Figuras Lusofonia
Figuras Lusofonia
Figuras Lusofonia
Cleonice
Berardinelli
Figuras da Lusofonia
Organizador
Izabel Margato
Edio
Instituto Cames
Design Grfico
atelier Nuno Vale Cardoso + Nina Barreiros
Pr-impresso e impresso
Textype
Tiragem
1000 exemplares
1 edio
Lisboa, 2002
Depsito Legal
181 628/02
ISBN
972-566-231
Figuras da Lusofonia
Cleonice
Berardinelli
organizao
Izabel Margato
2002
ndice
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Jorge Couto
Prefcio
Izabel Margato
Introduo
Cleonice Berardinelli
Gratido
Anbal Pinto Castro
Cleonice, Mestra da Universidade Luso-Brasileira
Luciana Stegagno Picchio
Uma Ilha para Cleonice
Liliana Bastos
Cleonice Berardinelli
Jorge Fernandes da Silveira
Adeus s Armas
Eduardo Loureno
A Musa de Antero ou Antero e Eros
Maria Vitalina Leal de Matos
O Correlativo Objectivo de T. S. Eliot e a sua Verso Pessoana (Digresses)
Tereza Cristina Cerdeira da Silva
O Delfim ou O Ano Passado na Gafeira
Vilma Aras
Honra e Paixo versus Passion et Vertu
Helder Macedo
Os Maias e a Veracidade da Inverosimilhana
Laura Padilha
Sinos e Lembranas: Ecos de Dois Romances Angolanos Finisseculares
Llia Parreira Duarte
Alves & Cia, de Ea de Queirs, e Amor & Cia., de Helvcio Ratton
Maria Fernanda Abreu
Mulata e Histrica: um Retrato Brasileiro de Carlos Malheiro Dias
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Prefcio
Por todas estas razes, e porque Cleonice Berardinelli foi uma verdadeira
Mestra da Universidade Luso-Brasileira, reforando a aproximao entre
Portugal e o Brasil, o Instituto Cames tem todo o gosto em inaugurar a coleco Figuras da Lusofonia com a edio de uma obra que constitui um importante contributo para a divulgao dos mais recentes estudos sobre as
Literaturas Lusfonas.
Jorge Couto
Presidente do Instituto Cames
Apresentao
como os grandes pilares da extensa galeria formada pelos estudos portugueses de Cleonice, nela tambm ganham relevo as obras de Almeida Garrett,
Camilo Castelo Branco, Alexandre Herculano, Ea de Queirs, Antero de
Quental, Cesrio Verde e Diogo Bernardes, destacando-se ainda os estudos
sobre Almeida Faria, Jos Cardoso Pires e Jorge de Sena. na companhia desses
autores (mas no s deles) que Cleonice Berardinelli tece os seus dias de grande investigadora e professora modelar.
A merecida homenagem expressa no Colquio de 1999, e agora complementada com a edio deste livro, foi a forma escolhida para resgatar a longa
trajetria de Cleonice e pr em relevo o vis emblemtico da biblioteca em
que ela circula. Seguindo este propsito, a homenagem s poderia concentrarse na produo de textos que retomassem a obra de autores trabalhados, muitas vezes apresentados pela primeira vez no Brasil, por Cleonice Berardinelli. O
conjunto de textos expressa o reconhecimento de velhos amigos e colegas (muitos deles antigos alunos) que retomam as aulas, as conferncias ou o convvio
profissional que Cleonice Berardinelli tem construdo ao longo da vida.
Em sua maioria, os textos apresentados so anlises de obras dos seus autores eleitos. So recuperaes de antigas leituras que se transformam em homenagem pela aproximao e desdobramento. So sortilgios de escrita, permanncias e circulaes que marcam proximidade e convivncia. So expresses
de desejo ou de agradecimento que definem e delimitam com o afeto a comunidade de amigos de Cleonice Berardinelli.
Jorge Fernandes da Silveira, Helena Carvalho Buescu e Maria Vitalina
Leal de Matos vo retomar os versos de Fernando Pessoa e criar a possibilidade deste novo encontro com Cleonice. So textos que expressam desejos de
aproximao mas que tm tambm a funcionalidade de releitura. So caminhos
muitas vezes trilhados mas agora desdobrados e ressemantizados nas inovadoras abordagens dos trs professores.
Antero convocado para a homenagem por Eduardo Loureno. Com uma
aguda reflexo sobre o erotismo na poesia amorosa do jovem Antero, o ensasta e grande amigo de nossa homenageada constri um discurso em dilogo
estreito e fraterno com a leitura que Cleonice fez das Primaveras Romnticas
num breve e precioso ensaio intitulado Eros e Antero. Na sua delicada homenagem h leitura e citao, mas no s. H ainda a eleio de um tema e, principalmente, de um autor que tambm os aproxima.
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Para falar da Lngua de Cleonice, Ivo Castro elegeu como objeto de anlise conferncias, comunicaes a congressos e livros produzidos por
Cleonice com destino a pblicos brasileiros. Com saborosas observaes
que no ocultam uma ponta de carinhosa provocao o autor chama a ateno para traos que definem a aparente lusitanidade da prosa de Cleonice.
Declarando ter-se perdido ao longo da leitura nas palavras de Cleonice, este
amigo querido da nossa homenageada vai desdobrar a sua anlise, recolhendo
fragmentos de seus discurso com o carinho e o cuidado de quem recolhe atentamente pequenos objetos para ir oferecendo-os aos poucos e prolongar,
assim, o sabor da oferta. Ao dialogar com as proposies do lingista brasileiro Celso Cunha, para quem a lngua de Portugal e do Brasil era uma, embora no descuidasse das diferenas existentes e propusesse sistematiz-las a partir do conceito de variantes nacionais, Ivo Castro retoma a sua anlise e afirma
que a norma culta a que pertence a lngua de Cleonice integra-se, assim, na
variante nacional brasileira, ocupando dentro dela a posio mais chegada
variante portuguesa, mas mesmo assim dela se distinguindo. Professora brasileira de literatura portuguesa, Cleonice no desmente essa dupla insero
tambm em suas manifestaes lingsticas.
O conjunto de textos apresentados vo, assim, registrando os atributos que
fazem de Cleonice Berardinelli uma das mestras mais queridas e respeitadas da
nossa comunidade acadmica, ou a grande Senhora dessa Universidade do
Mundo Lusfono, como lhe chamou Anbal Pinto de Castro, quando em seu
texto de homenagem traa o perfil da personalidade cientfica e humana de
Cleonice.
Finalmente, a minha homenagem tambm se traduz em textos. Primeiro,
com o texto apresentado no Encontro, em que fao uma anlise sobre a legibilidade da Lisboa de Jos Cardoso Pires, cidade que recebeu e homenageou
Cleonice. E agora, com a preparao deste livro que resgata os diferentes textos de homenagem, organizando-os no volume Figuras da Lusofonia. Com este
livro, acredito, mais uma vez se reeditam as palavras de Cleonice Berardinelli.
Mais uma vez as suas aulas, ensaios e palestras so retomados, com o cuidado
e a ateno que dedicamos aos clssicos cuja releitura, como diz Calvino, ser
sempre uma leitura de descoberta, como se fosse a primeira.
Izabel Margato
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apoio que me prometia para uma atividade universitria por mim coordenada:
No tem o que agradecer. Ns que lhe somos sempre devedores. Frases
como estas lisonjeiam, afagam o ego, por mais que se diga cada um dos que so
com elas afagados que no so para ser inteiramente creditadas na coluna do
HAVER, que h nelas, sempre, muito da cortesia e generosidade de quem as diz.
Tudo isso eu me disse, mas confesso que uma pontinha de vaidade se insinuou no meu esprito ser o esprito a sede desse sentimento menor? , insinuou-se em mim, direi, mas envolto em outro bem mais dignificante, que
exprimi numa pergunta indireta: Mas outros h que fizeram tanto quanto ou
mais que eu. E enumerei alguns.
No os tinha mencionado no momento em que escrevi estas palavras. Agora,
porm, quero confessar-lhes que um deles era o meu amigo mais antigo, dos
mais queridos, o companheiro dos bancos universitrios, discpulo, como eu, de
Fidelino de Figueiredo Antnio Soares Amora, que h menos de um ms nos
deixou. Correram paralelas as nossas carreiras: ele em So Paulo, eu, no Rio de
Janeiro. E digo aqui o seu nome para compartilhar com ele mais este momento.
Relevem-me a interrupo. Volto atrs, retomando o dilogo com Jorge
Couto. E acrescentando que ao que chamei minha pergunta indireta meu
paciente amigo novamente me respondeu: Outros recebero o mesmo preito.
O seu apenas o primeiro de uma srie. Ia abrindo a boca para ainda perguntar-lhe por qu, quando descobri, eu mesma, a justificativa: sou a menos jovem
do grupo citado. Sem palavras, mas com um discreto sorriso, muito sua
maneira, Jorge Couto aquiesceu.
Sem argumentos para continuar a oferecer resistncia, s me restava agradecer, e muito, a idia generosa de premiar-nos acima do que poderia almejar qualquer um de ns que batalhamos pela expanso da cultura e, especialmente, da
literatura portuguesa, em territrios onde a lngua a mesma ou onde as lnguas
so outras. Se, como diz o Presidente do Instituto Cames, se trata apenas de um
ato de justia, este fato no diminui a sua nobreza e a nossa gratido.
Agradeo, portanto, em primeiro lugar, ao idealizador desta homenagem que
se presta na forma mais agradvel aos que exercem o nosso ofcio: um Colquio,
em que nos encontramos para apresentar fraes do trabalho que estamos realizando no momento, em que debatemos idias, em que, talvez acima de tudo, reatamos um convvio prazeroso interrompido h mais ou menos tempo. Agradeo
em seguida ao Doutor Jos Blanco, Administrador da Fundao Calouste
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Gulbenkian, e amigo sempre fiel, que abraou com a maior simpatia a idia lanada. Agradeo s Colegas que aceitaram compor a Comisso Organizadora,
tomando sobre seus ombros as muitas tarefas que tal misso acarreta. Agradeo
a todos que participaro do Colquio com o aporte de comunicaes de alta
categoria. Agradeo finalmente last, not least a todos que aqui esto e/ou estaro nestes trs dias, trazendo-me tambm a certeza da sua solidria amizade.
Estou terminando. No foi para falar que vim aqui, mas para ouvir. No
poderia, contudo, silenciar a expresso pobre, embora... do que estou sentindo neste momento a que cheguei por um longo caminho que passou por
uma vida familiar feliz, por um percurso escolar afetuosamente estimulado por
meus pais e seguido lado a lado com meus irmos, por um casamento bemsucedido, por um convvio afetuoso com sobrinhos de sangue, com filhos,
netos e bisnetos (no nascidos de mim, mas assim amados, num amor por eles
retribudo), por uma vida universitria em que, como discente, tive mestres
inesquecveis, em que, como docente, consegui fazer uma carreira que, em
extenso e dedicao, desafia paralelos e ao longo da qual transformei alunos
em colegas e amigos os mais queridos, um percurso que passou por muitas alegrias e tristezas, com feridas ainda no cicatrizadas. A todos que me acompanharam e acompanham na caminhada tambm agradeo.
A esta altura da vida, j no posso dizer com o Poeta mximo que Vo os
anos decendo, e j do Estio / H pouco que passar at o Outono. J inverno:
sobre meus cabelos j caiu a neve, mas a recebo como Camilo Pessanha, em
triunfo, ptalas, de leve / Juncando o cho [...] / Quem as esparze quanta flor
do cu?. Quem as esparze, enfim? Por que no imaginar que Deus, este Deus
a quem quase me esquecia de agradecer todos os dons que me concedeu e continua a conceder. Considero a gratido a memria do corao, mas no sei
como defini-la. Com o desejo de dela fazer a minha patrona neste Colquio,
ousei parodiar So Paulo, na sua mais bela Epstola, substituindo a excelsa virtude da Caridade por esta no menor. Que sejam suas as ltimas palavras que
lhes digo hoje, aqui:
Se eu falar as lnguas dos homens e dos anjos,
e no tiver gratido, serei como o metal que
soa, ou como o sino que tine.
Parodiando So Paulo (Cor. I, 12)
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CLEONICE,
Mestra da Universidade
Luso-Brasileira
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esse conhecimento que eles propiciaram, superando a corticalidade do subjectivismo emocional e, tantas vezes, a efervescente, mas ftua, vanidade dos
discursos oficiais, se radicou sempre num saber cientfico e num ensino
slido, porque fundado nesse saber, que so por via de regra o fruto mais
sazonado produzido pelo honesto estudo que os universitrios de estirpe
desenvolvem no seu quotidiano. Por isso a investigao que desenvolveram
e o ensino que ministraram, e alguns continuam a ministrar, sendo rigorosos e objectivos, no deixam de ser tambm um acto de amor que se apura
no crisol desse conhecimento cientfico. At porque, longe de visar a promoo da glorola pessoal facilmente alcanvel para muitos atravs de um
perpetuum mobile areo, pontuado de charlas superficiais e destitudas de
toda e qualquer reflexo crtica, que tanto atrai hoje muitos dos mais novos,
o trabalho desses obreiros do saber lusada, desenvolvido entre as salas de
aula e as bibliotecas, na leitura dos bons livros, como na admirao de
monumentos e paisagens que a todos nos enchem as almas, ou at no prazer de uma bacalhoada, de um quitute gostoso ou de uma condimentada
moqueca de peixe, no tem, nem pretende ter, outro prmio que no seja a
recompensa interior que lhes vem da conscincia de estarem a erguer ou a
consolidar o grande edifcio da realidade espiritual que nos comum e que
to singular se apresenta, porque, na sua unidade de lngua, se afirma essencialmente pela especificidade da identidade prpria de cada uma das suas
partes nacionais.
uma obra de amor de um amor feito de vivncias ou das palavras
que lhes do expresso, ditas e escritas, como as que esse mgico do verbo
lusada que foi Vitorino Nemsio deixou nas pginas dO Segredo de Ouro
Preto ou de Caatinga e Terra Cada, onde os revrberos da luz tropical irisada no verde dos canaviais emparelham em matizes to estranhos e frequentes com a viso das gndaras verdejantes dos milharais portugueses
do Minho ou da Beira, ou com a maciez ondulante da sua natal paisagem
aoriana!
Ora neste quadro que avultam e se impem a figura e a aco de Cleonice
Berardinelli, que podemos considerar, sem lisonja nem hiprbole, uma das
personalidades que mais longe e com maior altura alcanou lugar nos doutorais dessa grande Universidade do Mundo Lusada, cujas paredes se alargam
por mares, continentes e naes, aliando, com suma gentileza e elegncia, a
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Para disso termos a certeza basta percorrer os ndices dos seus Estudos de
Literatura Portuguesa, sados em 1985 dos prelos da nossa Imprensa
Nacional/Casa da Moeda. Mas nem tudo ali se encontra
Embora os ncleos das suas preferncias se concentrem em Gil Vicente,
Cames e Pessoa, que lhe mereceram anlises e interpretaes, algumas das
quais depois reunidas em volume, que no podem deixar de considerar-se do
melhor que acerca das respectivas obras se escreveu, vemo-la estudar e ensinar
a lrica trovadoresca, os primrdios e os epgonos do teatro vicentino, as
Histrias de Proveito e Exemplo de Gonalo Fernandes de Trancoso, os sermes
de Vieira, o romantismo de Garrett e de Camilo, a fico de Ea de Queirs, a
poesia de Joo de Deus, os sonetos de Antero de Quental, a chamada Gerao
de 70, o Livro de Cesrio Verde, S-Carneiro, Teixeira de Pascoaes, Fernando
Namora, Maria Judite de Carvalho, Verglio Ferreira, Almeida Faria, Jos
Saramago, entre muitos outros.
A melhor forma de homenagearmos o alto magistrio que a nossa querida
Mestra e Amiga tem exercido com tanto prestgio h-de ser por certo a nossa
aposta em seguir a sua excelsa lio, alargando-a, em tempo oportuno e com
o mesmo empenho, aos novos Pases de Expresso Portuguesa que em frica,
entre dores e esperanas, se afirmam rumo ao futuro, falando, sofrendo e cantando na lngua que nos comum, mas fazendo dela tambm a fora mais
coesa das suas unidades nacionais e o veculo mais adequado sua integrao
na comunidade das naes modernas.
Creio at que essa h-de ser, de todas as homenagens que lhe possamos prestar, aquela que ir mais direita ao seu corao, trazendo a maior e melhor recompensa ao trabalho que, em doao total, investiu na defesa e ilustrao dessa lngua que nos comum, a partir dos textos literrios que com ela e por ela se plasmaram em arte e que Cleonice conhece e ama como os seus melhores paladinos.
que a aco de Cleonice Berardinelli, como Professora e Investigadora foi
para ela, sem sombra de dvida, um ideal de vida, a que apaixonadamente se
devotou e que a sua alma e a sua inteligncia souberam concretizar em cada
situao, em cada palavra, em cada aula, em cada escrito, em cada conversa, e
at em cada exame. E foi essa simbiose perfeita de harmonia entre saber e
amor, entre pensar e comunicar, que a sensibilidade de Drummond to bem
metaforizou naquela fazenda [] vasta e bela, que encerra, afinal, todo o
caminho por ela percorrido, qual genuina fazendeira do esprito.
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Saudemo-la, pois, com esse lindo hino de amizade que, para ns,
Portugueses, tem de ser tambm um sentido canto de gratido:
Fazenda mais vasta e bela
do que esta pobre chacrinha
todos sabem ser aquela
onde logo se adivinha
uma riqueza de frutos
e de flores medievais,
com que arte transplantados,
merc de finos cuidados,
para os tempos actuais;
ricas terras, e no landes
em que Galisteu Fernandes
e Paay Gomes Charinho,
meeiros dos mais astutos,
capricham na sementeira
contando de seus amores
a Vicente Anes Joeira
e tiram de velhas dores
um inefvel espinho;
em que Pero Burgals
mostra a Pedro de Sevilha
a constante maravilha
do linguajar portugus
tal como sino que soa
no copiar da fazenda
at Fernando Pessoa.
Com respeitoso carinho
Trago pois minha oferenda
De bem humilde vizinho
Nesta ensancha prazenteira
(a justia que me impele)
genuna fazendeira
Cleonice Berardinelli4.
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NOTAS
1
Cf. Estudantes da Universidade de Coimbra
Nascidos no Brasil, Supl. ao vol. IV de Braslia,
Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra, Instituto de Estudos Brasileiros,
1949.
2
Cf. Paulistas na Universidade de Coimbra,
Coimbra, Instituto de Estudos Brasileiros,
1959.
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3
Veja-se o Livro Comemorativo da Fundao
da Cadeira de Estudos Camonianos [na
Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa], Coimbra, Imprensa da Universidade,
1927.
4
Apud Cleonice. in: Gilda SANTOS, Jorge
Fernandes da SILVEIRA, Teresa Cristina
Cerdeira da SILVA (orgs.), Clara em sua
Gerao, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1995,
p. 36.
1.
ara Cleonice, na sua festa, quero dar de presente uma ilha. Uma ilha
metfora e uma ilha real. Uma ilha potica e uma ilha cartogrfica. Uma
Ilha desconhecida e uma Ilha que no h. Uma ilha Utopia e uma Ilha Brasil.
Toda a nossa mocidade teve o libi das ilhas. E estas ilhas, qualquer que
fosse o nosso pas e a nossa lngua, eram sempre as mesmas. As ilhas nos
uniam na nossa fuga fantstica para o ignoto. Cada um de ns desembarcava
nas ilhas da sua especfica tradio nacional. Ns italianos procurvamos as
ilhas da Indonsia ou do mar das Carabas onde Emilio Salgari tinha colocado para ns piratas e corsrios. Mas, depois, desembarcvamos, juntamente
com portugueses e brasileiros na Ilha Misteriosa de Jules Verne e, guiados pela
mensagem da garrafa, amos juntamente descobrindo, dia aps dia, a ilha
submarina de capito Nemo, sempre esperando com ansiedade a exploso da
nossa prpria ilha e aprendendo com ela a natureza traioeira dos vulces.
Participvamos com o nosso coetneo Jim s aventuras de piratas e de Silver
perna de pau na Ilha do Tesouro de Stevenson. Assistamos ao nascimento da
nao pinguim na Ilha dos Pinguins de Anatole France. Piratas, canibais, amotinaes, naufrgios, longnquas ilhas do Pacfico, fabulosas ilhas carabicas,
ilhas geladas e sem cor do Plo Sul, eram os ingredientes quotidianos da nossa
mocidade europeia. Talvez a Cleonice brasileira nos pudesse objectar aqui:
Oh, como eram diferentes as ilhas de Amazonas e canibais no Brasil!. E como
eram diferentes tambm os sonhos que no Brasil da baa do Rio, da baa da
Bahia, com suas ednicas ilhas de nomes famosos devem ter povoado o imaginrio de uma criana brasileira! Ou a Cleonice portuguesa pudesse talvez
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2.
Quando eu comecei a ocupar-me do Brasil, a primeira informao que recebi
era que o Brasil assim se chamava por causa do pau brasil, a madeira cor da
brasa que o europeu tinha encontrado na nova terra e que se tinha tornado
numa das fontes da sua riqueza2. Foi-me tambm sugerida outra etimologia
29
30
braise, it. bracia, port. braza) teria chegado aos portugueses. Com efeito, os
nomes de cordovano e marocchino (couro cordovo, couro marroquim), que se
encontram em documentos italianos, dizem-nos quais eram os principais centros rabes de trabalho e comrcio de peles tratadas com o brasil nos centros
ibricos e norte-africanos que se debruavam sobre as rotas do Oceano e, atravs deste, eram directamente ligados aos grandes portos comerciais do Norte
da Europa e em especial os das Ilhas Britnicas. Em Dublin, o pau brasil aparece taxado desde 1312 e numa carta nutica de Pietro Visconte de 1320 do
Museu Correr de Veneza que aparece pela primeira vez a Irlanda. Nas cartas
nuticas amos com efeito colhendo outros elementos para a avaliao do
nome Brasil.5
Desde o sculo XIV e at segunda metade do sculo XVI, localizvamos
nelas pelo menos duas ilhas: a primeira ao largo da costa ocidental da Irlanda
e a segunda no grupo dos Aores. A primeira ilha Brasil a do mapa nutico
de Angelino Dalorto, de 1324, conservado em Florena, na Biblioteca do
Prncipe Corsini. A ilha tem a forma circular que em seguida ser sempre o seu
indicativo e fica ao largo da costa ocidental da Irlanda, a SW do lacus fortunatus que tem quase as suas mesmas dimenses. O nome com que vem indicada
insula de montonis sive de brazile. Com as mesmas dimenses e mesma distncia da costa irlandesa, ela aparece em 1339 no segundo mapa Dalorto, alis
Dulcert, da Biblioteca Nacional de Paris. A latitude aqui porm muito mais
meridional confirmando a impresso de que nos sculos a ilha Brasil se foi
sempre mais abaixando no Oceano Atlntico, at chegar a se identificar com
o actual Brasil. H uma I. de berzi, de forma circular, com dois grandes arcos,
entre os Aores, juntamente com uma insula de cabrera (de forma quase
redonda), uma insula de ventura sive de colombis, e uma insula de corvis marinis, no Atlas nutico de Florena, Biblioteca Mediceo Laurenziana, de 1352. E
aqui mesmo, na folha das Ilhas Britnicas, perto da Irlanda, uma Insula de brasil semelhante insula de montonis sive de brazile do mapa Dulcert de 1339. A
teoria das ilhas brasil, de bracil, de berzil, de brasil, de brazile, de berci, de braccil, marca com a sua singularidade a cartografia europeia at ao sculo XVIII,
muito depois portanto do Achamento e da assuno do nome Brasil pela terra
encontrada em 1500. Escreve Laura Sitran, que acompanha o seu artigo com
o elenco completo das ilhas brasil encontradas at agora na cartografia6, que,
com a publicao dos primeiros planisfrios impressos a ilha brasil, monto-
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rius, reproduzida a partir dos velhos mapas nuticos e divulgada em meios que
j no so os especficos profissionais, carrega-se de novas valncias juntamente com a difuso das exploraes portuguesas. Mas a este ponto do percurso fantstico, Ilhas Afortunadas, So Brando, Ilha Brasil, Antlia, Ilha das
Sete Cidades, temos que concluir que aquilo certamente no era ainda o Brasil,
mas j era a direco do Brasil. Com efeito, s dois nomes, Antlia e Brasil,
emigram da extrema margem ocidental do mundo antigo, aberto s sugestes
do Oceano, s terras no Novo Mundo repropondo intacta toda a sua fora evocativa7.
3.
Apesar de Americo Vespucci ter declarado desde o incio ser a terra recm descoberta continente e no ilha a Ilha Brasil entrou oficialmente como ilha na
nomenclatura luso-brasileira, desde que Pro Vaz de Caminha datou a sua
Carta do Achamento deste Porto Seguro, da vossa Ilha de Vera Cruz, hoje,
sexta-feira, primeiro dia de Maio de 1500. verdade que a carta ficou muito
tempo sepultada nos arquivos da Torre do Tombo, sendo publicada s em
1817, mas mesmo assim atrs da ilha de Caminha h uma longa tradio de
ilhas novamente encontradas. Que relao h entre esta ilha do achamento e a
longa teoria de ilhas Brasil que desde o sculo XIV foram povoando o
Oceano at se identificarem com a ilha Brasil por antonomsia, isto o actual
Brasil? Quando eu disse que queria dar como presente para a Cleonice uma
ilha, alm do jogo de metforas com que quis ludicamente embrulhar como
num papel colorido a minha pequena prenda, o meu fim era o de integrar com
umas poucas fichas italianas que at agora tinham ficado desconhecidas, a j
importante bibliografia existente sobre o nome, ou melhor os nomes, do
Brasil. Nos anos das celebraes colombianas, a Associazione Italia-Brasile promovera a preparao de um livro publicado em Roma, em 1995, pela
Presidncia do Conselho de Ministros e dedicado s Relaes entre o Brasil e
a Itlia desde o Descobrimento8. Muitos dos ensaios que ali figuravam continham fichas teis para o nosso fim. Havia a j citada contribuio de Laura
Sitran que completava com a parte italiana a Cartografia j conhecida. Havia
o captulo de Carmen Radulet, intitulado Nel quale si ragiona di tutte le isole
del mondo e dedicado aos Isolari do sculo XVI, a comear pelo Libro di
Benenedetto Bordone, continuador da tradio clssica dos Insulrios do Mar
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Egeu e do Mediterrneo. Nele a nossa ilha Brasil aparecia duas vezes, a primeira vez perto da Terra del Lavoratore (Labrador) junta fantstica
Asmaide(As Maidas), e a segunda com colocao diferente no grupo das
Aores (Astori), continuando uma tradio iniciada com o Planisfrio de
Dalorto a que j nos referimos e que vai continuar at ao Insulrio de
Thommaso Porcacchi (1572). Na Introduo ao volume eu prpria depois
indicava os itinerrios propostos, as veredas dentro do serto-Brasil, presentes
no livro a comear pelo itinerrio nos nomes, muitas vezes italianos com que
a nova terra aparecia nos velhos mapas: Ilha ou Terra de Vera Cruz, Santa
Cruz, Terra ou Isola della Vera Croce, Terra della Santa Croce, Terra dei
Cannibali, Terra delli Papagai, Terra del pau-brasil, Terra del verzino, Isola
Brasil, Peru-Brasil, America-Brasil, Braxil, Brasil. E fazia tambm um elenco de
ilhas Brasil anterior ao Achamento de 1500. O nome de Ilha aplicado nova
terra eu dizia, vai perdurar, como metfora; e imagem recuperada de um den
em que o homem nu readquire a sua primignia pureza, juntamente com a sua
ancestral ferocidade. O bom selvagem e o mau selvagem: dois mitos antagnicos e complementares que vo percorrer toda a histria do Brasil at aos nossos dias.
esta ilha Brasil, mtica e real, carregada de todas as implicaes que lhe
vm dos seus nomes, esta ilha das rvores de fogo e do pau brasil, mas tambm rica da sua ascendncia celta e da procura do den martimo de S.
Brando, ilha das mulheres e ilha dos beatos, ilha dos canibais bons selvagens
de Montaigne, ilha colorida do europeu procura do seu temporneo alibi
ednico, que eu quero restituir a Cleonice com algumas glosas italianas e toda
a nossa amizade.
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NOTAS
1
Guido GOZZANO, Tutte le poesie, Testo critico e note a cura di Andrea Rocca, Introduzione
di Marziano Guglielminetti, I Meridiani,
Milano, Mondadori, 1980, pp. 282-283.
2
Para a histria do nome do Brasil, cf. Andr
LHOIST, Lorigine du nom Brasil, in:
Congresso do Mundo Portugus, vol. III,
Lisboa, 1940; Verbete Brasil, Ilha, in:
Dicionrio de Histria dos Descobrimentos
Portugueses, Direco de Lus de
Albuquerque, Coordenao Francisco
Contente Domingues, Lisboa, Caminho, 1994,
vol. I, pp. 144-145.
3
O primeiro nome, em portulanos italianos e
catales do sculo XIV, foi o de Y de Legname.
Em seguida, s seis anos depois da chegada
de Gonalves Zarco e dos seus colonos ilha
(1419), ela j aparece no Atlante Nautico di
Giovanni Giraldi, 1426, Venezia, Bibl.
