Pe. Georges Florovsky - Criação e Redenção

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Criação e Redenção

Pe. Georges Florovsky

http://precedejesus1.blogspot.com/
Tradução: Tito Kehl
Sumário
I. Introdução: O Vale das Sombras da Morte
II. Revelação, Filosofia e Teologia
III. Criação e "criaturidade"
IV. O Mal
V. Redenção
VI. As Dimensões da Redenção
VII. A Sempre Virgem Mãe de Deus
VIII. O Sacramento do Pentecostes
IX. A Veneração dos Santos
X. Os Santos Ícones
XI. A Imortalidade da Alma
XII. As Últimas Coisas e os Últimos Acontecimentos
I. Introdução: O Vale das Sombras da Morte

Uma gloriosa visão foi concedida ao Profeta Ezequiel. Pela mão do Senhor, o Profeta foi conduzido
ao vale da morte, um vale de desespero e desolação. Ali não havia vida alguma. Nada senão ossos
secos, completamente secos. Isso era tudo o que restara daqueles que um dia viveram. A vida se
fora. Então uma questão foi colocada ao Profeta: “Poderão esses ossos viver novamente? Poderá a
vida retornar ainda uma vez?”. A resposta humana a essa questão seria obviamente “não”. A vida
jamais retorna. Aquilo que um dia morreu, morreu para sempre. A vida não pode brotar da poeira e
das cinzas. “Nós devemos morrer, assim como a água derramada sobre o solo não pode mais ser
recolhida[1]”. A morte é o fim último, a completa frustração dos projetos e esperanças humanas. A
morte nasce do pecado, da Queda original. Ela não foi instituída divinamente. A morte humana não
faz parte da ordem divina da criação. Não era normal, nem natural que o homem morresse. Mesmo a
morte física, ou seja, a separação entre a alma e o corpo, constitui um distanciamento anormal de
Deus, o Criador e o Mestre do homem. A mortalidade do homem é o estigma, ou o “salário” do
pecado[2].

Muitos cristãos de hoje em dia perderam essa concepção bíblica da morte e da mortalidade, e veem
a morte mais como uma liberação, a liberação de uma alma imortal da escravidão do corpo. Por
mais disseminada que seja tal concepção da morte atualmente, ela é absolutamente estranha às
Escrituras. De fato, trata-se de uma concepção gentil grega. A morte não é uma liberação, é uma
catástrofe. “A morte é, de fato, um mistério: pois a alma é violentamente separada do corpo,
separada de sua conexão e de sua composição natural por uma vontade Divina. Ó maravilha! Por
que fomos entregues à corrupção, e por que nos casamos com a morte?[3]”. Um homem morto já
não é mais um homem, pois o homem não é um espírito incorpóreo. A alma e o corpo devem
permanecer juntos, e sua separação constitui a decomposição do ser humano. Uma alma
desencarnada não passa de um fantasma. Um corpo sem alma não passa de uma cadáver. “Pois na
morte não há memória de Ti; quem Te dará graças no túmulo?[4]”. E também: “Farás maravilhas
para os mortos? Levantar-se-ão eles para louvar-Te? Falarão de amor nas sepulturas, ou de
fidelidade em meio à destruição? Poderão Tuas maravilhas ser conhecidas na escuridão, e Tua
justiça na terra do esquecimento?[5]”. E o salmista estava absolutamente certo: “Eles foram
arrancados de Tua mão[6]”. A morte é sem esperanças. E assim a única resposta razoável que pode
ser dada, do ponto de vista humano, sobre os ossos secos é: não, os ossos secos jamais viverão
outra vez.

Mas a réplica divina foi diferente disso. E não foi uma resposta expressa em palavras, mas um
poderoso ato de Deus. E mesmo a Palavra de Deus foi criativa: “Pois Ele disse, e fez-se; Ele
ordenou, e firmou-se[7]”. E agora Deus fala novamente, e age. Ele envia Seu Espírito e renova a
face da terra[8]. O Espírito de Deus é o Doador da Vida. E o profeta pôde testemunhar uma
maravilhosa restauração. Pelo poder de Deus os ossos secos foram reunidos, ligados, modelados e
mais uma vez recobertos com uma carne viva, e o sopro da vida retornou para os corpos. E eles se
levantaram de novo, cheios de força, “numa inexcedível e imensa congregação”. A vida retornou, a
morte foi vencida.

A explicação dessa visão acompanha a própria visão. Esses ossos era a casa de Israel, o povo
escolhido por Deus. Ela estava morta, por seus pecados e sua apostasia, e caíra no fosso que ela
mesma cavara, fôra derrotada e rejeitada, perdera sua glória, sua liberdade e sua força. Israel, o
povo do Amor Divino e da adoção, o povo obstinado, rebelde e cabeça dura, e ainda assim o povo
escolhido. E Deus o conduziu para fora do vale das sombras da morte para os pastos verdejantes,
para fora das redes da morte, das águas incontáveis, do fosso horroroso, da argila lamacenta.

Cumpriu-se a profecia. Chegou o dia da libertação prometida. O Libertador prometido, o Redentor, o


Messias, chegou no tempo devido, e Seu nome era Jesus: “Pois Ele salvará Seu povo de seus
pecados[9]”. Ele era “a luz para iluminar os gentios, e a glória de Israel, Seu povo”.

E então aconteceu algo inacreditável e paradoxal. Ele não foi reconhecido, nem “recebido” pelo Seu
povo, ele foi rejeitado e maltratado, foi condenado e mandado para a morte, como um falso profeta,
como um mentiroso e um enganador. Pois a concepção carnal de libertação sustentada pelo povo
era muito diferente daquela que constituía o desígnio particular de Deus. Ao invés do poderoso
príncipe terreno esperado pelos judeus, Jesus de Nazaré veio “manso e humilde de coração”. O Rei
Celestial, o próprio Rei dos Reis desceu, o Rei da Glória, mas sob a forma de um servo. E não para
dominar, mas para servir a todos “os que trabalham e os oprimidos” e para trazer-lhes o repouso. Ao
invés de uma carta de liberdade política e independência, Ele trouxe para Seu povo, e também para
todos os homens, uma carta de salvação, o Evangelho da Vida Eterna. Ao invés da libertação
política Ele trouxe a liberdade em relação ao pecado e à morte, o perdão dos pecados e a Vida
Eterna. Ele veio aos Seus e não foi recebido. Ele foi mandado para a morte, uma morte vergonhosa,
e foi “contado junto com os transgressores”. A vida foi mandada para a morte, a Vida Divina foi
sentenciada à morte pelos homens – esse é o mistério da Crucificação.

Mais uma vez Deus agiu. “E Deus, com sua vontade e presciência, permitiu que Jesus lhes fosse
entregue, e vocês, através de ímpios, o mataram, pregando-o numa cruz. Deus, porém, ressuscitou
Jesus, libertando-o das cadeias da morte, porque não era possível que ela o dominasse[10]”. Mais
uma vez a Vida libertou-se do túmulo. Cristo levantou-se, deixou Sua sepultura como o Noivo deixa
sua câmara. E com Ele toda a raça humana, todos os homens, foram levantados. Ele foi as primícias
dos que estavam adormecidos, e todos o seguiram, cada qual em sua ordem[11]. “Para que, assim
como o pecado havia reinado através da morte, do mesmo modo a graça reine através da justiça
para a vida eterna, por meio de nosso Senhor Jesus Cristo[12]”.

A profecia de Ezequiel é lida na Igreja Ortodoxa nas Matinas do Grande Sábado, nesse ofício
glorioso em que os fiéis são convidados a visitar o túmulo do Senhor, esse Santo e Sagrado Túmulo
de onde a Vida brotou abundantemente para toda a Criação. Nos belos hinos reservados a esse dia,
os “louvores” – uma das mais maravilhosas criações da poesia devocional – esse tremendo mistério
é retratado e adorado: a Vida jazia no túmulo e brilhou fora da sepultura. “Pois aquele que habitava
nas alturas foi contado entre os mortos e posto num jazigo apertado[13]”. Os fiéis são chamados
para contemplar e adorar esse mistério do sepulcro que suporta e dá a Vida.

E ainda assim, a antiga profecia permanece uma profecia, ou melhor, é tanto uma profecia como um
testemunho. A Vida ergue-se do sepulcro, mas a plenitude da vida ainda está por vir. A raça
humana, ainda que redimida, e mesmo a própria Igreja, ainda caminham pelo vale das sombras da
morte.

A casa da Nova Israel de Deus ainda se parece como ossos secos. Existe muito pouca verdadeira
vida em todos nós. A caminhada histórica do homem é ainda trágica e insegura. Todos nós, em
tempos recentes, fomos conduzidos de volta ao vale da morte. Todos os que já percorreram as
ruínas de cidades antes florescentes entendem o terrível poder da morte e da destruição. O homem
continua a espalhar a morte e a desolação. E podemos esperar por coisa piores ainda. Pois a raiz da
morte está no pecado. Não é de admirar que exista, em muitas e diferentes frentes, uma crescente
compreensão da seriedade do pecado. As antigas palavras de Santo Agostinho encontram novos
ecos na alma humana: “Nunca se pode saber até onde vai o peso do pecado”. Mas o poder da morte
foi quebrado, ainda assim. Ainda assim, Cristo se levantou. “O Príncipe da Vida, que morrera, reina
imortal”. O Espírito de Deus, o Consolador, o Doador da Vida, foi enviado à terra para selar a vitória
de Cristo, e, desde o Pentecostes, reside na Igreja. O dom da vida, da verdadeira vida, foi dado ao
homem, e vem sendo constantemente concedido, e abundantemente, e crescentemente. Ele vem
sendo dado, mas nem sempre é recebido. Pois para ser tocada a pessoa deve superar os desejos
da carne, “deixar de lado todos os cuidados mundanos”, o orgulho e o preconceito, o ódio e o
egoísmo, a auto complacência, e até seu próprio “eu”. De outro modo esfria-se o Espírito. Deus está
perpetuamente batendo à porta do coração do homem, mas somente o homem pode abri-la.

Deus nunca irrompe com violência. Ele respeita, nas palavras de Santo Irineu de Lyon, “a antiga lei
da liberdade humana”, estabelecida por Ele próprio. Certamente, sem Ele, sem Cristo, o homem
nada pode fazer. Mas existe uma coisa que somente o homem pode fazer: responder ao chamado
divino e receber a Cristo. E é isso que a maioria deixa de fazer.

Vivemos numa era sinistra e tensa. O sentido de segurança histórica foi perdido anos atrás. Nossa
civilização tradicional parece estar entrando em colapso e se fazendo em pedaços. O próprio senso
de direção é confuso. Parece não haver saída para essa situação de impasse, a menos que advenha
uma mudança radical. A menos que... Na linguagem cristã lemos: a menos que nos arrependamos, a
menos que peçamos pelo dom do arrependimento. A Vida é dada abundantemente ao homem, e
ainda assim estamos mortos. “Arrependam-se. Convertam-se e abandonem toda a injustiça, e a
injustiça não provocará mais a ruína de vocês. Libertem-se de todas as injustiças cometidas e
formem um coração novo e um espírito novo. Por que vocês haveriam de morrer, casa de Israel? Eu
não sinto prazer com a morte de ninguém - oráculo do Senhor Javé. Convertam-se e terão a
vida[14]”.

Existem dois caminhos. “Veja: hoje eu estou colocando diante de você a vida e a felicidade, a morte
e a desgraça. Hoje eu tomo o céu e a terra como testemunhas contra vocês: eu lhe propus a vida ou
a morte, a bênção ou a maldição. Escolha, portanto, a vida, para que você e seus descendentes
possam viver[15]”.

Escolhamos a vida... Primeiramente, devemos dedicar toda nossa vida a Deus, e recebê-Lo ou
aceitá-Lo como nosso único Senhor e Mestre, e isso não apenas em espírito ou como uma
obediência formal, mas com espírito de amor. Amá-Lo significa servi-Lo, fazer nossos Seus
propósitos, compartilhar com Ele Seus desígnios e objetivos. “Eu já não chamo vocês de servos,
pois o servo não sabe o que seu senhor faz; eu chamo vocês de amigos, porque eu comuniquei a
vocês tudo o que ouvi de meu Pai[16]”.

Nosso Senhor nos deixou Sua própria obra para ser cumprida e levada adiante. Precisamos entrar
no verdadeiro espírito de Sua obra redentora. E nos foi dado poder para tal. Foi-nos dado poder para
nos tornarmos filhos de Deus. Mesmo ao filho pródigo não foi permitido que perdesse seus
privilégios de berço e que fosse contado entre os mercenários. Mais do que isso, somos membros de
Cristo, na Igreja, que é Seu Corpo. Sua vida habita em nós pelo Espírito Santo.

Assim, em segundo lugar, devemos nos manter unidos e buscar por toda nossa vida essa unidade
que estava na mente de nosso bendito Senhor em Seu último dia, antes da Paixão e da Cruz: que
todos sejamos um – um, em fé e amor – Nele.

O mundo continua completamente dividido. Existe muita discórdia e divisão, mesmo entre aqueles
que dizem estar em Cristo. A paz entre as nações e, acima de tudo, a unidade entre os cristãos –
tais devem ser a obrigação comum a nos unir, a tarefa mais urgente do dia. E certamente o destino
último do homem não será decidido nos campos de batalha, nem pelas deliberações de homens
habilidosos. O destino do homem será decidido nos corações dos homens. Estarão eles fechados
mesmo às batidas do Pai Celestial? Ou conseguirá o homem destrancar as portas em resposta ao
chamado do Amor Divino?

Mesmo nesses dias sombrios existem sinais de esperança. Não existem apenas “trevas ao meio
dia”, mas também se veem luzes na noite. Existe uma crescente busca pela unidade. Mas a
verdadeira unidade só pode estar fundamentada na Verdade, na plenitude da Verdade. “Que cessem
os cismas na Igreja. Que se extinga o ódio entre as nações. Que sejam rapidamente destruídas, pelo
poder do Espírito Santo, as heresias emergentes[17]”. A Vida é dada em abundância.

É preciso estar atentos, para não perder o dia da visitação, como o antigo Israel perdeu o seu.
“Quantas vezes eu quis reunir seus filhos, como a galinha reúne os pintinhos debaixo das asas, mas
você não quis![18]”. Escolhamos a vida, no conhecimento do Pai e de Seu Filho único, nosso
Senhor, com o poder do Espírito Santo. Então a glória da Cruz e da Ressurreição se revelará em
nossas vidas. E a gloriosa profecia de antanho mais uma vez se realizará. “Contemplem, Meu povo,
eu abrirei seus sepulcros, e os farei levantar de seus túmulos, e os trarei para a terra de Israel. Então
vocês saberão que Eu, o Senhor, disse isso e o realizei, palavra do Senhor[19]”.

