KAC - Arte Pornô PDF

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ARS Eduardo Kac*


ano 11
n. 22 O Movimento de Arte Porn:
a Aventura de uma Vanguarda nos Anos 80.

The Porn Art Movement: a 80s avant-garde adventure

palavras-chave: O Movimento de Arte Porn foi um movimento de arte experimental que iniciei no
Movimento de Arte, Rio de Janeiro e que durou, como um intervencionismo programtico, por dois anos,
Porn,
de fevereiro de 1980 a fevereiro de 1982. Foi o ltimo movimento de vanguarda
vanguardas.
organizado na arte e na poesia brasileiras. Tambm ficou conhecido como Poesia
Porn, Pornismo, ou Movimento Porn ; neste artigo, usarei alternadamente os vrios
nomes desse movimento. O movimento realizou diversas intervenes pblicas,
editou trs zines, duas antologias, diversos opsculos e variadas publicaes, e
dirigiu-se a um pblico amplo1. O Pornismo comeou como um movimento potico
e rapidamente expandiu-se para outras reas, subvertendo as normas estticas em
diferentes meios, desestabilizando as convenes que regem a experincia cotidiana
e dando forma a novos modos de ser e estar no mundo.

keywords: The Porn Art Movement (Movimento de Arte Porn) was an experimental art
Porn Art Movement, movement I launched in Rio de Janeiro that lasted, as a sustained interventionist
avant-garde.
effort, for two years, from February 1980 to February 1982. It was the last organized
avant-garde movement in Brazilian art and poetry. It was also known as Pornpoetry
(Poesia Porn) or Pornism and in what follows I will alternately use any of the
movements three names. The movement carried out numerous public interventions,
published three zines, two anthologies, several opuscules and varied publications,
and developed a broad audience1. Pornism began as a poetry movement and quickly
expanded into many other areas, upending aesthetic norms across many different
media, upsetting the accepted parameters of everyday experience, and modeling
new modes of being.

Edward Weston
Pepper, impresso
fotogrfica de 1930.

*School of the Art


Institute of Chicago
(SAIC), Estados Unidos.
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O Movimento EDUARDO KAC


O Movimento de Arte Porn.

A narrativa histrica padro sobre a arte e a poesia brasileiras do s-


culo XX comea com a Semana de Arte Moderna de 22, cujo objetivo era
libertar as artes visuais da perspectiva e do classicismo, e o verso da rima
1. Alm de mim, os
e da mtrica. Ela continua com os movimentos dos anos 1950 e 1960, membros principais eram
Glauco Mattoso, Teresa
que adotaram diretrizes construtivistas, incluindo o concretismo, neo-
Jardim, Braulio Tavares,
-concretismo e poema/processo (embora este ltimo delas se afastasse). Leila Mccolis, Hudinilson
Jr., Cynthia Dorneles e
Esses movimentos inicialmente produziram obras auto-referenciais nas
Cairo Trindade. Dentre
artes visuais e, em poesia, privilegiaram a dimenso visual do signo verbal os colaboradores
prximos estavam o
e no-verbal. Posteriormente, incluram a interao e a participao do
fotgrafo e videomaker
pblico, tanto na arte quanto na poesia. Seguiram-se a eles os movimen- Belisario Franca, que
fez a maior parte das
tos contraculturais e conceituais.
fotografias documentais,
Lanado em 1980 quando essas batalhas estticas j haviam sido e o cartunista Ota, que
ilustrou psteres e
travadas e vencidas o Movimento Porn comeou pela identificao de
convites, criou cartuns, e
um novo meio e material para a criao potica: o corpo. No o corpo produziu uma memorvel
revista em quadrinhos,
enquanto tema, mas toda a gama de prxis corporais, de seus impulsos
Porn Comics, criada
verbais a seus prazeres textuais, de seus sons a seus movimentos, de sua especialmente em 1982
para o evento colaborativo
forma sua funo, de seus comportamentos comuns a suas transgres-
Interverso, realizado
ses, do corpo individual ao social, de sua carnalidade a sua carnavaliza- na praia de Ipanema.
Srgio Po produziu um
o, de sua superfcie a seus rgos. Os Poemas Porns ativavam, no nvel
documentrio de curta-
da linguagem (ou seja, atravs do poder que tm as palavras para organizar metragem distribudo pela
organizao Le peuple
o mundo sensvel), transformaes poticas e polticas por meio do desejo
qui manque, de Paris.
e do gozo. Atravs da linguagem potica, o movimento buscou estabelecer Foram lanadas trs
edies da revista Gang,
uma conexo direta entre um estado consciente do desejo e uma prtica
todas impressas com
libertadora. Ao empregar uma gramtica libidinosa e buscar a fuso do tcnicas acessveis em
papel barato. Uma lista
corpo e do discurso, o movimento prtica sgnica irrestrita por meio da
parcial das publicaes
pulso da linguagem. pode ser encontrada
no livro que organizei
Naquela poca, como jovem e lder do Movimento Porn, eu via o
com Cairo Trindade,
meu papel como o de um artista insurgente. Eu buscava injetar um sopro intitulado Antolorgia: Arte
Porn (Rio de Janeiro:
de vitalidade hertica no mundo complacente das belles lettres e no con-
Codecri, 1984, p. 178).
ceitualismo sombrio que dominara a arte contempornea na dcada an- Uma lista expandida
dever incluir tambm
terior. Com as ramificaes transmdia em meu trabalho daquele tempo,
as folhas soltas, livros e
eu tambm procurava resistir e me afastar da factcia transavanguardia2 revistas publicados por
Glauco Mattoso; o livro
local. Arregimentei a licena sexual e potica para orquestrar uma crtica
Suruba, publicado em
vigorosa e escarninha do status quo. 1980 por Tadeu Junges
em So Paulo; as edies
limitadas da xerografia
corporal de Hudinilson Jr.;
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ARS Mesmo hoje, essas obras irreverentes ainda constrangem os cr-


