaes, os ossos suados, nos fazem lembrar de coisas esquecidas, danando. Trata-se do Corpos ossificando-se com o Osso2.
H tambm a propriedade ldica das coisas. O pipoqueiro distribui pipocas
enquanto, no palco, todos assistem televiso. Sem televiso, veem-se radiografias no retroprojetor. Momento de respirao, pipoca rosa e inspirao,
pipoca branca e expirao. Pirao cansada de tanta televiso.
Mas eram apenas videoarte.
Videoarte tambm comunicao unilateral. Silncio daquele que s tem
direito a ver, visionar e se calar.
a ingratido do inseto
Rdio, remendo, televiso, internet, labirinto? As polticas mundiais, interminveis labirintos, laribintos, laribirintos birutas de intenes hbridas.
Conspiraes e diplomacias determinadas pelo poder econmico e militar escorregam na cegueira das guerras, caminham de cara para o futuro das verticalidades, fazendo do futuro o minotauro que o espera, para mat-lo ou beijar-lhe a boca, sem sedativos. Presente.
O mundo se espreguia e acorda a todo momento, caminha e morre, faz msica e enlouquece. Na escala dos movimentos, os grandes reverberam como
uma enorme vibrao que comunica, impe ou empresta algo. O Brasil acorda, acorda o estado de Gois, acorda Braslia, todos adormecem, mas estamos
todos acordados?
O labirinto no para de crescer. Decidimos que melhor danar e beber o mel
da mosca, transitar na horizontal das coisas, caminhar pelo pequeno do dia,
_______________________
2
Referncia ao Coletivo de Performance Osso (www.coletivosso.blogspot.com), criado em
2009, sediado em Salvador.
169
no entanto
Que o mundo rabe inteiro tenha direito a fuleragem, a maria-sem-vergonha,
a ir-sem-ver! Que os vus se rasguem e as lindas muulmanas tenham direito
a orgasmos mltiplos.
Mas o ocidente tambm tropea... Nossas mulheres tm direito a orgasmos?
Sero essas as da represso corporal ou as do fetiche da televiso? Estaramos
livres da burca ou enfeitiados pela liberdade? Qual liberdade? Seria liberdade o conceito ocidental de compra endiabrada para satisfazer o sexo falido?
Acreditamos estar livres de vus, mas no preciso ver os vus. Ir-sem-ver
deslocamento. Hoje, a sociedade v demais, somente v...
Paradoxalmente, infelizmente se a felicidade existe , as palavras nadam
vazias num discurso pueril, numa busca idiota pelo acerto. Mulheres se cansam do espelho enquanto homens se masturbam com pedaos de papis. Que
seria a revoluo do sexo? Padres safados, libertinos moralistas, castrados de
Freud? H muito, nos esconderijos do labirinto, que no se observa um vago
fuc-fuc. Clitris abstratos diariamente so mutilados em nosso pas.
Tom Z diz que o funk T ficando atoladinha uma das ondas concntricas
que a Bossa Nova desencadeou. E afirma: O refro de T ficando atoladinha
um meta-refro micro-tonal e poli-semitico3
_______________________
3
www.youtube.com/watch?v=hubD31XaHqU
171
th Organization (WHO)/CHS/
WMH/99.5. Anexo 4
http://famyallabout.blogspot.com/2010/11/before-i-proceed-just-wanna-say-that.html
http://sheikyermami.com/2007/05/31/female-genital-mutilation-is-part-of-the-sunna-of-the-prophet/comment-page-2/
4
173
caladas. Cria-se o estranhamento, olha-se ao redor. No estamos mais no trabalho, funcionalismo ocioso empregado. O controle abre falncia, vontade de
revirar as coisas e os coisos. Desfazer todo significado.
Com a lambida da mosca nos olhos, o mundo est virgem novamente e preciso penetr-lo como uma enxerida, zunzunando um gemido qualquer de anunciao de passagem. O bando est pronto para lamber as paredes da sala, os
olhos dos chefes, as bundas. decretar guerra aos que perseguem, segui-los e
lamber suas lnguas.