[1] II Samuel 14:14.


[2] Romanos 6: 23.
[3] João Damasceno, Ofício Fúnebre.
[4] Salmo 6: 5.
[5] Salmo 88: 10-12.
[6] Idem, 5.
[7] Salmo 33: 9.
[8] Salmo 104: 30.
[9] Mateus 1: 21.
[10] Atos 2: 23-24.
[11] I Coríntios 15: 20, 23.
[12] Romanos 5: 21.
[13] Canon, Ode 8, Irmos.
[14] Ezequiel 18: 30-32.
[15] Deuteronômio 30: 15, 19.
[16] João 15: 15.
[17] Liturgia de São Basílio.
[18] Mateus 23: 37.
[19] Ezequiel 37: 12, 14.

II. Revelação, Filosofia e Teologia


Existem dois aspectos do conhecimento religioso: a Revelação e a Experiência. A Revelação é a voz
de Deus que fala ao homem. E o homem ouve essa voz, escuta-a, aceita a Palavra de Deus e a
compreende. É exatamente para isso que Deus fala: para que o homem possa ouvi-lo. Pela
Revelação, no sentido próprio, entendemos precisamente essa palavra de Deus como deve ser
ouvida. E ainda que se possa interpretar o caráter inspirado da Escritura, deve-se ter consciência de
que a Escritura preserva e apresenta para nós a voz de Deus numa linguagem humana. Ela nos
apresenta a palavra de Deus tal como ela ressoa na alma receptiva do homem. Revelação e
teofania. Deus desce até o homem e se revela a ele. E o homem vê e contempla a Deus. E ele
descreve aquilo que viu e ouviu; ele dá testemunho do que foi revelado a ele. O maior mistério e
milagre da Bíblia consiste no fato de que ela constitui a Palavra de Deus na linguagem do homem.
Com muita propriedade os primeiros exegetas Cristãos viram nas escrituras do Antigo Testamento
uma antecipação e um protótipo da futura Encarnação de Deus. Já no Antigo Testamento a Palavra
Divina se torna humana, Deus fala ao homem na linguagem do homem. É isso que constitui o
autêntico antropomorfismo da Revelação. Porém, esse antropomorfismo não é meramente uma
acomodação. De modo algum a linguagem humana reduz o caráter absoluto da Revelação, nem
limita o poder da Palavra de Deus. A Palavra de Deus pode ser expressa precisa e adequadamente
em linguagem humana, pois o homem foi criado à imagem de Deus. É precisamente por essa razão
que o homem é capaz de perceber a Deus, de receber a palavra de Deus e de preservá-la. A
Palavra de Deus não se diminui quando ressoa na linguagem humana. Ao contrário, é a palavra
humana que é transformada e como que transfigurada pelo fato de que agrada a Deus falar em
linguagem humana. O homem é capaz de ouvir a Deus, de captar, receber e preservar as palavras
de Deus. De qualquer modo, a Santa Escritura nos fala não apenas de Deus, mas também do
homem. Assim a Revelação histórica se torna plena precisamente com o aparecimento do Deus-
Homem. Tanto no Antigo, como no Novo Testamento, vemos não apenas a Deus, como também o
homem. Vemos Deus se aproximar e aparecer ao homem; e vemos pessoas humanas que
encontraram a Deus e que ouviram atentamente sua Palavra – e, o que é mais importante,
responderam às suas palavras. Ouvimos também na Escritura a voz do homem, respondendo a
Deus nas palavras da oração, nas ações de graça e nos louvores. Em relação a isso, basta
mencionar os Salmos. E Deus quer, espera e exige essa resposta. Deus quer que o homem não
apenas ouça suas palavras, mas que responda a elas. Deus quer envolver o homem numa
“conversação”. Deus desce até o homem – e ele desce de modo a elevar o homem até ele. Na
Escritura ficamos espantados, acima de tudo, com essa proximidade íntima entre Deus e o homem,
entre o homem e Deus, essa santificação de toda a vida humana pela presença de Deus, esse
manto de proteção Divina que envolve toda a terra. Na Escritura ficamos espantados com a história
sagrada em si. Na Escritura revela-se que a própria história se torna sagrada, que a história pode ser
consagrada, que a vida pode ser santificada. E, certamente, não apenas no sentido de uma
iluminação externa à vida – vinda desde fora – mas no sentido mesmo de sua transfiguração. A
Revelação se torna de fato completa com a fundação da Igreja e com a descida do Espírito Santo ao
mundo. Desde aquele tempo o Espírito de Deus habita no mundo. Subitamente, a fonte da vida se
estabeleceu no próprio mundo. E a Revelação será consumada com a aparição do novo céu e da
nova terra, com a transformação cósmica e universal da existência criada. Pode-se sugerir que a
Revelação é o caminho de Deus na história – podemos ver como Deus caminha entre as fileiras dos
homens. Contemplamos a Deus não apenas na majestade transcendente de Sua glória e
onipotência, mas também na Sua amorosa proximidade com a criação. Deus Se revela não apenas
como Senhor e Pantocrator, mas acima de tudo como Pai. E o fato cabal é que a Revelação escrita
é história, a história do mundo como criação de Deus. A Escritura se inicia com a criação do mundo
e se encerra com a promessa de uma nova criação. E podemos perceber a tensão dinâmica entre
esses dois momentos, entre o primeiro “fiat” e aquele que virá: “Vede, Eu fiz novas todas as
coisas[1]”.

Não cabe aqui tratar em detalhe as questões básicas da exegese bíblica. Não obstante, uma coisa
deve ficar bem estabelecida. A Escritura pode ser vista desde uma dupla perspectiva: fora da história
e como história. No primeiro caso a Bíblia é interpretada como um livro contendo imagens e
símbolos eternos e sagrados. E ela deve ser revelada e interpretada precisamente como símbolo, de
acordo com as regras do método simbólico e alegórico. Na Igreja antiga os partidários do método
alegórico interpretavam a Bíblia dessa maneira. Os místicos da Idade Média e da Reforma também
entenderam a Bíblia dessa maneira. Muitos teólogos contemporâneos, especialmente Católicos
Romanos, seguem o entendimento nessa mesma direção. A Bíblia surge assim como uma espécie
de Livro de Leis, como um código de mandamentos e ordenações divinas, como uma coleção de
textos ou “leis teológicas”, como uma coleção de imagens e ilustrações. A Bíblia se torna assim um
livro autossuficiente e autorreferenciado – um livro, por assim dizer, escrito para ninguém, um livro
com sete selos... Não é necessário rejeitar essa perspectiva: certamente existe alguma verdade
nessa interpretação. Mas a totalidade do espírito da Bíblia contradiz essa interpretação, pois ela
contradiz o sentido direto da Escritura. Mas o erro básico desse entendimento consiste na abstração
do homem. É certo que a Palavra de Deus é verdade eterna e que Deus fala na Revelação para
todos os tempos. Mas se se admite a possibilidade de vários significados para a Escritura, e se se
entende na Escritura uma espécie de significado interno, abstrato e independente do tempo e da
história, corre-se o risco de destruir o realismo da Revelação. É como se Deus tivesse falado de tal
modo aos primeiros a quem falou diretamente, que esses não O tivessem entendido – ou, no
mínimo, que não O tivessem tal como Ele pretendia. Essa forma de entendimento reduz a história à
mitologia. E, finalmente, a Revelação não constitui simplesmente um sistema de palavras divinas,
mas também um sistema de ações divinas; e precisamente por essa razão ela consiste, acima de
tudo, em história, história sagrada ou história da salvação, na história da aliança entre Deus e o
homem. Somente dessa perspectiva histórica a plenitude da Escritura se abre para nós. A textura da
Escritura é uma textura histórica. As palavras de Deus são sempre, e acima de tudo, relativas ao
tempo – elas possuem sempre, e acima de tudo, um significado direto. Deus vê diante de si, por
assim dizer, aquele a quem Ele fala, e Ele fala, por causa disso, de um modo a que possa ser ouvido
e entendido. Pois Ele sempre fala para a salvação do homem, para o homem. Existe um simbolismo
na Escritura – mas ele é antes profético do que alegórico. Existem imagens e alegorias na Escritura,
mas na sua totalidade ela não consiste em imagem e alegoria, mas em história. É preciso distinguir
entre simbolismo e tipologia. No simbolismo é possível abstrair a história. A tipologia, por sua vez, é
sempre histórica; é um tipo de profecia – quando os eventos profetizam por si próprios. Pode-se
dizer também que a profecia é sempre um símbolo – um sinal que aponta para o futuro – mas ela é
sempre um símbolo histórico que dirige a atenção para os eventos futuros. A Escritura contém uma
teleologia histórica: tudo aponta para um ponto-limite histórico, para um telos histórico. Por isso
existe essa tensão do tempo na Santa Escritura. O Antigo Testamento é o tempo da espera
messiânica – é esse o tema básico do Antigo Testamento. E o Novo Testamento é, acima de tudo,
história – a história evangélica do Verbo Divino e o começo da história da Igreja, que se dirige para a
expectativa da plenitude Apocalíptica. “Plenitude” constitui a categoria básica da Revelação.

A Revelação e a Palavra de Deus e a Palavra a respeito de Deus. Mas, ao mesmo tempo, e além
disso, a Revelação é sempre uma Palavra dirigida ao homem, um chamado e um apelo ao homem.
E na Revelação também o destino do homem se revela. Em qualquer caso, a Palavra de Deus nos é
dada em nossa linguagem humana. Nós a conhecemos apenas na medida em que ela ressoa
através de nossa receptividade em nossa consciência, em nosso espírito. E a substância e
objetividade da Revelação é apreendida não porque o homem faça ele próprio uma abstração de si,
não porque ele se despersonalize, não porque ele se reduza a um ponto matemático, transformando-
se assim num “sujeito transcendente”. O que acontece é precisamente o contrário: o “sujeito
transcendente” não é capaz nem de perceber, nem de entender a voz de Deus. Não é para o “sujeito
transcendente”, para alguma “consciência geral” que Deus fala. O “Deus dos vivos”, o Deus da
Revelação fala para pessoas vivas, para sujeitos empíricos, apoiados numa experiência vivida. A
face de Deus se revela apenas a personalidades vivas. E quanto melhor, mais plena e claramente vê
o homem a face de Deus, quanto mais distinta e viva se torna sua própria face, mais plena e clara a
“imagem de Deus” aparece e se realiza nele. A mais elevada objetividade em ouvir e entender a
Revelação é adquirida na medida do maior esforço exercido pela personalidade criativa, por meio do
crescimento espiritual, pela transfiguração da personalidade, que se torna “a sabedoria da carne”,
ascendendo à “medida da estatura da plenitude de Cristo[2]”. Não se exige do homem uma auto-
abnegação, mas um vitorioso movimento de avanço, não uma autodestruição, mas uma
transformação ou um renascimento, de fato, uma theosis. Sem o homem, a Revelação seria
impossível – porque ninguém estaria ali para ouvir e Deus não teria com quem falar. E Deus criou o
homem de maneira a que o homem pudesse ouvir suas palavras, recebê-las, crescer nelas e com
elas e se tornar participante da “vida eterna”. A Queda do homem não alterou a intenção original de
Deus. O homem não perdeu completamente a capacidade de ouvir a Deus e de louvá-lo. E
finalmente: cessaram o domínio e o poder do pecado. “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós
(...) e nós contemplamos Sua glória, a glória do Filho único do Pai, cheio de graça e verdade[3]”. O
caminho da vida e da luz se abriu. E o espírito humano agora se torna capaz de escutar a Deus
completamente e receber Suas palavras.

***

Mas Deus falou ao homem não apenas para que esse guardasse e recordasse suas palavras. Não
se pode simplesmente armazenar a Palavra de Deus na memória. É preciso preservá-la, acima de
tudo, num coração vivo e ardente. A Palavra de Deus é preservada no espírito humano como uma
semente que cresce e logo dá muitos frutos. Isso significa que a verdade da divina Revelação deve
se abrir dentro do pensamento humano, deve se desenvolver num sistema inteiro de confissão de fé,
num sistema de perspectiva religiosa – podemos dizer, num sistema de filosofia religiosa e numa
filosofia da Revelação. Nisso não existe subjetividade. O conhecimento religioso permanece sempre
heteronômico em sua essência, uma vez que consiste numa visão e numa descrição da realidade
divina que foi e é revelada ao homem por meio da entrada do Divino no mundo. Deus desce ao
mundo – e revela não apenas revela ao homem Seu semblante, como realmente aparece para ele. A
Revelação é compreendida pela fé, e a fé consiste na visão e na percepção. Deus aparece ao
homem e o homem contempla a Deus. As verdades da fé são verdades da experiência, verdades de
um fato. Isso constitui precisamente o fundamento da certeza apodítica da fé. A fé é uma
confirmação descritiva de determinados fatos – “assim é”, “assim foi”, “assim será”. Precisamente por
essa razão a fé é também indemonstrável – a fé é a evidência da experiência. Devemos distinguir
claramente entre as épocas da Revelação. E não se deve atestar a essência da fé Cristã com base
nos precedentes veterotestamentários. O Velho Testamento foi um tempo de espera: todo
o pathos do homem do Antigo Testamento estava direcionado para um “futuro” – esse “futuro” era a
categoria básica de sua experiência religiosa e de sua vida. A fé do homem do Antigo testamento era
uma expectativa – a expectativa daquilo que ainda não existia, do que ainda não chegara a
acontecer, ou daquilo que ainda era “invisível”. Mas o tempo da espera chegou ao fim. As profecias
se realizaram. O Senhor veio. E Ele veio de modo a permanecer junto àqueles que acreditaram nele
“para sempre, até o fim das eras[4]”. Ele concedeu ao homem “o poder de se tornar filho de Deus[5]”.
Ele enviou o Espírito Santo ao mundo para conduzir os fiéis “para a verdade[6]”, e para fazê-los
“recordar tudo o que o Senhor disse[7]”. Por isso os fiéis têm “a unção do Espírito Santo, e
conhecem tudo (...) e não precisam que ninguém os ensine[8]”. Eles possuem a “unção da
verdade”, charisma veritatis, como disse Santo Irineu. Em Cristo a possibilidade e o caminho para
uma vida espiritual se abriu para o homem. E a estatura da vida espiritual é feita de conhecimento e
de visão, s e . Isso altera o sentido da fé. A fé Cristã não está dirigida primariamente
para “o futuro”, mas para aquilo que já se encontra realizado – a bem dizer, para o Eterno Presente,
para a plenitude divina que foi e é revelada por Cristo. Num certo sentido pode-se dizer que Cristo
tornou o conhecimento religioso possível pela primeira vez; vale dizer, o conhecimento de Deus. E
Ele realizou isso não como pregador ou como profeta, mas como “Príncipe da Vida” e como Alto
Sacerdote da Nova Aliança. O conhecimento de Deus se tornou possível através da renovação da
natureza humana que Cristo realizou por meio de Sua morte e ressurreição. Essa renovação foi
também a renovação da razão e do espírito humanos. Isso significa, em resumo, a renovação da
visão do homem.

