Raça, Cor, Cor Da Pele e Etnia PDF
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de campo
revista dos alunos de ps-graduao em antropologia social da usp
20
issn
0104-5679
cadernos de
campo
SO PAULO
v. 20
n. 20
p. 1-360
JAN.-DEZ./2011
dades a que estavam sujeitos no Brasil moderno, apesar e talvez pour cause da democracia
racial. Os movimentos sociais a que me refiro
tm trajetria longa na histria brasileira, desde as sociedades e jornais de homens de cor, no
comeo do sculo XX, passando pelo o Movimento Negro Unificado, dos anos 1970, at as
ONGS negras dos nossos dias.
A raa retorna, portanto, no mais como
mote do imperialismo ou colonialismo, mas
como glosa dos subordinados ao modo inferiorizado e desigual com so geralmente includos e tratados os negros, as pessoas de cor, os
pardos. Para os cientistas sociais, assim como
para os ativistas polticos, a noo de raa tem
vantagens estratgicas visveis sobre aquela de
etnia: remete imediatamente a uma histria de
opresso, desumanizao e oprbio a que estiveram sujeitos os povos conquistados; ademais,
no processo de mestiagem e hibridismo que
sofreram ao logo dos anos, a identidade tnica
dos negros (sua origem, seus marcadores culturais, etc.) era relativamente fraca ante os marcadores fsicos utilizados pelo discurso racial.
Renascido na luta poltica, a noo recuperada pela sociologia contempornea como
conceito nominalista isto , para expressar
algo que no existindo, de fato, no mundo fsico, tem realidade social efetiva (Guimares
1999). Sem ele, ficaria impossvel explicar a
longa trajetria que culmina na mobilizao de
smbolos, temas e repertrios dos movimentos
sociais contemporneos. Raa, enquanto conceito analtico, permite, por exemplo, examinar a acusao feita por alguns antroplogos
(Maggie 2005) segundo a qual a insistncia do
movimento negro atual em classificar como negros aqueles que se declaram nos censos pardos
e pretos seria uma atitude anti-modernista de
retomar um racialismo que marcara brevemente os intelectuais naturalistas da gerao dos
1870. No restante desse breve artigo procurarei
demonstrar como o nosso sistema de classifi-
No Brazil, como em toda a America Hispanica, faltava povo. Num dos seus officios para a
chancellaria anstriaca o encarregado de negocios
Mareschal observa que mesmo que o paz viesse
a soffrer dos horrores da revoluo, o povo se
canaria da anarchia mais cedo do que na Europa, porque elle se compunha na sua totalidade
de fazendeiros e no havia a ral que se torna nas
mos dos agitadores cgo instrumento. A ral
existia, mas era um elemento inteiramente fra
da vida politica: o gro de ignorancia, a condio de falta de cultura, vedava ao povo propriamente qualquer participao na vida consciente
da communidade.
Pois, bem, j mostrei em Racismo e Anti-racismo no Brasil que o nosso sistema de classificao de cor se origina da intrincada teoria
de embranquecimento que a nossa gerao
naturalista moldou a partir das diversas teorias
raciais ento vigentes. Esta origem est explicitada por Oliveira Vianna (1959 [1932]: 45).
Nesta teoria, cor no redutvel a cor da pele,
a simples tonalidade. Cor apenas um, o principal certamente, dos traos fsicos junto com
o cabelo, nariz e lbios que junto com traos
culturais boas maneiras, domnio da cultura europeia, formavam um gradiente evolutivo
de embranquecimento. Preto, pardo, branco.
No grupo branco nunca se hesitaria em classificar algum de pele escura, mas traos finos
(europeus) e boa educao. Entre os pardos,
estavam certamente aqueles de traos fsicos
negrides, mas claros e bem educados.
este sistema de classificao racial por
cor mas no por cor da pele que vem
sendo paulatinamente modificado no Brasil,
medida que o ideal de embranquecimento
vai perdendo fora. De um lado, a organizao
poltica dos negros, que rejeita frontalmente o
embranquecimento, e tenta impor uma noo
histrica, poltica ou tnica de raa. Quando
se remete histria, a noo rene pessoas que
vivenciaram uma experincia comum de opresso; quando se remete poltica, cria uma associao em torno de reivindicaes; quando,
se remete etnia, quer criar um sentimento de
comunidade a partir da cultura. Em todos os
casos, os gradientes de cor seriam contraprodutivos, se no fossem reagrupados para tornar
pretos e pardos uma nica categoria discreta
(no-contnua), que bem poderia ser batizada
de afrodescendentes ou negros.
Do outro lado, a cor vem sendo substituda
pela cor da pele, como princpio classificatrio.
Nesse modo de classificar, vigente na Europa
atual, e muito utilizada no senso comum jornalstico, mesmo nos Estados Unidos, a cor
da pele seria apenas o nico critrio na classificao. Ou seja, alguns brancos poderiam ser
chamados de morenos, dark, foncs, brown, sem
serem negros. Porque tal forma de classificar estaria se expandindo entre ns, no Brasil? Seria
puro efeito da intensidade de nossos contatos
com a Europa e os Estados Unidos?