Quando mosca, o bando perde a noo de nojo e de perigo, se sente demente
e lerdo finalmente lerdo! , calcula o espao e as curvas. As palavras da publicidade parecem plidas diante das asas que j no pertencem ao humano.
O tempo animal capaz de romper qualquer conceito pelo disparo dos modos
de percepo. S fuga e fogo, sem razo nem verdade. Isto, ainda que absolutamente no se tenha desejado o fogo nos galpes das escolas de samba do
Rio de Janeiro.
Pases, estados, governadores, computadores, satlites, muitos insistem na
perseguio. Televisores anunciam e proclamam nossa morte. Mas, agora,
temos muitas faces, e dentro delas outras tantas. Drag queen, malabarista,
hipnotizador, trans, pipoqueiro, vizinhana, fuleiro, mina de transmutao.
Perfura-me e encontrars outros escondidos dentro. Beija-me e sentirs mil
lnguas de rpteis e serpentes. Questiona-me, e nada saberei. Somente quando
calar a conscincia-carne e escreverem-se corpos no cheiro do silncio, respirando o vazio, que beberemos o leite.
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segredos do invisvel
Mulheres invisveis acariciam e prendem com suas teias, suas tetas, cabelos
de fita VHS, novelos de l-houses, disquetes. Mulheres invisveis caminham
sobre teclados ilustres. Tudo o que serve, mas que entendido como lixo, tudo
que alcanou o privilgio do abandono, serve para a Maria-sem-vergonha. Fuleira se pretende. As cascas e os restos a interessam, como interessaram a
Dina, Derrida e Manoel de Barros. Na Mar(ia-sem-ver)gonha, a Mulher Invisvel passagem obrigatria. Ela performada pelos corpos em tato com materiais sensrios e de diversas texturas, que, no escuro, promovem sensaes
inusitadas.
A Mulher Invisvel promscua e tecnolgica. Mar()gonha ou coisa do tipo.
Mistura tudo com tudo, de mulher-fruta a mulheres de fita banana, verde, fita
crepe, durex, mulheres de plstico, petrleo, invisvel mulher que ia sem ver e
sem ser vista, estava, imprevisvel.
Todo concreto desmorona onde o invisvel se releva.
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Reunies para discutir que jogo jogar: Go ou xadrez? Que implicaes tericas
envolvem o jogo de pique-bandeira? So duas instncias de poder em combate:
Errado politicamente!
Zut! At para brincar voc tem que pensar deste tanto?
No, para brincar penso no como tal. Jogar como tal.
O como tal tambm invisvel.
fragmentos
Sputnik, lanado pela Unio Sovitica em 1957, foi o primeiro satlite artificial
na rbita da terra. Desde ento, foram mais de 3.800 foguetes, 4.600 satlites artificiais; muitos explodiram e geraram por volta de 100.000 fragmentos
menores de 10 cm e 8.000 maiores: lixo espacial, motivos de desalento desse
cu do absurdo que questiona nossas televises.
Mesmo assim, a tecnologia insiste: usina nuclear. Os recursos de observao
se esgotam. Quem observa? Assuntos so escolhidos de antemo, assimilados
na cadeira da sala, escondidos do contato direto. Surpreendemos-nos com a
tecnologia. A tecnologia nos surpreende. Quanto logos na techn? Rios caudalosos de informao desnecessria, crregos do oculto, ilhas de plstico-bolha,
bolhas radioativas.
A mosca, lanada pelo Corpos Informticos em maro de 2009, foi o primeiro
satlite proto-orgnico-artificial colorido e fluorescente. No poluente, vivo e
demente, dando voltas, revoltando, nas dobras das esquinas sujas ou arrumadinhas, hippies ou estreis. Voluta da mosca mansa reinando na crianada.
Desta vez, o bando no escolheu a tecnologia.
mosca, mosca!
Quem no tem calcinha usa culos escuros. mosca, mosca!