ano 11 ticos mais escrupulosos, que tentam denegri-las, suprimi-las, trivializ-
n. 22 -las explicando-as como criaes juvenis ou relegando-as aos recessos da
memria coletiva. A Biblioteca Nacional ainda classifica uma antologia
publicada pelo movimento, e presente em sua coleo, como imoral.
os poemas publicados Aps trs dcadas de esquecimento (ou descaso?) nos estudos literrios
por Leila Mccolis durante
e na histria da arte no Brasil, o movimento foi exposto pela primeira vez
esse perodo; Escracho, o
livro de artista em forma em um grande museu em 2012 na Europa3. O Pornismo ainda con-
de revista que publiquei
siderado demasiadamente indecente para ser acatado como parte integral
no Rio de Janeiro em
1983; e, finalmente, o livro da histria cultural nacional e mostrado em um grande museu brasileiro.
Pornex: textos tericos e
Dentre as razes para essa muralha de silncio esto a apropriao deli-
documentais de pornografia
experimental portuguesa, berada e explcita, por parte do movimento, da pornografia (em oposio
organizado por Leonor
ao erotismo), o contedo radical do material e a dimenso excessivamente
Areal e Rui Zink e lanado
pela editora portuguesa pblica de suas atividades.
& etc, Lisboa, 1984. O
movimento produziu
igualmente camisetas, Contra a tradio
adesivos, cartes-postais,
objetos-poemas, psteres
e obras em edio limitada A Poesia Porn distinguia-se claramente de seus antecessores hist-
disseminadas atravs da
ricos pelo fato de que seu objetivo no era escrever poemas que descreves-
rede de arte postal.
sem o ato sexual, dirigissem invectivas a destinatrios incautos ou excitas-
Figura 1
sem o leitor. Para causar impacto, a poesia obscena tradicional dependia
Eduardo Kac,
Nabunada No Vaidinha? das convenes sociais que discriminavam entre uma linguagem publica-
primeiro livro de poesia
mente aceitvel e uma proibida. A poesia fescenina no desafiava a noo
do autor, 1981,
Capa de Hudinilson Jr. de obsceno; em vez disso, originou-se nela e reforava sua dissociao do
discurso corts. Na poca do Movimento de Arte Porn, crticos pudicos
e detratores apressaram-se em sugerir que a poesia pornogrfica vinha de
uma longa tradio; em ltima anlise, o que esse amplo gesto de desdm
revelava de fato era sua incapacidade de apreender a especificidade do novo
Movimento. O que precisa ser dito que essa estratgia retrica (isto , a
busca por precedentes histricos na tentativa de invalidar a radicalidade da
obra contempornea) est longe de ser, ela mesma, nova. Ela j fora denun-
ciada por Nietzsche, que escreveu em O Crepsculo dos dolos (1895): O
historiador olha para o passado; no fim cr tambm no passado.
Ao longo do sculo XX, o impacto sucessivo dos mltiplos movimen-
tos de vanguarda sempre encontrou uma resposta crtica similarmente des-
denhosa. Diante da novidade dos caligramas de Apollinaire, do parolibrismo
de Marinetti e das vanguardas visuais dos anos 1950 e 1960, os crticos lite-
rrios que eram contrrios a esses autores e movimentos nunca deixaram de
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relembrar formas registradas pela histria como as technopaegnia e as car- EDUARDO KAC
mina figurata, o poema combinatrio ou permutativo e o labirinto, dentre O Movimento de Arte Porn.

outros, para sugerir que no havia nada de novo nos movimentos do sculo
XX. Todavia, como demonstrado pelos estudos subsequentes, esses autores
e movimentos do sculo XX revolucionaram de fato a poesia no contedo e
na forma. Nenhum poeta medieval ou barroco jamais criou nada como o Il
pleut de Apollinaire ou a espasmdica tipografia de Marinetti vista em Zang
Tumb Tumb. Da mesma maneira, a sugesto de que o movimento da Poesia
2. Transavanguardia
Porn simplesmente restabelecia a forma e o contedo pornogrficos do
foi o termo dado pelo
passado pode facilmente ser rejeitada por leituras atentas das prprias obras crtico de arte Achille
Bonito Oliva a um
e um exame cuidadoso da histria literria. A confuso resulta da pressupo-
movimento que ocorreu
sio de uma semelhana baseada na palavra porn e de um desejo a priori na Itlia e outros pases
europeus no final dos
de ignorar, ou uma verdadeira incapacidade de se envolver com, o novo
anos 1970 e incio dos
contexto e a especificidade formal do movimento. 1980. Transavanguardia
significa alm
A antiguidade ocidental traz muitos exemplos de abordagens po-
da vanguarda. O
ticas do obsceno, da poesia imbica de Arquloco ao neotrico Catulo movimento privilegiava
o figurativismo
para no falar de Marcial, da Priapeia, e da Musa Puerilis de Estrato.
policromtico
Todavia, a prpria noo de obsceno mudou com o tempo. Seria uma grave e depreciava o
conceitualismo. Era
limitao ler esses poemas sem um entendimento do contexto histrico
fundamentalmente
e social em que eles foram escritos e do contrato implcito entre poeta e uma forma de neo-
expressionismo com
pblico que estruturava sua recepo contempornea. Para dar um exem-
elementos simblicos.
plo: se considerarmos a Roma antiga, importante entender que a noo Alguns dos artistas
mais notveis da
de homossexualidade, como a conhecemos hoje, no existia. O intercurso
Transavanguardia foram
masculino-masculino na sociedade romana era entendido dentro do eixo Mimmo Paladino, Enzo
Cucchi, Francesco
conceitual penetrador/penetrado: o penetrador sempre pertencia a uma
Clemente e Sandro Chia.
posio social mais alta que o penetrado. Para ser claro: o penetrador era O movimento era
conhecido na Alemanha
um cidado de pleno direito, ao passo que o penetrado tinha um status
como Neuen Wilden
social inferior (mulheres ou escravos de qualquer sexo, por exemplo). A (Os novos selvagens,
ou Jovens artistas
Roma antiga considerava que era feminizante, para um homem, ser pene-
selvagens), nos EUA
trado ou praticar uma felao (por qualquer razo); em outras palavras, como New image
painting (Nova imagem,
era extremamente ofensivo sugerir que uma pessoa era aquilo que os ro-
ou Pintura da imagem
manos entendiam como passivo. Esse nico exemplo deixa claro que uma nova) e na Frana
como Figuration Libre
compreenso mais ampla das sociedades grega e romana necessria para
(Figurativismo livre).
enquadrar devidamente a obra de Arquloco, Catulo ou Marcial. Ao mes- Ver: OLIVA, Achille
Bonito. Transavantgarde
mo tempo, a violncia com a qual esses poetas infundiam suas obscenida-
International. Milan:
des (como as acusaes de homossexualidade passiva e traio conjugal) e Giancarlo Politi, 1982. No
Brasil, uma nova gerao
as imagens de estupro, bestialidade e mutilao que recheiam a Priapeia
de artistas surgiu na
evidenciam o quanto essas obras so drasticamente diferentes do Movi- dcada de 1980.
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ARS mento Porn, no qual o lxico obsceno conscientemente investido com


ano 11 um programa progressivo de poltica do corpo. O uso da carnalidade ou
n. 22 obscenidade como stira ou vituprio aplica-se igualmente a toda a tradi-
o fescenina. Bastaria considerar Rustico Filippi (c. 1230- c. 1300) e sua
poesia giocosa, as cantigas descarnho e de mal dizer galego-portuguesas,
que datam dos sculos XIII e XIV, e os poemas transgressivos de Franois
Villon (c. 1431- c. 1463) escritos en jobelin (jargo que se originou en-
tre os criminosos, que o utilizavam para enganar suas vtimas; os poetas
e dramaturgos medievais lanavam mo dele para comunicar contedo
obsceno sem usar palavras obscenas, de modo a enganar os censores da
Igreja). Com Pietro Aretino (1492-1556), inicia-se uma nova fase cultural
e nasce a figura do escritor libertino: o poeta canta principalmente os pra-
zeres da carne que ele experimenta ou imagina. Muitos poetas seguiram
os passos de Aretino e, no sculo XVIII quando La Mettrie escreveu em
LArt de jouir [A Arte de gozar]: Le voluptueux aime la vie, parce quil a le
corps sain, lesprit libre et sans prjugs (O voluptuoso ama a vida, porque
tem o corpo so, o esprito livre e sem preconceitos) a lista se torna
longa demais para uma enumerao individual. Nesse contexto, destaca-
-se Giorgio Baffo (1694-1768), admirado por Apollinaire como le plus
grand pote priapique qui ait jamais exist (o maior poeta pripico que j
existiu). No sculo XX, a poesia fescenina celebrou a carnalidade material
das experincias corporais, na nova tradio de Aretino e Baffo, como vis-
to nos versos obscenos de poetas to diferentes quanto Verlaine, Benjamin
Pret, Louis Aragon, Allen Ginsberg, Charles Bukowski e o prprio Apolli-
Enquanto um
naire, dentre outros. Essa poesia obscena tratada mais como um divertis-
segmento importante
dessa gerao fazia sement ou erotismo elevado, e no como um engajamento consciente por
experimentaes
uma mudana poltica, como ativao do vnculo entre corpo e poesia, ou
com novas mdias, o
mercado e a imprensa como experimentao com ideias e processos alm do corpreo, que eram
conservadores
aspectos essenciais do movimento Poesia Porn.
celebravam o segmento
que trabalhava com o A poesia fescenina do sculo XX representou uma voz heterossexual
meio mais tradicional
convencional (sendo Verlaine e Ginsberg excees dignas de nota),
da pintura, imitando
seus colegas europeus circulava de maneira clandestina, isolava a sexualidade do humor e
da Transavanguardia.
da escatologia e no fazia da linguagem e da sintaxe o objeto de uma
Ver: COSTA, Marcus de
Lontra; LEAL, Paulo experimentao integrada. Em contrapartida, o movimento Poesia Porn
Roberto; MAGGER,
explorava mltiplas vozes sexuais e posies de sujeito, realizava seu
Sandra (eds.). Como vai
voc, Gerao 80?. trabalho de maneira extremamente pblica, misturava a pornografia com
In: revista Mdulo
excrees e a alegria orgistica, e desafiava as convenes da linguagem
(edio especial).
Rio de Janeiro, 1984. potica explorando novas possibilidades inter, multi e transmdia. Muitos
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EDUARDO KAC
O Movimento de Arte Porn.

