O Corpo Da Psicossomática

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O corpo da Psicossomtica*

Christophe Dejours**

Resumo
A Psicossomtica, como sabido, interessa-se sobretudo pelos processos de
somatizao, ou seja, pelos movimentos psquicos que acompanham o aparecimento, a evoluo e as crises das doenas fsicas. Enquanto o mdico se empenha na busca de respostas para o sofrimento do corpo, agindo no corpo, o
psicossomatista se esfora para atingir o corpo agindo no funcionamento
mental. Esse deslocamento do soma para a psique parece, atualmente, to
natural aos olhos do psicanalista que at nos perguntamos se o corpo tem ainda
um status no mtodo da Psicossomtica. Situado to longe, to distante dos
distrbios mentais que deram origem somatizao (talvez at no extremo
da cadeia processual), o corpo pode algumas vezes parecer, enquanto corpo,
marginal, heterogneo, at mesmo estranho ao mtodo psicossomtico. Esta
coleo de artigos publicados pelo Instituto de Psicossomtica de Paris,
intitulada Corpo doente e corpo ertico, prope-se, ao contrrio, examinar
como o corpo apreendido pela Psicossomtica. No somente o corpo enquanto
conceito inserido na teoria psicossomtica, mas o corpo enquanto objeto de
uma investigao clnica especfica, em relao investigao psicanaltica
clssica e, talvez, tambm, o corpo enquanto ponte crucial na prtica da transferncia e na tcnica psicoterpica aplicada a pacientes acometidos de patologias somticas.
Palavras-chave: psicossomtica, corpo, investigao clnica, transferncia,
psicoterapia.

* A propsito de Corps malade et corps rotique, organizado por Michel Fain, Masson, v. 1,
1984. Artigo publicado na Revue Franaise de Psychanalyse, Paris, t. XLVIII, p. 1289-1295,
sept. /oct. 1984. Traduo e adaptao de Francilene M. de Melo e Silva.
** Psiquiatra, Psicanalista, Professor do Conservatoire National des Arts et Mtiers CNAM/
PARIS. Diretor do Laboratrio de Psicologia do Trabalho e da Ao (LPTA) CNAM/PARIS.
E-mail: dejours@cnam.fr

Psic. Rev. So Paulo, 14(2): 245-256, novembro 2005

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Christophe Dejours

Abstract
Psychosomatic studies are interested above all in somatization processes, that
is, the psychic movements that accompany the appearance, evolution and crises
of physical illnesses. Whilst medicine seeks answers to physical ailments,
treating the body, a psychosomatic approach attempts to reach the body,
treating the mental functioning. Nowadays, this transfer from the soma to the
psyche seems so normal in the eyes of a psychoanalyst, that we ask ourselves
whether the body still has status in terms of psychosomatic methods. The body,
located so distant from the mental disorders which give rise to somatization
(perhaps at the extreme end in the procedural chain), can sometimes appear,
as a body, marginal, heterogeneous, even strange to the psychosomatic method.
This collection of articles published by the Paris Psychosomatic Institute,
entitled Sick body and erotic body, proposes, however, the opposite, that is, to
examine how the body is understood by psychosomatic studies. Not just the
body as a concept inserted in psychosomatic theory, but also the body as object
of specific clinical investigations, in relation to classic psychoanalytical
investigations, and perhaps, also the body as the crucial bridge in the practice
of transference and in the psychotherapeutic technique applied to patients
suffering from somatic pathologies.
Key-words: psychosomatic; body; clinical investigation; transference;
psychotherapy.

A Psicossomtica, como sabido, interessa-se sobretudo pelos processos de somatizao, ou seja, pelos movimentos psquicos que acompanham o aparecimento, a evoluo e as crises das doenas fsicas. Enquanto
o mdico se empenha na busca de respostas para o sofrimento do corpo,
agindo no corpo, o psicossomatista se esfora para atingir o corpo agindo
no funcionamento mental. Esse deslocamento do soma para a psique parece, atualmente, to natural aos olhos do psicanalista que at nos perguntamos se o corpo tem ainda um status no mtodo da Psicossomtica.
Situado to longe, to distante dos distrbios mentais que deram
origem somatizao (talvez at no extremo da cadeia processual), o corpo pode algumas vezes parecer, enquanto corpo, marginal, heterogneo,
at mesmo estranho ao mtodo psicossomtico.
Esta coleo de artigos publicados pelo Instituto de Psicossomtica
de Paris, intitulada Corpo doente e corpo ertico, prope-se, ao contrrio,
examinar como o corpo apreendido pela Psicossomtica. No somente o
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corpo enquanto conceito inserido na teoria psicossomtica, mas o corpo


enquanto objeto de uma investigao clnica especfica, em relao investigao psicanaltica clssica e, talvez, tambm, o corpo enquanto ponte crucial na prtica da transferncia e na tcnica psicoterpica aplicada a
pacientes acometidos de patologias somticas.