Paulo Bruscky | Cuidado com o vo | Parque Lage | Rio de Janeiro | 2010 | Foto: Bia Medeiros
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Sem trs dedinhos de cachaa, a mosca no zumbe, no voa, nem pousa. Fuleragem!
Sim, nosso mundo continer! Vagos de lembrana, repetimos. Loucos de
euforia, compramos. Qual a velocidade do satlite? rbita circular, 300 km
de altura, 7,5 km/s. O circular incgnita: a mosca sobrevoa, pousa, escapole
do tapa. Lixos-espirais, vou de carona no vcuo-estelar: cuspimos no cu, esporramos no mar. Podem nossas comunicaes, por princpio, serem isentas
de morte?
Ocorrem corpos assimtricos no justo? Aqui aparece um freio: o que otimizao na cultura? Na arte, sua contra-morte? Na sorte, sua contraparte? Pelos
requintes do anteontem, os vereditos: por que ignorar a realidade do comcio
de amanh? Todos estaro de volta nesta natureza social? Qual comediante
se esconde por trs destas plataformas infantis denominadas discursos de
porta-vozes governamentais? Ainda teremos xito nos chutes a gol? Nas arquibancadas tem mijo de burgus, nossas peladas valem mais na Europa. Saco
ter que aturar naes falidas querendo a primeira classe no Brasil.
Quem Alemanha-salsicha/batata/romeno? Espanha-tolete/toilete/omelete? Portugal-tapete/topete/repete? Inglaterra-bisteca/chutney de manga, manga da Inglaterra? Coco da Bahia, Maria-sem-vergonha, speech acts
sempre sujeitos a infelicities, ao risco, ao fracasso. Frana-petanque/queijos/
vinhos/gatas e muito cachorro de estimao quanta estimao! Grcia-jujuba/Persfone? Sucia-racker/tatuagem? E a trilogia do milnio. Itlia-bordel.
Quem Japo/exploso/sushi e contaminao. , beleza! Quem?
Compor e decompor, na terra ou no espao sideral, prprio de cachorros
vira-latas. A decomposio compe seus corpos. A composio que realizam
elimina as pestes. Ns, artistas, ratos, urubus, vira-latas decompondo a riqueza, o status, o adidas, a nike, as olimpadas, o corpo perfeito, o hata yoga, a
meditao, deus.
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mirabolante
J o universo, uni-verso, est aparentemente ilusrio. Percepes so confiveis se mal percebidas nas abstraes. So governadas pela matria bruta,
chupa, fula. O empirista percebe gostosuras gastronmicas espaciais, escolas
democrticas, efeitos sem causa, verborragias de criminosos em potencial. O
fenomenlogo poderia explicar que perceber-esse-antigo-continente--beira-do-caos perceber exatamente isso. No somente receber estes estmulos,
fato. Grande aventura circular, computadores moralistas, filsofos conservadores a um passo da idiotia. Mas, deixemos os europeus: em 20 anos, nada
mais podero dizer. Entendam: abaixo do Equador, se existe salvao, esta s
ventar na fuleragem.
Otimizar questo do tempo. Captar, nutrir combinaes da esfera real, lev-las a cabo no momento certeiro, como flecha. Qual seria a cano do estilingueiro? Estilingue arma de acertar pssaros. Que sobrevivncia teria esta
profisso? Seria profisso? Poderia caar cacos de naves? Acertar a radiao?
A dvida e a existncia so orgnicas. Nem grupo nem classe. Todos so? Ou
bbados? Nada deveria ser descartado. A massa vvida, mirabolante. Miraculante. Vacilamos em todas as linguagens, smbolos, msticas, inauguraes,
desertos, camels, caiaps, dana das xuxinhas, marcas endiabradas, textos
mal-resolvidos, obras dilaceradas. Cavalos binrios galopam rumo ao testemunho infrtil. Somos observados, crianas olham de cima, pratos. Fazer biscoito da linguagem, fazer bolo de linguagem, reg(ul)ar com vrgulas e acentos.
Transformar tudo em ultimato.