E o conhecimento de Deus se torna possível na Igreja, no corpo de Cristo enquanto unidade da vida
de graça. Na Igreja, a Revelação se torna uma Revelação interior. Num certo sentido a Revelação se
torna a confissão da Igreja. É muito importante lembrar que os textos do Novo Testamentos são mais
novos do que a Igreja. Esses textos constituem um livro que foi escrito na Igreja. Eles são o registro
escrito da fé da Igreja, da fé que foi preservada pela Igreja. E a Igreja confirma a verdade da
Escritura, confirma sua autenticidade – verificando-a por meio da autoridade do Espírito Santo que
habita na Igreja. Não devemos nos esquecer disso em relação ao Evangelho. Nos Evangelhos
escritos, a imagem do Salvador está colocada com firmeza, essa mesma imagem que viveu desde o
início na memória viva da Igreja, na experiência da fé – não simplesmente na memória histórica, mas
verdadeiramente na memória da fé. Essa é uma distinção essencial. Porque conhecemos Cristo não
apenas por memórias e relatos. Não é só sua imagem que está viva na memória dos fiéis – ele
próprio habita entre eles, presente diante da porta de cada alma. É Precisamente nessa experiência
da comunidade viva com Cristo que o Evangelho se torna vivo como livro santo. A Revelação Divina
vive na Igreja – e de que outra maneira ela poderia ser preservada? Ela foi esboçada e reforçada
pelas palavras da Escritura. Para sermos precisos, ela foi esboçada – mas essas palavras não
exauriram a inteira plenitude da Revelação, não exauriram a inteira plenitude da experiência Cristã.
E a possibilidade de novas e diferentes palavras não foi, tampouco, excluída. Em qualquer caso, a
Escritura sempre demanda interpretação.

E as verdades invariáveis da experiência podem ser expressas de diferentes maneiras. A realidade


divina pode ser descrita em imagens e parábolas, na linguagem da poesia devocional e na da arte
religiosa. Assim era a linguagem dos profetas do Antigo Testamento, assim o modo como os
Evangelistas costumavam falar, assim o modo como os Apóstolos pregaram, assim a maneira como
a Igreja ora ainda hoje em seus hinos e no simbolismo de seus atos sacramentais. Essa é a
linguagem da proclamação e das boas novas, a linguagem da prece e da experiência mística, a
linguagem da teologia “da proclamação” (). E existe outra linguagem, a linguagem da
compreensão do pensamento, a linguagem do dogma. O dogma é o testemunho da experiência.
Todo o pathos do dogma reside no fato de que ele aponta para a realidade divina; nisso, o
testemunho do dogma é simbólico. O dogma é o testemunho do pensamento a respeito do que foi
visto e revelado, sobre o que foi contemplado na experiência da fé – e esse testemunho se expressa
em conceitos e definições. O dogma constitui uma “visão intelectual”, a verdade da percepção.
Podemos dizer que ele consiste numa imagem lógica, num “ícone lógico” da realidade divina. E ao
mesmo tempo o dogma é uma definição – e é por isso que a forma lógica é tão importante para o
dogma, essa “palavra interior” que adquire sua força numa expressão exterior. É por isso que o
aspecto exterior do dogma – sua formulação em palavras – é tão essencial. O dogma de modo
algum constitui uma nova Revelação. Ele é apenas um testemunho. Todo o sentido da definição
dogmática consiste em atestar a verdade imutável, a verdade que foi revelada e preservada desde o
princípio. Por isso, falar em “desenvolvimento do dogma”, revela uma total incompreensão. Dogmas
não se desenvolvem; eles são inalteráveis e invioláveis, mesmo em seu aspecto externo – sua
expressão verbal. Menos ainda se pode alterar sua linguagem dogmática e sua terminologia. Por
estranho que possa parecer, podemos ainda dizer: os dogmas surgem, eles são estabelecidos, mas
eles não se desenvolvem. E, uma vez estabelecido, o dogma é perene e se torna uma “rega de fé”
(regula fidei, ou    ) imutável. O dogma constitui uma verdade intuitiva, não um
axioma discursivo que é inacessível a um desenvolvimento lógico. Todo o sentido do dogma reside
no fato de que ele expressa a verdade. A revelação se abre e é recebida no silêncio da fé, numa
visão silenciosa – esse é o primeiro e apofático passo para o conhecimento de Deus. A total
plenitude da verdade está desde logo contida nessa visão apofática, mas a verdade tem que ser
expressa. O homem, por sua vez, é chamado não apenas ao silêncio, mas para falar, para
comunicar. O silentium mysticum não esgota a inteira plenitude da vocação religiosa do homem.
Também existe espaço para a expressão do louvor. Em sua confissão dogmática a Igreja se
expressa e proclama a verdade apofática que ela preserva. A busca por definições dogmáticas é,
assim, uma busca por termos. Precisamente por causa disso as controvérsias doutrinas consistem
em disputas a respeito de termos. É preciso encontrar palavras claras e precisas capazes de
descrever e expressar a experiência da Igreja. É preciso expressar essa “visão espiritual” que se
apresenta ao espírito do fiel na experiência e na contemplação.

Isso é necessário, porque a verdade da fé é também uma verdade para a razão e para o
pensamento – o que não significa, é claro, que seja a verdade do pensamento, a verdade da razão
pura. A verdade da fé é fato, realidade – aquilo que é. Nessa “busca por palavras” o pensamento
humano muda, a própria essência do pensamento se transforma e é santificada. A Igreja atestou
indiretamente o fato ao rejeitar a heresia de Apolinário. O Apolinarismo consiste, no fundo, numa
falsa antropologia, num falso ensinamento sobre o homem e, sendo assim, num falso ensinamento
sobre o Homem-Deus, Cristo. O Apolinarismo é a negação da razão humana, o medo do
pensamento – conforme Gregório de Nissa, “é impossível que não exista pecado no pensamento
humano[9]”. E isso implica que a razão humana é incurável ( ), ou seja, que ela
deve ser afastada. A rejeição ao Apolinarismo significa, assim, ao mesmo tempo, a justificação
fundamental da razão e do pensamento. Não no sentido, é claro, de que a “razão natural” seja certa
e sem pecado por si mesma, mas no sentido de que ela está aberta à transformação, que ela pode
ser curada, que pode ser renovada. A não apenas ela pode, como deve ser curada e renovada. A
razão é chamada ao conhecimento de Deus. “Filosofar” a respeito de Deus não é apenas uma
habilidade de inquirição ou uma espécie de curiosidade audaciosa. Ao contrário, é a plenitude do
chamado de do dever religioso do homem. Não é uma aquisição suplementar, uma espécie de opus
supererogatorium, mas um momento necessário e orgânico da conduta religiosa. Por essa razão, a
Igreja “filosofou” sobre Deus – ela “formulou em dogmas aquilo que os primeiros pescadores
expuseram em palavras simples[10]”. Os chamados “dogmas dos Padres” reapresentaram o
conteúdo imutável da “pregação apostólica” em categorias intelectuais. A experiência da verdade
não se altera, ela sequer cresce; de fato, o pensamento que penetra no “entendimento da verdade”
transforma a si mesmo por meio desse processo.

Podemos simplesmente dizer: ao estabelecer dogmas, a Igreja expressou a Revelação na linguagem


da filosofia Grega – ou, se se preferir: ela traduziu a Revelação do hebraico, de uma linguagem
poética e profética, para o Grego. Isso implica, em certo sentido, uma “Helenização” da Revelação.
Na realidade, por outro lado, o que aconteceu foi uma “Igrejização” do Helenismo. Podemos falar
indefinidamente sobre esse tema – de fato, esse tema já foi tratado e discutido até em demasia,
discutido e disputado mais do que o suficiente. Aqui, o essencial é levantar apenas uma questão. A
Antiga Aliança passou. Israel não aceitou o Cristo Divino, não O reconheceu nem O confessou, de
modo que a “promessa” passou aos Gentios. A Igreja é, acima de tudo, ecclesia ex gentibus.
Devemos reconhecer esse fato fundamental da história Cristã, com humildade diante da vontade de
Deus, que se realiza no destino das nações. E o “chamado aos Gentios” significa que o Helenismo
foi abençoado por Deus. Aqui não existe “acidente da história” – não reside aí nenhum acidente. No
destino religioso do homem não existem “acidentes”. De qualquer modo, permanece o fato de que o
Evangelho foi transmitido a todos na língua Grega. É somente nessa linguagem que podemos
escutar o Evangelho em sua inteireza e plenitude. Isso não significa, nem pode significar, que ele
seja intraduzível – mas ele tem sempre que ser traduzido a partir do Grego. E, precisamente, existiu
tão pouco “acaso” ou “acidente” nessa “seleção” da língua Grega (enquanto proto-linguagem
imutável do Evangelho Cristão), quanto na “seleção”, por parte de Deus, do povo Judeu, dentre
todos os povos da antiguidade, para ser “Seu” Povo; tão pouco “acaso” ou “acidente” na “seleção” da
língua Grega quanto no fato de que “a salvação vem dos Judeus[11]”. Recebemos a Revelação de
Deus tal como ela ocorreu. E é ocioso se preguntar sobre o que poderia ter sido se fosse de outro
modo. Na seleção dos “Helenos” devemos reconhecer as decisões da vontade oculta de Deus. De
qualquer modo, a apresentação da Revelação na linguagem do Helenismo histórico de modo algum
restringe a Revelação. Ao contrário, prova-se exatamente o oposto – ou seja, que essa linguagem
possuía certos poderes e recursos que ajudaram a expor e expressar a verdade da Revelação.

Quando a verdade divina é expressa em linguagem humana, as próprias palavras são


transformadas. E o fato de que as verdades da fé são veladas sob imagens lógicas e conceitos
atesta a transformação da palavra e dos pensamentos – as palavras se tornam santificadas por meio
dessa utilização. As palavras das definições dogmáticas não são “simples palavras”, não são
palavras “acidentais” que podem ser substituídas por outras palavras. Elas são palavras eternas,
impossíveis de serem substituídas. Isso significa que determinadas palavras – certos conceitos – são
eternizadas pelo próprio fato de que expressam verdades divinas. Isso implica que existe
uma philosophia perennis, como se diz – que existe algo no pensamento que é eterno e absoluto.
Mas isso de modo algum implica a existência de uma “eternalização” de um “sistema” filosófico
específico. Para colocarmos de modo mais preciso – a dogmática Cristã não constitui o único
verdadeiro “sistema” filosófico. Podemos recordar que os dogmas estão expressos em linguagem
filosófica – de fato, numa linguagem filosófica específica – mas de modo algum na linguagem de
alguma escola filosófica em particular. Ao contrário, podemos falar de um “ecletismo” filosófico da
dogmática Cristã. E esse “ecletismo” possui um significado mais profundo do que lhe é comumente
atribuído. Todo o seu significado consiste no fato de que os temas particulares da filosofia Helênica
foram recebidos e, através dessa recepção, eles se transformaram essencialmente; eles mudaram e
já não são reconhecíveis. Porque agora, na terminologia da filosofia Grega, uma experiência nova,
totalmente nova, é expressada. Embora os temas e motivos do pensamento Grego tenham sido
mantidos, as respostas às questões são diferentes; elas são dadas a partir de uma nova experiência.
Por esse motivo, o Helenismo recebeu o Cristianismo como algo novo e estrangeiro, e o Evangelho
Cristão pareceu “loucura” para os Gregos[12].

O Helenismo, forjado no fogo de uma nova experiência e de uma nova fé, foi renovado; o
pensamento Helênico se transformou. Usualmente não percebemos o bastante o inteiro significado
dessa transformação que o Cristianismo introduziu no domínio do pensamento. Isso acontece
porque, numa certa medida, continuamos a ser filosoficamente como os antigos Gregos, não tendo
ainda experimentado o batismo do pensamento pelo fogo. E, em parte, ao contrário, porque estamos
também acostumados a uma nova visão de mundo, que conservamos como se fosse uma “verdade
inata”, quando, de fato, ela nos foi dada apenas através da Revelação. Basta apontarmos alguns
exemplos: a ideia do mundo enquanto criação, não apenas no seu aspecto transitório e perecível,
como também em seus princípios primordiais. Para o pensamento grego o conceito de “ideias
criadas” era impossível e ofensivo. E ligado a isso estava a intuição Cristã da história como uma
realização criativa única (algo que só acontece uma vez), o sentido de um movimento a partir de um
“inicio” de fato até um fim derradeiro, um sentimento pela história que de modo algum se permite
vincular ao pathos estático do pensamento Grego arcaico. Também o conceito o homem
como pessoa, o conceito de personalidade, era inteiramente inacessível ao Helenismo, que
considerava como pessoa apenas a máscara. E, finalmente, está a mensagem da Ressurreição na
carne – glorificada, mas real – um pensamento que poderia apenas aterrorizar os Gregos, que
viviam na esperança de uma desmaterialização futura do Espírito. Essas foram algumas das
perspectivas que se abriram pela nova experiência a partir da Revelação. Elas são as
pressuposições e categorias de uma noiva filosofia Cristã. Essa filosofia está encerrada na
dogmática da Igreja. Na experiência da fé o mundo se revela diferentemente do que ele é na
experiência do “homem natural”. A Revelação não é apenas uma Revelação sobre Deus, mas
também sobre o mundo. Pois a plenitude da Revelação está na imagem do Deus-Homem; ou seja,
no fato da inefável união entre Deus e o homem, do Divino com o humano, do Criador com a criatura
– na indivisível, mas não confundida, união para todo o sempre. É precisamente o dogma da
Calcedônia sobre a unidade do Deus-Homem que constitui o verdadeiro e decisivo ponto da
Revelação, e da experiência da fé e da visão Cristã. Estritamente falando, um claro entendimento de
Deus é impossível para o homem, se ele estiver comprometido com as vagas e falsas concepções a
respeito do mundo e de si mesmo. Não há nada de surpreendente nisso. Pois o mundo é a criação
de Deus e, consequentemente, se alguém forma uma falsa compreensão do mundo, atribuirá a Deus
uma obra que ele não produziu, estabelecendo um julgamento distorcido a respeito da atividade e da
vontade de Deus. A esse respeito, uma filosofia verdadeira é necessária à fé. E, por outro lado, a fé
está comprometida com pressupostos metafísicos específicos. A teologia dogmática, enquanto
exposição e explanação da verdade divinamente revelada no domínio do pensamento, é
precisamente a base da filosofia Cristã, ou filosofia sagrada, ou filosofia do Espírito Santo.