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CLEONICE BERARDINELLI
Liliana Cabral Bastos
Pontifcia Universidade Catlica Rio de Janeiro (PUC-Rio)
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volvimento de pesquisas, mas tambm com a promoo de seminrios, palestras, cursos, publicaes. J foram realizados seis seminrios, entre os quais
destaco o em homenagem aos trezentos anos de morte de Padre Antnio
Vieira, e os dois ltimos, intitulados Cidades em Dilogo e Preciso Ser
Absolutamente Moderno?.
Essa histria, colocada de forma to objetiva e econmica, embora digna,
no nos permite compreender o porqu de estarmos aqui hoje. Muitos de ns,
tambm trabalhamos, com afinco e dedicao por vinte, trinta anos ou mais,
escrevendo, coordenando eventos, orientando alunos. Mas so poucos, muito
poucos, os que brilham como Dona Cleonice. Um brilho que ela generosamente divide e nos empresta. Em nossa vida rotineira de trabalho comum fazermos apelo ao charme de Dona Cleo: para motivarmos nossos alunos calouros,
por exemplo, costumamos pedir Dona Cleo que faa uma palestra. O sucesso
garantido. Os alunos saem embevecidos, maravilhados, conquistados.
Mas no apenas nesses momentos de espetculo que a presena de
Dona Cleonice nos encanta. Tambm generosamente, ela participa de todas as
instncias de nossa vida acadmica. Com o mesmo entusiasmo que faz uma
conferncia para uma audincia numerosa, conduz um seminrio para dois
ou trs mestrandos, ou d um curso para uma turma de graduao. Alm
disso, participa de atividades ditas mais aborrecidas, como comisses administrativas que supervisionam bolsas de estudos, desempenho de alunos, relatrios acadmicos etc. Com sua pontualidade caracterstica, de hbito a primeira a chegar em nossas reunies. Cuida de cada detalhe, atenta aos interesses da rea de literatura portuguesa, mas sempre compreensiva com as outras
reas e justa em seus votos e decises. Dona Cleonice nosso modelo, nosso
exemplo.
Como nos ensina Padre Antnio Vieira, patrono de nossa Ctedra, para
falar ao vento bastam palavras, para falar ao corao so necessrias obras.
Dona Cleonice nos fala ao corao com suas palavras e seu exemplo.
Dona Cleonice fala ao nosso corao brasileiro sobre Portugal e por isso
lhe agradecemos. Nessa poca de globalizao os homens buscam, em contraponto, suas identidades locais, suas razes, suas origens. Queremos entender o
que somos, nossa identidade, nossa multiplicidade. Para conhecer o Brasil
preciso conhecer Portugal. Se a identidade do indivduo se constri na lngua
e atravs da lngua, precisamos conhecer as manifestaes da lngua tanto na
36
37
ADEUS S ARMAS
Jorge Fernandes da Silveira
Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ)
stou no antigo porto. primeira vista, parado. Sei que vou me repetir.
Viajo, contudo, estou certo. Com tudo o que resta de estar e para incluir
na bagagem de anos, vou ao encontro de Campos ou, como o chamo, de
lvaro de Campos, o desempregado da Campanha das ndias. Em sua companhia estaro Cames, Cesrio e Pessoa: camaradas num modo portugus de
dizer adeus s armas do imprio...
1.
Eis aqui, quase cume da cabea
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar comea
38
No intervalo entre uma e outra sentena, nos termos de Walter Benjamin sobre
os narradores arcaicos, a verso da Histria narrada pelo marinheiro comerciante, apesar de saturada e desconstruda por uma Revoluo, ainda absolutiza formas de interpretao da realidade portuguesa, j que o homem da terra
imagem em revoluo do campons sedentrio benjaminiano ainda espera
o narrador experiente que ponha em novas crnicas a sua vivncia.
Sendo este o meu ponto de vista, insisto como quem recolhesse flego a
mais em reflexes permanentes. Parodiando o poeta de eleio: no evoluo
eu, viajo.
2.
A saturao que, ao longo dos sculos, foi-se inscrevendo na linguagem da
Literatura Portuguesa voltada para o mar implica, hoje, a necessidade de uma
viagem de reconquista da terra como paisagem e, portanto, como desejo de
uma fico que, enfrentando o n do passado feito na gua, movimente em
novas empresas o imaginrio portugus. O desejo dessa viagem outra estaria
impresso no reconhecimento, pela literatura posterior, da impossibilidade de
dobrar o texto de Cames, Os Lusadas uma espetacular sntese dialtica do
literrio entre o mtico e o histrico. Exemplo notvel o modo engenhoso de
apresentar Ins de Castro, a partir da sua condensao nas duas verses que at
hoje a mantm viva no imaginrio portugus. Ou seja: as verses histrica (a
morte de Ins depois da vitria portuguesa contra os mouros na Batalha do
Salado) e a mtica (Ins imortalizada como aquela Que despois de ser morta
foi Rainha).
Passada esta to prspera vitria,
Tornado Afonso Lusitana Terra,
A se lograr da paz com tanta glria
Quanta soube ganhar na dura guerra,
O caso triste e dino da memria,
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da msera e mesquinha
Que despois de ser morta foi Rainha.
(Lus., III, 118)
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40
41
3.
Custa muito levantar o mar de extenso pica entre os versos caudalosos de
uma ode e o espao contido no soneto?
Intrprete privilegiado do autor de O Sentimento dum Ocidental, lvaro
de Campos, engenheiro naval e poeta sensacionista que viajou pelo Oriente
e pela Europa vivendo principalmente na Esccia, que no teme os perigos da
aventura; na verdade, desempregado, errante, a reitera em Ah, um Soneto...,
um dos textos-base deste ensaio.
Ah, um soneto
Meu corao um almirante louco
Que abandonou a profisso do mar
E que a vai relembrando pouco a pouco
Em casa a passear, a passear...
No movimento (eu mesmo me desloco
Nesta cadeira, s de o imaginar)
O mar abandonado fica em foco
Nos msculos cansados de parar.
H saudades nas pernas e nos braos
H saudades no crebro por fora.
H grandes raivas feitas de cansaos
Mas esta boa! era do corao
Que falava... e onde diabo estou agora
Com almirante em vez de sensao?...2
Neste poema, primeira vista porque movido pelo corao, mesmo que
louco , to diferente dos gmeos pessoanos Autopsicografia e Isto, reiterase, por um lado, a figura do sujeito desempregado do mar do Oriente e, por
42
outro lado, apresenta-se a metfora do almirante louco que abandonou a profisso do mar para aprender a errar em casa. Como para Benjamin, para quem
os provrbios so runas de antigas narrativas, nas quais a moral da histria
abraa um acontecimento, como a hera abraa um muro.3, posso dizer que na
relembrana errante, a passear em casa como se andasse num mar em runas, h um percurso duplamente inteligente, quer pela memria de permanncia num saber antigo, quer pelo desejo de deslocamento em direo a um
modo outro de estar na Histria. O saber antigo pode estar experimentado
neste verso de Cames: Errei todo o discurso de meus anos. Verso em que o
horizonte de expectativa do leitor, legitimamente, lhe permite ler, em discurso,
para alm da significao de decurso/percurso num tempo e espao, o sentido
de uma distncia que se constri, entre dois pontos, atravs de uma prtica
discursiva, i.e., da escrita.
No segundo quarteto, as marcaes so claras: sentado numa cadeira com
os msculos cansados de parar, o sujeito deslocado para o mar por meio dos
braos sobre a imaginao. O gesto de escrita, portanto, apresenta ao leitor o
mar como objeto de representao ou, diria Pessoa sua maneira, de fingimento. Eduardo Loureno, em consideraes acerca do erotismo em Campos,
afirma ser a Ode Martima uma viagem sentada em volta do seu [dele,
Campos] impercorrvel mar tenebroso.4
Nos tercetos prevalece o jogo da anfora H saudades, H saudades,
H grandes raivas , no primeiro, a repetir contraditoriamente o movimento de errncia a passear, a passear... do quarteto inicial e, sobretudo, a
insistir (diria ainda Eduardo Loureno) no eco do cansao do poeta j de
regresso de todas as viagens, de regresso de tudo, neste soneto do fracasso
mascarado em viagem imaginria.5 Soneto que diria trgico se no fosse atravessado, sarcasticamente, pelo segundo terceto em que o tom coloquial concerta a emoo do poeta, j que a tenta conduzir aos passos seguros da escrita
da sua identidade sensacionista inventada, livrando-a dos desastres de uma
profisso que, hoje, no vale a pena. Aqui qualquer semelhana com o final de
Autopsicografia e o incio do Isto no deve ser subestimada.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razo,
Esse comboio de corda
43
O soneto pode ainda ser lido, por um lado, como uma extenso da estrofe do
Opirio que h muito persigo (Perteno a um gnero...) e, por outro lado,
como um movimento contrrio ao que h de mensagem compensatria e edificante nos versos com jeito de carto-postal e vocao para caixilho e moldura do Mar Portuguez.
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma no pequena.
44
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erro, com certeza, h de por mim poder ser julgado errante, j que a noo de
errado como a daquele que comete erros no perturba o meu juzo;
3. O paralelismo de construo evidente entre os tercetos motiva a vontade de buscar, para este soneto aparentemente mais concertado, termos de
comparao num outro poema, em que todo o tempo e todo o espao prefiguram a imagem perfeita do projeto certo.
Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silencio murmuro consigo:
o rumor dos pinhaes que, como um trigo
De Imprio, ondulam sem se poder ver.
Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a falla dos pinhaes, marulho obscuro,
o som presente desse mar futuro,
a voz da terra anciando pelo mar.
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infinitivo, mais certa fica. Quero dizer: a haver o futuro que haver para
o Imprio que j no h (como sabemos, toda a Mensagem quer suspender
esta falta, este intervalo: a Hora!); a passear, a passear o presente
numa errncia que se grita, corajosa e doidamente lcida (no fundo, toda
a poesia de Campos talvez seja o conhecimento dessa dolorosa evidncia:
Sou um tcnico, mas tenho tcnica s dentro da tcnica. / Fora disso sou
doido, com todo o direito de s-lo. / Com todo o direito de s-lo, ouviram?
Lisbon Revisited (1923).
com os mesmos
b) Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
o plantador de naus a haver
48
Numa palavra: o segundo soneto pode ser lido como uma espcie de entrelugar na tenso, pois, a meu ver, ele uma leitura tanto do primeiro soneto
como do Dom Diniz. Comparem-se os versos
E assim surgiu, Imperial, a frota
Carregada de anceios e de glorias
Com que o almirante prosseguiu na rota.
...
E ouve um silencio murmuro consigo:
a voz da terra anciando pelo mar
o rumor dos pinhaes que, como um trigo
De Imprio, ondulam sem se poder ver.
49
50
sagrado estava a Lisboa, Tejo e tudo que ele prprio contara durante noites e noites no seu quarto de hotel. Tudo senhores.
[...] Lia-os e relia-os como uma repetio, um eco de si mesmo
contado por algum. 10 [grifos nossos]
Numa palavra: o conto de Cardoso Pires pode ser uma hiptese para demonstrao de que Jos Saramago , na verdade, um caso mais srio do que se
supe. Saramago autor do mais conhecido simulacro pessoano: O Ano da
Morte de Ricardo Reis. A comparao, portanto, obrigatria. Entre as muitas
leituras que o livro de Saramago provoca destaco, repetindo o que j escrevi
sobre Um Falco no Punho, 1985, de Maria Gabriela Llansol: esta narrativa a
conscincia de que Pessoa hiptese ficcional fecunda, j que a sua prpria
biografia potica (os heternimos) a manifestao de um poder de linguagem que decide a temporalidade de ser presente, de ter sido passado, de vir a
ser futuro.
Se todos os caminhos portugueses vo dar a Cames11, j h muito
Pessoa parada obrigatria no percurso, digo, decurso, ou melhor, discurso.
Pergunta no sem importncia: at que ponto Saramago se est impondo
como a paisagem mais atrativa entre um e outro? Ao viajante interessado, isto
, ao leitor atento no curso da viagem no escapar o discurso excepcional de
Maria Gabriela Llansol. Em Um Falco no Punho, por exemplo, involudo em
AOSS Pessoa, da direita para a esquerda, assim se l a figura do ortnimo
poeta guiada at a metafrica Lisboaleipzig, onde, entre muitas cenas fulgor, assiste em casa de Bach ao nascimento do seu heternimo feminino,
Infausta. Transportado por estas leituras em incessante trabalho de escrita
como uma sucesso de simulacros Pessoa vtima da sua prpria armadilha
heteronmica. Inventando-lhe outros heternimos estes autores Llansol
sobretudo transformam o Pessoa autor de heternimos em personagem da
fico que ele escreveu e que simultaneamente o escreve. A meu ver, a questo
da autoria, da discusso em torno do dar a Campos o que de Campos, a Reis
o que de Reis, tem de levar em considerao essas novas fices.
O conto de Cardoso Pires mais uma pea do jogo, mais um vo nesse
labirinto. Mas, apesar da qualidade do texto, no deixei de sair da leitura com
uma certa m impresso. O que me incomoda, claro, no pode ser o que me
entusiasma: a) a bem urdida questo sobre a identidade do torna-viagem no
51
O que me incomoda, repito, no isto. alguma coisa que em mim, ainda sem
expresso satisfatria, assim se manifestaria: aos atuais desempregados das
ndias (ou, no sei se o diga, scios da Unio Europia) Saramago incomoda.
Os Cadernos de Lanzarote no os li ainda, mas a imprensa e um bom trabalho de marketing me ilustram levantam polmicas entre Antonio Tabucchi,
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NOTAS
1
Estas consideraes esto mais desenvolvidas
no meu: Cesrio Verde Todos os Poemas,
Rio de Janeiro, Sette Letras, 1995.
2
Cleonice BERARDINELLI, Poemas de lvaro
de Campos, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, 1990.
3
Walter BENJAMIN, O Narrador, in: Obras
Escolhidas, v. 1. So Paulo, Brasiliense, 1985,
p. 221.
4
Eduardo LOURENO, Fernando Pessoa
Revisitado, 2. ed., Lisboa, Moraes, 1981, p. 105.
5
Idem, ibidem, p. 151.
6
Cleonice BERARDINELLI, lvaro de
Campos Indit, Europe Revue Littraire
Mensuelle, Fernando Pessoa, juin-juillet,
Paris, 1988, p. 109.
7
Jorge Fernandes da SILVEIRA,
Discurso/Desconcerto Alguns Ns na
Literatura Portuguesa, conferncia para o
concurso de Professor Titular de Literatura
Portuguesa da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, dezembro de 1994.
8
Cleonice BERARDINELLI, Mensagem,
Cadernos da PUC, Rio de Janeiro, v. 1, p. 55-6.
9
Almada NEGREIROS, Obras Completas, v. 1,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
pp. 55-6.
10
Jos Cardoso PIRES, O Viajante
Anunciado, Ler, Lisboa, outubro de 1994,
pp. 129-130. J publicado em livro: A Cavalo
no Diabo, 1996.
11
Jos SARAMAGO, O Ano da Morte de
Ricardo Reis, Lisboa, Caminho, 1984.
53
A MUSA DE ANTERO
OU ANTERO E EROS
Eduardo Loureno
Vence
um breve e precioso ensaio intitulado Eros e Antero, a nossa querida homenageada de hoje, Cleonice Berardinelli, escrevia h apenas
cinco anos: Do poeta do amor, daquele que escreveu entre os dezanove e os
vinte e dois anos as Primaveras Romnticas e mais catorze sonetos includos
por Antnio Srgio no primeiro ciclo de sua edio dos Sonetos, o ciclo da
expresso lrica do amor-paixo, pouco se tem dito.
De ento para c penso que no se ter dito muito mais, mas o seu artigo,
nos limites que lhe assinalou, preencheu essa lacuna retomando a leitura da
poesia amorosa das Primaveras com aquela delicada ateno e penetrante rigor
com que ao longo da sua vida de grande mestra abordou os seus temas predilectos. E o do lirismo amoroso constante na autora de Estudos Camonianos.
Adoptando a trplice distino do erotismo segundo Georges Bataille erotismo dos corpos, do corao, do sagrado Cleonice Berardinelli mostra como
a poesia amorosa do jovem Antero constitui o seu objecto ertico em funo
da imagem materna. O que situa simbolicamente o seu erotismo, digamos
filial, na esfera da infncia, tanto como infantiliza o objecto amado. Todos
somos e nem precisvamos de Freud para o saber, embora menos cruamente filhos de sua me. Mas na ordem do simblico, expressa na poesia, podemos dizer que Antero, nisso como em tantas coisas, alma gmea de Pessoa,
54
foi o nosso primeiro filho de sua me. Salvo que nele a figura materna, se castradora como todas, no me morta ou que se mata para o deixar rfo perfeito como Pessoa se ficciona no Livro do Desassossego, mas figura salvadora,
redentora, Beatriz. Ao menos nessa primeira fase da poesia anteriana consignada nas Primaveras. A justo ttulo, Cleonice Berardinelli releva os sintagmas,
as imagens, maternais ou maternantes, que obsessivamente povoam, com
refgio em mltiplos selos, os sonhos erticos de um erotismo repassado de
sensualidade sonhada, mesmo quando ostenta as marcas que se costumam
associar evocao da pulso ertica. O que raro em Antero. O nico poema
em que a violncia dessa pulso aflora, e com os sinais de predao do objecto do desejo, releva de um erotismo puramente fantasmtico. No mais tpico
estilo de um romantismo exacerbado, o seu objecto o mais ideal dos objectos. Ideia ou Verdade e no o natural cone feminino, petrarquista ou camoniano, da ertica tradicional. Ou, mesmo, da romntica. Pelo contrrio: a Ideia
descrita como anti-ertica por excelncia, fria virgem desdenhosa. Mas com
ela que Antero imagina abstractas e inumanas npcias, embora celebradas
com imagens dignas de um Sardanapalo de banda desenhada galctica, que
tudo leva a crer no era a sua:
Oh! o noivado brbaro! o noivado
Sublime! aonde os cus, os cus ingentes,
Sero leito de amor, tendo pendentes
Os astros por docel e cortinado!
As bodas do Desejo, embriagado
De ventura afinal! vises ferventes
De quem nos braos vai de ideais ardentes
Por espaos sem termo arrebatado!
...............................
L, no seio da eterna claridade
Aonde Deus humana voz responde;
que te havemos de abraar, Verdade!
55
essncia ou no ertico, como o que subjaz aos Sonetos e que no releva nem
do erotismo dos corpos, nem do corao, seno ocasionalmente, mas de um
investimento do Desejo num objecto ideal Deus ou Ideia embora presente, o
fantasma maternal no tem o contedo imaginal dos poemas das Primaveras.
A justo ttulo, e muito cautelosamente, Cleonice Berardinelli refere-se postura algo feminizada de Antero. Embora a ligue ao evidente (enquanto
expresso) apego me, o diagnstico pois mais abrangente e afecta todo o
mecanismo do imaginrio anteriano. Ele define o lugar da Musa anteriana,
mesmo com o seu ar reticente e, ao mesmo tempo, pe a questo da Musa em
Antero.
Algum no sei se eu mesmo disse que Pessoa foi o primeiro poeta
portugus que no teve Musa. E ele mesmo dedicou a essa ausncia de Musa,
de que como ningum estava consciente, poemas memorveis, entre eles o da
Maga sem Condo. J se pode dizer quase o mesmo de Antero, apesar deste
erotismo singularmente maternante das Primaveras Romnticas. Ou por causa
dele, quando se atenta na figura do Desejo quer dizer, de Eros que eles
exprimem. Antecipando o tempo da sua nica e verdadeira Musa se assim se
pode chamar que reina soberana no seu imaginrio a da Morte, como
Cleonice Benardinelli acabar por concluir no seu ensaio, j no jovem Antero
o rosto da Musa bem pouco ertico. Quer dizer, bem pouco enraizado numa
manifestao do Desejo de perfil positivo e activo, como prprio de Eros.
O que define, desde o seu retrato no Fedro, o semideus Eros, a sua pulso
positiva, criadora, que faz dele o liame do universo, como o Renascimento
mais do que na verso mais intelectualista dele dos gregos percebeu to bem.
Basta ler A cloga dos Faunos, de Cames, ou Os Lusadas. Ao lirismo ertico
do jovem Antero, via Joo de Deus, agrega-se tambm a sombra camoniana.
Ecos e at texto camoniano, como lembra Cleonice, encontram-se nessa poesia. Mas o seu esprito muito outro, para no dizer oposto. Em todos os sentidos do termo, o Eros anteriano um Eros decarnado, figurao ideal de um
eterno amor que no mediado por nenhuma Beatriz, mas pela ideia-imagem
de um Absoluto que , ou abismo insondvel, ou Noite ou impensvel No-Ser.
Tanto vale dizer, um objecto ideal que nada tem que ver com Eros, energia original, instinto, paixo da Beleza aspirada sem cessar por graus de Beleza mais
alta que so ao mesmo tempo graus do ser, escada que nos conduz do sensvel
at plenitude do que Plato designa como Bem ou Ideia das Ideias. E mais
56
real do que o Bem, sob o qual os telogos cristos modelaram a Ideia transcendente do Ser, do Ente dos Entes, no existe.
Perdendo o Deus transcendente da sua educao catlica, Antero, sem
saber, perdia a ideia do Ser, como a realidade transcendente por excelncia. E
perdendo-a, perdia toda a forma de elan instintivo ou instinto espiritualizado que Eros encarna e de que o instrumento. Que poesia ertica ou que erotismo se podia esperar de quem to cedo interioriza a sua relao consigo
mesmo, o mundo e a histria que num certo momento lhe servir de Musa
como pura perda, luto de si mesmo, antes de a converter em luto universal?
Lembremo-nos que Antero acordou precocemente como poeta, no por
influncia de qualquer juvenil objecto de paixo e amor, mas arrebatado pela
puro objecto ficcional e sonoro de uma poesia cujo tema, para no dizer objecto, era Deus, o referente da adorao suprema, Pai, Mistrio, e chave do
Mistrio. Quando o perdeu ou ele se disse a si mesmo que esse Deus lhe morrera, o seu destino, o seu imaginrio, que no tinha nenhum objecto real como
horizonte, encontrou-se literalmente no Deserto, de onde nunca mais sairia.
Claro est que o objecto perdido foi simbolicamente substitudo por
outros absolutos todos de contedo ficcional como o de juvenis amores,
Revoluo, socialismo etc., que forneceram sua Musa pblica o alimento
subjectivo do reencantamento do mundo. Mas o seu corao e o seu esprito
estavam vazios e s se enchiam, religando, ainda como poeta, o Deus perdido
(como f tradicional) a esses mesmos motivos de interesse ou paixo. Nas
Primaveras, a temtica amorosa, prolongando a romntica, de Garrett ou
Herculano, continua a entrelaar o Amor e Deus. O Amor, se no Deus, vem
de Deus, ou recebe dele a sua aura de Eternidade. E a esse ttulo , muito classicamente, ao mesmo tempo, essncia do homem, essncia do Universo e nico
lugar de salvao. No caso de Antero e s-lo- sempre com rosto materno
sacralizado Virgem Santssima e ele no lugar do Filho, quer dizer, de
Cristo. No de um Cristo que venceu o mundo, Cristo Pancreator das catedrais
gticas, mas de um Cristo vencido, looser da histria, a quem ele, heri juvenil, logo decepcionado, ou vencido, se assimilar. Como Pessoa, mais tarde, e
por outros motivos. Antes de se confrontar realmente com o Deserto, com o
vcuo do corao, da vida, da Histria, antes de se consolar desesperando-se,
ou desesperar consolando-se, com a ideia de que o Ser o No-Ser Absoluto,
Antero jovem, no apenas filho, mas abandonado, filho abandonado como o
57
Este quero ainda viver sob a invocao da Cruz e Beatrice, num poeta de 18
anos, s no faz sorrir porque sabemos como o fantasma da morte foi nele,
mais do que pose precoce, tentao a pagar com juros. E o poema continua:
Infinito, Ideal, Viso que mal pressinto!
Transfigura-te aqui! deixa cair teu vu!
Quero palpar e ver a Deus, nisto que sinto!
Quero antever o cu!
Venham-me esta alma ungir palavras do teu lbio.
Que mestre h a que valha um lbio de mulher?
Que livro folheou o Cristo, o maior sbio?
Quero a vida aprender!
Este ertico crstico ainda tipicamente romntico, conhecer uma metamorfose, para no dizer, uma inverso completa, ao nvel simblico, no Antero da
maturidade. Toda a positividade deste erotismo, mesmo to fantasmtico, tor-
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nar-se- negativo. Em suma, anti-ertico, enterro da Musa. Mas j neste primeiro Antero, se da letra passarmos ao que esse erotismo veicula como vida
ficcional, encenao do sentimento e encenao de Eros, a paisagem interior
de Antero descobre-nos sombras e desvos esconsos e perde essa inocncia a
que ele mesmo aludiu quando publicou as Primaveras. scar Lopes, a propsito da presena da Mulher na poesia de Antero, refere-se, como tambm assinala Cleonice, sensibilidade algo enigmtica de Antero. No que se refere ao seu
erotismo em geral, a observao justa. Com uma ressalva, o enigma de Eros
-nos congenital. Nem temos outro. Para cada um de ns, como para dipo,
mau grado as denegaes ou reinterpretaes, o enigma o enigma de Eros.
Pelo menos, na cultura ocidental de raiz crist. O que interessante, compreender, ou tentar compreender, a engrenagem do enigma de Eros em Antero
no que ele ter, seno de nico, ele universal mas de singular na imagem
que dele filtra na sua poesia. Paradoxalmente, esse enigma parece-nos claro de
mais. Entre a hipertrofia onrica do papel da mulher na sua poesia das
Primaveras e a sua rasura ou alquimia nos Sonetos da maturidade h um tal
abismo, que a questo dele se constitui em enigma de outra ordem.
Pouco conhecemos da real vida amorosa, ou que assim se chama, de
Antero. Do que conhecemos dela, tudo indica que nesse plano, como no resto
mas este resto o que iluminado por ela Antero exemplificou, at tragdia, o que se chama comportamento de fracasso. Oliveira Martins, que sabia
do que falava, ligou a sua tragdia vital e o seu fim, ao que ele mesmo designou como a Mulher. A propsito do seu suicdio contou que vrias vezes lhe
tirara a pistola das mos. Razo? A Mulher. Mas o que se esconde neste diagnstico com relentos de vulgaridade? No o sabemos, e no podemos vestir a
pele do seu analista-anatomista Sousa Martins, ou de Sigmund Freud, para
nos consolar de o no saber. O que nos interessa est nos textos. Tudo texto
e tudo est nos textos. E o que eles, to transparentemente, confessam, do que
eles falam, de um sujeito ficcional que se representa como amorosamente
carente, volvendo a cada momento do que ele chamou a lbrega jornada da
vida para a Casa do Amor, deserta como o Palcio da Iluso, assombrada, mas
tambm iluminada, pelo nico amor que miticamente no trai, ou trai menos,
a que a me serve de brazo.
-lhe necessrio que a Mulher lhe seja tudo, salvo a plenitude gloriosa e terrvel do Feminino, do Outro igual, amigo-inimigo. Quando esse Feminino no
59
60
certo que em todo o amor acabamos por tomar a nuvem por Juno, mas para
tocar Juno que abraamos a nuvem. O nico objecto ficcional onde tudo conflui, mais do que nuvem, mais que impalpvel, a Morte e a ele se pode vincular, como mero espasmo sem matria, um Desejo de si mesmo incerto ou sem
contedo ertico. Excepto o de um nada budisticamente sublimado em Tudo.
A Morte a nossa morte no tem contedo. A poesia de Antero a tentativa
lograda e malograda para dar voz a essa intuio. a ausncia de contedo que, tornando-a impensvel, a converte num fantasma letal para quem quer penetrar o seu
enigma imaginrio, como Antero, com fascinada paixo o tentou. Antes que ela o
levasse para o seu seio, quis Antero domestic-la, morrer nela para no morrer,
cant-la e sublim-la como puro No-Ser, ou, da maneira mais sensvel e familiar,
transfigur-la em Noite acolhedora, em plcido repouso do seu corao inquieto,
coroada de atributos,(adjectivos), que vivem unicamente do seu contedo negativo:
A noite a imagem do No-Ser,
Imagem do repouso inaltervel.
E do esquecimento inviolvel.
61
E mesma Noite que ele chamar irm, no mais profundo e doloroso dos seus
versos:
Morte, irm coeterna da minha alma
convertendo assim os mesmos fantasmas do corao, to caros ao seu erotismo sem Eros dentro, para poder evocar o inevocvel em termos de presena
apaziguadora, de amor sem lgrimas de Eros, as das paixes e dos amores
reais. Irm, a Morte pode dar-nos a mo. Pessoa lembrar-se- disso nos fragmentos das Odes Noite.
Conceptualmente, ele no podia acrescentar nada, a no ser florir um
pouco esse lugar de ausncia resgatada por esta morte com rosto humano o
ltimo, como o da Esfinge ao que Antero to bem circunscrevera:
A noite a imagem do No-Ser
imagem do repouso inaltervel
E do esquecimento inviolvel
Que anseia o mundo farto de sofrer.
Com razo diz Cleonice que a Ideia e a Morte foram as nicas musas de Antero.
