Carlos Josue Costa
Carlos Josue Costa
Carlos Josue Costa
So Bernardo do Campo
2010
Por
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Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia
Orientador/a e Presidente da Banca Examinadora
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Prof. Dr. Jung Mo Sung
Coordenador/Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio
Dedico este trabalho minha me Alice (In memoriam) que me deu o dom da vida,
um nome bblico (Josu), o exemplo de f e confiana em Deus nas provaes e dificuldades
e, sobretudo a semente em mim plantada, desde cedo, de amor Palavra de Deus.
Agradeo imensamente os valiosos auxlios recebidos pela IEPG e pela CAPES que
me foram imprescindveis para possibilitar minha pesquisa.
AGRADECIMENTOS
Agradeo a Deus Pai, Senhor da Vida, que foi e continua sendo a razo de todo meu
pensamento e ao. Ad maiorem Dei Gloriam!
Agradeo aos meus pais, Gentil e Alice, que me conceberam e me educaram num
ambiente cristo de amor pleno e me deram exemplos de amor a Deus e doao ao prximo.
bblica nesses quatro anos que estive na UMESP. Obrigado a todos os funcionrios que me
beneficiaram com seus prontos servios.
NASCIMENTO, Carlos Josu Costa do. Do Conflito de Jesus com os Judeus Revelao da
Verdade que Liberta em Joo 8,31-59. So Bernardo do Campo: Universidade Metodista de
So Paulo, 2010. Tese (Doutorado em cincias da religio), 325p.
Sinopse
Esta tese tem como objetivo demonstrar que o conflito existente na comunidade
joanina e presente no texto uma estratgia literria do autor para construir identidade e
fortalecer a f dos seus leitores. Para isso escolhi uma percope (Jo 8,31-59) onde verifico e
comprovo essa dinmica. O texto produto literrio, tem lgica: incio, fim, coeso.
tambm produto relacional, responde a uma lgica redacional. O autor o protagonista do
texto e nele revela sua teologia. Busco entender sua vida e tudo dele para saber do seu texto.
O texto reflexo de uma realidade nas formas de expresso que redigido. H muitos
conflitos no texto. Para entender o conflito devo olhar a partir de sua complexidade literria.
Do conflito revelao da verdade que liberta da incredulidade, do medo, da insegurana,
da ideologia que escraviza, do mal que impede acolher Jesus, o Messias e Filho de Deus.
Palavras-chave: conflito, comunidade joanina, literatura e religio, identidade,
liberdade, verdade.
NASCIMENTO, Carlos Josu Costa do. From the Conflict of Jesus with the Judeans to the
Revelation of the Truth that Liberty in John 8,31-59. So Bernardo do Campo: Methodist
Universtity of So Paulo, 2010, Thesis (Doctorate in Religious Sciences), 325p.
Abstract
This dissertation has aimed to demonstrate that the conflict in the Johannine
community and the present text is a literary author's strategy to build identity and strengthen
the faith of its readers. For this I chose a pericope (Jn 8,31-59) where check and testify to
that dynamic. The text is literary product, is logical: start, stop, cohesion. It is also relational
product responds to a logic editing. The author is the protagonist of the text and it reveals
his theology. I try to understand her life and all of it to know of your text. The text reflects a
reality in the forms of expression that is written. There are many conflicts in the text. To
understand the conflict should look from its literary complexity. From conflict to the
revelation of the truth that freedom from disbelief, fear, insecurity, ideology that enslaves
the evil that prevents welcome Jesus, the Messiah and Son of God.
Key words: conflict, Johannine community, literary and religion, identity, liberty,
truth.
SIGLAS E ABREVIATURAS
AB
Am.Rev.Anthrop.
APSR
BBR
Bib
BinInt
BibOr
BibTrans
BS
BTB
CBQ
CD
Com
Con
Conv
CR
CTQ
CuadTeol
Didas
Diog
Dial
EcumRev
EstBib
ER
GNLT
HTR
Int
JBL
JSHJ
JSNT
JTS
Anchor Bible
Annual Reviews of Anthropology
American Political Science of the New Testament
Bulletin for Biblical Research
Biblica
Biblical Interpretation
Bblia e Oriente
The Bible Translator
Bibliotheca Sacra
Biblical Theology Bulletin
The Catholic Biblical Quarterly
La Ciudad de Dios
Communio
Concilium
Convergncia
Currents in Research
Catholic Theological Quarterly
Cuadernos Teologicos
Didaskalia
Diogenes
Dialog
The Ecumenical Review
Estudos Bblicos
Estudos de Religio
Grande Lssico do Novo Testamento
Harvard Theological Review
Interpretation (a Journal of Bible and Theology)
Journal of Biblical Literature
Journal for the Study of the Historical Jesus
Journal for Studies of the New Testament
Journal Thelogical Studies
11
JCI
JPR
Jud
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NTS
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PT
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Sal.
Salm
SBL
Sem
StTh
TV
Th
Theo
Theol
TET
TynBul
TWNT
VH
VE
Antiguidades Judaicas
Guerra Judaica
AUTORES JUDAICOS
Ag
Esd
1Hen
Jub
Test.
Test Jud
Ageu
Esdras
Henoc
Jubileus
Testamentos dos XII Patriarcas
Testamento de Judas
12
Test Aser
Test Jos
Test Rub
Tg. Ps.-J
Testamento de Aser
Testamento de Jos
Testamento de Ruben
Targum Pseudo-Jonatas
PERGAMINHOS DE QUMRAN
MMM
CD
MQ
IQM
IQS
4QMMT
Antigo Testamento
Irineu de Lio, Adversus Haeresis
Antes de Cristo
Captulo(s)
confira, conforme
Depois de Cristo
Quarto Evangelho
Edio, editor (es)
Idem, o mesmo
Modo latino de escrever 70, um nmero redondo usado
para a traduo grega do AT (Septuaginta)
nmero
Novo Testamento
Obra citada
Manuscrito em papiro (geralmente de um escrito bblico)
Pgina, pginas
(e) paralelo(s)
por exemplo
e seguinte(s)
Traduo Ecumnica da Bblia
Versculo, versculos
Volume
SUMRIO
INTRODUO..................................................................................................................................................... 16
CAPTULO I
A COMUNIDADE JOANINA NUM CONTEXTO PLURALISTA DO I SCULO .......................................... 23
14
15
INTRODUO
Talvez mais do que qualquer outro dos quatro evangelhos que foram includos
no cnon da igreja crist, o Quarto Evangelho (=QE)1 o mais misterioso e
problemtico. Quem o escreveu? Para quem foi escrito? Onde? Quando? Quais foram
as circunstncias sociais e religiosas dentro das quais ele apareceu? Por que foi
escrito? Por que o QE to diferente dos outros evangelhos, os chamados evangelhos
sinticos? O QE histria ou teologia? Se houve bastante concordncia sobre estas
questes ao longo dos sculos entre a grande maioria dos teolgos, isto mudou com o
incio do uso do mtodo histrico-crtico nos estudos bblicos. Hoje em dia estas e
outras perguntas semelhantes ainda esto abertas. Contudo, mesmo assim, tem havido
progresso nas pesquisas, as quais podem facilitar muito nossa tentativa de entender
a mensagem deste livro singular na biblioteca dos cristos primitivos. o que
intentamos realizar nesta pesquisa sobre a literatura e teologia joaninas.
Esse Quarto Evangelho, que na tradio catlica comparado a uma guia que
com seus olhos penetrantes desafia o brilho do sol, nos transporta, desde sua primeira
1
Ao longo deste trabalho usaremos esta sigla QE para referirmo-nos ao texto evanglico joanino.
17
pgina at a contemplao de Deus em seu mistrio eterno. Por trs deste Evangelho
est uma comunidade que nasceu de modo simples, foi crescendo e adquirindo um
jeito prprio de ser e de agir, profundo na sua reflexo e criativo na sua forma
literria. E de fato o texto revela os traos tpicos e peculiares dessa comunidade, que
ns chamaremos de a comunidade joanina ou do Discpulo Amado. 2 Sua finalidade
teolgico-literria expressa com toda a clareza no final: Muitos outros sinais fez
Jesus ainda diante dos discpulos que no esto escritos neste livro. Estes, porm,
foram escritos para crerdes que Jesus o Messias, o Filho de Deus, e para que,
crendo, tenhais a vida eterna em seu nome (20,30-31). Aqui fica patente a inteno
querigmtica e, ligada a ela, a finalidade soteriolgica. Trata-se da f em Jesus Cristo
como Messias e Filho de Deus; nesta f o homem alcana a vida. Esta finalidade
a diretriz de toda a obra e se dirige aos cristos que viviam ao tempo de sua redao:
mostrar-lhes que Jesus de Nazar, e nenhum outro, o Messias e que s na f, na
messianidade e na filiao divina de Jesus est a salvao. Nenhuma outra questo
tratada de forma to ampla, como a pretenso de Jesus de ser o revelador e o salvador,
ou seja, como a sua messianidade.
Em toda esta pesquisa no usaremos o nome Joo para designar o autor do Quarto Evangelho.
Entendemos que o texto resultado da reflexo e meditao de um grupo (crculo/escola joanina)
de discpulos de Jesus. Demonstraremos que surgiram, ao longo da histria da redao, autores
posteriores que resumiram uma tradio que tinham disposio e que teologicamente redigiram. A
linguagem, estilo e teologia do Quarto Evangelho sugerem a idia de que no final da cadeia da
tradio est a personalidade de um evangelista e, em seguida, de um grupo, de alto gabarito, que deu
ao todo um cunho pessoal.
18
O autor do QE dirige-se a uma comunidade crist, todavia tem pretenses de universalidade, como
verificaremos ao longo desta pesquisa.
Cf. CULLMANN, Oscar. Das origens do Evangelho formao da teologia crist, p. 93-104.
19
O ato de ver se apresenta como uma necessidade, todavia ao ato da viso deve juntar-se o ato de f,
esta atitude interior de crer com o corao. Por isso, a vida de Jesus narrada no QE, no pensamento do
autor, no tem por objetivo proporcionar simplesmente um quadro exterior, cmodo, mas antes pr
em evidncia a identidade entre o Jesus encarnado e o Cristo eterno, em especial presente na
comunidade joanina, desafiado e desacreditado por alguns que duvidavam e at negavam.
Cf. BLANK, Josef, O Evangelho segundo Joo, 4/1a, p. 61.
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21
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CAPTULO I
A COMUNIDADE JOANINA NUM CONTEXTO
PLURALISTA DO I SCULO
24
dos autores que desde o princpio da pesquisa joanina formularam suas posies, e o
progredir da pesquisa de ontem at hoje, tendo Rudolf Bultmann como o divisor das
guas nesta pesquisa sobre a histria redacional e literria do QE.
Trataremos ainda dos judeus, procurando saber quem eram eles e como
agiram e reagiram no confronto com a comunidade(s) joanina(s) (1.4.).7 Afirmaremos
que havia uma numerosa quantidade de grupos, partidos e movimentos no primeiro
sculo; e nesta pluralidade de idias e expectativas de cada grupo que se encaixa a
comunidade joanina, a qual respira o mesmo ar e se alimenta do mesmo po. O
que aconteceu antes e depois da destruio do Templo (ano 70 d.C) muito
importante para compreendermos a comunidade joanina, inserida, vtima e
protagonista da sua prpria histria neste contexto social, poltico, econmico,
religioso e cultural da Palestina. O que acontecia com um judeu que aceitasse e cresse
em Jesus como o Messias? A controvrsia se d dentro dos limites do prprio
Judasmo; uma briga em famlia, intra-eclesial, se poderia dizer.
25
apoio e fundamento teoria literria que apresento no ltimo ponto deste captulo
(1.5.). um pressuposto fixo de que no se entender a teoria literria sem se entender
a realidade circunstante da comunidade joanina.
1.1
Fontes)
Pode-se afirmar que o redator do QE utiliza tradies e fontes comuns aos
evangelhos Sinticos, contudo no se pode afirmar dependncia literria entre os
documentos.8 Percebe-se que o texto foi produzido, isto , elaborado em vrias
etapas; usou-se de material variado e existente na poca e no lugar onde o autor ou os
autores viveram. Isso tudo, como escreve Brown, nos faz concluir que o Evangelho
no foi composio de um nico autor que escrevia suas recordaes e reflexes. 9
9
10
26
27
suficientemente formado j no final do II sculo a.C., para que tenha exercido tal
influncia como atesta a teoria de Bultmann.
) e outras com
carne ( ), o traduzem os Sinticos por corpo e no texto joanino com carne (cf. Jo
6,51; 19,18). Como tambm afirma Dodd que a tradio pr-cannica deste Evangelho
contm algumas expresses que delatam uma ambientao judaica, mais precisamente
judaico-crist.15 Tambm as indicaes geogrficas, nomes de lugares, indicaes
cronolgicas, a situao poltica da Judia (narrao da Paixo) permitem constatar
uma tradio muito antiga, de um notvel conhecimento topogrfico da Palestina e de
Jerusalm, especificamente e de uma procedncia de crculos judaico-cristos em
contato com a sinagoga, 16 possivelmente anterior ao ano 66 d.C. 17
14
15
16
Cf. Jo 1,41: Encontramos o Messias (que se traduz Cristo = Ungido): eu`rh,kamen to.n Messi,an( o[
evstin meqermhneuo,menon cristo,j; Jo 1,42: tu te chamars Cefas (que se traduz Pedro): su. klhqh,sh|
Khfa/j( o] e`rmhneu,etai Pe,troj
Algumas aluses a crenas difundidas no judasmo: o Messias devia permanecer como um personagem
desconhecido at que Elias no o identificasse (Ecl 48,1; Mal 3,1; 4,4; Jo 1,21.26); a opinio do Sumo
sacerdote qualificada de profecia e explicada por razo de sua funo (cf. Jo 11,50s); a passagem de
Jo 1,48 com a possvel aluso histria de Susana.
Os nomes Gabbatha junto a Pavimento: Jo 19,13 = no lugar chamado Pavimento, em hebraico
28
Helmut Koester outro autor que trouxe grandes avanos na pesquisa da fonte
gnstica para o QE e os Sinticos. Ele v parentesco e proximidades literrias entre
o QE e os escritos reconhecidamente pr-gnsticos da biblioteca de Nag Hammadi
(descoberta em 1947), em particular o Evangelho de Tom e o Dilogo do Salvador.
Koester diz que os discursos e dilogos do Jesus joanino devem-se a um longo
processo de interpretao dos ditos originais de Jesus, processo cujos reflexos podem
ser encontrados seja nos evangelhos sinticos, seja em outros escritos, como o
Evangelho de Tom, O Dilogo do Salvador e o Apcrifo de Tiago.18 Segundo este
autor, o Evangelho de Tom em seu desenvolvimento, testemunho de uma trajetria
que leva da primitiva interpretao espiritualizante dos ditos de Jesus ao
reconhecimento pleno do potencial gnstico dessa compreenso de Jesus como mestre
de sabedoria divina. E que O Dilogo do Salvador tem estreitas relaes com o
Evangelho Joanino remetendo assim a uma origem sria do mesmo, datada no sculo
I.19 Aprofundaremos mais acuradamente esse tema adiante neste trabalho.
17
18
19
Gabbatha = eivj to,pon lego,menon liqo,strwton( ~Ebrai?sti. de. Gabbaqa ;Golgotha junto a ao chamado
Lugar da Caveira: Jo 19,17 = saiu e chegou ao chamado Lugar da Caveira, em hebraico chamado
Golgotha = xh/lqen eivj to.n lego,menon Krani,ou To,pon( o] le,getai ~Ebrai?sti. Golgoqa.
DODD, C. Historical Tradition in the Fourth Gospel, p. 423-432. Mais detalhes da teoria de C. Dodd
encontra-se na obra de PONGUT, Silvestre. El Evangelio segn Juan. Cartas de San Juan, p. 32-37.
KOESTER, Helmut. Ancient Christian Gospels: Their History and Development, p. 256-267. A
descoberta da biblioteca de Nag Hammadi possibilitou o acesso a vrios escritos que auxiliam na
reconstruo da evoluo dos ditos, discursos e dilogos que certamente circulavam na comunidade
joanina e estiveram presentes nas fases iniciais da composio do texto do QE. Eis alguns exemplos:
As palavras sobre a luz em Jo 11,9-10 e 12,35-36 encontram paralelo no Evangelho de Tom 24b. Jo
8,52: Se algum guardar minha palavra, jamais provar a morte, uma variante do Evangelho de
Tom e citado como dito de Jesus no Dilogo do Salvador 104 (147,18-20); Jo 16,24 (pedir
receber alegrar-se) atestado como palavra de Jesus no Dilogo do Salvador 20 (129,14-16); a
recompensa dos que no viram e, contudo creram (Jo 20,29) aparece no Apocryphon de Tiago 12,3113,3. A afirmao dos discpulos de que Jesus est agora falando abertamente e no mais em
parbolas (Jo 16,29) aparece como um dito de Jesus no Apocryphon de Tiago 17,1-6. O Evangelho de
Tom, alm disso, apresenta vrios ditos de Jesus no estilo Eu, raros nos Evangelhos Sinticos, mas
freqentes no QE. Cf. KOESTER, Helmut. Introduo ao Novo Testamento 2, p. 196.
O Dilogo do Salvador um testemunho importante de uma discusso que o QE continua em seus
dilogos e discursos. Em toda essa tradio de interpretao, Jesus lembrado como mestre de
sabedoria que permanece vivo em suas palavras e que desafia seus discpulos a descobrirem em si
mesmos como a verdade se tornou realidade em suas vidas. Somente no conhecimento do eu a
revelao se torna efetiva, porque aqui os crentes se tornam iguais a Jesus, na medida em que
alcanam o conhecimento de sua prpria origem e destino. Aqui esto as razes da teologia gnstica.
29
20
Paulo reconheceu isso em sua exposio em 1 Corntios, e o autor do QE precisou entender-se com
essa tendncia gnstica da interpretao dos ditos de Jesus. Cf. KOESTER, Helmut. Introduo ao
Novo Testamento. Histria e Literatura do cristianismo primitivo, p. 169-171.
Para compreender melhor a posio de Bultmann preciso fazer, segundo Ashton, a distino que faz
entre f e religio. A religio encadeada na terra; a f vaga livremente. A religio o objeto prprio
do estudo histrico; a f uma questo teolgica.
30
sinais. Bultmann acredita que foi a partir da fonte dos discursos de revelao que o
evangelista desenvolveu sua pregao. O texto primitivo, fruto do pensamento
gnstico oriental, foi modificado com uma conotao crist, colocado na boca de
Jesus de forma cristianizada e desmitologizada. 21 Diz tambm que o autor pertencera a
um grupo gnstico de discpulos de Joo Batista e depois se convertera ao
cristianismo e que as grandes influncias semticas no Evangelho se explicam mais
pelo uso das fontes do que pelo grego do evangelista. Finalmente, Bultmann postula a
interveno de um redator eclesistico. A sua influncia foi de carter literrio e
teolgico; introduziu uma ordem prpria ao material deixado pelo evangelista. Porm,
a influncia teolgica foi mais importante: agregou referncias aos sacramentos (ao
batismo: gua em 3,5; a eucaristia em 6,51-58; ao batismo e a eucaristia em 19,34-35),
a escatologia final nas passagens como 5,28-29 e 12,4-8. No que se refere aos dados
histricos, procurou harmoniz-los com os dados dos Sinticos.
Marie-mile Boismard tem sua prpria hiptese das fontes literrias do QE.
Apresenta-a dividindo-a em quatro etapas redacionais, com a interveno de trs
autores (JoI, JoIIA, JoIIB, JoIII). Boismard aplicou quatro critrios para separar seu
procedimento: 1) as adies em forma de glosa, correo ou ratificao; 2) as
duplicaes ou repetio de contedos; 3) textos aparentemente deslocados de seus
contextos de origem; 4) textos estilisticamente semelhantes, com base numa lista de
mais de 400 caractersticas de estilo. O autor descobriu como resultado da primeira
etapa de redao um evangelho inteiro, semelhante aos Sinticos, tendo a parte os
discursos prprios do QE. Sua segunda fase redacional teria sido realizada pelo
presbtero Joo, autor das Cartas, com o acrscimo de passagens sinticas e de alguns
discursos de Jesus. Na terceira etapa, o evangelista teria efetuado a organizao do
21
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BOISMARD, Marie-mile. Lvangile de Jean. Sinopse des quatre vangiles, vol. 3, 1977.
Cf. SCHNACKENBURG. Rudolf. Il Vangelo di Giovanni I, p. 93-102. Schnackenburg, na sua
pesquisa, faz ainda um peculiar comentrio s origens do QE dizendo que um trabalho de
sincretismo, no qual os componentes helensticos e gnsticos no podem ser eliminados. Segundo o
autor, torna-se extremamente difcil encarnar o QE a uma rea bem definida e a um ambiente
claramente reconhecvel. Porque a inteira cultura do evangelista era sincretista, e a metade oriental do
Imprio Romano, a nica metade em questo com lugar de origem do QE, contm diversas regies e
cidades similares: Sria e Antioquia, sia Menor e feso, Egito e Alexandria. O problema
ulteriormente complicado quando iniciamos a distinguir o ambiente do autor, o mbito intelectual do
lugar de origem, e talvez tambm as fases do desenvolvimento do mesmo trabalho. Cf. ASTHON,
John, Comprendere il Quarto Vangelo, p. 103. Queremos esclarecer que para ns, o autor do QE tinha
um projeto, uma lgica e ordenou seus escritos, seus ou recolhidos, mas tambm recebeu influncia do
ambiente e da cultura que o circundava no seu momento histrico. Ele no somente um simples
compilador, mas respondia s necessidades e desafios da comunidade no lugar e na situao em que se
encontravam. H no QE uma unidade estilstica e temtica, como demonstraremos mais adiante.
32
33
Jesus: Aquele que vem do alto (3,31), desprezado pelos seus (1,11), quem O aceita
odiado pelo mundo (17,14.16), os que nEle crem so chamados de verdadeiros
israelitas e no mais judeus (1,47); 3) a terceira fase caracterizada pela tenso entre a
comunidade joanina e outros grupos afins. Pelo menos quatro grupos: a sinagoga dos
judeus, judeus a que procuram serem fiis a Jesus, a mesma comunidade joanina e
outras comunidades de cristos influenciados pelo judasmo.
25
Cf. TUI, Jos-Oriol. Escritos Joaninos e Cartas Catlicas, p. 123-125; ASHTON, John.
Comprendere il Quarto Vangelo, p. 113-115.
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Teoria presente nas pginas de 13 a 40 do livro de VIDAL, Senn. Los escritos originales de la
comunidad del discpulo amigo de Jess.
35
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Andrew Overman diz que um exemplo desse crescimento se v na carreira e nas realizaes de
Pompeu, o Grande, que, se dizia, pacificou o Oriente, reorganizou-o administrativamente, f-lo seguro
para comrcio e viagens e governou terras orientais to longnquas quanto o rio Eufrates para a rbita
e o controle de Roma. Cf. OVERMAN, Andrew J. Igreja e Comunidade em crise, p. 16.
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formativo34 em Jmnia por volta do ano 90 que significa a nova imagem e identidade
do judasmo.35 Nesse lugar acontece um snodo que define o cnon da Bblia hebraica
e exclui quem no se enquadra nas suas novas regras fixadas. Podemos dizer que o
rabinado quem comanda e institucionaliza o judasmo conseguindo se impor tambm
fora da Palestina, na dispora. 36 Com o passar do tempo surge a Mishnah e o Talmude,
produtos dessa nova religiosidade e interpretaes dos rabis fariseus. 37 nesse
contexto que o cristianismo tenta afirmar-se, num movimento que tenta se impor, em
meio a uma pluralidade judaica de movimentos e expresses que tornam cena. 38
Assim escreve Paulo R. Garcia:
34
35
36
37
38
39
Este termo judasmo formativo de uso comum atualmente entre os estudiosos do judasmo e foi
criado por Jacob Neusner, dedicado especificamente ao aprofundamento do judasmo antigo. Neusner
entende por judasmo formativo o perodo que comea com o a elaborao da Mishnah no 2 sculo
depois de Cristo at a composio final do Talmud no 6 sculo depois de Cristo.
Seguimos neste trabalho exatamente esta compreenso de judasmo formativo que defendida na tese
do Prof. Paulo Roberto Garcia (Tese doutoral O Sbado do Senhor teu Deus. O Evangelho de Mateus
no Espectro dos Movimentos Judaicos do I Sculo, p. 44-49). Na perspectiva da sua proposta tambm
aceitamos aqui esta definio, mesmo com crticas a NEUSNER, pois consideramos tardio demais o
nascimento deste tipo de judasmo. Ele nasceu bem antes do perodo que Jacob Neusner estabelece.
Pierre Grelot, um estudioso do judasmo da poca de Jesus, diz que a reforma que os doutores fariseus
ou mais exatamente, os da escola de Hillel ali operaram, foi recebida em toda parte sem
contestao, tanto no Egito de lngua grega como na Mesopotmia de lngua aramaica, onda as
comunidades judaicas eram numerosas e muito florescentes. A academia de Jmnia foi acrescida de
um tribunal (Beth dn) que herdou, por fora das circunstncias, uma parte dos poderes outrora
confiado ao Sindrio. Cf. GRELOT, P. A Esperana Messinica no Tempo de Jesus, p. 142.
NEUSNER, J. The formation of Rabbinic Judaism: Yavneh form A.D. 70-100, ANWR II., 19.2, p.3-42.
Paulo R. Garcia escreve que o judasmo formativo escondeu muitas tradies que reapareceram na
mstica judaica novamente depois de 4 sculos. Muitos movimentos e grupos conservaram suas
memrias mesmo depois da destruio do Templo em 70 d.C. Cf. GARCIA, Paulo Roberto. Jesus, um
Galileu frente a Jerusalm: Um olhar histrico sobre Jesus e os Judasmos de seu tempo, p. 264.
Id., p. 266.
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40
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grupo dos judeus ligado aos escribas e fariseus de Jerusalm (defendiam a fidelidade
estrita lei de Moiss e Tradio dos Antigos Mc 7,5; Gl 1,14). Entre estes dois
extremos existem outros grupos: alguns ligados s comunidades da Galilia (cf. Mc
16,7; 14,28), outros ligados a Tiago e aos irmos de Jesus (cf. Mc 3,31-34; Gl 1,19;
2,9; At 12,17; 21,28), outros ainda aos samaritanos (cf. Jo 4,39-42). Esta variedade de
grupos e tendncias revela a riqueza da vivncia da Boa-Nova do Reino, mas tambm
mostra que existiam conflitos e tenses que se acentuavam cada vez mais.
Id., p. 35-39.
43
Id., p. 43. Flavio Josefo, historiador judeu do sculo I d.C. descreve tambm muitas das escolas mais
populares do judasmo de seu tempo: os essnios, em geral associados aos habitantes de Qumran e aos
Manuscritos do mar Morto, os fariseus, os saduceus e um grupo revolucionrio, a quarta filosofia
(Guerra Judaica II, 119-66; Antiguidades judaicas XVIII, 11-17). Alm desses, Josefo descreve
alguns grupos menos oficiais, grupos populares que tambm alegavam ter tradies, heris e, acima
de tudo, expectativas para Israel. Esses grupos eram variadamente classificados como bandidos,
rebeldes, movimentos populares, sicrios ou mesmo zelotas. Outros grupos associados ao Templo,
como os samaritanos e numerosos grupos apocalpticos no mencionados por Flvio Josefo. Cf.
OVERMAN, Andrew J., Igreja e Comunidade em crise, p. 18-19.
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R. Brown, no seu livro A Comunidade do Discpulo Amado, p. 74-95, identifica trs grupos que esto
presentes na comunidade joanina: O primeiro seria aquele formado pelos que conseguiram se manter
na sinagoga e no foram expulsos. Evitavam confessar publicamente que Jesus era o Cristo (cf. Jo
9,20-22; 12,42). O segundo grupo seria composto por cristos reconhecidos publicamente, contudo
tinham divergncias teolgicas doutrinrias que os cristos joaninos consideram inaceitveis (cf. Jo
6,60-66). O terceiro grupo estaria representado pelos nomes da lista dos doze apstolos, exceto Judas
Iscariotes (Pedro, Andr, Filipe, Tom, Judas e Natanael). O autor do QE parece insistir num contraste
entre duas figuras paradigmticas dos discpulos de Jesus: Simo Pedro e o Discpulo Amado.
Poucas vezes o autor do QE usa o substantivo f, usa mais o verbo crer (98 vezes). A atitude de
crer uma exigncia fundamental para o seguidor de Jesus na comunidade joanina.
RUBEAUX, Francisco. As razes do Quarto Evangelho. In: RIBLA 22, p. 65.
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49
Senn Vidal escreve que a concluso do QE (20,30-31) tinha uma inteno etiolgica, de
justificao da f comunitria em Jesus como profeta messinico (no de tipo poltico) que era a
confisso fundamental dos grupos joaninos dos primeiros tempos da comunidade. Cf. VIDAL, S., Los
escritos originales de la comunidad, p. 18.
Gnosticismo a viso de mundo baseada na experincia de Gnose, que tem por origem etimolgica o
termo grego gnosis, que significa "conhecimento". Mas no um conhecimento racional, cientfico,
filosfico, terico e emprico (a "episteme" dos gregos), mas de carter intuitivo e transcendental;
Sabedoria. usada para designar um conhecimento profundo e superior do mundo e do homem, que
d sentido vida humana, que a torna plena de significado porque permite o encontro do homem com
sua essncia eterna, centelha divina, maravilhosa e crstica, pela via do corao. uma realidade
vivente sempre ativa, que apenas compreendida quando experimentada e vivenciada. Assim sendo
jamais pode ser assimilada de forma abstrata, intelectual e discursiva.