Figura 02
Eduardo Kac,
poema-grafite Overgoze,
composto de letras
vermelhas sobre
muro branco,
Avenida Copacabana,
Rio de Janeiro, 1981.

Figura 03 e 04
Eduardo Kac,
performance Interverso,
praia de Ipanema, 1982.

3. O Museu Reina
Sofia, Madri, realizou
a exposio Perder
la forma humana. Una
imagen ssmica de los
aos ochenta en Amrica
Latina, de 26 de outubro
de 2012 a 11 de maro
de 2013. A exposio
foi organizada por uma
rede de pesquisadores e
curadores chamada Red
Conceptualismos del Sur.
Nessa exposio, uma
sala foi dedicada ao meu
trabalho produzido no
contexto do Movimento
de Arte Porn.
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ARS crticos que desdenharam prematuramente a Poesia Porn fizeram isso


ano 11 sem de fato ter lido os poemas ou explorado os limites permeveis entre
n. 22 a performance ao vivo e a obra impressa. Os crticos banalizantes podem
ter suposto, automtica e erroneamente, que as obras produzidas pelo
movimento eram essencialmente relatos autobiogrficos ingnuos atravs
dos quais escritores espontneos transcreviam suas experincias pessoais.
Ela inclua um
pornograma, diversas
Nada disso. Embora possam existir algumas conexes autobiogrficas
fotografias, um vdeo- dentro do conjunto de obra, os poemas so artefatos literrios que resultam
documentrio e uma
vitrine com publicaes
de um trabalho programtico e exploratrio no nvel da linguagem potica
do perodo. Uma (entendida na acepo expandida defendida pelo movimento).
exposio menor,
chamada Excitacin
A Poesia Porn considerava essa segregao uma manifestao do
permanente. La Gang del conservadorismo ideolgico vigente e o desafiou com a produo de um
Movimento de Arte Porn
en los aos 80, com
corpus que pretendia transformar disfemismos em eufonismos (por meio
curadoria de Fernanda da subverso de expresses transgressivas e de uma linguagem potica
Nogueira, foi realizada
no centro cultural Lugar
experimental). Um dos objetivos do movimento era abolir o mecanismo
a Dudas, em Cali, na distanciador e, portanto, a fetichizao da linguagem e da realidade en-
Colmbia, de 31 de
agosto a 31 de setembro
gendrada pela obscenidade tradicional. por isso que a ao pblica era
de 2012. A primeirssima essencial para o sucesso do projeto: para inserir na prtica social a nova
exposio de minha arte
porn em uma galeria
pornografia iniciada pelo movimento.
foi Pornogramas: 1980- O Movimento de Arte Porn considerava exaurido o paradigma mo-
1982, que ocorreu na
Galeria Laura Marsiaj,
dernista e buscava desmoronar as hierarquias de valor, abrindo ao mesmo
no Rio de Janeiro, de 28 tempo as comportas para um pluralismo democrtico na arte e na poltica.
de janeiro a 13 de maro
de 2010. O Museu de
Como resultado, adotamos uma posio coletiva e pblica. Denunciamos
Arte do Rio (MAR) possui a supresso geral da corporeidade na arte e na poesia, ignoramos os abis-
algumas de minhas
obras deste perodo em
mos entre a baixa e a alta culturas e rejeitamos a supremacia da mdia
sua coleo permanente. impressa em favor de uma hibridizao entre a oralidade e a mixed media.
Figura 05
Criticamos publicamente a noo de uma posio universal do sujeito e
Eduardo Kac, cultivamos multiplicidades ontolgicas que estendiam-se alm dos papis
Pornograma 5,
imagem fotogrfica
teatrais para extinguir os limites entre as posies estticas transgressivas
sobre papel de algodo, e a vida real. Definimos o porn como forma.
49 x 73 cm, 1982.
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Apropriao e subverso da palavra porn EDUARDO KAC


O Movimento de Arte Porn.

Escolhi a palavra porn de maneira consciente e sria, como


emblema de transformao do proibido em uma plataforma socialmen-
te aberta e criativa. Ao mesclar o que era tradicionalmente considerado
sublime (arte) com o que socialmente era tratado como abjeto (pornogra-
fia), produzi uma nova sntese. A pornografia convencional instrumenta-
liza a sexualidade para induzir a excitao; a arte porn instrumentalizou
a prpria pornografia, subvertendo-a por dentro e transformando-a em
ferramenta imaginativa a servio da expresso potica experimental e da
inveno de novas realidades.
O preconceito cultural contra os pequenos prazeres tem razes no
ethos capitalista de produo e acumulao constantes; assim, a reafir-
mao da liberdade corporal feita pelo movimento tornou-se ao mesmo
4. A ditadura militar
tempo uma forma de transgresso potica e uma poltica do corpo. O
durou de 1964 a 1985,
pornismo promoveu uma pornoesttica do gnero faa-voc-mesmo, mas a eleio de 1985
ainda foi realizada, sem
desenvolvendo arte e poesia autnticas (sem deuses e deusas corpreos,
voto democrtico, por
com fsicos extraordinrios, mas pessoas como elas realmente so), espon- um Colgio Eleitoral
nomeado pelos militares.
tneas (em vez de roteiros, improviso e humor) e diversificadas (a tpica
Apenas em 1989
viso masculina e heterocntrica foi substituda por vozes subculturais e ocorreriam novamente
eleies presidenciais
um enfoque plurissexual). A despeito da ditadura militar4, encabeada por
verdadeiramente
um general-presidente que gerou manchetes clamando por uma cruza- democrticas. Aps 1968,
quando o presidente Artur
da contra a pornografia5, o movimento no era clandestino. Muito pelo
da Costa e Silva decretou o
contrrio, seu perfil extremamente pblico o ajudou a ganhar seguidores, Ato Institucional Nmero
Cinco, o governo militar
expandir sua audincia e atrair a ateno succs de scandale da gran-
comandou com absoluta
de mdia, incluindo as grandes revistas e jornais do pas. impunidade e deu incio a
uma represso sistemtica
Vivendo em um momento de incerteza poltica, brutalidade policial
sobre a populao. Entre
crescente e inflao desenfreada, eu considerava obsceno e imoral o go- 1974 e 1979, durante
o governo do general
verno autoritrio e a desigualdade social que ele produzia e no o corpo
Ernesto Geisel, a censura
humano em seu estado natural, com seus eflvios e inclinaes. Com sua era implacvel, a tortura
de prisioneiros polticos
irreverncia inabalvel, a Poesia Porn podia ser, a um s tempo, politica-
era desenfreada, a dvida
mente engajada, hilariante e comovente. externa explodiu, o
desemprego aumentou
Dentre os intuitos do movimento, desde o incio, estava o de
e a situao econmica
subverter o significado da palavra pornografia. O objetivo da Poesia do pas deteriorou-se
consideravelmente. Em
Porn era trplice: 1) desconstruir a sintaxe e a lgica conservadora
1977, Geisel dissolveu
da pornografia convencional; 2) desenvolver um novo idioma potico o Congresso. Outro
general, Joo Baptista de
baseado na inveno de uma nova sintaxe em outras palavras, criar
Figueiredo, governou o
princpios lgicos corpocntricos e regras de organizao que dirigissem pas de 1979 a 1985.
39