Tambm o pensamos. Mas naquele verso de comentrio infinito, o que salva o
nada do seu nada, a Morte da morte, justamente essa irm com o seu cortejo
de fantasmas que da por diante povoam o imaginrio ertico nacional na sua
verso cannica ou inslita e que vo de Ea a Gomes Leal, a Cesrio, a Helder
Macedo, por exemplo. No corao da morte est o rosto feminino.
E se fossemos poeta podamos imaginar para a terrvel epgrafe que escolhemos a do eterno amor envolto no eterno luto a sua inverso:
A ele seduzia-o a paz santa e inefvel
Que envolve o eterno luto no eterno amor.
Talvez mais do que ningum, e primeiro do que ningum, Antero soube que a
noite da Morte s a do no-Amor. Para se consolar deu-lhe um rosto de irm.
62
O CORRELATIVO OBJECTIVO
Maria Vitalina Leal
DE T. S. ELIOT E A SUA
de Matos
VERSO PESSOANA
Universidade de Lisboa
(Digresses)
1.
o ensinar, por dever de oficio, o b-a, ba das coisas literrias, a propsito do new-criticism vem baila a noo de correlativo objectivo que
explico sempre com um certo mal estar.
Creio que ele provm de diversos factores: por um lado, Eliot1 no clarifica absolutamente a noo que prope; por outro, o exemplo escolhido, o
Hamlet de Shakespeare no se afigura um exemplo fcil, dada a complexidade
de problemas que envolve e que justamente o ensaio de Eliot procura trazer
tona. Alis, talvez a finalidade de Eliot seja menos a de propor uma
noo-chave, e antes a de mergulhar no tumulto do conflito hamletiano, e tentar ordenar um tanto as suas impresses, para o que teria recorrido ao achado
desse conceito explicativo. De qualquer modo, nem o conceito, nem a sua
interpretao da pea resultam claros, embora luz deste ensaio a obra se
revele duma obscuridade irradiante.
Diz o crtico que o nico modo de expressar emoo na forma de arte
descobrindo um correlativo objectivo; por outras palavras, um conjunto de
objectos, uma situao, uma cadeia de acontecimentos que ser a frmula
dessa emoo especfica2.
Mas de que emoo se trata? A da personagem? A do autor? A do leitor?
O contexto dos exemplos dados em seguida (Macbeth) deixam-nos indecisos. E mais ainda o caso de Hamlet aduzido logo depois. Hamlet (o homem)
dominado por uma emoo que inexprimvel, porque excessiva, em relao
aos factos tal como se apresentam. E a suposta identidade de Hamlet com o seu
autor genuna at este ponto: a perplexidade de Hamlet, perante a ausncia de
objectivo equivalente aos seus sentimentos, um prolongamento da perplexidade
63
64
exterior, confisso sincera e autntica, torna-se invivel; ou melhor, desmascarou-se a iluso dessa transparncia e dessa autenticidade. Tambm para
isso contribuiu a histria literria oitocentista, que encontra na relao entre
o homem e a obra o modelo de inteligibilidade com que interroga o texto
literrio.
O uso e o abuso deste modelo de inteligibilidade - reduzindo o texto a um
documento biogrfico, ou forando-o a reconstituir biografias fantasiosas acaba por desacredit-lo.
Nesse sentido, no havia mais nada a prosseguir, nem a tentar.
neste contexto que a teoria do correlativo objectivo aparece como uma
nova forma de abordar a questo: como se originou a obra literria? Qual a
relao entre a obra e o seu criador? Como produz a obra efeitos no leitor?
A resposta no dever procurar-se do lado dos dados biogrficos, onde no
poderemos decifrar o enigma insolvel, porque os dados biogrficos eventualmente pertinentes so insusceptveis de ser conhecidos.
A resposta s poder encontrar-se caso a caso, equacionando o conjunto
de objectos, a situao, a cadeia de acontecimentos que so a frmula
dessa emoo especfica10, ou seja, compreendendo que o texto contm em si
a resposta; e nada, alm da anlise da sua densidade e da sua espessura poder proporcionar melhor conhecimento. S a h resposta, ou em nenhum
outro lugar.
Em face deste entendimento, creio encontrar em Fernando Pessoa uma formulao feliz da aporia com que se debatiam nesta poca os estudos literrios,
bem como uma soluo plenamente coerente. Refiro-me ideia de poesia
como fingimento, e da sua concretizao no poema O Menino de sua Me.
A crtica tem visto no texto uma projeco autobiogrfica (Almada
Negreiros, nos versos em pedra entrada da Faculdade de Letras de Lisboa; e
Joo Gaspar Simes11). Mas o texto impede-nos de admitir um biografismo
directo: Fernando Pessoa no era jovem no momento da redaco do poema;
nunca foi soldado; no foi ele que faltou me, mas, duma ou doutra forma,
foi esta que lhe faltou. Quem morreu jovem foi o seu pai. O poema no reflecte nenhum destes elementos biogrficos. E no entanto, os crticos que conheceram Fernando Pessoa pessoalmente vem no poema um auto-retrato: O
Menino de sua Me, poesia que Fernando Pessoa escreve em 1926, pouco
tempo depois do falecimento de D. Maria Madalena, foi-lhe inspirada, confiou
65
ele a um amigo, por uma litografia entrevista na parede de uma sala de penso [...] O facto, contudo, de ter sido escrita pouco depois da morte da sua
prpria me, em razo do muito que sabemos que contraria a paradoxal pretenso do poeta que se vangloriava de em arte no saber seno mentir, ajuda-nos a compreender aquilo que foi uma das crises mais srias da sua existncia inteira. O menino de sua me no era o jovem soldado morto descoberto
na litografia annima da sala de jantar da penso lisboeta - mas o prprio
Fernando Pessoa. [...] Foi a me quem lhe dera esse nome Filho nico, a me
lhe dera / Um nome e o mantivera - Mas Fernando Antnio merecia-o por
direito prprio..12
Auto-retrato no ser, como se viu. Mas sem dvida a expresso dum sentimento de abandono experimentado na infncia, a dor de laos familiares
cortados, o que estar na origem da perda do sentido da vida.
Se tivermos em conta que o poema constri uma personagem fictcia - o
jovem soldado morto e abandonado no campo de batalha; que se enuncia na
terceira pessoa, o que muito raro num texto lrico (por definio, o domnio
da subjectividade), e que essa forma de enunciao acarreta um inevitvel efeito de distanciamento, sensvel no ritmo sereno (que contrasta, alis, com a
comoo e a pungncia que o poema provoca), sensvel tambm na recusa dos
efeitos retricos, da eloquncia, da dimenso panfletria13, percebemos que se
trata dum exerccio perfeitamente conseguido daquilo que Fernando Pessoa
prope quando fala da poesia como fingimento:
O poeta um fingidor.
Finge to completamente
Que chega a fingir que dor
A dor que deveras sente.
E os que lem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
No as duas que ele teve
Mas s a que eles no tm.14
66
pblico, a orientao anti-retrica, anti-expansiva, anti-persuasiva, a afectividade contida, a melancolia, a doura e a suavidade do ritmo so alguns dos
recursos que levam os leitores a sentirem a dor [...] que eles no tm, e a captarem assim a frmula dessa emoo especfica15 que eles no experimentaram realmente, mas que imaginam e compreendem apesar disso. E esta sua
emoo eventualmente anloga quela que o seu criador sentiu, por
outras palavras, o seu correlativo objectivo.
Isto : atravs do poema, no poema, o leitor encontra uma forma de intuir
e de conhecer (de algum modo) a vivncia do poeta que originou o poema.
16
Pergunta-se apenas: ser que isso importa ainda ao leitor que foi capaz
de aceder ao poema?
2.
O exemplo da explorao deste texto parece interessante porque temos acesso (ou julgamos ter) s circunstncias biogrficas que esto na origem da
criao literria: a complexa relao afectiva de Fernando Pessoa com sua
me; a frustrao que de alguma forma o fez sentir-se amadrastado da vida,
filho monstruoso do amor natal que se lhe negou17. Conhecemos portanto, neste caso, o elo da cadeia que Eliot considera o enigma insolvel. E
conhecemos o poema. Vemos assim como se digere e transmuta essa matria-prima...
Ocorre contudo perguntar se a resposta que obtemos corresponde nossa
expectativa. O que que o conhecimento das circunstncias biogrficas acrescenta ao conhecimento que a leitura do poema nos d?
Isto : a pergunta sobre a criao artstica deve ser dirigida para este lado
da cadeia (o da relao do autor com a sua matria-prima)?
Ou verificamos agora, ao fazer a experincia do meio do texto, da forma da
sua linguagem, que a resposta no est, ou pelo menos no est inteiramente,
nesse lado da cadeia?
De certo modo, a questo da referncia que ainda se coloca. Importa-nos
saber de que que a obra fala? Ou basta-nos saber o que a obra diz?
Ou seja: pode importar-me pouco saber o que est na sua origem; porque
me importa bem mais aproveitar, gozar, aquilo que a obra me d - a capacidade de entrar no universo que ela me abre. Se esse universo existiu realmente,
67
3.
Porm, devemos tomar conscincia de que, deste modo, se perderam de vista
as importantes questes que estavam por detrs dos estudos dos arredores
da obra, e s quais estes procuravam (mesmo se de forma canhestra) responder. Questes como: o que a criao literria? qual se acrescentava uma
outra (mais ou menos explcita): De que modo a gnese explicativa? O que
que a gnese explica?
Porque, no fundo, o que o biografismo, por exemplo, seno uma forma
de encontrar resposta para esta questo? A criao captar-se-ia nos elementos
68
biogrficos que atravs da expresso a obra conservaria, de modo a comunicarem-se aos leitores.
No decurso dos formalismos novecentistas a focalizao da crtica no texto,
e particularmente na linguagem, acaba por eliminar essa questo. As perguntas passam a ser outras: como que o texto produz este efeito? Como est organizado? Como que funciona internamente?
A ateno ao funcionamento interno (e o deslumbramento com a pesquisa e descoberta desse organismo complexo, rigorosamente regido por estruturas de diversos nveis) fez esquecer (quando no recalcou) a pergunta que
movimentou o estudo da obra literria no sc. XIX porque deslocou o horizonte desses estudos.
Essa pergunta, o que a criao literria?, entendiam-na os oitocentistas
necessariamente ligada a uma referncia, uma origem, uma gnese. A criao
seria iluminada a partir da sua relao com o exterior: a obra e o homem; a
biografia; as influncias; o meio ambiente, etc..
A reaco do sc. XX consistiu em apagar a questo ou desloc-la para o
domnio da linguagem literria. De qualquer forma, as premissas de que partiria qualquer resposta consistiam na negao da relao da obra com o seu
exterior. Cortar o cordo umbilical com a referncia foi o gesto mais radical
que os estudos literrios do sc. XX praticaram (e feito com que violncia! ...)
Contudo, negar toda e qualquer relao, se possvel, no satisfatrio.
(Proust, nas suas reflexes Contre Sainte-Beuve, tem sem dvida razo,
mas apenas duma forma negativa.
E se o referente pode ser expulso da linguagem, ela no prescinde nunca
da funo referencial ...)
por isso que a teoria do correlativo objectivo de Eliot aparece ainda
como uma proposta sedutora: ela congrega um misto de mesmo e de outro,
uma aliana entre proximidade e distanciamento capaz de prometer um esclarecimento que, resolvendo o enigma, no o reduza.
69
NOTAS
1
T.S. ELIOT, Hamlet e Os Poetas
Metafsicos, in: Ensaios Escolhidos. Seleco,
Traduo e Notas de Maria Adelaide Ramos,
Lisboa, Cotovia, 1992.
2
Hamlet, op. cit., p. 20.
3
Idem, ibidem.
4
Idem, ibidem, p. 21.
5
Equivalncia objectiva parece funcionar
como outra designao de correlativo objectivo. Cf. tambm o ensaio Os Poetas
Metafsicos.
6
Idem, ibidem.
7
Precisamos de muitos factos biogrficos.
[...] Teramos de compreender coisas que o
prprio Shakespeare no compreendeu.
Idem, ibidem.
8
Idem, ibidem.
9
Os autores que inspiram o new criticism,
entre os quais T. S. Eliot ocupa um lugar de
destaque, (tal como os formalistas russos, os
crticos da estilstica e, um pouco mais tarde,
ainda os estruturalistas) tinham como horizonte a esttica do romantismo (o conceito
70
de arte como expresso, ou mesmo como confisso) e a forma como a histria literria
positivista dela tinha usado e abusado. Assim,
convergem quase com unanimidade no questionamento da expressividade, no admitindo
a relao directa e imediata que a obra teria
com o real que lhe serviria de modelo, ou que
estaria na sua origem. Da decorre igualmente
a sua discordncia do biografismo.
10
Idem, ibidem, p. 20.
11
Joo Gaspar SIMES, Vida e Obra de
Fernando Pessoa. Histria de uma Gerao,
Lisboa, Bertrand, 1950.
12
Idem, ibidem, pp. 29-30. Vide todo este
captulo, significativamente intitulado O
Menino de sua Me.
13
Recusa que nem sempre a crtica tem compreendido.
14
Fernando PESSOA Autopsicografia
15
T. S. ELIOT, op. cit.
16
Lus de CAMES, E bem aventurado o
sofrimento / que soube ser capaz de tanta
pena, Elegia Aquele Mover dOlhos
Excelente.
17
Cf. SIMES, op. cit., pp. 35-36.
O DELFIM, ou
O Ano Passado na Gafeira
Por mim, no que toca ao modo de narrar, prefiro correr o risco de jamais
atingir o ponto impreciso da clareza a pecar por excesso, ultrapassando-a.
Das duas faces desastrosas do gume, a ltima parece-me a pior porque
resvala para o tom impositivo que anula os valores da sugesto e que
impede a leitura de se tornar em si mesma uma segunda criao.
Jos Cardoso Pires, E Agora, Jos, p. 141.
71
omeamos assim por uma arte potica, que inclui o autor numa linhagem de escritores para quem a economia da escrita ao mesmo tempo
um postulado esttico e uma atitude poltica. Postulado esttico que retoma
um certo eco mallarmeano: suggrer, voil le rve, a conscincia algo aflita de
um Graciliano Ramos a fazer do seu personagem de Angstia o porta-voz da
assero: o resto bagao, ou ainda do poeta Joo Cabral que elege entre os
seus toureiros-poetas, aquele que fala sem deixar que se derrame a flor que
traz escondida ou que recusa na escrita o resto de janta abaianada em prol
de uma fala que se tece com as mesmas vinte palavras, girando ao redor do
sol, que as limpa do que no faca . Com Cardoso Pires a economia ter ainda
certamente uma atitude poltica, como a evitar uma escrita que resvala para
o tom impositivo do conhecimento pleno, da verdade indiscutvel, da lio a
ensinar, fazendo-nos repensar em moldes mais modernos os postulados neo-realistas que abreviam o lastro pedaggico em prol de uma liberdade de leitura que se torna, assim, como ele prprio sugere, uma segunda criao.
Partir desta afirmativa do autor para iniciar uma leitura de O Delfim aponta j o veio de entrada num romance onde a estria est necessariamente comprometida com o prprio ato de narrar, com a economia de uma linguagem
elptica, com o estilo de meada embaraada a fingir o discurso de enqute policial afinal no deslindada, com os entrecruzamentos temporais que fazem ir e
voltar ao ano passado na Gafeira, com a viso privilegiada embora parcial
de um narrador-personagem no onisciente, que prefere apontar os fatos a
concluir sobre eles, deixando tambm ao leitor a sua parte na composio da
trama.
Publicado em 1968, esse romance negocia com atitudes de escrita s aparentemente contraditrias. Se, por um lado, a tradio neo-realista de uma
arte engajada encontrava-se plenamente justificada num Portugal esmagado
pela represso salazarista, pela violncia da guerra colonial, pela Censura das
artes e da imprensa de que o romance, alis, d conta ao falar dos jornais to
lavados que sujam as mos e que no valem de nada a no ser para os desconfiados leitores das entrelinhas (p.149-150), por outro, a ruptura na construo do romance, tpica dos anos 60, no deixava de criar expectativas novas
para uma escrita que se queria sobretudo autocentrada e auto-reflexiva, levando mais em conta o prprio funcionamento da narrativa do que a sua relao
72
com o mundo exterior. O Delfim parece estar na charneira destas duas tendncias que, como veremos mais claramente nos anos 80, podero mesmo
combinar-se sem se excluir num gnero a que se chamar metafico historiogrfica (HUTCHEON, 1992).
A herana neo-realista, em que o romance se faz, de certo modo, o arauto
da revoluo, foi privilegiada no estudo a ele dedicado em 1977 por Maria
Lucia Lepecki1, em que a ensasta pe em evidncia uma estratgia narrativa
de clandestinizao do narrado, isto , em que aquilo que para ela o projeto
central do romance a tomada de posse da lagoa pelo povo da Gafeira aparece quantitativamente minimizado de modo a neutralizar a censura que porventura lesse a obra como um projeto de revoluo vitoriosa tornada possvel.
No que se refere s inovaes da tcnica narrativa, no seria de todo impossvel aproximar essa escrita de um certo nouveau roman verso romanesca e
verso cinematogrfica em que os exerccios e cortes temporais poderiam at
mesmo fazer lembrar algumas narrativas tornadas clebres como LAnne
Dernire Marienbad, em tempero portugus, que exigia mais que um excntrico jogo formal de narrativas entrecortadas. Mas a esto elementos similares, como a autoridade dos discursos na criao da realidade, as constantes
interseces do passado com o presente, fantasmas de tragdias como o homicdio e o suicdio, com maior ou menor peso histrico ou ficcional em cada
uma das obras referidas. Enfim, no romance de Cardoso Pires, a volta do personagem Gafeira, um ano depois, faz nascer uma enqute s aparentemente
policial, j que s aparentemente desejo do narrador revelar a verdadeira
trama do crime, se crime houve, e se foram dois ou apenas um. Jogando com
hipteses, se fosse inteno deste narrador revelar, como num romance policial, as causas e as conseqncias dos acontecimentos trgicos da casa dos
Palmas Bravo, no poderia ele iniciar a escrita antes de ver solucionado o enigma. Numa narrativa policial que se conforme tradio do gnero, o narrador
ou onisciente ou descobre e faz descobrir, no decorrer da narrativa, a chave
do mistrio. Nenhuma dessas opes , no entanto, a escolhida pelo narrador
de O Delfim. Ao invs de solucionar o mistrio, adentra-se ele em outros mistrios paralelos, sonda-os sem decifr-los, faz o leitor penetrar no interior dos
personagens num discurso de hipteses para nos fazer refletir com ele sobre
suas inquietaes, suas frustraes, suas falncias, seus sonhos de poder. Nisso
ele se torna muito mais que um reprter. Se usa provas que lhe chegam ao
73
conhecimento por esta ou aquela via, elabora, para alm delas, outras possibilidades, compondo o quadro em que se inserem os personagens com dados
reais (autos, falas, monografia, caderno de apontamentos) e tambm imaginrios, quando d azo a divagaes e quando, contaminado, talvez, pelos fumos
da lagoa, faz da vidraa de sua janela uma tela onde projeta o filme de sua prpria rverie, palavra que aqui se justifica se levarmos em conta que grande
parte do texto teria sido composta numa noite de viglia, em que os estados de
sono e lucidez se alternam na febre da produo textual. Compe, atravs da
imaginao, cenas a que no pde assistir mas que tenta ver, menos com os
olhos reais, que o tempo, no seu escoar, lhe impediria, mas com os olhos do
devaneio que lhe permitem a inveno de outras possibilidades para o real.
No so tambm deste tipo os discursos que o homem obstinado e grave de
Marienbad parece tecer diante da bela e jovem prisioneira da gaiola de ouro?
Que haveria de verdade nessa realidade que vai sendo construda pelo sedutor?
Afinal toda seduo, todo desvio, antes de tudo um desvio em linguagem, e
o discurso uma seduo donjuanesca.
O que a narrativa deste romance de Cardoso Pires pe em evidncia a
questo do poder, tomando como metfora o ltimo lder do cl dos Palmas
Bravo, Toms Manuel, o Delfim. O epteto, como aponta o dicionrio,
maneira das referncias realeza do passado, tem sentidos bastante coerentes
com o personagem: herdeiro do trono, o golfinho devorador de peixes menores, ou ainda o bispo no tabuleiro de xadrez. As artimanhas da histria e da
construo romanesca destronaro esses prottipos do poder e o personagem
de Toms Manuel da Palma Bravo se revelar aos poucos, ironicamente, bispo
em xeque, golfinho devorado e herdeiro sem poder.
Esse processo de desmontagem do mito , possivelmente, um dos exerccios polticos mais bem conseguidos da escrita do romance que acaba por
reverter os trs mandamentos da opresso Vinho por medida, rdea curta e
porrada na garupa (p.269) considerados infalveis para a eternizao de um
projeto ad usum Delphini. Aos discursos de ratificao da ordem intemporal,
em que assoma de modo indiscutvel a Monografia do Termo da Gafeira, sucede um romance O Delfim que assinala, embora de modo no dogmtico
nem pedaggico, o aniquilamento do mito em proveito da histria. Em outras
palavras, e para retomar um cone textual, a lagartixa se move, desperta, d um
salto, contrariando a ordem esttica e anti-revolucionria, que eterniza os
74
Frente a frente estaro, portanto, dois textos, dois discursos em luta, o primeiro que ratifica o poder, o segundo que insidiosamente narra a sua falncia e o
exerccio de uma revoluo: a escritura que aponta o novo, fazendo face
Escritura sagrada que ratifica a ordem. Que a revoluo se torna possvel
quando as estruturas de fora do modelo anterior demonstram sinais de
degradao, fato incontestvel. Como se a estrutura familiar da linhagem dos
Palmas Bravo fosse o microcosmo da estrutura social, a sua dissoluo leva
consigo a dissoluo dos valores que a sustentavam e que regiam o poder no
interior e para alm do ncleo familiar. No romance, esse intervalo do processo revolucionrio datado e dura exatamente um ano, porque simbolicamente a presena do personagem-narrador na Gafeira se d em dois anos seguidos
no dia oficial de abertura da temporada de caa. Ele , pois, um narradorcaador de estrias e de aves, que assiste ao apogeu de um domnio e narrativa de seu apagamento, situando-se num espao especialssimo de observao
a janela da penso de caadores que d para a praa da Gafeira e num
tempo de revoluo o dia dos festejos da posse da lagoa pelo povo da Gafeira.
Desse tempo e desse espao presentes passamos entretanto continuamente,
atravs do discurso da memria memria escrita do caderno de apontamentos do Escritor ou reavivada oralmente pelos relatos de habitantes especiais da aldeia: a hospedeira, o Regedor, o velho das Lotarias , a um espao e
tempo passados em que se vo buscar as justificativas para a inaugurao do
tempo novo. Entre esses tempos a narrativa se tece, muitas vezes de forma
75
76
ou dos apontamentos do seu caderno. Para a prxima, diz ele, terei o cuidado de escolher outra leitura, de preferncia um canto de alegria. que o
tempo da Grndola ainda estava por chegar.
NOTAS
1
Maria Lcia LEPECKI, Jos Cardoso Pires,
Lisboa, Moraes, 1977.
77
HONRA E PAIXO
versus
Vilma Aras
PASSION ET VERTU
Universidade de Campinas
(Unicamp)
78
entre a invaso napolenica e o Ultimatum ingls. A tarefa imensa que se colocava aos intelectuais de ento era a de transformar tal pas segundo o modelo
da Frana.
Quero deixar claro que as demais literaturas europias suportavam mal a
comparao com a francesa na comprenso do mundo moderno em seus alvores, embora no na mesma medida que a portuguesa ou, mais ainda, a brasileira dos finais do sculo XIX. o que nos mostra Auerbach5 no fecho de seu
extraordinrio ensaio sobre as razes do realismo moderno, visveis tanto na
forma quanto no assunto das narrativas. Por exemplo, a iseno do narrador
flaubertiano, a compreenso da tragicidade que habita seres humanos menores, isto , de baixa formao espiritual e/ou de baixo nvel social (Stendhal
inaugura esse realismo com seu Julien Sorel), a estupidez derivada dos incios
da massificao, a que Flaubert foi sensvel, anotando ecletismos de toda
ordem, e o reinado do lugar-comum esses traos modernos no os encontramos nem na Alemanha, onde as figuraes eram sempre locais e mais estticas, nem na Inglaterra que, embora apresentando a mesma evoluo a respeito do novo realismo, tambm exibia um conjunto concebido de forma mais
moralista, s vezes meio sentimental ou meio satrico semelhana do sculo
XVIII, mantendo-se afastado portanto da seriedade problemtico-existencial
do sculo XIX.
Essas observaes funcionaro como pano de fundo a elas retornarei
na aproximao de Flaubert e Ea de Queirs. Mais explicitamente, nos laos
que unem O Primo Baslio a uma novelinha escrita pelo romancista francs,
intitulada Passion et Vertu6, isto , Honra e Paixo que, como se sabe, o
ttulo do dramalho escrito pelo personagem Ernesto Ledesma, e que funciona at certo ponto como espelho invertido do texto de Ea.
Durante muito tempo julguei que a inspirao mais prxima de O Primo
Baslio tivesse sido Passion et Vertu e no Madame Bovary ou Eugnie
Grandet, conforme aluso do prprio Ea, atravs do comentrio de Julio.
Passion et Vertu foi escrito em 1837, quando Flaubert contava apenas 16
anos. No texto, o adolescente Flaubert faz brilhar dois grandes olhos negros
que, segundo M. J. Bruneau, poderiam ser aqueles de Madame Schlesinger,
esposa de um editor de msica, modelo da Madame Arnoux da Educao
Sentimental, e smbolo da mulher amada porm inacessvel. O texto tambm
faz parte das assim chamadas Primeiras Obras do escritor, ao lado da primeira
79
80
nos contos morais e nas comdias de segundo time. Agora um homem avana para uma mulher, cobia-a, faz uma aposta com os amigos; se ela casada,
melhor ainda. D. Juan substitura Lovelace.
Em seguida Flaubert descreve o andamento do enredo: este homem introduz-se na casa da mulher, empresta-lhe romances, leva-a ao teatro, mostra-se
diferente, faz-se amigo da casa, do marido, dos filhos, dos criados. Pretende
que ela se enamore, seja pelo cime, pela vaidade, seja pelo corte da roupa,
pela elegncia da gravata ou das botas. E se a mulher pretende afastar-se, percebendo a armadilha, ele pode amea-la de tornar pblica uma certa carta;
pode mesmo chegar ao extremo de repetir ao marido palavras ditas num
momento de vanit, de coquetterie ou de dsir. Ao final, aps muitas humilhaes ele a abandona brise et abattue son infortune. Mas ele um homem
de sorte: conseguiu ganhar a aposta.
Ora bem, embora o tema da mulher adltera tenha se tornado insistente a
partir do sculo XVIII, existem pormenores coincidentes e significativos entre
Passion et Vertu e O Primo Baslio. Vejamos.
Em primeiro lugar, o ttulo comum da novela de Flaubert e do drama de
Ernestinho, Honra e Paixo, a que se segue a coincidncia dos nomes:
Ernesto chama-se o sedutor de Passion et Vertu, assim como o autor de
Honra e Paixo. O movimento do par supostamente amoroso segue o
mesmo compasso binrio: de um lado a seduzida, que despertada para a prpria sensualidade, de outro o sedutor, para quem tudo se passa calculadamente. Ernesto ou Baslio so especialistas, a seduo uma arte, existem receitas,
regras, necessrio golpe de vista, como nas caadas, talvez o talento seja tambm necessrio.
No podemos tambm esquecer o clima de aposta entre Baslio e Reinaldo
a respeito da vitria do primeiro sobre a fraca resistncia de Lusa; quando esta
afinal cede, o comentrio dos dois homens um pequeno trecho em off se
desenrola durante um jogo de bilhar. H ainda a referncia possibilidade de
chantagem com uma carta.
Alm desses pormenores da trama e da recorrncia de alguns motivos, h
ainda uma questo formal que envolve os alicerces de sustentao do enredo.
Foi isso o que mais me interessou. Trata-se do carter esquemtico, excessivamente didtico do texto, que se faz algumas vezes visvel em Ea, no por
acaso, mas em obedincia ao projeto naturalista. Em segundo lugar, recorda-
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83
NOTAS
1
84
OS MAIAS E A VERACIDADE
Helder Macedo
DA INVEROSIMILHANA
Universidade de Londres
Kings College
85
Naqueles dois romances, que so sem dvida os supremos exemplos do realismo de escola em lngua portuguesa, a prodigiosa criatividade de Ea de
Queirs serviu a sua ideologia. NOs Maias o contrrio que acontece: a ideologia um suporte de criatividade, e o resultado um obra realista que, ao
mesmo tempo, transcende todas as categorizaes de escola literria.