Enfatizamos somente como as formas gnsticas de cristianismo interagem com o QE e o que isto
nos diz sobre as origens do cristianismo sem considerar a questo sobre as origens do gnosticismo.
Podemos, contudo, reconhecer o Gnosticismo pela presena de elementos tais como: o dualismo
metafsico; a existncia de seres intermdios entre Deus e o homem; a interveno destes seres na
produo do mal; o mundo material considerado como mal; o conceito da alma como prisioneira da
matria, a necessidade do conhecimento adquirido por revelao para libertar a alma e conduzi-la
luz; a limitao do nmero dos que podem chegar a esta revelao; a figura e a funo do revelador
que salva. O gnstico sabe o que ramos e o que seremos; de onde viemos e para onde vamos; de onde
somos resgatados; o que nascer e o que renascer. O conhecimento est centrado no sujeito que
conhece; conhecer essencialmente conhecer-se, ou seja, reconhecer o elemento divino que constitui
o prprio ser e, atravs deste conhecimento, chegar salvao. Cf. PONGUT, Silvestre. El
Evangelio segn Juan. Cartas de San Juan, p. 63-64.
46
brilha
no
em
Jesus,
mas,
pelo
menos
47
52
Cf. PAGELS, Elaine. Alm de toda crena. O desconhecido Evangelho de Tom, p. 42-43. Certos
temas surgidos neste pargrafo, como a aceitao do QE no seio da igreja nascente e as suas
diferenas com os Sinticos, sero mais aprofundadas nos captulos seguintes da nossa pesquisa.
48
53
54
49
50
judia muito forte, principalmente o judasmo rabnico, novo, que est se estruturando
com toda a fora aps a destruio do Templo. O fato de o QE explicar costumes e
traduzir palavras da cultura judaica requer um lugar onde existe tambm uma presena
helenstica significativa. A escola joanina no final do I sculo se teria aberta a esta
realidade e contexto maior onde vivia.
57
Raymond BROWN, Introduo ao Novo Testamento, p. 508-510. Pablo RICHARD baseia-se tambm
em Brown, Chaves para uma re-leitura histrica e libertadora, p. 24-26.
51
opinies
contrrias
alta
cristologia,
desvirtuando
evangelho,
espiritualizando-o. Provavelmente essa crise tinha a ver com as idias gnsticas. Essa
crise mexeu com as bases da tradio e exigiu mais capacidade de reflexo e dilogo.
Na quarta fase, de 90 a 110, so escritas 1Jo e 2Jo com a finalidade de reagir s
tendncias que ameaavam a unidade e a comunho da comunidade. Enquanto um
grupo colocava destaque na humanidade de Jesus e seu comportamento tico, o outro
no aceitou essa insistncia e acabou se desvinculando (cf. 1Jo 2,18-19). A crise foi
superada e surgiu o trabalho de aproximao das diferentes tradies crists. Teria
sido nessa poca que se escreveram Jo 21 e 3Jo? Provavelmente. E a quinta fase, 110
a 120, na qual a alta cristologia aceita pelas outras comunidades apostlicas e
integrada na igreja apostlica sob a autoridade de Pedro. A Igreja como um todo se
enriquece com as reflexes teolgicas e cristolgicas de ambas as tradies. A
integrao da tradio do discpulo amado na tradio apostlica salva o QE com toda
a sua riqueza.
Brown nos alerta que todo o QE deve ser lido em nveis diferentes, de modo que
ele nos narre, tanto a histria de Jesus, quanto a da comunidade que cria nele. Isso j
foi afirmado tambm por J. L. Martyn. Compreender que o QE se formou em fases
sucessivas resultado de todo esse processo histrico da pesquisa de tantos estudiosos
deste Evangelho. O prprio Brown resume sua teoria da histria da comunidade
joanina utilizando os resultados dos estudos cientficos do QE:
Primeiramente,
os
evangelhos
nos
falam
como
cada
52
um
escrito
pouco
elaborado,
com
freqentes
53
54
para com os judeus (cap. 11). A comunidade ento dedica mais ateno s prprias
questes internas. As alegorias do vinho (cap. 15) e aquela da porta e do pastor (cap.
10, 1-18) constituem expresso disso. A purificao do Templo, que originalmente
introduzia a narrao da Paixo, foi movida agora para a atual posio no captulo 2. 60
Portanto, a teologia e o estilo literrio que se reflete no QE foram obras de vrios
redatores. Muitos comentadores do QE dizem, porm, que um redator final foi
responsvel pela ordem que temos hoje e pelo acrscimo do ltimo captulo (21).
60
55
56
O ensinamento ortodoxo da igreja nascente do primeiro sculo tinha semelhanas com essa chamada
heresia (gnosticismo). Era como veneno disfarado em leite, no dizer de Elaine Pagels. Ento, Ireneu
escreveu os cinco volumes de sua densa Refutao e Fim da Falsa Pretensa Gnose para ensinar os
incautos a discernir entre a verdade que salva os fiis, e o ensinamento gnstico, que os destri em um
abismo de loucura e blasfmia (Ireneu de Lio, AH, 4.33.3). Cf. PAGELS, Elaine, Os Evangelhos
Gnsticos, 35. A mesma autora em outro livro seu escreve: (...) os padres da igreja usavam o termo
gnstico com mais freqncia para se referirem com escrnio s pessoas a quem rejeitavam como
gente que alegava saber tudo. Cf. Alm de toda crena. O Evangelho desconhecido de Tom, p. 41.
57
este verbo no QE tem uma importncia capital: confessar Jesus Cristo faz parte da
mesma f verdadeira que identifica um crente e o faz pertencente, membro de um
grupo. Confessar Jesus como Messias (como Filho de Deus...) no como se fosse
uma frmula externa, meramente verbal. Constitui uma parte da mesma f, digamos
que do mesmo perfil doutrinal da comunidade: contudo muitos chefes creram nele,
mas no o confessavam por causa dos fariseus, para no serem expulsos da sinagoga
(12,42). O texto afirma que creram nele, todavia a seqncia parece dura: preferiram
mais a glria que vem dos homens do que a glria que vem de Deus (12,43). Este
preferir mais a glria dos homens no aprovado pelo evangelista, que dir numa
outra passagem: Como podereis crer, vs que recebeis a glria que vem dos homens,
mas no procurais a glria que vem do Deus nico? (5,44; cf. 8,54-55 e 7,17-18). A
confisso , portanto, um aspecto fundamental e constitutivo do acreditar.
58
Jesus; ou se aceita Jesus e vive-se na luz ou se rejeita Jesus e fica-se nas trevas. Esta
confisso cria identidade e cria comunho, unidade na Verdade e na Liberdade. 62
62
63
59
viso gnstica do evento da revelao, para a qual o critrio de salvao era a rejeio
radical da esfera terrena e humana.
Helmut Koester escreve claramente a esse respeito dizendo que a primeira parte
do QE (2 12) tem o objetivo de analisar critrios tradicionais para o reconhecimento
da revelao, como vimos anteriormente com Bultmann. Essa anlise introduzida
pela descrio da reao das pessoas aos milagres de Jesus e pela crtica dos judeus
a Jesus. A crtica aos milagres e a polmica contra os judeus so, sem dvida, segundo
Koester, tpicos j presentes na tradio. O autor do QE, contudo, recorre a essa
tradio para discutir um problema fundamental, ou seja, o dilema da documentao
visvel da presena divina, que facilmente aceita porque confirma desejos e
preconceitos religiosos j existentes, ou que rejeitada porque no combina com
critrios teolgicos preconcebidos.
60
o autor desta 1Jo um poltico da igreja dos crculos joaninos que nela trata de
aspectos prticos da continuao do legado joanino. Por seus esforos, a tradio
joanina, e especialmente o QE, seriam finalmente bem recebidos pela igreja em geral.
Podemos entender agora, mais que antes, para que foi escrito o QE e por que
encontramos to marcadamente esse estilo polmico e apologtico centrado nas
questes cristolgicas como foco mais evidente. O autor queria dar respostas seguras a
essas questes e iluminar os passos dos membros da comunidade no caminho certo,
segundo a verdadeira f em Jesus Cristo, o Messias e Filho de Deus (Jo 20,30).
64
Elaine Pagels diz que a inteno do autor ao usar o termo judeu era para associar a figura mitolgica
de Satans a uma oposio humana especfica, implicando em primeiro lugar Judas Iscariotes, em
seguida, as autoridades judaicas e, por ltimo, os judeus coletivamente. Desde o incio do QE o
autor traa as linhas de batalha entre os filhos da luz e os filhos das trevas, embora, neste caso, a
luz seja especificamente representada por Jesus. Depois de terem os judeus tentado apedrej-lo por
pronunciar blasfmias reivindicandoo nome divino (8,58) Jesus declarou: necessrio que
faamos as obras daquele que me enviou, enquanto dia; a noite vem, quando ningum pode
trabalhar. Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo (9,4-5). Pagels diz assim que os leitores do
QE so, portanto, avisados de que os fatos que ele descreve servem para julgar e condenar como
filhos das trevas aqueles que participaram da destruio de Jesus. Pagels conclui dizendo que as
vrias descries do diabo feitas pelo autor do QE e pelos demais evangelistas correlacionam-se com
a histria social de Satans isto , com a histria do crescente conflito entre grupos que
representavam os seguidores de Jesus e a oposio a eles. E que ao apresentar a vida e a mensagem de
Jesus nesses termos polmicos, os evangelistas pretendiam sem dvida fortalecer a solidariedade do
grupo. Isso parece ser muito peculiar e real na comunidade joanina. Sobre as conseqncias que esta
forma apresentada no QE produziu ao longo dos sculos posteriores e a relao dos cristos com os
judeus, iremos aprofundar no decorrer da pesquisa nos captulos seguintes. Cf. PAGELS, Elaine. As
origens de Satans, p. 141-149.
61
65
66
62
judeus e mundo.67 Com isso entendemos melhor ainda as causas da ruptura entre a
comunidade joanina e os judeus, que no aceitaram nem seguiram Jesus Cristo.
63
Sindrio). H tambm textos que falam positivamente dos judeus. Sobressai o texto
4,22 onde o Jesus joanino afirma de modo absoluto: a salvao vem dos judeus e
no dos samaritanos ou dos pagos. Noutros textos os judeus acreditam nele (8,31;
12,10-11). A famlia de Lzaro, Maria e Marta judia e amigos ntimos de Jesus.
Nicodemos judeu e admira Jesus. Outros duvidam ou interrogam-se sobre a verdade
de Jesus (7,15; 10,19.24). 68
64
65
boa obra, mas por blasfmia, porque, sendo apenas homem, tu te fazes Deus (10,33;
8,58-59; 19,7).69
J Grgory Baum diz que toda a hostilidade para com os judeus era por causa
do acento novo dada escatologia. O autor joanino afirma que as promessas feitas j
se cumpriram em Jesus Cristo, que a graa da salvao est no presente, no no
advento futuro. Essa perspectiva histrica, segundo Baum, obriga o evangelista a
adotar uma atitude de serenidade diante das perseguies e at da expulso. O
julgamento do mundo comea na pessoa de Jesus. Os que no crem em Jesus no
recebero a vida, e a clera de Deus pesa sobre eles (3,36). 70
69
70
66
E ainda: a questo dos judeus contra Jesus e de Jesus contra os judeus uma
questo intra-religiosa, duma igreja particular a joanina , bem circunstanciada no
espao e no tempo. No se trata, pois, de um anticristianismo de todos os judeus nem
de um antijudasmo de Jesus contra todos os judeus. Segundo D. G. Dunn, no
judasmo dos tempos do Jesus histrico, cheio de faces religiosas, mas, sobretudo,
nos tempos aps o ano 70, s h duas correntes religiosas dentro do judasmo que se
apresentam como herdeiras do verdadeiro judasmo, a do judasmo cristo e a do
judasmo rabnico. Mas sabemos que no totalmente verdadeira essa afirmao de
Dunn.71 Sabemos que existiam muitos outros grupos religiosos com tendncias
71
Citamos D. G. Dunn que apresentado por Joaquim Carreira Neves na sua obra sobre o QE. Segundo
Neves, a Universidade Catlica de Louvain (Blgica) levou a efeito um simposium nos dias 17-18
de janeiro de 2000 sobre os textos antijudaicos do QE, a comear por Jo 8,31-59, de parceria com o
Instituto Judaicum de Bruxelas. Foram convidados 24 professores, especialistas no QE e no dilogo
entre cristos e judeus. O resultado est presente na obra de R. Bieringer e D. Pollefeyt (Eds.), Anti
Judaism and the FG, que apresenta treze textos sobre o assunto de especialistas da Inglaterra, Blgica,
Holanda, Canad e Estados Unidos. Cf. NEVES, J. C., Escritos de So Joo, p. 178, 182-183.
67
72
68
Agripa II)73 corrobora para justificar essa realidade de judasmo farisaico. Este autor
resume os pontos relevantes para uma ubicao da comunidade do Discpulo Amado
nestes itens: a linguagem da comunidade o grego; a comunidade est composta de
uma maioria judeu-crist; vive em um ambiente misto, porm dominado por judeus
inclusive o judasmo aparece investido de poder com autoridade; a comunidade est
exposta s medidas repressivas de um judasmo que se consolidou depois do ano 70
sob a direo farisaica, excluindo todas as outras correntes e exercendo sua influncia
desde o novo centro em Javne na Palestina at as regies prximas. 74 Concordamos
com estes pontos que comprovam ainda mais a identidade dos judeus como
entendemos no QE.
73
74
As zonas meridionais do reino de Agripa II so descritas por Flvio JOSEFO como sendo os
territrios de Gamala, Gualantide, Batanea e Tracontide, ao norte da Jordnia. Cf. JOSEFO, Flvio,
Guerra Judaica II, p. 56ss.
Cf. WENGST, Klaus, Interpretacin del Evangelio de Juan, p. 48, 87-89.
69
Inicialmente podemos dizer que o texto foi produzido. O autor (ou os autores)
elaborou-o em vrias etapas, usando de material variado e existente na poca e no
lugar onde o viveu. Muitas hipteses foram levantadas para esclarecer as divergncias
e diferenas, modificaes e reorganizaes dos textos no QE. Surgiram teorias sobre
as fontes e redaes mltiplas e chegou-se concluso que o texto atual fruto de um
longo e complexo processo redacional. Apresentamos vrios estudiosos e suas teorias
(R. Bultmann, C. Dodd, H. Koester, E. Boismard, R. Schnackenburg, R. Brown, P.
Richard, J. L. Martyn). Entre todos esses autores e suas hipteses, encontramos no
trabalho de Senn Vidal um exemplo de anlise sria e minuciosa que reconstri a
gnese e as sucessivas etapas da formao dos textos no QE. Como tambm na sua
pesquisa se afirma que os textos possuem um solo que lhes deu assento e sustento:
um grupo de cristos seguidores de Jesus com uma experincia particular em conflito,
70
Como fizemos questo de enfatizar antes, a partir dos anos 40 d.C. as diferentes
comunidades se espalharam pelo mundo de ento. Havia uma diversidade enorme de
grupos cristos, seguidores do Caminho (Jesus Cristo). Cada um deles conheceu,
recolheu, conservou e transmitiu as palavras de Jesus de acordo com a situao, o
ambiente e a cultura em que viviam e de acordo com os problemas que estavam
enfrentando. O QE foi sendo escrito pouco a pouco, passo a passo, inclusive, conflito
a conflito, tudo isso dentro das etapas da histria das comunidades que se reuniram em
torno do Discpulo Amado.
Na primeira etapa, antes do ano 50, a comunidade joanina era formada por
cristos judeus que comungavam a mesma f das outras comunidades que surgiram
dos Doze discpulos. Seja J. L. Martyn76 quanto R. Brown concordam com o fato de
que so esses os componentes primordiais.77 Esta comunidade joanina das origens
judeu-crist compartilha a mesma f e reconhece a Jesus como Messias, Profeta e Rei
de Israel. Tem o que hoje se denomina uma baixa cristologia, tal qual outras
75
76
77
Snen Vidal divide a redao do QE em quatro estratos: as tradies bsicas (TB), o primeiro
Evangelho (E1), o Evangelho transformado (E2) e o Evangelho glosado (E3). uma leitura e uma
interpretao contextualizada do QE. Cf. Los escritos originales da la Comunidad, p. 13-34.
J. L. Martyn foi um dos pioneiros que aprofundou o estudo do QE e defendeu a tese de que este
Evangelho deve ser lido em diversos nveis, para que se compreenda no somente Jesus, mas tambm
se descubra a vida e as lutas da comunidade joanina. Para isso ele mesmo elaborou uma reconstituio
das origens desta comunidade da qual nasceu o QE. Como vimos antes, Martyn distingue trs fases na
histria da comunidade joanina: o perodo primitivo (antes da revolta judaica at um tempo qualquer
na dcada de 80; o perodo mdio (talvez no final de 80); o ltimo perodo (sem preciso de data).
Cf. BROWN, Raymond. A Comunidade do Discpulo Amado, p. 27. Nas pginas 176-177 Brown
apresenta um quadro com os agrupamentos religiosos diferentes que esto fora e os que esto dentro
da comunidade joanina: o mundo, os judeus, os adeptos de Joo Batista, os criptocristos, os
cristos judeus, cristos das igrejas apostlicas. E nas pginas 172-173 o autor mostra o quadro com a
histria das quatro fases da histria da comunidade joanina. Juntamente com Pablo Richard, Brown
concorda com a datao e as fases: 1 fase: 30-50; 2 fase: 50-70; 3 fase: 70-90; 4 fase: 90-100; 5
fase: 110-120.
71
78
79
80
Cf. RICHARD, Pablo, Chaves para uma re-leitura histrica e libertadora, p. 24.
Cf. LOPES, Mercedes. A Confisso de Marta, p. 20
Cf. RICHARD, Pablo, Chaves para uma re-leitura histrica e libertadora, p. 31.
72
igual a Deus.81 Todavia esse conflito com as autoridades do judasmo farisaico teve
dolorosas conseqncias para os membros da comunidade joanina, deixando-os,
sobretudo desprotegidos ante o Imprio Romano. A participao na sinagoga garantia
a proteo do sistema religioso judaico e a libertao da ordem de render culto ao
imperador, exigido pelo imperador Domiciano, em fins do sculo I. 82 Devido a isso e
expulso da sinagoga, muitos da comunidade se tornaram criptocristos,83 pois no
confessavam publicamente sua f em Jesus, tinham medo das autoridades e a
necessidade de permanecer dentro do sistema religioso-poltico dominante os impedia
de crescer na f. 84 Havia ainda uma presso do movimento sediado em Jmnia que
buscava unificao judaica ao redor de um mesmo cnon e de uma mesma f.
83
84
73
novo calendrio, um novo ritual (batismo), nova catequese. Uma comunidade que aos
poucos se tornava autnoma, independente, original, distinta do judasmo, mesmo
tendo sado dele.85
87
88
Cf. DESTRO, Adriana e PESCE, Mauro. Como naci el cristianismo junico, p. 9-10.
Embora Klaus Wengst no tenha uma prpria teoria sobre mltiplas redaes, seguimos aqui sua
teoria histrico-econmica, o que justifica o assentamento da comunidade joanina na geografia
palestinesa acima apresentada. A ubicao da mesma justificada e melhor compreendida entendendo
a situao poltico-econmica da Palestina aps a destruio do Templo no ano 70. Ver seu livro:
Interpretacin del Evangelio de Juan.
Cf. WENGST, Klaus, Intepretacin del Evangelio de Juan, p. 86-89.
Cf. BROWN, Raymond, A Comunidade do Discpulo Amado, p. 40, (nota 62).
74
Seguindo Ashton, apresentamos uma sntese de todo esse processo e uma teoria
adotada, com seus limites e apoiada no que se escreveu at hoje com a ajuda da
crtica literria e da crtica das formas. 90
89
90
75
eram
costurados
em
um
conjunto
conceitual
76
77
92
93
94
Quanto autoria do QE h um grande nmero de autores que pesquisaram e deram suas hipteses.
Aqui seguimos a tradicional apresentada no texto acima, mesmo sabendo que muitos foram os
autores, membros de uma escola joanina que comungavam do mesmo mtodo, da mesma teologia e da
mesma espiritualidade. Para uma mais detalhada tratao do autor do QE pode se consultar: Martin
HENGEL (La Questione Giovannea, 1998), Raymond BROWN (El Evangelio segun Juan, p. 99-120;
A Comunidade do Discpulo Amado, p. 31-35), Rudolf SCHNACKENBURG (Il Vangelo di Giovanni,
p. 104-133). H um autor que em 1993 defendeu ainda a tese da redao de um nico autor: Thomas
L. BRODIE, The Quest for the Origin of Johns Gospel: a Souce-Oriented Approach.
Os Atos dos Apstolos registram uma freqncia natural dos apstolos ao Templo (At 2,46; 3,1)
enquanto que todos os evangelhos apresentam uma clara oposio a esta instituio. No Quarto
Evangelho o conflito com o Templo mais acentuado, tanto que logo no captulo segundo inicia-se
com a interveno de Jesus contra ele. Nota-se uma rejeio pelo antigo modelo de templo. Este
conflito mostra o quanto haviam diferenas entre os cristos da comunidade joanina e os judeus ainda
apegados antiga aliana, simbolizada no Templo.
Cf. BROWN, Raymond, A Comunidade do Discpulo Amado, p. 20. Tambm Senn VIDAL, Los
escritos originales de la comunidad , p. 42-43.
CF. VIDAL, Senn, Los escritos originales de la comunidad, p. 44-46.
78
95
96
A expulso deve ter tido um significado muito diferente para os grupos que constituam a comunidade
joanina, representando o ponto em torno do qual se formou uma identidade social particular e
ameaadora para os judeus (Cf. Jo 11,48). Senn VIDAL refora dizendo que esta separao do seio
do judasmo foi um trauma que se tornou ocasio de um nascimento a uma nova existncia. Cf. Los
escritos originales de la comunidad, p. 23, 44. Entendemos que logo aps a expulso iniciaram-se
perseguies. Todos os que confessavam Jesus como Cristo eram ameaados e perseguidos. Contudo,
tambm ao interno da comunidade joanina havia divergncias, medrosos e resistentes diante de tudo o
que acontecia com eles. Crer e seguir Jesus Cristo tornava-se perigoso.
MORETTI, Serenito A., O sinal da partilha no Quarto Evangelho (Jo 6,1-21), p.14.
79
97
Johan Konings escreve: Como Joo sobrepe os ouvintes histricos de Jesus aos crentes posteriores,
podemos imaginar certos judeus que, na metade do primeiro sculo, haviam ficado impressionados
pela sabedoria e/ou a configurao proftica da vida de Jesus, por seu amor radical e por seu martrio
atitude altamente estimada pelos judeus piedosos (cf. 2Mc). Mas, quando, nas novas circunstncias,
a adeso a Jesus pe em xeque as referncias judaicas tradicionais, esses admiradores pensam em
voltar comunidade judaica rabnica. Alis, ofendem-se porque Jesus pretende libert-los por sua
palavra: Ns somos descendentes de Abrao e nunca fomos escravos de ningum. (...) A julgar pelo
termo eleutheroi, os judeus parecem exibir o estatuto de homens livres, no sentido poltico e
social do Imprio Romano. Como que Jesus lhes promete liberdade? (...) em vez de se inclinarem a
desistir de Jesus, os judeo-cristos so convidados a continuarem firmes na f que os une a ele. Ento
sero verdadeiramente livres. O verdadeiramente tem um efeito irnico e provocador, e os
interlocutores o percebem assim, como mostra o v. 33: eles entendem que Jesus sugere que eles no
so realmente livres. Por isso respondem com uma afirmao veemente de sua liberdade como filhos
de Abrao. KONINGS, Johan, A Verdade vos tornar Livres (Joo 8,32), p. 169-170.
80
(13,1 20,31). Esta foi a primeira redao do QE, cuja concluso se encontra no final
(20,30-31). Vidal faz um trabalho minucioso de pesquisa sobre os textos e suas fases,
explica onde deveriam ter sido criados os textos e onde esto no texto atual.
81
1,1 - 18
1,19 a 11,54
11,55 a
21,1 25
13,1 a 20,31
12,50
Prlogo
Do Pai
ao
mundo
e do
1 parte
Momento de 2 parte
transio at
LIVRO DOS
uma unio
LIVRO DA GLRIA
SINAIS
entre os dois Revelao diante da comunidade
LIVROS
Incio Conflito
Despedida Testamento A obra
dos
crescente
dos seus de Jesus
consumada
Sinais e opo
Orao
de f
Eplogo
O Ressuscitado
ea
comunidade
mundo
ao Pai
1,19 a 5,1 a
4,54 11,54
13,1 a
14,31
15,1 a
17,26
18,1 a
20,31
82
1.6 Concluso
O ttulo deste captulo I (A Comunidade Joanina num contexto pluralista do I
sculo) j quis demonstrar o que pretendemos alcanar ao longo do mesmo, isto ,
uma compreenso mais profunda, a partir da pesquisa recente e mais antiga do QE, da
situao complexa e do contexto pluri-cultural em que a comunidade do Discpulo
Amado teve que se estabelecer e sobreviver. Nem tudo o que aconteceu no ambiente e
na poca do nascimento da comunidade foi colocado por escrito, mas algumas
situaes de conflito em torno de questes dentro do judasmo (sobre o Messianismo
de Jesus, por exemplo) foram determinantes para definir o estilo de controvrsias
contidas no Evangelho. O texto reflete a realidade. Temos de respeitar o texto como
produto do seu contexto e no l-lo a partir de pressupostos ou idias pr-concebidas
sobre a histria do cristianismo primitivo como nos foi contada e acreditada at hoje.
83
Conclumos, enfim, aps este primeiro captulo, que a comunidade joanina, por
seu incio histrico particular, produziu o QE em continuidade e coerente com o
judasmo nascente, no em total ruptura com ele. Compreendemos melhor que havia
um esforo de dilogo e entendimento, o que gerou uma clara identidade da mesma
diante das ameaas concretas que tinha de enfrentar. Os conflitos registrados no texto
joanino so um reflexo deste esforo. Era uma disputa sadia (intra-judaica), no era
uma guerra declarada contra os judeus no cristos (anti-judaica); o antisemitismo
nasceu depois por errneas interpretaes destes conflitos presentes tambm no QE,
mas no s. Entendemos melhor agora que os judeus da sinagoga, de tradio
farisaica, buscavam aps a destruio do Templo smbolo sagrado de uma
84
99
100
Conhecemos melhor hoje que o judasmo nascente ps-70 com a destruio do Templo era como que
um fenmeno plural marcadamente religioso, todavia, mesmo durante a existncia do Templo haviam
diversos movimentos e partidos em contrastes entre si; e mesmo aps a destruio do Templo, no
houve uma total desorientao, os judeus mais devotos tinham alternativas de praticar a piedade e
concentraram-se na sinagoga para este exerccio de f. Houve muitas reaes diante do drama trgico
de ficar sem o Templo. Temos conhecimento de movimentos como os essnios de Qumran, os
apocalpticos, os escribas remanescentes, os judeus da dispora. Cf. NEUSNER, Jacob. Formative
Judaism: Religious, Historic, and Literary Studies, p. 86s.
Jacob Neusner chama assim este perodo que vai da criao da Mishnah, no final do sculo I, at a
formao do Talmud Babilnico, no sculo VI.
J. Andrew OVERMAN faz a mesma observao sobre a situao conflitual e a participao da
comunidade na busca de definio da prpria identidade, porm, ele observa isso na comunidade do
Evangelho de Mateus. Cf. Igreja e Comunidade em crise. O Evangelho segundo Mateus, p. 35.
85
101
Em algum momento deste processo a postura dos lderes fariseus radicalizou-se com a violncia, a
excluso, a expulso da sinagoga, a intolerncia com os mpios (hereges) e at mesmo maldies com
as Birkat-ha-Minin dirigidas aos que no seguiam a f judaica e eram infiis Lei-Torah. (E que
no haja para os apstatas esperana (...), e que peream de imediato os nazarenos e os hereges e
que sejam apagados do livro da vida...). Cf. SCHRER, Emil. Historia del Pueblo Judio, p. 596. Esta
mesma atitude foi depois assumida por Irineu de Lio, como j acenamos antes.
CAPTULO II
A ESTRATGIA LITERRIA
NA PERCOPE JOO 8, 31-59
87
102
103
Cf. p. 59-60.
Cf. ASTHON, John. Comprendere il Quarto Vangelo, p. 137.
88
2.1
, ,
32
, .
33
,
;
34
35
36
, .
37
,
.
38
39
.
,
40
, ,
.
89
41
.
, .
42
,
,
.
43
;
.
44
. ,
, . ,
, . 45
, .
46
; ,
;
47
,
.
48
49
, ,
.
90
50
51
, ,
.
52
.
, ,
53
, ;
;
54
,
, ,
55
, . ,
.
56
,
.
57
58
59
, .
91
2.2
A traduo da percope
31
32
33
34
35
36
37
Bem sei que sois a semente de Abrao! Mas procurais matar-me: minha
palavra no penetra em vs.
38
39
40
41
42
43
44
92
46
47
48
49
50
51
52
53
s tu, porventura, maior que nosso pai Abrao, que morreu? Os profetas
tambm morreram. Quem pretendes ser?
54
55
56
Abrao, vosso pai, exultou por ver o meu Dia. Ele o viu e encheu-se de
alegria.
57
93
58
59
Ento, ergueram pedras para arremessar contra ele, mas Jesus ocultouse, e saiu do templo.
