(A) BERARDINELLI, Cleonice - Poesia Portuguesa No Século XX
(A) BERARDINELLI, Cleonice - Poesia Portuguesa No Século XX
(A) BERARDINELLI, Cleonice - Poesia Portuguesa No Século XX
CLEONICE BERARDINELLI
(Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro)
que quer despir o pensamento do fato "que os homens o fizeram usar", que
insiste em dizer:
M a s um ou outro, um momento,
Olhando bem, pode ver
Na sombra e seu movimento
Oual no outro mundo é o intento
Do gesto que o faz viver.
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LETRAS, (26) 1977
O que aqui s e exprime são sobretudo duas idéias: a certeza da perma-
nência pelos versos (firmes como coluna) e a de que a mente cria um mundo
que nela se reflete. Esta ode, porém, tem uma variante que deve corres-
ponder a um 1.° estágio de redação e que, embora poeticamente inferior —
por demais explícita e discursiva — , é altamente elucidativa de uma con-
cepção do ato poético relacionado com o s e u criador que é, s e não anulado,
apoucado ou simplesmente questionado, como propõe Derrida:
O que se põe em questão é " a autoridade de um começo incontestável,
de um ponto de partida absoluto, de uma responsabilidade de principio".
Vejamos se, ao ouvir a variante que talvez poucos conheçam, concordam
com a minha colocação; só os dois primeiros versos são idênticos:
Passamos a Presença e nela vamos buscar Miguel Torga, que, aos ses-
senta e nove anos, acaba de receber a consagração mundial, recebendo o
prêmio internacional de poesia de 1976 das Bienais Internacionais de Poesia
de Knokke-Heist. De um de seus últimos livros de poesia, Orfeu rebelde, esco-
lhemos o primeiro poema, que tem o mesmo título:
Bem menos complexo que Pessoa, Torga não nos exige declfração tão
acurada. Neste poema há duas afirmações básicas: 1. o sofrimento do poe-
ta é a matéria de sua poesia e 2. na poesia o poeta busca a eternidade.
Esta segunda afirmação, já a tínhamos encontrado em Reis, que fica em
seus versos, sem temer o tempo e o esquecimento; a primeira, profunda-
mente subjetiva, existe em Pessoa, menos claramente manifesta. Num, co-
mo no outro, é o mesmo verbo, gravar ("realmente", na placa, em Reis, me-
taforicamente, na casca do tempo, em Torga) que vai garantir a eternidade.
O que há a mais, em Torga, é uma considerável dose de emoção que s e
traduz em palavras, frases e figuras hiperbólicas: possesso, fúria, desafio,
" o céu e a terra, pedras conjugadas / Do moinho cruel que me tritura", "gri-
tos como nortadas", "violências famintas de ternura", "como quem usa os
versos em legítima defesa". O poeta chama-se, a si mesmo, Orfeu, exprime
o desejo de que também o seu canto tenha poderes mágicos, preservando
da morte o poeta em cujo corpo um bicho instintivo a adivinha, e opõe seu
canto movido pelo sofrimento ao dos outros, os felizes, os rouxinóis.