Observando mais de perto essa forma de
classificar, alguns fatos sobressaem. Primeiro, geralmente o termo branco etnicizado para significar o europeu de bero, ou seja, sem origem
colonial ou imigrante de fora da Europa. Segundo, tal classificao parece conviver com outras
classificaes nativas. Por exemplo, Obama continua a ser referido como negro na Europa e no
Brasil, pelo fato de ser negro nos Estados Unidos; ou um capoeirista mestio brasileiro negro
tambm na Europa, pois portador da cultura
africano-brasileira. Terceiro, tal classificao no
se aplica a povos orientais, como chineses, japoneses ou coreanos. A cor da pele se refere a um
gradiente entre branco e preto.
Podemos concluir, provisoriamente, que
esta forma de classificar ainda menos consistente que a anterior, que levava em considerao outros traos fsicos, alm da cor da pele,
possibilitando um gradiente mais extenso.
Uma outra concluso, aparentemente parado-
xal, que, apesar de mais fluda no gradiente, a classificao por cor da pele discrimina
melhor o grupo branco, ou seja, o distingue
de todas as outras cores sem os riscos de confuso possibilitados pelo embranquecimento.
Evita-se e nega-se formas raciais de classificao, entendendo que a tonalidade da pele
um dado natural. No entanto, pode-se muito
bem, voltar-se a uma dicotomia antiga: brancos versus pessoas de cor.
Se assim , porque tantas pessoas no Brasil
insistem em falar em cor da pele ao invs de
apenas em cor, como nossa tradio? De
fato, pesquisa recente do IBGE (2008) mostra
que a nossa forma tradicional de classificar encontra-se em plena vigncia. Na tabela abaixo,
pode-se ver que outros traos fsicos, origem
familiar, cultura e posio socioeconmica so
igualmente mobilizados para definir a categoria censitria cor/raa.
Tabela 1: Brasil, proporo de pessoas de 15 anos ou mais de
idade, por dimenses pelas quais definem a prpria cor ou raa,
2008
Cor da pele
82,3
Traos fsicos
57,7
47,6
Cultura, tradio
28,1
Origem scio-econmica
27,0
4,0
Outra
0,7
Em plena vigncia, mas modificado. Minha sugesto que nosso sistema tradicional
de classificao est sendo modificado pela
perda de sentido do ideal de embranquecimento. Alguns outros fatos podem ser recolhidos
para fortalecer tal linha de raciocnio. De fato,
a partir do censo de 2000 a populao branca
comea a declinar mais que o esperado pelas
tendncias demogrficas, enquanto a parda, a
preta e a amarela voltam a crescer. Essas mu-
danas sugerem, nitidamente, que est em curso um processo de reclassificao racial, posto
que as tendncias demogrficas (fecundidade,
mortalidade e migraes) no a explicam.
Talvez por isso a tabela 1 acima merea ser
inquirida de modo mais agressivo. No estaro
as influncias da origem familiar e antepassados, da cultura e da tradio, totalmente em
desacordo com o que ensinam os estudos dos
anos 1960, realizados, entre outros, por Harris (1970), Azevedo (1953), Nogueira (1954),
Sanjek (1971) e Wagley (1952)? Nesses, como
vimos, apenas traos fsicos e posio social
importavam. Agora, segundo esta pesquisa do
IBGE, cresce a importncia de fatores que definem as etnias (origem e cultura).
Ademais, comparando dois surveys realizados pelo DataFolha, o primeiro em 1995,
e o segundo em 2008, as respostas s mesmas
perguntas captam uma diminuio de 18% no
nmero de pessoas que se declaram espontaneamente brancas e um aumento de 18% dos que
se declaram morenas ou morenas claras (ver Tabela 2). Poderiam estes dados serem interpretados como uma renncia brancura por parte
daqueles brancos de cor mais escura, aqueles
que se consideram espontaneamente morenos?
o que sugiro. Tal renncia no poderia ser
feita se fatores outros como origem familiar
(seus antepassados), ou sua tradio cultural,
no ganhassem importncia, na construo da
identidade racial de cor, sobre ideais de embranquecimento.
Tabela 2: Declarao de cor espontnea em 1995 e 2008 (em %)
Qual a sua cor?
1995
2008
Branca
50
32
-18
Moreno
13
28
15
Parda
20
17
-3
Negro
Moreno claro
Preta
2
1
Amarela
Mulato
Clara
Outras
No sabe
-3
Total em %
100
100
Fonte: DataFolha
Raas humanas no existem. A gentica comprovou que as diferenas icnicas das chamadas
raas humanas so caractersticas fsicas superficiais, que dependem de parcela nfima dos 25
mil genes estimados do genoma humano. A cor
da pele, uma adaptao evolutiva aos nveis de
Notas
1. O artigo, no prelo, aparecer em breve no Ethnic and
Racial Studies.
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Recebido em 15/09/2011
Aceito para publicao em 15/09/2011