Mais uma vez, devemos insistir: o dogma pressupõe a experiência, e somente na experiência da
visão e da fé o dogma atinge sua plenitude e se torna vivo. E mais uma vez: o dogma não esgota a
experiência, assim como a Revelação não é esgotada pelas “palavras”, ou pela “letra” da Escritura. A
experiência e o conhecimento da Igreja são mais abarcantes e plenos do que seu pronunciamento
dogmático. A Igreja dá testemunho de inúmeras coisas que não são colocações “dogmáticas”, mas
imagens e símbolos. Em outras palavras, a teologia “dogmática” não pode nem diminuir, nem
substituir a teologia “da proclamação” (). Na Igreja, a plenitude do conhecimento e do
entendimento é dada, mas essa plenitude só se abre e é professada gradual e parcialmente – e, em
geral, o conhecimento nesse mundo é sempre um conhecimento “parcial”, e sua plenitude será
revelada apenas na Parúsia: “Agora eu conheço em parte[13]”. Essa “incompletude” do
conhecimento provém do fato de que a Igreja está ainda “em peregrinação”, ainda em processo de
provir; ela dá testemunho da essência mística do tempo, no qual o crescimento da humanidade se
realiza de acordo com a medida da imagem de Cristo. E mais ainda: a Igreja não se empenha em
expressar e declarar nada. A Igreja não se empenha em cristalizar sua experiência num sistema
fechado de palavras e conceitos. Não obstante, essa “incompletude” de nosso conhecimento aqui e
agora não enfraquece seu caráter autêntico e apodítico. Um teólogo Russo descreveu essa situação
da seguinte maneira: “A Igreja não fornece um plano fixo da Cidade de Deus a seus membros, antes
ela lhes dá a chave da Cidade de Deus. E aquele que nela entra, sem ter um esquema fixo, pode
ocasionalmente se perder; e mesmo assim, tudo o que ele observar, ele contemplará tal como é, em
sua plena realidade. É claro também que, aquele que estudar a Cidade de acordo com um plano,
sem que possua a chave da cidade verdadeira, jamais chegará à Cidade[14]”.

***

A Revelação encontra-se preservada na Igreja. Ela foi dada por Deus à Igreja, não a indivíduos
isolados, assim como as “palavras de Deus” no Antigo Testamento não foram confiadas a pessoas,
mas ao Povo de Deus. A Revelação foi dada, e está acessível, apenas na Igreja; ou seja, somente
através da vida na Igreja, através de um pertencimento real e vivo ao organismo místico do Corpo de
Cristo. Isso significa que o conhecimento genuíno só é possível como elemento da Tradição. A
Tradição constitui um conceito muito importante, e que usualmente é entendido de modo muito
estreito, como “Tradição oral”, em contraste com a Escritura. Esse entendimento não apenas limita,
como também distorce o sentido da Tradição. A Sagrada Tradição, enquanto “tradição da verdade” –
traditio veritatis, como disse Santo Irineu – não é apenas a memória histórica, não apenas um
chamado à antiguidade e à imutabilidade empírica. A Tradição é a memória da Igreja, interior e
mística. Ela é, acima de tudo, a “unidade do Espírito”, a unidade e a continuidade da experiência
espiritual e da vida da graça. É a conexão viva com o dia de Pentecostes, o dia em que o Espírito
Santo desceu ao mundo como “Espírito da Verdade”. A fidelidade à Tradição é não somente a
lealdade à antiguidade, mas, mais ainda, o vivo relacionamento com a plenitude da vida Cristã. O
apelo da Tradição não é tanto o chamado aos padrões primitivos, mas um apelo à experiência
“católica” da Igreja, à plenitude de seu conhecimento. Conforme a conhecida fórmula de São Vicente
de Lerins: quod semper, quod ubique, quod ab amnibus creditum est [15], tão frequentemente
utilizada, mas que contém uma ambiguidade essencial. “Semper” e “ubique” não devem ser
entendidos literal e empiricamente. E “omnes” não inclui todos os que se dizem Cristãos, mas
apenas os “verdadeiros” Cristãos, aqueles que preservam a doutrina correta e a interpretam
corretamente. Evidentemente, os heréticos, os perdidos e os fracos na fé não estão incluídos no
conceito de “todos”. A fórmula de São Vicente está baseada numa tautologia. O escopo da Tradição
não pode ser estabelecido simplesmente por meio de uma pesquisa histórica. Esse seria um
caminho demasiado perigoso. Significaria uma desconsideração completa da natureza espiritual da
Igreja. A Tradição só pode ser conhecida e compreendida no pertencimento à Igreja, na participação
à sua vida “católica”, comum a todos. O termo “católico” costuma ser entendido de forma errônea e
imprecisa. Ele não significa uma universalidade externa – não se trata de um critério quantitativo,
mas qualitativo. “Católico” não significa “universal”:  não é idêntico a . A
“Igreja Católica” sempre pode ser vista historicamente como o “pequeno rebanho”. Existem
provavelmente mais “heréticos” do que “fiéis Ortodoxos” no mundo atual, e podemos dizer que os
“heréticos” estão por toda parte – ubique – e que a Igreja foi empurrada para os fundos da história,
para o “deserto”. Esse foi o caso, muitas vezes, e parece estar acontecendo outra vez. Mas essa
situação e essa limitação empírica de modo algum é capaz de destruir a natureza “católica” da
Igreja. A Igreja é católica por ser o Corpo de Cristo, e na unidade desse Corpo o se dá o crescimento
comum dos seus membros individuais; a seclusão e o isolamento mútuos são superados, e a
verdadeira “comunidade”, ou a “vida comum[16]” se realiza. E isso diz respeito também ao
pensamento. A catolicidade da consciência é também realizada na unidade da Igreja. É nisso que
está contido o verdadeiro mistério da Igreja: “Que todos sejam um, assim como o Pai está em Mim e
Eu estou no Pai, e que estejam eles em Nós (...) para que sejam perfeitos na unidade...”[17].

Essa “plenitude de unidade” na imagem da Trindade é precisamente a catolicidade da Igreja. Ao


explicar a oração sacerdotal de nosso Senhor, o Metropolita Antonii de Kiev colocou: “Essa oração
não diz respeito senão ao estabelecimento de uma nova e única existência da Igreja na terra. Essa
realidade possui sua imagem não na terra, onde não existe unidade, mas apenas divisão, mas, ao
contrário, sua imagem está nos céus, onde a unidade entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo une as
Três Pessoas num só Ser. Assim é que não existem três deuses, mas Um Deus que vive Uma vida.
A Igreja constitui a nova, específica e única existência sobre a terra, a única existência que não se
pode definir claramente por meio de conceitos extraídos da vida profana. A Igreja é a imagem da
existência Trinitária, uma imagem na qual diferentes pessoas se tornam um só ser. Por que essa
existência – assim como a existência da Santa Trindade – é nova, e por que ela era inacessível ao
homem antigo? Pelo seguinte motivo: a autoconsciência natural encerra a pessoa dentro de si
mesma, e se opõe radicalmente às demais pessoas[18]”. Em outra parte, o Metropolita Antonii diz:
“Por isso o Cristão deve se libertar, na medida de sua perfeição espiritual, da oposição direta entre o
“eu” e o “não eu”, para ser capaz de transformar a estrutura da autoconsciência humana desde o seu
fundamento[19]”.

Essa transformação da “autoconsciência humana” também acontece na Igreja, na consciência


“católica” ou “comunal” da Igreja. A consciência “católica” não consiste numa consciência coletiva,
ela não é uma consciência comunitária universal ou profana – e tampouco é um conglomerado de
consciências unitárias individuais; não se trata de uma “consciência geral” impessoal. A
“catolicidade” consiste na “unidade de pensamento” concreta, e na “comunidade de pessoas”. A
“catolicidade” é estrutura e estilo, a “determinação da consciência pessoal”, que supera sua limitação
e seu isolamento e amadurece a um nível “católico” – a “catolicidade” é o padrão ideal, ou o ponto
limite, o s da consciência pessoal que se realiza na afirmação, não na abolição, da
personalidade. E a medida da “catolicidade” só pode ser realizada através de uma vida em Cristo. E
isso não significa realizar em nossa consciência uma “consciência geral” abstrata, ou uma forma de
natureza impessoal do pensamento lógico, mas implica realizar a “catolicidade” por meio de uma
experiência concreta, ou pela Visão da Verdade. A unidade é realizada por meio da participação na
Verdade única; ela se realiza na Verdade, em Cristo. A partir daí a consciência se transforma. Como
a mais clara expressão dessa transformação devemos reconhecer essa misteriosa superação do
tempo que tem seu lugar na Igreja. Em Cristo, os fiéis de todas as eras e gerações se unem e se
unificam, encontrando-se uns aos outros como se fossem contemporâneos misticamente unidos. É
nisso que consiste o significado metafísico da “comunhão dos santos” – communio sanctorum. E é
por isso que a memória da Igreja não está voltada para o passado que se foi, mas para aquilo que foi
adquirido e “completado” – a memória da Igreja se volta para aqueles que passaram como
contemporâneos na plenitude da Igreja do Corpo de Cristo, que abarca todos os tempos. A Tradição
é o símbolo dessa “temporalidade de todos os tempos”. Conhecer ou perceber através da Tradição
implica conhecer ou perceber a partir da realização dessa experiência de “temporalidade de todos os
tempos”. E isso só pode ser conhecido dentro da Igreja por cada pessoa em sua experiência
pessoal, de acordo com a medida de sua maturidade espiritual. Voltar-se para a Tradição implica
voltar-se para essa plenitude. A “transformação Católica” da consciência torna possível para cada
pessoa conhecer – não apenas por si mesma, mas por todos: ela torna possível a plenitude da
experiência. E esse conhecimento é livre de toda e qualquer restrição. Na natureza católica da Igreja
existe a possibilidade do conhecimento teológico, e não de algo apenas fundamentado em “opiniões”
teológicas. Eu sustento que cada pessoa pode realizar o padrão católico em si mesma. Não digo que
todo mundo realiza isso de fato. Isso depende da medida da maturidade espiritual de cada um. Cada
pessoa, obviamente, é chamada. E os que realizam isso são chamados de Padres e Doutores da
Igreja, pois deles ouvimos não apenas suas opiniões pessoais como os verdadeiros testemunhos da
Igreja – porque eles falam a partir da plenitude Católica. Essa plenitude é inesgotada e inexaurível. E
nós somos chamados a atestá-lo, e é então que a vocação do homem se realiza. Deus se revelou e
se revela ao homem. E somos chamados a testemunhar aquilo que vimos e que vemos.

[1]     (Apocalipse 22: 5).


[2] s s s  (Efésios 4: 13).
[3] João 1: 14.
[4] Mateus 28: 20.
[5] João 1: 12.
[6] João 16: 13.
[7] ss    s     (Cf. João 14: 26).
[8] I João 2: 20; 27.
[9]     ss   (Contra Apollin. II, 6: 8; I, 2).
[10] Do Ofício em honra dos Três Hierarcas (Basílio o Grande, Gregório o Teólogo e Joao
Crisóstomo).
[11] João 4: 22.
[12] I Coríntios 1: 23.
[13]    s (Coríntios 13: 12).
[14] Melioranskii, B.M. – Lectures on the History of the Ancient Christian Church, Strannik, Junho de
1910.
[15] “[O que foi admitido] sempre, em toda parte e por todos”.
[16]  ou .
[17]  s     s... (João 17: 21, 23).
[18] Arcebispo Antonii Khrapovitskii, Obras Escolhidas, II, 2 (São Petersburgo, 1911) – “A ideia moral
do dogma da Igreja”, pgs. 17-18.
[19] Ibid., pg. 65.

III. Criação e "criaturidade"

“Vê! Eu te gravei nas palmas de minhas mãos, e tuas muralhas estão sempre diante de mim” (Isaías
49: 16).