2.3
cuja f nele se reflete e manifesta a inteno do autor que o escreveu. Pensamos que
este autor escolheu um conflito especfico, entre muitos outros existentes no contexto
da mesma, e com arte literria (que chamamos de estratgia) colocou por escrito. Mais
do que construir um plano conceitual da percope, nos interessa descrever o plano
literrio. H uma diversidade muito grande de planos para o QE. O que revela a
complexidade do texto joanino e suas possibilidades de leituras e interpretaes.
Absteremos-nos em aventurar numa apresentao da status quaestionis da situao
atual das pesquisas. Adentraremos de imediato na descrio da nossa percope no seu
contexto e sua delimitao.
O captulo 8 est dentro do grande bloco chamado Livro dos Sinais (1,19
12,50), e especificamente na seo 5,1 12,50 tambm chamada de a obra de Jesus e
o conflito com o judasmo. O bloco central do Livro dos Sinais, captulos 7 e 8, tem a
94
104
105
95
107
108
Cf. A interpretao do Quarto Evangelho, p. 448-459. Autores que tambm pensam assim: Sjef van
TILBORG. Cf. Comentario al Evangelio de Juan, p. 148; Francis. J. MOLONEY, The Gospel of
John, p. 232-234.
Detalharemos mais adiante esta diviso que Charles H. DODD faz no livro: A Interpretao do QE.
Cf. DUFOUR, Xavier L., Leitura do Evangelho Segundo Joo II, p. 146.
96
fora dado pelo captulo 5. Este processo prosseguir at o captulo 10, onde se
reconhecem nos vv. 24-33 as formulaes do interrogatrio sintico diante do
Sindrio (comparar Jo 10,24.25.36 e Lc 22,67.69.70). Diz este autor que aqui o debate
converge para a afirmao feita por Jesus da sua relao nica com Deus, seu Pai. 109
110
Id., p. 148. Dufour traz mais uma confirmao da unidade 7-8: O personagem principal Deus, que
no captulo 7 designa por Aquele que me enviou (7,16.18.28.29.33), e depois, no captulo 8, num
desligamento progressivo, por o Pai (8,16.18.19.27.28.38.42.49.54). Cf. Id, p. 150.
Cf. MANNS, Frdric. La vrit vous fera libres, p. 17-18. H ainda GOGUEL M. que defende a
separao de Jo 9 do captulo 8 por uma simples razo de ordem psicolgica, pois, diz este autor, se
Jesus vem se escondendo desde o incio, no se apresentaria em pblico, logo em seguida.
97
sbado. Como confirmao, constatamos ainda, como faz J. Martyn, que distingue
dois ciclos em 5 10: o ciclo A comea no cap. 5 e o ciclo B no cap. 9. Cada ciclo
fala da ruptura do sbado e termina com um ato de violncia contra Jesus. 111 ,
portanto, mais provvel que se deva separar 9 de 78, mesmo se o captulo 9 segue
naturalmente esses captulos, como subentende a conjuno
mas se desloca do processo intentado contra Jesus nos caps. 58 para o miraculoso, o
que nos assegura e confirma ser uma nova unidade dentro do bloco dos caps. 512.
111
98
8,59
7,1
contra ele
7,14
8,59
Schnackenburg escreve que o captulo 8 est bem unido Festa das Tendas.113
No incio temos a autorevelao de Jesus como a luz do mundo, uma expresso que
poderia unir-se simbolicamente s luminrias desta Festa. Existem ainda outras claras
referncias com o captulo 7 114 e, menos diretos, tambm com o captulo 5. 115 Quanto
ao contedo, o captulo 8 pressupe a situao descrita no captulo 7. Entre o povo
existiam grupos inclinados a crer em Jesus; mas so contraditos por outros que fazem
112
113
114
115
99
Notamos ainda, como faz R. Brown, que a histria narrada no cap. 9 completa
em si mesma e pode ser colocada em qualquer lugar, no importa qual visita de Jesus
a Jerusalm.118 Isto parece confirmar-se pela dupla incluso que a se encaixa:
v. 2
v. 41
v. 1
. cego de nascena
v. 39
116
117
118
100
Jesus, Profeta
Discusso
7,31.40
7,52; 8,13
8,28
9,17
9,28.34
9,35
7,1-10 Introduo
11-13 Cena durante a Festa das Tendas, na ausncia de Jesus.
14-24 Jesus na Festa. Primeiro dilogo: tema, Moiss e Cristo.
25-36 Segundo dilogo: as pretenses messinicas de Jesus. Os interlocutores so
principalmente hierosolimitas, a multido, fariseus ou judeus. Jesus faz apenas
duas breves intervenes.
37-44 Terceiro dilogo: introduzido por um dito oracular de Jesus e continuado pela
multido. Tema, as pretenses messinicas de Jesus.
45-52 Quarto dilogo: O mesmo tema continua. Os interlocutores so os sumosacerdotes e os fariseus, seus (oficiais, auxiliares) e Nicodemos. Jesus est
fora da cena.
119
120
101
8,12-20 Quinto dilogo: introduzido por um dito oracular de Jesus. Tema, natureza e
valor dos argumentos em favor das pretenses de Jesus.
21-30 Sexto dilogo: consistindo, sobretudo de um discurso de Jesus, interrompido por
breves comentrios e perguntas dos judeus. Tema, o desafio de Jesus aos lderes
judeus.
31-59 Stimo e ltimo dilogo: tema, Abrao, sua raa e Cristo. Interlocutores, Jesus e
os judeus.
Notamos que existe uma coerncia nos temas e nada se diz em contrrio ao lugar
dos dilogos e disputas, o que nos d mais certeza quanto a unicidade deste bloco dentro
do Livro dos Sinais.
Outra anlise que nos permite ver que o contexto do cap. 8 o mesmo do cap. 7
so as afirmaes repetidas de que Jesus se achava em perigo de vida, e ainda mais as
vrias tentativas para prend-lo ou para elimin-lo imediatamente:121
7,1
7,13
7,19
7,25
7,30
, ,
Procuravam, ento, prend-lo, mas ningum lhe ps a mo,
7,32
7,44
,
. Alguns queriam prend-lo, mas ningum lhe ps a mo.
8,37
121
Id., p.450s.
Procurais matar-me.
102
8,40
Procurais matar-me.
8,59
mencionado tambm em 7,43 como aparece em todo o captulo 9. O autor diz que este
tem por si mesmo um carter distinto e que existiu como unidade separada, mas foi
unificado (diria costurado) aqui dentro do projeto geral do evangelista. Para ele os
captulos 910 formam uma unidade com seqncia de narrao, dilogo e monlogo.
Contudo, no captulo 9 aparecem palavras-chave que indicam a conexo com o
episdio precedente como sou a luz do mundo (9,5, repetindo
8,12) e a idia de que a luz causa um julgamento, no sentido de que separa os que
preferem as trevas luz porque suas obras so ms, e os que se chegam luz, para que
suas obras sejam manifestadas, como feitas em Deus. Este tema abordado de modo
alusivo nos captulos 78.122 Todas essas anlises e interpretaes do contexto no qual
o captulo 8 est inserido so, na sua maioria, as reflexes que Dodd faz no seu
comentrio ao QE. Entretanto, Bultmann tem outra maneira completamente diferente
de contextualizar este mesmo captulo.
Id., p. 459-463.
Por isso encontram-se tantas pequenas introdues e concluses ao longo do texto: Introduo 6,1s =
Concluso 8,20; 7,1 = 7,30; 7,37 = 7,43; 7,32 = 7,52; 9,1 = 10,19-21; 10,22 = 10,39.
103
J Raymond Brown, por sua vez, traz mais confirmaes sobre nossa opinio.
Ele insere o captulo 8 dentro do grande bloco 7,110,21 tendo a Festa das Tendas
como a ocasio para todas as discusses e temas, e antes da meno de uma outra
festa, a da Dedicao em 10,22. De 8,12-59 pra frente introduzido a substituio do
tema da luz da festa quando Jesus proclama ser ele prprio a luz do mundo.
Segundo Brown, volta o clima judicial de testemunho defensivo contra as acusaes
judaicas, e a situao torna-se deveras tensa, com insinuaes de ilegitimidade e
acusaes de que o demnio o pai dos oponentes. Conclui-se com uma das mais
espetaculares afirmaes atribudas a Jesus no NT: Antes que Abrao existisse, Eu
Sou (8,58), o que conduz a uma tentativa de apedrejamento de Jesus. Para Brown o
captulo 9 continua alguns temas prprios da Festa das Tendas, como o tema da luz
do mundo (9,5) e a referncia piscina de Silo (9,7.11), que manteve Jesus em
Jerusalm. Isso demonstra a unidade do bloco do captulo 7 ao 10, por possuir temas
124
104
Ana Flora Anderson apresenta uma estrutura do bloco 78 ao redor da Festa das
Tendas que refora ainda mais nossa afirmao de unidade. Esta autora v na rejeio
da verdade que liberta o centro fundamental deste bloco:125
7,1-13
7,14-24
7,25-36
7,37-44
7,45-52
8,12-20
8,21-30
8,31-59
105
luz, como j dissemos antes. A atitude incrdula dos seus parentes na percope
introdutria (7,1-13) prelude a esta situao dramtica que se verificar em Jerusalm.
Segundo Snen Vidal, foi justamente essa crise e esse trauma (como ele chama)
da separao do seio judaico a ocasio para um novo nascimento a uma nova
existncia, quando tiveram que se configurar como novas comunidades. A vida e a
estrutura comunitrias tiveram que fazerem-se fortes. Vidal recompe o QE a partir
dos diferentes estratos literrios que descobre subjacentes no texto evanglico. Os
126
Johan Konings supe que o autor do QE usou de material da tradio evanglica. Com relao
incredulidade dos parentes de Jesus: Mc 3,20-21.31-35; similares discusso rabnica sobre o sbado
(7,22-24): Mt 12,5; Mt 12,11 (=Mc 3,4 = Lc 6,9); Lc 13,11; 14,3. Como tambm um suposto
conhecimento do autor quanto ao nascimento do Messias em Belm: Mt 1-2; Lc 1-2. Cf. Evangelho
segundo Joo, p. 172.
106
obras
historiogrficas
etiolgicas
do
AT),
superao e
substituio dele.
Assim se explica a tenso polmica, ao longo de toda a obra,
contra as autoridades judaicas. Os textos refletem muito bem a
situao de denncia e juzo que os grupos joaninos esto
sofrendo nesses momentos (cf. especialmente 7,1-52; 9,1-34;
18,2819,16), com o efeito natural do medo (cf. 7,13; 9,22;
12,42; 19,38; 20,19) e das divises internas entre eles (cf. a
figura dos cristos ocultos em 3,1-11, etc.).128
Vidal nos ajuda a compreender que nossa percope surgiu como resposta e busca
de definio diante de uma situao conflitiva e plural. Est claro para ns que os
captulos 78 revelam uma frvida e radical vontade de definir a verdadeira identidade
de Jesus; as palavras endereadas aos Judeus soam duras aos nossos ouvidos, mas era
127
128
107
preciso esse tom para se criar unidade e identidade coesa, visto a situao de ruptura
ao interno da comunidade joanina. Confirmaremos isso mais adiante, nas
consideraes, no final deste captulo. Continuaremos a compreender exegeticamente
a percope para reconfirmar o projeto do autor com sua estratgia literria.
2.4
convite de Jesus a ater-se sua mensagem, que dar a liberdade, o que provoca
indignada reao; seus antagonistas afirmam que basta pertencer linhagem de
Abrao para ser livre; Jesus responde que esta linhagem no garante a liberdade (8,3136). Jesus nega que os judeus tenham por pai Abrao, porque no o imitam no seu
modo de agir, e insinua que na verdade tm um pai diferente (8,37-40). Ao
compreenderem os judeus que Jesus, atribuindo-lhes outra paternidade, refere-se
veladamente idolatria, proclamam-se fiis ao nico Deus. Jesus, ento, tomando por
argumento sua conduta homicida, os vai encurralando at lhes declarar que seu pai, a
quem imitam na sua conduta, o Inimigo, o homicida desde o princpio. Eles no
procedem de Deus (8,41-47), mas do Diabo.
108
- Introduo (7,1-13);
129
130
131
109
- Cena 2, Jesus no ltimo dia da Festa (7,37-52) se proclama fonte de gua (vv. 3752), reaes do povo e do Sindrio (vv. 40-52);
132
133
134
Cf. PANIMOLLE, S.A., Lettura pastorale del vangelo di Giovanni, p. 246-253; 321-325.
Cf. DUFOUR, X. L., Leitura do Evangelho Segundo Joo II, p. 36-39.
Id., II, p. 323-324. Tambm as indicaes de lugar (v. 20 e v. 59 )
confirmam esta nossa diviso.
110
vv. 12 20 :
De novo
vv. 21 30 :
De novo
vv. 31 59 :
Dizia, pois Jesus para os judeus que criam nele.
2.5
111
vv. 31 41a
A declarao inicial de Jesus est na forma de dois paralelismos (vv. 31-32), que
por sua vez, esto compostos em forma de quiasmos:
33.
tornar-vos-eis livres?
34.
.
35.
O escravo no permanece sempre na casa,
.
mas o filho a permanece para sempre.
36. ,
.
112
(ns somos
semente de Abrao).
135
113
37.
38.
O motivo da hostilidade dos Judeus expresso no centro sob uma forma que
reenvia implicitamente ao versculo 31: . O
paralelismo antittico final faz ressaltar a diferena entre Jesus e os Judeus
empregando
136
Segundo Vidal claro que estes vv. 37-38 marcam um corte com relao ao anterior: as palavras
seguintes, que eles introduzem, no podem estar dirigidas aos judeus que tinham acreditado (em
Jesus) [v.31]. A objeo do v. 33 oferece a ocasio para tratar em vv. 37-47 o tema da autntica
procedncia dos judeus incrdulos: diante da sua afirmao de ser o povo eleito, descendncia de
Abrao e filhos de Deus (cf. v. 41), se desmascara sua origem diablica, demonstrado na sua
rejeio verdade da revelao e na inteno de assassinar o Enviado divino. Cf. VIDAL, S. Los
escritos originales de la Comunidad, p. 440.
114
mas de
(pai). Na sua
. Sua argumentao
39b. ,
40. ,
,
.
41. .
vv. 41b - 48
Com o v. 41b passamos a uma nova objeo dos Judeus. Esta objeo
conectada unidade precedente pela palavra-chave patevr (v.41a.b.) de duas partes:
1.
, No nascemos da prostituio
2.
115
Jesus responde segunda objeo, versculo 42: eiv o` qeo.j path.r u`mw/n h=n
hvgapa/te a'n evme, Se Deus fosse vosso pai, vs me amareis. Seguindo dois
paralelismos entremeados por um versculo (vv. 42-43):
42.
,
.
43. ;
.
Porque sa de Deus e dele venho.
No venho por mim mesmo,
mas foi ele que me enviou.
Por que no compreendeis minha linguagem?
porque no podeis escutar minha palavra.
e no se mantinha na verdade,
116
nfase. Jesus diz que Abrao no pode ser o pai deles e revela a sua verdadeira
paternidade, a do diabo. Jesus diz que eles no podem ter Deus como Pai porque eles
no amam o filho de Deus nem o escutam quando fala por meio do seu Enviado.
vv. 45-46
45. , .
46. ;
, ;
137
Quem
de Deus
117
porque de Deus
no sois.
Em seguida os Judeus fazem nova objeo (v. 48) que forma palavra de ligao
com a terceira parte (vv. 49-59):
; Responderam os Judeus e
disseram-lhe: No dizemos ns justamente que tu s samaritano e que tens demnio?
A estrutura do todo desta segunda parte (vv. 41-48) integra elementos paralelos
em uma construo concntrica:
a v. 41a
b v. 41b
b v. 42b
a v. 44
a v. 44b
b v. 47
Quem de Deus
118
vv. 49 59
Daimovnion ouk [ecw (A mim, nenhum demnio me possui) religa esta unidade
precedente. A resposta de Jesus nos vv. 49-50 desenvolve duas idias sob a forma de
paralelismos entremeados por um versculo:
// antittico
// sinttico
O tema da
quistica:
54. ,
, ...
119
55. ,
.
,
.
54. Se me glorifico a mim mesmo,
minha glria nada ;
Quem me glorifica meu Pai, de quem vs dizeis...
55. e vs no o reconheceis,
mas eu o conheo bem;
e se eu dissesse No o conheo bem,
seria mentiroso, como vs.
Mas eu conheo bem e guardo sua palavra.
,
.
Abrao exultou
por ver
o meu Dia.
Ele o viu
e encheu-se de alegria.
120
Segundo Jerome Neyrey, este ltimo bloco (vv. 48-58) apresenta uma nova
forma que no mais a quistica, mas sim a retrica, em dois paralelos com desafios
de uma parte e respostas tambm desafiadoras da outra: 138
E. s tu maior que nosso pai Abrao, que E. Antes de Abrao vir a existir, eu Sou.
morreu... Quem pretendes ser? (v. 53)
(v. 58)
Finalmente o ltimo versculo (59) desta percope, que apresenta uma tentativa
de matar Jesus, forma uma incluso com 7,1 (o[ti evzh,toun auvto.n oi` VIoudai/oi
avpoktei/nai porque os judeus o procuravam matar). A sada do templo retoma 7,14
(:Hdh de. th/j e`orth/j mesou,shj avne,bh VIhsou/j eivj to. i`ero.n kai. evdi,dasken Quando a
festa estava pelo meio, Jesus subiu ao Templo e comeou a ensinar) que fala da
subida ao Templo:
Ento, ergueram pedras para arremessar contra ele, mas
Jesus ocultou-se, e saiu do templo.
138
121
Declarao de Jesus se
a
dedouleukamen escravos
Resposta
Declarao
Objeo
Abrao
Objeo
oj pathvr hmn
Resposta
eij tevkna
vosso pai
41b 47 :
Objeo a
b
Declarao de Jesus
b
Vs sois do diabo, vosso pai
filiao do diabo
Quando fala a mentira
filiao de Deus
...
Quem de Deus ouve as palavras de Deus
122
49 59 :
Declarao de Jesus
egw..
Eu... Se
Resposta de Jesus
mesmo
Declarao
Abrao exultou
Objeo
Resposta
2.6
1.
140
123
verbo
joanina.142
sua palavra; deram mais importncia a seu pai Abrao que Jesus. Precisa de uma
adeso firme, sem tergiversar; precisa assumir a ruptura, nascer de novo (3,8). 146
141
142
143
144
145
146
124
(permanecer na
(permanecer em mim): a Palavra
um de
correspondncia: ele traduz a resposta dos cristos iniciativa divina expressa pelo
mesmo verbo. Assim como Jesus permanece no amor do Pai, do mesmo modo os
discpulos devem permanecer no seu amor (15,10). , portanto, uma atitude de
147
148
149
125
dilogo que este verbo exprime.150 Aquele que permanece na Palavra e que observa os
mandamentos torna-se
(discpulos) enfatiza uma vez mais a relao pessoal que une o discpulo ao
152
exigido pela situao concreta, nasce da fora da Palavra de Cristo que fez morada
no crente, que Palavra de Deus (1Jo 1,10; 2,14) e realidade cheia de Esprito (1Jo
2,24.27). O cristo deve escut-la e faz-la sua (cf. Jo 6,45), conservando-a e
observando-a (cf. Jo 8,51).153
150
151
152
153
Pedro Figueiredo no seu livro sobre os Discursos de Jesus no Evangelho de Joo escreve assim sobre
o permanecer no Amor/Palavra: Significa abraar completamente quem Ele e o que Ele far para
salvar o mundo, submeter-se totalmente a Ele como discpulo dEle. Um crente em Jesus deve ter um
estilo de vida que mostre seu Senhorio em todos os sentidos.... Cf. A questo do e os
Discursos de Jesus no Evangelho de So Joo, p.140.
RENGSTORF,
TWNT 4, p. 417-465.
Sobre o sentido preciso de h uma literatura abundante entre os estudiosos. Muitos deles
reconhecem que o autor do QE faz desta palavra a sntese da noo bblica de e da concepo
grega. Assim pensam R. Schnackenburg (Il Vangelo di Giovanni II, p. 265-280) e F. Manns, (La
vrit vous fera libres, p.68). Schnackenburg no seu comentrio ao QE faz um excursus sobre o
conceito de verdade e conclui com estas palavras: ... Em todos os aspectos a verdade nos escritos
joaninos deve ser considerada como um conceito tirado da linguagem da poca e aplicado de modo
flexvel, para dar uma contribuio esclarecedora, teologia joanina da revelao salvfica em Jesus
Cristo. O conceito servia a Joo para um colegamento com a concepo bblica de revelao e para
um confronto com aquela judaica, e tambm para a atividade de proselitismo entre os seus leitores
helensticos no judeus. Il Vangelo di Giovanni II, p. 375. Outro que aprofundou exaustivamente o
conceito de no QE DE LA POTTERIE, La vrit, 2: p. 789-866; tambm TUI
VANCELLS, La verdad, p. 125-164.
SCHNACKENBURG, R. Il vangelo di Giovanni II, p. 350-351.
126
154
155
(libertar). Se sujeito de
DE LA POTTERIE, I., O
et
: les deux modes de la connaissance dans le quatrime
vangile, p. 217-247.
, conhecer [saber, compreender]. A forma verbal
encontra-se
no futuro modo indicativo voz mdia. No futuro um verbo depoente. Apresenta-se sobre a forma
mdia, mas com significado ativo.
: Jo: 2, Paulo: 5;
: Jo: 2, Paulo: 16, Mt: 1.
, tornar livre... usado
acerca da libertao de: a) pecados (Jo 8,32.36; Rm 6,18.22); b) a lei (Rm 8,2; Gl 5,1s); c) a
escravido da corrupo (Rm 8,21).
encontra-se no futuro modo indicativo voz ativa
(libertar). O conceito antigo de liberdade de pertena, de incluso. Na lngua latina o mesmo
vocbulo que significa filhos e livres (liberi) em oposio aos no-livres, os escravos. Na
literatura paulina, a liberdade dos filhos refere-se adoo filial e herana. Um estudo do
conceito grego apontaria nesta mesma direo: alm de ser qualidade dos filhos-de-famlia, d a
possibilidade de participar ativamente na vida da polis, ou seja, na poltica, na responsabilidade civil,
no voto democrtico (se for o caso, como em Atenas) etc. Pertence ao campo semntico dos direitos
familiares e civis, a permanncia em casa e a cidadania. Cf. GORGULHO, G., Testemunho do
Evangelho da Liberdade, p. 168; KONINGS, Johan. Evangelho segundo Joo, p. 187-188.
127
(Filho=verdade).
mesmo tempo e modo, sendo que, a libertao do pecado, nesta orao, sinnimo de
salvao. Libertao das conseqncias malficas e destrutivas do pecado. Essa
libertao operada pela verdade no de ordem poltica. Jesus se recusou a ser um
Messias poltico (18,37);156 ela um dom da verdade queles que observarem e
permanecerem na sua Palavra; o resultado dos relacionamentos pessoais que
envolvem o discpulo com seu mestre. Este dom no um acontecimento
escatolgico, mesmo se os verbos no futuro
(conhecereis e
156
No seu comentrio ao Lgos, Pedro Figueiredo, traduz o versculo 32 com preciso de detalhes,
aprofundando sua compreenso: E conhecereis (conhecer na base de uma experimentao,
compreendereis, sabereis, experimentareis, entendereis, reconhecereis, percebereis, alcanareis,
atingireis) a verdade (o real, o genuno, o que no sonho, o concreto, o que autntico, o verdico, o
veraz, o que apto para algo, o que fidedigno, o que fiel, o que exato e autntico), e a verdade
vos libertar (soltar, desembaraar, desatar, desprender, desamarrar, estar livre em contraste
com o ser escravo, desobrigar, Cf. FIGUEIREDO, Pedro. A questo do e os Discursos de
Jesus no Evangelho de So Joo, p 71.
128
Paulo fala igualmente da liberdade. Como o autor do QE, ele a entende como
vivida em Jesus (Gl 2,3), mas compreendida com pequenas diferenas que lhe so
prprias. A libertao no contrria escravido, mas ela em vista de uma nova
submisso a Cristo (1Cor 9,19; Rm 1,1). Para Paulo, livre aquele que pertence a seu
libertador (Rm 6,18-22; Gl 5,1). A noo paulina de liberdade poderia se resumir
nesta frase: Tudo vosso; mas vs sois de Cristo, e Cristo de Deus (1Cor 3,2223). Para Paulo como para o evangelista do QE trata-se de uma libertao do pecado
(Ef 6,12). Mas o raciocnio de Paulo diferente do QE. Paulo admite que a lei do
Antigo Testamento deveria libertar o homem, mas na realidade ela o submeteu (Rm
7,1); o que deveria ser salvao tornou-se maldio (Gl 3,10). E Cristo quem veio
nos libertar desta maldio. O homem encontra o caminho da vida no mais atravs da
lei e sim por meio de Jesus Cristo (Rm 10,4). Com Paulo nota-se claramente esta
controvrsia com os judaizantes; no QE isto j se mostra superado. Enfim, Paulo
insiste sobre a cruz que nos mereceu a libertao (Gl 3,13). A perspectiva joanina
ligeiramente diferente: a libertao dom feito por Cristo vivente na Igreja queles
que nele acreditam.
v. 33
157
. A
sempre denota reao verbal, que vai da resposta (com dativo)
at rplica/oposio (com
), cf. Lc 6,3; At 5,8. 25,16. O contexto impede identificar
129
v. 34
162 .
Quem comete o pecado escravo do pecado.
v. 37
Bem sei que sois semente de Abrao.
A objeo dos Judeus demonstra bem que eles compreenderam que a promessa
de libertao significa que eles so escravos. Para eles, do nascimento que se livre
ou escravo. Aqueles que so da raa de Abrao no precisam mais se tornar livres,
eles j o so e se orgulham disso. 163 Apesar da ocupao romana e a histria de
158
159
160
161
162
163
simplesmente os que replicam a Jesus com os que acabam de prestar f plena. No raro no QE a
extenso ou mudana do sujeito sem indicao gramatical alguma (6,15; 11,45; 13,6). Cf. MATEOS,
Juan BARRETO, Juan, O Evangelho de So Joo, p. 384.
TWNT 7, p. 537-547. [
substantivo neutro], semente, (deriva do verbo),
semear... No Grego secular, o grupo sperma comumente se usa no sentido literal de semear
sementes de plantas (Homero, Xenofontes), e, figuradamente, de gerar filhos (Eurpedes, Sfocles,
Plato); no NT o mesmo ocorre das duas formas. No presente texto a forma usada a figurada, no
sentido de descendncia, ou posteridade. Cf. COENEN, Dicionrio Internacional de Teologia
do NT, p. 2308-2310. No Dicionrio VINE encontramos:
, cognato de
, semear (em
portugus, esperma, espermtico), tem os seguintes usos: a) agrcola e botnico (por exemplo, Mt
13,24.27.32; b) fisiolgico (Hb 11,11); c) metafrico... alude a descendncia, posteridade, acerca
de: (1) a descendncia natural (por exemplo), Mt 22,24.25; Jo 7,42; 8,33.37; At 3,25; Rm 1,3; 4,13;
16,18; 9,7; (2) descendncia espiritual (Rm 4,16.18; 9,8; Gl 3,29. Cf. VINE, W. Dicionrio Vine, p.
983.
130
164
165
Deus de Israel tirou seu povo fazendo-se o libertador (cf. Lv 26,13; Ex 6,5-7). Ora, tal libertao
no desemboca em qualquer independncia (em grego
), mas na mudana radical de
senhor: para servir YHWH que os hebreus deixam de ser escravos dos egpcios; eles passaro
da servido ao servio; a liberdade reencontrada servio a Deus, pela fidelidade Lei da Aliana.
Esta convico to enraizada que motivou at o combate do povo pela sua liberdade poltica. No
sculo I da nossa era, na poca da primeira revolta contra o ocupante romano (66-74), foram cunhadas
moedas com uma inscrio onde se exprimia a f popular: Pela liberdade de Sio. A propsito dos
companheiros de Eleazar mortos em Massada defendendo a liberdade, o historiador Josefo explica:
Eles julgam que Deus o nico chefe e nico mestre. Eis por que os judeus se encolerizam contra a
proposta de Jesus: eles no tm de se tornar livres, eles no so escravos de ningum.. Cf. LONDUFOUR, X., Leitura do Evangelho segundo Joo II, p. 202.
A afirmao dos Judeus de que nunca foram escravos mostrava a sua cegueira espiritual. Estavam
cegos e entenebrecidos no seu orgulho religioso, pois os descendentes de Abrao foram escravos de
diversas naes: Egpcios (Ex 3,6-10); Babilnicos (2Cr 36,11-21); Assrios (2Rs 15,29; 17,6; 2Cr
28,16-21; Is 7,1-17); por diversas vezes, no perodo dos juzes, dos Filisteus (Jz 13,1; 1Sm 13,19-22) e
at na poca em que se encontravam eram
(escravos) do poder e da tirania dos Romanos.
Cf. Sl 130; 141,3; 3 Jr 13,15-27, onde se l no versculo 23: Pode um etope mudar a sua pele? Um
leopardo as suas pintas? Podeis vs, tambm, fazer o bem, vs que estais acostumados ao mal?
131
pode tornar-se escravo deste poder. 166 (o pecado) no designa este ou aquele
pecado particular, mas o pecado como atitude fundamental de oposio a Deus. Fazer
o pecado significa cometer o pecado por princpio e em desprezo da lei. 1Jo 3,4
colocar no mesmo plano e
No versculo 35:
(Ora, o escravo no permanece na casa para sempre, mas o filho a
permanece para sempre), Dodd pensa que se trate de uma pequena parbola que era
independente na sua origem. Esta parbola, aparentada quelas dos Sinticos, proveria
166
132
Lc 15,31:
Filho, tu ests sempre comigo.