ARS a produo de significado construo de posies novas, saudveis e


ano 11 liberais do sujeito social; 3) realizar intervenes pblicas regulares na
n. 22 forma de performances, publicaes, grafite, adesivos, aes corporais, e
transformao da vida individual. Como a linguagem e a viso do mundo
so inextricveis, a Weltanschauung dionisaca do movimento procurava
usar a linguagem e a prxis para elaborar estruturas sinttico-semnticas
transgressivas com base em elementos que, naquele tempo, no eram
aceitos como sendo capazes de transmitir um significado srio e digno,
como a pornografia, o humor negro e a escatologia. O Pornismo cultivava
uma explorao extremamente aberta da mdia e dos gneros, defendendo
a ideia de que a seriedade e o riso so absolutamente compatveis.
Em resposta hiperinflao que assolava o pas naquela poca,
a Poesia Porn operou uma hiperinflao do profano e do blasfemo,
do obsceno e dos tabus escatolgicos e funes corporais, abrangen-
Nesse perodo, a dvida
do (arreganhando) todo o leque de indecncias. A Poesia Porn ousou
externa e a inflao do
pas atingiram nveis sem imaginar um futuro no qual os palavres no mais seriam obscenos. Ela
precedentes: em 1980 a
tentou desencade-lo por meio de uma explicitude generalizada e do
hiperinflao estava em
110%. No incio dos anos uso preciso da ambiguidade, modulando tanto o vocabulrio quanto a
1980, grupos militares
sintaxe. Essa estratgia chama a ateno para a prpria linguagem, para
executaram ataques
a bomba e incndios o material literal dos poemas, e ativa uma rede de conotaes contextu-
criminosos contra jornais
ais e intertextuais. Um escrutnio cuidadoso das melhores produes do
da oposio, a Ordem
dos Advogados do Brasil movimento e a compreenso da dimenso ativista do Pornismo desmen-
(OAB) e bancas de jornal
tiriam qualquer concepo do mesmo como sendo um projeto impulsio-
que vendiam publicaes
alternativas e liberais, nado por um nico leitmotif e revelariam seu firme compromisso com a
dentre outros alvos.
experimentao potica e artstica.
Em 1980, um grupo de
mulheres conservadoras
de So Paulo, conhecidas
A Gang: orquestrando a orgia
na mdia como Senhoras
de Santana, estavam
na linha de frente
Em 1980 formei um grupo chamado Gang para realizar interven-
do conservadorismo
civil. Elas foram es pblicas programticas em praas, praias, parques, teatros e muitos
entusiasticamente
outros locais. A Gang era o brao performtico e a fora organizadora do
acolhidas pelo Ministro
da Justia e pediram movimento em nvel nacional, coordenando atividades, publicando revis-
uma censura ainda mais
tas e panfletos, recebendo e respondendo correspondncia, fazendo gra-
estrita, chegando s
manchetes nacionais fite, distribuindo publicaes, solicitando contribuies, dialogando com
e mobilizando setores
a imprensa em suma, realizando as tarefas necessrias para garantir a
tradicionalistas
da sociedade. continuidade do movimento.
40

EDUARDO KAC
O Movimento de Arte Porn.

Figura 06
Eduardo Kac,
Pornograma 1, imagem
fotogrfica sobre papel de
algodo, 49 x 73 cm, 1980.

Por toda a durao do Movimento de Arte Porn, na companhia de


meu grupo realizei performances pblicas todas as noites de sexta-feira na
Cinelndia, no centro do Rio de Janeiro. Embora seja rodeada pelo Teatro
Municipal, a Biblioteca Nacional, a Cmara Municipal do Rio de Janeiro
e o Museu Nacional de Belas Artes, aps a meia-noite a Cinelndia se tor-
nava um antro, sujo e perigoso, onde intelectuais e moradores de bairros
chiques se misturavam a strippers, drogados, travestis, prostitutos e prosti-
5. No ms que se seguiu
tutas, burgueses atrados pela decadncia, homo e heterossexuais (muitos interveno na praia
atrs de encontros), pivetes, turistas, mendigos, vagabundos, antissociais, do Movimento Porn
em 1982, o general-
malandros e loucos tudo isso entrelaado a garons experientes servin- presidente Joo Baptista
do uma torrente incessante de chopes e cachaa. Esse ambiente cultural de Figueiredo conclamou
uma cruzada nacional
nico era parte integrante do pblico central do movimento, diante do contra a pornografia em
qual li em voz alta, na companhia de meu grupo, o Manifesto Porn em um discurso transmitido
em rede nacional no
9 de setembro de 19806. rdio e na televiso.
Com trajes criados a partir do que estava disponvel no momento, Apesar dos sinais de
recrudescncia poltica,
todos os membros da trupe apareciam de maneira descontrada, alegre e a determinao do
improvisada. Meus dois trajes usuais eram o uniforme de Bufo do Es- governo em controlar
o comportamento
cracho composto de botas de mergulho de borracha vermelha, calas pessoal e social era
de pijama feitas em casa, um cinto no estilo peruano e uma camiseta tamanha que a censura
oficial s terminaria
com meu poema porn Filosofia ou uma minissaia rosa normalmen- em 1988, quando a
te combinada a uma camiseta em que estava escrito meu poema-grafite nova constituio foi
promulgada sob o
Overgoze, mais um cinto de metal artesanal no qual pendurava meus governo do presidente
pirculos (culos com nariz em forma de pnis). Jos Sarney.
41