E no entanto, nOs Maias, nem a capacidade de Ea de Queirs criar situaes dramticas e personagens memorveis maneira realista menor do que
havia sido, nem a sua ideologia poltica diferente. A profunda originalidade
dOs Maias de outra ordem: metodolgica, estrutural. No que respeita s
suas opes ideolgicas, a verdade que o realista Ea de Queirs manteve
uma considervel coerncia at as suas ltimas obras, mesmo quando, no aparente escapismo arcdico dA Cidade e as Serras, constri de facto uma alegoria proudhonista sobre os malefcios alienadores da propriedade contra as virtudes regeneradoras da posse, ou quando reitera esses mesmos valores guisa
de vidas de santos. O pensamento poltico de Proudhon tambm subjaz ao
mais complexo realismo desenvolvido por Ea de Queirs nOs Maias, muito
especificamente no que respeita distino entre propriedade e posse. Para o
carismtico socialista francs, recorde-se, a posse era a condio bsica da vida
social, um direito; e a propriedade, na sua famosa formulao, o roubo,
contra o Direito, o suicdio da sociedade. Assim, segundo Proudhon, o dono
da terra s se tornaria no seu legtimo possuidor se ele prprio a trabalhasse,
enquanto que o dono ausente das suas terras, tal como o usurrio ou o herdeiro de bens ganhos por outros, era o seu indevido proprietrio. E d depois
um provocativo exemplo, que se tornou responsvel por uma pltora de
romances medocres: o amante o possuidor, o marido o proprietrio.
De facto no de uma perspectiva ideolgica que se pode dizer que Ea de
Queirs tenha sido um grande inovador nOs Maias. Por um lado, seguindo o
organicismo spenceriano de Oliveira Martins, o romance faz a representao
literria de Portugal como um organismo doente, e disso mesmo h um eco
evidente na frase irnica de Afonso da Maia sobre o dever patritico de saber
curar num pas onde a ocupao nacional estar doente. E por outro lado
trazendo ao organicismo um correctivo poltico mais radical Os Maias tambm faz uma caracterizao complementar da propriedade, no sentido proudhoniano, como o suicdio de sociedade, desse modo transferindo o problema
do plano das inevitabilidades inelutveis para o da responsabilidade social.
86
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A tcnica tradicional do romance realista consistia na colocao de personagens relevantes em situaes adequadas sua manifestao e na justaposio significativa desses efeitos (como lhes chamava Hippolyte Taine) para
construir um todo semntico de partes interligadas. A estratgia literria
desenvolvida por Ea de Queirs nOs Maias levou essa metodologia a um
extremo lgico que, no entanto, se torna qualitativamente diferente. Criou
uma estrutura narrativa em que a justaposio significativa transformada
num novo tipo de inter-referenciao subliminal, que resulta num sugestivo
efeito de dj vu, criado atravs de paralelos temticos e conceptuais entre personagens e situaes nem sempre relacionadas que se vo duplicando como
imagens umas das outras em diversas fases do romance. O efeito totalizante
a criao de um retrato de conjunto, se bem que feito de partes individualizadas e vividamente desenhadas. Darei alguns exemplos concretos, que sempre
a melhor maneira de comentar os processos de criatividade artstica.
O arriviste social Dmaso Salcede, de caricaturais aspiraes parisienses,
uma verso grotesca do dandy Carlos da Maia, o qual por sua vez olha para o
superiormente britnico Craft como um modelo de bom gosto, e vai acabar os
seus inteis dias num estereotipado Paris de opereta. O excessivo poeta ultraromntico Toms de Alencar, que quere menina e teria desejado usar a sua
derivativa poesia como um instrumento de seduo, tem o seu equivalente
ultra-realista no no menos excessivo aspirante a escritor Joo da Ega, que usa
a sua potencial criatividade literria para tentar seduzir, com igual insucesso, a
mulher de um suposto amigo. Correspondentemente, Carlos da Maia vai ter
acesso sexual Condessa de Gouvarinho e a Maria Eduarda por via da sua
nunca assumida profisso de mdico, no caso da primeira a pretexto do filho,
no caso da segunda por causa da filha. As ambivalncias de Afonso da Maia em
relao aos seus ideais polticos de juventude so ecoadas nas ambivalncias do
neto em relao aos seus ideais profissionais. O tema do incesto est prefigurado nas preparaes para o baile de mscaras onde a ento amante de
Carlos, a Condessa de Gouvarinho, tenciona ir vestida de Margarida de
Navarra, e ele mascarado do irmo, Francisco I. A fantasia de Carlos fugir para
a Itlia com Maria Eduarda corresponde fuga de Maria Monforte com o seu
prncipe italiano. A repugnncia de Carlos pelo perfume de Maria Eduarda
quando fazem amor depois de ele saber que so irmos remete ao seu sbito
desagrado pelo perfume da Condessa de Gouvarinho quando ficou dela
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SINOS E LEMBRANAS:
Ecos de Dois Romances
Angolanos Finisseculares
O sino dobra por quem pensa que por ele o faz; [...] Nenhum homem uma
ilha completa em si mesma; todo homem um pedao do continente, uma
parte da terra firme. Se um torro de terra for levado pelo mar, a Europa
fica menor como se tivesse perdido um promontrio, ou perdido o solar de
um teu amigo, ou o teu prprio. A morte de qualquer homem diminui a
mim, porque na humanidade me encontro envolvido; por isso, nunca perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti
John Donne, 1624, traduzido por Paulo Vizioli.
a sala escura, um grupo de quase adolescentes brasileiros segue o infinito sofrimento do Ingls ou Jordan , inscrito na longilnea e tensa
figura de Gary Cooper. O personagem vive seu momento final, tentando, antes
de se deixar abater pela morte, atingir, com sua arma, o chefe do grupamento
fardado que se locomove ao fundo da cena. De repente, a tela escurece, rasurando a imagem em preto e branco. Parece ter chegado o fim de Jordan e do
filme. Mas a imagem se vai reabrindo, com a projeo, no cran, de um enorme e cinzento sino. E ele dobra, dobra...
Alguns anos depois, foi a vez de o romance de Ernest Hemingway (1940),
origem do roteiro do filme de Sam Watson (1943), ser lido e discutido por
outro grupo, de jovens estudantes de Letras, que, vidos, viam nas palavras de
Marx para eles um quase novo testamento o anncio da chegada da revoluo. Vivia-se o fim da dcada de 50, com suas utpicas promessas. E a luta de
Jordan em Por Quem os Sinos Dobram alimentava nossa espera, assim como
tambm o fazia, com suas aulas transformadoras, a jovem professora Cleonice
Berardinelli, a maga dos textos portugueses e a madrinha de nossas esperanas.
No gratuita, pois, a escolha por comear este texto de agora, com uma
volta no tempo, como forma de homenagem a quem, deixando Portugal,
caminhou por quatro anos comigo pelas sendas dos textos angolanos, da a
razo para que eles sejam aqui convocados.
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neiras, mas com olhar esgazeado pela fome, perambula sem rumo pelas ruas
das cidades. De pouco adiantou o momento de alegria de ganharem uma bandeira, como cantaram Andr Mingas e Manuel Rui.
Elejo assim, como metonmias possveis dessa nova fico, os textos
Parbola do Cgado Velho (1996), de Pepetela e Maio, Ms de Maria (1997) de
Boaventura Cardoso. Eles tematizam todo um quadro de enfrentamentos e
runas pelo qual se reduz, como bem postula o brasileiro Frei Betto, a distncia entre o desejvel e o possvel (1999, p. 17). Ambas as obras, ao optarem
por uma forma de representao alegrica, transformam-se duplamente em
parbolas, palavra que no por acaso abre o ttulo da obra de Pepetela. Elas so
parbolas, de um lado, por significarem, como na tradio oral, um compromisso tico com os receptores, uma forma de colocar em circulao um ensinamento moral, indispensvel para a continuao do grupo como tal. So-no
tambm porque, recusando-se a deixar de ser uma arma de combate, disparam seus projteis que descrevem outras espcies de curvas ou parbolas
no cu da histria. A este propsito, ao propor uma leitura do romance de
Pepetela, tambm enfatizando a questo da alegoria e entretecendo-a com a
fbula e a parbola, afirma Carmen Tind Secco o que j agora estendo para
Maio Oscilando entre a parbola, a fbula e a alegoria, o texto de Pepetela
apresenta uma estrutura dramtica bem tecida, capaz de enfatizar os conflitos
histrico-sociais vividos por Angola (1998, p. 256).
Optam as duas formas romanescas, nesse sentido, por cenarizarem a runa
e a devastao criadas pelas guerras internas que impedem a construo plena
da nova nao que, desde 1975, Angola. Sem se fechar marcadamente em um
acontecimento histrico definido, embora nos faa intuir tratar-se do enfrentamento atual entre o MPLA e a UNITA, Pepetela se decide pela representao
em aberto, enquanto Boaventura escolhe, desde o ttulo, o momento poltico
de ruptura da solidez ideolgica do Movimento Popular de Libertao de
Angola, representado pelo fraccionismo do 27 de Maio de 1977, liderado por
Nito Alves, Jos Van Dnen e Sita Vales.
Tais enfrentamentos, de modo geral, rasuraram, e ainda rasuram, a noo
de quem ou onde est o inimigo, mudando as regras do jogo do ns e dos
outros ou ainda, como diz um personagem de Parbola, fazendo com que no
se saiba mais quem ou quais so os nossos dos outros (1996, p. 100).
Conforme se reitera em Maio, cresce a desconfiana entre ns e eles (1997,
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com isso, a velha estrutura poligmica, banida pela nova ideologia vigente.
Impulsionada por sua juventude e pela fora do sonho de Calpe (cidade imaginria e mtica surgida pela primeira vez em Muana Pu (1978), do mesmo
Pepetela), deixa o pequeno quimbo e desaparece, levando o marido a imergir
na outra dor, a profunda, a que no mais o abandonaria (p. 128). Mas
Munakazi, quase ao fim da narrativa, volta, dando oportunidade a que o narrador, com seu saber s de experincias feito, assim nos relate tal regresso:
A Muari parou de varrer, para contemplar aquela suspeita de
mulher que tomou o carreiro de entrada do kimbo. Um esqueleto
desgrenhado e andrajoso, um cazumbi, sem dvida. A Muari estava velha e muito j tinha visto, por isso no deu o grito histrico que
muito homem e mulher dariam ao serem confrontados com um
esprito descarnado como aquele. (p. 168)
Por sua vez Zefa, esposa de Segunda, morre subitamente na viagem de fuga de
Dala Kaxibo para Luanda. O seu esprito, porm, no deixa a nova casa familiar, talvez aprisionado pelo profundo amor do marido cf. por exemplo, a
pergunta muda do amigo: era normal assim to tanto amor? (p. 183). Joo
entabula com a morta longas e demoradas conversaes; por isso mesmo, o
narrador, em sua oniscincia, vai mostrando a perplexidade dos outros frente
ao fato de o personagem continuar a conviver com o esprito da mulher, glosando, com seus comentrios griticos, a forte influncia dela sobre ele
Apesar de fisicamente morta, Segunda lhe conhecia bem pelo tom
de voz se ela estava bem disposta, o que ela queria dizer quando
levava muito tempo a lhe responder [...] assim ele que ficava a saber
quando ela lhe dava anuncia para certos assuntos, ou quando ela
discordava [...]. No fundo se podia dizer dona Zefa defunta falecida
quem que tomava decises mais importantes dos moradores do
Bairro do Balo. Quem que sabia era s ele, mais ningum. Eh! Eh!
Eh! Podia ser? (p. 113-114)
O mundo fantasmagrico se estende pelos quatro cantos do contado, sobretudo cenarizao externa, to morta quanto Zefa e to espectral como
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mente conhecia [...] chorou muito sofrido ao ver ningum nas sanzalas, ningum nos campos, tudo abandonado, o total vazio [...].
Fora na antiga casa dele e lhe encontrou devastada, portas escancaradas, o tecto reduzido a algumas vigas de madeira, paredes demolidas [...] que Segunda confirmou: o vendaval tinha afinal chegado
nas terras dele de l em Dala Kaxibo, e tudo ventara muito varrido.
(Maio, p. 183-184)
O cheiro de plvora e queimado; as nuvens de fumo; a destruio do Vale da Paz;
o total vazio; a devastao e o vento a varrer tudo. Ao invs da aurtica esperana contida na meditao de Donne, na beleza plstica do filme de Watson e/ou
na mensagem de Hemingway, inscrita sobretudo na figura de Jordan, encontram-se, nos textos ficcionais angolanos desse fim de sculo, a desolao, o despedaamento, a devastao e a perda. Esfacela-se a terra, contando o fim da beleza do mundo. Rasura-se o sentido do conhecido, suspende-se a prpria temporalidade. Nasce disso a importncia simblica dos momentos de encontro entre
Ulume e o velho cgado da Munda que, como explica o texto, outra forma de
dizer montanha (p. 11), ou seja, movimento para o alto
um momento especial a meio da tarde em que tudo parece parar
[...]. Como se a vida ficasse em suspenso, na luminosidade dum cu
enxuto. [...] um instante de beleza, pois v o mundo parado a seus
ps. Como se um gesto fosse importante, essencial, mudando a
ordem das coisas. Odeia e ama esse instante e dele no pode escapar. (p. 12)
A aluso ao instante de beleza e importncia do gesto nos remetem frase
de Jordan, grandeza de sua ao solidria em oposio contemplao solitria de Ulume. Mas no estamos mais em tempos de certezas; por isso, as coisas j no so, mas se organizam como se fossem. O amor transita para seu
contrrio, o dio. A ao no uma escolha do sujeito, da no poder escapar do instante suspensivo. No se tem mais a conscincia de pertena ao
conhecido ou tangvel do mundo. Mas se vive a estranheza, representada, no
caso de Segunda, por Finisterra, lugar que no tinha geografia (p. 135).
Ope-se, assim, ao sonho de Calpe, tal como aparecia em Muana Pu e que,
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que, como eles, brota da terra-me. Volto a Benjamin: As inspiraes da me-terra despontam aos poucos para o melanclico, durante a noite da meditao, como tesouros que vm do interior da terra (ibidem, p. 175).
So tais tesouros que Boaventura e Pepetela insistem em descrever, como
que para acordar a terra arrasada em seu exterior, transfundindo-lhe sua prpria seiva simblica de que, por exemplo, a beleza da Munda ou as paisagens
naturais de Maio so as grandes projees plsticas. Lembrando o passado
que, embora precrio, fora vivido em estado de felicidade, os ficcionistas o
transformam no par do futuro, para poderem ainda acreditar um pouco no
presente. Este, dentro da correlao de foras ideolgicas dominantes que
negam o passado e barram o futuro, s se permite representar, enquanto no
receber a fuso da seiva realimentadora da esperana, pela fragmentao alegrica e pelo olhar saturnino.
Os dois romances, assim, se aproximam de uma forma de representao
que, sendo demarcada temporalmente, se pode aqui reafirmar como uma
idia, mais do que como uma escola literria restrita. Refiro-me, ainda e sempre com Benjamin, ao Barroco. Interessante que, at do ponto de vista lingstico, ou seja, da natureza hbrida do discurso, que transita entre letra e voz,
se pode pensar nessa aproximao. Diz Srgio Paulo Rouanet, na apresentao
da Origem que o Barroco
[...] j conhecia essa tenso entre nome e palavra, sob a forma de
uma oposio entre a linguagem oral, livre expresso da criatura, e
essencialmente onomatopaica nomeando assim as coisas com o
nome que verdadeiramente lhes corresponde e a linguagem escrita, reino das significaes, sobre as quais pesa toda a tristeza do
homem exilado. (1984, p. 17)
Esse exlio, a conscincia do precrio e do apenas transitrio, a melancolia,
enfim, nos levam a poder opor o mundo das certezas ficcionais antigas ao das
controvrsias finisseculares. Voltando a Jordan, como metfora da f na vitria final e, conseqentemente, s narrativas angolanas que exaltam essa mesma
certeza, possvel pensar que, na cena aludida atrs, o personagem de
Hemingway no volta seu olhar para baixo, mas mira, reto, o ponto distante
onde est o inimigo que precisa abater. O mesmo se d com a dramtica cena
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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
BENJAMIN, Walter. Origem do Drama
Barroco Alemo. Traduo, apresentao e
notas de Srgio Paulo Rouanet. So Paulo:
Brasiliense, 1984.
CARDOSO, Boaventura. Maio, Ms de Maria.
Porto: Campo das Letras, 1997.
COUTO, Mia. Entrevista. Tempo. Maputo, 12
out. 1986.
DONNE, John. Meditao XVII. In: John
Donne, o Poeta do Amor e da Morte.
Introduo, seleo traduo e notas de Paulo
Vizioli. So Paulo: J. C. Ismael, 1985.
FREI BETTO. Patologia do Poder. O Globo.
Rio de Janeiro, 15 jan. 1999. 1 Caderno.
HEMINGWAY, Ernest. Por Quem os Sinos
Dobram? Traduo de Monteiro Lobato. So
Paulo: Nacional, 1941.
MARIN, Louis. Lectures Traversires. Paris:
Albin Michel, 1992.
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de Ea de Queirs, e
de Helvcio Ratton
m O Prazer do Texto, Roland Barthes estabelece uma interessante distino entre texto de prazer e texto de gozo: o texto de prazer vem da recepo instintiva, do re-conhecimento daquilo que integrante do modelo, de
uma assimilao passiva do que o texto oferece. Quando a sua recepo apresenta diferenas, atualizaes de uma inteligncia criadora, num modelo reconhecido, transforma-se, segundo Barthes, em texto de gozo. Gozo que
decorre de convergncia da sensao com a inteligncia e sucede percepo
de que o texto resultado de uma recriao atualizadora. O gozo ser portanto resultado de uma percepo mais abrangente do que aquela que causa o
prazer, pois ter a capacidade de prolong-lo no tempo. S poder obt-lo
esse gozo quem for capaz de encontrar no objeto o que est alm de sua epiderme, quem no se satisfizer com a emoo agradvel, quem fizer atuar a
inteligncia, tornando a percepo um ato vlido de aprendizagem. Em outras
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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
BARTHES, Roland. Le Plaisir du Texte. Paris:
Seuil, 1973.
LEPECKI, Maria Lcia. Ea na Ambigidade.
Fundo: Ed. Jornal do Fundo, 1974.
QUEIROZ, Ea de. Alves & Cia. Rio de
Janeiro: Imago, 1994.
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MULATA E HISTRICA:
um Retrato Brasileiro
de Carlos Malheiro Dias
Ela no era bonita! Uma beleza vulgar de soldado, dessas que podem levar um cadete
a matar a pranchadas um clarim do regimento
No era s morena, como pensara, tinha o sangue mau da raa negra,
mas parecia ter um cabelo admirvel, fino como seda, liso, basto e castanho.
Os dentes eram brancos, iguais, mas chatos como os de uma gata.
O rosto tinha sardas que o crme Simon e o p-de-arroz escondiam a furto.
Ela tambm no parecia fazer um grande empenho em velar os seus defeitos.
Os lbios eram vermelhos como flores de lcea, e o nariz, como o dos felinos
e das voluptuosas, abria de contnuo umas ventas frementes de animalejo feroz.
Tinha nos gestos o abandono e a preguia da crioula. Era indolente at no falar.
Os seus peignoirs largos, de grandes mangas e sem cinta,
nada lhe deixavam adivinhar do corpo.1
om estas palavras nos apresentada a mulata que d o ttulo ao romance publicado em 1896, no Rio de Janeiro, por Carlos Malheiro Dias,
portugus ento residente no Brasil, impresso por primeira vez em Portugal,
com um excelente prefcio de Alexandre Pinheiro Torres, em 1975, em edio
comemorativa do centenrio do nascimento do autor.
A natureza desta mulata, que o narrador apresenta como uma mulher no
bonita que tinha o sangue mau da raa negra, caracterizada repetidamente
como de selvagem, levar, no desenho do romance, o protagonista branco,
idealista, poeta e romntico pelos caminhos do vcio e da nevrose. Mas, em
terras do Brasil, o escritor portugus no o nico a recrear-se neste tipo literrio de mulher. Num volume recentemente publicado no Brasil (Histria das
Mulheres no Brasil, So Paulo, 1997), a historiadora Magali Engel apresenta
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por Otelo: Em uma mulher podia haver uma alma assim bravia, ferina, brbara, selvagem como a confuso de uma batalha4.
Ter o sangue de frica e ser mulher parecem, pois, constituir duas condies cuja convergncia produz seres brbaros, selvagens, intrinsecamente
maus, covardes, perversos. Deste modo, os pressupostos do romance naturalista francs - que determinava os comportamentos humanos a partir de causas
como a hereditariedade e o meio - serviam, sem qualquer pudor nem escrpulo, a natureza racista e misgina deste jovem escritor portugus, filho de um
portugus e de uma brasileira. (Teria esta me brasileira sangue de frica?)
Entretanto, o narrador tinha tambm dado conta de uns olhos fundos e
negros de mulher que, num restaurante, se posavam sobre os olhos do seu
jovem poeta decadente. Mas a metfora a que recorre para dar essa imagem
j significativa do papel que lhe vai caber dona desses olhos at ao final do
romance: os olhos fundos e negros caram placidamente sobre os dele, como
duas guias que vergam asas e descem devagar sobre a presa.5
Claramente explicitadas, pois, as suas ideias sobre a matria, isto , os seus
juzos sobre o sangue africano, sobre as mulheres e sobre estes olhos negros, o
narrador introduz, por fim, no incio do captulo IV, a mulher a quem deu
honras de ttulo, no com o nome de Honorina que o seu mas, simplesmente:
A Mulata.
A longa apresentao que ocupa cerca de duas pginas acaba por ser antolgica se recordarmos as apresentaes de mulheres negras a quem escritores,
pintores e cineastas recusam chamar bonitas, mas cuja sensualidade promete, segundo quem as apresenta, mundos de orgia e de lascvia. Comeando
precisamente, como ouvimos, com a afirmao de que ela no era bonita,
julga-a imediatamente como uma beleza vulgar de soldado (dessas que
podem levar um cadete a matar a pranchadas um clarim do regimento). E
surge o momento de aplicar nesta apresentao as ideias que to claramente
tinham sido expostas sobre o sangue de frica e as mulheres: No era s
morena, como pensara, tinha o sangue mau da raa negra. E lbios, nariz, gestos, olhos, dentes apresentam-se contaminados pela mesma origem que, neste
estereotipo racista, se apresenta, ao mesmo tempo, indolente e feroz: tinha
nos gestos o abandono e a preguia da crioula. Era indolente at no falar
escreve o narrador mas, ao mesmo tempo, esses olhos esto cheios de uma
profunda escurido de tempestade, prometendo relmpagos.
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Como tambm no nos espanta, ainda que nos repugne, saber que, desde meados do sculo, a histeria era primordialmente associada ao ser feminino e
sexualidade ou afectividade da mulher.
Mas h mais. Era tambm associada a um determinado tipo tnico de
mulher. A mesma investigadora d conta da primeira tese sobre histeria,
defendida na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1838, e nela descobre como o seu autor tenta fazer corresponder o tipo histrico a um determinado tipo de mulher onde, como se ver, se destacam os traos da cor negra.
No tem desperdcio a descrio:
As mulheres nas quais predominar uma superabundncia vital, um
sistema sanguneo ou nervoso muito pronunciado, uma cor escura,
ou vermelha, olhos vivos e negros, lbios dum vermelho escarlate,
boca grande, dentes alvos, abundncia de plos e de cor negra,
desenvolvimento das partes sexuais, esto tambm sujeitas a sofrer
desta neurose.8
Se retomssemos a apresentao que, no incio do captulo IV, o escritor portugus, perdo, o narrador faz da protagonista do seu romance, a mulata brasileira Honorina, veramos como esta parece ser feita para corresponder numa
enorme medida tipologia aqui traada.
No antepenltimo captulo, pouco antes de morrer o protagonista masculino cuja paixo pela mulata e sua convivncia com ela o tinham levado pelos
caminhos do vcio, da imoralidade, da instabilidade, da desgraa, sempre na
perspectiva do narrador, este comea um longo comentrio, sentenciando que
a natureza nervosa de Honorina tinha actuado de uma maneira decisiva em
Edmundo.9. Mal-educada, inconstante, mentirosa, com acessos de raiva,
frias, exigncias, tem outros homens, mulheres tambm
Certo dia, depois de uma noite levada a ouvir insultos por parte da sua
amante, Edmundo procura um amigo, Emlio, a quem vai pedir dinheiro; este
sugere-lhe que deixe essa caipira, que falam dele pelas ruas, que j no estuda,
j no escreve, j no tem emprego, j s vive de emprstimos, terminar na
polcia. E posto que toda a culpa da mulata, no h seno deix-la. E o argumento definitivo , de novo, a cor: Se ela fosse bonita, ao menos, se valesse um
sacrifcio Mas uma cabocla, uma mulata! Sabes que mais? At me pareces
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parvo com esses amores com uma mestia baixo, sujo Amar uma
mulher por cima de quem j passou toda a rua! Lembra-te s dos tempos que
ela esteve com o portuga do marido, um homem branco, vendeiro, de barbas
sujas, uma cara denegrida pelo sol, quando trabalhador da Estrada de Ferro10.
Esta argumentao, sustentada pelo amigo de Edmundo, traz-nos outros elementos ou, pelo menos, uma associao que quero destacar: os preconceitos tm
como objecto no s a cor da mulher mas tambm a condio de operrio e de
vendeiro do que tinha sido seu marido, assim considerado de baixa condio apesar de branco. O romance de Carlos Malheiro Dias veicula, deste modo, no s
uma ideologia racista, baseada nos elementos de cor, mas tambm uma atitude
classista baseada nas condies scio-econmicas: est completo o panorama.
Por outro lado, o que faz esta personagem invocar o passado de
Honorina. Viu-se j como, no quadro dos pressupostos naturalistas, Carlos
Malheiro Dias privilegia, a partir de uma ideologia reaccionria, o factor biolgico, isso a que chama o sangue e que , tambm, na sua ideologia, a raa
e a cor. A apresentao do meio no qual Honorina tinha crescido, e que tanto
teria interessado outros naturalistas, ele s a faz muito tarde j, no mesmo
captulo XV e antepenltimo do romance, um pouco antes das palavras de
Emlio que escutmos h pouco.
Pois bem, na apresentao do nascimento e da meninice da mulata, o escritor recorre, num primeiro momento, no ainda a um modelo urbano-naturalista maneira de Zola mas sim ao modelo das descries exticas, sobretudo
dos espaos americanos, em que tanto se tinham os romnticos empenhado.
De novo, o modelo francs e nem sequer seria necessrio que o narrador
comparasse Honorina a uma pequena tala vadia, como de facto o faz11, para
que nos dssemos conta de que bebeu em Chateaubriand uma boa parte dos
elementos que aqui utiliza. Assim, a futura mulata histrica do seu romance
representada, na fase da infncia, passada na roa, como um pequeno bom
selvagem, criado no meio da natureza. De qualquer modo, sempre e naturalmente selvagem. Num segundo momento, viro os elementos familiares que
convertem rapidamente a pequena num ser de traos negativos: a pobreza em
que criada, a promiscuidade dos pais e irmos na casa, as punies paternas.
E, de novo, o narrador invoca todos os seus instintos de cabocla e a sua selvageria de ndia vadia e nmada na origem de um temperamento desconfiado e humilde de cadela, erradia, medrosa.
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a partir dos onze anos, ao ser enviada para trabalhar em casa de uma costureira, que a mulata, nesse meio vicioso, se converte numa mulher vida de
homem. Mais tarde, casa com um portugus que lhe batia, enciumado do seu
corpo escaldante e novo de mulata. Pouco depois, j amante de um artista de
circo, a mulata () refocilou-se na luxuria como um jaguar no cio, deixando-se enlanguecer, prostrada, entregando-se num furor, desprezada mas ajeitando na infmia um leito tpido, grunhindo de gozo na sua lama como uma
porca no chiqueiro12. E esta a imagem de Honorina que o narrador de forma
obsessiva nos tinha dado ao longo da sua relao com Edmundo. E a imagem
que vai sustentar at consider-la histrica, por culpa do seu sangue africano.
Volto, pois, s perguntas que formulei no incio:
1. Que fiabilidade apresenta este tipo de texto literrio como fonte para o
conhecimento da condio da mulher? Como trabalhar esta fiabilidade?
2. Em que medida se trata, no caso de A Mulata, de um olhar portugus,
um olhar literariamente europeu, sobre as mulheres da Amrica Latina? Ou
tratar-se-, apenas, de um olhar racista e reaccionrio?
So estas algumas das perguntas que quero partilhar com quem me ouve.
Outras, outros matizaro certamente a minha recepo que, bem o sei, extremada. E acrescento reflexo apenas um dado mais. Quinze anos antes da
publicao deste romance, A Mulata, publicou-se no Brasil um outro romance,
intitulado O Mulato (1881). O seu autor Aluizio Azevedo que ser considerado o mais destacado escritor naturalista brasileiro. Parecem-se ambos os
romances? Parece-se o mulato de Aluizio de Azevedo com a mulata de
Carlos Malheiro Dias? No, de nenhum modo, o que converte em algo ainda
mais chocante a leitura do segundo. De facto, o protagonista de O Mulato, um
jovem filho de uma escrava negra e do portugus branco, seu dono e patro,
um homem bom, inteligente, generoso, equilibrado, que morre assassinado,
vtima do racismo e da discriminao de uma sociedade esclavagista.
J sei que os mais sabedores (de histrias literrias e de outros contextos e
circunstncias) encontram justificaes para um e outro caso e que o prprio Aluisio de Azevedo lhes no parece to irrepreensvel. Ainda assim, para
um leitor menos previsto que se acerque a ambos os livros, que diferentes as
representaes dos dois protagonistas de dois romances com ttulos que s se
distinguem pela marca de gnero! To diferentes! Como a prpria vida Ou
ser apenas a vontade de dois to diferentes escritores?.
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NOTAS
1
Carlos Malheiro DIAS, A Mulata, edio
comemorativa do centenrio do nascimento
do autor com prefcio de Alexandre Pinheito
Torres, primeira publicao em Portugal,
Lisboa, Arcdia, 1975, cap. IV, p. 120.