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Vivncia maniquesta da linguagem. Ou seria mamaquesta? preciso explodi-la? Marc-la a ferro estranho palavra. Didi moc boc mdico mdico foi
metralhado na beira da pista. Vero sade esquina da emoo. Para Zmrio,
barriga de tanquinho. Onde escondemos nossos apetrechos?
A verdade se desfaz como um satlite rodeado de lixo espacial. A ignorncia
ignora que ignora. A diferena interna e aparente nos seduz com o picol da
repetio. A diferena sem conceito (DELEUZE, 2009) argumenta em parceria com a diferena intrnseca. Caractersticas conceituais desta dinmica
da repetio forada:
Encontramo-nos, pois, diante de duas questes: qual o conceito da
diferena que no se reduz simples diferena conceitual, mas que exige
uma ideia prpria, como uma singularidade na Ideia? Qual , por outro
lado, a essncia da repetio que no se reduz a uma diferena sem conceito, que no se confunde com o carter aparente dos objetos representados sob um mesmo conceito, mas que, por sua vez, d testemunho da
singularidade como potncia da Ideia? (DELEUZE, 2009, 61)
Onze Marias: Mrcio Maria, Fernando Maria, Diego Maria, Beatriz Maria e
sem-vergonhas. Onde esto Camila, Luara, Cyntia, Marta, Jack Dro?
Talvez escrevendo a siririca.
Fuleiros parafernlicos, la folle rage parafernal, as parafernlias so desmitificaes dos eletrodomsticos, das eletrodomsticas orgnicas ou no , de
secretrias eletrnicas a bonecas inflveis, inflamveis, mveis, mobiles, com
seus manuais e automticosismos. Desvendamos com o desmanche dos abandonos que tentam sumir com (consumir). Fuleiros parafernlicos, catadores,
ambulantes, per-ambulantes, errantes assertivos, miram o cho batido das
entrequadras, rodoviria do Plano Piloto, Teatro Nacional, Taguatinga, Ceilndia, praa sem vaca, praa da lua, Goinia, Abadinia, Luzinia e Arajos.
Performers, performers em telepresena, videoartistas, fotgrafos, cineastas,
atores, artistas plsticos, artistas multimdias.
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Qual sua sada, man pulador de corda, desempregado e ainda por cima achando graa?
mulher invisvel
homem e menino
onde se encontra o cho?
o perfume esconde o cheiro de mijo
mulher invisvel riso
cabe no teu nus o esconderijo
mydriasis
mulher invencvel sol
pleno de noite
ilumina pelos
derrete o concreto
mantra de batom, gruta de objetos
mulher invisvel clitris
cortaram teus nervos
castraram o desejo
sugaram teus seios
e agora te querem assim
mulher invisvel
onde moras em mim?
o mel da mosca
a mosca da mulher
a mosca pousa na sociedade
absorvida e no consumida
coiso da coisa
resduo de existncia
a mulher invisvel
faz desejar a dividualidade
Pulando corda na CAPES | DF | 2010
carto clonado
Ontem, o caixa eletrnico do Banco do Brasil pedia dinheiro. O carto na mquina colocado, ela entoou:
Me d um dinheiro a, me d um dinheiro a.
Doaes: desabrigados dos desabamentos da regio serrana do Rio de Janeiro, janeiro de 2011. Para onde vai este dinheiro? Para aqueles que aguardam
na praa a queda do ditador? Para as vtimas do desvio do dinheiro nas prefeituras corruptas? Para Sputiniks brasileiros? Para o Oceano Pacfico? Aquele
caixa eletrnico, o cidado, aquele papel impresso, a chantagem emocional,
comovente!
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Como sempre, na filosofia, na arte e mesmo na gastronomia, fica faltando falar do odor, do cheiro, da
dificuldade de envolver o cheiro, aquele que no
perfume melado nem recheado. Cheiro de cachorro
grande, cheiro de sovaco, cheiro de mulher no travesseiro. Qual o cheiro da internet?
Tambm ficou faltando cantar o cheiro do labirinto, do instinto, da siririca. Ficou faltando farejar a
Dina, correr os dedos pelo CU e sentir seu cheiro,
fuar o cheiro da Ceilndia, cheiro de vento (rapa),
cheirar o cangote do policial, qui mordiscar.