ARS Poemas-para-gritar e Pornogramas


ano 11
n. 22 Minha prtica potica nesse perodo pode ser entendida de duas
maneiras distintas e complementares. Para intervir nos ambientes pbli-
Durante o governo
cos, criei poemas-para-gritar (ou poemas orais), com frequncia epigra-
militar, a censura foi mas galhofentos compostos com um humor libidinoso e escatolgico. Por
implementada sob a
superviso de Solange
outro lado, os poemas visual-materiais (adesivos, grafites, camisetas, fo-
Maria Chaves Teixeira tos, objetos-poemas, arte postal etc.) expandiram minha pesquisa formal
(que assinava seus
decretos como Solange
culminando com minha srie intitulada Pornogramas, que considero
Hernandes), diretora meu trabalho mais radical e original do perodo. Pornogramas so obras
da Diviso de Censura
de Diverses Pblicas
em que eu escrevia com o corpo mas que, sobretudo, escreviam o prprio
(DCDP), controlada corpo. Essas obras formam um conjunto de sete fotoperformances.
pelo Departamento
de Polcia Federal do
Em meus poemas porn versificados integrei uma linguagem no-
Ministrio da Justia. -convencional e coloquialismos, palavras obscenas, dialetismos de tribos
Em particular, os artigos
233 e 234 do cdigo
urbanas, zombarias lingusticas, pardias e modificaes, invenes ver-
penal em voga, escrito bais e experimentao visual, alm de performatividade, enfatizando ao
nos anos 1940, traziam
regras estritas contra
mesmo tempo as complexidades semnticas muito alm da linguagem
atos pblicos obscenos. aparentemente direta dos poemas. O uso de palavras estigmatizadas nos
Ver: Rodrigues, Marly.
A dcada de 80. So
poemas porns transformava o aspecto injurioso dessas palavras em for-
Paulo: Editora tica, 1992; a expressiva, atravs de crtica e provocao poltica. Produzi uma nova
Luna, Francisco Vidal e
Klein, Herbert S. Brazil
lgica compositiva ao fundir grosserias e palavres existentes com outras
since 1980. Cambridge: palavras, fragmentos lxicos, neologismos, piadas lascivas, rabiscos an-
Cambridge University
Press, 2006; Baden,
tinormativos de portas de banheiros, lugares-comuns, blasfmia, xinga-
Nancy T. The muffled mentos, agramatismos, ortografia incorreta, grias, exorbitncia lexical,
cries: the writer and
literature in authoritarian
obscenidades em geral, o nojento e o grotesco. Ao faz-lo, eu procurava
Brazil, 1964-1985. comunicar uma massa de linguagem concentrada, ldica e subversiva,
Lanham: University
Press of America, 1999;
capaz de exprimir significados inesperados. A Gang distribua essas obras
Bryan, Guilherme. por meio de sua prpria editora, que empregava estratgias alternativas de
Quem tem um sonho no
dana: cultura jovem
produo/publicao7.
brasileira nos anos 80. Em um plano puramente lingustico, o princpio operativo primordial
Rio de Janeiro: Record,
2004. Sobre o discurso
era a desconstruo da sintaxe da pornografia visual e sua transposio ao
do presidente Figueiredo, nvel da criao potica; todavia, em vez de reforar os valores tradicionais
ver: Figueiredo convoca
a nao para combater
do porn dominante, explorei essa transposio sob um ponto de vista poli-
a pornografia. In: Jornal ticamente progressivo. No caso dos poemas-para-gritar, ou orais escritos
do Brasil. Rio de Janeiro,
16 de mar. de 1982, p. 4;
para performance nas ruas, nos quais a prosdia tinha um papel central
e Uma lio de moral. In: isso implicava em diversos procedimentos concomitantes, incluindo o uso
revista Veja, n. 707. So
Paulo, 24 de mar. de
de um lxico sexualmente explcito, o foco em determinadas partes do corpo
1982, p. 20-21. e seu acoplamento, uma interao entre gnero sexual e gnero artstico, a
42

EDUARDO KAC
O Movimento de Arte Porn.

Figura 07
Eduardo Kac,
Pornograma 2, imagem
fotogrfica sobre papel de
algodo, 49 x 73 cm, 1981.

desfigurao jocosa do uso padro do vocabulrio corpreo (por exemplo,


flico se torna o quase-homfono fale cu), a fuso de opostos convencio-
nais, o realinhamento de uma lgica de permutao, o entrelaamento da
pornografia e da escatologia, o uso da surpresa e a transposio dos padres
da linguagem pornogrfica para temas inesperados, como a natureza. Com
6. O Manifesto Porn
um efeito muitas vezes agudamente sardnico, virei a pornografia formu-
foi publicado pela
laica e consumista de cabea para baixo e sujeitei palavras a operaes primeira vez na revista
do movimento Gang
recombinao, recontextualizao, exciso que desconstruam seu sig-
(n 1, maio de 1980).
nificado e subvertiam sua mensagem. A reduo lexical deliberada e o ato Dentre as subsequentes
publicaes esto:
de gritar palavras ilcitas em ambiente pblico, de maneira programtica,
Jornal Dobrabil, de
produzia um ritmo lingustico proibido, feito para instilar no leitor/ouvinte Glauco Mattoso (folha
solta, 1980) e, na verso
um senso de revolta e regozijo.
publicada pela editora
Como afirmado anteriormente, foi em minha srie Pornogramas Iluminuras, em 2001
(p. 49); e tambm no
que realizei meu mais extremo programa de experimentao no contexto
citado volume Antolorgia,
do Movimento de Arte Porn. Os Pornogramas deram origem a uma nova organizado por mim e
Cairo Trindade (p. 7).
forma que mistura body art, design, resistncia poltica, performance, ati-
vismo, fotografia e poesia. A srie desenvolve, at os limites mais amplos, 7. Apesar dos circuitos
alternativos de
a identificao que o Pornismo fazia do corpo como um novo meio e ma-
circulao destas
terial para a criao potica. Cada um dos sete Pornogramas conduz a publicaes, fui
informado de que
premissa bsica para uma direo distinta.
leitores e no leitores
Pornograma I mostra meu prprio corpo nu reclinado, com uma mantiveram meu
dstico Filosofia, por
alterao: no lugar de um pnis, o espectador v uma vulva. A imagem
exemplo, em circulao,
apresenta um homem que muda de sexo, mas no de gnero: um homem e que ele se tornou
uma citao frequente
sem seios femininos, mas com uma vagina. Embora seja de conhecimento
na cultura brasileira
comum que as primeiras cirurgias de mudana de sexo foram realizadas contempornea.
43

ARS nos anos 1950, esse tema continuava a ser um tabu e imagens desse tipo
ano 11 no estavam em circulao pblica na dcada de 1980. A imagem, uma
n. 22 montagem, tornava presente em 1980 aquilo que s ganharia existncia
social pblica mais de uma dcada depois precipitando assim a inven-
o de novas corporificaes e subjetividades. Hoje, existe uma pequena
comunidade de homens com vaginas (constitudas tanto por homens que
se submeteram a cirurgia para inverter o pnis quanto por transexuais
masculinos que mantiveram a vagina e removeram os seios).
No sei o quanto o
No Pornograma II, o espectador me v nu, em posio vertical como
poema foi efetivamente
disseminado, mas sei a letra I, no parapeito de um terrao a 35 metros de altura em um prdio
que foi citado por um
de apartamentos de frente para o 19 Batalho de Polcia Militar (no vis-
personagem de filme
nos anos 1980 e que, na vel) e com a Igreja de Copacabana ao fundo (uma pequena estrutura curva,
poca, ele circulou em
embaixo, ao centro). O corpo natural, despido e desarmado, confronta os
antologias nacionais,
incluindo uma bastante aparelhos repressivos e ideolgicos de Estado, que executam ou influen-
acessvel, distribuda em
ciam a lei atravs da violncia e da religio. O corpo individual iluminado
bancas de todo o pas.
Ver: Pereira, Carlos pela luz tropical, ao passo que a imensa construo do plano de fundo est
Alberto Messeder e
sombra. O corpo pessoal enfrenta o corpo urbano e essa oposio fsica en-
Hollanda, Helosa
Buarque de (orgs.). fatiza a dissenso ideolgica. A fragilidade do ato desafiador intensificada
Poesia jovem / Anos
pela evidente altura e pelo fato de que eu estava no parapeito sem nenhuma
70. So Paulo: Abril
Educao, 1982, p. 8 forma de proteo. Uma verso desse pornograma foi apresentada em for-
e 99. Sei tambm que
ma de pster em meu livro de artista Escracho, publicado em 1983.
desde ento ele circulou
em agendas e mesmo Dois corpos flutuam no ar em Pornograma III (um deles o meu
em camisetas piratas,
prprio) e formam a letra U, encarnando visualmente o som da vaia. Em
sem mencionar sua
reproduo na internet. Pornograma III o corpo vaia o espectador enquanto os rostos explodem de
Em 2011, um conhecido
rir, tambm do espectador. O que sempre revelado (o rosto) est aqui
meu inesperadamente o
citou para mim, durante inutilmente mascarado, ao passo que aquilo que costuma estar coberto
uma conversa informal,
(o corpo) est inteiramente exposto. Se em Pornograma I eu escrevi um
sem saber que eu era o
autor. Filosofia, como corpo e em Pornograma II inscrevi um corpo no espao, em Pornograma
muitos de meus outros
III escrevo com o prprio corpo. Uma verso deste pornograma foi apre-
poemas gritados, contm
um acontecimento sentada na capa de meu livro de artista Escracho, publicado em 1983.
imaginado da vida
Pornograma IV um dptico; contra um fundo neutro, ele apre-
cotidiana; os elementos
principais da situao senta dois homens nus (um deles eu prprio), absurdamente adornados e
desenrolam-se
segurando objetos comuns que adquirem um significado enigmtico neste
rapidamente, levando
a uma concluso contexto. No primeiro painel, vemos os homens em posio de sentido
frequentemente cmica,
(como uma postura militar). O segundo painel mostra os dois rindo, como
s vezes lrica ou
mesmo como se reagissem a um acontecimento ocorrido entre os dois painis. Este
manifesta o ttulo j
pornograma foi parcialmente motivado pelo fato de que, naquele tempo,
mencionado
filosfica. o general-presidente fazia discursos pblicos defendendo uma cruzada
44

