MARQUES, Antonio - Mapeando o Sujeito em Nietzsche
MARQUES, Antonio - Mapeando o Sujeito em Nietzsche
MARQUES, Antonio - Mapeando o Sujeito em Nietzsche
Mapeando o sujeito em
Nietzsche: a distino
entre o Ich e o Selbst
Antnio Marques*
Resumo: O artigo visa a analisar o estatudo do sujeito em Nietzsche.
Para tanto, investiga o dispositivo de uma auto-observao exercida pelo
eu que consiste num mapeamento do si mesmo; perscruta um recuo, em relao a Kant, no plano terico, quanto dissoluo do sujeito
da tradio metafsica; e avana a tese de que o sujeito a articulao
entre o Ich e o Selbst, de modo que a compreenso do sujeito permite
jogar luz sobre a relao especfica entre essas duas realidades.
Palavras-chaves: Nietzsche sujeito ich selbst - corpo
Friedrich Nietzsche amava as montanhas e foi nelas que encontrou Zaratustra, a sua ltima e definitiva mscara, mas foi a descida a zonas abissais do interior que fez a singularidade da sua
filosofia. Tal como pode ser lido em Para a genealogia da moral
(1888), essa foi uma descida a todo o mundo interior, que originariamente era to delgado como se estivesse apertado entre duas
epidermes, desenvolveu-se e ampliou-se, ganhou profundidade,
largura e altura, na proporo em que foram sendo restringidas as
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Justifica-se que demoremos um pouco neste notvel texto. Referi uma aparente ambiguidade nele existente no que respeita
adeso que o prprio Nietzsche revela face radicalidade que
reconhecida crtica ao eu metafsico por parte da filosofia moderna. Por um lado, o representante maior dessa forma moderna
de pensar, Kant, ter revelado a existncia ilusria desse eu e
foi ainda no quadro desse programa de dissoluo da metafsica do
sujeito que se inverteu a antiga relao que colocava o eu como
condio e o pensamento como condicionado. Para Nietzsche,
numa observao que ser, mais perto de ns, retomada por Wittgenstein5, a metafsica assenta fundamentalmente numa construo
gramatical, que basta inverter para repor a boa perspectiva sobre
essa relao. E essa inverso foi sem dvida levada a cabo pelo
modo de pensar moderno. Por outro lado, Nietzsche observa que
esta filosofia ainda no se apresenta suficientemente anti-religiosa.
5 Ver por ex. o 37 das Investigaes Filosficas: A essncia exprime-se na gramtica.
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organismo est no interior de limites e a vida do organismo definida pela manuteno de estados internos no interior dos limites. A
individualidade singular depende dos limites11.
Deste modo, aquilo a que chamei mapeamento do corpo no
de forma alguma processado sobre um magma catico, o que confirma certamente a noo lgica de que um caos no mapevel.
Antecipando um tema que menciono mais frente, o mtodo proposto por Nietzsche ser antes o de seguir o fio condutor do corpo,
frmula com o seu ingrediente retrico, mas detentora do significado
iniludvel de uma identificao dos topoi principais da vida afectiva,
no sentido mais profundo dos sentimentos morais que o homem interiorizou. Em vez do caos, o ponto de partida de Nietzsche antes a
verificao, mais do que mera hiptese, que todos os instintos que
se no libertam para o exterior viram-se para dentro: a este processo
chamo a interiorizao do homem (GM/GM II 16, KSA 5. 321-4).
agora altura de avaliarmos o instrumento reflexivo do Selbst que o Ich e caracterizar a actividade cognitiva que Nietzsche
lhe reserva. Para tanto sugerimos a utilizao de dois captulos do
Assim falava Zaratustra, no Livro I, intitulados Dos Visionrios
do Alm-Mundo e Dos Desprezadores do Corpo, sem os quais
no possvel compreender ao problema do sujeito na sua filosofia. Restrinjo a minha anlise a alguns pontos mais significativos.