2
Projecto ALFA Tupac Amaru-Micaela
Bastidas, coordenado pelo Prof. Roland
Forgues, do Centro Andinica da Universidade
de Pau et des Pays de lAdour (Frana).
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TORNAR-SE LUSFONO
Histrias e Contemporaneidade
esta fala lusfona convivem muitos, em que pese a firmeza de seu centro. Alis, mesmo a tenso entre uma centralidade resistente e histrias que so rbitas, em tempos diversos, o objeto principal deste ato de fala,
sobre figuras da Lusofonia. tambm este texto uma homenagem, um
depoimento e um transitar entre macro e micro histrias sobre como tornar-se ou sobre como podemos tornamo-nos lusfonos.
Entre a homenagem e o depoimento, comeo declarando que, ao contrrio de muitos aqui, esta a primeira vez que experimento a honra e a alegria
de, em presena, fruir e fazer refluir o conhecimento doado por Cleonice
Berardinelli. A alegria e por que no o dizer? o breve temor que sempre nos
invade quando palavras lidas reaparecem acompanhadas de voz, corpo e rosto,
da figura humana em presena que as pensou e escreveu.
No fui aluna de Cleonice Berardinelli. Talvez porque tenha chegado
PUC do Rio de Janeiro em um dos breves intervalos, naquela casa, de seus
muitos anos de docncia. Talvez porque at o incio da dcada de 80, a
Literatura Portuguesa tenha sido, para mim, apenas aquele item obrigatrio
que compe o currculo dos estudantes de Letras Vernculas no Brasil obrigatrio, mas ainda assim, poca, questionado pelo mpeto de uma brasilidade fundada em 1922. Talvez porque o curso oferecido pelo Jorge da Silveira
quele ano de 1986 na PUC, sobre A mais estrangeira das literaturas, parecesse, por seu ttulo, mais adequado ao meu desconhecimento.
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Ao percorrer os versos dOs Lusadas com essa inspirao, encontrei a pequenez mesquinha e a grandeza herica, o peito assinalado e o seio ferido, o sonho
pragmtico de D. Manuel e a viagem ideal dos segundos argonautas, a conquista do comrcio e a dilatao da f, a ambio desenfreada e a humildade religiosa, a misso crist e a assistncia dos deuses pagos, a coragem e a debilidade de
reis e guerreiros lusos, a contingncia histrica e o desgnio divino.
Fora dos domnios do narrado, falavam-me tambm nOs Lusadas as vozes
que faziam a exaltao e a condenao da conquista; ocupavam-se tanto da adeso entusiasta causa e casa portuguesa, como da crtica dura e sofrida mediocridade dos espritos e corrupo desenfreada da sociedade; enalteciam a aventura e a audcia dos homens jovens, ao mesmo tempo que valorizavam a experincia sedentria e a sabedoria do homem velho; por fim, vozes que transitavam
desde a euforia do canto at o desencanto das ltimas estrofes do poema.
Mas, para alm de perceber ou arrolar a multiplicidade dos contedos narrados e das emisses que comentam a empresa pica e potica, interessou-me
o jogo relacional desses elementos que compem a estrutura textual. Da combinatria formal de contrastes e de contradies, resultava, a meus olhos,
muito mais do que a impossibilidade de um sentido ltimo ou estvel para o
poema. Ao aproximar e articular contrrios, numa composio paradoxal,
pude ler, nOs Lusadas, a interdio da univocidade, pude l-lo como um
gerador eficaz de pluralidades, de valores e de sentidos, como uma obra, diramos ns hoje, virtual, cuja potencialidade semntica extraordinria como
diria Mukarovsky6 resiste s diferenciadas contextualizaes histricas, culturais e estticas que atravessa h quase cinco sculos.7
A leitura da epopia camoniana concedendo ateno privilegiada aos
excursos, como aprendi com Cleonice Berardinelli, contornou a minha recusa
em aceitar a posio central dOs Lusadas na textualidade portuguesa como a
paralisao em um tempo e glria pretritos, como continuidade indiferenciada ou repetio do Mesmo da essncia ou da alma portuguesa, como
muitas vezes ouvira. Eu, no portuguesa, precisava compreender em diferena, nietzschianamente, o eterno retorno portugus queles versos. A leitura
da pica camoniana fazendo-a ultrapassar e extravasar os limites da tradio imperial, onde at ento, para mim, estivera, instigou-me tambm a
repensar a mim mesma, revendo as circunstncias histrico-culturais e imaginrias da produo da brasilidade.
121
122
das aspas, quando referirmo-nos aos laos de familiaridade com Portugal que
deram forma ao imaginrio nacional nosso, brasileiro, como uma retrica da
fraternidade. A nfase na lngua comum no atenua nem faz cessarem, para
os agentes diplomticos da CPLP, por exemplo, os dilemas que afloram quando a matria em pauta o acordo ortogrfico. A certeza na lngua comum no
contradiz a experincia de expatriao da imigrante brasileira em Lisboa, Isis
Alves da Silva, que escreve: Afinal, justamente quando abrimos a boca que a
nossa condio de expatriados se revela9. A lngua comum , na maioria das
vezes, o lugar onde de imediato se expem as diferenas entre portugueses,
brasileiros, moambicanos, angolanos, cabo-verdianos etc. e do estranhamento dentro da prpria lngua, oficialmente compartilhada, que nasce a certeza de sermos diversos e estrangeiros uns para os outros, embora tenhamos
algo em comum, algo que, parece-me, desejamos preservar como uma grandeza inefvel.
As identidades nacionais modernas j foram descritas como tradies
inventadas (por Eric Hobsbawm), comunidades imaginadas (por Benedict
Anderson), artefatos lingsticos (por Immanuel Wallerstein), fices credveis (por Wallace Stevens), ou etnicidades fictcias (por Etienne Balibar).
Em quase todas essas formulaes analticas dos processos de configurao
dos Estados-Nao ressalta, como requisito para sua existncia eficaz, a interiorizao socializada das imagens instituintes da nacionalidade, organizadas
pelas narrativas que as articulam e lhes do forma.
Nas reconfiguraes de identidades e pertencimentos que se processam
atualmente, nesta contemporaneidade transnacionalizada, dispensa-se o estatuto de uma fico coercitiva e homogeneizadora, sempre empenhada em
assegurar o poder encantatrio do como se fssemos todos unos. Buscam-se
contemporaneamente constructos identitrios abertos, negociveis e negociados entre diferentes etnicidades, culturas, tradies, comunidades e falas, que
esto a partilhar territrios reais ou vias virtuais.
Mas, como as modernas identidades nacionais, as reconfiguraes identitrias ps-nacionais que se do em nosso tempo no podem dispensar uma
referncia primordial a uma narrativa que as organize. Contra as expectativas
mais ideologica ou historicamente marcadas, talvez seja nOs Lusadas, quando lido ao modo bissmico e neutral indiciado por Cleonice Berardinelli, que
poderemos encontrar ainda uma vez uma narrativa de origem que nos
123
124
NOTAS
1
Cleonice BERARDINELLI, Os Excursos do
Poeta n Os Lusadas, in: Estudos
Camonianos, Rio de Janeiro, MEC, 1973, p.
15.
2
Idem, ibidem, p. 16.
3
Idem, ibidem, p. 27.
4
Cleonice BERARDINELLI, A Estrutura dOs
Lusadas, in: Estudos Camonianos, op. cit.
5
Idem, ibidem, p. 3-4.
6
Jan MUKAROVSKY, Can There Be a
Universal Aesthetic Value in Art?, in:
Structure Sign Function, New Haven/London,
Yale University Press, 1978, p. 57-69.
7
Cf. Eneida Leal CUNHA, As Malhas que o
Imprio Tece, Revista Internacional de Lngua
Portuguesa, n. 5/6, dez. 1991, 212-18.
8
Nos exemplares do Sabi, jornal publicado,
embora irregularmente, desde 1993, pela Casa
125
RELQUIAS DA CASA
VELHA
Dos heris que cantaste, que restou
Seno a melodia do teu canto?
As armas em ferrugem se desfazem,
Os bares nos jazigos dizem nada.
teu verso, teu rude e teu suave
Balano de consoantes e vogais,
Teu ritmo de oceano sofreado
Que os lembra ainda e sempre lembrar.
Tu s a histria que narraste, no
O simples narrador. Ela persiste
Mais em teu poema que no tempo neutro,
Universal sepulcro da memria.
Carlos Drummond de Andrade: Histria, Corao, Linguagem,
in: A Paixo Medida
motivao para o duplo ttulo deste texto talvez parea bvio. O primeiro deles remete pea de teatro de Jos Saramago (1979); o segundo coletnea de contos de Machado de Assis (1906). Da pea Que Farei com
Este Livro? recorto mais especificamente o oitavo quadro do segundo ato que
a encerra, com Lus de Cames recebendo o primeiro exemplar de Os
Lusadas: (Segurando o livro com as duas mos) Que farei com este livro?
(Pausa. Abre o livro, estende ligeiramente os braos, olha em frente). Que fareis
com este livro?1. Ao concluir a trama, o poeta aponta para a abertura de outra
trama, indagando o destino histrico e a utilidade daquele que ser o livro por
excelncia da cultura portuguesa. Ao passar da primeira para a segunda pessoa e olhar em frente (como indica a rubrica cnica), Cames interroga a pos-
126
teridade sobre a recepo de sua epopia, narrativa de fundao que possibilita inventar uma tradio, quando estabelece o lastro de uma histria que diz
o poema de Drummond que nos serve de epgrafe persiste/ mais em teu
poema que no tempo neutro,/ universal sepulcro da memria2. Do livro de
contos de Machado, retenho o ttulo Relquias de Casa Velha que o escritor
brasileiro associa, na Advertncia que abre o volume, s lembranas que uma
casa guarda, as tais relquias com que metaforiza os inditos que se tornavam
pblicos. Livros que falam de livros, ou de casa velha, so-me, aqui, metforas
para nomear uma tradio.
As duas referncias, desta maneira, servem-me de mote para formular a
questo que me mobiliza para homenagear a Professora Cleonice
Berardinelli. Pergunto: o que faremos desta tradio, destas relquias que
recebemos de uma herana portuguesa, por via da histria, ou atravs das
lies de D. Cleo, que, conjugando histria, corao, linguagem (como
Drummond v em Cames), a cultua e a vem transmitindo h j longos
anos a muitas geraes? O ns indica, em primeira instncia desta homenagem, os seus sempre alunos em quem ela imprimiu signos; ns que recebemos, como herana da Professora, uma cultura e uma literatura, de que
ela guardi e cultivadora no Brasil; ns, que aprendemos com Mrio de
Andrade que o passado lio para se meditar, no para reproduzir3, ns
repito enquanto continuadores da Professora, prosseguimos o seu trabalho, cuidando para que essa cultura e essa literatura tenham sua fora em
vigncia num alm-mar chamado Brasil, apesar das circunstncias histricas nem sempre favorveis. Em segunda instncia, o ns, plural de sujeitos
inseridos em outra cultura, a do Brasil, refere-se aos intelectuais, pensadores, escritores, artistas brasileiros que tiveram de enfrentar o problema da
constituio de nossa identidade cultural e questionam, mais fortemente
desde o Romantismo, o papel da herana colonial portuguesa na inveno
de uma tradio (para usar a expresso de Eric Hobsbawm4) que nos constituiria. O que faremos desta tradio legada pelos portugueses para que
possamos criar uma nacionalidade? A pergunta que se agudiza no
Modernismo, quando proliferam as interpretaes do Brasil, quando se
redescobre o Brasil, ganha um novo componente: como tornar o Brasil um
pas moderno se somos produtos de uma tradio que complica nosso
acesso modernidade? Dotados de conscincia histrica que permite saber,
127
para alm da afetividade, que somos produtos de uma tradio, esses pensadores podem analisar essa herana e perceber sua continuidade (mesmo
que em diferena), ou propor romper com ela, considerando a ruptura
como instrumento da razo crtica e assentando a negatividade como trao
forte da modernidade.
Dizem os dicionrios que a palavra tradio vem do latim traditio, que por
sua vez remete ao verbo tradere: entregar, ceder, fazer passar algo a outra pessoa, ou transmitir algo de uma gerao a outra. No sentido figurado, designa
narrar, contar, ensinar. O verbo tradere relaciona-se ainda com o conhecimento oral e escrito, indicando que, atravs da tradio, algo dito e o dito entregue, passado, de gerao a gerao. Assim, estamos instalados numa tradio,
inseridos nela, que imprime um signo em ns, a ponto de revelar-se muito
difcil desembaraar-se de suas peias. Assim, atravs dessa transmissibilidade,
dessa continuidade, a tradio, enquanto algo que permanece, constituda e
nos constitui.5
Se os discursos produzidos sobre o Brasil durante o perodo colonial moldaram a percepo sobre a terra e o homem, domesticaram um imaginrio e,
com o correr do tempo, constituram uma tradio, espcie de arquivo do passado brasileiro, transmitido de gerao em gerao, esta tradio acaba criando um problema para os romnticos brasileiros. Assegura Antonio Candido6,
na Formao da Literatura Brasileira, que a proposta de nosso Romantismo era
expressar uma nova ordem de sentimentos, que, marcada pelo orgulho patritico, ressaltava o desejo de criar uma literatura independente que se traduzia
na busca de modelos novos, cuja expresso foi o nacionalismo literrio.
Manifestava-se a conscincia da atividade intelectual, no s como prova do
valor brasileiro e o esclarecimento mental do pas, mas tambm como tarefa
patritica na construo nacional, quando discutem o processo civilizatrio
que exige a fundao de nao e do Estado.7 Na proposta estava implcita a
pergunta: que fazer da tradio colonial? Que papel teria esta tradio, quando a meta consistia em sustentar que possuamos uma cultura autctone a
dar-nos identidade? O esforo romntico buscava, ento, exteriorizar o interior, aquilo que dizia respeito ao nosso ser; buscava representar e identificar a
nao como algo imanente, isto , o que apontava para a identidade cultural e
a nacionalidade como essncia. Indicava tal proposta a recusa do exterior com
que at ento nos reconhecamos.8
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138
Essa pequena mostra apenas exemplificativa. A ela poderamos acrescentar a permanncia da tradio da literatura portuguesa na obra de Jorge de
Lima, Murilo Mendes, ou Ceclia Meireles.
A herana cultural a ns legada pela Professora Cleonice Berardinelli, funciona como lastro, estratgia ou cabedal que possibilita ler como a tradio
circula, com o jogo intertextual, que se processa no dilogo fecundo entre a
literatura portuguesa e a literatura brasileira. Voltar pergunta que faremos
com esta tradio?, hoje, nos serve, ao mesmo tempo, para perceber a debilitao dos esquemas cristalizados de unidade e de autenticidade, quando se
sabe que, longe de ser uma construo nacional, a cultura configura-se cada
vez mais como um processo de montagem multicultural, como atividade gestada em diversos centros, para a qual os referentes tradicionais de identidade
esto perdendo importncia diante do carter transnacional das tecnologias e
do consumo de mensagens e produtos simblicos. A tradio herdada e transmitida no pode mais assegurar a homogeneidade da cultura nacional, mas
pode ser ressemantizada, reciclada pelas operaes de transao cultural.36
Nestes tempos em que Iracema voou para a Amrica como diz a recente cano de Chico Buarque, impositivo e salutar reconhecer que as lies de
D. Cleo nos do instrumentos para ouvir o eco das palavras antigas, as tais
relquias da velha casa portuguesa. Ela, nossa Mestra, tambm a histria que
narrou, no o simples narrador, como Drummond disse de Cames. A irmanar-nos, Mestra e discpulos, a cultura portuguesa e a cultura brasileira, h
uma tradio: histria, corao, linguagem, ttulo do poema que serve aqui
de epgrafe. Professora Cleonice Berardinelli cabe ainda esta outra iluminao com que o mesmo Drummond sada o Poeta: Lus de ouro vazando
intensa luz/ Por sobre as ondas altas dos vocbulos37.
139
NOTAS
1
Jos SARAMAGO, Que Farei com Este Livro?,
So Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 92.
2
Carlos Drummond de ANDRADE,
Histria, Corao, Linguagem, in: A Paixo
Medida, Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1980,
p. 89.
3
Mrio de ANDRADE, Prefcio
Interessantssimo, in: Paulicia Desvairada,
Poesias Completas, 4. ed., So Paulo, Martins,
1974, p. 29.
4
Eric HOBSBAWM & Terence RANGER
(org.), A Inveno das Tradies, 2. ed., trad.
Celina Cardim Cavalcanti, Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1997.
5
Gerd BORNHEIM, O Conceito de
Tradio, in: et al. Tradio/Contradio,
Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1987. Neste
ensaio de base filosfica, o autor escava o
conceito de tradio em tenso com o seu
oposto ruptura.
6
Antonio CANDIDO, Formao da Literatura
Brasileira Momentos Decisivos, So Paulo,
Martins, 1964, v. 1, p. 309-310.
7
A respeito do tpico Enunciar o Brasil, no
Romantismo e, em especial, em Jos de
Alencar, ver: Silvina CARRIZO, Palabra y
Memoria en Alencar, Gragoat Revista do
Programa de Ps-Graduao em Letras da
Universidade Federal Fluminense, n. 1, 2.
sem. 1996, p. 205-217.
8
Ver a respeito da busca de identidade nacional enquanto exteriorizao do interior (nos
romnticos), ou interiorizao do exterior
(nos modernistas), o ensaio O Poltico e o
Psicolgico, Estgios da Cultura (in: Gilberto
Mendona TELLES et al., Oswald Plural, Rio
de Janeiro, Ed. da UERJ, 1995, p. 99-106), em
que o seu autor Roberto Corra dos Santos
comenta o ensaio Oswald de Andrade, ou o
Elogio da Tolerncia Racial, de Silviano
Santiago, tendo por fundamento a filosofia de
Nietzsche. Prope o crtico a uma terceira via
para a manifestao da identidade que seria a
pura exteriorizao do exterior.
9
Eric HOBSBAWM & Terence RANGER, op.
cit., p. 9.
10
Augusto MEYER, Alencar, in: Jos de
140
141
NA DERROTA DE AS NAUS,
de Antnio Lobo Antunes,
A IMAGEM DE UM
PORTUGAL
VELHO
Ronaldo Menegaz
Pontifcia Universidade Catlica
do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
ntero de Quental, por seu iderio e conseqente trabalho de apostolado socialista, marca um espao na histria poltica e cultural de seu
pas. A uma distncia de mais de cem anos, entre ns, seus leitores, e seu trgico fim em 1891, vemos Antero em luta, na tentativa de evitar o que se chamar posteriormente a invisibilidade de Portugal. Contra isso lutava ainda o
poeta antes da desiluso final, na seqela crepuscular do Ultimatum de 1890.
desse tempo ainda de f em sua misso a conferncia Causas da
Decadncia dos Povos Peninsulares nos ltimos Trs Sculos, pronunciada
na noite de 27 de maio de 1865 no Casino Lisbonense. Examinando essas
causas da decadncia para um auditrio de maioria, talvez hostil ou, pelo
menos, pouco ou nada compromissado com o que enunciava o poeta-profeta, dizia Antero1:
A histria dos ltimos trs sculos perpetua-se ainda hoje entre ns em
opinies, em crenas, em interesses, em tradies, que a representam na
nossa sociedade, e a tornam dalgum modo atual. H em ns todos uma
voz ntima que protesta em favor do passado, quando algum o ataca; a
razo pode conden-lo: o corao tenta ainda absolv-lo. que nada h
no homem mais delicado, mais melindroso do que as iluses: e so as
nossas iluses o que a razo crtica, discutindo o passado, ofende sobre
tudo em ns.
Na poca das Conferncias do Casino, Antero e os outros do grupo consideravam ainda as possibilidades de uma mudana de direo na poltica e na
conduo da vida nacional portuguesa que pudesse reverter uma situao que,
142
No s houve a rejeio do esprito moderno em Portugal como um aferrado apegar-se ao passado, quele passado delirante que constituiu, at bem
recentemente, a imensa fico de uma existncia imaginria.
Ao se associar, neste texto, a pregao de Antero com a do profeta Jonas em
Nnive, oferece-se uma oportunidade para mais uma aproximao do problema portugus com o messianismo judaico. E quem a faz em plenitude
Eduardo Loureno em Identidade e Memria O Caso Portugus4:
Nas relaes consigo mesmos os Portugueses exemplificam um comportamento que s parece ter analogia com o do povo judaico. Tudo se passa como
se Portugal fosse para os portugueses como a Jerusalm para o povo judaico.
Com uma diferena: Portugal no espera o Messias, o Messias o seu prprio
passado, convertido na mais consistente e obsessiva referncia do seu presente [...].
143
O traumatismo do fim da fico de um imprio colonial vai propiciar o aparecimento de obras como As Naus, de Antnio Lobo Antunes. Trata-se de uma
narrativa iconoclasta e desarticuladora, cujo foco se desloca constantemente
da terceira para a primeira pessoa, transformando o narrador em personagem
(no caso, tambm narrador autodiegtico). Freqentemente a narrativa volta
para a terceira pessoa, transitando de novo para a primeira.
A narrativa se estrutura em sete ncleos que se desenvolvem e se entrecruzam ao longo do romance. Cada ncleo se forma em torno de uma figura da
histria das navegaes, descobrimentos e conquistas: Pedro lvares Cabral,
no primeiro; o homem chamado Lus, no segundo; So Francisco Xavier, no
terceiro; Diogo Co, no quarto; Manuel de Sousa Seplveda, no quinto; Vasco
da Gama, no sexto, e um casal de velhinhos, retornados da Guin, no stimo.
Esses personagens principais conduzem a narrativa e dialogam com outras
figuras histricas e do mundo artstico e literrio de todos os tempos como D.
Manuel, Garcia da Orta, Padre Antnio Vieira, Almeida Garrett, Cervantes,
Lorca, Buuel e outros.
O tempo em As Naus sincrnico, abrindo-se as linhas de limite entre o
presente e o passado. O momento de ligao de todos os diversos tempos da
narrativa o da descolonizao da frica e da volta dos colonizadores: os retornados. eliminada a noo de tempo linear e adotado um tempo que vem a ser
a somatria de todos os outros, passados e presentes, que se amolgam num
tempo nico, numa espcie de pancronia, como se um momento absorvesse
em si todos os outros. Essa pancronia que domina em todas as cogitaes sobre
o tempo da narrativa de As Naus pe em cena uma concepo inovadora desse
tempo, no mais linear, conduzindo do passado ao futuro, mas um tempo onde
domina o presente como ponto de vista de onde se contempla um passado a se
desdobrar em vrias temporalidades. dentro dessa concepo ps-moderna
do tempo que Portugal se apresenta na obra singular de Lobo Antunes.
A grande metfora central da narrativa provavelmente esses restos mortais de seu pai que o homem chamado Lus carrega consigo sem deles se
poder livrar.
Os restos mortais insepultos remetem o leitor s cogitaes de Freud5 sobre
as primitivas relaes entre os filhos e o pai, dominador e senhor da vida, o
qual deve morrer para que a continuidade das geraes se faa, e essas lhe herdem o espao e o domnio. No romance de Lobo Antunes, os ossos do pai no
144
145
Nesses processos de descanonizao de mitos no se pode esquecer o tratamento que d Lobo Antunes s famosas tgides, as ninfas das invocaes
camonianas. Em As Naus, o navegador Diogo Co obcecado por elas.
Transformado em fiscal da Companhia das guas em Angola, vivia bebericando nas tascas a lembrar-se de que
[...] h trezentos ou quatrocentos, ou quinhentos anos atrs comandara as
naus do Infante pela Costa de frica abaixo [...] (p. 65)
e explicava como era difcil viver nesse rduo tempo de oitavas picas e de
deuses zangados. (p. 65)
Diogo Co, velho e desdentado pelo escorbuto, exalando cheiros de ginjinha, de vinho e de medronho, vivia espreita das tgides:
146
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Pessoa em Mensagem, fez o que pde e deixou o por-fazer com Deus bem
poderia ser um cone de um Portugal que, num dado momento de seu progressivo ocaso, levanta-se e se mostra senhor de uma potncia sem limite, e
isso se d porque, a despeito de sua temporria invisibilidade, sempre creu na
utopia, na utopia como o outro nome da esperana. Eis uma questo que o
texto de Lobo Antunes parece propor a seus leitores.
Se, por um lado, Diogo Co mantm-se fiel ao mito de suas tgides, o
homem chamado Lus, no final da narrativa de Lobo Antunes, se encontrar entre os que tiritam de frio numa madrugada, na praia da Ericeira, aguardando, ao som de uma flauta que as vsceras do mar emudeciam, os relinchos
de um cavalo impossvel. (p. 247)
Uma das tarefas que se imps a narrativa portuguesa contempornea aps
o 25 de abril foi essa, de repensar Portugal, buscar-lhe uma identidade, uma
face autntica, depois de sculos de embotamento numa austera, apagada e
vil tristeza que teve sua culminncia em quase cinqenta anos de ditadura
fascista. Essa linha de narrativa ou esse modo de escrita de fico, retomando aqui a expresso de Maria Alzira Seixo8, projeta no campo da literatura de
fico o pensamento de tericos de cincias sociais de calibres diversos como
Antero de Quental, Eduardo Loureno e Boaventura de Sousa Santos. Numa
composio caleidoscpica, Antnio Lobo Antunes reflete esses pensamentos,
no num texto poltico (na acepo de Barthes9) estereotipado, unvoco, mas
num tecido aberto a mltiplas leituras, ldico e metafrico, dono de uma significncia (ainda aqui, Barthes10) que :
[...] num primeiro momento a recusa de uma significao nica; o que
faz do texto no um produto, mas uma produo; o que mantm o texto
num estatuto de enunciao, e rejeita que ele se converta num enunciado;
o que impede o texto de se transformar em estrutura, e exige que ele seja
sentido como estruturao.
148
NOTAS
1
Antero de QUENTAL, Prosas Escolhidas,
seleo e prefcio de Fidelino de Figueiredo,
Rio de Janeiro, Livros de Portugal, 1942, p.
96. Atualizou-se a grafia do texto de acordo
com as normas vigentes em todas as citaes
dessa obra.
2
Boaventura de Sousa SANTOS, Pela Mo de
Alice O Social e o Poltico na Ps-modernidade, So Paulo, Cortez, 1995, p. 54.
3
Antero de QUENTAL, op. cit., p. 141.
4
Eduardo LOURENO, Ns e a Europa ou As
Duas Razes, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, 1988, p. 10.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
ANTUNES, Antnio Lobo. As Naus. Lisboa:
Dom Quixote, 1988.
BARTHES, Roland. O Grau Zero da Escritura.
Lisboa: Edies 70, 1989.
. O Prazer do Texto. Lisboa: Edies 70,
1988.
FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Vol. XIII da
Edio Standard Brasileira das Obras
Psicolgicas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago, [s.d.].
LOURENO, Eduardo. Ns e a Europa ou As
5
Sigmund FREUD, Totem e Tabu, v. XIII da
Edio Standard Brasileira das Obras
Psicolgicas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro,
Imago, s/d.
6
Boaventura de Sousa SANTOS, op. cit., p.
53-74.
7
Antero de QUENTAL, op. cit., p. 126.
8
Maria Alzira SEIXO, A Palavra do Romance
Ensaios de Genologia e Anlise, Lisboa,
Horizonte, 1986, p. 178.
9
Roland BARTHES, O Grau Zero da
Escritura, Lisboa, Edies 70, 1989, p. 24-30.
10
Roland BARTHES, O Prazer do Texto,
Lisboa, Edies 70, 1988, p. 23.
149
A LISBOA DE
JOS CARDOSO PIRES:
O percurso que interroga
os relatos de fundao
Izabel Margato
Pontifcia Universidade Catlica
do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
minha homenagem traduz-se num texto. Esse texto fala de uma cidade, Lisboa a Lisboa de Jos Cardoso Pires a cidade que hoje recebe
e homenageia Cleonice Berardinelli.
Este texto fala de uma Lisboa que vai sendo revelada ao longo de uma obra;
que lida e escrita soletrada e amorosamente vivida numa intimidade
densa, em amor sofrido, como diz Cardoso Pires. Cidade que recuperada
num interrogar de sinais, de memrias os espaos insondveis que, em suas
palavras, aparecem como nuvens cegas, vozes, fumos, prenncios de uma
cidade invisvel que em seus livros ganha legibilidade.
com esse espao insondvel, com essa Lisboa que Cardoso Pires torna
visvel, que eu busco construir este texto-homenagem. Homenagem que se
prolonga quando associada ao trabalho permanente que venho desenvolvendo, como professora e pesquisadora, no Departamento de Letras e na Ctedra
Pe. Antnio Vieira de Estudos Portugueses da PUC-Rio. Porque, no meu caso,
trabalhar com Literatura Portuguesa dar seqncia ao trabalho que Cleonice
Berardinelli criou e a que deu legitimidade.
nesse sentido que este texto se apresenta como uma homenagem. Ele foi
construdo como uma espcie de lio aprendida que, ao desdobrar-se,
incorpora novos objetos, produz outros olhares e apresenta uma outra pesquisadora que se formou tendo como guia a sabedoria da Mestra e que busca
seguir o seu exemplo de Professora apaixonada por aquilo que faz.