EDUARDO KAC
O Movimento de Arte Porn.

Figura 08
Eduardo Kac,
Pornograma 3, imagem
fotogrfica sobre papel de
algodo, 49 x 73 cm, 1981.

contra a pornografia. Explorando a natureza paralingustica daquilo que


comumente conhecemos como linguagem corporal, como se, no pri-
meiro painel, ouvssemos atentamente e, no segundo, respondssemos
com a nica reao possvel.
Em Pornograma V, uma sequncia de oito imagens progride hori-
zontalmente da claridade escurido, e ao faz-lo funde dois corpos mas-
culinos (um deles o meu) em um s produzindo formas inesperadas ao
longo do processo. Enquanto em Pornograma II a sombra est firmemente
esquerda e a luz claramente direita, aqui inverto essa orientao e
exploro os efeitos dos degrads, suscitando novos signos corporais atravs
da interao luminosa.
Figura 10
Em Pornograma VI, escrevo com as dobras de pele do corpo femi- Eduardo Kac,
nino, mais precisamente os vincos da virilha e a linha central criada pelos Escracho, capa do livro
de artista criado e
lbios. Pornograma VI combina a estilizao das dobras da pele visveis publicado pelo autor,
na fotografia de maneira a produzir as letras V e I. Essas duas letras, 1983. Coleo Museu de
Arte Contempornea da
quando sobrepostas e invertidas, criam a letra M. Uma sequncia de foto- Universidade de So Paulo.
grafias, combinadas com seus signos estilizados correspondentes, resulta
em VI, VIM, VIVI.
A obra de concluso da srie, Pornograma VII, composta de qua-
tro painis arranjados verticalmente. Em cada painel, uma figura masculi-
na (eu prprio) aparece com o pnis ereto penetrando uma letra diferente:
P, O, E, M. O espectador v o poeta no ato de fazer amor com o poema,
um caso extremo de verbofilia. As formas tipogrficas, que criei especifica-
mente para este trabalho, evocam no somente o tom da minha pele como
tambm diferentes partes do corpo.
45

ARS
ano 11
n. 22

Figura 09
Eduardo Kac,
Pornograma 4, imagem
fotogrfica sobre
papel de algodo,
17 x 77.5 cm, 1982.

Interverso: o paroxismo do xtase em 1982

Em fevereiro de 1982, apresentei em colaborao um evento de


8. J em fevereiro de
1980, a salva inaugural vrias horas no Posto 9 da Praia de Ipanema o conhecidssimo e sem-
do Movimento Porn foi
pre lotado epicentro da praia. Esse local tinha um significado especfico
uma invaso da praia
para promover o para o movimento, pois era ali que ele fora iniciado dois anos antes8. O
topless literrio
evento de 1982 mobilizou nove artistas, explorou todo o repertrio dos
uma mistura de
protesto, performance dois anos anteriores, incluiu uma ampla seleo de acessrios e publi-
de poesia e manifestao
caes, teve seu clmax com uma passeata nudista ao longo da praia (o
de solidariedade
com feministas que que era e ainda proibida por lei), estimulou a participao do pblico e
lutavam pelo direito
culminou com um mergulho coletivo no oceano um ato simblico que
de fazer topless na
praia. Dominada por representava a auto-renovao, o incio de um futuro melhor. Misturan-
quase duas dcadas
do em igual proporo a desvirtuao da tradio catlica brasileira de
de um terrvel governo
militar e vivendo em processes ritualsticas pblicas e o eco das manifestaes trabalhistas,
um estado policial, a
quase guerrilheiras em suas aes pblicas no autorizadas (como as li-
sociedade brasileira
era to conservadora deradas nos anos anteriores pelo jovem Lula, que fundara o Partido dos
que esse esforo foi
Trabalhadores exatamente no mesmo ano em que o Movimento Porn foi
infrutfero. Essa situao
s seria revertida com iniciado), a insurreio na praia foi a um tempo a eptome e o ponto final
um decreto da Secretaria
do movimento. Intitulada de Interverso (um neologismo, uma contrao
de Segurana vinte
anos depois; o topless das palavras interveno e subverso, e que tambm sugere uma verso
agora legalmente
no meio), o evento sobrepunha diretrizes poticas, performticas, sociais,
permitido em locais
remotos especficos, polticas e pessoais em uma manifestao radical e exuberante. O impacto
mas no em praias muito
foi tal que ela apareceu na mdia nacional, incluindo a televiso9. Comme
frequentadas como
Copacabana e Ipanema. il faut, o movimento culminou nesta exploso de xtase.
46

Concluso: pr-ps-Porn EDUARDO KAC


O Movimento de Arte Porn.

O Movimento de Arte Porn comeou em 1980 e terminou em 1982.