OS PROCESSOS DE SOMATIZAO
Encontrar-se-o nessa coleo os elementos essenciais das concepes sobre os processos de somatizao. Passando de um autor a outro,
observar-se- que cada um, em sua prtica, em seu esforo para explicar a
experincia clnica e em sua teorizao, privilegia uma dada forma de identificao.
No captulo sobre as somatizaes, Marty (1984) explicita as duas
modalidades psquicas fundamentais que presidem a esses processos: as
regresses, principalmente as chamadas regresses parciais, que podem
ser acompanhadas do surgimento de uma doena fsica, e as depresses
e no qualquer tipo de depresso, visto que ele visa aqui as depresses
essenciais e somente estas. Numa poca em que se invoca a depresso a
torto e a direito, a tal ponto que essa noo s vezes no tem mais
especificidade alguma, nem valor heurstico algum, particularmente interessante fazer referncia ao artigo princeps (Marty, 1968), que tem a vantagem de ser claro e de limitar uma entidade precisa em relao ao aglomerado informe em que se transformou o quadro nosogrfico, que mais
parece um saco sem fundo.
Outros autores apiam-se, antes, nas observaes de ordem tpica e
insistem sobretudo nas deficincias do pr-consciente (MUzan, 1984), do
processo secundrio, da fantasmatizao, menos freqentemente do ego,
considerado lbil demais. Certos psicossomatistas esforam-se, por sua vez,
em decifrar o processo de somatizao atravs dos avatares do narcisismo,
notadamente no ego ideal e seus ataques ferinos (Dingli, 1984). Outros,
ainda, trabalham sobretudo a questo das defesas, particularmente as defesas de carter e de comportamento, em oposio s defesas, mais menPsic. Rev. So Paulo, 14(2): 245-256, novembro 2005

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tais, que so a negao, a rejeio e o recalque. O recurso ao conceito de


identificao com a me na comunidade da negao tem aqui um interesse muito claro (Braunschweig e Fain, 1975). Certos clnicos referem-se
mais ao destino da excitao, ao excesso de excitao, ao transbordamento
das capacidades intrapsquicas de ligao, falta de paraexcitao materna, concepo do traumatismo, at mesmo s neuroses atuais (Debray,
1984). Ocorre, com menos freqncia, que a identificao e at mesmo o
interesse primordial incidam na estrutura da relao com o objeto, nas formas especficas ou inslitas do dipo nos doentes somatizantes, isto , na
dimenso significativa e dinmica do trabalho, posio analtica mais difcil de sustentar do que as demais, dada a importncia das distores nesse
registro, no tipo de paciente visado (Resar, 1984). A partir da anlise do
masoquismo e, particularmente, da incompletude do masoquismo moral,
at mesmo do fracasso da neurose de fracasso, todo um movimento de
mudana para a somatizao descrito por Michel Fain (1984) de maneira
muito inovadora.
Evidentemente, o fato de cada analista adotar um dos pontos de vista sobre a somatizao, de preferncia a tal outro, sempre motivado. Desde
que preste bem ateno a essas diferenas, o leitor, certamente, ser levado a identificar a variabilidade na tcnica psicoterpica dos diferentes autores, em funo de cada contribuio clnica apresentada na obra.

OS PROCESSOS DE MENTALIZAO
At o presente, insistiu-se, em psicossomtica terica, sobretudo no
processo de somatizao, e no tanto no processo inverso, cuja importncia, no entanto, pelo menos igual, se no superior, se que existem pretenses a tratar os doentes somticos. Curiosa denominao essa do
suposto processo de mentalizao, que parece, no entanto, vir espontaneamente sob a pena de um analista conhecedor da oposio fundamental invocada por Marty e seus colaboradores entre as defesas mentais que
conferem uma resistncia relativa s somatizaes e a falta de defesas mentais que sugerem uma fragilidade relativa ante os doentes somticos. Falase em neurose bem ou mal mentalizada e chega-se a perguntar se existe
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um processo especfico de mentalizao, ou se no se trata to-somente de