O mundo foi criado. Isso significa: o mundo veio do nada. Isso implica que não havia mundo antes
que esse eclodisse e adquirisse existência. Ele eclodiu e tornou-se existente juntamente com o
tempo. Porque, enquanto não havia mundo, tampouco havia tempo. Porque “o tempo é contado a
partir da criação dos céus e da terra”, conforme disse São Máximo o Confessor[1]. Somente o
mundo existe no tempo – na mudança, na sucessão, na duração. Sem o mundo, não existe tempo. E
a gênese do mundo é o começo do tempo. Esse começo, conforme explica São Basílio o Grande,
ainda não é o tempo, nem mesmo uma fração do tempo, assim como o começo de uma estrada não
é ainda a própria estrada. Esse começo é simples e não-composto. Não existia o tempo; e
subitamente, de repente, ele começou. A criação brotou, veio à existência, passou do não-ser ao ser.
Ela começou a ser, a existir. Como disse São Gregório de Nissa: “A simples subsistência da criação
permitiu que se iniciasse sua transformação (...) a simples transição do não-ser à existência
constituiu uma mudança, tendo sido a não-existência transformada pelo poder Divino em existência”.
Essa gênese primordial e o começo da mudança e da duração, essa “transição” do vazio para a
existência, é inacessível ao pensamento humano. Mas ela se torna compreensível e imaginável a
partir de seu oposto. Nós sempre calculamos o tempo na ordem inversa, do passado para o
presente, recuando até os confins dos tempos, andando para trás na sequência temporal; e apenas
secundariamente pensamos o tempo em termos de uma contagem consecutiva. Caminhando em
direção ao passado, paramos em uma determinada data, que é calculada e calculável a partir do
interior de uma série, com uma clara consciência de que é preciso se deter ali. A simples noção do
começo do tempo implica essa necessidade de detenção, implica a impossibilidade simples de uma
regressão infinita ao passado. Não faz diferença onde podemos ou não podemos computar esse
limite retroativo em termos de séculos ou de dias. A proibição em si permanece com toda sua força.
Uma primeira unidade é absolutamente postulada na série temporal, antes da qual não existem
outros segmentos encadeados, nenhum momento do tempo, porque não existem mais mudanças,
nem sequências de qualquer tipo. Não é o tempo que precede o tempo, mas a “altura da eternidade
sempre presente”, que transcende a duração – celsitudo semper praesentis aeternitatis, como dizia
Santo Agostinho. O tempo teve início. Mas haverá um tempo “quando não mais existir o tempo[2]”. A
mudança há de cessar. E, de acordo com São João Damasceno, “o tempo, depois da ressurreição,
já não será contado em dias e noites; na verdade, haverá um único dia sem entardecer”. A
sequência temporal será rompida; haverá nela uma última unidade. Mas esse fim, e essa cessação
da mudança não indicam a abolição daquilo que começou com o tempo, ou do que foi e que existiu
no tempo; ela não sugere um retorno ou uma recaída no nada. Não haverá mais tempo, mas a
criação estará preservada. O mundo criado pode existir, independentemente do tempo. A criação
teve um início, mas não irá cessar. O tempo consiste numa espécie de segmento linear, com um
começo e um fim. Por isso ele só é incomensurável com a eternidade, porque o tempo tem um início,
mas na eternidade não existe nem mudança, nem início. A totalidade da temporalidade não coincide
com a eternidade. A “plenitude dos tempos” – omne tempus – não significa necessariamente
“sempre” – semper – como apontou Agostinho. O infinito, o infindável, não necessariamente implica
o sem-começo. A criação pode ser comparada com um “feixe de raios” matemático, partes iguais de
linhas retas estendendo-se de seu ponto de origem até o infinito. Uma vez extraído do nada e o não-
ser, o mundo teve no fiat criativo um fundamento imutável e final e um suporte para sua existência.
“A palavra criadora é como uma ponte inquebrantável sobre a qual foram colocadas as criaturas, e
assim elas permanecem sob o abismo da Infinitude Divina e sobre o abismo de sua própria
nulidade”, disse o Metropolita Filarete. “A palavra de Deus não deve ser imaginada como a palavra
falada do homem, a qual, uma vez pronunciada, cessa imediatamente e desvanece no ar. Em Deus
não existe cessação, nada desvanece. Sua palavra procede, mas não retrocede: “A palavra de Deus
dura para sempre’[3]”. Deus “criou todas as coisas para que elas tivessem existência[4]”. E não para
a existência no tempo, mas para sempre Ele as criou: Ele trouxe a criação para a existência com
Sua palavra criadora, “pois Ele estabeleceu o mundo, e esse jamais passará[5]”.

O mundo existe. Mas ele começou a existir. E isso significa que o mundo poderia não existir. Não há
absolutamente necessidade alguma da existência do mundo. A existência criada não é
autossuficiente, nem independente. Para o mundo criado em si não existe fundamento, nenhuma
base para uma gênese e uma existência. A criação, por sua simples existência, atesta e proclama
sua “criaturidade”, ela proclama ter sido produzida. Para usarmos as palavras de Agostinho, “ela
clama ter sido criada – ela grita ‘eu não criei a mim própria: eu existo porque fui criada; e eu não
existia e vim a existir, e eu não poderia ter saído de mim mesma’”. Por sua mera existência a criação
aponta para além de seus próprios limites. A causa e o fundamento do mundo estão fora do mundo.
A existência do mundo só é possível através da supramundana vontade e pala misericórdia do Deus
Onipotente, “Aquele que chamou à existência as coisas que não existiam[6]”. Mas, inesperadamente,
é precisamente em sua “criaturidade” e em sua condição criada que se enraíza a estabilidade e a
substancialidade do mundo. Isso é porque a origem a partir do nada determina a alteridade, a “não-
consubstancialidade” entre o mundo e Deus. É insuficiente e inexato dizer que as coisas foram
criadas e dispostas fora de Deus. O “fora” em si mesmo só se coloca na criação, e a criação “a partir
do nada” (ex nihilo) constitui precisamente essa posição “exterior”, a posição de algo “outro” lado a
lado com Deus. Claro, não no sentido de alguma espécie de limitação da Divina plenitude, mas no
sentido de que, lado a lado com Deus brota um “outro”, uma substância ou natureza heterogênea,
algo diferente Dele, e, num certo sentido, um objeto autônomo e independente. Aquilo que não
existia brota e passa a existir. Na criação, algo absolutamente novo, uma realidade extra-divina é
disposta e se desenvolve. É precisamente nisso que consiste o supremamente grande e
incompreensível milagre da criação – que um “outro” brote, que uma gota heterogênea de criação
exista lado a lado com o “ilimitado e infinito Oceano do ser”, como São Gregório de Nazianze fala de
Deus. Existe uma distância infinita entre Deus e a criação, e é uma distância de naturezas. Tudo
está distante de Deus, afastado Dele não pelo lugar, mas pela natureza –   , como
explica São João Damasceno. E essa distância não pode jamais ser removida, mas ela pode ser
ultrapassada apenas e tão somente pelo incomensurável amor Divino. Como diz Santo Agostinho,
na criação “não existe nada relacionado com a Trindade, exceto o fato de que a Trindade a criou”.
Mesmo na mais exaltada altura da mais elevada e íntima oração haverá sempre um limite
inultrapassável, sempre será perceptível a dualidade viva entre Deus e a criação. “Ele é Deus, e ela
é não-Deus”, diz Macário o Grande a respeito da alma. “Ele é o Senhor, ela a serva; Ele é o Criador,
ela a criação; Ele é o Arquiteto, ela a obra; e não existe nada em comum entre Ele e sua natureza”.
Qualquer transubstanciação da natureza criada para a Divina é tão impossível quanto a
transformação de Deus em criação, e qualquer “coalescência” e “fusão” das naturezas está excluída.
Apenas e unicamente na hipóstase de Cristo – o Deus-Homem – apesar da completude da mútua
interpenetração (sss) das duas naturezas, ambas permanecem com sua
diferença imutável e inalterada: “sem que a distinção entre as naturezas tenhas sido retirada por
essa união, mas, ao contrário, as propriedades específicas de cada natureza foram preservadas”,
conforme os anais do Concílio de Calcedônia[7]. Os Padres da Calcedônia substituíram o vago “de
duas naturezas” pelo forte e claro “em duas naturezas”, e, por meio da confissão dessa
consubstancialidade dupla e bilateral do Deus-Homem, eles estabeleceram um firme e indiscutível
critério ou regra de fé. A real existência de uma natureza humana criada, vale dizer, de uma natureza
outra fora de Deus e lado a lado com Ele, é um pré-requisito indispensável para a realização da
Encarnação sem mudança alguma ou transmutação da natureza Divina.

O que foi criado é exterior a Deus, mas está unido a Ele. Os Padres do século IV, movidos pela
controvérsia Arianista a definir o conceito de criação de modo claro e preciso, insistiram acima de
tudo na heterogeneidade entre criado e Criador em contraste com a “consubstancialidade” da
geração; e eles corrigiram essa heterogeneidade mediante a dependência da criação em relação ao
desejo e à vontade. Todo o criado, escreveu São Atanásio o Grande, “não é em resumo como seu
Criador em substância, mas é exterior a Ele”. A criação “chegou à existência, produzida desde fora”.
E não existe similaridade entre aquilo que irrompe do nada e o Criador, que verdadeiramente é,
Aquele que extrai as criaturas do nada. O desejo e a vontade precedem a criação. A criação é um
ato da vontade ( ), e assim ela se distingue nitidamente da geração Divina, que é um
ato da natureza (  ). Uma interpretação similar nos foi dada por São Cirilo de
Alexandria. A geração está fora da substância ( ). A criação é um ato que não é feito a
partir da própria substância do Criador; e assim a criação é heterogênea em relação ao seu Criador.
Resumindo a interpretação patrística, São João Damasceno apresenta a seguinte definição: “Gerar
implica produzir, a partir da substância daquele que gera, uma geração cuja substância é similar à
sua. A criação, ou produção, por outro lado, consiste em trazer para a existência, desde fora e não a
partir da substância do criador, um agente de algo, inteiramente dissimilar [por natureza]”. A geração
se realiza por “um poder natural de gerar” (sss), e a criação consiste num ato
de vontade e desejo (s). A “criaturidade” determina a completa dissimilaridade entre
a criação e Deus, sua alteridade, e com mais razão sua independência e substancialidade. Todo o
capítulo de São João é, na realidade, uma réplica elaborada dos argumentos de Orígenes.

A criação não é um fenômeno, mas uma “substância”. A realidade e a substancialidade da natureza


criada se manifestam, antes de tudo, na liberdade do ser criado. A liberdade não se esgota na
possibilidade de escolha, mas pressupõe essa possibilidade e começa com ela. E a liberdade do ser
criado se abre, em primeiro lugar, na igual possibilidade de dois caminhos: para Deus e para longe
de Deus. Essa dualidade de caminhos não constitui uma possibilidade meramente formal ou lógica,
mas uma possibilidade real, dependendo da presença efetiva de potencialidades e capacidades, não
apenas para uma escolha entre os dois caminhos, como para seguir um ou outro. A liberdade
consiste não só na possibilidade, mas também na necessidade de uma escolha autônoma, na
resolução, ou não, da escolha. Sem essa autonomia, nada acontece na criação. Como disse São
Gregório o Teólogo, “Deus legisla a autodeterminação humana (...) Ele honrou o homem com a
liberdade de modo a que o bom pertença àquele que o escolher, tanto quanto Àquele que plantou
sua semente”. A criação deve ascender e se unir a Deus por meio de seus próprios esforços e
aquisições. E, se o caminho de união requer e pressupõe um movimento prévio de receptividade da
Misericórdia Divina, a “antiga lei da liberdade humana”, como disse uma vez Santo Irineu, não é
abalada por isso. O caminho da desunião, da destruição e da morte, não está fechado para as
criaturas. Não existe uma graça irresistível, as criaturas sempre podem se perder, todas são
capazes, se pudessem, de um “suicídio metafísico”. Em sua vocação última e primordial, a criação
está destinada à união com Deus, para a comunhão e a participação em Sua vida. Mas isso não é
uma necessidade obrigatória para a natureza criada. É claro que, fora de Deus, não existe vida para
a criação. Mas como disse Agostinho com grande acerto, “existência e vida não coincidem” na
criação. Por isso, a existência na morte é possível. Naturalmente, a criação só pode realizar-se e
estabelecer-se superando seu auto-isolamento – ou seja, somente em Deus. Mas mesmo sem
realizar sua verdadeira vocação, e mesmo opondo-se a ela – portanto, se desfazendo e se perdendo
– a criação nem por isso deixa de existir. A possibilidade de um suicídio metafísico está aberta para
ela. Mas não lhe é dado o poder para aniquilar a si mesma. A criação é indestrutível – e não apenas
essa criação que está enraizada em Deus como numa fonte de existência verdadeira e vida eterna,
como também essa criação que se colocou contra Deus. “Porque a aparência desse mundo é
passageira[8]”, e deverá passar. Mas o mundo em si não passará. Porque ele foi criado “para que
possa existir”. Suas qualidades e propriedades mudam e se transformam, e devem mudar; mas seus
“elementos” são imutáveis. E imutável, acima de tudo, está o homem microcósmico, e imutável é a
hipóstase do homem, selada que foi e trazida do nada pela vontade criadora de Deus. De fato, o
caminho da rebelião e da apostasia é o caminho da destruição e da perdição. Mas ele não conduz
ao não-ser, mas à morte; e a morte não é o fim da existência, mas a separação – a separação entre
o corpo e a alma, a separação da criação em relação a Deus. Com efeito, o mal “não é uma
entidade”. O mal não possui “substância” – ele é , de acordo com São João Damasceno. O
mal possui um caráter negativo de privação, ele consiste na negação e na privação da verdadeira
existência. Ao mesmo tempo, São Gregório de Nissa diz que “é não sendo que ele existe[9]”. A raiz e
o caráter do mal é a ilusão e o terror. O mal, na frase incisiva do teólogo Alemão Franz
Staudenmaier, é uma “mentira mitopoeica[10]”. É uma espécie de ficção, mas uma ficção carregada
de uma energia e um poder enigmáticos. O mal está ativo no mundo, e nele ele é real. O mal
introduz novas qualidades no mundo, como se adicionasse algo à realidade criada por Deus, algo
não desejado e não criado por Deus, embora tolerado por Ele. E essa inovação, “não existente” em
certo sentido, é, numa aparência enigmática, real e poderosa. “Pois Deus não criou a morte[11]”, e,
não obstante, toda a criação se tornou objeto da futilidade, e da escravidão da corrupção[12]. Pelo
pecado a morte atingiu todos os homens[13], e o pecado, sendo ele próprio uma inovação fictícia no
mundo, o germe do desejo de prazer e dos artifícios humanos, criou a morte e como que
estabeleceu uma nova lei para a existência da criação, uma espécie de anti-lei. E, num certo sentido,
o mal não pode ser erradicado. Pois, devido ao fato de que a perdição final nos tormentos eternos
provocados pelo mal na “ressurreição pelo julgamento” não implica a total aniquilação, nem a
supressão dos seres malignos, é impossível atribuir ao mal esse poder anti-criativo que pudesse
superar o poder criativo de Deus. Em sua devastação da existência, o mal não é capaz de varrer a
própria existência. E essa existência, ainda que devastada, distorcida, corrompida e falsa, será
misteriosamente recebida na eternidade, mesmo que seja nos tormentos do fogo inextinguível. A
eternidade de tormentos que cairá sobre os filhos da perdição denuncia com especial urgência e
agudeza a realidade da criação como uma realidade segunda e extra-divina. Ela é causada por uma
persistente, embora livre, rebelião, por uma autoafirmação no mal. Sendo assim, tanto na sua
constituição como na sua dissolução, tanto na santidade como na perdição, na obediência como na
desobediência, a criação manifesta e dá testemunho de sua própria realidade como um sujeito livre
de decretos divinos.

A ideia de criação é estranha à consciência “natural”. O Helenismo clássico a desconhece. A filosofia


moderna a esqueceu. Apresentada na Bíblia, ela se abre e se manifesta na experiência viva da
Igreja. Na ideia de criação estão justapostos o tema da imutável e intransitória realidade do mundo
enquanto sujeito livre e ativo (mais precisamente, enquanto uma totalidade de sujeitos interagentes),
e o tema de sua total não-autossuficiência, de sua dependência última em relação ao Outro, seu
princípio mais elevado. E assim, quaisquer suposições a respeito de que o mundo não possua
começo, a necessidade de sua existência, e qualquer admissão sobre sua eliminação, estão
excluídas. A criação não é nem um ser auto-existente, nem um devir transitório; nem uma
“substância” eterna, nem uma “aparência” ilusória. Na “criaturidade” revela-se uma grande
maravilha. O mundo poderia simplesmente não ter existido. E aquilo que poderia não ter existido, por
não possuir causas ou bases inevitáveis, na verdade existe. Isso constitui um enigma, uma “loucura”
para o pensamento “natural”. E daí provém a tentação de atenuar e amortecer a ideia de criação e
substituí-la por outras noções. Somente por meio de uma aproximação contrária, o mistério da
criação pode ser esclarecido, pela exclusão e a suspensão de toda especulação e conjectura
evasivas.