Em uma sociedade mais preocupada com o DOPS que com a AIDS10, con-
trastando inevitavelmente a distante Guerra Fria com o calor tropical local,
em que a televiso dominava mas os jornais tinham seu papel, esmagada
pela inflao em vez de florescer em uma democracia, presa ao FMI em vez
da MTV, testemunhando o comeo de Reagan e o fim de Lennon, tendo
supostamente vivido a era da revoluo sexual mas, na realidade, rodeada
por uma acachapante normatividade e pelo conservadorismo em tal am-
biente, era imperativo transformar uma desvantagem (ser desconhecido)
em vantagem (a notvel fora da surpresa). Ao apresentar ns mesmos as
obras, ao sermos ns mesmos os veculos das performances, usando nossos
prprios nomes, e abertamente nos apropriando e subvertendo a pornogra-
fia no como um produto industrial mas como um meio criativo pessoal,
demos ao movimento uma extrema visibilidade pblica. 9. Em seguida
interveno na praia
O movimento queria fazer tbula rasa. Ele defendia pontos de vis-
de 1982, a Gang
ta heterodoxos conflitantes com as correntes estticas/poticas da poca, participou do programa
de fim de noite Etc.
que oscilavam principalmente em torno de quatro eixos: primeiro, obras
Ele era transmitido
epignicas influenciadas pela gerao que adotara os preceitos do Estru- pela TV Bandeirantes
e apresentado pelo
turalismo nos anos 1950; segundo, a nfase nas ideias e a austeridade
celebrado cartunista
promovida pelo conceitualismo; terceiro, uma ampla faixa de prticas e escritor Ziraldo. O
diretor do programa era
contraculturais que, em 1980, pareciam ser um beco sem sada; quarto,
Maurcio Sherman.
uma onda internacional de pintura neoexpressionista que privilegiava os
10. DOPS era o acrnimo
grandes formatos. Insatisfeito com as condies vigentes, o movimento
do Departamento de
reafirmava o princpio do prazer sobre o princpio da realidade. Enquanto Ordem Social e Poltica
brasileiro, um ramo
os hbitos sociais e a tradio literria haviam transformado a pansexu-
policial dedicado
alidade aberta em algo inadmissvel e invisvel, a arte porn que pratic- implementao da
represso poltica
vamos no consistia em superdescrever a sexualidade normativa, mas em
durante o regime
contrainscrever uma prtica revolucionria ligada ao corpo por meio da militar. Foi em 1982
que o mundo tomou
ao potica carnal e ostensiva. Ao conceber o corpo no apenas como
conhecimento da AIDS
um substantivo mas como um verbo, o poema porn se posicionava como pela primeira vez.
Em 8 de agosto de
uma curta exploso orgsmica de texto-prazer, em um estado liminar entre
1982, o New York
a objetividade e a subjetividade, o poltico e o pessoal, o experimental e o Times publicou o artigo
A Diseases Spread
experiencial, a corporeidade da obra de arte e a corporeidade do artista
Provokes Anxiety
dotando assim palavras, imagens e aes de novos significados articulados (A disseminao de
uma doena causa
atravs dos excessos da alegria e da vitalidade.
apreenso), mas ele
Escrevi este ensaio em 2012, em Chicago, trinta anos aps o fim do recebeu pouca ateno.
47

ARS movimento, no Rio. Nessa segunda dcada do sculo XXI, quando reflito
ano 11 sobre os objetivos polticos e estticos do passado, vejo um mundo muito
n. 22 diferente. Google, Facebook, Twitter, Onverse, Second Life e muitas ou-
tras plataformas de relacionamento social esbateram as fronteiras entre
o privado e o pblico. Um sintoma dessa mudana que o uso do termo
porn expandiu-se para outras reas da sociedade. As expresses food
porn (pornografia gastronmica) ou architecture porn (pornografia ar-
quitetnica), por exemplo, tornaram-se lugar-comum; elas no designam
uma associao da sexualidade aberta com a gastronomia ou o ambiente
construdo, mas descrevem um certo estilo de apresentao visual, espe-
cialmente atraente, da culinria e dos espaos projetados. Outrora relega-
dos a cantos escuros, os vibradores esto em toda parte: so anunciados
No final de 1982,
na TV e vendidos em grandes cadeias de supermercados americanas como
a doena que
muitos chamavam Wal-Mart, 7-Eleven, Duane Reade, Walgreens, CVS, Kroger, Safeway e
originalmente de peste
Target. Comerciais de Viagra vo ao ar no horrio nobre da TV. As casas
gay comeou a ser
designada comumente noturnas oferecem porn e pipoca (porn and popcorn) pipoca gra-
como AIDS e a populao
tuita e projees de pornografia a seus jovens frequentadores, alm de
como um todo entendeu
que outras pessoas msica e bebidas. H tantos indivduos que assistem pornografia enquan-
tambm corriam o
to dirigem que diversos estados americanos aprovaram leis para evitar
mesmo risco, gerando
uma apreenso global e aquilo que atualmente descrito como drive-by porn. O porn comercial
mesmo um pnico. Para
dominante, do convencional ao bizarro, alm de filmes porn-chiques e
oferecer orientao
para a proteo de outros arcanos retr que deleitam o pornosseur, so onipresentes e esto
clnicos e empregados
acessveis na internet.
de laboratrio que lidam
com pacientes com O que o Movimento de Arte Porn realizou coletivamente entre
AIDS e seus espcimes
1980 e 1982 alinha-se com aquilo que se tornou conhecido, muitos anos
biolgicos, o CDC
(Centro de Controle de depois, como ps-porn. O termo, originalmente cunhado por Annie
Doenas, dos Estados
Sprinkle em 198811, designa geralmente obras sexualmente explcitas
Unidos) publicou
diretrizes, em novembro que oferecem uma crtica do sexo normativo e das representaes de
de 1982, baseadas
gnero e produzem um campo cultural politizado composto de textos
nas que haviam
sido anteriormente e imagens alternativos, ldicos e subversivos. Antecipando uma nova
recomendadas para
onda de pornografia imaginativa, Veronica Vera, Candida Royalle, Annie
proteger contra a
infeco pelo vrus da Sprinkle e Frank Moore assinaram o Post Porn Modernist Manifesto
hepatite B. Curran,
(Manifesto Modernista Ps-Porn) em 1989, defendendo coletivamente
James W. e Jaffe,
Harold W. AIDS: the os mesmos ideais inicialmente articulados por Sprinkle. O mundo da
early years and CDCs
arte internacional vem explorando regularmente o porn soft e hardcore
response. In: Morbidity
and mortality weekly desde os anos 1990, com artistas como Jeff Koons ou Santiago Sierra, Sue
report/supplement,
Williams e Orly Cogan, dentre outros. Foi em 2000 que a artista Shu Lea
vol. 60, 7 de out.
de 2011, p. 65-66. Cheang lanou I.K.U. (baseado na palavra japonesa iku, uma gria para o
48

orgasmo), um filme ciberpornogrfico independente estrelado por um rob EDUARDO KAC


que adquire experincia sexual e baixa dados sexuais. I.K.U. tornou-se o O Movimento de Arte Porn.

primeiro filme pornogrfico a ser exibido no Sundance Film Festival. Em


2006, o lanamento da compilao em DVD Destricted, organizada por
Neville Wakefield, membro do conselho curatorial do P.S.1 Contemporary
Art Center, Nova York, e apresentando nomes como Marina Abramovic,
Larry Clark e Matthew Barney, manifestava claramente a aceitao da
pornografia como forma pelo mundo artstico.
Textos pornogrficos criativos, obscuros e clssicos, foram re-
centemente publicados por grandes editoras, a exemplo das magistrais
tradues de Catulo (?84-54 a.C.) lanadas por Peter Green em 2007,
intituladas The poems of Catullus: a bilingual edition e publicadas pela Figura 11
University of California Press. A compilao de Michael A. Hemmingson, Eduardo Kac,
Pornograma 7, imagem
What the fuck: the avant-porn anthology, publicada em 2000, orgulha-se fotogrfica sobre
de ser uma nova forma de fico sexualizada ps-porn. Em 2006, Alan papel de algodo,
73.5 x 18.5 cm, 1982.
Moore declarou publicamente que seu romance grfico Lost girls, produ-
zido em colaborao com a artista Melinda Gebbie, no era ertico, mas
pornogrfico. O livro mostra as aventuras sexuais de trs adolescentes
fictcias: Alice de Alice no pas das maravilhas, Dorothy Gale de O Mgico
de Oz e Wendy Darling de Peter Pan. Novos ttulos parodiam a literatura
infantil com livros de cabeceira profanos dirigidos aos pais, como atesta
o sucesso de 2011 Go the fuck to sleep, de Adam Mansbach (publicado
no Brasil como Vai dormir, porra). O termo mommy porn (porn para ma-
mes) ganhou ampla circulao na mdia em 2012 com relao ao roman-
ce Cinquenta tons de cinza de E. L. James, no porque aparecem mes em
cenas pornogrficas, mas devido suposta popularidade do livro junto a
esse nicho demogrfico em particular.
Na transio do sculo XX para o XXI, a espetacularizao da perfor-
mance corporal assumiu aspectos jamais vistos. O australiano Simon Morley
concebeu um espetculo de sucesso, Puppetry of the penis (Fantoches de
pnis, 1998), no qual o artista divertia o pblico produzindo estruturas
semelhantes a origamis, como Hamburger, Torre Eiffel e Monstro do Lago
Ness, com seu pnis. A empresria Cindy Gallop criou um website cha-
mado MakeLoveNotPorn (2009), dedicado a promover atos sexuais reais
em vez da pornografia de alta performance. Trs anos depois ela anunciou
o MakeLoveNotPorn.tv, um site no qual os amadores so convidados a
publicar vdeos mostrando como fazem sexo na vida real. No site, Gallop
admite: MakeLoveNotPorn no antiporn. Eu gosto de pornografia e
49