um dado descritivo antagnico associado somatizao, qual s estaria
ligado por uma relao dialtica.
Da leitura das obras de Marty no se deduz a noo de um processo
especfico de mentalizao. Tende-se mais a considerar a existncia de um
processo organizador e mesmo um processo de evoluo, que envolve toda
a economia psicossomtica. Na tcnica da cura, Marty insiste explicitamente
na posio do analista como uma espcie de muralha para o transbordamento da excitao, o traumatismo e a desorganizao, muito mais do que
em um trabalho especfico de mentalizao. Essa escolha resulta,
logicamente, do fato de a cura psicossomtica ser mais econmica do que
dinmica.
Constatar-se-, pela leitura dos trabalhos de certos colaboradores do
Instituto de Psicossomtica, que essa posio retomada, stricto sensu,
notadamente em dois artigos tcnicos: o que concerne ao trabalho de relaxamento de MUzan (1984) e o que diz respeito ao trabalho de campo
realizado nos Servios de Reanimao, assinado por Herzberg (1984).
possvel que isso se deva s situaes clnicas visadas por esses dois autores, que so, nos dois casos, situaes graves. Provavelmente, os mesmos
autores ampliariam sua posio se as situaes clnicas consideradas fossem menos difceis. Mesmo que tais situaes exijam um grande tato dos
terapeutas, observa-se que, adotando uma posio decididamente paraexcitante, esses autores no cedem facilidade de uma teorizao em termos de psicologia do Ego, de esteio, de apoio narcisista (to na moda), nem
de psicologia do ego auxiliar.
Outros analistas parecem se situar num eixo mais clssico, passando pelo trabalho sobre a sexualidade psquica. Notadamente Zimeray
(1984), que faz explicitamente referncia ao conceito de censura da amante, na perspectiva de um trabalho que estrutura o registro dinmico.
No lugar de um pretenso processo de mentalizao, vrios autores
preferem analisar as coisas em termos de simbolizao, um conceito certamente muito mais coerente que o de mentalizao. LHritier-Le Beuf
(1984), por exemplo, apresenta um belo trabalho clnico, em que a
simbolizao articula-se com o jogo, em uma terapia de criana encoprtica.
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Alguns leitores, provavelmente, se perguntaro se se trata aqui, propriamente, de um problema psicossomtico. Obadia (1984), por sua vez,
faz da simbolizao o substituto fundamental de sua elaborao terica
sobre casos de pacientes acometidos de poliartrite reumatide. Reencontra-se essa mesma preocupao no trabalho de Fine (1984) a respeito da
retocolite hemorrgica.
Debray e outros autores (Zimeray, LHritier-Le Beuf notadamente),
no processo de cura e no movimento de mentalizao, insistem particularmente na etapa fundamental da emergncia necessria e da estruturao
do auto-erotismo.
Dessa forma, desenha-se, a respeito da mentalizao, toda uma concepo em que o corpo ocupa um lugar fundamental: o corpo da
Psicossomtica, que no equivalente ao corpo da Medicina e da Biologia,
pois trata-se do corpo enquanto ponto de partida do desejo. Assim, o corpo
como base de apoio da sexualidade psquica, o corpo como lugar de troca
ertica. O corpo ertico, com efeito, aparece progressivamente como
intermedirio terico entre o corpo doente, precisamente degradado no seu
valor rogeno e submetido a um processo de destruio, e o fantasma do desejo. Se um processo de mentalizao existe, deve poder ser identificado, no
somente como parceiro dialtico da somatizao, mas tambm como mediador especfico da sexualidade e do funcionamento psquico. Focalizando o
interesse nesse casal que no tem nada de dialtico, constitudo pelo corpo
doente e pelo corpo ertico, os autores dessa coletnea querem inaugurar
um modo de pensar a articulao do econmico e do dinmico. O oposto
dialtico do corpo doente o corpo curado. Qual a relao entre corpo
curado e corpo ergeno? No , seguramente, uma relao de equivalncia,
mesmo que, no prefcio dessa coletnea, se insista naquilo que a perspectiva psicossomtica pode trazer para a definio ou a anlise do conceito de
sade. O corpo curado no pode, com efeito, caracterizar-se como corpo sem
doena, o que leva todos os mdicos a definir a sade pelo aspecto negativo.
Ao contrrio, a referncia ao corpo ertico como suporte e resultante do
desenvolvimento da sexualidade sugere que o corpo s pode estar a salvo de
doenas somticas sob condio de se inscrever em um outro registro, o

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da sexualidade, da castrao, da emergncia do desejo. O corpo da


Psicossomtica seria ento aquele cuja construo retomada a partir dos
apoios sucessivos da sexualidade psquica no curso do processo psicoterpico.