***

Deus cria em perfeita liberdade. Essa proposição foi formulada com notável precisão pelo “Doutor
Sutil” do medievo Ocidental, Duns Scotus: Procedit autem rerum creatio a Deo, non aliqua
necessitate, vel essentiae, vel scientiae, vel voluntatis, sede ex mera libertate, quae non movetur et
multo minus necessitatur ab aliquo extra se ad causandum. “A criação das coisas é excutada por
Deus, não pode necessidade, nem por essência, conhecimento ou vontade, mas por pura liberdade,
que não é movida – e muito menos obrigada – por nada exterior que possa ser sua causa”. Ainda
assim, para definir a liberdade de Deus em relação à criação, não é bastante eliminar as grosseiras
concepções de compulsão, de necessidade externa. É obvio que não se pode falar de nenhum tipo
de compulsão externa, porque a própria “exterioridade” só pode ser colocada em relação à criação.
Ao criar, Deus só é determinado por Si mesmo. Mas não é tão fácil assim demonstrar a ausência de
qualquer “necessidade” interna nessa autodeterminação, na revelação de Deus ad extra. Aqui o
raciocínio é perturbado por tentações sedutoras. A questão pode ser colocada da seguinte maneira:
deve o atributo de Criador e Sustento ser considerado como pertencendo às propriedades essenciais
e formadoras do Ser Divino? A ideia de uma imutabilidade Divina pode evitar que apresentemos a
isso uma resposta negativa. Foi exatamente isso que Orígenes pensou em sua época: “É tão ímpio
quanto absurdo dizer que a natureza de Deus consiste em apenas existir e jamais se mover, quanto
supor que houve um tempo em que a Bondade não foi boa, em que a Onipotência não exerceu seu
poder”. A partir da perfeita extratemporalidade e da imutabilidade do Ser Divino, Orígenes, nas
palavras do teólogo russo Vasilii Bolotov, Orígenes desenha a conclusão de que “todas as Suas
propriedades e predicados sempre pertenceram a Deus in strictu sensu – in actu, in status quo”.
Esse “sempre”, para Orígenes, tem o significado de “eternidade extratemporal”, e não apenas de
“totalidade da temporalidade”. “Assim como ninguém pode ser pai sem que tenha um filho, nem
senhor se não possuir servo”, raciocina Orígenes, “da mesma forma não podemos chamar o Deus
Onipotente de Pantocrator se não houver criaturas sobre as quais exerça ele Seu poder. Pois se
alguém puder sustentar que tenham existido idades, ou períodos de tempo, nos quais a Onipotência
Divina – ou como quer que se chame – não tenha existido, por não ter existido a criação, ficaria
provado fora de dúvidas que nessas idades ou períodos Deus não era Onipotente, mas que Ele se
tornou Pantocrator depois, que ele só se tornou Onipotente a partir do momento em que passaram a
existir criaturas sobre as quais ele pudesse exercer Seu poder. Assim Deus teria experimentado uma
espécie de progresso, pois não há dúvida de que para Ele é melhor ser Onipotente do que não o ser.
Agora, como não considerar absurdo que Deus não possuísse de início algo que Lhe é próprio, e
que só depois passasse a tê-lo? Mas, se não houve um tempo em que Deus não tenha sido
Onipotente, devem sempre ter existido as coisas em virtude das quais Ele é Onipotente; e devem ter
sempre existido coisas sob seu comando, sobre as quais Ele era o Ordenador”. Tendo em vista a
perfeita imutabilidade Divina, “é preciso que as criaturas de Deus tenham sido criadas desde o
começo, e que não tenha havido tempo em que elas não existiam”. Como é inadmissível pensar
assim, Deus “teria passado da inação à ação”. Assim sendo, é preciso reconhecer que “em Deus
todas as coisas são sem começo e co-eternas a Ele”.

Não é fácil escapar da rede dialética de Orígenes. Nessa problemática reside uma dificuldade
incontestável. “Quando eu penso que Deus é Senhor desde a eternidade”, exclama Agostinho, “eu
temo nada poder afirmar”. Orígenes complicou essa questão por causa de sua inabilidade em se
colocar completamente fora do tempo enquanto mudança. Juntamente com a sempiterna e imóvel
eternidade do Ser Divino, ele imaginou um fluxo interminável de eras que tinham que ser
preenchidas. Ademais, nenhuma sequência de predicados Divinos lhe apareceu sob a forma de real
mudança temporal; e assim, tendo excluído a mudança, ele se viu inclinado a negar toda e qualquer
sequência, toda e qualquer interdependência entre os predicados vistos como um todo; ele afirmou
mais do que a mera co-eternidade do mundo para com Deus; ele afirmou a necessidade de uma
auto-abertura Divina ad extra, a necessidade da revelação e de um derramamento de bondade
Divina sobre o “outro” por toda a eternidade, a necessidade de uma realização eterna da plenitude e
de todas as potencialidades do Divino poder. Orígenes se viu obrigado a admitir a necessidade de
um concomitante “não Eu” sempre existente e sem começo como pré-requisito correspondente de
uma completude e de uma vida Divina correlativas. E esse é o nó final da questão. É perfeitamente
possível que o mundo nunca existisse de modo algum – possível no sentido pleno da palavra, na
certeza de que Deus poderia não tê-lo criado. Se, por outro lado, Deus criou sem necessidade, por
causa da completude de Seu Ser, então o mundo tinha que existir; e assim não era possível que o
mundo não existisse. Mesmo se rejeitarmos a noção Origenista da Infinitude do tempo passado e
reconhecermos o começo do tempo, a questão permanece: não teria, no mínimo, a ideia do mundo
se originado da absoluta necessidade do Ser Divino?

Podemos assumir que o mundo real veio a existir com o tempo, e que “houve um tempo quando ele
não existia”, quando não havia mudança temporal. Mas a imagem do mundo, não permaneceria ela
eterna e perenemente no conhecimento e na vontade Divina, participando imutável e inelutavelmente
da plenitude do autoconhecimento e da autodeterminação Divina?

A esse respeito, São Metódio de Olímpia apontou contra Orígenes, estabelecendo que a Perfeição
Divina não poderia depender de nada exceto o próprio Deus, exceto sua própria natureza. Com
efeito, Deus criou apenas a partir de Sua bondade, e nessa bondade Divina reside a única base de
Sua revelação ao “outro”, a única base para que a simples existência do “outro” constitua o
receptáculo e o objeto de Sua bondade. Mas, devemos não pensar que essa revelação seja eterna?
E, se devemos – uma vez que Deus vive na eternidade e na imutável completude – não significaria
isso que, em última análise, a “imagem do mundo” estava presente, e concomitantemente presente,
imutavelmente com Deus na eternidade, e, mais ainda, na inalterável completude de todos os seus
predicados particulares? Não existirá uma “necessidade do conhecimento ou da vontade”? Não
significa isso que Deus, em Sua eterna autocontemplação contempla necessariamente
também aquilo que Ele não é, aquilo que não é Ele, mas outro? Não equivaleria isso a limitar Deus
em Sua sempiterna autoconsciência pela imagem de Seu “não Eu”, ao menos como uma espécie de
possibilidade? E, em Sua autoconsciência, não seria Ele forçado a pensar e a contemplar a Si
mesmo como um princípio criador e como fonte do mundo, e o mundo como um sujeito e como um
participante de Seu bel prazer? E, por outro lado, sobre todo o mundo está gravado o selo Divino,
um selo de permanência, um reflexo da glória Divina. A Divina economia do mundo, a inalterável e
imutável Providência de Deus, transmite – a nosso ver – perfeita estabilidade e sábia harmonia, e
também uma espécie de necessidade. Essa visão atrapalha nosso entendimento e a compreensão
da alegação de que o mundo poderia não ter existido. Parece que somos incapazes de conceber o
mundo como não-existente sem introduzir uma espécie de ímpia casualidade e arbitrariedade em
sua existência e sua gênese, ambas contraditórias e derrogatórias em relação à Sabedoria Divina.
Não é óbvio que deve haver algum tipo de causa suficiente para o mundo, cur sit potius quam non
sit? E que essa causa deve consistir na inalterável e sempiterna vontade e no comando de Deus?
Não se segue daí que, sendo o mundo impossível sem Deus, também Deus será impossível sem o
mundo? Dessa maneira, a dificuldade é protelada, mas não resolvida, se nos limitarmos ao começo
cronológico da real existência do mundo, desde, no caso, a possibilidade do mundo, a ideia do
mundo. O desígnio e o desejo de Deus em relação a ele permanecem eternos e, enquanto ideia,
perenemente unidos com Deus.

E devemos dizer desde logo que qualquer admissão como essa introduz o mundo na vida intra-
Trinitária da Divindade, na qualidade de princípio co-determinante. Mas devemos rejeitar de modo
firme e intransigente esse tipo de noção. A ideia do mundo, o desígnio e o desejo de Deus
concernentes ao mundo, é obviamente uma coisa eterna, mas em certo sentido não co-eterna, e não
perenemente inseparável Dele, porque é “distinta e separada”, por assim dizer, de Sua “essência”
por Sua volição. Antes é preferível dizer que a ideia Divina do mundo é eterna, mas de outro tipo de
eternidade do que a Divina essência. Embora paradoxal, essa distinção de tipos e modos da
eternidade é necessária para a expressão da incontestável distinção entre a essência (natureza) de
Deus e a vontade de Deus. Essa distinção não introduzirá nenhuma espécie de separação ou
divisão no Ser Divino, mas, por analogia, expressará a distinção entre vontade e natureza, essa
distinção fundamental que foi tornada incrivelmente explícita pelos Padres do século IV. A ideia de
mundo tem sua base, não na essência, mas na vontade de Deus. Deus não propriamente teve,
como “arquitetou” a ideia da criação. E Ele arquitetou em perfeita liberdade; e foi apenas em virtude
dessa “arquitetura” e pelo Seu bel prazer que Ele como que “se tornou” Criador, ainda que desde
sempre. E, não obstante, Ele poderia não ter criado. Mas nenhuma “desistência” da criação poderia,
de modo algum, alterar ou empobrecer a natureza Divina, nem implicar diminuição, assim como a
simples criação do mundo também não enriqueceu o Ser Divino. Assim é que, por meio de
oposições, chegamos mais perto de entender a liberdade criadora de Deus. Num certo sentido, seria
“indiferente” para Deus que o mundo existisse ou não – é nisso que consiste a absoluta e total
“suficiência” de Deus, a Divina autarquia. A ausência do mundo significaria uma espécie de
subtração daquilo que é finito do Infinito, que não afetaria a plenitude Divina. E, inversamente, a
criação do mundo não representaria uma adição do finito ao Infinito, que tampouco afetaria a
plenitude Divina. O poder de Deus e a liberdade de Deus devem ser definidos não apenas como
poder de criar e produzir, mas também como a absoluta liberdade para não criar.

Todas essas palavras e pressuposições, obviamente, são insuficientes e inexatas. Todas têm o
caráter de negações e de proibições, e não de definições diretas e positivas; mas elas são
necessárias para testemunhar essa experiência de fé na qual se revela o mistério da liberdade
Divina. Com inexatidão tolerável, podemos dizer que Deus é capaz de tolerar e permitir a ausência
de qualquer coisa fora Dele próprio. Com tal suposição, a total incomensurabilidade do amor Divino
não é diminuída, mas, ao contrário, é posta em relevo. Deus cria a partir da absoluta
superabundância de Sua misericórdia e bondade, e é nisso que se manifesta seu bel prazer e sua
liberdade. E, nesse sentido, podemos dizer que o mundo é uma espécie de supérfluo, ou de
acréscimo. Mais do que isso, trata-se de um acréscimo que de modo algum enriquece a plenitude
Divina; é como se fosse algo “supererrogatório”, e acrescentado, algo que poderia não ter existido, e
que só existe por causa da soberania e perfeita liberdade, pelo indizível bel prazer e amor de Deus.
Isso significa que o mundo foi criado, e que ele é “a obra da vontade” de Deus[14]. Nenhuma
revelação exterior, seja qual for, pertence à “necessidade” da natureza Divina, à estrutura necessária
da vida intra-Divina. E a revelação criadora não é algo imposto a Deus por Sua divindade. Ela se
realiza em perfeita liberdade, embora também eternamente. Por isso não se pode dizer que
Deus começou a criar, ou “se tornou” Criador, embora “ser Criador” não pertença a essas definições
da natureza Divina que inclui a Trindade das Hipóstases. Na perene imutabilidade do Ser de Deus
não existe qualquer tipo de origem, nem de devir, nem sequência de espécie alguma. Não obstante,
existe algo como uma ordem harmônica perfeitíssima que pode ser conhecida e expressa
parcialmente no nível dos nomes Divinos. Nesse sentido, Santo Atanásio o Grande dizia que “criar,
para Deus, é secundário; e gerar é primário”, que “aquilo que pertence à natureza [essência]
antecede aquilo que pertence à volição”. Devemos admitir distinções dentro da simples co-
eternidade e imutabilidade do Ser Divino. Na vida Divina absolutamente simples existe uma
ordem[15] absolutamente racional e lógica das Hipóstases, que é irreversível e imutável pela simples
razão de que existe um “primeiro princípio”, ou “fonte”, da Divindade, e que existe uma enumeração
de Primeira, Segunda e Terceira Pessoa. E, do mesmo modo se pode dizer que a estrutura Trinitária
antecede à vontade e ao pensamento de Deus, porque a vontade Divina constitui a vontade comum
e indivisível da Santíssima Trindade, assim como ela antecede todos os atos Divinos e as “energias”.
Porém, mais do que isso, a Trindade constitui a auto revelação interna da natureza Divina. As
propriedades de Deus são também revelações da mesma espécie, mas quanto a mostrá-las Deus é
livre. A vontade imutável de Deus postula livremente a criação – inclusive a ideia de criação. Seria
um erro tentador ver a “ideação” do mundo por Deus como uma “criação ideal”, porque a ideia do
mundo e o mundo das ideias estão totalmente em Deus[16], e em Deus não existe, nem pode existir,
algo a ser criado. Mas essa noção ambígua de uma “criação ideal” define com grande clareza a
completa distinção entre a necessidade do Ser Trinitário de um lado, e a liberdade do desígnio de
Deus– seu bel prazer relativo à criação – de outro. Aqui reside uma distinção absoluta e irremovível,
cuja negação conduz a imaginar toda a economia criada como feita de atos essenciais e condições
que revelariam a natureza Divina como uma ideia de necessidade, e isso conduziria a nivelar o
mundo – pelo menos o “mundo inteligível[17]” – a uma altura que não lhe cabe. Podemos,
permitindo-nos certa audácia, dizer que na ideia Divina da criação existe algo de contingente, e que,
se ela fosse eterna, não seria uma eternidade por essência, mas uma eternidade livre. Poderíamos
explicar a liberdade do desígnio de Deus – Seu bel prazer – por nós através da hipótese de que essa
ideia não precisaria ser postulada de modo algum. Certamente, trata-se de um casus irrealis, mas
não existe contradição inerente nisso. Certamente, uma vez que Deus “arquitetou” ou postulou tal
ideia, Ele tinha razões suficientes para fazê-lo. Todavia, podemos pensar que Agostinho estava certo
ao proibir qualquer pesquisa a respeito da “causa da vontade de Deus”. Ela não é limitada por nada
nem preordenada pelo que quer que seja. A vontade Divina não pode ser constrangida por nada
para “arquitetar” o mundo. Desde a eternidade, a Mente Divina, escreveu entusiasticamente São
Gregório o Teólogo, “contemplou a luz desejada de Sua própria beleza, o esplendor igual e
igualmente perfeito da Divindade triplamente radiante (...) a Mente criadora do mundo, em Seu vasto
pensamento, meditou sobre os padrões do mundo que Ela modelara, sobre o cosmo que fôra
produzido posteriormente, mas que sempre estivera presente para Deus. Tudo, para Deus, está
diante de Seus olhos, o que será, o que foi e o que é (...) Pois para Deus tudo flui em um, e tudo é
sustentado pelos braços da grande Divindade!”.