ARS a assisto regularmente. Fundamentalmente, ela busca ajudar a inspi-


ano 11 rar e estimular relaes sexuais mais abertas, saudveis e profundamente
n. 22 satisfatrias. Os analistas de tendncias da cultura pop indicam que os
palavres j so comuns nos ttulos de msicas, na Broadway e em livros.
Em fevereiro de 2010, a tabela Hot 100 da Billboard inclua trs msicas
dentre as dez mais vendidas com a palavra fuck (em portugus, foder ou
11. Em uma entrevista,
foda) no ttulo sendo assim o top 10 mais obsceno da histria. Mal se
Annie M. Sprinkle
esclareceu desta forma haviam passado seis meses dessa Hot 100 da Billboard quando o mundo
a origem do termo: O
ouviu falar pela primeira vez de uma mulher que teve uma tatuagem anal
termo Modernismo
Porn foi criado feita em pblico durante a 17a South Florida Tattoo Expo, em Fort Lau-
originalmente pelo
derdale. Pouco tempo depois, um vdeo documentando o evento, Girl gets
artista holands Wink
van Kempen para uma butt hole tattoo (Garota faz tatuagem no cu), tornou-se viral no YouTube.
exposio de suas
Pornografia e ativismo combinaram-se de maneiras nicas nas
fotografias. Seu ttulo
mexeu comigo, por isso ltimas dcadas. Na China, onde a pornografia proibida, um movimento
perguntei se poderia
militante jovem em favor do porn espontneo e improvisado surgiu como
reformul-lo para o
ttulo de meu primeiro forma de provocao pessoal e poltica. Esse movimento de resistncia
espetculo solo. Chamei
chins usa a internet como o principal meio de disseminao do porn. O
meu espetculo de
Post Porn Modernist feminismo ativista assistiu ao surgimento de diretores de frauenporno como
(Modernista Ps-Porn).
Petra Joy, Erika Lust e Anna Span, e ascenso de estrelas do porn como
Mais tarde, passei a
chamar o porn que eu a escritora e atriz francesa Ovidie, autora, em 2002, de um livro intitulado
produzia e dirigia de Ps-
Porno Manifesto, em que defende um feminismo pr-sexo. Em 1997, uma
Porn, com a inteno
de descrever uma produtora cinematogrfica dinamarquesa chamada Puzzy Power comeou
pornografia que no era
a produzir filmes pornogrficos hardcore para mulheres e, em 2006, Alison
a dominante; era mais
poltica, experimental, Lee criou o prmio Feminist Porn Awards. luz desse crescente interesse
feminista, bem-
no fem porn independente, era apenas natural que, em 2007, o canal
humorada, conceitual...
e no necessariamente porn holands Dusk! tenha comeado a transmitir esse material 24/7.
preocupada em ser
O autointitulado movimento sextremista Femen originou-se na Ucrnia
ertica. Nos anos 1970
e 1980 eu s queria em 2009; a premissa bsica desse grupo feminista, agora internacional,
mesmo era excitar
realizar protestos com o torso descoberto, exibindo mensagens polticas
as pessoas. Mas por
volta de 1988 parei de pintadas no corpo das participantes. Muitos performers, frequentemente
me preocupar com
com motivaes ativistas explicitamente declaradas, montaram peas,
esse estmulo sexual e
comecei a fazer o que monlogos ou espetculos neoburlescos ps-pornogrficos, incluindo
me vinha na telha.
Nina Arsenault, Lazlo Pearlman e o grupo sem nome apresentado no
Stttgen, Tim.
Elizabeth Stephens, docudrama Too much pussy! Feminist sluts in the queer X show (Xoxota
Annie Sprinkle e Cosey
demais! Vadias feministas em espetculo queer), dirigido por milie Jouvet
Fanni Tutti. Post Porn
Brunch. In: Stttgen, em 2010. A pornografia tema de cursos universitrios e assistida em sala
Tim (ed.). Post Porn
de aula nos Estados Unidos. Linda Williams pode ter definido esse campo
politics. Berlim: b_
books, 2010, p. 102. acadmico com a publicao de sua antologia Porn Studies, lanada em
50

2004, mesmo ano em que os noruegueses Leona Johansson e Tommy Hol EDUARDO KAC
Ellingsen fundaram a organizao ambiental sem fins lucrativos Fuck For O Movimento de Arte Porn.

Forest. Em suma, uma coisa est clara: a relao entre a pornografia, a


esttica e a poltica mudaram dramaticamente desde o final do Movimento
de Arte Porn, em 1982.
Em 13 de maio de 2011, o maior e mais importante jornal brasilei-
ro, a Folha de S. Paulo, publicou a manchete Porno Arte, encabeando 12. Cunha, Maria C.
Arte Porn, a ltima
um artigo escrito por Silas Mart (que tambm escreve para a revista Ar-
dos novos poetas.
tforum International), que se propunha explorar aquilo que o autor acre- In: Folha de S. Paulo,
caderno Ilustrada,
ditava ser um novo fenmeno cultural. O artigo no mencionava outro
10 de fev. de 1981.
artigo publicado pelo mesmo jornal em 1981, intitulado Arte Porn, a
ltima dos novos poetas, escrito por Maria C. Cunha12, que documen-
tava o surgimento do Movimento de Arte Porn#. H trinta anos, em
uma terra que hoje parece distante, em uma poca em que atrizes e as-
pirantes a celebridades no podiam vazar acidentalmente seus vdeos
de sexo online para o consumo das massas na esperana de um estrelato
instantneo, antes da poca em que as estrelas porns constroem sua
marca pessoal diretamente no Twitter e em que as jovens fazem cirurgias Figura 12
plsticas inspiradas pela pornografia, um jovem poeta rebelde e seu grupo Eduardo Kac,
Poema Flatogrfico para
se propuseram escrever um novo tipo de poesia e provocar o nascimento trs cus submersos em
de um novo tipo de arte para, com ela, dar origem a uma era de maior memria de Joseph Pujol,
tinta sobre papel,
liberdade social e pessoal. 21.5 x 31 cm, 1982.

Figura 13
Eduardo Kac,
Pornograma 5, imagem
fotogrfica sobre papel de
algodo, 49 x 73 cm, 1982.
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ARS
ano 11
n. 22

Traduo de Julia Vidile.

Eduardo Kac bacharel em artes plsticas pela PUC/RJ, com mestrado em Fine Arts na
Artigo recebido em 28 de
junho de 2013 e aprovado The School of the Art Institute of Chicago, onde atualmente professor associado e chefe do
em 03 de agosto de 2013. departamento de Arte e Tecnologia.

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