AS QUESTES CLNICAS EM PSICOSSOMTICA


No ponto em que se encontra o desenvolvimento das concepes
psicossomticas, pode-se considerar que duas questes fundamentais solicitam respostas, sem as quais parece faltar ao corpo da Psicossomtica
dois de seus membros (os dois primeiros sendo, de um lado, o vnculo que
une a Psicossomtica Psicanlise e, de outro, a relao entre a estrutura
neurtica e a estrutura dos doentes que somatizam):
Qual a relao entre somatizao e psicose?
Como explicar a escolha do rgo pelo processo de somatizao?
verdade que, at o presente, a Escola de Psicossomtica de Paris
se questionou principalmente sobre as relaes entre neurose e
somatizao. Admite-se que os neurticos bem mentalizados no
somatizam e que os psicticos, cuja fixidez dos sintomas mentais to impressionante, estariam protegidos contra as doenas somticas. Essa afirmao verdadeira grosso modo. No detalhe, ela inexata pelo menos a
nosso ver: a epilepsia, a asma, a psorase, o prprio infarto do miocrdio e
muitas outras somatizaes podem, com efeito, afetar psicticos,
esquizofrnicos e inclusive paranicos.
Na obra em questo, o tema abordado por dois autores a respeito
das afeces somticas, nas quais, como se sabe, os acessos evolutivos alternam muito freqentemente com os acessos delirantes: Fine apresenta
sua anlise dos pacientes acometidos de retocolite hemorrgica, e sobretudo Obadia, cuja argumentao se refere precisamente a dois casos de pacientes acometidos de poliartrite reumatide, apresentando episdios delirantes, os quais, em alguns casos, necessitam de internao psiquitrica.
Se possvel abordar a somatizao como meio de conjurar a experincia
vivida delirante, pode-se igualmente, ao contrrio, levantar a questo
de certos delrios verdadeiramente cultivados por pacientes que lutam dessa
forma contra a crise somtica grave, notadamente certos pacientes asmPsic. Rev. So Paulo, 14(2): 245-256, novembro 2005

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ticos, que conseguem assim evitar o surgimento de um estado de enfermidade, em que sabem, por experincia prpria, que arriscam imediatamente suas vidas. Logo, ser com grande interesse que se lero os textos que
possibilitam uma nova abertura no campo da pesquisa psicossomtica.
Quanto questo da escolha do rgo nos processos de somatizao,
infelizmente, neste volume, ela ainda no abordada. Em razo, perguntar-se-, de uma doena infantil da Psicossomtica? impossvel evitar o
questionamento, pois, segundo a resposta que dada, todo o futuro da
Psicossomtica est comprometido. O corpo psicossomtico ter um dia
seus quatros membros ou ele dever contentar-se em andar num p s?
Cada um poder fazer seus prprios prognsticos a partir da leitura da coletnea. Limitando-se stricto sensu ao ponto de vista econmico, adotando-o como intransponvel em Psicossomtica, em razo das prprias deficincias do funcionamento mental, da produo fantasmtica e do
pr-consciente, a somatizao no poder nunca ser decifrada no registro
dinmico. Nesse caso, ser preciso ater-se frmula que Michel de MUzan
props em A investigao psicossomtica (Marty, 1963): O sintoma
somtico bobo. Na verdade, nolens volens, a Psicossomtica no ultrapassou essa posio, a qual, entretanto, preciso reconhecer, marcou uma
ruptura epistemolgica fundamental, cuja fecundidade deve ser admitida
hoje. Se a somatizao no se faz s cegas no corpo, e se ela escolhe seu
alvo a menos que prevalea o mtodo interpretativo de Groddeck, que
no combina com a tese da Escola de Psicossomtica de Paris , preciso
admitir que hoje ns ainda no temos a chave da interpretao.
Cabe a cada um, portanto, investigar se, com base nas diversas posies adotadas pelos autores (dos quais falamos no captulo sobre o processo
de mentalizao), h, em estado latente, os germes de uma teoria da escolha do rgo doente.

AS QUESTES TCNICAS
Nessa coletnea, dois captulos so dedicados tcnica da cura com
pacientes que somatizam. Nas duas situaes em questo, apreciar-se-
certamente a qualidade do que defendido por MUzan e HerzbergPsic. Rev. So Paulo, 14(2): 245-256, novembro 2005

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Poloniecka. No entanto, nos outros captulos clnicos, so implicitamente


apresentados procedimentos teraputicos e modalidades de administrar a
relao, e at mesmo a transferncia, e constatar-se-, sem dvida, que a
tambm reinam opes, posies e intervenes muito diferentes e, no fundo, muito interessantes. Existe a uma diversidade que no deixa de levantar questes importantes, pois perfeitamente possvel que diferentes tcnicas, incluindo as desenvolvidas com as crianas, possam ser fecundas,
apesar de suas contradies aparentes. Em relao a isso, pode-se esperar
que uma prxima obra do Instituto de Psicossomtica de Paris seja inteiramente dedicada questo da tcnica ou das tcnicas de cura, apesar das
dificuldades inerentes, como de se prever, realizao de um projeto de
tal natureza.