A “luz desejada” da beleza Divina não poderia ser realçada por esses “padrões do mundo”, e a
Mente os “produziu” apenas a partir da superabundância de seu amor. Eles não pertencem ao
esplendor da Trindade; eles foram postulados por Sua vontade e bel prazer. E esses simples
“padrões do mundo” constituem em si um acréscimo e um dom ou “bônus” acrescentado por Aquele
que é Amor bendito e abençoado. A infinita liberdade de Deus se manifesta no bel prazer de Sua
vontade em criar o mundo.

Assim é que Santo Atanásio diz: “O Pai criou a tudo, pelo Verbo e n o Espírito” – a criação é um ato
comum e indivisível da Santa Trindade. Deus cria pelo pensamento, e o pensamento se torna ato,
como diz São João Damasceno[18]. “Ele contemplou a tudo antes de sua existência, refletindo em
Sua mente desde a eternidade; a partir daí cada coisa recebeu sua existência num tempo
determinado de acordo com seu pensamento intemporal, que é predestinação, imagem e forma[19]”.
Esses padrões e protótipos das coisas que existirão constituem o “conselho imutável e pré-temporal”
de Deus, no qual tudo tem seu caráter distintivo[20] antes ainda de existir, tudo o que foi desde
sempre preordenado por Deus e então trazido à existência[21]. Esse “conselho” de Deus é eterno e
imutável, pré-temporal e sem começo[22], uma vez que todo Divino é imutável. E é nisso que
consiste a imagem de Deus, a segunda forma dessa imagem, a imagem voltada para a criação. São
João Damasceno se refere ao Pseudo-Dionísio. Esses padrões criadores, diz o Areopagita, “são
fundamentos criadores preexistentes conjuntamente em Deus, e juntos eles compõem os poderes
que transformam os seres em entidades, poderes que a teologia chama de ‘predestinações’,
decisões Divinas e beneficentes que são determinativas e criadoras de todas as coisas existentes,
de acordo com as quais Aquele que está acima de toda existência preordenou e produziu todas as
coisas[23]”. DE acordo com São Máximo o Confessor esses tipos e ideias são os pensamentos
Divinos perfeitíssimos e perenes do Deus eterno[24]. Esse conselho eterno constitui o desígnio e a
decisão de Deus referentes ao mundo. Ele deve ser rigorosamente distinguido do mundo como tal. A
ideia Divina da criação não é a criação em si; ela não é a substância da criação; não é a portadora
do processo cósmico; e a transição do “desígnio” () para o “feito” () não é um processo
interno à ideia Divina, mas a aparência, a formação e a realização de outro substrato, de uma
multiplicidade de objetos criados. A ideia Divina permanece imutável e inalterável, ela não está
envolvida no processo da formação. Ela permanece sempre fora do mundo criado, transcendente em
relação a ele. O mundo é criado de acordo com a ideia, em concordância com o padrão – ele é a
realização do padrão – mas esse padrão não é objeto de transformação. O padrão é uma norma e
um objetivo estabelecido em Deus. Essa distinção e essa distância jamais são abolidas, e assim a
eternidade do padrão, que é fixa e jamais se envolve na mudança temporal, é compatível com o
começo do tempo, com o vir-a-ser dos portadores dos decretos externos. “As coisas, antes de virem
a ser, são como que não existentes”, dizia Agostinho – utiquae non erant. E ele explica: elas tanto
eram como não eram antes de serem originadas; “elas existiam no conhecimento de Deus, mas não
em sua própria natureza – erant in Dei scientia, non erant in sua natura. De acordo com São
Máximo, os seres criados “são imagens e similares às ideias Divinas”, das quais são “participantes”.
Na criação, o Criador realiza, “torna substancial” e “revela” Seu conhecimento, perenemente
preexistente em Si próprio. Na criação uma nova realidade é projetada desde o nada e se torna
portadora da ideia Divina, e ela deve realizar essa ideia desde seu próprio começo. Nesse contexto,
a tendência panteísta da ideologia Platônica e da teoria Estoica das “razões seminais[25]” são
ambas ultrapassadas e evitadas. Para o Platonismo é característica a identificação da “essência” de
cada coisa com sua ideia Divina, a adoção de substância com as propriedades e predicados eternos,
absolutos e sem começo, bem como a introdução da “ideia” nas coisas reais. Ao contrário, o núcleo
criado das coisas deve ser rigorosamente distinguido da ideia Divina sobre as coisas. Somente
dessa maneira o mais sequaz realismo lógico pode se libertar de um certo odor de panteísmo; a
realidade do todo, entretanto, permanecerá como não mais do que uma realidade criada. Junto com
isso, o “pan-logismo” é também ultrapassado: o pensamento de uma coisa e o Divino pensamento-
desígnio dessa coisa não são sua “essência” ou núcleo, ainda que e própria essência seja
caracterizada pelo Logos. O padrão Divino nas coisas não é sua “substância”, ou sua “hipóstase”;
ele não é o veículo de suas qualidades e condições. Antes, ele pode ser chamado de verdade da
coisa, sua entelequia[26] transcendental. Mas a verdade de uma coisa e a substância de uma coisa
não são idênticas.

***

A aceitação da absoluta criaturidade e da não autossuficiência do mundo conduz a distinguir dois


tipos de predicados e de atos em Deus. De fato, nesse ponto alcançamos o limite de nosso
entendimento, e todas as palavras de tornam como se fossem mudas e inexatas, recebendo um
sentido indicativo que é apofático, proibitivo, nunca catafático. Entretanto, o exemplo dos santos
Padres enconraja uma confissão de fé especulativa. Como disse o Metropolita Filarete, “jamais
devemos considerar a sabedoria, mesmo aquela que se oculta num mistério, como alheia ou além
de nós, mas, com humildade, devemos edificar nossa mente em direção à contemplação das coisas
divinas”. Apenas, em nossa especulação devemos evitar ir além das fronteiras da revelação positiva,
e devemos nos limitar à interpretação da experiência da fé e da regra da fé, assumindo não fazer
mais do que discernir e esclarecer aquelas pressuposições inerentes através das quais a confissão
dos dogmas enquanto verdades inteligíveis se torna possível. E devemos dizer que toda a estrutura
da doutrina da fé encoraja essas distinções. Em essência, elas já foram dadas nas distinções
primitivas e primárias entre “teologia” e “economia”. Desde o começo da história Cristã, os Padres e
Doutores da Igreja se esforçaram por distinguir clara e agudamente entre as definições e nomes
referentes a Deus no plano “teológico”, daquelas utilizadas no plano “econômico”. Por trás disso está
a distinção entre “natureza” e “vontade”. E colado a isso está a distinção entre “essência” () e
“aquilo que envolve a essência”, “aquilo que está relacionado com a natureza”. Uma distinção, mas
não uma separação.

“O que dizemos a respeito de Deus afirmativamente nos mostra”, explica São João Damasceno,
“não Sua natureza, mas apenas o que está relacionado à Sua natureza[27]”, “algo que acompanha
sua natureza[28]”. E “o que Ele é em sua essência e natureza, isso é inatingível e incognoscível”.
São João expressa aqui a premissa básica e constante da teologia Oriental: a essência de Deus é
inatingível; apenas as potências e operações de Deus são acessíveis ao conhecimento. E, como
permanecem questões, existem algumas distinções a fazer entre elas. Existe uma distinção a ser
feita, referente à relação de Deus para com o mundo. Deus só pode ser conhecido e alcançado na
medida em que Ele se volta para o mundo, apenas em Sua revelação para o mundo, apenas por
intermédio de sua economia ou ordenação do mundo. A vida Divina interna é cercada pela “luz
intransponível”, e só pode ser conhecida no nível da teologia “apofática”, com a exclusão de
definições e nomes ambíguos e inadequados. Na literatura do período pré-Nicênico, essa distinção
nem sempre possuía um caráter ambíguo e enevoado. Razões cosmológicas eram muitas vezes
utilizadas na definição das relações intra-Trinitárias, e a Segunda Hipóstase era frequentemente
definida a partir da perspectiva da manifestação ou revelação de Deus ao mundo, como o Deus da
revelação, como o Verbo Criador. Por essa razão o incognoscível e o inacessível foram assinalados
primariamente à Hipóstase do Pai, enquanto Ser irrevelável e inefável. Deus revelou a Si mesmo
apenas no Logos, o “Verbo pronunciado[29]”, como numa “ideia e poder ativo” emitido além de si
para proceder à criação. Conectada com isso está a tendência ao subordinacionismo na
interpretação teológica pré-Nicênica do dogma Trinitário. Apenas os Padres do quarto século
obtiveram com sua teologia Trinitária a base para uma adequada formulação da relação entre Deus
e o mundo: a “operação” () inteira e indivisa da Trindade consubstancial é revelada nos atos
e feitos de Deus. Mas a simples “essência” () da Trindade indivisível permanece além do
alcance do conhecimento e do entendimento. Suas obras, explica São Basílio o Grande, revelam o
poder e a sabedoria de Deus, mas não Sua essência em Si. “Nós afirmamos”, escreve ele para
Anfilóquio de Icônia, “que conhecemos nosso Deus por Suas energias, mas não presumimos que
seja possível nos aproximarmos de Sua essência em Si. Porque, apesar de que Suas desçam até
nós, Sua essência permanece inacessível”. E essas energias são multiformes, ainda que a essência
seja simples. A essência de Deus é insondável para o homem, e só é conhecida do Filho Unigênito e
do Espírito Santo. Nas palavras de São Gregório o Teólogo, a essência de Deus é “o Santo dos
Santos, fechado inclusive aos Serafins, e glorificado por eles ‘Santo’ que acompanham sua
Majestade e sua Divindade”. E a mente criada é capaz, ainda que imperfeitamente, de “esboçar” um
pequeno “diagrama da verdade” no infinito oceano da entidade Divina, mas não baseado naquilo que
Deus é, mas naquilo que o cerca (   ). “A essência Divina, totalmente inacessível e
incomparável”, diz São Gregório de Nissa, “só pode ser conhecida por intermédio de Suas energias”.
E todas as nossas palavras referentes a Deus denotam, não Sua essência, mas Suas energias. A
essência Divina é inacessível, inominável e inefável. Os nomes variados e relativos referentes a
Deus não nomeiam Sua natureza ou essência, mas os atributos de Deus. E mesmo os atributos de
Deus não são as marcas ou os sinais inteligíveis ou cognoscíveis que constituem nossa noção
humana de Deus; eles não são abstrações ou fórmulas conceituais. Eles são energias, poderes,
ações. Eles são manifestações vivificadoras reais e essenciais da Vida Divina – imagens reais da
relação ou criação de Deus, conectadas com a imagem da criação no conhecimento e no conselho
eternos de Deus. E é isso “que pode ser conhecido a respeito de Deus” –   . É
como se fosse o domínio particular do individido (ainda que possuindo muitos nomes) Ser Divino, do
“esplendor e da atividade Divina[31]”, como disse São João Damasceno, seguindo o Areopagita. De
acordo com a palavra Apostólica, “as coisas invisíveis de Deus, desde a criação do mundo, podem
ser vistas claramente, podem ser entendidas por meio das coisas que foram feitas, inclusive Seu
poder eterno e Sua Divindade[32]”. E essa revelação ou manifestação de Deus, “Deus as manifestou
() ao homem”. O Bispo Silvestre explica corretamente ao comentar essas palavras
Apostólicas: “AS coisas invisíveis de Deus, sendo realmente existentes e não meramente
imaginárias, se tornam visíveis, não numa espécie de maneira ilusória, mas certamente,
verdadeiramente; não como um mero fantasma, mas em Seu eterno poder; não meramente nos
pensamentos do homem, mas nos próprios fatos – a realidade de Sua Divindade”. Elas são visíveis
porque são manifestadas e reveladas. Pois Deus está presente em toda parte, não
fantasmagoricamente, não remotamente, mas realmente presente em toda parte – “presente em
toda parte e ocupando todo lugar, Tesouro dos bens e Dispensador da vida”. Essa ubiquidade
providencial (diferente da presença carismática ou “particular” de Deus, que não está em toda parte)
constitui uma “forma de existência” particular de Deus, distinta da “forma de Sua existência de
acordo com a Sua natureza”. Ademais, essa forma é existencialmente real ou subsistente – trata-se
de uma presença real, não meramente uma onipresença operativa, sicut agens adest ei in quod
agit[33]. E, se “não somos capazes de entender particularmente” – no dizer de São João Crisóstomo
– essa onipresença misteriosa, e essa forma ad extra do Ser Divino, não obstante é indiscutível que
Deus “está em toda parte, inteiro e completo”, “tudo em tudo”, como diz São João Damasceno[34].
Os atos vivificadores de Deus no mundo são o próprio Deus – uma asserção que exclui a separação,
sem abolir a distinção. Na doutrina dos Padres da Capadócia referentes à “essência” e às “energias”
encontramos numa forma elaborada e sistemática o misterioso autor das Areopagitas que
determinou todo o desenvolvimento subsequente da teologia Bizantina. Dionísio se baseia na estrita
distinção entre os “Nomes Divinos” que se referem à vida Trinitária e intra-Divina, e aqueles que
expressão a relação de Deus ad extra. Mas ambas as séries de nomes falam da imutável realidade
Divina. A vida intra-Divina está oculta a qualquer entendimento, e é conhecida apenas por meio de
negações e proibições; na frase de São Gregório o Teólogo, “aquele que, ao ver a Deus, entende o
que vê, não O viu realmente”. E, não obstante Deus realmente se revela em atos e está presente na
criação através de Seus poderes e ideias – “em providências e graças que brotam do Deus
incomunicável, que respingam de uma correnteza, e da qual todas as coisas participam”, “numa
processão produzida pela essência[35]”, “numa providência que produz coisas boas[36]”, que são
distintas, mas não separadas, da entidade Divina “que ultrapassa a entidade”, do próprio Deus, como
São Máximo diz em sua scholia. A base dessas “processões” e da, digamos, processão de Deus em
Suas providências a partir de Si[37] está em Sua Divindade e Seu Amor. Essas energias não se
misturam com as coisas criadas, e não são elas próprias essas coisas, mas são seus princípios
básicos e vivificadores: são os protótipos, as predeterminações, as razões, os  e as decisões
Divinas a respeito delas, das quais elas participam e com as quais devem ser “comunicantes”. Elas
não são apenas o “princípio” e a “causa”, mas também o “desafio” e o objetivo em vista, que está
além e acima de todos os limites. Seria difícil expressar com mais força, tanto a distinção quanto a
indivisibilidade entre a Essência Divina e as energias Divinas, como o fez o Areopagita –
    . As energias Divinas são o aspecto de Deus que está voltado para a
criação. Não se trata de um aspecto imaginado por nós: não se trata do que vemos e como o vemos,
mas do olhar real e vivo do próprio Deus, por meio do qual Ele deseja, vivifica e preserva todas as
coisas – o olhar do Onipotente e Superabundante Amor.