O poema de Casais, que marcaria um novo ponto de referência em
meu roteiro, seria "Permanência", onde, além da reiteração da idéia apon-
tada no título e já levantada em Reis e Torga, acrescentar-se-iam outras ao
tempo bastante inovadoras:
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LETRAS, (26) 1977
PERMANÊNCIA
NO POEMA
Também deste poema s e pode dizer que é uma arte poética, expressa
não por definlções/não-definições que vimos em Gomes Ferreira, mas por
uma série de conselhos ou auto-conselhos para criar poesia. Aliás, é bem
de Sofia esta maneira de supor um texto anterior ao poema, no qual se
formulam questões como em "Porque", ou s e Inserem verbos dicendi, como
aqui. Três verbos no infinitivo (que também pode ser lido como imperativo),
três verbos, dizia eu, que se reduzem a dois, pois preservar e guardar são
sinônimos quase perfeitos, reforçando-se quase tautologicamente. Assim, nas
duas estrofes temos o s dois preceitos fundamentais do ato criador: trans-
ferir o referente para o discurso poético o preservar o momento da revela-
ção poética, o gesto da escritura. Do mundo real Sofia seleciona elementos
que sintetizam o concreto e o abstrato, o sólido e o líquido, o natural e o
artificial, mas sua seleção s ó se faz numa área semântica em que predomi-
nam os semas positivos de arte (quadro), de proteção (muro), de frescura
(brisa, água), de beleza (flor), de pureza (virgem), de transparência (copo,
água). Ê esse mundo exterior restrito e seleto que se deve transferir para
o mundo do poema, triplamente qualificado por epítetos da preferência do
poeta: limpo, rigoroso e claro. Claro é também o gesto "da mão tocando a
mesa". Para Sofia, como para Reis, Torga e Casais Monteiro, o poema é o
lugar da preservação, da permanência: neles, sobretudo, a necessidade de
permanecer como homem e como poeta nos seus versos; nela, o desejo
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LETRAS, (26) 1977
de fixar no poema " o instante real de aparição e de surpresa" que, lido se-
paradamente, poderia ser tomado como um instante-limite da aparição, mas
que, em conjunto com o ultimo verso, mais parece significar o instante da
criação poética, a partir do "gesto claro da mão tocando a mesa".
Seria curioso estabelecer aqui, embora de passagem, um paralelo entre
a matéria poética de Sofia de Melo Breyner e a de outro grande poeta do
mesmo grupo dos Cadernos de Poesia, Eugênio de Andrade. Enquanto ela s e
prende à área marcada pelo que chamamos semas positivos, ela transpõe
tais limites e traz para o poema as palavras que junta por ofício ( " O ofício"
é o título do poema que se propõe como uma arte poética] e e s s a s pala-
vras são as secreções ou dejetos do corpo humano, repugnantes mas tam-
bém representativos do mais íntimo do ser.
Antônio Gedeão traz para a poesia uma longa experiência e um voca-
bulário específico da área das ciências físico-químicas. É dessa área o título
do poema e metáfora do poeta: " S u s p e n s ã o coloidal".
O POEMA
Ricos em Imagens que transmitem uma visão onírica do ato poético, que
se confunde com o ato amoroso, são estes versos de Herberto Helder que
transmitem a visão do crescimento avassalador do poema: a princípio, "inse-
guramente, na confusão da carne"; depois, "tomando tudo em seu regaço",
já nenhum poder o destrói; finalmente, "faz-se contra o tempo e a carne".
E o poeta que o gerou, "instrumento perplexo Ignora a espinha do misté-
rio". E bem de um poeta fundamente marcado pelo surrealismo o reconhe-
cimento da inconsciência da criação poética, do automatismo da escrita.
Do grupo de Poesia-61, a mais jovem. Luiza Neto Jorge, é talvez a que
mais freqüentemente procura definir o poeta e o poema. De seu livro Terra
Imóvel, trouxemos este pequeno poema que, na 1.' edição do volume não ti-
nha título e estava partido — a primeira estrofe numa página, as duas outras
O POEMA
0.5
o que se diz
é uma linguagem temerosa
às vezes
um modo aperfeiçoado
de silêncio
Por outros poemas, sabemos que essas palavras são as palavras do poe-
ma e, portanto, há neste o reconhecimento da deficiência da palavra, mesmo
da palavra poética, para significar plenamente.
Nuno Guimarães faz poesia moderna de recorte tradicional: versos me-
didos de rimas toantes, em quadras, em sonetos. Pontua rigorosamente seu
texto, porém só usa a maiúscula no início do poema.
VI
Algures
o poema sonha
o arquétipo
do vôo
inutilmente
porque repete
apenas
o signo, o desenho
do outono
aéreo
onde s e perde a ave
quando vier
o instante
de voar.
O pulsar
das palavras,
atraídas
ao chão
desta colina
por uma densidade
que palpita
entre
a cal
e a água,
lembra
o das estrelas
antes
de caírem.