Mt 17,25-26:
... Dos seus filhos ou dos estranhos?
. Logo, os filhos esto livres (isentos).
Manns
continua
167
168
Dodd individua no QE sete pequenas parbolas deste tipo: 12,24; 16,21; 11,9s; 8,35; 10,1-5; 3,29;
5,19-20a. Cf. The Historical Tradition, p. 379-382. Supomos que o autor do QE tenha textos comuns
aos Sinticos como material independente que usou na compilao do seu prprio texto evanglico.
MANNS, Frdric, La verit vous fera libres, p. 77.
133
No versculo 36 , (Se,
pois, o Filho vos tornar livres, sereis realmente livres), a construo + conjuntivo
seguida do futuro, enfatiza mais uma vez os relacionamentos pessoais (cf. v. 32). A
libertao apresentada como uma participao na filiao do Filho e se ope a
(pecado) que representa o poder da servido. Aqueles que o Filho libertar,
sero livres (realmente, na verdade). Este advrbio idntico quanto ao seu
significado a (verdadeiramente) e indica que no se deve procurar a
verdadeira libertao no nvel da realidade emprica, mas dom do Filho.
Segundo Mateus e Barreto, aps mencionar Abrao, a aluso aos seus dois filhos clara: Ismael,
nascido da escrava, e Isaac, da mulher livre (Gn 21,9s; Gl 4,30). Ser da linhagem de Abrao no
assegura a qualidade de homem livre. O filho-escravo de Abrao foi expulso da casa para que no
herdasse com o filho livre. O filho livre o que nasce da promessa de Deus, de sua palavra fiel. Por
isso, ser filho livre de Abrao ser filho de Deus, nascer dele. A liberdade nasce da origem divina.
Neste sentido, somente Jesus livre, porque somente ele o Filho de Deus. Cf. O Evangelho de So
Joo, p. 90.
134
guardar a Lei divina e a permanecer nela (cf. Sl 119,17.57...), agora ele chamado a
permanecer na palavra anunciada pelo Filho que saiu de Deus. Por isso, o Filho toma
neste versculo 36 o lugar que tinha a verdade personificada (cf. 1,14; 14,6); o que o
advrbio realmente () vem enfatizar.
Jesus, como Filho de Deus, move-se na liberdade que esta condio lhe confere.
luz de sua relao imediata com o Pai, tudo fica relativizado: a Lei (5,16.23),
Moiss (5,46; 7,19), Abrao (8,56.58), as instituies (37b-39). A partir dessa sua
experincia, Jesus convida a deixar-se libertar, a receber a condio de filhos, para
viver com o Pai em relao semelhante sua. Deus j no ser o Soberano que faz o
homem sentir sua inferioridade e o submete, mas o Pai que lhe comunica sua vida e o
faz livre.
vv. 37 41a
v. 37
,170
171 .
Depois de ter refutado o princpio que ser livre ou escravo desde o nascimento,
Jesus retorna sobre a questo da raa e a aprofunda. O pecado manifesta a pertena a
uma outra linhagem. Certamente, os Judeus so filhos de Abrao, mas a Palavra de
Deus no penetra neles. Porque esta incompatibilidade inspira-lhes projetos
homicidas? Denunciada por duas vezes (vv. 34-40) ainda mais grave porque, cada
vez, relacionada com a misso daquele que se procura matar, o Enviado que diz o
170
171
135
que viu junto do Pai (v. 38) ou a verdade que ouviu de Deus (v. 40). Aos que
recusavam o testemunho de Deus em seu favor, Jesus censurava: Nunca ouvistes a
sua voz, nem contemplastes a sua face (5,37); aqui ele pe sua fidelidade ao Pai em
contraste com a dependncia de seus interlocutores de um pai (subentendido o
deles) que logicamente no pode ser o patriarca. De onde a rplica: Nosso pai
Abrao (v. 39). Se os judeus no protestam contra a acusao de tramarem a morte
de Jesus (cf. 7,20) por que s pensam no que reinvidicam, a descendncia de
Abrao. Diante desta reinvidicao, Jesus no pode deixar de denunciar a incoerncia
de suas atitudes: Abrao no agiu assim, ele acreditou em Deus, obedeceu e transmitiu
a vida a Isaac. 172
173
Proclamo o que vi junto do Pai;
172
173
136
.
e vs fazeis o que ouvistes junto ao pai!
(ver)
faz parte dos verbos que traduzem epifania. Para falar de filiao dos Judeus, o autor
emprega + genitivo. A insistncia no pronome significativa, pois no se trata
do mesmo pai nos dois casos.
...
174
137
suas obras como viu (ouviu) pessoalmente. A mensagem de Jesus sua maneira de
agir, isto , a verdade que aprende de Deus, seu pai, um modo de agir (cf. 5,19s).
v. 39
175
grandes que fazem parte de uma mesma famlia. Esta frase, em estilo indireto livre,
uma espcie de mimesis irnica.
Fazer as obras de Abrao significava escutar e amar a Palavra e Deus, tal como
Abrao escutou e amou; significava amar a justia, e ter Deus como a fonte de toda a
revelao; era muito mais do que levar uma vida de beatitudes, era acreditar no
Messias e na obra redentora do Calvrio; era procurar por todos os meios satisfazer os
175
138
desejos e o querer de Deus. Ao invs disso, eles no tinham Abrao, nem mesmo Deus
como Pai, mas tinham a Satans como Pai, porque procuravam fazer as suas obras. 176
vv. 40-41
,
(a mim, um homem) e
(de
(do Pai).
139
ainda que 8,40 a nica passagem do Novo Testamento em que Jesus se apresenta ele
mesmo como homem. O autor joanino exprime assim a queixa fundamental dos
Judeus contra Jesus: lhe acusam essencialmente de ser um homem que se pretende
Deus e Revelador.
(fazer)
(fazer).
v. 41b
(crer).
No nascemos da prostituio;
177
178
179
140
dolos, cometer adultrio (Ez 16,15s). Isto eles compreendem muito bem: idolatria
se comparava prostituio.
Jesus rejeita a pretenso dos Judeus de ser filhos de Deus com o mesmo
argumento deles: ser filho de algum significa parecer-se com ele, comportar-se como
ele. A nica prova de filiao a semelhana com o prprio pai.
vv. 42-43
,
180
repetido o final da
instruo que o Patriarca d no sentido de aceitar o ensinamento moral (cf. Test Jos
10/1; Test Ben 3/1; Test Dan 2/1; Test Rub 3/9).
180
181
O verbo tem o valor de um pretrito perfeito, significando chegou (cf. Jo 4,47/ Mt 24,50; Lc
12,27; Hb 7,9). Tambm tem o sentido de emprimir a manifestaao sbita de uma divindade.
A traduo do grego encontra-se no livro Apcrifos e Pseudo-epgrafos da Bblia, p. 397. E o grego,
citado no livro de Frdric MANNS, La verit vous fera libres, p. 85.
141
escuta, acolhe +
182
A misso de Jesus se assemelha misso da Palavra de Deus na literatura sapiencial: Pr 1,20-23; 9, 116; Eclo 24,3-8.
142
se por causa deste determinismo do pecado que se nutre de sua prpria substncia.
Tornando-se surdos aos mandamentos de Deus, se fecham a toda nova palavra.183
Tendo revelado aos Judeus a origem deles e desmascarado a sua situao, Jesus
pode em seguida revelar a sua origem e sua posio em relao a Deus, seu Pai:
v. 44
185
186 .
183
184
185
186
143
, ,187
. , ,
.
Vs sois do diabo, vosso pai,
e quereis realizar os desejos do vosso pai.
Ele foi assassino desde o princpio e no se mantinha na verdade,
porque nele no h verdade. Quando fala a mentira, fala do que seu,
porque mentiroso e o pai da mentira.
Encontramos neste versculo a presena de numerosos hapax:
(desejos),
187
188
189
25,9; Gl 4,17; 1Tm 5,11; Hb 12,17; 13,18. Cf. VINE, W. Dicionrio Vine, p. 549. A forma verbal
encontra-se no presente modo indicativo, na voz ativa.
stevkw, ficar, ficar firme [estar, estar em p, permanecer, estar firme]. Cf. REINECKER, Chave
Linguistica do NT, p. 176. A forma verbal esthken encontra-se no Imperfeito, na voz ativa. Indica a
estabilidade na qual preciso viver, cf. 1Cor 15,1; 16,13; 2Ts 2,15.
Segundo L. Dufour, atrs do desgnio homicida, Jesus discerne os desejos de vosso pai, por
escutarem o Divisor, eles so dele (), seus filhos no sentido semtico da palavra, e explica: A
expresso filho de... provm da mentalidade semtica que concebe a histria como uma imensa
genealogia, no limitada procriao fsica, mas implicando tambm a filiao espiritual. Assim Jesus
fala dos filhos dos fariseus para exprimir que o comportamento de seus ouvintes equivale ao dos
fariseus. Fala tambm dos filhos do Maligno (Mt 13,38), dos filhos dos assassinos dos profetas
(Mt 23,13), dos filhos da luz (Lc 16,8; Jo 12,36). Cf. LON-DUFOUR, X., Leitura do Evangelho
segundo Joo II, p. 207.
Frdric MANNS apresenta uma tradio conservada no Targum que diz assim: Caim seria nascido de
Eva e de Sammael, portanto da prostituio. Seria esta uma hagad: Caim, que era mau, matou seu
irmo. E porque o fez? Por que suas obras eram ms... quem mata seu irmo um homicida
(Anqrwpoktovno ). Com efeito, segundo o Targum Pseudo-Jonathan I (TJ) Gn 5/3, Caim e Abel
ofereceram seus sacrifcios no 14 nisan. Este o mesmo dia que Caim matou Abel. Para Joo tambm,
Jesus foi morto no 14 nisan. Um outro detalhe relevado por Manns: em TJ I Gn 4/8 Caim matou
144
prova que os Judeus so filhos do Diabo que eles querem fazer as do seu
Pai. Do mesmo modo que o autor preferiu usar (fazer, cometer o
pecado) no lugar de
cometer desejos). Parece-nos que neste dilogo existem fatos particulares que Jesus
reprova nos seus adversrios. 191 (desejos) encontrada com freqncia nos
catlogos de vcios e de virtudes e reaparece no Testamento dos Doze Patriarcas.192
193
(assassino desde o
princpio) pode ser um paralelo com Gn 3,15. A convico de que a morte foi uma
irrupo em seguida do pecado de Ado atestada em Sab 2,24.194 Desde o den,
onde Ado foi tentado pela serpente (Gn 3,19). A esta crena a Primeira Carta de Joo
faz eco: Quem comete o pecado do demnio, porque o demnio pecador desde o
princpio (3,8). A epstola permite definir de onde procede a vontade
assassina do diabo: no imediatamente do desejo de tirar a vida de um homem, mas do
dio, da ausncia de todo amor: Todo aquele que odeia seu irmo homicida (3,15).
Eis o que Jesus insinua em 8,42, quando reprova os judeus por no am-lo. O diabo
homicida porque impele os homens ao dio. E se o Diabo homicida porque ele
no se mantinha (permaneceu) na verdade e no h verdade nele.
190
191
192
193
194
Abel com uma pedra. Jo 8,59 nos mostra os Judeus que ajuntam pedras para atirar sobre Jesus.
Epiqumiva a , substantivo feminino, (ejpi-qumevw), desejo, paixo. O substantivo encontra-se no
acusativo plural. Cf. PEREIRA, I., Dicionrio Grego-Portugus, p. 211. Desejo (ardente, insacivel
ou mrbido), anseio, anelo, na sua maioria, desejos maus; usado nos seguintes versculos para aludir
a desejos bons: o desejo do Senhor concernente ltima Pscoa (Lc 22,15); o desejo de Paulo
estar com Jesus (Fil 1,23); o seu desejo de ver outra vez os santos em Tessalnica (1Ts 2,17). Com
relao a desejos maus, concupiscncia, aparece em: Cl 3,5; 1Ts 4,5. Cf. VINE, W. Dicionrio
Vine, p. 549.
piqumia explicado por amartiva em Rm 7,7.
Test Jud 13,3; 14,1; 16,1; Test Aser 3,2; 6,5; Test Jos 3,10; 7,6-8; Test Rub 2,4.
anqropoktovno, adjetivo, literalmente, homicdio culposo ou involuntrio, assassnio(formado de
[anqrwpo], homem, e [kteivnw], matar [assassinar], usado acerca de: Satans (Jo 8,44); aquele
que odeia a seu irmo, e que, sendo homicida, no tem a vida eterna (1Jo 3,15). Cf. VINE, W.
Dicionrio Vine, p. 694.
Foi pela vontade do diabo que a morte entrou no mundo.
145
vv. 44-45
196 ,197 ,
.
, .
195
196
197
Cf. NEYREY, Jerome H. Bewitched in Galatia: Paul in Cultural Anthropology, p. 53; The Gospel of
John, p. 162. 1) Outros acusam Jesus de possesso demonaca: Mc 3,23; Mt 12,22-37; Lc 11,14-23; Jo
7,20; 8,48.52; 10,20; 2) Jesus acusa outros de possesso demonaca: Judas (Jo 6,70 // Lc 22,3; Jo
13,2.27); Pedro (Mc 8,33); Outros (Jo 8,44; Mt 12,43-44; Lc 11,24-26; Mt 13,38-39); 3) Paulo acusa
outros de possesso demonaca: Falsos Apstolos (2Cor 11,3.13-15); Pregadores judaizantes (Gal
3,1); Elimas, o mago (At 13,8-11); 4) Joo, o Batista, foi acusado de estar possudo pelo demnio (Mt
11,18; Lc 7,33); 5) Falsos profetas, Anticristos (1Jo 2,18.22; 3,8-10; 4,1-3; 2Jo 7).
Lalevw, falar.... Cf. PEREIRA, I. Dicionrio Grego-Portugus, p. 341. A forma verbal
encontra-se no presente modo conjuntivo voz ativa, (que ele fale).
yedo, ou
, substantivo neutro (yseuvdw), mentira, erro, , falsidade, ao enganosa.
encontrado em 8,44 (literalmente, a mentira); Rm 1,25, onde representa, por metonmia, dolo,
como, por exemplo, em Is 44,20; Jer 10,14; 13,25; Am 2,4 (plural). Cf. VINE, W. Dicionrio Vine,
p. 785.
146
1. Quando um homem diz uma mentira, ele fala do que lhe est dentro (do
seu fundo), porque ele mentiroso como seu Pai (o Diabo).
2. Quando ele (o Diabo) profere a mentira, ele fala do que lhe prprio (do
seu fundo), porque ele mentiroso e o pai (da mentira).
(o homicdio) e a
147
vv. 46-47
;
, ;
,
.
148
Mais uma vez trata-se do motivo da rejeio de Jesus que exprimida por:
(porque no sois de Deus). Jesus nega aos Judeus a paternidade
divina que eles reclamam. E isto por causa das obras deles:
(Quem de Deus ouve as
palavras de Deus; por isso no ouvis). J vimos antes que essa expresso
(de Deus; tambm encontrada em 1,13; 7,17; 8,42), designa uma origem
propriamente divina e equivale a filho de (cf. nota n. 163). O motivo da obedincia
Palavra de Deus forma assim o centro desta frase construda na forma de um
quiasmo.
149
v. 37 .
Porque minha palavra no penetra em vs.
v. 43 .
porque no podeis escutar minha palavra.
v. 47 , .
Por isto no ouvis, porque no sois de Deus.
Esta parte (vv. 41-47) mostra com clareza e dureza a oposio dos Judeus a
Jesus e chega ao pice da hostilidade, evidenciando assim a diferente origem de cada
um; para isso usa principalmente um vocabulrio de revelao (
sa e vim) e uma linguagem dualista (
verdade/mentira). A
expresso (de, provenincia) aparece quatro vezes para indicar a origemprovenincia verdadeira e a natureza profunda.
v. 48
198 199 ;
No dizemos ns justamente que tu s samaritano e que tens demnio?
A acusao de ser um Samaritano um caso nico no QE. Est unida acusao
de estar possudo.200 Seria esta uma aluso a certos profetas samaritanos mencionados
198
199
200
150
por Justino e Origenes que vieram da Samaria e seu poder se explicaria por uma
influncia demonaca? 201 Ou se trataria de uma possesso devida ao servio aos dolos
ou magia que igualmente se acusavam aos Samaritanos? difcil de responder com
segurana. Nos Sinticos, a acusao de possesso dirigida contra Jesus quando de
seus exorcismos (Mc 3,22 par.), enquanto que aqui no QE, ela suscitada pela mera
palavra de Jesus. O que nos est claro, porm, que os Judeus no podem aceitar a
pretenso de Jesus de proclamar-se vindo de Deus.
v. 49
,
,
.
v. 50
.
A mim, nenhum demnio me possui,
mas honro meu Pai,
enquanto vs me desonrais.
Eu no procuro a minha glria,
h quem [a] procure e quem julgue.
201
202
contexto, a acusao assume uma fora especial de descrdito (cf. v. 44). Andr Chouraqui confirma
esta compreenso. Cf. A Bblia, Iohann (O Evangelho Segundo Joo), p. 134.
Cf. Justino, Apol. 26,3; Dial. 120,6; Origenes Contra Celso, VI, 11. Dositeu se fez passar por o filho
de Deus.
Cf. Sl 7,9; 26,1; 43,1; Sb 3,1-8.
151
Jesus retoma textualmente a segunda parte da acusao dos Judeus para neg-la.
A esta acusao Jesus ope sua atitude profunda: honrar o Pai. A atitude dos Judeus
contrria a de Jesus ( , honro desonrais). A insistncia no (eu)
parece subentender uma anttese: no sou eu quem estou possudo, mas vocs... Como
em 5,41-45, a conscincia que Jesus tem de honrar o Pai e a acusao dos Judeus se
contrapem aqui. Mas se os Judeus o acusam, ele no enaltece sua prpria glria.
(glria) um termo tcnico que designa o modo de apario externa da
santidade de Jav. Entre o Pai e o Filho h uma epifania interna, de maneira que
aquele que v o Filho v aquele que o enviou e que aquele que desonra o Filho,
desonra o Pai.
v. 51 , 203 ,204
205 206 .207
203
204
205
152
Aqui Jesus salienta o dom da vida eterna. Entendemos que estas palavras no
significam que os verdadeiros cristos no morrero de morte natural, mas significa,
sim, que todo aquele que cr em Jesus Cristo, quando fechar os seus olhos neste
206
207
208
cessar de funes e a volta para o p (Jo 11,13; Hb 2,15; 5,7; 7,23); b) a separao do homem de
Deus; Ado morreu no dia em que desobedeceu a Deus (Gn 2,17), e, por conseguinte, todo o gnero
humano nasce na mesma condio espiritual (Rm 5,12.14.17.21), da qual, porm, aqueles que creem
em Cristo so livres (Jo 5,24; 1Jo 3,14). A morte o oposto da vida; nunca denota no-existncia.
Assim como a vida espiritual existncia consciente em comunho com Deus, assim, a morte
espiritual a existncia consciente na separao de Deus. A morte, em qualquer dos sentidos
supramencionados, sempre usada na Escritura, visto como a conseqncia penal do pecado, e, j que
s os pecadores esto sujeitos morte (Rm 5,12), foi na qualidade de portador do pecado que o
Senhor Jesus se submeteu na cruz para esse fim (1Pd 2,24). Cf. PEREIRA, I. Dicionrio GregoPortugus, p. 262.
Qeorevw, ver [observar, examinar, contemplar, examinar ou considerar com inteligncia]. Cf. Id., p.
266. Em alguns manuscritos a forma verbal aparece no futuro modo indicativo voz ativa
, (ele ver). Cf. NESTLE, E., Novum Testamentum, p. 277.
Aijwvn, wno, subst. masc/fem., tempo, durao da vida, eternidade... Cf. PEREIRA, I. Dicionrio
Grego-Portugus, p. 19.
Jo 2,9 usa geuvomai + acusativo, provavelmente influenciado pela construo do hebraico. Na LXX
construdo geuvomai igualmente construdo com o acusativo: 1Sm 14,29; Jn 3,7; 2Sm 3,35.
153
mundo, abri-los- num lugar glorioso, onde no haver mais sofrimento, nem morte, e
onde a presena de Deus estar com eles por toda a eternidade. O teor destas palavras
tem como objetivo demonstrar que todo aquele que cr em Jesus, e guarda a sua
Palavra, jamais sofrer o dano da segunda morte, que consiste na condenao eterna.
Por outras palavras, Jesus estava dizendo que a vida ou a morte, o cu ou o inferno
dependem do acolhimento que dermos Palavra de Deus. 209 Mc 9,1 conserva uma
tradio muito prxima de Jo 8,51:
(Em verdade vos digo que esto aqui presentes alguns que no
provaro a morte at que vejam o Reino de Deus chegando com poder ).
209
210
211
O contedo do v. 51, como escreve F. Bruce, entrou de diversas formas na tradio oral de geraes
posteriores. O Evangelho de Tom, por exemplo, inicia com estas palavras: Estas so as palavras
secretas que Jesus, aquele que vive, falou, e Ddimo Judas Tom registrou; ele disse: Quem encontrar
a interpretao destas palavras jamais provar a morte.
A expresso teren conhecida tambm pelos Sinticos: Mt 19,13; 23,3; Mc 7,9.
O autor do QE usa qavnatoj no sentido emprico em 11,4; 12,33; 18,32; 21,19.
154
v. 52
.
212 ,
213,
214
Disseram-lhe, pois os Judeus: Agora sabemos que tens demnio.
Abrao morreu, e os profetas morreram, e tu dizes:
Se algum guardar a minha palavra
de modo algum experimentar da morte na eternidade.
Palavras estas dos judeus que demonstram uma profunda ignorncia quanto ao
212
213
214
japoqnvhskw, morrer. A forma verbal japevqanen encontra-se no aoristo modo indicativo (morreu).
Cf. REINECKER, F. Chave Linguistica do NT., p. 176.
tervew, guardar, manter, observar. A forma verbal tnrhvsh est no aoristo modo conjuntivo voz ativa,
(que ele guarde, observe). Cf. Id., p. 177.
geuvomai, provar (o sabor), e, portanto, figuradamente: participar de, desfrutar,
experimentar..., provar emprega-se no sentido literal em... Mt 27,34; Jo 2,9; At 10,10; e Cl 2,21...
O sentido figurado. 1Pd 2,3 retoma as palavras do Sl 34,8, quando diz: J tendes a experncia de que
o Senhor bondoso.... A forma verbal geuvshtai encontra-se no aoristo modo conjuntivo voz mdia.
Cf. COENEN, L. Dicionrio Internacional de Teologia do NT, p. 851-853.
155
v. 53
215 , ;
;
s tu, porventura, maior que nosso pai Abrao, que morreu?
Os profetas tambm morreram. Quem pretendes ser?
O verbo (morreu) que apareceu no v. 52 usado agora como paralelo
v. 54
,
Se me glorifico a mim mesmo, minha glria nada ;
, ,
Quem me glorifica meu Pai, de quem vs dizeis: nosso Deus.
v. 55
, .
Contudo, vs no o reconheceis, mas eu o conheo bem.
Jesus no responde diretamente questo que seus adversrios colocaram; ele
comea por remover a insinuao deles. Ele no busca a sua prpria glria, mas
215
A pergunta dos Judeus feita com a partcula , a qual atrai uma resposta negativa, como em Jo
4,12.
156
idias de morte que os Judeus insistem. Se Jesus capaz de doar sua vida, porque o
Pai a glorificou. Aqui temos um trao de estilo livre indireto presente em
(de quem vs dizeis: nosso Deus). No h artigo diante de
(Deus). Jesus reafirma assim sua relao com o Pai. Se ele repete que no busca sua
prpria glria (cf. 8,49s), a formulao nova em razo do verbo glorificar
[]: o Pai efetivamente glorifica-o. No isso implicitamente declarar-se
maior? Deus glorifica seu Enviado fazendo-o praticar no mundo as obras que
irradiam a glria divina, e ele o glorificar plenamente no momento da exaltao
(13,21s; cf. 12,28). O uso de (conheceis ou reconheceis) intencional;
contrrio a (conheo) que aparece logo em seguida. 216 O modo de conhecer Deus
dos Judeus no o mesmo de Jesus. Jesus frustra a iluso dos Judeus e desmascara
sua ignorncia de Deus:
v. 55
Cf. DE LA POTTERIE, I., oi]da e ginwvskw: ls deux modes de La connaissance dans Le quatrime
vangile, Biblica 40, p. 709-725. Uma ligeira diferena distingue os verbos oi]da e ginwvskw: traduzido
ginwvskw por reconhecer, palavra que sugere uma mudana no conhecimento, ao passo que oi]da
pode ser traduzido tanto por saber como por conhecer (bem).
157
); eles no o
reconhecem. Jesus salvaguarda assim a honra de Deus que o enviou e que deve ser
reconhecido atravs de suas palavras e atos. Se Jesus no um mentiroso, porque
ele mesmo no se faz, ele tem uma relao com o Pai que o faz falar e agir. Eis o
que a prxima discusso vai expor atravs da proclamao do Eu Sou (v. 59).
217
158
v. 56
218
por ver
o meu Dia,
ele o viu
219
e encheu-se de alegria.
220 221 .
218
219
220
221
O jbilo havia invadido Abrao tanto no momento da promessa que lhe foi feita (Gn 17,17; Jub
15,17) como na hora do nascimento de seu filho, chamado Isaac em razo da alegria que ele suscitava.
Abrao estava ento voltado para a realizao daquilo que a presena de Isaac anunciava para o
futuro. Como poderia ele ver o dia de Jesus, quer dizer, segundo as representaes judaicas, o dia da
apario do Messias? (Cf. Hen 61,5; 4Esd 13,52). Joo atualiza o dia do Filho do Homem (cf. Lc
17,24). Segundo Cirilo de Alexandria (PG 73,933) e Agostinho (In Ioan. 43,16): esse dia referia-se
Encarnao (e Ressurreio); segundo Crisstomo (PG 59,305) ou Sto. Toms (n. 1287), Paixo.
Cf. LON-DUFOUR, X., Leitura do Evangelho segundo Joo II, p. 215, nota 119.
Para o autor do texto evanglico, Abrao, na sua f, encontra-se plenamente alegre, porque
contemplou antecipadamente no somente as promessas, mas a salvao da qual Isaac era a figura.
Ainda, no Antigo Testamento, a alegria quase sempre associada aos anncios de salvao; cf. Is 9,2;
35,1s; Is 44,23s; Br 4,22 e sobretudo Sf 3,12.17: Grita de alegria, filha de Sio... YHWH, heri
salvador, est no meio de ti.
privn [preprosio], antes, anteriormente, em dias passados (etimologicamente cognato de pr,
antes, tem a fora de conjuno (por exemplo, Mt 1,18; 26,34; Jo 14,29). Cf. VINE, W. Dicionrio
Vine, p. 400.
givgnomai ou givnomai, tornar-se, ser [aparecer, manifestar-se, surgir, ser feito, acontecer, vir a
existir].... Cf. FREIRE, , p. 297.... Aoristo vir a existir. Infinito usado com preposio para
expressar tempo antes de.... Cf. REINECKER, W. Chave Linguistica do NT, p. 177. A forma
verbal
encontra-se no aoristo infinitivo voz mdia. um verbo depoente, tem forma mdia,
mas significado ativo.
159
223
Alguns manuscritos, entre eles o Papiro 75 e o Sinatico, tm na verdade, Abrao te viu? As dez
referncias a Abrao, mencionado somente neste captulo do Quarto Evangelho, do unidade ao
dilogo dos versculos 31-59.
Cf. BRUCE, F. F Joo. Introduo e Comentrio, p. 181.
160
Johan Konings chama autocredenciamento essa maneira de falar, que diz ser
um modelo, modo que tambm Jesus usa. Deus no precisa de nome, basta que revele
sua presena para Israel, como em Ex 3,11-14, na vocao de Moiss. Tambm Jesus
no d outra explicao a no ser o que ele diz e faz; o que ele no seu agir
existencial e histrico. No existem palavras que consigam expressar ou definir o qu
ou quem Jesus. S vendo e experimentando. Deus aquele que , o que ele , o
que ele se mostrou e mostrar. Jesus o que ele no seu agir existencial e histrico, e
nisto que se deve crer. Eu Sou, mas tambm eu o sou, a saber, tudo o que sua
224
225
Encontra-se no livro do xodo 3,14 a frase: EU SEREI QUEM SOU... Assim dirs aos filhos de
Israel: EU SOU me enviou at vs. Este hy<+h.a,( rv<a] hy<h.a,( diversamente traduzido. Trata-se de dois
verbos, todos os dois no presente, ou mais exatamente no imperfeito hebraico (em oposio ao modo
que exprime uma ao concluda). Em portugus, isto poderia ser traduzido tanto pelo futuro quanto
pelo presente. Em vez de traduzir como de costume por Eu sou aquele que (Traduo da Bblia de
Jerusalm), a TEB traduz: Eu sou quem eu serei, indicando assim com razo que no se trata da
essncia atemporal de Deus, mas de sua fidelidade no tempo em relao ao povo. Esta compreenso
a que preferimos neste trabalho. Tambm Johan Konings traduz assim: Eu serei/estarei o que
serei/estarei; Eu estarei (contigo/convosco) como aquele que (sempre) est a. Cf. Evangelho
Segundo Joo, p. 185.
Cf. LON-DUFOUR, X., Leitura do Evangelho Segundo Joo II, p. 216-219.
161
atuao sugeriu como misso divina, escatolgica, dom de Deus. Jesus pronuncia a
presena de Deus em sua pessoa, e esta a ltima palavra da discusso. 226
226
162
2.7
concluir que a linguagem que o autor utiliza se desenvolve com um ritmo lento e leve.