Que cheiro ocupa seu copo? Que garrafa escoa esse
perfume que pretende esconder o frescor do orgasmo na boca tmida? Escovar os dentes com lavanda
para esquecer o creme da xoxota? O que cheira a
mosca? Qual o cheiro da mosca? E a Linda Rosa
Juvenil, fede depois da ciranda?
Taguatinga | 2010
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desata
Crianas gritam ao longe, nesta cidade dita do poder, considerada privilgio
no desejado por muitos. Um carro aqui, outro ali. Crianas brincam ao longe,
pr-do-sol no canto dos olhos. Algo de muito organizado existe no ar, algo de
muito pesado se esconde nos canteiros. Isto o Plano do plano. Fora do Plano
do plano, mas tambm j em suas beiradas (rodovirias), o verme, o frame,
a lacrainha escapam da fantasia, vestem a fuleragem e cantam. Sem nenhum
ensaio, sem elenco fixo, sem local pr-determinado, como o filho na barriga
que tem a cara do improviso, achamos que fazemos teatro.
A msica rene, puxa, congrega o povo ao redor. A msica fuleira desata os
ns da sociedade de satlites artificiais, foguetes espaciais e moscas em voluta.
No encontro dos eixos, ncleo do ovo, germina a vida torta, rodo, viria, que
pulsa o perigo das paisagens: os habitantes. Transmutar as almas em concreto. O cenrio respira, anda, nada e voa. Ser que este animal guarda nas patas
a direo de olhos brancos de um instinto coletivo, ou apenas um bicho submisso aos chicotes de uma elite conservadora?
Em que partes de seus pelos a cidade-animalesca obedece, onde cede, onde
sede, onde rosna, quando trai? Nossas paredes e muros gritam com pulmes
largos, como putas que revelam partituras do orgasmo, pequenos rastros do
gozo germinal das crianas e molecas, jovens e ambulantes, pixadores e grafiteiros. Camalenica-cubista, a cidade se faz santa e vigilante para, depois das
flores e canteiros, abrir as pernas e as passarelas a qualquer sorte. Sim, ela goza.
O que dizem as escrituras de cimento, carne e planta? Complexa escritura
viva, vibrando quente como sangue escorrendo em escadarias. Ela, um cosmo
de intelecto confuso, contraditrio e colorido, range fazendo da vida a seiva
que alimenta suas arquiteturas e seu bioma. Parablicos ninhos de pssaros,
bueiros de ocultas vidas. Mas, na superfcie, onde a civilizao dana, quais
orquestras compe em suas partituras? Existe a possibilidade do improviso
dentro de seus ritos?
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preciso autorizao para desregular as vlvulas de realidade coletiva, pulando corda em shopping centers, encerando sinais vermelhos? Quem autoriza e
determina as regras dos corpos sobre solos privados e pblicos? E quando a
vigilncia cansa, as cmeras dormem e o ptio est nu, h teso na delinquncia? Onde mora o infinito?
O infinito antes de tudo um leite quntico sobre fogo baixo excite sua volpia e ele se derramar sobre o universo aparente. O observador no est passivo, no est fora, ele a prpria paisagem. Sobrepondo no sobreposto. Divisvel parte do mesmo. Gargalhada silenciosa, alegoria cinza, raiva cancergena.
Quantos esconderijos a cidade guarda em seus habitantes, quanta sobriedade
na loucura das percepes! Sim, as paredes so mais hbeis do que o cimento.
Muradas da cultura solidificam o mundo aparente. Onde esto as vozes que vinham do corpo flutuante? Onde moram os canais do esprito, onde a crena se
faz, onde tocamos paisagens ocultas? Rasgar o vestido e mergulhar na chuva.
Talvez concluir seja assim mesmo, se concluso houver, nos labirintos de nossas 11 mos. Assim, na contramo, o bando evita a blitz que tenta organizar
os pensamentos e as percepes neste fevereiro chuvoso de 2011, s vsperas
do carnaval.