150
Muito alm dos cdigos que garantem uma funcionalidade significativa imediata
regras de trnsito, nomes de ruas, setas de turismo , o enunciado urbano faz-se
em muitas direes e sentidos, com infinitas histrias de mltiplos enredos.
Nas cidades contemporneas, depois do enredo funcional e moderno que
permite uma primeira aproximao de conhecimento, o que salta aos olhos
so os enredos da publicidade que, do mesmo modo que os da televiso,
esmagam ou atomizam os pequenos relatos de rua ou de bairro.1
Aproximarmo-nos ento de uma cidade, tendo como guia apenas os percursos oferecidos por essas duas formas de relato, uma espcie de aproximao s cegas, que nos leva a todos os lugares e, verdadeiramente, a lugar
nenhum, pois esses discursos da vivncia e da economia globais no particularizam, no nos aproximam de nenhum segredo, de nenhuma intimidade
capaz de dar relevo significativo a um determinado espao urbano.
Os percursos da publicidade igualam todas as cidades, anulando as suas
diferenas, pois funcionam como camadas significativas, habilmente direcionadas ao atual homem citadino, e procuram ser, como espaos de sonhos,
uma resposta aos seus movimentos mais comuns, isto , buscam dar um sentido para as aes com que ordinariamente so tecidos os enredos do nosso
dia-a-dia. Para Michel de Certeau, a publicidade multiplica as lendas dos nossos desejos e de nossas memrias, contando-as com o vocabulrio dos objetos
de consumo.2 No entanto, essa sintaxe envolvente com que o homem urbano
enreda o seu cotidiano, esse relato que inevitavelmente invade as nossas casas
no deixa de ser apenas mais um relato na cidade.
Diferente desses dois primeiros relatos da cidade, mas coabitando com
eles, existem os outros, os menos visveis quase ocultos que resistem, apesar de aparentemente no possurem funcionalidade alguma. So as histrias
dos bairros, as lendas e os outros enredos que do corpo e fisionomia ao tecido urbano, garantindo-lhe uma outra forma de legibilidade. So os enredos
que denominamos relatos de fundao.
Em muitos de seus textos, Jos Cardoso Pires vai buscar esses relatos de
outros tempos, esses fragmentos empilhados, ocultos, para os atualizar
com roupagem nova para ressemantiz-los e garantir, com isso, uma nova
funcionalidade. Ao trazer tona os esquecidos relatos da cidade, o autor faz
com que eles retomem o antigo lugar de relevo e passem a interagir com os
relatos contemporneos.
151
152
Esses relatos de resistncia obstinada com carter, diria Certeau enfrentam, com seus pontos opacos, todas as prticas contemporneas que buscam
instituir nas cidades a cidade transparente.
Em quase todas as cidades que foram sujeitas a diferentes prticas de urbanismo, os relatos funcionais provocam uma espcie de rudo nico, uma espcie de destruio, semelhante quelas provocadas pela guerra.6 Eles desalojam
a cada dia os ncleos primordiais que sobrevivem, em guerra, para preservar
as suas histrias. So os bairros antigos, algumas construes resistentes hoje
transformadas em centros histricos, objetos de ateno e investimento em
todas as metrpoles do mundo. So aqueles ns ntimos, to caros a Jos
Cardoso Pires.
Esses ns, essas cicatrizes, diria Certeau, formam uma espcie de rugosidade sobre as utopias lisas da nova cidade7 e por isso so capazes de preservar os relatos primordiais, os sonhos e os desejos de outros tempos.
Ao longo da obra de Jos Cardoso Pires, muitos desses ns ntimos so
revelados, ou antes, so recuperados para que seus enredos deixem de ser
insondveis rugosidades, deixem de ser dobras entranhadas nas utopias lisas
da cidade transparente... e falem, e contem os seus segredos mais ntimos:
No corpo duma cidade h sempre uma articulao sensvel, a mais frgil ou
a mais desprotegida. Aqui, na capital de Ulisses, h vrias para quem as
saiba descobrir e o surpreendente que algumas so ns ntimos, rosas
annimas, da paisagem consagrada.
Para as conhecer tem que se desatender beleza do evidente, deixar, sem
ofensa, a romntica Praa das Flores ou a rvore-me do Jardim do
Prncipe Real, e apontar, suponhamos, ao quase louco pavilho de vidro da
Tapada da Ajuda. Ir s traseiras da cadeia do Limoeiro e espraiar a vista
pelo rio numa largueza de pasmar. Ou atravessar Lisboa a grande altura
pelo Aqueduto das guas Livres onde pairam as memrias assassinas do
Diogo Alves.8
Recuperando essas articulaes sensveis, Jos Cardoso Pires vai mapear uma
Lisboa habitvel, deixando de lado os traados de transparncia utilitria e
tecnocrtica. Buscando os relatos que pairam nos aquedutos, nas vielas esque-
153
cidas, nos casarios e nas ruas, ele preserva, como relquias, os restos de um passado resistente, embora quase invisvel.
Esses restos que parecem dormir pela cidade, esses cacos de histrias mais
ou menos esquecidas, que no se confundem com os monumentos consagrados, pertencem memria da cidade. So os verdadeiros portadores do esprito de um lugar, so runas com ares de imaginrio9.
Como em todas as cidades, circunstancialmente, essas runas perderam o
contorno, isto , ficaram empilhadas sob a espessura da cidade contempornea. A leitura-escrita que Cardoso Pires faz de Lisboa devolve-lhes autonomia,
porque ele as revela como articulaes sensveis, como atores, ou heris de
legenda que organizam em torno de si o romance da cidade10. Parte desse
romance pode ser pressentida neste recorte do livro Lisboa, Livro de Bordo
Vozes, Olhares, Memoraes
[...] De charuto a fumegar porta da Havaneza, Ramalho Ortigo assistiu
passagem por aqui du tout Lisbonne do seu tempo. Snobrrimo como um
gato de salo, era uma figura do lbum de Glrias de Bordalo transposta ao
vivo para as tardes urbanssimas, mo enluvada, bengala fina e o Figaro a
espreitar do bolso do fraque. Cumprimentava Tefilo Braga com subida
considerao e talvez discutissem os dois alguns pargrafos de Proudhon,
no me admirava nada. Ao Fialho de Almeida via-o em bom dia e passe
bem, uma vez que a parada das letras com janotas de provncia como o
Fialho ficava uma penria de se olhar por cima da luneta, achava ele.
Com o Ea encontrava-se muito, apesar de o Ea andar constantemente
misturado com as personagens que descrevia. Logo abaixo da Havaneza, no
Hotel Universal, tinha sempre um cavalheiro dos seus romances de passagem pela capital, e na Pastelaria Ferrari costumava reservar mesa para certos dilogos e certas cenas de captulo para uso muito dele. Passear, passeava na companhia do Ega e do Carlos dOs Maias em voltinhas compassadas pelo Loreto e pelo Largo de Cames, e para dar gosto malcia ia at
ao Conselheiro Accio que ficava logo ali, na Rua Victor Cordon. Lusa
tudo leva a crer, procurava-a no Jardim de So Pedro de Alcntara que era
onde aquele coraozinho costumava fazer horas para cair nos braos do
Primo Baslio, esse galdrio.11
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Nesse descer e subir, muitos trajetos so revelados, muitas vozes, outros relatos. s vezes, alguns bairros aparecem em cruzamento de tempos a aproximar
diferentes personagens que, por terem verdadeiramente habitado o lugar, existem como presenas contnuas, como marcas obstinadas.
Esses relatos com carter que garantem a legibilidade de um lugar. So
eles que transformam a cidade numa paisagem habitada, capaz de fazer frente s transformaes arquitetnicas, ou ao movimento apressado dos pedestres. Essas histrias preservam o rumor de um sentido de tracejado invisvel,
mas responsvel pela definio de um particularssimo perfil. uma outra
geografia que na opacidade de seus traos desafia o nosso olhar.
[...] Chiado, Rua Garrett, durante mais de um sculo o meridiano das artes
e das letras portuguesas. [...] faltaria alguma coisa num cenrio de tanta
vida?
Faltava, faltava sempre. A cada notcia, a cada encontro, havia uma ideia a
contestar para logo outra nascer. Realismos, futurismos, surrealismos e
todas as muitas rimas que as artes iriam lanar passaram, umas atrs das
outras, pelos retiros do Chiado.13
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Pelos retiros do Chiado, Cardoso Pires faz a sua passagem pela Rua Garrett
com propsitos muito bem definidos. Ele est em busca dos relatos onde se
aloja o esprito do lugar. essa singularidade que faz dela o nervo do Chiado.
Os relatos recuperados permitem, nesse espao imantado que a narrativa resgata, a simultaneidade de tempos diversos. Por isso, ele coloca em cena, na rua
Garrett, personagens de tempos desencontrados, numa aparente provocao
para a corrente cronologia.
Aquilino Ribeiro, pesado de anos, porta da Livraria Bertrand, lado a lado
com um Columbano em estudante de pintor oitocentista, e no passeio em
frente, junto S da Costa, Antnio Srgio em conversa com um Antero quase
menino. Mais abaixo Carlos de Oliveira, muito ao fundo dum caf que j se
esfumou na memria com o nome de Chiado: est s ou, antes, vislumbro-o
a receber homenagens de Raul Brando, nada mais natural. A uma esquina
ponho um pintor em visita que tanto podia ser um expatriado dos anos vinte
como da gerao dos novssimos de Paris ou da Slade School de Londres, e
numa outra, desconfiados como gatos, Gaspar Simes e alguns crticos literrios de vrias pocas a espreitarem os poetas e romancistas em trnsito.14
Aqui a paisagem encenada, verdadeiramente, na multiplicidade de seus relatos. So rumores de diferentes pocas que o escritor atualiza e recupera torna
presentes. So autores e personagens em cruzamento de tempo. So tempos
empilhados que o autor desdobrou dando-lhes visibilidade. So histrias
fragmentrias que permanecem na cidade porque fazem parte da sua histria.
Os olhares e obras desses atores de legenda passveis de serem salvos do
esquecimento, ou da neutralizao dos significados garantem o colorido
nico dessa paisagem que s o olhar atentamente cmplice desse escritor
capaz de resgatar e tornar presente, visvel.
Esse olhar que resgata o invisvel no v apenas o passado no presente, mas
como bem percebeu Walter Benjamin d a ver o que desse passado ainda existe como presena. Para o filsofo:
No se trata de apresentar as obras literrias no contexto de seu tempo, mas
de apresentar, no tempo em que elas nasceram, o tempo que as revela: o
nosso.15
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NOTAS
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DE VOS E ILHAS
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tudo materializa nossos impulsos em forma de narrativa. O mito manifestao, assim, de um continuum que envolve historicidade e psiquismo humano.
Todo mito, alm de manifestar essa vontade de histria, tambm expresso
de um drama humano condensado. E por isso que todo mito pode facilmente servir de smbolo de situaes dramticas que constituem paradigmas
culturais.
Podemos destacar, ento, o que nos parece essencial: o mito toma o heri
como paradigma da humanidade inteira em sua histria e no seu impulso de
transformao. O combate do heri os seus gestos tanto uma luta histrica como psicolgica. Tal luta no se situa, pois, apenas como combate contra perigos exteriores. tambm uma luta explcita contra um outro eu, que
procura deter ou retardar a necessidade de conhecimento novo.
O VO DE CARO
Referimo-nos, neste incio de exposio, ao seu motivo-condutor, o mito de
caro narrativa de um paradigma cultural que tem embalado nossos sonhos,
uma forma de representao de nossos impulsos onde a busca da criatividade
artstica conflui para a aspirao, estruturalmente similar, de liberdade. Filho
de Ddalo, um genial engenheiro, caro smbolo do desejo humano de voar.
Manifesta uma vontade anloga quela que motivaria Leonardo da Vinci, que
criou o princpio dos avies na Renascena italiana, ou sculos mais tarde de
Santos Dumont, que deu a volta na torre Eiffel com o seu 14 Bis. Gagrin, mais
prximo de ns, foi o primeiro homem a ingressar no espao exterior e
Armstrong o primeiro a chegar Lua.
Pois bem, voltando-nos Grcia clssica, diz o mito que Ddalo e seu filho
caro estavam presos no Labirinto que ele prprio construra para o Rei
Minos, de Creta. Para se libertarem, olhando para o espao de liberdade possvel o cu , entendemos, Ddalo imaginou dois pares de asas para ele e
para seu filho. Traduziu sua imaginao em projeto, construindo um artefato
que afinal os libertou do Labirinto. Pela elevao, para o cu, Ddalo, juntamente com o filho, afastou-se, assim, da armadilha que ele prprio construra, de acordo com a efabulao. Uma priso histrica e psicolgica, entendemos, por referncia estrutura dessa forma de representao dos impulsos
humanos. Por certo, pelo alto, essas personagens poderiam conhecer tambm
a configurao do Labirinto. A ascenso isto , a imaginao pode propi-
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que poderia ter tido suas origens numa das asas ou mesmo penas do artefato
de caro, que continuaram a cair ou a se deslocar pelo sopro dos ventos da histria. A prpria palavra utopia, como sabemos, foi cunhada no livro A Utopia,
de Thomas Morus1, e temos sido motivados a fazer uma leitura dessa narrativa
diferente das tradicionais. No acreditamos que a queda seja sempre definitiva,
como na tragdia clssica, mas um momento de uma oscilao dialtica entre
ascenso e queda. Nessas situaes relevamos a dimenso do sonho, do desejo,
inerente a um princpio de juventude, conforme o fizemos noutros textos voltados discusso da utopia.2 Quando nesse livro, publicado no incio do sculo XVI (1516), a personagem Rafael, um navegador portugus, terminou sua
narrativa em que explicava como funcionava a vida social da ilha da Utopia
para Thomas Morus, este, encantado pelo relato, no perdeu o sentido crtico:
[...] se por um lado [narrou o pensador ingls] no posso concordar com
tudo quanto esse homem disse, homem alis muito sabedor sem contradio possvel e muito hbil nas coisas humanas, por outro lado facilmente
confesso que h nos utopianos uma poro de instituies que desejo ver
estabelecidas nos nossos pases.
Desejo-o mais do que espero.3
Desejo-o mais do que espero, disse Thomas Morus. Este parece-nos o sentido bsico do texto: o relevo dimenso do desejo de transformao, do sonho
(diurno) direcionado para a frente e que acaba por mover os objetos, as sociedades, as culturas, como desenvolve Ernst Bloch em sua obra monumental O
Princpio Esperana4.
Nessa perspectiva o sonho, numa direo oposta de Freud, diurno. No
noturno e nem vem de frustraes. o sonho de quem procura novos horizontes, um princpio de juventude dissemos, como em caro, que releva a
potencialidade subjetiva dos indivduos. olhando para a frente, sonhando
com o futuro (o projeto intermediando o presente e o futuro), que se torna
possvel concretizar objetivos. Essa atitude mais adequada do que aquela que
poderia advir do sonho noturno, que teima obsessivamente em olhar para
trs, melancolicamente contemplando runas.
O projeto, entretanto, no materializa um ideal de meio termo, onde tudo
se prefigura. A utopia, como energia ou potencialidade subjetiva, no se coa-
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prestes a eclodir. essa mesma aspirao por totalidades que o leva concluso
de que Francisca era o centro de Francisca uma imagem-ilha que se fechava
em si e que certamente poderia habitar um no-lugar, quer a personagem estivesse no Brasil ou no exterior. Como na Ilha dos Amores de Cames, Nando tambm teve seu momento de plenitude quando da ascenso propiciadora do fulgor
amoroso. No entorno, entretanto, o pas estava mergulhado numa ditadura feroz
que angustiava essa personagem e seu criador, Antonio Callado angstia talvez correlata de Cames, ao representar imagens do esplendor de sua ptria.
Atualiza-se nesses momentos de ascenso, como no da ilha das orqudeas, o
futuro sonhado. Nando poderia ter uma imagem abstrata de Francisca, mas
como o prprio narrador explicita, essa imagem desce na ilha e se concretiza
pela afirmao do impulso amoroso. essa potencialidade subjetiva que vai distanciar a utopia concreta daquela dos modelos ideais que marcaram os modelos
utpicos desde A Repblica, de Plato at aos Falanstrios de Fourier e s utopias
de Huxley. um sonho diurno orientado para o futuro, ao contrrio do sonho
noturno, que mantm relao privilegiada com o passado j o dissemos.
Nando no se circunscreve comunho amorosa com Francisca; essa
comunho, ao contrrio, pelo fato de ele sonhar para a frente, leva-o a se aperceber do futuro. Dessa forma, o episdio simboliza, como materializao do
desejo e da imaginao, as possibilidades concretas desse futuro. Pode-se assim
afirmar-se que Nando, atravs da imaginao utpica, na ambientao da ilha
icrica e em face de circunstncias concretas (vontade humana e prxis histrica), consegue tornar as imagens de Francisca uma realidade humana em
forma de amanh.
Como imagem dessa realidade humana em forma de amanh, podemos
situar a construo de Mayombe7, de Pepetela, romance escrito em plena guerrilha nos incios da dcada de 70, j por ns abordados noutros textos8.
Valendo-se de sua ascenso, o narrador constri seu romance desde uma perspectiva area. Assim, constri a imagem da selva (Mayombe), vendo-a de cima
como um formidvel conjunto de rvores umas mais fortes, outras nem
tanto rvores que se encontram no entrecruzamento dos galhos. Assim,
compacta, a floresta (imagem de Angola) pode resistir e persistir uma reunio simblica de indivduos e etnias diferentes.
Dito de outra forma: a energia que provinha da diferena desses
universos-ilhas alimentava o conjunto de uma totalidade dialtica sonhada
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NOTAS
1
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
ABDALA JUNIOR, Benjamin. Necessidade e
Solidariedade nos Estudos de Literatura
Comparada. Revista Brasileira de Literatura
Comparada. n. 3. Rio de Janeiro, 1996,
pp. 87-95.
. Estado e Nao nas Literaturas de
Lngua Portuguesa: Perspectivas PolticoCulturais. In: BRITO, A. M.; OLIVEIRA, F.;
PIRES DE LIMA, I.; MARTELO, R. M.
Sentido Que a Vida Faz Estudos para scar
Lopes. Porto: Campo das Letras, 1997,
pp. 241-248.
BLOCH, Ernst. Le Principe Esprance. Paris:
Gallimard, 1976, 1982, 1989. 3 tomes.
5
Lus de CAMES, Obra Completa, Rio de
Janeiro, Jos Aguilar, 1963.
6
Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1967.
7
So Paulo, tica, 1982.
8
Necessidade e Solidariedade nos Estudos de
Literatura Comparada e Estado e Nao nas
Literaturas de Lngua Portuguesa, referidos
na nota 2 deste ensaio.
9
Lisboa, Dom Quixote, 1992.
10
So Paulo, Companhia das Letras, 1998.
11
Lisboa, Caminho, 1982.
12
Cabe aqui um crdito a Joo Adolfo
Hansen, colega do programa de Estudos
Comparados de Literaturas de Lngua
Portuguesa, da Universidade de So Paulo,
pela indicao desse opsculo.
13
So Paulo, Companhia das Letras, 1997.
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TERMOS RELATIVOS
A VESTURIO:
sua funo nos Autos de
Gil Vicente
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Fiar ocupao feminina para qualquer classe social. Nos autos as atividades
femininas se hierarquizam de acordo com o material de trabalho ou vice-versa. A me, mais realista, aconselha filha uma tarefa (fiar), utilizando
materiais condizentes com a sua condio. J Aires Rosado promete mesma
Isabel uma vida mais regalada:
no tendes em que vos ocupar,
seno somente em fiar
aljofre, j denfadada.
(GV, V, 77)
175
A procedncia dos materiais estava ligada ao seu valor. Em Portugal fabricavam-se os do tipo mais comum e tambm a seda de vrias qualidades. Era
larga a produo de l. A escarlata, valorizadssima, a ponto de ser reservada
ao rei e outros membros da famlia real na Pragmtica de 1340 (cf. Marques,
1964: 68), procedia de Flandres ou da Inglaterra. Os veludos e cetins eram
orientais, a cambraia vinha do norte da Europa. O contray era um pano fino
fabricado na cidade flamenga de Contray. Mesmo em territrio nacional a
procedncia era importante. No Auto da Serra da Estrela (GV, IV, 219-220)
entre os melhores presentes, de procedncia afamada, que cada regio enviaria Infanta D. Maria, recm-nascida, filha de D. Joo III e de D. Catarina h
muitos panos finos de Covilh, penas de guias reais, naturais da terra, forros
de arminho do Val dos Penedos e dos montes e caminhos da Serra da Estrela.
interessante observar que a etimologia dos vocbulos acompanha de
certa forma a evoluo cultural do vesturio. L, linho, estopa, mais tradicionais e comuns, so de origem latina. Algodo e escarlata vm do rabe, contray
leva o nome de sua cidade de origem, burel provm do francs antigo, brocado
de origem italiana e veio por intermdio do catalo, cordovo est ligado
cidade de Crdova, grande centro antigo de curtio e preparo de couros e
peles. Como se v, o cosmopolitismo da moda reflete-se no cosmopolitismo
dos termos a ela ligados.
At este ponto, pretendi mostrar que o tratamento dado por Gil Vicente
aos termos relativos ao vesturio contribui para o conhecimento da sociedade
da poca. Nota-se como o traje est ligado condio social e ao prestgio, a
ponto de atingir as ocupaes relativas sua confeco e at os materiais
empregados. As criadas das damas de Cortes de Jpiter, para contrastar com
estas, primam pelo desmazelo ou pelo exotismo, inclusive no que diz respeito
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apresentao dos cabelos. H criadas que se apresentam sem crenchas [tranas], descabeladas, ou trosquiadas, bem rapadas as moleiras. Foi moda arregaar os cabelos para trs, descobrindo as orelhas e deixando a testa alta e lisa.
Para isso era preciso raspar os cabelos prximos da testa. Em Gil Vicente, a tosquia feminina tem conotao negativa. Alm do exemplo de Cortes de Jpiter,
v-se na Comdia de Rubena:
E minha ama he judia
to pellada;
se a vissem em trosquia,
parece domoninhada
metida na almotolia.
(GV, III, 71)
No h referncia tosquia masculina, a no ser no Clrigo da Beira, em resposta observao do filho sobre sua tonsura e no fazeis a coroa / antes que
vamos caar?, o clrigo diz: Ta me ma trosquiar, / no cures tu de conselhos; (GV, VI, 2). Nos autos no aparecem as formas tosquia e tosquiar.
Essa primeira leitura, ainda que esclarecedora sobre a variedade, o volume
e a importncia dos termos referentes ao vesturio nos autos (foram fichados
172 vocbulos ou expresses diferentes, em portugus, com a forma espanhola, quando ocorre, ao lado) ainda no d conta da funo que esse material
tem na estruturao da obra.
Proponho, a partir deste ponto, outra leitura que poder mostrar como Gil
Vicente constri e articula os signos, a servio da crtica aos costumes da sua poca.
Como estratgia de trabalho proponho partir de uma classificao valorativa dos termos. Tendo sido observada uma coincidncia recorrente das associaes baixo/inferior e alto/superior, prprias da nossa cultura, com aquilo que
se usa, respectivamente, no p e na cabea, separei os elementos em dois grupos, deixando de fora, provisoriamente, o que se usa no resto do corpo.
Confirmou-se a expectativa, mas com excees que se tornaram importantes
para o encaminhamento da anlise. Partindo do princpio de que o vesturio
fator de prestgio, o que se usa na parte medial do corpo, ou seja, a roupa propriamente dita, num primeiro momento, pde ser classificado como superior.
Neste caso, as excees tambm contriburam para orientar o rumo da anlise.
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Como prestgio relaciona-se a superior e desprestgio a inferior, seria possvel afirmar que chapim 1 ope-se a chapim 2, um com valor positivo, o outro,
negativo, j que as duas situaes se opem termo a termo.
Retornando ao texto, v-se que as falas do Anjo e do Diabo prendem-se
dicotomia Alma/Corpo que, por sua vez, relaciona-se a outras como Cu
(expectativa do destino da Alma)/Mundo; Modstia/Vaidade; Despojamento/
/Sobrecarga de enfeites.
Diz o Diabo, na sua primeira fala Alma:
Is mui desautorizada,
descala, pobre, perdida
de remate:
no levais de vosso nada,
amargurada.
Assi passais esta vida
em disparate.
Vesti ora este brial,
Metei o brao por aqui:
(GV, II, 12)
E, mais adiante:
uns chapins haveis mister
de Valena: ei-los aqui.
Agora estais vs mulher
de parecer.
(GV, II, 12-13)
J o Anjo, ao ver a Alma assim enfeitada, diz-lhe:
Deixai esses chapins ora,
e esses rabos to sobejos,
que is carregada:
(GV, II, 14)
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Enquanto o Diabo enfeita a Alma, sobrecarrega-a (adio indevida de elementos), o Anjo a incita a desembaraar-se da sobrecarga (subtrao retificadora).
Assim como a Alma no deve figurar no conjunto relativo a Mundo, chapim no tem guarida no relativo a Cu, com que incompatvel, do mesmo
modo que brial, jias e enfeites. No elemento dbio. Do ponto de vista mundano, deve ser considerado como superior, o que invalidaria a hiptese de que
o que se usa no p tem conotao inferior.
A terceira ocorrncia est no Triunfo do Inverno. A Forneira queixa-se do
marido, aponta-lhe os defeitos e diz que nunca recebeu dele um chapim. O
termo aparece a como coisa de algum valor. No se ajusta ao personagem, que
o reclama, uma mulher de condio inferior. Esse emprego do termo confirma os anteriores. Chapim seria uma exceo.
Antes de aceitar o fato, faz-se necessrio tentar outra via de explicao,
aprofundar o conhecimento do objeto que serve de referente a chapim. Pelo
texto no se trata de um calado qualquer. No de uso geral, relaciona-se
com o sexo feminino e implica condio de superioridade. Consultando
Viterbo (1966, II, 94) e Moraes (1922, fac-smile da 2 ed., 1813, I:384), encontra-se que este calado era usado pelas senhoras para parecerem mais altas e
que era constitudo de quatro ou cinco solas de cortia, segundo Viterbo formosamente cobertas e pespontadas, uma espcie de coturno do teatro grego,
correspondncia notada pelos dois dicionaristas. Pelo esclarecimento fornecido pelo contexto, v-se que chapim era um artifcio e no uma pea utilitria,
da o tratamento que recebe no texto, o de enfeite. Lembre-se que a inteno
do Diabo enfeitar a Alma, no vesti-la.
A Forneira do Triunfo do Inverno no se queixa de que o marido no lhe
d calado, mas de que nunca lhe deu um chapim, uma coisa valiosa. Conclui-se que este elemento est deslocado entre os termos que designam calado,
devendo figurar entre os enfeites e, como tal, operacionalizado. Pode-se concluir pela validade da relao entre termos relativos a baixo e inferior. Resta,
ainda, verificar se o mesmo se d entre os termos relativos a alto e superior.
So trinta e nove (39) as ocorrncias de elementos relativos a alto, isto , ao
que se usa na cabea. O grupo maior e mais complexo que o anterior. Para
decidir sobre o valor de cada termo, tornou-se necessrio levar em conta elementos do texto que do pistas sobre a contextualizao interna e externa do
elemento. Por exemplo: toucados pescoo, com referncia a uma das criadas
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uma classe, passa a indic-la, como ndice, tornando-se significante de um significado, cujas funes assumir na etapa final.
Para melhor explicitao, tome-se como exemplo capelo.
Diz o frade a Cupido na Frgoa de Amor:
Aborrece-me a coroa,
o capelo e o cordo,
o hbito e a feio,
e a vespora e a noa
e a missa e o sermo:
(GV, IV, 125)
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de Enganos, beatilha e fraldilha (vesturio feminino) e peneirar (ocupao feminina) esto funcionando como distintivos do sexo feminino (GV, III, 194 ).
O reconhecimento do ndice e sua significao se d com base no referente. por saber que capelo faz parte da indumentria eclesistica que possvel estabelecer-se a associao entre o elemento capelo e investidura religiosa.
D-se o mesmo com relao ao significante e ao significado: o conhecimento
socialmente compartilhado de religioso possibilita a constituio do signo.
Tem-se, assim, um signo ternrio quanto sua constituio e uno pela condensao dos elementos em um s, o que faz lembrar uma passagem de
Foucault:
Na Renascena, a organizao diferente e muito complexa; ternria, pois apela para o domnio formal das marcas, para o contedo que assinalado por elas e para as similitudes que ligam as marcas s coisas designadas; mas como a semelhana tanto a forma
dos signos como o seu contedo, os trs elementos distintos desta
distribuio resolvem-se numa figura nica. (Foucault, s.d.: 97)
Consequentemente, a funo do referente indispensvel no estabelecimento da cadeia de equivalncias, tanto com respeito ao ndice como com respeito ao significado. O distintivo um signo ternrio: os ndices apontam para
os contedos e a similitude permite que aqueles, por um processo metonmico, passem a valer pelas coisas designadas.
Veja-se, mais uma vez, capelo. Alm de ndice de religioso pode ser tomado metonimicamente por religioso. O mesmo pode-se dizer de religioso com
referncia a investidura religiosa. Investidura religiosa inclui religioso e religioso
inclui capelo. Os termos so, portanto, contguos, do mesmo modo que so
contguos os referentes capelo e religioso.