Frases curtas, mas claras e densas. O grego no apurado como o de Paulo. Prefere-se
a parataxe, poucas preposies dependentes, antepe-se o verbo ao sujeito, repete-se
com freqncia o pronome pessoal. O autor procede em espiral; os seus pensamentos
retornam constantemente. Acontece um aprofundamento dos temas sem entediar o
leitor que vai progredindo na compreenso da pessoa de Jesus, sua identidade, sua
origem e sua misso. Conduz o leitor a tomar uma deciso, a posicionar-se, a fazer sua
escolha. Agudeza e sinteticidade so caractersticas da sua maneira de escrever.
Utiliza ainda categorias e representaes prprias do judasmo (semitismos), do
mundo cultural da gnose, do helenismo.
233
Lon-Dufour interpreta este versculo relacionando com o que se l no livro do profeta Ezequiel que
Jesus sai da mesma forma que a glria de YHWH saiu de sobre o limiar do Templo e depois deixou a
Cidade (Ez 10,4.18; 1123). Cf. LON-DUFOUR, X., Leitura do Evangelho segundo Joo II, p. 218.
163
(Verdade). Esta tcnica literria muito presente na nossa percope, como tambm em
outras partes do QE. Por exemplo, aquela de jogar com o duplo sentido das
palavras. Assim
(dia) pode
como tambm ser o testemunha de uma revelao. Atrs desses duplos sentidos se
perfila o cumprimento da Escritura. Os Judeus ficam e se detm no sentido emprico
ou tradicional das expresses, enquanto que a comunidade joanina reinterpreta estas
expresses em funo do evento que ela viveu ou do conflito que est vivendo. Faz-se
necessrio este confronto agressivo como recurso literrio provocador de identidade
(at mesmo afirmaes depreciativas, sarcsticas, incrdulas). Desse modo a
comunidade salienta sua semelhana e sua diferena com o Judasmo, isto sua
prpria e autntica identidade.
3. Certamente a tcnica literria usada pelo autor dos captulos 7-8 era de acordo
com a mentalidade religiosa e a maneira de pensar de seus leitores, no caso os
destinatrios do texto, membros da prpria comunidade dele. O texto deveria conduzir
pela sua prpria construo ao sentido profundo da compreenso de Jesus Cristo. As
incluses, por exemplo significativamente presente nestes versculos 31-59
mostram que os leitores eram capazes de compreender que uma aluso feita no fim de
uma passagem corresponderia a um pormenor similar no comeo da mesma. Como
escreve Raymond Brown, uma espcie de embalagem de passagens que consiste em
amarrar o incio e o fim.234 Por exemplo, como escrevemos antes, as palavras
e (escondido, s ocultas) podem ser entendidas como uma inclusio
desta srie inteira de dilogos dentro de uma unidade dramtica, tendo como cenrio
234
164
bem significativo para todo o conjunto a festa das Tendas; a ameaa de morte no
incio de 7,1 acaba com a deciso de apedrejar Jesus (mat-lo) no final em 8,59; e
ainda outra incluso com paralelos, ser discpulo (v. 31) e tornar-se livre (v. 36); nos
versculos 31 e 35 h paralelo no uso de menein (habitar, morar, permanecer);
doulein (servir) no v. 33 e
4. Pela anlise vimos tambm que o autor reuniu na unidade dos captulos 7-8
boa parte do que ele tinha a dizer em resposta s objees judaicas contra as
pretenses messinicas sustentadas por Jesus. Que o aspecto controvrsia agudo e
extenso, como se estivesse dentro de um tribunal em pleno processo de acusao, num
debate ataque-defesa. As indicaes de lugar, de pblico, de tempo e de temticas
comprovam a escolha literria intencional do autor e confirmam a homogeneidade
desta unidade.
165
6. O incio da nossa unidade mostra que o autor dirige-se aos judeus que nele
tinham acreditado (v. 31). O problema surge das questes entre os judeus crentes que
continuavam a discutir, nas comunidades joaninas, sobre a relao com o judasmo e a
f crist, entre Abrao como pai e Deus-Jav Pai entre Jesus-Messias-Filho e sua
relao com Deus-Jav-seu Pai. Este grupo que cerca Jesus, os que nele tinham
acreditado se transformar, aos poucos, no mais agressivo. Parece uma contradio.
Mas seguindo a coerncia da ironia joanina, este grupo pode ser os que tinham
acreditado e agora j no acreditam mais (Gramaticalmente esta traduo
possvel). Pelo texto podemos encontrar alguns motivos da discrdia: uma teologia
chamada alta, sobre a pessoa do Pai e sua relao com o homem Jesus, enquanto
que a teologia dos Judeus partia apenas de Abrao, seu pai na f. Para o Jesus joanino,
o fato dos Judeus no darem o salto da f crist tem a ver com o pai da mentira
Sat que lhes fechou as portas.
7. Do ponto de vista dos Judeus, era normal recusar a adeso a algum que no
temia transgredir o sbado e ameaar assim a estabilidade do judasmo; e Jesus ainda
pretendia estar em relao de subsistncia com Deus, cometendo um atentado contra o
estrito monotesmo. Mas isso era um problema deles. O que interessa realmente ao
autor discernir a Verdade sem medo de assumi-la publicamente na vida. Vimos que
o autor apela a uma linguagem dura e agressiva, ilustrando o diabo como o mentor
da recusa aceitao da Palavra do Filho do Pai. O jogo de palavras entre ser filho de
Abrao e ser filho do diabo marcante. Esse foi, ao nosso ver, um recurso enftico e
decisivo de grande alcance na mente dos seus irmos joaninos.
166
representaes admitidas e entendidas por todos do seu ambiente. Pelo percurso que
fizemos com a anlise literria da percope 8,31-59 notamos a insistncia nos temas
sobre a paternidade de Abrao e a paternidade do Diabo. Constatamos que o tema de
Abrao uma espcie de hapax legomenon em todo o QE. Isto nos provoca a
continuar a pesquisa para descobrir a origem e a fontes literrias do autor e quem
sabe, saber um pouco mais da sua inteno ao produzir este texto. A estratgia
literria do autor revela-se na arte de descrever uma dupla apresentao de Abrao,
isto, o ponto de vista dos Judeus e o ponto de vista de Jesus (comunidade, autor). Tal
apresentao compreendida e apresentada num sentido restrito nacionalista judaico.
Os Judeus achavam que sabiam tudo de Abrao e isto bastava para se orgulharem de
serem seus descendentes. No entanto, ser filho no bastava! Este sentido nacionalista
da expresso
167
10. Seguindo este raciocnio, vemos uma confirmao desse recurso usado pelo
autor na questo de ser filho e ser escravo, permanecer na casa e no permanecer nela,
em ser Ishmael ou ser Isaac, ser semente de Abrao e ser filho da prostituio.
Somente poderia entender este jogo de palavras e as referncias por detrs do texto
aqueles que tinham esse conhecimento, esse entendimento. Mais especificamente:
sabemos que Abrao teve dois filhos, Isaac e Ishmael; Isaac, nascido de uma mulher
livre, era livre; mas Ishmael, nascido de uma mulher escrava, era escravo; enquanto
Isaac permanecia na casa de seu pai, Ishmael foi mandado embora; Quem era o
herdeiro? Quem era o filho legtimo? Talvez fossem questes que os judeus da poca
de Jesus se colocassem. Jerome Neyrey fala ainda de uma lenda que Ishmael tentou
matar Isaac.235 Exatamente como os Judeus querem e tentam matar Jesus. Tudo est
presente nas entrelinhas do texto joanino que, com grande dificuldade, vamos hoje
descobrindo (escavando). Mas o autor do texto sabia muito bem o que, por que e
para quem escrevia! Os membros da sua comunidade poderiam entender e se
identificar, devido suas atitudes controversas, com Ishmael, o escravo, o filho da
prostituio, o filho do diabo, fazer suas obras..., e outras aluses metafricas que o
autor utiliza como estratgia literria. O critrio de distino era delineado com o
texto, criando fronteiras e demarcaes: quem permanecia na Palavra era da
verdade, quem a rejeitava era da mentira. Se a palavra da verdade no permanecia
neles (no encontrava lugar, no penetrava ,
como diz o texto), ento no eram livres nem verdadeiros discpulos, eram
, deram sua adeso no incio e voltaram atrs.
11. A anlise literria do v. 44, onde Jesus acusa os Judeus de serem filhos do
Diabo, nos permitiu detectar a presena de numerosos hapax:
235
(desejos),
Cf. NEYREY, Jerome H. The Gospel of John, p. 159; Jesus the Judge, Biblica 68, p. 509-511.
168
(assassino, homicida),
(mentira),
(desde o princpio),
subjacente a este texto e que, segundo o Testamento dos Patriarcas Tj I gn 4,5 Samuel
o pai de Caim. E no seria impossvel que a meno de
(assassino desde o incio) seja uma discreta aluso a Gn 3,15. Como tambm a idia
dos mritos de Abrao bem desenvolvida no Targum. Possivelmente liam-se nas
sinagogas estes textos e ficaram fortemente impregnados nos Judeus que fica difcil
distinguir a exata influncia na redao do texto joanino; considerando que alguns
destes textos targumicos sejam anteriores ou contemporneos ao tempo e ambiente das
comunidades joaninas.236 O autor fez leituras atualizantes de temas bblicos
confrontando a realidade e as necessidades dentro e diante do seu contexto conflitivo
comunitrio.
12. Helmut Koester escreveu dizendo que alguns textos antigos podem dar-nos
chaves interpretativas e de compreenso para entender o processo de composio dos
textos joaninos, tais como: Papyrus Egerton 2, o Evangelho de Toms, o Dilogo do
Salvador e o Apcrifo de Tiago. Para nossa percope, ele diz que o Evangelho de
Toms possui paralelos que mais se aproximam de controvrsias. Segundo Koester, o
autor do QE modificou e reescreveu os textos com apurado recurso metodolgico
literrio.237
237
Cf. MANNS, F., La verit vous fera libres, p. 145-147. 169s. Neste estudo, Manns fundamenta sua
documentao e tem esta preocupao quanto datao dos documentos de tradio targumica, se so
anciennes e se h a probabilidade de terem influenciado de algum modo o meio do qual nasceram
os Evangelhos. Manns ainda levanta a questo se no seria legtimo perguntar-se: Jo 8,31-59 no seria
um Midrash do Salmo 118? Trataremos disso mais adiante na pesquisa.
Cf. KOESTER, Helmut. Gnostic Sayings and Controversy Traditions in John 8:12-59, p. 97-110.
169
14.
(em) que
CAPTULO III
DO CONFLITO QUE GERA IDENTIDADE
COMPREENSO DA COMUNIDADE JOANINA
171
Jerusalm e depois em Antioquia. 238 Desde o incio, os diversos grupos que seguiam
Jesus foram caracterizados por fatores de conflitos internos. Os contrastes internos,
entre tendncias de Paulo e de Tiago, entre os chamados judeu-cristos e os tnicocristos, so testemunhados, por exemplo, nas cartas de Paulo e na literatura pseudoclementina e abafados pela verso pacifista dos Atos dos Apstolos. A pregao
mesmo de Jesus, como aquela de Joo Batista, de Paulo, de Pedro, de Tiago aparecem
empastadas no conflito (cf., por exemplo, Lc 12,51 // Mt 10,34; 1Ts 3,4).
Cf. VOUGA, Franois. Il cristianesimo delle origini. Scritti, protagonisti, dibattiti, p. 36-52.
Cf. Lc 16,3 // Mt 6,24 // 2Clem 61,1 // Toms 47; Lc 12,49-53.
172
3.1
240
241
242
243
Cf. MARTYN, J. L. History and Theology in the Fourth Gospel, New York, 1968.
Cf. MAGGIONI, Bruno. O Evangelho de Joo, p. 254, In: Os Evangelhos II, com R. FABRIS, 1992.
O conflito pode assumir formas muito diversas e mais atenuadas de confronto fsico, isto , por
exemplo, a competio ou a disputa verbal, o debate ideolgico, a ameaa.
Para um estudo mais aprofundado da anlise antropolgica do conflito, principalmente no cristianismo
primitivo, reenvio aos autores seguintes, em nossa bibliografia: Destro-Pesce, 1995, p. 39-63. 2005
(artigo); Theissen, 1996; Filoramo, 2005, p. 129-148.
173
de
uma
re-inveno
da
histria,
atravs
Transcrevemos no original ingls um pargrafo de Jeffrey R. S.: relaes entre Religio, Identidade e
grupos internos em conflito: According to social identity theory, identity competition plays a central
role in the inception and escalation of intergroup conflict, even when economic and political factors
also are at play. Individual and group identity competition is considered a byproduct of individuals
efforts to satisfy basic human needs, including various psychological needs. Religions often serve
these psychological needs more comprehensively and potently than other repositories of cultural
meaning that contribute to the construction and maintenance of individual and group identities. Cf.
SEUL, J. R. Our is the Way of God: Religion, Identity and Intergroup Conflict, p. 553.
174
245
246
247
Traduo nossa do original italiano. Cf. DESTRO, Adriana PESCE, Mauro. Forme culturali del
cristianesimo nascente, p. 157.
Cf. BERGER, Klaus. As formas literrias do Novo Testamento, p. 6.
Cf. Id., p. 15
175
Isso nos faz entender melhor que a prpria comunidade estava em constante
evoluo, em contnua busca de autoconstruo. Havia um dinamismo normal de
entradas e sadas, e at expulses dos membros. Os conflitos estavam na base dos
grupos e das tendncias contrastantes na busca de autodefinio, aperfeioamento e
identidade. Mauro Pesce diz que a estrutura do QE, diferentemente dos Sinticos,
dramtica (rejeio da maioria, acolhimento de poucos), e que segundo o Prlogo do
Evangelho (1,11-12), precede a toda a vivncia de Jesus. Depois de ter vivido uma
dramtica experincia de perigo e de insucesso, e depois de uma fase de
desorientamento e fraqueza, os seguidores de Jesus se congregam atravs de um
mecanismo de tipo inicitico. esta forma de discipulado que est em condies,
segundo o autor do QE, de fazer nascer grupos de seguidores de Jesus. Assim como
Jesus preparou os discpulos atravs de um perodo inicial bastante longo
(representado na narrao que vai do captulo 1 ao 12) para depois submet-los a um
particular rito de iniciao que acontece em uma nica noite (captulos 1317). Tudo
permite aos discpulos, segundo Pesce, de entrar nas duas fases finais da formao do
discpulo: aquele da prova fundamental e aquela do re-nascer ou nascer do alto
como diz o Evangelho (3,3-8), em que o Esprito provoca no indivduo uma nova
identidade.248
Cf. DESTRO, Adriana PESCE, Mauro. Forme culturali del cristianesimo nascente, p. 34-38. As
diversas fases do processo inicitico, segundo Mauro Pesce, so sintetizadas nos seguintes pontos: 1)
O primeiro momento aquele da escolha dos discpulos (Jo 1,3-5,10); 2) Segue depois uma longa fase
na qual os discpulos assistem ao que o Mestre faz e s suas pregaes pblicas sem ter uma atuao
direta; 3) O processo inicitico final se divide em quatro sees: um rito inicial, um discurso seguido
de orao, um perodo no qual os discpulos se dispersam, um rito final da comunicao do Esprito.
176
Nossa tese que o autor do QE descreve Jesus como mestre que prepara os
prprios discpulos em oposio ao mundo externo; quer modificar a sociedade
religiosa (hbitos, concepes, relaes) mediante a modificao dos discpulos que
tem diante de si. Aquilo mesmo que Jesus padeceu em primeira pessoa de rejeio,
perseguio, humilhao e aparente fracasso, que culmina no captulo 12 com a
inteno dos judeus de mat-lo, o caminho a ser seguido pelos seus discpulos. No
caso, os membros da comunidade joanina.
249
177
Sem mim nada podeis fazer (15,5). 250 Notamos que o escopo declarado do QE a
f, mais precisamente, a f em Jesus, Messias e Filho de Deus, como tambm para um
fim de significado salvfico: Para que tenhais vida em seu nome (20,31).251
250
251
252
253
178
179
vem iluminar o sentido de cada parte do conjunto. 255 necessrio notar que, conforme
muitos crticos recentes, semelhante trabalho , como escreve C. Dodd, na melhor das
hipteses, precrio, isto , totalmente baseado em nossa leitura e interpretao do
texto. Aceitamos o texto como chegou at ns hoje, 256 mesmo sabendo que o mesmo
no representa a ordem planejada pelo autor; supe-se que a ordem original sofreu
algumas deslocaes primitivas que redundaram em incongruncias e disjunes
suficientes para prejudicar, ou mesmo destruir, toda e qualquer continuidade que o
tema pode ter possudo algum dia. 257 Afirmamos, apoiados em R. Brown, que o
Evangelho atual considerado trabalho de duas pessoas (ou mais), um evangelista,
que comps o corpo do Evangelho, e um redator, que mais tarde fez os acrscimos. E
que aquele(s) que se deu ao trabalho de acrescentar algo obra do evangelista
concordava substancialmente com ele e era da mesma escola de pensamento. 258
255
256
257
258
B. MAGGIONI escreve: inegvel que o relato de Joo conduzido de modo a deixar aparecer a
progressiva autorevelao de Jesus e da a progressiva manifestao da f e da incredulidade. Por isso,
o QE tem um carter dinmico e dramtico. Cada episdio contm uma revelao de Jesus que obriga
a tomar posio: ou a f ou a incredulidade. E os episdios so concatenados de modo a constiturem
um crescendo: Jesus desvela sempre mais seu prprio mistrio e os espectadores so forados ou a
amadurecer e purificar sua f, ou a fechar-se numa incredulidade sempre mais consciente e decidida.
A dramaticidade do relato torna-se ainda mais evidente se temos presente que, para Joo, optar a favor
ou contra Cristo a antecipao do juzo final. Cf. O Evangelho de Joo, p. 259.
Johan Konings diz que para saborear um texto no sentido em que foi escrito faz-se necessrio reviver
o texto luz do momento presente o impacto que produziu nos primeiros destinatrios. Portanto,
preciso captar perguntas, circunstncias, preocupaes, cultura, tenses e conflitos vividos por esses
mesmos destinatrios. Cf. KONINGS, Johan. Evangelho segundo Joo, p. 15.
Cf. DODD, C. H. A interpretao do Quarto Evangelho, p. 379.
Cf. BROWN, R. E. Introduo ao Novo Testamento, p. 499.
180
Evangelho. Por isso e para isso, definimos no incio nossa teoria literria e
apresentamos as fontes e as etapas de elaborao-redao do mesmo texto evanglico.
Cf. DODD, C. H. A interpretao do Quarto Evangelho, p. 495. Os discursos so o meio que o autor
utiliza para revelar ao leitor o sentido dos acontecimentos. Por meio dos discursos o autor nos explica
o sentido dos gestos de Jesus (nos discursos do Livro dos Sinais) e o sentido de sua morte (nos
discursos de despedida). Cf. CONZELMANN, H. Teologia del NT, p. 401.
181
261
262
Naturalmente no foi alheia a esta reflexo a contribuio dos hinos veterotestamentrios Sabedoria
e de certos textos sobre a Palavra. Como escreve Brown: O pano de fundo dessa narrao potica da
descida do Verbo ao mundo e do eventual retorno do Filho para junto do Pai (Jo 1,18) encontra-se na
imagem veterotestamentria da Sabedoria personificada (especialmente Eclo 24 e Sb 9), que se
encontrava no incio com Deus, quando da criao do mundo, e veio habitar com os seres humanos
quando a Lei foi revelada a Moiss. Nesta pesquisa e neste contexto, compreendo aqui o Logos
joanino como o Dabar revelador de Deus. Cf. BROWN, R. Introduo ao Novo Testamento, p. 464.
Os conceitos teolgicos do Prlogo so retomados e desenvolvidos no decurso de todo o Evangelho.
A teologia do Prlogo prepara a do QE, indica seu significado profundo, e oferece a chave para captar
seu verdadeiro significado. A histria explica a teologia e a teologia interpreta a histria. Em outros
termos: no Prlogo afirma-se que o Logos a luz que brilha nas trevas, que se tornou carne, que foi
rejeitada, que manifestou sua glria. O Evangelho nos diz como e onde se manifestou como luz, foi
rejeitado e revelou sua glria. Cf. BARRETT, C. K., The Prologue of St. Johns Gospel, p. 28, 48.
A expresso entre os seus se entende de fato preferivelmente como visando a Israel (cf. Ez 37,27).
Mas, como sempre, as distines no so ntidas. O pensamento do autor do QE global; apenas os
acentos mudam. No horizonte est a encarnao, mas no devemos pensar somente nesta; h tambm
a manifestao do Logos na histria universal e na histria de Israel mediante a Lei e os profetas.
182
contraposio entre aqueles que rejeitaram e aqueles que acolheram. Ulrich B. Mller
diz que do Prlogo (1,18) o arco se estende at o final do QE, onde Tom confessa:
Meu Senhor e meu Deus (20,28) e que o objetivo deste Evangelho a comprovao
da f de que Jesus o Filho de Deus, ou seja, ressaltar a origem autenticamente
divina de Jesus (11,27; 20,31), que justifica sua obra na terra, justamente porque os
judeus contestavam (6,41; 7,28s).263
Logo nos vv. 4-5, o hino parece indicar a funo e a realidade que o Logos vai
encontrar. Ele a vida e a luz. Toda a realidade, a histria e os homens possuem vida
no Logos. Nele a histria encontra seu significado, a consistncia qual aspira, a raiz
do prprio existir e o fim ao qual tender, a possibilidade de realizar-se numa palavra,
a salvao. E o Logos a luz dos homens, o que nos revela o sentido do nosso existir,
o projeto para o qual somos feitos e ao qual devemos tender, sob pena de extravio
total. , portanto uma luz que se torna salvao, mas que se pode tornar tambm
condenao. julgamento. Justamente porque a histria est cheia de contradies,
um drama da luta entre luz e trevas, que o Logos vem para separ-las e vencer. Quem
acolhe a luz se aproxima de Deus e quem a rejeita se afasta dela.
264
Ulrich Mller diz ainda que os cristos na comunidade joanina negam que Jesus o Cristo,
consequentemente o Filho de Deus. No se pode ter em mente uma negao da messianidade de Jesus
no sentido judaico ou uma negao de ser ele Filho de Deus, como se os adversrios fossem gentios.
A negao tem de ser entendida como uma atitude especificamente crist. Os adversrios contestam
que Jesus cumpra as expectativas indicadas com os ttulos Cristo e Filho de Deus. De acordo com
1Jo, eles relacionaram o Redentor de maneira insuficiente com o Jesus terreno, no o identificaram de
maneira conseqente com Jesus. Eles no conseguem aceitar que Jesus Cristo veio permanentemente
na carne (at a morte), e parecem estar negando uma conseqente identidade com o Jesus terreno.
na verdade uma discusso intrajoanina, pois surgiu do aguamento de alguns pensamentos joaninos.
Cf. MLLER, Ulrich B., A encarnao do Filho de Deus, p. 59-63; 74-78.
B. Maggioni afirma que a experincia que est na base desta leitura o que aconteceu a Jesus no meio
183
265
266
do judasmo. Mas se prolongou depois na comunidade crist. Esta entrou em contato com uma viso
religiosa mais universal, que falava de luz e de rejeio da luz. Alm desta experincia cristolgica e
eclesial, comeou-se a ler o Antigo Testamento encontrando nele o mesmo esquema de
comportamento: a contnua contradio palavra de Deus. , portanto, uma constante que acompanha
todas as manifestaes do Logos, e ainda, uma experincia religiosa universal. Cf. MAGGIONI, B., O
Evangelho de Joo, p. 283.
Esta vontade de matar Jesus aparece em: 5,18; 7,1.19.20.25; 8,37.40.59; 10,31.39; 11,8.53; 12,10.36.
So dois termos importantes que o resto do QE far entender. Reconhecer no somente escutar a
palavra de Jesus e tambm no somente captar seu sentido, mas compreender que suas palavras vm
do Pai (assim, p. ex. em 8,27-28.43). Trata-se, portanto, de reconhecer ao ouvir a palavra e ao ver os
sinais, que Jesus o Filho que vem do Pai. , portanto o mistrio da pessoa de Jesus, sua origem, que
vai sendo compreendida e reconhecida. E acolher implica abertura, disponibilidade e seguimento: no
um acolhimento passivo, mas ativo.
184
Os vv. 6-9 tratam do testemunho de Joo Batista. Parece ser uma interpolao
ulterior que quebra o desenvolvimento do tema trevas-luz. O que interessa nele aqui
seu testemunho a respeito de Jesus. O v. 8 precisa que Joo no era a luz.
Possivelmente alguns lhe atribuam esta posio, que na realidade atribuda a Jesus
(a luz verdadeira Hn to. fw/j to. avlhqino,n ). Observamos que, ao mesmo tempo, que
rejeita esta interpretao do papel do Batista, o autor no lhe nega autenticidade
religiosa e importncia. Considera-o como enviado de Deus. Se existe polmica nestes
versculos (Reflexo de situaes conflitivas na comunidade joanina?! Seriam
seguidores do Batista?), ela cautelosa e no nega afinidades que ligam Jesus ao
Batista. Antes, o Batista apresentado (talvez resposta ao conflito) como aquele que
v e entende quem Jesus, o anuncia a quem no o viu e compreendeu, e suscita
discpulos para o Cristo.267
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Testemunho um conceito importante no QE. Tem sempre por objeto a pessoa de Jesus, seu
significado profundo sempre cristolgico. O testemunho remete histria: supe o ver, mas no o
simples ver fsico (como o dos judeus que viram, mas no compreenderam), mas o ver que sabe
perceber a presena de Deus em Jesus. O testemunho se produz sempre no contexto de um conflito, de
oposio, de litgio: aqui no Prlogo, a oposio entre luz e trevas, aceitao e rejeio. De algum
modo sempre se trata de um litgio: um processo movido contra Jesus e mais tarde contra os
discpulos. O autor do QE entende que est sempre em andamento o processo entre o mundo e o
Logos, entre f e incredulidade.
Esquema de dias separados (1,29.35.43; 2,1).
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Maggionni diz que este primeiro encontro dos discpulos com o Senhor no descrito como uma
vocao, mas como uma descoberta do mistrio de Jesus: observe-se que o verbo dominante ver.
Estes versculos renem os traos caractersticos do discpulo segundo o QE: aquele que acolhe o
testemunho, segue, vem, v, permanece e torna-se testemunha. Cf. MAGGIONI, B., O Evangelho de
Joo, p. 296.
Konings diz tambm que a preocupao dessa delegao que o Batista est introduzindo um rito que
no pertence aos ritos costumeiros do judasmo e que sugere a chegada do tempo final, implicando
graves mudanas, entre elas o desaparecimento do Templo. Cf. KONINGS, Johan. Evangelho
segundo Joo, p. 88-89.
Segundo Schnackenburg, os numerosos ttulos messinicos presentes nesta seo demonstram o
interesse querigmtico e talvez at litrgico do autor. Cf. SCHNACKENBURG, R. Il vangelo di
Giovanni, p. 380s. Johan Konings diz que esses ttulos dados a Jesus fazem deste captulo uma
minicristologia. E casualmente so sete: Cordeiro de Deus, Cristo-Messias, mestre, filho de Jos,
Filho de Deus, Rei de Israel, Filho do Homem. Cf. Evangelho segundo Joo, p. 98.
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Na poca do NT, e j anteriormente, a voz viva dos profetas estava emudecida; seu lugar era tomado
por uma lei escrita e pela interpretao dos mestres. Mas algumas correntes esperavam como sinal do
ltimo tempo uma volta do profetismo, ou seja, de um profeta maior que todos e que, de certa
maneira, reassumisse a voz de todos os profetas antecedentes. Alguns esperavam tal profeta sem lhe
definir os contornos, outros pensavam na volta de Elias.
possvel que o comentrio do autor situando o batismo de Joo Batista em Betnia, do outro lado do
rio Jordo, faa aluso a alguma comunidade de seguidores de Joo Batista naquela regio e da
existncia de membros da comunidade joanina que pertenceram, conheceram e seguiram a
comunidade do Batista.
Cf. KONINGS, Johan. Evangelho segundo Joo, p. 91.
Sabemos pelo texto que um desses discpulos do Batista era Andr e o outro podemos supor que fosse
o Discpulo Amado. No contexto de apresentao identitrio da nossa tese nos conveniente e
possvel que seja ele mesmo. Como depois escrever que foi testemunha desde o princpio, por isso
entende e cr com mais propriedade e autoridade que os outros.
187
Questionamos-nos: Ser que no existiam cristos que entravam e saam com grande
facilidade da comunidade joanina? Havia grande inconsistncia no ficar na
comunidade e seguir radicalmente Jesus. Por isso a insistncia no permanecer.
Quem permanece com Jesus pertence comunidade. A prpria busca dos discpulos e
a afirmao encontramos o Messias (vv. 41 e 45) nos soa como uma profisso de f,
isto , uma afirmao que demonstrao para os vacilantes de que Jesus mesmo
o Messias esperado, o Cordeiro de Deus. E para esses que duvidavam, como Natanael,
o modo mais concreto de averiguar dito por Filipe a ele e comunidade: Vem e
v (v. 46).
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188
Nesta seo (2, 1-12), o autor joanino faz questo de concluir o relato com uma
frase que manifesta claramente sua inteno: Este foi o princpio dos sinais, realizado
por Jesus em Can da Galilia. Manifestou sua glria e seus discpulos creram nele
(v. 11). O primeiro dos sinais, ou melhor, o archtipo (avrch.n tw/n shmei,wn), o modelo
de todos os outros: convite evidente para lermos este sinal luz dos que seguiro e,
mais amplamente, luz de todo o livro dos sinais, at o captulo 12.