AS QUESTES TERICAS
evidente que todos os autores que participam dessa coletnea se
apiam na teoria de Marty. de se lamentar, apesar da legitimidade dessa
escolha, que somente Fine tenha procurado situar as razes de sua posio
em relao a outras teorias, como as de Melanie Klein, de Sperling ou de
Rosenfeld. Os outros autores somente fazem referncia a Marty e a Fain, o
que provavelmente ser censurado por muitos leitores uns vero a um
certo menosprezo em relao a outros pensamentos; outros, um certo
dogmatismo. Mesmo que tais julgamentos sejam excessivos, pode-se desejar que os autores entendam essa crtica, nem que seja para se fazer melhor compreender pelos leitores, que algumas vezes tm outras referncias
e nem sempre compreendem facilmente por onde passam as linhas divisrias entre a teoria da Escola de Psicosomtica de Paris e as de outros analistas que publicaram trabalhos no campo da Psicossomtica (e isso vlido no somente para os autores contemporneos, mas tambm para
analistas um pouco mais antigos).
A esse respeito, preciso recomendar aos leitores o captulo assinado por Braunschweig, que inicia uma discusso muito interessante sobre
os deslizes implcitos do sentido dos conceitos psicanalticos, quando so
empregados pelos psicossomticos (1984). O autor revela assim certas conPsic. Rev. So Paulo, 14(2): 245-256, novembro 2005

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tradies, notadamente sobre a questo do status dos sistemas da primeira tpica e das instncias da segunda tpica na teoria de Marty, que no
podem deixar de atrair a ateno daqueles que se interessam pelas questes psicossomticas. Mais inslita e no menos importante a questo
que Braunschweig levanta, acerca do que ela denomina monismo de
Marty. Qual a situao, com efeito, do dualismo pulsional (pulso de vida,
pulso de morte) na teoria psicossomtica? Embora seu livro de 1976 tenha como ttulo Movimentos individuais de vida e de morte, no de forma alguma certo que aquilo que Marty pina como resultado da pulso de
morte isto , principalmente os movimentos de desorganizao no
implique, a posteriori, que a pulso de vida seja diferente de seu oposto
dialtico ou seja, os movimentos de organizao e mesmo os movimentos evolutivos. Ora, uma concepo estritamente dialtica de Eros e Tanatos
no deveria ser considerada dualista. Essa discusso est longe de acabar,
s est comeando. Mesmo que contradies tericas surjam aqui e ali entre teoria psicanaltica e teoria psicossomtica, isso no deveria nunca
desqualificar, evidentemente, a teoria psicossomtica. Ao contrrio, o
natural na teoria psicossomtica. O debate proposto nessa coletnea ,
antes, um convite a prosseguir alm e a revelar assim as contradies da
teoria, mais do que a reduzi-las, a fim de fazer avanar a teoria que, se muito
cristalizada, ficaria infalivelmente ameaada.
Assim, essa coletnea rene trabalhos que mostram a situao das
pesquisas desenvolvidas pelo Instituto de Psicossomtica de Paris e visa a
divulgar os trabalhos de vrios colaboradores de Marty. Tomando o corpo
como objeto de pesquisa, os autores certamente escolheram um tema central que atrair a ateno de muitos leitores no meio psicanalista.
Criticar-se-o, sem dvida, e no sem razo, os editores, por no
terem obrigado os autores a examinar mais rigorosamente e mais explicitamente a questo do corpo, precisamente entre corpo ertico e corpo
doente. No que o tema no tenha sido tratado, mas porque, tal como
foram apresentados, os trabalhos obrigam o leitor a fazer um trabalho de
sntese que talvez se desejasse encontrar j pronto. Essa falha tem tambm sua vantagem: estimular precisamente essa leitura personalizada que
permitir a cada um tirar as concluses tericas que julgar mais pertinenPsic. Rev. So Paulo, 14(2): 245-256, novembro 2005

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tes em funo de suas referncias, cuja multiplicidade patente na Psicanlise francesa de 1984. Que se veja a a marca de um estilhaamento
lamentvel ou, ao contrrio, a expresso de uma fecundidade excepcional.
Quot homines, tot sententiae.

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