Capacete, que aparece como distintivo da vida militar, ocorre com classificao superior na Exortao da Guerra (GV, IV, 154). Anbal exorta e incita os
fidalgos a que partam para uma expedio frica e dirige-se s senhoras
pedindo-lhes que contribuam com seus ricos vestidos e jias para capacetes. O
carter de valorizao dado pelo prprio texto. Num primeiro momento,
concorrem em p de igualdade, as jias e vestes das damas e os apetrechos de
guerra, funcionando como smbolos, distintivos de grupos, neutros, portanto.
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So as palavras de Anbal que desvalorizam os atavios, contrapondo-os a feitos nobrecidos. Capacete, ento, tem reforada sua classificao como superior
e em contrapartida vestidos e ricos atavios desvalorizam-se.
Os termos que se enquadram no grupo do que se usa na parte medial do
corpo so muito numerosos, ao todo cento e treze (113). Em princpio, esses
elementos so valorizados positivamente, com exceo dos distintivos. No terceiro grupo, a proximidade do corpo valoriza a roupa do ponto de vista do
usurio, enquanto do ponto de vista social, quanto mais afastada, mais suprflua, mais valorizada se torna. preciso considerar que a gradao do valor e
critrios classificatrios at agora indiferentes anlise vo estar em jogo: um
par opositivo de natureza tpica (interior/exterior), outro, de natureza utilitria (necessrio/suprfluo) e ainda o ponto de vista (individual/social) que
relativiza o carter superior ou inferior do elemento.
Para a classificao de um termo como necessrio ou suprfluo, alguns fatores devem ser levados em conta:
Se um elemento distintivo est fora desta classificao.
O mesmo se d com os termos de significao geral, como fato, roupa,
vestido ou qualquer outro tomado na mesma acepo.
Um mesmo termo, em ocorrncias diferentes, pode aparecer com caractersticas, tambm diferentes. Esto neste caso manto e capa que ora so tomados como abrigo, proteo, ora como um componente do vesturio.
O vesturio habitual, indispensvel ou obrigatrio foi considerado necessrio. Suprfluo tudo o que serve para compor, enfeitar ou que tem caractersticas de luxo ou requinte. O necessrio est ligado a indivduo e o suprfluo
a sociedade.
A classificao dos elementos do grupo foi feita com base nesses critrios,
o que possibilitou estabelecer, de um lado, um relacionamento entre interior,
necessrio, individual e, de outro, entre exterior, suprfluo, social. Outro aspecto
a ser assinalado que um elemento classificado como suprfluo nunca aparece
como inferior. Em contrapartida, a recproca no verdadeira: os elementos da
categoria superior tanto podem ser necessrios quanto suprfluos. Do ponto de
vista individual nota-se, quanto oposio exterior/interior, que a importncia
do vesturio e sua utilidade aumentam com o grau de intimidade.
Dos cento e treze (113) componentes do grupo, sessenta (60) esto includos na categoria superior, quinze (15) na inferior e trinta e oito (38) podem ser
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est bem de acordo com o personagem, figura grotesca at pelo prprio nome,
indefinvel na sua condio de religioso da qual, alis, foge conscientemente,
mas um pouco de tudo. Est deslocado da sua classe, no por falta de caractersticas, mas pela adio indevida de outras que no lhe so pertinentes.
O frade do Auto da Barca do Inferno apela para os seus distintivos, por sinal
bem disfarados: ... e este hbito no me val?(GV, II, 58). E uma segunda vez:
Mantenha Deus esta croa ! (GV, II, 60). Ao que o Diabo zombeteiramente
retruca: padre Frei Capacete! / Cuidei que tnheis barrete. (GV, II, 60). A
nota 10, p. 60, v. II da edio S da Costa esclarece que Ao tirar o capuz, viu-se que o frade trazia capacete. Nas sete ocorrncias de capuz registradas,
nenhuma relaciona-se a religioso, apesar de ser uma pea usada tanto por leigos quanto por religiosos.
Na Floresta de Enganos, o Doutor, sessento conquistador, deixa-se disfarar
pela moa a quem quer conquistar, que lhe prope: Tirai a loba e dai-ma c, /
luvas e sombreiro e tudo, / e a beca de veludo, / e, adiante: e vesti esta fraldilha, / e ponde esta beatilha, / e fazei que penerais. (GV, III, 194) nessa situao ridcula que a Velha o encontra e desmascara-o, tirando-lhe o toucado.
Em todas essas passagens nota-se um desequilbrio gerado por uma transgresso que se caracteriza pela quebra do estabelecido, pela ultrapassagem dos
limites da condio social, da investidura, da idade, cujo fator desencadeador
o excesso, a adio indevida. O quadro que serve de base crtica vicentina
mostra a desordem, as coisas fora de lugar, os abusos de toda espcie de que
uma boa amostra o Clrigo da Beira. No bastasse a transferncia das obrigaes religiosas para a mulher (tanger o sino, prover o necessrio para o ofcio)
por suas palavras que se sabe que o clice est atado com os toucados da
mulher, os amitos pendurados onde est a espada e a cabra presa pela estola.
No est muito longe de um quadro de Hieronymus Bosch.
Concluo constatando que: 1. estar bem apresentado importante no contexto vicentino; 2. a estrurao dos signos que funcionam como distintivos
servem de base para a crtica aos costumes e 3. a operacionalizao desses signos revela perplexidade diante da desordem, dos abusos, da transgresso da
ordem estabelecida, da quebra da tradio.
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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas.
Lisboa: Edies 70, [s.d.].
MARQUES, A. H. de Oliveira. A Sociedade
Medieval Portuguesa Aspecto da Vida
Quotidiana. Lisboa: S da Costa, 1964.
MORAES e SILVA, A. Dicionrio da Lngua
Portuguesa. Edio comemorativa do primeiro centenrio da independncia do Brasil, facsmile da segunda edio (1813), sob a direo de Laudelino Freire. 2 v. Rio de Janeiro:
Revista da Lngua Portuguesa, 1922.
VICENTE, Gil. Auto da Festa. Obra desconhecida com uma explicao prvia pelo Conde
188
VIAJAR HOJE
NA BARCA DO INFERNO
oi ainda por causa de Caldern (que, por acaso, de la Barca) que regressei
a Gil Vicente e, por causa de Gil Vicente, que de novo embarquei (embarcarei?) na nunca assaz louvada e mais destemida que temida Barca do Inferno.1
Digo que foi o espanhol o culpado porque o recentemente terminado ano
de 2000, ano do IV centenrio do seu nascimento, o trouxe uma vez mais
ribalta dos teatros, de Espanha e no s, evidentemente (at em Portugal tivemos O Prncipe Constante, pela companhia do Teatro de Almada), e no faltaram as ocasies para reler e reapreciar dramas, comdias e autos de seiscentos,
uma vez mais se enredando os que pelo assunto se interessam na estimulante
teia de juzos sobre caminhos e intenes nas adopes/adaptaes dos textos,
prpria ou impropriamente, pouco interessa agora, conhecidos como clssicos.
De Caldern a Gil Vicente foi quase inevitvel o percurso ao invs, apesar
dos cento e tal anos que os separam e esbatem necessariamente as sempre discutveis e muito discutidas afinidades dos dois autores de autos religiosos, justamente no primeiro muitas vezes apelidados de sacramentais, designao esta
que raramente aos do nosso dramaturgo se pode ajustar.
O enlace tem a ver, ento, no necessariamente com temas ou estruturas
dramticas, mas com os problemas que pode colocar o perfil das representaes, dos consagrados (intocveis para alguns) sobretudo, sendo que nas
arqueolgicas j pouco se acredita e, quanto a modernizaes, muito combate
ainda se trava: at onde se mexe no que est escrito, como vestimos as personagens, que fazemos com os cenrios, recompomos com austeridade o passado ou ligamo-lo ao presente, tudo dilemas que os encenadores resolvem como
a cada um melhor parece, solues que dividem o pblico que aplaude ou se
indigna com supostas infidelidades.
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se verifica com aquele Padre que critica o velho Frade, sem qualquer olhar
compadecido pelo que em seu redor se passa.
uma barca sem rumo, a barca do sculo XX, como muito sagazmente
reconhece o arrais vicentino:
Vou-me daqui, que este batel vosso e no meu Volto para o batel de
mestre Gil, que este no entendo eu Barca sem rumo, onde ir parar?
Comprar nela passagem? outro que no eu! Este batel j daqui no
saiBarca parada no serve para navegar5
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Que se quer matar por ti? s o marido mais idiota que j vi. Nunca percebeste o que se passava?
Como? No estou a perceber!
Estavas tu expirando e ela estava-se requebrando nos braos de outro,
que era do teu governo.6
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Do auto em questo retiram-se muitos fragmentos, mas, de outros, igualmente se aproveitam muitos e significativos passos que lhe reforam ou pluralizam a lio, com acrescentos, reticncias, contrapropostas.
De 1978 partem estmulos de peso: Na Barca com Mestre Gil (Lisboa,
Caminho), de Jaime Gralheiro, com anterior representao impedida pela
censura (1973), e Hou de l Gente Honrada! (Viana do Castelo, Pataco).
Na obra de Gralheiro, o enlace dos quadros garantido pela conversa entre Gil
Vicente e um periodista com o qual, sem nunca perder a meada de uma pesada
crtica comunicao social, o dramaturgo presta contas da sua vida na corte,
sublinhando o seu afecto ao povo, o seu difcil convvio com os poderosos, a sua
postura anti-expansionista, a sua condio de crente avesso ao mal erasmista; as
confidncias terminam com os ensaios do Auto da Barca do Inferno, em cujo texto
se embrecha uma longa fala do Lavrador do Purgatrio e se trocam os Cavaleiros
da Cruz de Cristo por Cavaleiros laicos mortos nas guerras de frica.
O autor explica em nota:
No texto-base, estes quatro cavaleiros so fidalgos da Ordem de Cristo.
Suprimiu-se tal referncia para lhe dar maior amplitude. Note-se que, em
1973, o povo portugus morria nas guerras de frica, sem quaisquer perspectivas.8
Por seu turno, o segundo acto de Hou de l Gente Honrada! (ttulo retirado da
primeira fala do Parvo do Auto da Festa) pe esse (?) Parvo a sonhar com os
desmandos que presenciara nas ruas de Lisboa (depois de um primeiro acto
que lhe oferecera instantneos pouco inocentes de afazeres e dizeres em era de
descobertas), fantasiando um Lavrador prejudicado por um Onzeneiro, no
por acaso ambos meio-Diabo, meio-homens; uma Moa substitui o Anjo que
esperaramos encontrar; entrando no palco em desfile, um Fidalgo, um Frade,
um Onzeneiro, um Mercador (o velho Sapateiro), uma Alcoviteira so condenados ao fogo.
Avanando para a ltima dcada, apenas duas companhias parecem ter-se
afeioado a este paradigma: uma de Soure (Trai-la-r, Stira Social em Gil
Vicente, 1997) e incumbiu a Alcoviteira e o Parvo de introduzirem e comentarem risonhamente os podres de uma sociedade que claramente enveredou
pelo salve-se quem puder; a outra a Barraca que, se, na Expo de 1998, apro-
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alinhavado a partir de quadros de grande aparato endereados a medidas polticas de circunstncia (lembremos que o espectculo abre com a discrdia
entre a Crise e a Democracia de Sucesso), a verdade que, embora com pontos de contacto com os anteriores, outro ncleo de produes, o terceiro, nos
importa agora considerar.10
E isto porque, se de colagens se trata tambm, a verdade que Gil Vicente
no est s, nem sequer isolado, como dramaturgo com direitos adquiridos.
Pensamos em montagens de textos vicentinos com textos de outros autores, antigos ou modernos, portugueses ou estrangeiros, populares ou de seleccionado apreo.
Nave de Loucos foi uma muito curiosa criao colectiva do Teatro de
Portalegre (O Semeador, 1993) que passou a Espanha e mereceu alguns prmios; com cenrios inspirados em pinturas de Bosch e de outros flamengos e
msica de Vangelis conviveram dilogos de numerosos textos de Vicente e uns
quantos de Erasmo, de Sebastian Brandt e de Vicente de Beauvais, todos eles,
por um lado, convidando loucura e, por outro, deixando algumas dicas para
um mundo que quisesse desistir de marchar s avessas.
Do Auto da Barca do Inferno destaca-se sobretudo a figura do Parvo, nem
bom nem mau, e as figuras contrrias do Anjo e do Diabo.
Depois de leituras vrias e de um atento olhar sobre a Nave de Hieronimus
Bosch, o encenador confessa:
Na obra vicentina, como nas outras, procurei episdios que me pudessem
servir esta ilustrao de um mundo de loucos, ora por razes comportamentais, ora por questes de natureza tica.
a figura do louco, do parvo, do narr alemo que se permite denunciar os
defeitos da vida em sociedade, as vaidades, invejas, fobias e, enfim, poder
gritar que o rei vai nu!
Nos nossos dias em que predominam os valores materiais e certa vida ftil,
sem sentido, muitos seriam os loucos da barca, e Brandt, Erasmo, Beauvais
ou Gil Vicente so to pertinentes hoje como h quinhentos anos.11
Com a pea Brincando com o Fogo, o grupo Trigo Limpo (Tondela, 1993)
encaixa uns nos outros passos de diversos escritores, historiadores e ficcionistas, num espectculo de rua que, de forma carnavalesca, espalha avisos sobre
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os perigos que espreitam os que brincam com o fogo, ou seja, os que se deixam seduzir por situaes de deslize moral, como o nosso conhecido Frade da
Barca do Inferno to judiciosamente enviado para as moradas de Sato.
Diferentemente, o Teatro Extremo (Os Infernos da Barca, Almada, 1994)
preparou, principalmente para estudantes, uma representao na qual o nosso
auto, devidamente anunciado, parecia nunca mais subir ao palco; no apenas
para criar uma expectativa que garantisse um desejado acolhimento, mas
especialmente para no perder a oportunidade de ir chamando a ateno dos
jovens para grandes dramaturgos universais, a Companhia obrigava os espectadores a uma espera que eles no sabiam quando terminaria.
E como? Ao tablado saam dois actores que no queriam representar Gil
Vicente: um era grande admirador de Shakespeare, outro de Brecht e ambos,
contra as indicaes de um encenador presente, enveredavam pela declamao
dos seus autores preferidos; era ento que um pblico escolhido e os responsveis pelo espectculo comeavam a reclamar em voz estridente a representao prometida no programa.
S ento, finalmente, se encetava o desfile vicentino com as atrs citadas
acomodaes.
Inovadora e, em meu entender, oportunssima experincia foi a que, no
Teatro Municipal Maria Matos, entusiasmou a Companhia de Alberto Vilar,
direccionada sobretudo para um pblico escolar que, de Gil Vicente, por razes
de ofcio, alguns textos conhece, mas que muito ignora quanto inevitvel mais
valia de uma representao e praticamente nada sabe sobre mecanismos e problemas do funcionamento teatral (Auto da Barca do Inferno, 1993 e ss.).
Um primeiro acto propunha, assim, aos estudantes uma abordagem e
exemplificao dos preparativos para a montagem de um espectculo de teatro, permitindo-lhes o contacto com tarefas e inquietaes em que habitualmente no pensam, ensinando-lhes que, por trs dos actores e de quem os
ensaia, esto cenaristas, tcnicos de luz, estudiosos do traje e da forma de
maquilhar, operrios que colocam a maquinaria e a movimentam.
De seguida, e depois de breve intervalo naturalmente, vinha a exibio da
Barca, em verso livre, mas fundamentalmente fiel aos propsitos vicentinos:
texto com imprescindveis cortes e retoques de linguagem, cortejo reduzido a
oito figuras, com Anjo e Diabo a intrometerem-se, como manda a tradio,
nos planos normalmente mal calculados da sua ltima viagem.
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NOTAS
1
Este artigo no corresponde exactamente
interveno pronunciada na homenagem a
Cleonice Berardinelli; de ento para c (19992001), tive a oportunidade de repensar alguns
aspectos da adaptao dos clssicos e de, a
partir da, regressar mais apetrechada ao convvio com o percurso de alguns textos vicentinos.
2
Programa do espectculo, quando apresentado em Madrid (negrito meu).
3
Programa do espectculo apresentado pelo
Teatro de la Comedia, de Madrid. (negrito
meu).
4
Programa do espectculo Comdia de
Rubena, apresentado pelo Teatro da
Cornucpia, em 1991.
5
Sttau MONTEIRO, Auto da Barca do Motor
fora da Borda, Lisboa, tica, 1966, p. 69.
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TRADES
Eduardo do Prado Coelho
Universidade Nova de Lisboa
a impossibilidade de apresentar um trabalho sistematicamente articulado (como se diz na linguagem do Brasil: fico devendo, e adiante
veremos como a questo da dvida fundamental), o que era sem dvida aquilo que eu gostaria de fazer em relao a Cleonice Berardinelli, porque sei, claramente sei, que ela o merece, nessa impossibilidade, repito, apresento apenas
algumas notas para um trabalho futuro.
Mas, porque de Cleonice se trata, partirei da literatura brasileira, de que ela
se diz modestamente diletante. O primeiro texto A Terceira Margem do
Rio, includo nas Primeiras Estrias de Joo Guimares Rosa. E a minha pergunta, a minha nica pergunta, : que significa a designao do Terceiro quando se fala, por exemplo, na terceira margem do rio? Ser que a configurao
de um Terceiro, no desenho movente das trades possveis, significa sempre o
mesmo? Ou ser que o Terceiro pode ser umas vezes metfora da totalidade
(do anel do saber), outras vezes metfora da neutralidade (por exemplo, o
cho mineral da poesia, de que fala Melo Neto), outras vezes ainda metfora da excluso (o terceiro excludo), ou, como em Guimares Rosa, metfora
da impossibilidade (lgica, e, portanto, impossibilidade da prpria lgica)? E
haver algo em comum entre estas figuras? No ser sempre o Terceiro metfora da metfora, isto , linha de intensidade, isto , Deus seduzido e reconduzido ao curso da pura imanncia?
Voltemos a Guimares Rosa. Havia um Pai, havia a Me, e havia trs
irmos. A famlia, a casa. O pai era cumpridor, ordeiro, positivo. Um dia
resolveu mandar fazer uma canoa (e talvez o segredo de tudo tivesse ficado no
homem que para ele aprontara a canoa, mas esse homem morreu e nada
disse) e despediu-se sem mais. Entrou na canoa, com o filho vendo, e a canoa
205
saiu se indo - a sombra dela por igual, feita um jacar, comprida longa. O
nosso pai, digamos assim, pretendia ficar no rio, dentro da canoa, de meio
a meio. Diz Guimares Rosa: a estranheza dessa verdade deu para estarrecer
de todo a gente. De meio a meio, imvel, ele aproximava-se da terceira margem do rio.
O que resulta destas imagens uma serenidade sem mcula - ali, s assim,
ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. A este
movimento de reentrar em si, nessa reentrncia do viajar, que se ope errncia de outros viajares, se deve dar a dimenso calculadamente reflexa: como
diz Guimares Rosa, nosso pai se desaparecia, apenas, sem fazer conta do
se-ir do viver.
H aqui dois pontos que eu pretendia sublinhar. O primeiro que, medida que nosso pai se desaparecia, o narrador nos diz que eu ia ficando mais
parecido com nosso pai, isto , diremos ns, eu me ia aparecendo meu pai.
H aqui um processo de transmisso (que provavelmente se faz sempre em
torno de um Terceiro: o Pai, Eu, e o Lugar do Pai). Mas, sublinhe-se, transmisso do intransmissvel - porque ddiva de nada.
Em segundo lugar, no apenas ddiva, que j algo que quebra o circuito
da troca, mas tambm dvida (a dvida de que falei no incio, e que todos
temos em relao a Cleonice). E, como inevitavelmente sucede no salto das
geraes, a transmisso do intransmissvel gera uma dvida infinita. O narrador poder trazer comida todos os dias para alimentar o pai. No entanto, nada
apaga nele um sentimento de culpa, e diz: Sou homem de tristes palavras. De
que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausncia - e o rio-rio-rio, o rio pondo perptuo. E mais frente: Apertava o corao. Ele estava l, sem a minha tranquilidade. Sou o culpado do que nem sei,
de dor em aberto, no meu foro. Soubesse se as coisas fossem outras.
A ele tenta pagar a dvida infinita propondo-se ocupar o lugar do Pai. Mas
compreende que, sem nunca ter quebrado a continuidade da sua viagem imvel, sem nunca ter agitado, nem sequer pela respirao, as guas do rio, o Pai
passara, ensinando a passar, do aqum para o alm ainda aqui. E o filho recua
poro de ser humano ter medo e recuar. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que no foi, o que vai ficar calado.. Assim se fez a troca dos bens
invisveis: o Pai ensinou a passar, o Filho aprendeu a ser mortal. Todos nessa
gua que no pra, de longas beiras: e eu, rio abaixo, rio afora, rio a dentro
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o rio. Note-se esta forma de deslizar: de eu no rio passa-se para eu-o rio.
O sujeito, no limite do trs, torna-se zero lugar da paz, da evidncia do que
. Assim se confirma uma das nossas hipteses: h uma indeterminao e instabilidade do Trs, que tende a rodar no sentido do Zero, ou da oscilao
Trs-Quatro (mas aqui recompem-se as dades: o Quatro Dois mais Dois)
ou do Infinito.
Sublinhemos dois pontos (e provavelmente isto acarretar passarmos para
um segundo e um terceiro textos).
O primeiro ponto o seguinte. Uma das questes essenciais em Guimares
Rosa a que se formula numa frase com que o narrador comenta a deciso do
pai: Aquilo que no havia, acontecia.
Trata-se do acesso ao simblico, no no sentido tradicional do termo, mas
naquele que irrompe na trade nuclear proposta por Jacques Lacan: o Real, o
Imaginrio e o Simblico. Um exemplo, que vem do prprio autor citado (e
da minha experincia pessoal, em viagem de automvel por uma estrada de
Espanha): uma coisa abrir o porta-bagagens do meu carro e verificar que ele
est vazio: nada est l dentro; outra coisa colocar l dentro a minha mala;
mas outra coisa ainda, a terceira nesta estria, abrir a bagageira e ver o vazio
da mala roubada que no est l. o mesmo nada, claro, mas de modo algum
eu posso ver esse nada como o mesmo: um nada residual, como diz
Guimares Rosa, um nada que s se obtm por um processo de abstraco (eu
parto da imagem da mala que devia l estar e no est, e vejo nitidamente o
vazio dessa mala). a terceira margem do vazio.
Temos assim uma cadncia tripartida: primeiro, acontece o que h; depois,
no h o que acontece; por fim, acontece o que no h. Donde, repetindo
Guimares Rosa: aquilo que no havia, acontecia.
Disso falou o prprio Guimares Rosa numa outra estria admirvel e fulgurante a que deu o nome de Nenhum, Nenhuma. o relato de alguns factos, que so grandes, porque irrompem vindos do indescoberto: irreversos
grandes factos - reflexos, relmpagos, lampejos - pesados em obscuridade. Eu
conto, saltando sobre o secundrio, mas com a conscincia de que nesta tramitao nada secundrio: um menino entra num quarto. No quarto, h um
homem sem aparncia supomo-lo de costas, ele estar sempre de costas,
como num quadro de Caspar David Friedrich (aproximamo-nos p ante p do
romantismo alemo). E h uma data ilegvel para a criana: ser talvez 1914.
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Por fim, infinito, sendo ainda, ou j, o que no . este o terceiro pensamento. Escreve Guimares Rosa: Tem horas em que, de repente, o mundo vira
pequenininho. Mas noutro de-repente ele j torna a ser demais de grande,
outra vez. A gente deve de esperar o terceiro pensamento.
Regressado cidade, o menino v seu pai, homem de bigodes. O pai dava
ordens para se construir um muro. A me, beijando-o, queria saber se ele no
rasgara a roupa, ou se ainda tinha no pescoo os santos das medalhinhas.
Viviam apenas no que h. E entre o menino e os pais ergue-se o intransmissvel. Porque eles no sabem; mas, sobretudo, porque eles no sabem que no
sabem. E o conto termina assim: eu precisei de fazer alguma coisa, de mim,
chorei e gritei, a eles dois: Vocs j no sabem de nada, de nada, ouviram?!
Vocs j se esqueceram de tudo o que, algum dia, sabiam!... E eles abaixaram
as cabeas, figuro que estremeceram. Porque eu desconheci meus Pais
eram-me to estranhos: jamais poderia verdadeiramente conhec-los, eu; eu?.
Chego agora ao terceiro ponto e ao terceiro texto de Guimares Rosa.
Trata-se do livro intitulado Tutamia, mas que tem o subttulo de Terceiras
Estrias. Note-se de passagem que h aqui um enigma, apontado por Paulo
Ronai em pergunta ao prprio autor: Por que Terceiras Estrias se no houve
as segundas? Guimares Rosa, depois de relatar explicaes de outros que j
tinha ouvido, acrescentou: o autor no diz nada. Perguntemos: ser que as
Terceiras Estrias se designam assim porque so estrias do Terceiro? A questo terica subjacente pode-se colocar nestes termos: o elemento terceiro
sempre o que Hegel designou como sntese? Por vezes ; por vezes no . De
qualquer modo, a histria das trades passa certamente por um permanente
confronto com a dialctica, ou as dialcticas - basta enumerar os pensadores
fascinados por trades para vermos a variedade de figuras que desfilam: Santo
Agostinho e mestre Eckhart, Plotino ou So Toms, Kant, Hegel ou
Kierkegaard, Peirce ou Bergson ou Deleuze... E para nos darmos conta de que,
no apenas o Terceiro pode ser algo que difere da noo de sntese, como, muitas vezes, algo que se contrape ostensivamente a essa ideia - a partir de uma
lgica, ou de uma economia, deliberadamente diferente. Poderia dar um
exemplo, ou mesmo dois, ou mesmo trs: o Sublime de Kant, o Witz dos
romnticos alemes, o Inconsciente de Freud.
Leia-se em Guimares Rosa o texto Aletria e Hermenutica (ttulo onde
se rastreia a instncia da letra) - prefcio (um dos prefcios, so quatro, como
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muito que nele no deveu caber (espero que a frase se possa aplicar tambm
a esta comunicao).
Em carta a Niethammer, de 24 de Fevereiro de 1796, Hlderlin dizia:
Pretendo encontrar o princpio que me explique as separaes nas quais pensamos e existimos, mas que seja tambm capaz de fazer desaparecer o conflito
entre o sujeito e o objecto, entre o nosso eu e o mundo, e mesmo entre a razo
e a revelao. No prefcio penltima verso do Hyperion, de 1795, Hlderlin
havia escrito: No teramos nenhum conhecimento dessa infinita paz, desse
ser no sentido nico do termo, no nos esforaramos para unir a ns a natureza, no pensaramos e no agiramos, nada seria em geral (para ns), ns
mesmos nada seramos (para ns), se aquela infinita unio, aquele ser, no sentido nico do termo, no estivesse presente. Ele est presente - como beleza..
E um poema de Hlderlin d-nos a palavra da sntese e pacificao: cincia e
ternura.
Permito-me sugerir que a paz que nos chega das imagens do velho pai na
canoa do rio, ou do rosto silencioso da Moa na sua luz de olhos sem fundo,
so pressentimentos desta paz de que fala Hlderlin, e que poderamos definir
deste modo: o lugar onde todas as dvidas se transformam em ddivas. Em
relao a Cleonice, esse lugar o da frmula que o prprio Hlderlin nos prope: cincia e ternura. E todos ns, unidos como os anis do Ion, presos apenas de se tocarem pelo magnetismo do que no h, todos ns, rio abaixo, rio
afora, rio adentro, o rio.
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UM CRISTALINO P
DE AMANTES
ENLAADOS:
Gilda Santos
Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ)
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Cames estava no DNA de Jorge de Sena afirmou, com imensa propriedade e o esprit de sempre, Luciana Stegagno Picchio no recente Colquio lisboeta1 dedicado ao autor de Sinais de Fogo. Assim, por imperativos genticos ou
por sbias artes do transforma-se o amador na cousa amada, no raro acontece que ao falar de Cames sobre si mesmo que fala Jorge de Sena. Evocar o
conhecido poema Cames Dirige-se a Seus Contemporneos, o magistral
conto Super Flumina Babylonis ou o candente Discurso da Guarda no 10
de junho de 1977, dispensa-me de maiores elucidaes.