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Notamos nesta unidade 24 que o autor elaborou estrategicamente sua narrao: em contraponto s
revelaes de Jesus, h reaes dos discpulos, da multido e de trs personagens representativos, por
assim dizer trs mundos situados na frente de Jesus (Nicodemos, uma mulher Samaritana, um pago)
que refletem situaes ou pessoas-membros existentes no seio da comunidade em conflito.
Aprofundaremos adiante cada um destes modelos representativos na perspectiva literria do autor.
Cf. KONINGS, Johan. Evangelho segundo Joo, p. 103.
O autor usa o termo hora ( ) com o artigo definido e na forma absoluta: no se refere a uma
hora especfica do dia, mas ao momento decisivo no qual uma pessoa chamada a realizar uma tarefa
que s compete a ela e para a qual desde sempre foi destinada. O prprio autor o afirma mediante a
comparao da mulher que est triste porque chegou a sua hora, mas logo se alegra porque deu luz
uma criana (16,21). Com referncia a Jesus, o termo hora indica o momento no qual ocorre a sua
oferta total na cruz e se realiza o plano da salvao desejado por Deus, isto , o evento pascal. Cf.
CASALEGNO, Alberto, Para que contemplem a minha glria, p. 233.
189
final que se compreende a natureza da glria que em Can, pela primeira vez, torna-se
manifesta.
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Para
essa
contaminao
tinham
contribudo,
certamente,
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Essa seo que trata da atitude de Jesus em relao ao Templo tem paralelos em duas cenas sinticas:
a purificao do templo (Mc 11,15-19.27.28 e par.), que acontece no longe de Jesus ser condenado
morte, e as falsas testemunhas durante o julgamento do Sindrio na noite anterior crucifixo, que
disseram que Jesus destruiria o santurio do templo (Mc 14,58; Mt 26,61; cf. At 6,14).
Lus F. Ribeiro diz que o dito, como encontrado na tradio joanina, indica ter sido reescrito por um
filtro deformador. Nele Jesus no o sujeito da ameaa/profecia de destruio do Santurio. Os
prprios judeus so responsabilizados pela destruio do Templo Demoli vs. Para o autor do QE,
o Templo deixava de ser o edifcio reformado por Herodes, o Grande. Jesus falava do seu prprio
corpo (Ele falava, pois, acerca do Templo do seu corpo, 2,21). O autor transformara um logion
misterioso de Jesus num anncio pascal. O Messias no poderia matar a si mesmo para a redeno de
Israel. Cabia a Israel imolar o Cordeiro. Ao Messias e a Jav couberam a segunda parte do logion,
trazer o messias de volta vida: em trs dias levantarei ele. Cf. RIBEIRO, L. F., A ameaa de Jesus
ao templo herodiano, In: Religio de visionrios. NOGUEIRA, Paulo Augusto (org.), p. 144.
Nos Evangelhos Sinticos, a palavra sobre a destruio e a reconstruo usada na boca de falsas
testemunhas que acusam Jesus (cf. Mc 14,58.62; 15,29 par.; At 6,13-14), enquanto que aqui est na
prpria boca de Jesus. Uma diferena que demonstra a estratgia e a inteno do autor neste relato.
191
autor, era que o recurso ao culto do Templo para a expiao do pecado de Israel era
um engano, j que a nica restaurao possvel do povo pecador era a oferecida pelo
acontecimento salvfico do Reino de Deus. Nessa situao de contaminao, a
renovao da instituio do Templo para a nova poca messinica exigia, mais
acentuado na comunidade do discpulo Amado, no uma simples purificao de
determinadas deformaes das prticas rituais, mas uma purificao radical do todo,
que comportava mesmo a destruio do Templo atual. Isso o que expressa com toda
claridade em 2,19: Destru este templo, e em trs dias eu o levantarei.287
287
Segundo Senn Vidal, o tom geral desse texto mostra que se trata, com toda probabilidade, de uma
reinterpretao do dito original jesuano depois da destruio efetiva do Templo de Jerusalm,
entendendo o dito como uma profecia de Jesus referida a esse acontecimento. Porm, destruio do
Templo atual devia seguir-se a construo do novo templo do reino messinico. Dele fala tambm
com clareza o dito referente ao Templo (Mc 14,58; 15,29; Jo 2,19); e, tambm a se trata de um
elemendo essencial do dito original. Vidal defende ainda que o paralelismo entre a primeira parte do
dito, sobre a destruio, e a segunda, sobre a construo, mostra que se tratava de um templo real, no
de um meramente metafrico, o que enquadrava com a esperana isrelita acerca do novo Templo de
Jerusalm renovada para os tempos da restaurao de Israel (Ez 40-47; Ag 2,7-9; Tb 13,15-17; 1
Henoc 90,28-29; 11Q19[11Q Rolo do Templo] 29,8-10). A interpretao metafrica de 2,20-22 em
referncia a Jesus ressuscitado claramente posterior e, muito provavelmente, teria a inteno
etiolgica de justificar a separao da comunidade crist joanina do mbito do judasmo, apresentando
a Jesus como o superador do culto judaico. Cf. VIDAL, S., Jesus, o Galileu, p. 180-181.
192
193
seu nome significa declarar-se por Jesus (nome = pessoa) e que o autor joanino
pensa justamente numa f cristolgica: f em Jesus Cristo, professando o nome dele
em meio a um ambiente hostil, como o que cerca sua comunidade. Essa f exige
mudana vital de vida e de comunidade. 288
288
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194
natural. A ironia tipicamente joanina paira sobre 3,9-11: ao Nicodemos que chega
dizendo Sabemos, mas incapaz de compreender, Jesus, falando em lugar daqueles
que verdadeiramente crem, contrape: Falamos daquilo que sabemos, e damos
testemunho do que vimos. A certeza de Jesus sobre a necessidade de nascer do alto
provm de sua prpria vinda do alto.
290
B. Maggioni diz que Nicodemos uma pessoa representativa, e fala como porta-voz: Ns sabemos.
Pronuncia seu juzo com autoridade, seguro: Ningum pode realizar os sinais que tu fazes, se Deus
no est com ele. Seguro, sim, mas pode ser que nesta segurana se esconda a razo ltima de sua
incompreenso. Ele pensa que j entende Jesus; mas leu a atuao deste dentro do esquema de sua
prpria teologia. Assim lhe escapou a fora de renovao qual pretendia conduzi-lo a revelao de
Jesus. (...) A oposio Jesus-Nicodemos exprime outra, mais ampla: Jesus x a multido
hierosolimitana. E tudo isso, por sua vez, manifesta o conflito entre Jesus e seu povo, entre Jesus e os
homens, entre a luz e as trevas. Cf. MAGGIONI, B., O Evangelho de Joo, p. 309-310.
195
presena e das palavras de Cristo dividindo seus ouvintes. 291 Todo o discurso nesta
seo parece mesmo conduzir a uma contnua e acirrada contraposio entre a
revelao de Deus e a incapacidade de compreender do ser humano. Para ns um
claro conflito. O v. 18 aprofunda o verbo julgar/condenar do v. 17, diz Konings.
Quem aceita esse dom, quem na f adere a Jesus no condenado por ele. Mas quem
no cr j se condenou a si mesmo. No fim, prevalece a revelao; no sobra mais
espao para a discusso, s para o sim ou o no. Assim sendo, nos parece que o autor
apresenta este dilogo de Jesus com Nicodemos como uma importante referncia para
avaliar a prpria f (no basta crer em Deus e seu Messias: que Deus? e que
Messias?).292
Diversos estudiosos j pensaram e disseram que este texto est fora de lugar. Os
vv. 31-36 atrelam-se a 16-21 sem levar em considerao o parntese acerca do Batista.
Contudo, isso no impede, ao nosso ver, que sua insero aqui, imediatamente aps o
291
292
196
dilogo com Nicodemos, faa sentido e seja prprio da estratgia literria do autor do
QE.293 Joo Batista apresentado como modelo da atitude correta que Nicodemos e,
mais amplamente, Israel, o mundo helnico e o ser humano em geral so chamados a
assumir ante Jesus: aceitar com alegria a novidade de sua revelao, superando a
prpria cultura e os prprios projetos e aspiraes (poderiam ser prprios de alguns
membros da comunidade joanina?). Deste modo, o Batista j no apenas testemunha
de Jesus, mas tambm o verdadeiro discpulo de Jesus, aquele que soube superar a si
mesmo para aceitar com alegria o Cristo.
294
Johan Konings novamente nos diz que esta narrao do novo testemunho de Joo Batista se encaixa
no quando da catequese iniciada no dilogo com Nicodemos. Cf. Evangelho segundo Joo, p. 120.
Uso as prprias palavras de Raymond BROWN no seu comentrio a esta passagem da Samaritana, por
estar escrita de forma bem elaborada. Cf. Introduo ao Novo Testamento, p. 470.
197
uma
polmica
teolgica
entre
judeus
198
295
296
Os Samaritanos descreviam o Messias como uma figura humana, mortal, e pensavam que estivesse
sepultado no Garizim. Inspiravam-se de modo particular em Dt 18,15-18. Assim, eles esperavam o
Messias como um novo Moiss, redivivo. Ele ser profeta, dar a conhecer toda coisa escondida, e
ensinar a Lei aos judeus e a todo o mundo. Era esperado tambm como revelador e restaurador
religioso (de famlia sacerdotal e restauraria o culto), mas tambm restaurador poltico.
Cf. VIDAL, Senn, Jesus, o Galileu, p. 153.
199
297
200
Bruno Maggioni diz exatamente que a soluo literria desta aporia est no fato
de nos encontrarmos diante de um relato preexistente, que recebeu retoques quando
foi inserido na trama do QE. O evangelista utiliza a fonte inserindo de prprio punho
o v. 48 neste contexto. Depois, continua contando a histria como a recebeu, inclusive
a insistncia na realidade do milagre; pois tambm isto cabe bem na sua tica
201
Eis aqui o paradoxo, o escndalo que origina a discusso que vai seguir e
possivelmente era motivo de conflito na comunidade: a palavra que salva vem de
Deus ou no vem de Deus? Quem esse que, com desculpa de um milagre, manda
298
299
300
202
violar o sbado, isto , a vontade de Deus? Quem esse que induz as pessoas ao
pecado? O repouso absoluto do sbado, muito complicado no tempo de Jesus por
causa da casustica farisaica, era considerado pelo povo de Israel como uma ordem
desejada por Deus mesmo.301 Era o sinal de aliana entre o povo e Deus, pelo qual se
reconhecia a pertena de Israel ao seu Senhor. Assim podemos entender a
desaprovao que o gesto de Jesus suscitou: violar o sbado significava violar o ponto
central da Lei, da f e da esperana de Israel. Isso tudo foi ocasio de confronto e
debate dentro da comunidade; questionava-se a atitude escandalosa e inaceitvel de
Jesus.302
Diante disso, uma letal antipatia aumenta para com Jesus, e uma reinvidicao
de divindade prevalece de forma clara. Transparece aqui com mais fora a hostilidade
contra Jesus e a acusao aos discpulos da comunidade joanina de ditesmo, ou seja,
de fazer de Jesus um Deus, violando assim, outra fundamental Lei de Israel: o Senhor
nosso Deus nico. Johan Konings diz que indevidamente os judeus perseguem
Jesus com esse dio mortal. Jesus no se declarou igual a Deus; so esses judeus
que assim interpretam.303 Na continuao do debate a resposta sutil (5,19-30): o
Filho nada faz por si mesmo, mas o Pai entregou-lhe todas as coisas. Jesus no faz
nada por si mesmo: eis a afirmao introdutria (v. 19), que amarrada na concluso
301
302
303
A Escritura fala com clareza: Quem fizer neste dia qualquer trabalho ser exterminado do meio do
povo (Ex 31,12-18; cf. 20,8-11; Nm 15,32-36; Ez 20,12-20).
Johan Konings comenta este episdio encaixando-o dentro do bloco 5,1-12,50 e intitula-o a obra de
Jesus e o conflito com o Judasmo. Para ele, o autor reala o conflito com a incredulidade dentro do
contexto da fase catequese joanina: Jesus no mais apenas apresentado como aquele a quem se
dirige a f, mas como aquele que enseja um conflito e, portanto, uma opo. Cf. Evangelho segundo
Joo, p. 134.
Continua Konings: Se no AT o rei e os justos so chamados de filhos de Deus, eles podem
considerar Deus como Pai. O povo eleito chama Deus de nosso Pai (Is 63,14; 64,7; cf. Tb 13,4). No
AT, o Livro da Sabedoria conta que o justo perseguido pelos mpios porque chama Deus de Pai (Sb
2,10-22). Assim, os perseguidores em Jo 5,18 tornam-se iguais aos mpios que perseguem o justo de
Sb 2 por chamar Deus de Pai! Ironia: os judeus (= o judasmo dominante no tempo de Joo) no
admitiam o Livro da Sabedoria entre as Sagradas Escrituras ( deuterocannico). Portanto, no se
podiam reconhecer no texto de Sb 2. Mas os cristos conheciam esse texto e o aceitavam como
Sagrada Escritura. Cf. Id., p. 138-139.
203
(v. 30). O Pai, que ama o Filho, lhe mostra todas as coisas e age nele (v. 20). O Filho,
que obediente, faz em tudo a vontade do Pai. Do Pai desce o amor e do Filho sobe a
obedincia: eis o crculo de comunho entre Pai e Filho. Em 5,31-47, cinco
argumentos so apresentados como testemunho, como se fossem lanados em debates
sinagogais:304 Deus testemunhou em favor de Jesus, bem como Joo Batista, as obras
que Jesus realiza, a Escritura e, finalmente, Moiss, que escreveu sobre Jesus. Com
isto o autor responde pergunta que est na base de todo o seu relato: Quem Jesus
para ns? Eis a resposta: nele se revela a ao salvfica do Pai e nele nos oferecida a
nica possibilidade de termos a vida e de escapar do juzo.
304
305
B. Maggioni diz que nesta ltima parte do discurso (vv. 31-47) est a idia de um tribunal imaginrio,
no qual se desenvolve um processo contra Jesus e os judeus, a f e a incredulidade. Quando o autor
escrevia, o tribunal no era a Palestina e sim o mundo, o corao humano. Diz ainda que no
somente Jesus quem fala, mas o evangelista, quem, pregando sua prpria comunidade, quer destacar
um testemunho contemporneo. o testemunho do Pai, que, porm, assume foras diversas, p. ex. as
obras, e as Escrituras. Cf. MAGGIONI, B., O Evangelho de Joo, p. 334.
Segundo uma observao de C.K. BARRETT, os vv. 60-71 encerram o ministrio na Galilia e
resumem seu resultado. Coisa semelhante acontecer em 12,37-50 com relao ao ministrio na
Judia. Os dois ministrios se concluem sob o signo da falncia, da incredulidade de muitos e da f de
poucos. Cf. The Gospel according to St. John, p. 248-249.
204
306
307
205
compreenso que tinham a respeito da eucaristia. 308 Tudo isso eleva a temperatura
do conflito e esse processo conduzir at o nvel da opo e da confisso de f (6,5971).
308
309
Podemos dizer que esta seo 6,1-71 mostra tambm uma situao de conflito que existia entre as
comunidades crists em relao liderana petrina e joanina. Aqui Simo Pedro e os Doze esto entre
aqueles que no se vo, pois reconhecem que Jesus tem palavras de vida eterna. (Assim, no obstante
sua falha em no falar de apstolos nem oferecer uma lista dos Doze, o QE inculca respeito por
eles). A cena sintica confessional refere-se a Pedro como Satans (Mc 8,33; Mt 16,23), mas, em Jo
6,70-71, Judas Jesus j o sabe o demnio que o entregar.
Johan Konings observa que no grego, os verbos pepisteu,kamen kai. evgnw,kamen esto no tempo
perfeito, com efeito no presente: Ns temos f firme e conhecimento estabelecido. Cf. Evangelho
segundo Joo, p. 164.
206
Nesta seo o conflito com os Judeus colocado dentro da festa das Tendas e
continua num crescente, tendo seu pice no captulo 8, at o captulo 12, com
repetidas tentativas de prendr e matar Jesus.310 Essa festa de oito dias, por ocasio da
qual os judeus subiam a Jerusalm, alm de celebrar a colheita da uva de
setembro/outubro, era marcada por oraes pela chuva. Uma procisso diria, partindo
da piscina de Silo, levava gua como uma libao ao Templo, onde a corte das
mulheres era iluminada por tochas imensas da os temas da gua e da luz.
Recusando um pedido de seus irmos, com sabor de descrena, Jesus sobe a
Jerusalm por iniciativa prpria e secretamente (7,1-10). Idias a seu respeito
provocam divises (7,11-15), refletindo o tema joanino de que Jesus leva as pessoas a
julgar-se, como vimos anteriormente j em 3,17-21; 5,27.
Justamente os irmos de Jesus, seus parentes, no acreditam nele. 311 Querem ver
prodgios e milagres (cf. 2,23-24; 4,48). Jesus responde com firmeza e cria uma
ruptura entre o que o mundo espera dele e o que ele mesmo vai fazer. Jesus tem outro
projeto que comanda seus passos e aes. Nos vv. 7-8 reala ainda mais sua diferena
310
311
Dodd assim escreve sobre a unidade dos captulos 7-8: Quando comparado com outros episdios do
Livro dos Sinais, esta seo aparece dominada pelo motivo do conflito. (...) A tentativa derradeira de
apedrejar Jesus (8,59) surge como o ponto culminante das vrias ameaas contra ele, e isto conduz
efetivamente sada de cena. Cf. DODD, C. H. A interpretao do Quarto Evangelho, p. 451-452.
A questo do parentesco de Jesus parece ser mais um conflito presente no seio da comunidade joanina
que se manifesta tambm aqui. O motivo da controvrsia novamente a busca da verdadeira
identidade de Jesus e consequentemente, a identidade dos seus seguidores, da comunidade que os
congrega. Logo de incio notamos que a afirmao de Filipe dada a Natanael (1,45-51) parece ser uma
oportunidade apresentada pelo autor para esclarecer que a identidade scio-familiar no serve para
conhecer a natureza de Jesus e a sua funo religiosa, e ainda induz Natanael a negar a possibilidade
que Jesus seja o Messias: de Nazar pode sair algo de bom? (1,46). O critrio ltimo de
identificao para o QE se revela aqui, talvez, no caso extremo e emblemtico de Natanael. Os
vnculos parentais dos discpulos no determinam, portanto a estrutura interna do grupo, mesmo se
tem sua importncia. A lgica do grupo religioso dos discpulos e a lgica da poltica parental so em
certa medida interconexas. O critrio estruturante e dominante, todavia, aquele do discipulado e no
aquele parental. Isso nos confirmado ao analisar todo o QE e verificarmos que o fato de se conhecer
a origem familiar de Jesus no suficiente para se conhecer a sua provenincia nem sua identidade. A
linguagem joanina, por exemplo, no captulo 6 do eu sou o po descido do cu demonstra o
desentendimento dessa afirmao e a estratgia literria do autor: o parentesco no serve para
identificar a verdadeira natureza de Jesus.
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porque, diz o autor, ningum jamais falou como este homem! Os fariseus ento,
furiosos, acusam os guardas de se deixarem seduzir por Jesus e os amaldioam. Aqui
neste detalhe, diz Konings, o leitor joanino, ao contrrio, convidado a simpatizar
com os que pelos fariseus so excludos da salvao, pois sua prpria comunidade est
sofrendo semelhante excluso pelo rabinismo dominante. 314 No final volta cena,
ironicamene, Nicodemos defendendo Jesus, mas ainda no confessando que um dos
que creem (7,50-52).
Jesus pronuncia uma grave ameaa: Morrereis no vosso pecado (vv. 21-24).
Com esta expresso, atribui aos judeus uma obstinao que parece ter algo de
definitivo, quase um pecado sem esperana. O pecado deles a idolatria, entendida
como uma busca de si mesmo, que encontra seu alimento na concepo errnea de
Deus e no medo: o conceito de um Deus-patro, cuja presena seria uma limitao da
314
209
liberdade humana. O pecado deles tambm, para o autor do QE, a recusa de Jesus,
que podemos chamar de escatolgica, porque se recusa realidade ltima e
definitiva. Podemos dizer que o evangelista l a recusa presente luz de suas
incalculveis conseqncias futuras. a recusa de acolher a luz e de escutar a
verdade: recusa luz porque ela revela as obras malignas (3,20); a recusa verdade
porque glria de Deus preferimos a glria que vem dos homens (12,43); ou,
definitivamente, a recusa verdade, porque verdade (8,45). A nica possibilidade de
subtrair-se ameaa de morte seria: crer que Eu Sou (vv. 24.28), a condio
indispensvel para obter a salvao.
Todo o captulo 9, que narra como o cego de nascena recuperou a vista, uma
obra de arte da narrativa dramtica joanina,316 onde acontece um dilogo sob a forma
de uma cena judiciria.317 O tema da luz do mundo (9,5) e a referncia piscina de
Silo (9,7.11) provem uma relao com a festa das Tendas que, evidentemente,
315
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Iluminao era um termo primitivo para a converso batismal (cf. Hb 6,4; 10,32 // Ef 5,8-14; Justino
Apologia 1.61.13). As perguntas e respostas em 9,35-38 podem refletir um interrogatrio batismal
joanino que levava o crente a confessar o nome de Jesus como o Filho do Homem que veio do cu. Na
arte primitiva das catacumbas, a cura do cego de nascena era um smbolo batismal.
Segundo Alberto Casalegno, provavelmente esta percope constitua, na origem, um texto autnomo,
que foi inserido nesse momento da narrao pelo autor para aprofundar a identidade de Jesus e
desvelar os mecanismos que comprometem a abertura para a f. O texto constitui uma unidade
literria, inclusa pelos termos cego/cegos pecar/pecado, nos vv. 1.41. Muitas expresses do
unidade ao texto: estou no mundo e vim a este mundo (vv. 5.39), abrir os olhos (sete vezes), o
termo ver que traduz os lexemas: (nove vezes), (quatro vezes), (uma
vez), (uma vez), os verbos lavar-se (quatro vezes) e conhecer (onze vezes). A insistncia
com que sublinhada a realidade do milagre tambm d unidade narrao (vv. 6-7.11.15.27). Cf.
CASALEGNO, A., Para que contemplem a minha glria, p. 288.
Este episdio segue-se ao encontro polmico entre Jesus e as autoridades judaicas em Jerusalm, no
Templo (7,1-8,59), e est a este intimamente ligado seja pela falta de novas coordenadas
espaciotemporais, seja pela expresso de transio ao passar ele viu, que se encontra em Mc 1,16;
2,14 e Mt 9,9.27. A ligao com os caps.7 e 8, relativos polmica com os judeus, tambm indicada
pelos seguintes elementos literrios: a frase: sou a luz do mundo (9,5) est relacionada com a
expresso: Eu sou a luz do mundo que Jesus proclama no ltimo dia da festa das Tendas (8,12). O
cego fica curado lavando-se na piscina de Silo (9,7), cuja gua possui grande importncia na liturgia
da festa (7,37-38). Os adversrios com os quais o cego se confronta tambm so os mesmos da festa,
isto , os judeus/fariseus (9,13.15.16.18.22.40;cf.7,1.2.11.13.15.32.35.45.47.48; 8,13.22.31.48.52.57).
Tambm os temas da f, da incredulidade e do juzo tm funo de ligao.
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Para Senn Vidal este episdio do cego de nascena aponta para a separao da comunidade de
discpulos do meio do judasmo. Cf. VIDAL, S. Los escritos originales de la Comunidad, p. 111.
significativo que a postura do homem bastante ativa no interrogatrio diante do Sindrio. No se
intimida e responde com firmeza. Isso tpico das comunidades crists quando colocadas diante da
oposio no calar, mas salientar a evidncia de sua f (At 4,13). Isso fator decisivo para entender
o comportamento diante das opresses da sociedade. A comunidade no era passiva. Mesmo que no
reagisse violentamente, ela desenvolvia sua prpria defesa.
211
Como vimos em 3,17-21, que Cristo veio no para julgar, mas para dar a luz e
quando essa luz aparece, ela inevitavelmente leva os homens a julgarem-se perante
ela; e o prprio Cristo o agente do juzo (), aqui tambm na cena judiciria do
cego, o homem que Jesus iluminou defende a causa da luz e ao ser expulso, Cristo
que os juzes rejeitam. Comea ento, o que Dodd chama de peripeteia dramtica.321
Jesus repentinamente inverte as posies contra os juzes e pronuncia a sentena: Eu
vim a este mundo para um julgamento: para que os cegos possam ver e os que vem se
tornem cegos... Se fsseis cegos, no sereis culpados; mas, uma vez que afirmais:
Somos os homens que veem, o vosso pecado ainda existe (9,39-41).
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Das 72 vezes em que ocorre a utilizao do termo (luz) no NT, 33 esto no Quarto Evangelho.
Cf. DODD, C. H., A interpretao do Quarto Evangelho, p. 463-464.
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Lv 21,16-24. Cuspir na terra e fazer o lodo com o p e o cuspe (quem recebia o cuspe de algum devia
ser condiserado impuro, cf. Nm 12,14) e coloc-los nos olhos do cego, Jesus coloca em relevo que
aqueles que tm sido alcanados por sua luz no deveriam ser considerados impuros, mesmo que
houvessem sido excludos da sinagoga. A comunidade da bno no mais freqentava a sinagoga,
mas a comunidade de discpulos de Jesus, a comunidade joanina.
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Os rabis tinham desenvolvido o princpio que no h morte sem pecado, e no h sofrimento sem
iniquidade. Eles foram capazes ainda de pensar que uma criana poderia pecar no tero ou que sua
alma pudesse ter pecado numa condio preexistente. Eles tambm afirmaram que punio terrvel
veio sobre certas pessoas por causa de pecado de seus pais. Cf. Nota da NIV Study Bible New
International Version. Grand Rapids, Michigan: Zondervan Bible Publishers, 1985.
A ausncia do artigo antes de luz salienta a diferena de qualidade de luz que Jesus quando
comparado com o Templo e Israel. Jesus luz eficaz que ilumina eficientemente o mundo, curando
seus enfermos, seja a enfermidade difcil ou no. O Templo nunca foi palco de uma cura durante toda
a sua histria. Era um lugar decadente como luz para os povos. Israel, por sua vez, era uma nao
tributria, dependente de outros povos para sua sobrevivncia. No tinha influncia sobre os povos ao
seu redor. Era tambm luz decadente, h muito tempo.
Dt 10,18; 14,29; 24,17; Pr 15,25.
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327
A parbola do Bom Pastor est ligada histria do cego de nascena, que terminava com a acusao
de cegueira dirigida aos fariseus. A eles, guias cegos, falsos pastores, que a parbola se refere. Para
confirmar esta conexo, podemos observar que em 10,21, concluso da percope do Bom Pastor,
aparece exatamente uma referncia ao milagre do cego.
Cf. KONINGS, Johan. Evangelho segundo Joo, p. 205.
215
Os pontos levantados contra Jesus por declarar-se Messias e a blasfmia por ter
dito que era o Filho de Deus (10,24) assemelham-se, na substncia, ao inqurito do
Sindrio, narrado pelos Sinticos pouco antes de Jesus morrer (cf. 10,24-25.36 e Lc
22,66-71). Confrontado com tentativas de apedrej-lo e de prend-lo, Jesus declara:
Eu e o Pai somos um (10,30); O Pai est em mim e eu no Pai (10,38), bem como
na frase: Eu sou o Filho de Deus. A pergunta surge espontaneamente do discurso
precedente. Jesus falou de si mesmo como o pastor do rebanho. Em Ezequiel o pastor
Davi, isto , o Messias. Justamente dentro do contexto, os judeus perguntam: s
tu o Messias? A afirmao de Jesus quase explcita, mas no decurso do dilogo,
ficamos sabendo o que o Messias realmente : o Filho que, sendo um com o Pai, o
Doador da vida eterna. A cena (10,22-42) comea com a pergunta: Se s o Messias,
dize-nos abertamente? (10,24). Segundo Dodd, o nico lugar nos Sinticos em que
uma pergunta semelhante feita Mc 14,61 (//Mt 26,63; Lc 22,67), onde o Sumo
Sacerdote pergunta: s tu o Messias, o Filho do Bendito? A isto Jesus responde
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desenvolvendo-a luz das suas concepes teolgicas e enfatizando o poder de Jesus. Cf. Para que
contemplem a minha glria , p. 313. Cremos que o autor no quer s fazer um resumo objetivo do que
aconteceu, mas tambm persuadir os seus leitores de que Jesus verdadeiramente o Filho de Deus e o
princpio da ressurreio, mostrando o sentido salvfico da ressurreio de Lzaro.
Marta, nesta seo, est fazendo o papel que se costuma atribuir aos interlocutores (Judeus) dos
dilogos joaninos; ela entende mal a frase de Jesus, para abrir caminho para maiores esclarecimentos:
Sei que ele ressuscitar no ltimo dia diz Marta. Eu sou a ressurreio e a vida a resposta.
218
quer vir aps mim, tome sua cruz e siga-me (Mc 8,34 e paralelos). Assim, este
episdio no apenas o relato do morto Lzaro ressuscitado para a vida: tambm a
histria de Jesus que vai enfrentar a morte a fim de venc-la. No episdio anterior nos
foi dito que o Bom Pastor vem para dar a vida a Seu rebanho, e que fazendo-o, ele d
sua vida pelas ovelhas (10,10-11). O episdio que agora estamos considerando se
adapta perfeitamente a este modelo.331
331
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evangelista faz sobre a histria que ele descreveu. Nos vv. 44-50, ele apresenta uma
sntese dos pontos mais importantes da pregao de Jesus. Repete de todos os modos
possveis os temas da vida, luz e juzo.