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que canta e ri
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consumo, com-sumo, com ela sumo; consome, com-some, com tudo some. E
eis os lixes, escondidos em cima das camadas de famintos, fedidos e violentos, anmicos, porque fora da linguagem, pura desordem, talvez arte e muita
fuleragem.
A arte politicamente correta que pulula nos Estados Unidos da Amrica do
Norte e na Bienal de 2010 em So Paulo pretende atingir projetos sociais. Eu
poderia dizer sinto muito. Mentimos, mas no tanto: no sinto nada. Que
permaneam quietas, porque nada gritam, representam. Quietas nas galerias
burguesas disfaradas de engajadas.
A arte tambm no tem programa, no pode ter programa, a no ser aquele da
naite, pura paquera, olhares persistentes, e tesos, xoxotas molhadas e pnis
duros, quase doloridos. Programa beijo na boca, sarro, e nos distanciamos
para o hotel j de mos entrelaadas. Que crtica para esta arte?
Jean Duvignaud afirma que a performance quer dizer: Abaixo o Estado!
Talvez happenings dos anos 1960, 1970 tenham querido dizer isto. Mas ele se
engana redondamente. Em 1989, quando defendi minha tese de doutorado, j
afirmava isto: a performance no quer gritar contra nada. Talvez estes artistas
que queriam ir contra algo e Duvignaud desconhecessem o ditado: falem mal,
mas falem de mim.
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Unhas defeitas em Afonso Medeiros, com Rose Boaretto e Tuti Minervino, em Nova Iorque, em Lcio Agra
Para colocar fogo no mato, preciso ser lente de aumento, vento, mas tambm
vazamento de seiva.
Roland Barthes afirma que a nica arma o silncio. Ir para uma praia deserta
pode ser interessante, mas ser que to divertido quanto colocar fogo no
mato para faz-lo renascer, como o cerrado?
Aqui, em uma conferncia em sala com tapete vermelho, mesa, luzes e microfones; ali na cachoeira; aos ps do Guggenheim em Nova York; em Uberlndia. E l faremos alongamento, alagamento, alargamento. Faremos espinho
no p e bicho do olhar. Isto com o homem literalmente despido. No contra o
homem vestid, mas literalmente despidos.
Corpos Informticos pratica o divduo, por oposio ao indivduo. O indivduo
aquele que no se divide, indivisvel, o eremita. Corpos Informticos professa contaminaes desde 19962, ainda que em tempos de AIDS. Incubus e
Sucubus tambm rondam3.
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O espetculo Secrees e contaminaes aconteceu no Espao Cultural 508 Sul, Braslia, em
1996, e a ele seguiu-se a instalao de mesmo nome realizada na exposio 12 Artistas Pesquisadores, ANPAP, no mesmo ano. Corpos Informticos lida com o que Schechner chama de multiplex code, que provoca no espectador uma recepo mais cognitivo-sensria do que racional.
Criamos, em Secrees e contaminaes, um tempo-espao de experimentao [...] Havia luzes
provenientes de projees e televisores, secrees tecnolgicas: havia espelhos, portas de vidro
em movimento. Havia luvas cirrgicas e nebulizadores denotando a possibilidade de contaminaes com a tecnologia. Isto interagindo de forma quase autnoma com performances individuais, em grupo e com o pblico. MEDEIROS, Maria Beatriz de. Corpos Informticos. Arte,
corpo, tecnologia. Braslia: PPG-Arte, UnB, 2006, 29. In www.corpos.org/papers/historico.html.
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Referncia exposio Incubus e sucubus, ocorrida na Galeria da Caixa, 1997. Para detalhamento ver MEDEIROS, Maria Beatriz de. Corpos Informticos. Arte, corpo, tecnologia. Braslia:
PPG-Arte, UnB, 2006. 41-44. In www.corpos.org/papers/historico.html
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referncias bibliogrficas
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prximas pginas
Luara Learth
Diego Azambuja e Maria Eugnia
Zmrio
Corpos Informticos e Grupo Empreza
tudojunto
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