Mas, principalmente quando o Amor entra em causa, as osmoses se acentuam. Como no ler, entre outros versos memorveis, os famosos Conforme
amor tiverdes, tereis o entendimento de meus versos a repercutir no E quem
de amor no sabe fuja dele, do poema-limiar Aviso de Porta de Livraria2? E se,
com Eduardo Loureno, relembrarmos que Jorge de Sena jamais escreveu algo
onde no se escreveu3, no escaparo os estudos senianos sobre Cames de
apontar inegveis pistas de leitura para o entendimento da obra do prprio estudioso. Assim, dentre muitos outros possveis, leia-se o comentrio sobre o vocabulrio dOs Lusadas relativo a Amar, amor, amado, amante e mais famlias:
[...] com palavras fundamentais como Amor pratica [Cames] todas as
variaes possveis. Amor o deus Eros ou Cupido pessoalmente, a paixo
ertica, todas as formas de erotismo (o incesto, a bestialidade, a homossexualidade so referidas tambm no poema, ao lado do amor heterossexual
normal) o sentimento amoroso, o amor de pais e filhos, de esposo e esposa (amor-amizade sem necessrias conotaes erticas), o amor da ptria
ou dos altos feitos, o dos servidores pelo rei ou do rei pelos servidores, o
amor divino (por sua vez em diversas conotaes, desde uma predileco
poltica por uma dinastia ou uma personalidade, at a F propriamente
dita). Esta riqueza de matizes, no uso mesmo de palavras comuns que so
todavia noes-chave do poema, por certo uma das caractersticas de
4
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Sena pensara reunir num livro os seus poemas erticos, o que no teve
tempo de fazer, embora para tal lhe no tivesse faltado, por certo, editor, se
o tivesse chegado a organizar. Mas tambm, na realidade, ele s soube a
cor da liberdade por dois escassos anos, antes que o primeiro grande
aviso lhe fosse feito, em maro de 1976. E o tempo, que sentia fugir-lhe, no
lhe dava para o tanto que queria fazer.8
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Portanto, quer pelo texto, quer por sua recepo, j se v, o como, ou o quanto,
tal modo subvertedor de cantar esse agente de metamorfoses que o amor Eros
primordialmente em Sena se vincula ao ter ptria..., ou no ter ptria..., ou
ter certa ptria..., ou incertas ptrias... As variantes so infinitas. Mas, finalmente, quer isto dizer que a Histria, Cronos, suplanta qualquer atemporalidade. Em Jorge de Sena, mesmo as fbulas com deuses primordiais, criaes
mticas ou seres bem datados , mesmo os objetos, de todas as naturezas, contm em si leituras testemunhantes de trajetrias temporalmente e espacialmente identificadoras do humano, do humano onde Eros pulsa com pujana.
Quer isto dizer que, ainda e sempre, h que invocar a obra nuclear de Jorge
de Sena: Metamorfoses25. Obra que tambm teve outro ttulo inicialmente pensado, indiciador de leituras: Museu, espao cannico da memria. Em drstica reduo smica, relembro que de um poema-preldio, AnteMetamorfose, onde um indistinguvel deus ou deusa jaz quase informe numa
praia imemorial; passa-se seqncia compacta de poemas que tomam como
motivao objetos estticos visuais datveis, e cronologicamente agrupados,
do sculo VII ou VIII a.C. at os anos 50 deste nosso sculo, no faltando a
aluses vrias a erotismos vrios, de que destaco a magnfica pgina de cartilha libertina O Balouo de Fragonard.
Como baloua pelos ares no espao
entre arvoredo que tremula e saias
que lnguidas esvoaam indiscretas!
Que pernas se entrevem, e que mais
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Finda essa suite ecfrstica, em Post-Metamorfose, com duas Variaes, voltam deuses a praias atemporais para, orgiasticamente, fecundarem o porvir, logo
emblematizado em andrgina caritide. Por fim, fechando o ciclo cosmognico,
surge Afrodite Anadimena a me de Eros que vem das guas, envolta em nova
ou inovadora ou renovada lngua, assmica, porque tecida de razes arcaicas.
Disseminados por livros anteriores e posteriores a estes que venho de citar,
os poemas onde Jorge de Sena celebra Eros ganham contudo mais relevo ou
intensidade, como lembra Mcia de Sena, nos ltimos ttulos publicados.
Depois de Metamorfoses, diria eu. H expressivos ncleos em Peregrinatio ad
Loca Infecta, Exorcismos e Conheo o Sal..., antes de se chegar ao climtico Sobre
Esta Praia ou ao pstumo, j referido, Viso Perptua. Na busca de linhas sistematizadoras, apontaria alguns campos microtemticos mais constantes,
sugeridos por ttulos de poemas:
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221
NOTAS
1
Colquio Jorge de Sena, promovido pela
Cmara Municipal de Lisboa, em outubro de
1998.
2
Jorge de SENA, Poesia III, Lisboa, Edies
70, 1989, p. 117. o primeiro poema do livro
Exorcismos.
3
Cito de depoimento pessoal de Eduardo
Loureno.
4
Jorge de SENA, Estudos sobre o Vocabulrio
de Os Lusadas, Lisboa, Edies 70, 1982, p.
63.
5
Idem, Poesia I, Lisboa, Edies 70, 1988, p.
168. Poema do livro Pedra Filosofal.
6
Idem, ibidem, p. 28
7
Eduardo LOURENO, As Evidncias de
Eros, Colquio/Letras, Lisboa, Fundao
Calouste Gulbenkian, 67:5-13, maio 1982, p.
6.
8
Jorge de SENA, Viso Perptua, Lisboa,
Edies 70, 1989, p. 14.
9
Eduardo Prado COELHO, A Noite do
Mundo, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 1984.
10
Jorge de SENA, Poesia III, Lisboa, Edies
70, 1989, p. 127. Poema do livro Exorcismos.
222
11
Idem, ibidem, p. 135. Poema Pouco a
Pouco..., do livro Exorcismos.
12
Idem, Poesia II, Lisboa, Edies 70, 1988, p.
95. Poema Cames Dirige-se a Seus
Contemporneos, do livro Metamorfoses.
13
Idem, Transformaes e Metamorfoses do
Sexo, Porto, O Oiro do Dia, 1980, pp. 9-18.
Apresenta vinte desenhos de Jos Rodrigues.
14
Idem, ibidem, p. 12
15
Idem, ibidem, p. 16
16
Idem, Gnesis, Lisboa, Edies 70, 1983.
17
Cleonice BERARDINELLI, O Jogo dos
Textos, Boletim do SEPESP, Rio de Janeiro,
Seminrio Permanente de Estudos
Portugueses/UFRJ, 6:45-57, 1995, p. 50.
18
Jorge de SENA, Poesia I, op. cit., pp. 177-193.
19
Idem, ibidem, p. 192. Soneto XX.
20
Idem, ibidem, p. 183. Soneto I.
21
Idem, O Fsico Prodigioso, Lisboa, Edies
70, 1986, p. 13.
22
Idem, Poesia I, op. cit., p. 187. Soneto X.
23
Idem, ibidem, p. 19.
24
Idem, Transformaes e Metamorfoses do
Sexo, op. cit., p. 10.
25
Idem, Poesia II, op. cit., pp. 51-161.
26
Idem, ibidem, p. 107.
27
Idem, Poesia III, op. cit., p. 232.
DA POESIA COMO
COISA MENTAL E
FIGURAO EM
FERNANDO PESSOA
ma de entre as vrias epgrafes com que poderia comear estas reflexes seria a seguinte, proveniente da poesia ortnima de Fernando
Pessoa: Seu sprito monge/ para nada externo perto e real. Como em muitas outras formulaes cuja densidade dificilmente pode ser desdobrada na
sua totalidade, esta parece-me descrever, rigorosamente, o lugar de onde dimana o problema que aqui gostaria de tratar: um sprito monge, cuja condio
monstica, de retiro voluntrio do mundo, implica todavia a existncia nesse
mesmo mundo; o reconhecimento de uma exterioridade global e plena,
perante a qual o sprito afirma a sua condio de alheamento, distncia e desrealizao. E, no entanto, esse externo real configura-se e molda-se variamente face ao sprito que o no pode acolher nem tocar. Afirma-se pois, numa
espcie de negatividade plena que coincide com o reconhecimento da sua afirmao objectal. Procurarei assim debruar-me, no contexto, sobre uma das
tenses irresolvidas (porque essencialmente irresolveis) de Pessoa (alis neste
ponto, como noutros, herdeiras de caminhos abertos por exemplo por Camilo
Pessanha): a tenso que indissociavelmente liga uma vertente de reflexo conceptual e mesmo intelectualista (que permite a Eduardo Loureno falar, a propsito de Pessoa, mas tambm de Cames e Antero, de poesia e metafsica1),
por um lado; e, por outro, uma tendncia figurativa e sensitiva, capaz de fazer
radicar tal reflexo conceptual em objectos concretos de representao (que,
por seu turno, leva Jos Gil a falar de uma metafsica das sensaes2).
Esta tenso entre reflexo conceptual e representao figurativa (mesmo se
variamente desarticulada em alguns dos ismos pessoanos) poder, creio eu,
ser iluminada pela noo de correlativo objectivo, tal como T. S. Eliot a
entende e formula, em 1919: no fundo, um esvaziamento da dimenso, tradi-
223
cionalmente afecta lrica, da emotividade pela sua objectivao em figuraes correlatas que, ao representarem (e ao substiturem) essa dimenso, realizam o poema como reflexo pessoal conduzida sob o signo da despersonalizao. Mas tambm, e correlatamente: o vazamento das emoes e dos afectos em moldes objectivados, que ao mesmo tempo sinalizem e funcionem
como mostrao do gesto de ruptura e de distncia que funda a relao entre
sujeito e mundo. Penso entretanto que o entendimento de tais figuraes no
quadro do correlativo objectivo se poder tornar ainda mais proveitosa se se
tomarem em conta as consideraes a partir das quais, em 1958, Walter J. Ong
retoma a noo avanada por Eliot, sublinhando o carcter eminentemente
dialctico dos dois correlativos que analisa: o correlativo objectivo e aquele a
que ele chama o correlativo aural3. Na verdade, o reconhecimento do funcionamento aural/oral das figuraes pessoanas, tal como Ong o entende,
parece-me iluminar a tenso de que atrs falava, ao sublinhar o carcter verbal (utterances) e at gritado do discurso, constituindo a conscincia de
um som emitido do interior da pessoa4, intima e corporalmente relacionado
com o respirar. Neste sentido, tal funcionamento oral/aural sublinharia as
implicaes existenciais do dilogo5, permitindo entender a poesia, que dele
se serve, como um momento num dilogo6. Por aqui acederamos tambm
fundamentao dramtica e nessa medida aural da poesia de Fernando Pessoa
quer na citao imaginria, por Caeiro, de fragmentos de outras vozes, quer
na interna dramatizao do grito (e da respirao) de Campos, quer no contido dilogo de Reis com Ldia e os deuses a tudo isto se juntando a dramaticidade implicada pelo prprio fenmeno heteronmico, ele mesmo dialogal
por natureza.
Alm do mais, qualquer exerccio de verbalizao oral da poesia de Pessoa
ver-se- confrontada com uma necessidade de escolha de um tom e de um
ritmo ditos em opo que, no sendo por aqui diferente de qualquer outra
poesia dita, tanto mais significativa quanto joga, precisamente, na profunda
e sabedora diferenciao de tais tons e ritmos: o de Reis, de silabao metdica e acentuada neutralizao tonal, jogando no apertado controle respiratrio
das pausas e das inflexes de voz provocadas pelos constantes hiprbatos; o de
Campos, oscilando entre o grito desmesurado e exclamativo, a implicar flego
extenso de respirao e tonalidade vocal (mesmo difceis vocalizaes), e o
sbito quase murmrio semi-balbuciado, de regresso e retrocesso; o de Caeiro,
224
a querer-se coincidente com uma respirao natural e prosaica, mais hipostasiada do que efectivamente existente ( quase comovente a vontade de
prosa da poesia caeiriana), e solicitando uma tonalidade neutra, que possa
coincidir com o que gostaria de poder ser tambm uma neutra descrio do
mundo quadro em que a prpria diferenciao mtrica seria entendvel
como a manifestao (ou melhor, o reconhecimento, o registo) discursiva da
diferena auto-evidente entre, por exemplo, uma flor e o vento; o de Pessoa
ortnimo, por momentos recuperando cada uma das outras suas vrias respiraes - e a elas acrescentando a ladainha infantil feita quase litania, a preciso
rtmica e mtrica da quadra de recorte popular e tradio oral, o despojado
mas tambm grave registo onde a pronncia se quer cuidadosa e silabada, para
que entre sono e sonho se perceba e conserve a distncia fundadora. Numa
poesia profundamente escrita, Pessoa conserva e intensifica a tal ponto a
dimenso oral que bem se pode dela dizer, com Walter Ong, que a aura dialogal extravasa da palavra escrita e nela inscreve o fenmeno de um dilogo
humano que no esquece o corpo que fala.
Mas, extravasando tambm um pouco para l das observaes de Ong,
poderamos ainda tambm falar, a este propsito, de uma aura benjaminiana, a que, ao colocar o estatuto da obra de arte moderna como perda, permitiria alm do mais acentuar a dimenso substitutiva e espectral das objectivaes figuradas: elas esto ali, mas nesse estar ali se inscreve a sua radical exterioridade e, por isso, a distncia constitutiva da relao entre sujeito e mundo.
De vestgios e runas se compe ento o lado que Bernardo Soares, como os
outros, dir estar sempre fora mas cuja aura ilumina, nos objectos, a sua
figurao conscincia.
Esta relao entre sujeito e mundo , ento, sobretudo, uma relao gnoseolgica, e em torno dela e sobretudo da sua radical impossibilidade que
se geram quer o ncleo fundamental da questionao pessoana quer as diversas respostas que a desmultiplicao heteronmica oferece. O vis que gostaria
aqui de sublinhar insiste sobretudo no facto de que a diversificao efectiva
das respostas heteronmicas (nas suas mesmas diferenas discursivas, poticas,
existenciais e filosficas) no esconde a sua radicao num conjunto de problemas e interrogaes comuns, enunciveis em torno de questes como o
sentido, o conhecimento, a fragmentao do eu e do mundo e a conscincia.
Situamo-nos ento aqui face a uma tpica problemtica pessoana, a da impos-
225
226
repetidamente doloroso), responder com a amplitude do seu desassossego e em prosa, onde mais difcil outrar-se.
De todas estas distncias, que fundam ento o presente como esvaziamento e des-realizao, nasce a prpria necessidade de representao figurativa de
que falo. O lugar do entre, do intervalo, habitado apenas por representaes de representaes, figuraes aparentemente mediadoras mas que sinalizam, afinal, a impossibilidade de mediao e de trnsito. E, nessa medida, o
presente, porque tambm o momento da linguagem (e do discurso potico
pessoano), torna-se ento numa reflexo sobre o modo como essa linguagem
no s no toca o mundo como representa a ausncia dele, fala dessa ausncia
ao dizer-se. A potica pessoana representa-se ento como coisa mental que
assinala a plena exterioridade do mundo Caeiro dir A realidade no precisa de mim; como Campos reconhecer o imperativo de No poder viajar
para o passado, para aquela casa e aquela afeio,/ E ficar l sempre, sempre
criana e sempre contente!; como Reis erguer a distncia retrica, verbal e
cultural em sinalizao de uma linguagem que ele quer outra mais outra
do que alguma vez tivesse podido ser.
Neste quadro, apenas se torna possvel falar no presente e a partir dele, ou
seja, falar do des-real que a presena do sujeito no mundo activa e pe em
marcha. A poesia, enquanto actividade emblemtica da fala humana, corresponde nessa medida a um reiterado e obsessivo exerccio desse presente desrealizado, dessa radical impossibilidade de tocar o mundo, dessa funda conscincia de uma exterioridade a que o sujeito apenas teve e ter acesso no exacto momento em que deixar de se reconhecer e colocar como sujeito, em movimento de anulao da conscincia que, entre outros, Manuel Gusmo segue,
particularmente na sua formulao caeiriana8. Este conjunto de questes relaciona-se, ento, com dois dos procedimentos retricos mais obsessivamente
praticados no universo pessoano, embora sob diferentes modalizaes discursivas: a iterao e o oximoro. A iterao porque, no havendo hiptese de
avano nem recuo, de progresso ou de regresso, se trata sobretudo de
reiterar esta mesma condio que, ao mesmo tempo que funda o discurso potico, o faz radicar nessa impossibilidade: por isso o topos da viagem impossvel, que percorre Pessoa desde Campos a Bernardo Soares, surge aqui, ironicamente, no como uma forma de efectivamente viajar, de ordenar espacialmente o mundo (como algum Campos julgara por um breve momento ser
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possvel), nele detectando valores (como na poesia de Herculano) ou uma histria narrvel (em Soares de Passos, histria j angustiada em Antero), no
como uma forma de fazer emergir o cosmos do caos - mas, pelo contrrio,
como um modo de representar a intimidade desse mesmo caos, cristalizado
num presente que d conta da fragmentao dos sentidos e da errncia fracturada (e fracturante) do sujeito. A isto junta-se o oximoro, porque o acesso
ao mundo se funda na anulao do sujeito, que correlatamente anulao do
mundo enquanto tal, ao mesmo tempo que afirmao do seu ser-de-coisa.
Falei de representaes figurativas, e da sua necessidade retrica, no contexto. O que gostaria de sublinhar que as mquinas futuristas de Campos, as
rvores e os sis de Caeiro, as rosas e os bolos de Reis, embora objectiva e
figurativamente diferenciados, e provenientes alis de mundos semnticos e
existenciais aparentemente opostos, podem desta perspectiva ser considerados
como funcionalmente anlogos. Qualquer desses motivos usado, no interior
do universo heteronmico em que surge, como o correlativo objectivo que
manifesta a exterioridade do mundo e do sentido face ao sujeito, a des-realizao de um real cuja face oculta , afinal, a sua face inteira: Nada me prende
a nada, dir Campos, num dos seus Lisbon Revisited. As respostas heteronmicas de algum modo equivalem-se, assim, na sua prpria formal diferenciao concreta. Do lado da pergunta que lhes subjaz, encontramos o intervalo
doloroso que Bernardo Soares e a poesia ortnima usam como alto lugar de
uma poesia que fala, principalmente, da dor de conhecer que onde a falha
do sentido habita.
Juntemos a estes um outro elemento: o contraste entre um mundo exterior
e mudo, porque o silncio o seu modo de ser, e um sujeito cujo modo de existir passa pela reiterada prtica da fala e, como vimos, do dilogo humanos,
manifestados como linguagem potica. Assim, e em novo oximoro fundador,
na prpria mudez exterior do mundo que radica o discurso potico, que d
voz ao silncio do ser atravs da fala do que existe. Vicente Guedes/Bernardo
Soares, na Floresta do Alheamento, reconhecer que o tdio de ser encontra a sua ptria e a sua voz, quiasmaticamente, na mudez e no exlio dos
lagos e estes lagos so aqui a sindoque de um mundo que, ao contrrio do
sujeito, se fala apenas na fala perfeita do que mudo. tambm por isso que
a distncia que separa sujeito e real ela mesma intransponvel: porque o
momento (passado, da infncia, ou futuro, da morte) em que deixar de ser
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NOTAS
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A LNGUA DE CLEONICE
Ivo Castro
Universidade de Lisboa
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sa ocupava uma posio mais central na vida brasileira e em que a unidade lingustica era com mais verdade sentida. Por isso, enquanto em Portugal a educao visa a aquisio de um nico modelo lingustico, no Brasil ela oferece
uma escolha entre dois modelos, que no diferem apenas na sua materialidade lingustica, mas tambm nas implicaes culturais e ideolgicas. assimetria da resultante, que diz respeito fundamentalmente ao povo brasileiro, vem
somar-se o facto de a fragmentao lingustica do latim em diversas lnguas
romnicas continuar activa e seguir seu curso, como prprio dos grandes
movimentos de placas tectnicas, comeando a ser visvel que, segundo os critrios tipolgicos usados pela lingustica terica para comparar, classificar e
distinguir lnguas, o problema de haver fracturas dentro do espao lingustico
portugus deve ser colocado. sobre este pano de fundo, sombrio ou promissor consoante os gostos, que tentarei falar da lngua de Cleonice.
Confesso que no fui muito escrupuloso na recolha do corpus. Limitei-me
a ler conferncias, comunicaes a congressos e livros produzidos por
Cleonice com destino a pblicos brasileiros. Assim como no tive em conta as
manifestaes da sua oralidade, tambm desprezei as suas cartas, faxes e,
agora, mensagens electrnicas, o que me deu grande prazer, pois o sentido
geral da produo epistolar que me dirige a reclamao (de informaes, de
opinies, em suma de trabalho). Mas gostaria de ter lido transcries do seu
discurso oral, produzido em situao de dilogo e sem apoio escrito: a que
melhor se veria, na espontaneidade da escolha da palavra e da construo, e
sem influncia da colorao fontica, se a lngua de Cleonice foi mais marcada pela escola onde estudou ou pela terra em que nasceu.
Ao longo dessa leitura, distra-me frequentemente do objectivo, que era fazer
fichas, e perdi-me nas palavras de Cleonice, que, se subitamente nos mudssemos para Frana, encepariam na linhagem clssica da Svign e da criada de
Proust. Foram momentos prazerosos, para usar um adjectivo recorrente do seu
vocabulrio, que j lhe ouvi neste colquio. Mas mais de uma vez, ao apreciar o
esprito, a regra e a elegncia com que a sua personalidade se manifesta no que
escreve, e no resto, me veio lembrana uma personagem da Regra do Jogo, de
Renoir, que melancolicamente notava: Cela se perd, cela se perd.
Mas nem todas as perdas tm de ser infelizes. Uma perda feliz aquela que
renasce como mudana aceite, nas lnguas como em todas as coisas. Sabem-no
bem os sociolinguistas, cansados de ver como supostas corrupes da lngua,
231
que causam escndalo entre os puristas durante gerao e meia, logo reaparecem nas pginas do dicionrio ou convertidas em regras consensuais da gramtica normativa. Observam-no, nos ritmos mais espaados do nascimento,
evoluo e diferenciao das lnguas, os historiadores. Por isso, talvez no
valha a pena preocuparmo-nos demasiado com a perspectiva de as gramticas
brasileira e portuguesa prosseguirem a sua serena distanciao uma da outra.
No ser por isso que deixaremos de nos entender, se quisermos comunicar.
Melhor dito: no ser por isso que os nossos descendentes longnquos se
desentendero.
O que geralmente faz quem chega a este ponto do discurso enfiar pelo
campo das polticas da lngua, campo minado de argumentos racionais e emotivos que importaria abordar de uma forma completa e metdica, distinguindo necessariamente dois nveis de discusso: em um deles, preciso reconhecer que no so coincidentes por natureza, mas podero s-lo por escolha, as
diversas polticas nacionais da lngua portuguesa, havendo que identificar e
distinguir uma poltica portuguesa, uma poltica brasileira e uma, ou umas,
polticas africanas da lngua portuguesa; no outro nvel, so de concretizar as
opes e as atitudes que em cada poltica nacional se assumiro. Assim, no
caso de Portugal, tm de ser reconhecidas, e tratadas como partes distintas
dentro de um todo, uma poltica em relao ao portugus do Brasil, outra em
relao ao de frica, outra ainda em relao ao galego, visto que at hoje nos
limitamos a tomar conhecimento do debate interno galego sobre as afinidades
com o portugus, ou simplesmente a ignorar a existncia desse debate, e por
ltimo uma poltica em relao ao portugus de Portugal. Na definio de
qualquer destas polticas, a lngua um elemento essencial, mas que no deveria ser utilizado como um valor absoluto e pr-estabelecido. esse o defeito
que encontro nas posies maximalistas, de que so bom exemplo as mais
extremadas: uma declarando que a lngua nica, porque sim, no mtico
espao dos 200 milhes, todas as aces devendo decorrer desse facto indiscutvel, e a outra posio anunciando que no Brasil o portugus j outra lngua, sugerindo por meio deste j e deste outra que houve uma inteno
separatista marcada. Em ambas as posies noto a convico de que nada resta
ao homem para influenciar o curso dos acontecimentos. Ora, no preciso ter
uma viso herica da histria para reconhecer que personalidades como
Cleonice Berardinelli, pela abundncia de meios de difuso que so concedi-
232
dos s suas palavras, dispem de uma capacidade de influncia que pode ser
determinante na fixao de normas e na rejeio de inovaes lingusticas.
Vamos ver que sinais nos d, neste magno contexto, a lngua de Cleonice.
Para isso, adopto como termo de referncia dois posicionamentos assumidos
por linguistas brasileiros, um favorvel fragmentao lingustica do portugus e outro sua unidade superior, mas ambos formulados com tal prudncia e ausncia de chamamentos retricos que quase apeteceria demonstrar que
so conciliveis.
Uma posio que nos ltimos anos tem vindo a adquirir visibilidade e crdito entre muitos linguistas brasileiros e, preciso acrescentar, tambm entre
bastantes dos seus colegas portugueses (significando que no h entrincheiramentos nacionais neste debate) a de que o portugus brasileiro (PB) e o portugus europeu (PE) j so duas lnguas diferentes. Soa certamente como radical esta afirmao a muitas das pessoas envolvidas. Eu prprio confesso alguma dificuldade inicial em a aceitar e dvidas quanto ao j, que insinua, como
notei, um processo deliberado de afastamento do PB em relao a um ponto
de partida que seria o PE. Processos como esse, designados por elaborao ou
Ausbau na terminologia de Heinz Kloss, existem certamente: temos um a
decorrer mesmo ao nosso lado, com as instituies galegas (governo, universidade e academia) a procurarem as solues que melhor individualizem a sua
lngua por comparao com o castelhano e, em certa medida, o portugus.
Mas os terrenos em que essas opes mais nitidamente se manifestam so a
ortografia, o lxico e a morfologia. No caso do portugus brasileiro, a demonstrao feita com base em materiais de natureza sintctica e nela se entrelaa
uma outra discusso, a de saber se estamos perante novas regras ou perante
possibilidades antigas da lngua portuguesa. Se, no plano da sintaxe, no me
sinto vontade para emitir opinio, j no plano da fonologia me parece claro
que o PB no se caracteriza por uma elaborao diferencial em relao ao PE,
mas, ao contrrio, pela conservao de fonemas que em Portugal que foram
mudados, como se pode observar, por exemplo, na dramtica transfigurao
do sistema do vocalismo tono que ainda tem muitos frutos para dar ou na
palatalizao do ubquo /-s/ implosivo em final de slaba. No primeiro caso, o
Brasil conserva os fonemas voclicos /e/ e /o/ em posio tona, prprios da
lngua medieval e clssica, que em Portugal se elevaram para /e/ mudo ou /i/
e para /u/ respectivamente e que hoje esto a desaparecer em certos contextos;
233
no segundo caso, o /-s/ implosivo que ocorre em muitos finais de slaba interna e, sobretudo, em todas as palavras plurais, o que o torna um dos fonemas
mais frequentes da lngua, sofreu em Portugal, de sul para norte a partir do
sc. XVIII, uma palatalizao que ainda no atingiu os dialectos do norte
enquanto, no Brasil, onde parece ter sido introduzida pela corte de D. Joo VI,
afecta apenas a zona de influncia do dialecto do Rio. Estes factos fonolgicos
levariam a concluir que no o PB, mas sim o PE que j outro. Mas prefiro diz-lo de outro modo: nestes particulares da fonologia, a lngua de
Cleonice est mais prxima da lngua de Cames que a minha. Se verdade
que Jos Saramago disse um dia a um estudante brasileiro A lngua minha,
o sotaque seu, teramos de perguntar onde que, nos casos que apontei,
estar realmente o sotaque, para depois concluirmos que todos, sem excepo,
falamos com sotaque.
Mas retomo o fio da conversa. O contraste entre as gramticas brasileira
e portuguesa est feito por muitos autores; de entre eles, prefiro a apresentao sinttica de Paul Teyssier no seu Manual de Lngua Portuguesa (PortugalBrasil), de 1989. Mas a ideia de que PE e PB no so a mesma lngua no ressalta dessas apresentaes, s comeando a surgir nas obras de linguistas
como Fernando Tarallo, Mary Kato, Charlotte Galvs, entre outros. Muito
recentemente, em 1998, esta professora tornou a expo-la com argumentos de
ordem sintctica, ressalvando que a distino entre as duas lnguas pressupe que se defina lngua como Gramtica ou Lngua Interna, ou seja o
estado de saber lingustico dos falantes que tm essa lngua como lngua
materna, saber esse que no deve ser confundido com o conjunto de enunciados lingusticos que uma comunidade pode produzir em correlao com
as marcas sociais, histricas e culturais da sua existncia colectiva, ou seja
uma Lngua Externa, aquilo a que se costuma chamar normalmente lngua
ou idioma2. Esta ressalva importante, pois claramente situa a questo no
plano da estrutura interna da lngua, sem implicaes directas e imediatas
sobre a produo ou a percepo dos actos lingusticos concretos. Para que
duas lnguas internas sejam consideradas diferentes, basta que possuam duas
ordens de coerncia distintas e que no possam ser produzidas por um
mesmo conhecimento lingustico3; para isso basta que se distingam por um
nico parmetro da gramtica universal, com o que no s podem produzir
enunciados de tipo diferente como tambm fazer corresponder estruturas
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239
NOTAS
1
Celso CUNHA, Poltica e Cultura do
Idioma, in: Lngua, Nao e Alienao, Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1981.
2
Charlotte GALVS, A Gramtica do
Portugus Brasileiro, in: Lnguas e
Instrumentos Crticos, Campinas, n. 1, Jan.Junho, 1998, p. 80.
3
Idem, ibidem, p. 91.
4
Paul TEYSSIER, Manual da Lngua
Portuguesa (Portugal Brasil), Coimbra,
Coimbra ed., 1989, p. 125.
5
Celso CUNHA e Lindley CINTRA, Nova
Gramtica do Portugus Contemporneo,
Lisboa, Joo S da Costa, 1984, p. xiv.
6
Celso CUNHA, A Questo da Norma Culta
Brasileira, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,
1985, p. 36.
[60A-30r: 26-8-1930]
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
CUNHA, Celso. Poltica e Cultura do
Idioma, in: Lngua, Nao e Alienao. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
CUNHA, Celso; CINTRA, L. F. Lindley. Nova
Gramtica do Portugus Contemporneo.
Lisboa: Joo S da Costa, 1984.
240