332
Referente a isso, Johan Konings diz que alguns judeus notveis e autoridades temem confessar Jesus
como Messias por medo da represso exercida pelo judasmo dominante. Temem ser expulsos da
comunidade sinagogal, o que para um chefe seria extremamente doloroso. E conclui: Como em 9,22,
esta observao pode visar o confronto da comunidade joanina com o judasmo, at nos anos 80-90.
Cf. Evangelho segundo Joo, p. 249.
220
Vrios exegetas consideram este discurso como estando fora de lugar. Pensamos que estes
versculos so uma insero posterior do redator. O discurso substancialmente joanino, como
mostram os temas, as expresses e o vocabulrio. Posto aqui, no fim, desempenha uma funo de
resumo de toda a pregao anterior de Jesus, num olhar retrospectivo e conclusivo.
221
Israel. Tudo isso concludo por uma solene afirmao de Jesus mesmo (v. 51): Em
verdade, em verdade, vos digo: vereis o cu aberto e os anjos de Deus sair e descer
sobre o Filho do Homem. Esta afirmao de Jesus uma promessa: Vereis.
Promessa cuja realizao j foi antecipada no Prlogo (1,14) e que veremos cumprida
imediatamente, em Can, onde os discpulos contemplaro a glria de Jesus (2,11).
Em 2,19-21 indicou-se que o Templo que o corpo de Cristo deve ser destrudo
e reerguido; e para os que esto de posse do segredo, a elevao do Filho do
Homem em 3,14-15 sugere o pensamento da cruz; mas a aluso fica sem explanaes.
Em 5,16-18334 temos a primeira meno da oposio que levar a uma ao assassina,
mas pelo momento nada transparece. Em 6,51 Jesus declara em termos velados que
ele d sua carne pela vida do mundo, mas no se d resposta pergunta: Como pode
ele dar-nos sua carne? No entanto, entendemos que o autor referia-se sua entrega na
hora da Paixo. A idia de elevao do Filho do Homem reaparece em 7,33-34 e em
8,28. Jesus fala de sua partida para um destino misterioso, em termos que so
recordados em 8,14.21-22. Todas estas passagens que aludem Paixo criam
perplexidade nos ouvintes, 335 mas o evangelista sabe muito bem aonde quer chegar e
mostra processualmente as razes (conflitos e tentativas de assassinato) que
conduziro a este fim. Charles Dodd, diz que em todo seu conjunto, os episdios
descritos no Livro dos Sinais, correspondem de certa forma, tanto s passagens dos
Sinticos, que descrevem os conflitos de Jesus com as autoridades, causando sua
priso e condenao (p. ex. Mc 2,13-36; 11,2712,12), como s que contm predies
explcitas da Paixo. O mtodo joanino de apresentar os fatos, continua Dodd,
superior em fora dramtica e em profundidade teolgica, mas tem o mesmo efeito de
334
335
Entos, os judeus, com mais empenho, procuravam mat-lo, pois, alm de violar o sbado, ele dizia
ser Deus seu prprio pai, fazendo-se, assim, igual a Deus.
Em 7,35 eles conjecturam que Jesus est planejando uma misso em terras estrangeiras; em 8,22, que
ele est pensando em suicidar-se.
222
chamar a ateno do leitor para o fato de que, da em diante, tudo o que se diz e se faz
acontece em vista de um irreconcilivel conflito, destinado a terminar com a morte de
Jesus.336
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223
distinguir entre palavra e sacramento, entre man e po; ficam desapontados em face
da encarnao e negam sua origem divina e seu significado salvfico para todos.
A vida eterna dom de Cristo (como vimos no cap. 3). Ele mesmo a d
livremente. A partir do captulo 6 vamos compreendendo que Jesus d a vida dando-se
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Diz Dodd que o discurso do pastor e do rebanho no pode ser perfeitamente compreendido sem
referncia a uma passagem do AT que deve ter estado na mente do autor. No captulo 34 de Ezequiel
ela se torna a base de um elaborado aplogo. O profeta comea denunciando os chefes corruptos de
Israel como falsos pastores do rebanho de Deus. Em vez de nutrir o rebanho, eles o pilham; em vez de
proteg-lo, deixam que vague desnorteado, com o resultado que o rebanho dispersado e devorado
pelos animais selvagens. Os pastores, portanto, devem ser depostos de seu ofcio, e o prprio Deus
guardar suas ovelhas como um pastor guarda seu rebanho. Ele as conduzir para fora do seu lugar de
exlio, reunir o rebanho disperso, e o conduzir para a terra de boa pastagem. (...) Salvar suas
ovelhas, e colocar sua frente um pastor, a saber, Davi (isto , o Messias da raa de Davi). Deus
ento aniquilar as feras e dar paz ao rebanho. A profecia termina coma proclamao enftica: E
vs, minhas ovelhas, vs sois o rebanho humano do meu pasto e eu sou o vosso Deus. Cf. A
interpretao do Quarto Evangelho, p. 464-465.
A profecia de Ezequiel em primeiro lugar uma sentena de julgamento contra os indignos chefes de
Israel, que so denunciados por roubarem e matarem as ovelhas (34,3) e por abandon-las aos animais
selvagens (34,8). Do mesmo modo, o discurso de Jo 10 acusa tanto aqueles que roubam, matam e
destroem o rebanho (10,1-10) como os mercenrios que abandonam o rebanho ao lobo (10,12-13).
Parece que est em vista a mesma espcie de crime. sobre os falsos chefes do povo de Deus que a
sentena pronunciada os mesmos que so submetidos a julgamento na concluso da cena de
julgamento em 9,41. Os fariseus expulsaram do rebanho de Deus o homem que o prprio Cristo
iluminara. Esto dispersando as ovelhas que Cristo veio reunir.
Notamos que em nenhuma parte do QE, exceto no captulo 9, se trata das relaes entre as autoridades
judaicas e o rebanho de Israel que est a seus cuidados, como distintas das relaes com o prprio
Jesus. No existe, pois, nenhum outro lugar onde o assunto dos pastores verdadeiros e falsos poderia
ser introduzido de modo to adequado.
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Em Ez 34 o severo julgamento sobre os falsos pastores conduz a uma promessa de libertao para o
rebanho. Da mesma forma, em Jo 10 os salteadores e mercenrios servem de contraste para o bom
pastor, que executa as funes de Davi, o nico pastor e do prprio Deus; pois para o autor do QE,
Cristo, como para Ezequiel Jav, quem conduz as ovelhas, fornece-lhes pastagens, as traz de volta
quando se dispersam, livra-as do lobo, e realiza a sua salvao. Mas no QE o quadro do bom pastor
enriquecido com traos que vo alm do crculo de idias de Ezequiel. Em particular, o pastor d s
ovelhas vida, ou, como diz o texto em 10,28 . Isto fornece ao evangelista a afirmao
mais clara que ele j se permitiu a respeito da Paixo de Cristo como um sacrifcio voluntrio e vicrio
de si mesmo.
Cf. PAINTER, J., John 9 and the interpretation of the Fourth Gospel, p. 38.
225
226
um homem cego de nascena (v. 1), no usando o termo , que possui o sentido
restrito de pessoa do sexo masculino, e sim o termo , menos especfico,
parece torn-lo representante de cada ser humano que se deixa iluminar pelo anncio
do Evangelho.343 Por outro lado, o autor faz dos judeus o paradigma de todos aqueles
que, no sabendo maravilhar-se diante do agir sempre novo de Deus, se opem
revelao. O drama que afligia sua comunidade , portanto, tambm o drama do ser
humano chamado a optar entre a luz e as trevas (12,37-43). Jesus a luz do mundo;
somente quem sabe reconhec-lo como tal deixa atrs de si a obscuridade que impede
de dar um sentido vida. 344
Cf. PAINTER, J., John 9 and the interpretation of the Fourth Gospel, p. 42.
Cf. CASALEGNO, A. Para que contemplem a minha glria, p. 294-299.
Cf. DODD, C. H., A interpretao do Quarto Evangelho, p. 475-476.
227
sentena de morte contra ele. Isto , este sinal de Betnia provoca a morte de Jesus, 346
embora no v. 47 a deliberao dos judeus de matar Jesus seja tomada em seguida aos
muitos sinais realizados por ele ( ). Resulta, assim, um paradoxo:
Jesus d a vida, ressuscitando um morto: os seres humanos tramam a sua morte.
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seu prprio esquema quanto salvao, a busca de um Deus milagroso. Esta parece
ser a inteno do autor ao apresentar estes modelos paradigmticos, como tambm
Nicodemos e o cego de nascena, representantes dos incrdulos presentes no seio da
comunidade joanina.350 Na linguagem joanina impossvel crer na palavra do Filho do
Homem sem sofrer um processo de separao no ntimo: preciso ser regenerado.
351
Johan Konings diz que o leitor poder depois comparar o comportamento do ex-aleijado com o
testemunho valente do ex-cego, no captulo 9, e espelhar nisso seu prprio crescimento na f (as duas
narrativas de cura tm muito em comum). Cf. Evangelho segundo Joo, p. 138.
Esses discursos no dizem respeito apenas aos presentes no cenculo e ao tempo entre a ceia e a cruz.
Dizem respeito aos discpulos de depois e ao tempo entre a ressurreio e a parusia. Dizem respeito
no propriamente aos discpulos no sentido de sucessores dos apstolos, e sim comunidade toda.
Estes captulos so na verdade uma descrio antecipada da existncia crist no mundo. obvio que
a se reflete de modo particular a condio da comunidade joanina e do seu tempo.
230
dos Sinais no existe nenhum exemplo desta doutrina, exceto o chamado dos
discpulos em 1,37-51, a breve conversa com os discpulos junto ao Poo de Jac em
4,31-38 e a cena da confisso de Pedro em 6,66-71.352
Apresentamos antes o Livro dos Sinais como uma histria de rejeio, como o
prprio autor o caracterizou. Aqui novamente encontramos uma relao com este
tema: a rejeio de Cristo pelos Judeus e a rejeio destes por Deus, conforme fora
declarado por Isaas (12,37-42). Assim se realiza a afirmao do Prlogo: eivj ta. i;dia
h=lqen( kai. oi` i;dioi auvto.n ouv pare,labon Veio para o que era seu e os seus no o
receberam; mas continua, o[soi de. e;labon auvto,n( e;dwken auvtoi/j evxousi,an te,kna qeou/
gene,sqai Mas a todos que o receberam deu o poder de se tornarem filhos de Deus
(1,11-12). Os captulos que tratam da rejeio de Cristo devem ser completados pelos
352
231
que falam da bem-aventurana daqueles que o recebem, e por ele se tornam filhos de
Deus. Estes so representados pelo fiel grupo que fica com Jesus quando sai o traidor.
353
354
O termo ko,smoj (mundo) assume trs conotaes diferentes no QE: A primeira, neutra, entende o
mundo como o lugar onde vive a humanidade e onde se desdobra a histria. A segunda, positiva,
entende o mundo como o conjunto das pessoas humanas, s quais o Pai proporcionou o dom de seu
Filho e em prol das quais o Filho se deu a si mesmo. A terceira representa o conjunto das foras hostis
que procuram impedir o desdobramento do desgnio de Deus. Este o mundo que odeia o discpulo. J.
Konings diz que esse mundo (no sentido hostil) no se deixa identificar sem mais com o sistema
poltico (o poder absoluto do Imprio Romano servindo-se da hegemonia local dos judeus), nem com
o sistema econmico-social (mercantilismo, concentrao dos meios de produo e escravismo), nem
com o sistema cultural (cultura global do helenismo) ou religioso (a religio lcita do judasmo no
Imprio Romano). O mundo tudo isso e muito mais! (...) o domnio do opositor de Deus o
dibolos, o chefe deste mundo. Cf. KONINGS, Johan. Evangelho segundo Joo, p. 37 No mundo,
no do mundo. Meditao sobre Joo e a cultura, p. 67-74.
No contexto das advertncias sobre perseguio, Jesus acrescenta (Jo 16,4) que ele no advertira
antes os discpulos porque no era necessrio, enquanto ele estava com eles. Ele os avisa agora para
que no fiquem escandalizados estando despreparados para a tribulao depois de sua partida (Jo
16.1). Cf. DODD, C. H., A interpretao do Quarto Evangelho, nota 518, p. 531. J. Konings
comenta esses versculos dizendo que seu tema principal a exatamente a perseguio que a
comunidade de Jesus sofre da parte do mundo no caso particular, da parte da Sinagoga. Cf.
232
ltimo discurso joanino assemelha-se parte final do discurso de Jesus antes da Ceia
em Mc 13,9-13 (cf. tambm Mt 10,17-22).
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Cf. 1,7.8.15; 5,31.32.36.37.39; 7,7; 8,13.14.18; 10,25; 15,26; 18,23; 21,24. Fala-se de testemunho
humano em 2,25; 3,28; 12,17; 18,23.
No texto joanino outros lexemas indicam a existncia de um processo em curso. Um deles o verbo
, que significa provar o erro, demonstrar, em tribunal, a culpa de algum, confutar,
referente queles que se recusam a vir luz (3,20; 8,46; 16,8). Tambm o verbo julgar () e o
termo juzo (), encontrados abundantemente no texto, sempre com o sentido negativo de
pronunciamento de condenao contra um culpado (3,17.18; 5,22.30; 7,24.51; 8,15.16.26.50;
12,47.48; 16,11; 18,31 e 3,19; 5,22.24.27.29.30; 7,24; 8,16; 12,31; 18,8.11). A esses deve-se
acrescentar o lexema discriminao ( - 9,39), posto nos lbios de Jesus, que manifesta o que
h no corao do ser humano. Tambm os verbos menos freqentes interrogar (, 1,19.21.25;
5,12; 9,15.19; 18,19.21), confessar (, 1,20; 9,22; 12,42), negar (, 1,20; 13,38;
18,25.27), e vencer (, 16,33) devem ser interpretados em sentido jurdico.
Sabe-se que nos processos hebraicos comparecem o acusado e o acusador. Para ambas as partes h
testemunhas de defesa (Pr 14,25; Is 43,9-12) e testemunhas de acusao (1Rs 21,8-13), que trazem
provas a favor ou contra os contendores. Acima das partes est a figura do juiz. Os defensores, mais
que verdadeiros advogados, so testemunhas que procuram justificar quem suspeito de culpa. Falta o
ministrio pblico. Para evitar a falsidade e garantir a justia, as testemunhas so controladas pelos
juzes (Is 16,5; Dn 13,50), ainda que esses nem sempre sejam imparciais (Sl 27,12; Pr 6,19). Aps ter
escutado as vrias partes, o tribunal pronuncia a sentena que tenta restabelecer a justia.
o mesmo processo que em 9,35-41, s que o Esprito entra no lugar de Cristo.
Cf. DE LA POTTERIE, La vita secondo lo Spirito, p. 115.
235
363
364
365
236
Nos vv. 21-23 Jesus reza antes de tudo pela unidade dos discpulos: a unidade
mais ampla ser atingida mediante a deles. Fundamento da unio o nome de Deus:
nome que o Pai tem dado ao Filho e que o Filho manifestou aos discpulos (v. 6). A
expresso guarda-os em teu nome evoca a idia de proteo (cf. Sl 53,3). A unidade
uma vitria do poder divino sobre o pecado que a diviso. A unio do Pai e do
Filho o modelo e a fonte desta unidade. Nos versculos seguintes Jesus ora por
aqueles que acreditaro nele por meio da palavra dos discpulos uma orao para
que eles sejam um, tal como o Pai e o Filho so um. Uma unidade levada a cabo entre
os crentes seria convincente para o mundo: a fim de que acreditem. A comunidade
deve modelar-se sobre Deus, imagem de comunho; um dilogo de amor e de
conhecimento entre o Pai, o Filho e o Esprito. Diante dessa insistncia do autor,
podemos supor que os membros no eram unnimes, e causavam escndalos com a
diviso entre eles. Konings diz que a presena do tema do amor no v. 23 faz pensar
que a orao pela unidade visa tambm unidade interna da comunidade ou das
comunidades joaninas. As comunidades, tanto para dentro como para fora, devem ser
imagens da unidade de Jesus e o Pai e do amor que a partir deles se irradia. por essa
inteno que justamente Jesus reza.366
237
aonde Jesus e seus discpulos foram depois da ltima Ceia o Getsmani ou o Monte
das Oliveiras. O evangelista narra que Jesus cruzou o ribeiro do Cedron em direo a
um jardim. A orao ao Pai a fim de ser livrado daquela hora, encontrada nesse
contexto em Mc 14,35, apareceu previamente em 12,27-28, de modo que toda a cena
joanina concentra-se na priso, na nsia de Jesus em beber o clice que o Pai lhe deu
(cf. Mc 14,36). Existem traos particularmente joaninos: Jesus, sabendo que Judas
estava vindo, vai-lhe ao encontro, e quando Jesus se identifica com as palavras Sou
Eu, o grupo que viera para prend-lo, formado pela polcia judaica e por uma
coorte de soldados romanos, recua e cai por terra diante dele. 368 Aqui, o autor
joanino manifesta suas intenes em indicar quem realmente condena Jesus. Ambos,
poder judaico e romano, so instrumentos manipulveis nas mos do chefe deste
mundo (Judas/Satans).
Notamos, porm, que Judas tem uma parte marcante e ativa na cena da priso. O
autor parece indicar que Satans entra nele, tornando-o assim responsvel pela traio
( , vv. 2.5b um particpio presente que indica a sua situao enraizada
no mal (6,7; 12,4; cf. 13,21), instrumento manipulado, como disssemos acima. Judas
revela-se aliado das trevas. O autor o considera um representante de Satans (13,2.27;
cf. 18,30), pensando talvez naqueles que ameaam a unidade da comunidade. 369 Em
contraste com Judas, agiganta-se a figura de Jesus, cuja majestade se manifesta na
parte central da percope (18,4-9). Ele no aparece como oprimido e angustiado (Mc
14,33-35), mas como perfeitamente consciente daquilo que est para acontecer, como
368
369
238
indica a expresso sabendo tudo aquilo que estava para acontecer (, 18,4;
13,1.3). mostra-se senhor dos eventos, exibindo plena autoridade em relao aos
adversrios. Jesus se entrega livremente sem dar chances para Judas entreg-lo
traioeiramente. Isso corresponde sua soberania que domina toda a Paixo no QE:
ouvdei.j ai;rei auvth.n avpV evmou/( avllV evgw. ti,qhmi auvth.n avpV evmautou/ evxousi,an e;cw
qei/nai auvth,n( kai. evxousi,an e;cw pa,lin labei/n auvth,n Ningum a tira [vida] de mim,
mas eu a dou livremente. Tenho poder de entreg-la e poder de retom-la 10,18.
239
antagonistas.370 Unicamente o autor explica de forma clara por que Jesus foi levado a
Pilatos (18,31: os judeus no tinham permisso de sentenciar ningum morte) e por
que razo Pilatos emitiu uma sentena de morte mesmo sabendo que Jesus no
merecia tal punio (19,12: ele seria denunciado ao imperador por no ter sido
diligente na punio do assim chamado rei). Jesus, que de forma alguma fala a Pilatos
nos outros Evangelhos, explica que seu reino no poltico; ademais, os Judeus
admitem que o verdadeiro problema no a acusao de ser o Rei dos Judeus 371,
mas o fato de Jesus ter pretendido ser Filho de Deus (19,7). Diante do procurador que
procura libertar Jesus, reconhecendo por trs vezes a sua inocncia (18,38; 19,4.6), os
judeus afirmam este fato, que jesus se fez Filho de Deus. A acusao poltica se
cruza com a religiosa.
371
Esta seo tambm descrita com verbos de movimento dando ritmo narrao: conduzir, entrar
e sair; por diferentes indicaes espaciais: dentro, fora e temporais, bem como pela ocorrncia
constante da partcula ento/pois (). Os sete quadros nos quais se divide a cena so: 18,28-32;
18,33-38a; 18,38b-40; 19,1-3; 19,4-7; 19,8-12; 19,13-16a).
A expresso rei dos judeus aparece em 18,39; 19,3; o ttulo de rei em 18,37s; 19,12.14.15; o
termo reino em 18,36. Na frase: Tu s o rei dos judeus? (18,33), o pronome pessoal tu, em
provvel posio enftica, pode indicar que Pilatos custe a crer que Jesus, que lhe parece um ser
indefeso seja um libertador do povo.
240
372
Charles Dodd escreve: Conclui-se que a realeza libertadora que Cristo exerce o Reino de Deus
(embora o evangelista no use o termo neste sentido). (...) E ainda: Cristo a avlhqei,a|\ em pessoa (Jo
14,6), assim como ele a palavra. Cf. DODD, C. H., A interpretao do Quarto Evangelho, nota
544, p. 559-560.
241
processo de Jesus, com seu resultado, ilustra o que se exprime em 12,31: nu/n kri,sij
evsti.n tou/ ko,smou tou,tou (E agora o julgamento deste mundo).373
373
374
Podemos chamar este recurso do autor do QE de procedimento estilstico da inverso dos papis (J.
Blank) ou mesmo de ironia. Por disposio do autor a Paixo desenvolve-se em dois planos,
permitindo, portanto duas leituras, no nvel da f e no nvel da aparncia. Toda esta cena, como
muitas outras do QE, deve ser entendida simultaneamente em dois planos diferentes: plano histrico e
plano espiritual. O primeiro evoca e sugere o segundo, a realidade sensvel tornando-se assim sinal e
smbolo da realidade religiosa. Cf. MAGGIONI, B. O Evangelho de Joo, p. 463.
Cf. KONINGS, Johan. Evangelho segundo Joo, p. 330.
242
376
Na antiguidade, h exemplos de uso de vrias lnguas nas inscries sepulcrais, mas bastante
estranho que isso tenha acontecido para tornar pblico o crime de um condenado morte; provvel
que com esse detalhe o autor joanino queira declarar que a realeza de Jesus possui uma importncia
universal, como tambm poderia ser uma reafirmao da divindade de Jesus para os que na sua
comunidade continuavam a contest-la e neg-la, rejeitando Jesus como Filho de Deus. A prpria
resposta de Pilatos, com um verbo no perfeito grego: o que escrevi est escrito ( ,
), indica que a declarao tem um valor perene e definitivo. O evangelista joanino afirma
assim, que apesar da rejeio judaica, Jesus verdadeiramente o rei-Messias de Israel. Ele se torna rei
com sua oferta sacrifical. O momento do supremo holocausto corresponde, pois, ao do seu triunfo e da
manifestao gloriosa da sua realeza, reconhecida universalmente como tal. Cf. CASALEGNO, A.
Para que contemplem a minha glria, p. 229-230.
O autor do QE registra que Jesus no se encontra s, mas ao p da cruz inicia-se aquela comunidade
de crentes que uma palavra anterior de Jesus (12,32) declarou ser o fruto de sua morte. Quando for
enaltecido da terra atrairei todos a mim. Para o evangelista, a comunidade messinica nasce da cruz.
243
que Jesus o Senhor crucificado e enaltecido. Olhar para ele ser atrado para a
verdade, a salvao (12,32-33). Tpico deste evangelista ainda Nicodemos (3,1-2;
7,50-52) como atestamos antes, que no admitira abertamente acreditar em Jesus;
agora reaparece e publicamente oferece um sepultamento digno a Jesus. Como modelo
para os leitores membros da comunidade joanina, Nicodemos reaparece confiante e
sem medo (dos judeus, v. 39), demonstrando a todos que renasceu radicalmente da
gua e do Esprito e capaz de acolher e testemunhar Jesus.
377
244
378
Jesus fez ainda, diante de seus discpulos muitos outros sinais que no se esto escritos neste livro.
Estes, porm, esto escritos para que creiais que Jesus o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo,
tenhais vida em seu nome.
245
246
animada pelo amor e pelo respeito, banindo toda tentao de autoritarismo (Mc 9,3337; 10,35-40).379 As ovelhas no pertencem a Pedro, mas continuam a ser de Jesus,
conforme especificam as expresses: as minhas ovelhas, os meus cordeiros. Por
isso Pedro, a exemplo de Jesus, deve mostrar a sua total dedicao ao encargo
recebido, at o sacrifcio pessoal pelo rebanho, como de fato aconteceu (21,18-19).380
De tudo que afirmamos resulta que nos primeiros tempos da sua existncia, a
comunidade joanina deve ter preferido uma estrutura carismtica, tornando-se, mais
tarde, uma organizao hierarquizada, valorizando a funo de Pedro, diante dos
perigos do fracionamento interno, como vimos nos conflitos anteriores e presentes no
QE. Observa-se um sinal desse processo no texto de 3Jo 9, onde se afirma sem
critic-lo que Ditrefes ambiciona o primeiro lugar (), isto , deseja
o lugar de primeiro responsvel pela Igreja. Esses elementos explicam por que a
comunidade joanina, embora brilhante por sua alta teologia, foi bastante frgil e
plural no seu interior. As divergncias e controvrsias revelam-se fortemente no seu
seio, exigindo mais ordem e guia, disciplina e organizao. A disputa, portanto, entre
o cristianismo joanino e o petrino no se concentrou em temas cristolgicos, mas em
questes de discipulado. O captulo 21 reconhece a liderana da solicitude pastoral de
Pedro, mas unicamente com a condio de que ele ame Jesus, ou seja, que adote a
liderana altrustica advogada pelo Jesus joanino (21,15-19).
247
prpria entrega que Cristo faz de si no Getsemni, a transferncia de sua causa para o
tribunal romano, sua apologia contra a acusao de pretender a realeza, o modo como
ele morreu, e o derramamento de sangue e gua de seu corpo aps a morte. Cada um
destes detalhes evoca por associao uma srie de idias j expostas no decurso das
partes anteriores e as concentra neste evento capital. Dodd diz que difcil no
perceber que os motivos de toda uma srie de shmeia esto reunidos neste shmei,wn
supremo:
381
248
Conclumos com mais clareza que toda a segunda parte do QE (13 20) ilumina
e esclarece a primeira (1 12). luz da ressurreio e glorificao de Jesus que
entenderemos os enunciados anteriores sobre a sua hora; entenderemos tambm o
significado dos sinais e imagens escolhidos pelo autor e usados por Jesus. Toda a
narrao ordenada para a descrio da hora em torno da qual giram os tempos e os
eventos que a precedem e a seguem. Atravs deste esquema da hora, o autor
conceitualiza, em um crescente de eventos, a sada de Jesus e dos seus do drama do
no-reconhecimento, da situao de minoria exposta hostilidade dos Judeus,
382
249
383
384
Johan Konings diz que para o autor do QE o termo mundo indica um tempo-espao que dominado
pelo chefe deste mundo e destinado perdio. Para o autor a vida eterna comea desde j, na opo
de f. E ainda: significativamente, o autor prefere indicar o tempo-espao presente no kosmos (grego
para mundo), sendo que kosmos traz a conotao de cosmtico, bonito, brilhoso, harmonioso...
Parece que o autor quer sugerir o falso brilho deste mundo, bonitinho, mas ordinrio. Cf. No mundo,
mas no do mundo, p. 67-68.
Cf. KONINGS, Johan. Evangelho segundo Joo, p. 364.
250
251
Segundo nossa anlise das duas grandes partes do QE, constatamos que o
prprio texto nos d informaes sobre o autor e sua comunidade. O Livro da Glria
determina a perspectiva do primeiro Livro, e o Livro dos Sinais constitui a memria
que aprofundado no Segundo Livro. Toda a atividade pblica de Jesus (os sinais
caps. 1-12) adquire significado e sentido na Paixo (que a hora, a glria de Jesus
caps. 13-20). O autor escreve aos seus destinatrios conduzindo-os em um itinerrio
de f que vai crescendo, em meio a vacilos e quedas, descrena e incredulidade, at
maturidade de um adulto que, com radicalidade, opta por Cristo. Vimos que um
processo de iniciao de discipulado. Alguns personagens so apresentados como
modelo-tipo que representam justamente figuras reais da comunidade que atravessam
situaes de dvidas na busca da verdade. Konings diz que a relao autordestinatrio muito intensa e se poderia at afirmar que o autor est mais interessado
na reao de f de seu destinatrio do que na histria de Nicodemos ou do cego que
ele est contando. J dissemos isso nos captulos anteriores, mas reafirmamos aqui
385
252
esta transposio que faz o autor entre a histria e o destinatrio, como mostra o
esquema:
Autor
Destinatrios
Narrador
literrio
Como se d na realidade
Membros
da
comunidade
Toda a narrativa que o autor faz da vida de Jesus segue um gnero dramtico
que se aproxima do gnero literrio dramatrgico, como se estivesse escrevendo para
ler ou representar num palco-teatro. Podemos assim supor, como faz ainda Konings,
que no ambiente cultural do QE, o teatro era um elemento muito forte para a catequese
e a educao da f. Para ns, esse carter dramatrgico um estilo prprio do
escritor, intencional em cada narrativa do texto. Esclarecemos que a preocupao do
autor tornar as cenas visveis, interessantes e reais, da o recurso ao drama literrio.
Porm, no podemos pegar tudo ao p da letra. Entretanto, tambm frisamos, esta
estratgia literria demonstra a familiaridade e a capacidade do autor em reler e
reescrever a histria da vida de Jesus e a histria da vida da comunidade com arte
retrico-teolgica, isto , em dois nveis, atravs dos smbolos, da duplicidade
(dualismo), da ambigidade. A consistncia dos personagens presentes no texto
joanino realmente histrica e confirmada pelos outros Evangelhos. Somente a
roupagem-fantasia deles diferente. A linguagem expressa-se com uma
terminologia especfica, com duplo sentido, ironia, mal-entendido. Todavia, tornam-
253
387
388
Johan Konings os descreve assim: Pedro, o impulsivo; Andr, o singelo; Filipe, o sbrio; Tom, o
realista; Nicodemos, o medroso; Caifs, o cnico; Pilatos, o ctico. Natanael, a Samaritana, Maria de
Betnia, Maria Madalena e o Discpulo Amado tambm recebem descries detalhadas no QE. Cf.