Em Dos Visionrios ... Zaratustra pugna pela criao de novos
11 DAMSIO, A. The Feeling of What Happens- Body and Emotion in the Making of
Consciousness. New York/London: Harcourt Brace & Company, 1999, p. 135-6. Tambm
para alguns psiclogos cognitivos, a primitiva formao de uma auto-conscincia do corpo
est ligada apreenso e limites do si mesmo incorporado e directa consequncia do
estabelecimento de limites entre o self e o que o no . Cf. Entre outros, o recente estudo
de Jos Bermudez, Bodily Awareness and Self-Consciousness (The Oxford Handbook of
the Self. Oxford: Oxford University Press, 2011). Para o problema do sujeito de que aqui
se trata, interessante a forma como este auto-conhecimento sublinha a diferena entre a
conscincia do corpo prprio que dada nas chamadas percepes internas (proprioceptivas)
e a percepo que nos dada nas percepes externas. Compare-se, por exemplo, a
diferena entre a percepo que posso ter da minha perna esquerda cruzada sobre a direita
(sem observar) e a de uma cicatriz na minha mo direita.
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12 Ser de ter em conta que este um captulo do Zaratustra que corresponde sua
metamorfose em leo, o que significa que a sua reflexo acerca do natureza do eu e
do si mesmo (correspondente ao corpo) feita sob o signo da liberdade criativa. O leo
cria liberdade para uma nova criao. No captulo seguinte, Dos Desprezadores ... j
o discurso sob o signo da criana, a outra metamorfose (para alm da primeira, a do
camelo). Sabe-se como a criana representa um novo comeo, uma inocncia a partir donde
tudo pode comear de novo, enfim a terra frtil onde novos valores so gerados. Esta seco
difcil, mas decisiva do Zaratustra, no compreensvel sem ter em conta essa metamorfose:
o eu que cria, quer e avalia ainda no se auto-reconhece como instrumento do corpo,
ainda no descobriu a supremacia do si mesmo, equivalente ao corpo.
13 LAMPERT, L. Nietzsches Teaching- An Interpretation of Thus Spoke Zarathustra. Yale:
Yale University Press, 1986; ROSEN, S. The Mask of Enligthenment, op. cit.
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ltimo captulo como introduzindo uma descontinuidade significativa em relao ao captulo anterior. Sobretudo Rosen chama a ateno para uma mudana crtica na forma de compreender a primazia
do eu14. A partir do momento em que a criana fala aos que desprezam o corpo e afirma que ela corpo e alma abre-se o caminho
para uma absoluta primazia do corpo e correspondente dissoluo
do ego: Deve ser lembrado que na doutrina amadurecida de Nietzsche no existe eu. O eu uma combinao ilusria de pontos de
conscincia em contnua dissoluo, que so, eles prprios, afectos
psicolgicos ou, na sua base, momentos de vontade de poder15. Por
outras palavras, na interpretao de Rosen, Nietzsche ser um cptico em relao existncia de um eu e certamente de um sujeito
em que o eu represente um princpio de unidade. Neste sentido
a filosofia de Nietzsche repetir a inspirao cptica da filosofia
moderna a este respeito, em particular aquela linha de pensamento
representada por Kant.
J atrs notei que tal interpretao no a correcta e que
Nietzsche no coincide com essa crtica radical, argumentada nos
Parologismos da primeira Critica. Deveremos conceder que a natureza perspectivista do eu evidentemente indesmentvel. Nietzsche define-o assim mesmo, por diversas vezes, mas o seu estatuto
no deve reduzir-se a uma inexistncia, tal como qualquer produo perspectivista no um nada. Basta pensar que uma produo
perspectivista possui sentido, enquanto o nada do niilista consiste
precisamente na radical falta de sentido. A unidade aparente do
eu corresponde na verdade a esse estatuto perspectivista, assim
como em Kant o seu estatuto, independente de toda e qualquer representao emprica, lhe retirava qualquer realidade ou qualidade
ontolgica. Apesar de todas as diferenas (em Kant o eu que assegura a unidade das representaes, enquanto essa uma funo
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referncias bibliogrficas
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