Evangelho segundo Joo, p. 19, 28. Elisabeth Fiorenza diz a esse respeito que para o evangelista as
figuras: Maria de Nazar, a mulher samaritana annima, Marta e Maria de Betnia (e talvez a adltera
annima que no foi julgada, mas salva por Jesus) so paradigmas do discipulado apostlico das
mulheres, assim como tambm de sua liderana nas comunidades joaninas. Como tais, elas no so
apenas paradigmas de discipulado fiel a serem imitados pelas mulheres, mas tambm por todos os que
pertencem comunidade-famlia que Jesus chama de seus. Cf. As origens crists a partir da
mulher, p. 381.
O QE o nico a usar o termo messias, fornecendo inclusive sua traduo (1,41; 4,25); o que mais
usa, entre os quatro evangelistas, o equivalente grego de messias, (Mt 17, Mc 7, Lc 12, Jo
19). O tema da messianidade , para ns, um dos temas importantes do conflito na comunidade
joanina, pois est central na escolha cristolgica do autor. Johan Konings aborda este tema em seu
artigo: O tema do Messias no QE, e diz que no QE h uma afirmao explcita da messianidade de
Jesus: 1,19; 4,25.26; 6,14-15.66-70; 7,25-26.46; 9,17, 12,20-52; 18,28-19,16; 19,18-22; Cf. EstBib 52,
1997, p. 88-98.
Cf. Id., p. 52.
254
Mauro Pesce diz que os estudos antropolgicos mostraram que o incio de uma
nova atividade em geral pressupe uma mudana de atitudes, de mentalidade, de
relaes e normalmente uma separao radical do ambiente familiar ou daquele da
389
Senn Vidal diz que a situao traumtica que a comunidade joanina vivia foi ocasio para um novo
nascimento, que todo o QE uma obra etiolgica, de justificativa. Com isso entendemos melhor o
tom dramtico confessional, de denncia e juzo, presente no texto. Cf. VIDAL, Snen. Los escritos
originales de la Comunidad, p. 44-46.
255
comunidade de origem, seja esse qual for. A separao finalizada ao incio de uma
nova existncia, na qual viro, porm sucessivamente recuperados os ambientes de
pertena e as pessoas. Inicia-se um grupo que tem Jesus ao centro e os discpulos ao
seu redor, como tambm pode ter a presena da me e dos irmos de Jesus, como
acena o evangelista joanino. 390
390
256
Para ns, esta a estrutura literria esttica e dinmica usada pelo autor como
resposta retrica s vrias dvidas e polmicas da sua comunidade. No duvidamos
que o QE fruto de uma vivncia conturbada da(s) comunidade(s) joanina e que,
desta forma, nos fornece a dinmica dramtica das mesmas. Por isso e para isso o
autor faz uma mistura ao mesmo tempo literria e funcional, temporal e espacial,
histrica e teolgica, cristolgica e eclesial, usando continuamente da ironia literria
391
392
393
257
394
A ironia joanina tem o objetivo de mostrar ao leitor a verdadeira importncia da revelao de Jesus,
permitindo-lhe aderir com segurana ao anncio evanglico. Cf. CULPEPPER, R. A., Anatomy of the
Fourth Gospel, p. 165-180; MANNUCCI, V., Giovanni il Vangelo narrante, p. 67-81.
258
CAPTULO IV
AS FIGURAS DE ABRAO, JESUS E O DIABO
NO CONFLITO DA COMUNIDADE JOANINA
259
398
As figuras de Abrao do
397
398
Diz Josef Blank que sem o Jesus Histrico, por cuja situao no mundo geogrfico e histrico, com
todos os meios possveis, se preocupa, no existe para o telogo, nem para o evangelista, cristianismo
algum. Mas, da mesma forma vlido: sem a comunicao literria e a interpretao da mensagem de
Jesus, do kerigma, aos ouvintes da sua sociedade, com o seu ambiente cultural marcado pelo meio
intelectual e social, com o seu linguajar helenstico ou outra forma, ao qual ele mesmo se sente
preso, a mensagem de Jesus permanece fechada e no frutifica. O carter missionrio do Evangelho
o empurra, por assim dizer, para frente. Cf. Id., p. 12.
Cf. MARTYN, J. L., History and Theology in the Fourth Gospel, 1968.
Cf. KONINGS, Johan. O tema do Messias no Quarto Evangelho, p. 92.
260
como que dentro de um julgamento, demonstrando assim ser esses pontosd e grande
importncia nas questes fundamentais da f judaica e crist no perodo em que a
comunidade joanina buscava sua afirmao no confronto com a Sinagoga judaica.
401
Cf. PALLARES, Jos C., Jesus, a luz que ilumina e que pe em evidncia (Jo 9,1-41), p. 38.
Fortna, um estudioso do QE, diz: possvel que muitas das diferenas e peculiaridades deste
Evangelho tenham sido afetadas na sua composio devido a expulso da Sinagoga e a ruptura com o
judasmo. Cf. FORTNA, Robert T., The Fourth Gospel and its predecessor, p. 224.
Cf. COTHENET, E., Escritos de Juan, p. 85-87.
261
ensinamentos de Jesus. isto j uma estratgia literria joanina. Supomos que esta
Festa das Tendas, muito popular, serviu como base e fonte para a encaixar o conflito
da comunidade joanina em determinada fase da sua histria. Os elementos desta Festa
so justamente os motivos aproveitados pelo autor para responder s questes
debatidas e discutidas dos conflitos no seio da sua comunidade.402 Sabe-se que as
tradies judaicas concernentes Festa das Tendas esto contidas na Mishnah. O
tratado Succa conserva tradies que certamente remontam poca de Jesus, e mais
ainda da comunidade crist joanina. Neste tratado (cap. 4,5) se descreve que, durante a
Festa, os peregrinos e os habitantes de Jerusalm, como j acenamos anteriormente,
faziam um giro processional ao redor do altar balanando seus ramos (loulav). Mas no
stimo dia, esta procisso, ao redor do altar era feita sete vezes. E ao longo desta
cerimnia, o salmo 118 era cantado. A multido repetia o refro: Senhor, salva-nos!,
Senhor, dai-nos prosperar!. A tradio judaica aplicou este salmo a Abrao. O justo
perseguido e libertado por Deus Abrao. Na histria da salvao, Abrao um tipo
de pedra angular como se diz no salmo (v. 22).
A tradio judaica tambm faz uma ligao entre a Festa das Tendas com o
julgamento de Israel. Todos os elementos presentes neste salmo 118 no poderiam ter
passado despercebidos pelo autor e sua comunidade quando redigiu seu texto
evanglico. H um contato temtico entre a percope 8,31-59 e o salmo 118. Frderic
Manns, na sua pesquisa sobre o gnero literrio desta percope, chega mesmo a se
perguntar se legtimo levantar a questo: Jo 8,31-59 no seria um midrash do salmo
402
O simbolismo e as cerimnias da gua e da luz so utilizados como imagens para exprimir o contedo
da revelao que liberta da mentira radical e escravizadora. A gua a imagem, o contedo da misso
de Jesus como comunicador e doador do Esprito (cf. 7,37-39). A luz evoca a mediao de Jesus como
o revelador definitivo da verdade (cf. 8,12), cujo testemunho em unio com o Pai realiza o julgamento
verdadeiro (cf. 8,16). Jesus se manifesta superior a Moiss e a Abrao e atribui-se a si mesmo o
mistrio do Nome divino Eu Sou, afirmando-se o revelador enviado (cf. Ex 3,14; Dt 32,39; Jo
8,24.27.57).
262
118?403 Podemos pensar que sim. O tema do justo perseguido forma a trama do
captulo 8 do QE. Todo o texto ritmado pelo refro: Vs quereis me matar. O
midrash judaico ilustra este tema pela figura de Abrao. O autor-redator da percope
analisada sublinha igualmente o lugar de Abrao, mas v no personagem Abrao um
precursor de Jesus.404 Outro tema presente no salmo 118 o de Jav que salva. Na
percope 8,31-59 se diz que a Palavra que liberta. So aproximaes que nos
confirmam o quanto o evangelista reelaborou suas tradies e reescreveu sua
mensagem. Usou de tcnicas e procedimentos hermenuticos dentro do seu contexto
religioso e cultural, pois sabia que seus leitores poderiam compreend-lo. Ele
demonstra ser habituado a procedimentos literrios rabnicas. Sua provvel formao
judaica, seu conhecimento rabnico e sua habilidade literria influenciaram a releitura
e a interpretao das Escrituras e do evento Jesus Cristo.
A percope 31-59 est inserida dentro do grande bloco dos captulos 78 que o
ncleo central da teologia dos sinais e do julgamento. Trata-se da manifestao da
mentira e da verdade. Jesus o revelador definitivo da verdade, que comunica o
Esprito. Este bloco ainda a realizao do grande conflito messinico, j anunciado
em 1,4-5, no qual se d a revelao ltima sobre a verdade de Jesus, por ocasio da
Festa das Tendas, o tempo de esperana da manifestao escatolgica de Jav, o Deus
de Israel. Reafirmamos que a percope joanina 8,31-59 sim fruto redacional do autor,
mas no um texto sem traos histricos, puramente inventado por ele, sem referncia
403
404
Mas seria um midrash cristo, segundo este autor. Cristo que se torna o centro do midrash. Torna-se
ele mesmo categoria hermenutica: ele que interpreta e d o sentido final ao texto sacro. Como na
nossa percope: a comparao entre Abrao e Jesus. O patriarca no existe seno em vista de Jesus.
Ele se alegra ao ver o seu dia. Com isso, o autor convida os Judeus, em nome da comunidade crist, a
reler a Escritura para encontrar nela uma preparao a Cristo. Cf. MANNS, Frdric, la verit vous
fera libres, p. 177, 194s.
O autor, com a comunidade joanina, rel as Escrituras para mostrar que Jesus o cumprimento das
Escrituras. Por isso a f nele deve ser segura e firme. Ele o Messias prometido. Por isso foi
inevitvel a separao entre a comunidade judaico-crist do judasmo ps-70. claro que a
interpretao do AT feita pela comunidade crist primitiva diferente da interpretao da Bblia feita
pela comunidade judaica!
263
Cullmann diz que este resultado importante para a exegese do QE, pois se tal o intento desse
Evangelho, isto , se intencionalmente quer falar por sua vez de fatos nicos e de sua prolongao na
histria da salvao, o exegeta do QE deve considerar como seu dever levar em conta esta inteno de
abarcar, ao mesmo tempo, esses dois aspectos em todas as partes do livro. No deve se contentar em
examinar um fato unicamente sob o ngulo material, mas necessrio propor, de uma maneira
sistemtica, a questo de saber que fato atual o autor v prefigurado em tal acontecimento da vida de
Jesus. Isto no cair de nenhuma maneira na alegoria. O evangelista tem confiana nesta faculdade de
compreenso que o Parclito comunica tambm ao leitor. Cf. CULLMANN, Oscar, Das origens do
Evangelho, p. 103-104.
264
Na proclamao do kerygma (anncio), Jesus anunciado como Messias (At 5,5) e como Filho de
Deus (At 9,20).
265
FORMA
JOO 8
Declarao
31-32
38
41a
51
56
Mal-entendido
33
39a
41b
52-53
57
Explicao
34-37
39b-40
42-47
54-55
58
266
Em nossa anlise literria notamos que os temas que fazem aluso a Abrao,
seus dois filhos e suas obras so elementos, escolhidos pelo autor, que do unidade
percope. Aqui, Jesus apresentado como um juiz, que nos versculos 31-43
desmascara a falsidade dos que se dizem seus discpulos; em 8,44-47 Jesus
formalmente acusa esses discpulos de criminosos, assassinos e mentirosos.
Finalmente, em 8,48-59, Jesus conduz o acusado a provar seu ataque, que eles so
deste mundo porque recusam confess-lo como o Eu sou, e por isso iro morrer nos
seus pecados. O tom, claramente acentuado pelo autor, agressivo. Jesus, como juiz
num processo judicial, pe a prova e ao descoberto os pseudo-crentes. A narrativa
joanina usa termos tcnicos legais de um julgamento (como a cognitio) para examinar
o testemunho e as provas do acusador para ver se verdadeiro ou falso. Jesus declara
com firmeza logo no incio: Se permanecerdes na minha palavra, sereis, em verdade,
meus discpulos (8,31). Mas, como chegar verdade? Na sua cognitio do caso, o juiz
far uma srie de declaraes formais de que os acusados devero se defender; e
dependendo das suas defesas, o juiz saber se eles esto dizendo a verdade ou no, o
que justificar a condio afirmada no comeo em 8,31. O prprio mal-entendido
expresso nas palavras dos falsos discpulos ilustra que eles no permanecem na sua
palavra. Jesus afirma que eles no so livres, nem descendentes de Abrao, mas
so escravos e filhos do diabo, porque, como demonstram, querem mat-lo e a palavra
de Jesus no penetra neles (8,32-37).407
407
Cf. NEYREY, Jerome H., An Ideology of Revolt. Jonhs Christology in social-sciency perspective, p.
37-58. Neste livro, o autor apresenta Jesus como sendo um juiz com poder escatolgico que nesta
percope 8,31-59 exerce sua igualdade com Deus Pai e Senhor da vida porque possui a vida em si
mesmo (Antes de Abrao existir/Eu Sou) Isso demonstra ainda a alta cristologia da comunidade
joanina que produziu este texto.
267
408
Werner de Boor escreve, em seu comentrio ao Evangelho de Joo, que a vontade assassina dos
Judeus, reflexo do dio a Jesus que diz a verdade, h de se manifestar e ser gritado: Fora! Fora!
Crucifica-o! (19,15). Cf. Evangelho de Joo I, p. 220.
268
1. Livres
1. Escravos
B. O pai Deus
B. O pai o diabo
C. Verdadeiros discpulos
C. Falsos discpulos
palavra
3. E vocs me desonram
3. Eu honro meu pai
4. Vocs nunca o conheceram
4. Eu o conheo
409
J. Neyrey diz que na tradio evanglica, o julgamento utiliza este mesmo teste de distino para
provar a validade e a autenticidade, separando o bom do ruim, como por exemplo, nas cinco parbolas
de Mateus: 13,36-43 = separao do trigo do joio; 13,47-50 = separao do peixe bom do ruim; 22,1114 = separao dos convidados com roupa nupcial daqueles sem; 25,1-13 = separao das virgens
prudentes das insensatas; 25,31-46 = separao das ovelhas dos cabritos. Cf. NEYREY, J. H., An
Ideology of Revolt. Jonhs Christology in social-sciency perspective, p. 51.
269
4.1
A filiao de Abrao
Certamente as primeiras geraes crists tiveram uma conscincia muito viva de
ser herdeiros da eleio, da promessa e das bnos recebidas por Abrao. Por isso
mesmo, logo cedo, se puseram a pergunta: Aqueles que no so descendentes de
Abrao pela carne ( ), como podem ser herdeiros da promessa feita a
Abrao? E o que pensar daqueles que so descendentes de Abrao e se afastaram desta
herana prometida a Abrao e realizada em Cristo? Qual o critrio de pertena
posteridade legtima de Abrao? Os judeus que se tornaram cristos tinham
conscincia de sua dignidade de filhos de Abrao. Mas o perigo de se confiar demais
exclusivamente nos mritos de seu pai, continuava real. O evangelista joanino
responde a estas questes: no suficiente invocar um privilgio humano; segundo
suas obras que cada um ser julgado. Ser descendente de Abrao segundo a carne (ser
semente - ) no basta, mas destas pedras Deus pode suscitar novos filhos de
Abrao (Mt 3,9; Lc 3,8). Contudo, ao mesmo tempo o pressuposto mantido: para se
beneficiar da salvao prometida por Abrao preciso tornar-se sua posteridade. A
imagem de Abrao, pai dos proslitos, est subjacente a estas reflexes. O ponto de
partida da histria sagrada a promessa feita a Abrao, promessa que se cumprir em
Cristo. Esta promessa um dom gratuito. O objeto desta promessa se encontra no
Gnesis: Todas as naes sero em ti abenoadas (Gn 12,3; Gl 3,8; Rm 4,17).
Abrao acreditou em Deus contra toda esperana. A primeira realizao desta
promessa devia ser o nascimento de Isaac. Este no um merecimento humano
qualquer, pela Justia da f que Abrao se tornou beneficirio da promessa. Assim
ele se tornou o pai de numerosas naes (Rm 4,13).
270
410
411
271
4.2
A paternidade do diabo
A anlise literria do v. 44, onde Jesus afirma que o diabo o pai dos Judeus,
(desejos),
(desde o princpio),
Manns, que a haggadah de Caim e Abel est subjacente nossa percope, porque de
acordo com Testamento dos Patriarcas Tj I Gn 4/5 Samuel o pai de Caim. Isso no
nos parece ser uma afirmao de passagem e discreta acenando a Gn 3,15, mas uma
central e importante declarao.412 Provavelmente o autor e sua comunidade fizeram
releituras atualizantes de temas bblicos; releituras feitas luz do acontecimento Jesus
que a prpria comunidade joanina quer apresentar comunidade judaica. Com isso
compreendemos melhor que: se o diabo assassino e os Judeus so seus filhos, eles
querem matar Jesus que diz a Verdade, visto que o pai deles mentiroso. A insistncia
do evangelista sobre a necessidade de permanecer na Palavra-Lei, que a rvore da
vida, permitindo o conhecimento do bem e do mal, se explicaria melhor neste
contexto literrio. A importncia dos relacionamentos pessoais que cada um pode
estabelecer seja com o diabo seja com a Palavra de Jesus permite compreender melhor
a insistncia do autor nesses relacionamentos pessoais. A opo por um ou por outro
far que se torne filho de Abrao ou filho do diabo.
Perguntamos-nos se a percope 8,31-59 escrita pelo autor joanino original ou recebeu influncias de
outros textos? Comparando com Gn 3 notamos semelhanas e referncias muito fortes sobre a
apresentao joanina do diabo, pai dos Judeus. Possivelmente as concepes presentes em Gn 3 e Jo
8 constituem um background cultural comum aos dois.
272
273
4.3
416
274
417
418
275
vence a morte com sua ressurreio foi a base da definio da identidade que a
comunidade joanina buscava. A ressurreio de Jesus foi entendida pelo autor do QE
como a confirmao de seu projeto por parte de Deus: Deus havia exaltado como
soberano messinico definitivo aquele que havia sido crucificado precisamente por
causa de seu projeto de implantar o reino messinico. Foi essa compreenso que o
autor quis transmitir aos seus leitores nos momentos de hostilidade e de incredulidade
na messianidade de Jesus. Foi atravs do escrito evanglico, que aproveitando do
conflito existente no cotidiano da comunidade, o redator joanino intentou forjar uma
identidade e fortalecer a f dos indecisos e medrosos diante do enfrentamento. A
certeza da ressurreio de Jesus renovaria suas foras na luta e fortaleceria sua
esperana na certeza da vitria.
419
276
4.4
demonstrar aos seus leitores. Explica ele o mistrio mesmo da libertao pela verdade
revelada em Jesus: a verdade liberta da origem radical do pecado e da escravido. A
verdade manifesta a origem radical da escravido: o pai da mentira. A libertao
nasce deste apelo radical sobre a origem: ou fixar-se na origem que o pai da mentira,
ou aceitar a origem de Jesus e deixar-se atrair pela fora desta origem que o mundo
do alto e o mundo da luz e da vida (8,38-39). Justamente nos versculos finais (8,4959) o autor mostra que o Evangelho a fora libertadora da verdade que acontece e se
manifesta em Jesus de Nazar. Para isso ele foi escrito e assim ele deve ser entendido.
Foi essa a tnica do autor em toda sua narrativa ao longo do QE, sua teologia descrita
como um processo dinmico catequtico e pedaggico, atravs da sua estratgia
literria. A verdade liberta radicalmente, e a prxis da libertao vem pela f em Jesus.
Se lembrarmos qual o significado da verdade no QE, onde o conceito
personificado no prprio Jesus, concluiremos que, para que seus discpulos conheam
a verdade, eles precisam no s ouvir suas palavras, mas de alguma forma estar
unidos com aquele que a verdade. 420 Jesus declara que a f e a incredulidade se
relacionam menos com o intelecto do que com o corao; tanto uma coisa como outra
devem-se a condies e sentimentos morais. Se Deus fosse vosso Pai, certamente me
haveis de amar... Quem de Deus ouve as palavras de Deus.
420
277
frutificar a libertao que vem da verdade (vv. 31-32). Pois Jesus a verdade, os
discpulos
que
crem
devem
crescer
neste
processo
de
libertao
278
Entretanto, a verdade que comunica a prpria vida de Deus faz tambm surgir o
dinamismo da ressurreio e da vida no Esprito: a luz, a verdade, a liberdade e a vida.
Nos versculos 48-52 o autor anuncia a fonte dessa libertao e da vida, que vem pela
f em Jesus. De fato, a nova prxis que liberta consiste em aceitar a verdade da origem
e da unio do Filho com o Pai. Este ato de aceitao da palavra liberta da morte (v.
51). Mas os Judeus ainda se fecham nas suas certezas e recusam abrir-se para esta
novidade da vitria de Jesus sobre a morte. Esses Judeus apresentam a morte de
Abrao como uma evidncia que seria capaz de anular a novidade da revelao que
Jesus lhes traz. Enfim, nos vv. 53-59, o dinamismo da libertao vem ao ponto alto:
a proclamao da realidade definitiva, da preexistncia de Jesus, e do sentido de sua
glorificao na hora de sua morte-ressurreio. Abrao morreu. Mas, Jesus vence a
morte e sua ressurreio o ato de acesso vida imortal no seio do Pai. E, alm do
mais, esta vitria o ltimo e definitivo sinal para compreender o mistrio de sua vida
em unio com o Pai. Deste modo, vem a declarao sobre o Eu Sou: a frmula afirma
o poder divino e anuncia a extraordinria interveno de Jav.
421
A declarao de
421
422
Cf. NEYREY, J. H., An Ideology of Revolt. Jonhs Christology in social-sciency perspective, p. 131.
O autor joanino evita o termo (f) e emprega constantemente o verbo (crer), que
expressa melhor o carter ativo e pessoal de crer. E como vimos antes, ele o expressa com a
preposio de movimento , indicando assim o movimento interior da pessoa que cr em Cristo: sai
de si mesmo para uma adeso ntima.
279
nascer de novo pela fora do Esprito da verdade. A est a raiz de toda libertao:
Jesus-verdade comunica o Esprito que a verdade do amor para a plena vida na
comunho com o Pai.423 Acolher esta Palavra o tipo de f autntica do verdadeiro
discpulo de Jesus. E como aprofundamos antes, a f no algo abstrato para o autor
joanino: abertura para a vida, ou melhor, a vida mesma. A vida est ligada
inseparavelmente ao conhecimento da f: Esta a vida eterna, que eles te conheam
a ti, o Deus nico e verdadeiro e aquele que enviaste, Jesus Cristo (17,3). Da
aceitao ou rejeio da palavra de Cristo dependem a vida ou a morte (8,12.24, etc.).
O que se prope, portanto, o autor por este meio literrio evanglico, suscitar uma f
mais esclarecida, capaz de obter a vida. Neste sentido, a f do cego de nascena o
modelo-tipo ideal proposto, que de etapa em etapa chega at adorao e declara:
Creio, Senhor! E prostou-se diante dele (9,38).
423
CONCLUSO
A origem do tema desta tese doutoral foi em 2005 durante alguns colquios com
o ento professor do Novo Testamento do Instituto Teolgico Salesiano Pio XI na
Lapa, Frei Gilberto Gorgulho. Tendo feito meu Mestrado sobre a Primeira Carta de
Joo com o tema: F e Amor: sntese da existncia crist em 1Jo 3,23-24, decidi-me
permanecer no estudo da escola joanina. Relatei isso a Frei Gorgulho que me
apresentou
vrias
questes
inquietantes
para
ele,
dignas
de
pesquisa
281
282
283
texto revela os conflitos e cada personagem que nele atua briga para se defender.
Permanece at hoje um mistrio sobre os reais motivos do conflito e do porqu da
escolha literria do autor ao escrev-lo. Os conflitos registrados no texto joanino so
um reflexo desta realidade. Sabemos que era uma disputa sadia (intra-judaica), no
era uma guerra declarada contra os judeus no cristos (anti-judaica); o antisemitismo
nasceu depois por errneas interpretaes destes conflitos presentes tambm no QE,
mas no s. Entendemos melhor que tambm os judeus da sinagoga, de tradio
farisaica, buscavam aps a destruio do Templo smbolo sagrado de uma
instituio oficial e os traumas da decorrentes, a fidelidade s suas concepes e
interpretaes judaicas.424 Eles precisavam de autoridade e firmeza na definio e
conduo de uma nova maneira de ser e estar no mundo judaico ps-70. Era uma
questo de busca de uma autntica identidade, no sentido de verdadeira, reconhecida,
oficial. O movimento mais organizado, o dos fariseus, foi se impondo formando o
judasmo formativo, que por sua vez originou o judasmo rabnico (sc. VI). Tambm
os seguidores de Jesus necessitavam de uma organizao e consolidao que no fosse
duvidosa, vacilante e vulnervel; precisavam mesmo de uma slida identidade.
Vimos que o autor do QE reuniu na unidade dos captulos 7-8 boa parte do que
ele tinha a dizer em resposta s objees judaicas contra as pretenses messinicas
sustentadas por Jesus e pela comunidade joanina. Que o aspecto controvrsia agudo
e extenso, como se estivesse dentro de um tribunal em pleno processo de acusao,
num debate ataque-defesa. As indicaes de lugar, de pblico, de tempo e de
424
Conhecemos melhor hoje que o judasmo nascente ps-70 com a destruio do Templo era como que
um fenmeno plural marcadamente religioso, todavia, mesmo durante a existncia do Templo haviam
diversos movimentos e partidos em contrastes entre si; e mesmo aps a destruio do Templo, no
houve uma total desorientao, os judeus mais devotos tinham alternativas de praticar a piedade e
concentraram-se na sinagoga para este exerccio de f. Houve muitas reaes diante do drama trgico
de ficar sem o Templo. Temos conhecimento de movimentos como os essnios de Qumran, os
apocalpticos, os escribas remanescentes, os judeus da dispora. Cf. NEUSNER, Jacob. Formative
Judaism: Religious, Historic, and Literary Studies, p. 86s.
284
O incio da nossa percope 8,31-59 mostra que o autor dirige-se aos judeus que
nele tinham acreditado (v. 31). O problema surge das questes entre os judeus
crentes que continuavam a discutir, nas comunidades joaninas, sobre a relao com o
judasmo e a f crist, entre Abrao como pai e Deus-Jav Pai entre JesusMessias-Filho e sua relao com Deus-Jav-seu Pai. Este grupo que cerca Jesus, os
que nele tinham acreditado se transformar, aos poucos, no mais agressivo. Parece
uma contradio. Mas seguindo a coerncia da ironia joanina, este grupo pode ser os
que tinham acreditado e agora j no acreditam mais. Jesus (a comunidade no
caso) se encontraria em meio a estas discusses e controvrsias. Pelo texto podemos
encontrar alguns motivos da discrdia: uma teologia chamada alta, sobre a pessoa
do Pai e sua relao com o homem Jesus, enquanto que a teologia dos Judeus partia
apenas de Abrao, seu pai na f. Para o Jesus joanino, o fato dos Judeus no darem o
salto da f crist tem a ver com o pai da mentira o Diabo que lhes fechou as
portas. Sem dvida, podemos dizer, que a comunidade se reconhecia no texto. H uma
ligao objetiva, uma memria, parte da linguagem da f. Se fosse diferente, a
285
286
287
simblicas realizados por Jesus, descritos no QE, como sua entrada messinica em
Jerusalm (12, 12-19) e sua conseqente ao no Templo (2, 13-22) demonstram que
o projeto de Jesus era o de renovar o povo de Israel juntamente com suas instituies,
comeando pela principal: o Templo e seu culto. Esses seus atos fizeram surgir a
reao de hostilidade e de incredulidade da parte dos Judeus. O enfrentamento
frontal e a rejeio violenta que Jesus teve e conduziu-o morte violenta, era uma
realidade que a comunidade joanina revivia no seu conflito com os Judeus narrados
no QE. Mas justamente a morte do agente messinico, aparente fracasso do projeto do
Reino, se converteu, paradoxalmente, no novo caminho misterioso para sua realizao
definitiva. Representava assim a ao suprema de Deus, atuada por seu enviado, para
a libertao do povo rebelde, renovando o compromisso de sua aliana com ele,
porque seguia sendo, apesar de tudo, seu povo. Esse desfecho da vida de Jesus que
vence a morte com sua ressurreio foi a base da definio da identidade que a
comunidade joanina buscava. A ressurreio de Jesus foi entendida pelo autor do QE
como a confirmao de seu projeto por parte de Deus: Deus havia exaltado como
soberano messinico definitivo aquele que havia sido crucificado precisamente por
causa de seu projeto de implantar o reino messinico. Foi essa compreenso que o
autor quis transmitir aos seus leitores nos momentos de hostilidade e de incredulidade
na messianidade de Jesus que a comunidade enfrentava. Foi atravs do escrito
evanglico que aproveitando do conflito existente no cotidiano da comunidade, que o
redator joanino intentou forjar uma identidade e fortalecer a f dos indecisos e
medrosos diante do enfrentamento. A certeza da ressurreio de Jesus renovaria suas
foras na luta e fortaleceria sua esperana na certeza da vitria.
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