A doutrina das energias de Deus recebeu sua formulação final na teologia Bizantina do século XIV, e
acima de tudo com São Gregório Palamas. Ele se baseou na distinção entre Graça e Essência: “o
divino e deificante esplendor, e a graça, não constituem a essência, mas a energia de Deus[38]”. A
noção da energia Divina recebeu uma definição explícita na série de Sínodos que aconteceram no
século XIV em Constantinopla. Existe uma distinção real, mas não uma separação, entre
a essência ou a entidade de Deus e Suas energias. Essa distinção se manifesta acima de tudo no
fato de que a Entidade é absolutamente incomunicável e inacessível às criaturas. As criaturas têm
acesso e podem se comunicar apenas com as Energias Divinas. Mas, por intermédio dessa
participação, elas entram em perfeita e genuína comunhão e união com Deus; elas recebem a
“deificação”. Sendo “a energia e o poder naturais e indivisíveis de Deus[39], são o poder e a energia
Divina comuns ao Deus Tri-Hipostático”. O poder Divino ativo não se separa da Essência. Essa
“processão” () expressa uma “distinção inefável” que de modo algum perturba a unidade
que “ultrapassa a essência”. O poder ativo de Deus não é a mera “substância” de Deus, tampouco
um “acidente” (); por ser imutável e co-eterno a Deus, ele existe desde antes da criação e
revela a vontade criadora de Deus. Em Deus não existe apenas a essência, mas também aquilo que
não é a essência, embora não seja um acidente – o poder Divino e a vontade Divina – Sua
providência e autoridade real, existencial e produtora da essência. São Gregório Palamas enfatiza
que qualquer recusa em fazer uma distinção de fato entre a “essência” e a “energia” apaga e
confunde a fronteira entre geração e criação – tanto uma como outra passam a parecer com atos da
essência. E, como explicou São Marcos de Éfeso, “Existência e energia, coincidem total e
completamente em equivalente necessidade. A distinção entre a essência e a vontade (s) é
abolida; sendo assim, Deus apenas gera, mas não cria, e não exerce Sua vontade. Então a
diferença entre presciência e fazer se torna indefinida, e a criação parece ser criada co-
eternamente”. A essência de Deus consiste numa auto-existência inerente; e a energia consiste nas
Suas relações com o outro ( ). Deus é Vida, e tem vida; é Sabedoria, e tem sabedoria; e
assim por diante. A primeira série dessas expressões se refere à essência incomunicável, a segunda
às energias distintas e inseparáveis da essência única, que desce à criação. Nenhuma dessas
energias é hipostática, nem constitui uma hipóstase em si, e sua incalculável multiplicidade não
introduz composição alguma no Ser Divino. A totalidade das “energias” Divinas constitui Sua vontade
pré-temporal, Seu Desígnio – Seu bel prazer – referentes ao “outro”, Seu eterno conselho. Trata-se
de Deus em Si, não Sua Essência, mas Sua vontade. A distinção entre “essência” e “energias” – ou,
podemos dizer, entre “natureza” e “graça” (s e s) – corresponde à misteriosa distinção em
Deus entre “necessidade” e “liberdade”, entendidas em sentido próprio. Em Sua misteriosa Essência,
Deus é, podemos dizer, “necessitado” – não, é óbvio, por qualquer necessidade ou constrangimento,
mas por uma espécie de necessidade de natureza, que está, nas palavras de Santo Atanásio o
Grande, “acima e anterior à livre escolha”. E ousamos dizer, se nos é permitido: Deus não pode ser
senão a Trindade das Pessoas. A Tríade de Hipóstases está acima da Vontade Divina, ela é como
se fosse “uma necessidade”, ou “lei” da natureza Divina. Essa “necessidade” interna está expressa
tanto na noção de “consubstancialidade”, como na da perfeita indivisibilidade das Três Pessoas na
medida em que Elas coexistem e interpenetram umas às outras. No entender de São Máximo o
Confessor, seria impróprio e infrutífero introduzir a noção de vontade na vida interna da Divindade
com o objetivo de definir as relações entre as Hipóstases, porque as Pessoas da Santíssima
Trindade existem juntas acima de qualquer espécie de relação ou de ação, e por Sua Existência
determinam as relações entre Si mesmas. A Vontade “natural”, comum e individida de Deus é livre.
Deus é livre em suas operações e em seus atos. E assim, para uma confissão dogmática das
relações recíprocas entre as Hipóstases Divinas, devem ser encontradas expressões tais que
excluam quaisquer motivos cosmológicos, quaisquer relações com os seres criados e seus destinos,
quaisquer relações com a criação ou com a recriação. O patamar do ser Trinitário não está na
economia ou na revelação de Deus ad extra. O mistério da vida intra-Divina deve ser concebido em
total abstração da dispensação; e as propriedades hipostáticas das Pessoas deve ser definida à
parte de todo relacionamento com a existência da criação, e apenas de acordo com o
relacionamento que subsiste entre Elas. A relação viva entre Deus – precisamente enquanto Tríade
– e a criação não é de modo algum obscurecida: a distinção nas relações das diferentes Hipóstases
perante a criação tampouco é obscurecida. Ao contrário, uma perspectiva adequada se estabelece
assim. Todo o significado da definição dogmática da Divindade de Cristo, tal como interpretada pela
Igreja, reside na exclusão de todos os predicados relativos à condescendência Divina que O
caracteriza enquanto Criador e Redentor, como Demiurgo e Salvador, de modo a entender Sua
Divindade à luz da Divina Vida interna, da Natureza e da Essência. O relacionamento criador do
Verbo para com o mundo é explicitamente confessado no Credo Nicênico – “por Quem todas as
coisas foram feitas”. E “as coisas” foram feitas não apenas porque o Verbo é Deus, mas também
porque o Verbo é o Verbo de Deus, o Verbo Divino. Ninguém foi tão enfático na separação entre o
momento demiúrgico na ação de Cristo do dogma da eterna geração do Verbo quanto Santo
Atanásio o Grande. A geração do Verbo não pressupõe a existência – sequer o desígnio – do
mundo. Ainda que o mundo não tivesse sido criado, o Verbo existiria na plenitude de Sua Divindade,
porque o Verbo é Filho por natureza (s ). “Se Deus quisesse não ter criado nenhuma
criatura, não obstante o Verbo estaria com Deus, e o Pai estaria Nele”, como dia Santo Atanásio; e
isso, porque as criaturas não podem receber sua existência senão por intermédio do Verbo. As
criaturas foram criadas pelo Verbo e por meio do Verbi, “à imagem” do Verbo, “à imagem da
imagem” do Pai, como expressou São Metódio de Olímpia. A criação pressupõe a Trindade, e o selo
da Trindade repousa sobre toda a criação; mas nem por isso devemos introduzir motivos
cosmológicos na definição da Existência intra-Trinitária. Porém, podemos dizer que a plenitude
natural da essência Divina está contida na Trindade, e que assim o desígnio – Seu bel prazer –
referente ao mundo é um ato criador, uma operação da vontade – uma abundância de amor Divino,
um dom e uma graça. A distinção entre os nomes de “Deus em Si”, em Sua existência eterna, e os
nomes que descrevem Deus na revelação, na “economia”, na ação, não é apenas uma distinção
subjetiva de nosso pensamento analítico; ela tem Um objetivo e um significado ontológico, e
expressa a absoluta liberdade da criatividade e da operação Divinas. Isso inclui a “economia” da
salvação. O Conselho Divino referente à salvação e redenção constitui um decreto eterno e pré-
temporal, um “propósito eterno[40]”, o “mistério de que, desde o princípio, o mundo estava oculto em
Deus[41]”. O Filho de Deus está desde sempre destinado à Encarnação e à Cruz, e assim Ele é o
Cordeiro “que estava destinado desde antes da fundação do mundo[42]”, “o Cordeiro sacrificado
desde a fundação do mundo[43]”. Mas esse “propósito” (s) não pertence à necessidade
“essencial” da natureza Divina; não se trata de uma “obra da natureza, mas da imagem da
condescendência econômica”, como diz São João Damasceno. Trata-se de um ato do amor Divino –
“porque Deus amou tanto o mundo...”. E assim os predicados que se referem à economia da
salvação não coincidem com os predicados pelos quais a Existência Hipostática da Segunda Pessoa
é definida. Na Divina revelação não existe obrigatoriedade, e isso se expressa na noção da perfeita
Divina Beatitude. A revelação é um ato de amor e liberdade, e assim ela não introduz mudanças na
natureza Divina. Ela não introduz mudanças simplesmente porque não existem fundamentos
“naturais” para a revelação. A fundação do mundo por si só consiste na liberdade de Deus, a
liberdade do Amor.

***

Desde a eternidade, Deus “arquitetou” a imagem do mundo, como um conselho imutável e


inalterável de Sua liberdade e a Seu bel prazer. Mas essa imutabilidade da vontade realizada não
implica minimamente sua necessidade. A imutabilidade da vontade de Deus jaz em Sua suprema
liberdade. E assim Ele também não compromete Sua liberdade na criação. Podemos aqui recordar a
distinção escolástica entre potentia absoluta e potentia ordinata.

E, em conformidade com o desígnio – o bel prazer de Deus – a criação, juntamente com o tempo, foi
“produzida” a partir do nada. Através da transformação temporal, a criação deve avançar por sua
livre ascensão de acordo com o padrão da economia Divina, respeitando-a, conforme o padrão da
sua imagem pré-temporal e de sua predestinação. A imagem Divina do mundo permanece sempre
acima e além da criação por natureza. A criação é limitada por ela imutável e inseparadamente,
inclusive em sua resistência a ela. Isso é devido a que essa “imagem” ou “ideia” da criação é
simultaneamente a vontade de Deus ( ) e o poder de Deus por meio do qual a
criação é produzida e sustentada; e o conselho beneficente do Criador não é anulado pela
resistência da criação, mas, por meio dessa resistência ele se torna, para os rebeldes, um
julgamento, a força da ira, um fogo devorador. Na imagem Divina e no conselho Divino, cada criatura
– isso é, toda hipóstase criada em sua forma imperecível e irreprodutível - está contida. A partir de
Sua eternidade Deus vê e quer, por seu bel prazer, todos e cada um dos seres na plenitude de seus
destinos e peculiaridades, incluindo seu futuro e seus pecados. E se, de acordo com a visão mística
de São Simeão o Novo Teólogo, no século futuro, “Cristo contemplará as inumeráveis miríades de
Santos, sem desviar de nenhum o Seu olhar, de modo que cada um deles o verá como se estivesse
olhando para si, falando consigo, saudando-o”, e ainda “ao mesmo tempo em que permanece
inalterado, Ele parecerá diferente a um do que o será a outro” – da mesma forma, a partir da
eternidade, Deus, no conselho de Seu bel prazer, contempla a inumerável miríade de hipóstases
criadas, as quer, e a cada uma delas ele Se manifesta de forma diferente. E é nisso que consiste a
“inseparável distribuição” de Sua graça e Sua energia, “multiplamente hipostáticas”, na audaciosa
expressão de São Gregório Palamas, porque essa graça e essa energia são beneficamente
distribuídas por milhares de miríades de milhares de hipóstases. Cada hipóstase, em seu ser
específico e sua existência, é marcado por um raio específico da satisfação do amor de Deus e de
Sua vontade. E, nesse sentido, todas as coisas estão em Deus – em “imagem”
(   ) mas não por natureza, pois o “tudo” criado está infinitamente aquém da
Natureza Incriada. Essa distância é superada pelo amor Divino e sua impenetrabilidade desmontada
pela Encarnação do Verbo de Deus. Mas ainda assim, a distância permanece. A imagem da
criação em Deus transcende a natureza criada e não coincide com a “imagem de Deus” na criação.
Qualquer que seja a descrição que se possa fazer da “imagem de Deus” no homem, ela
corresponderá a um instante característico de sua natureza criada – ela é criada. Trata-se de uma
“semelhança”, um reflexo. Mas acima da imagem a Proto-imagem brilha sempre, com uma luz que é
às vezes alegre, outras vezes ameaçadora. Ela brilha como um chamado e como uma lei. Existe na
criação um objetivo sobrenaturalmente desafiador, colocado acima de sua própria natureza – esse
objetivo desafiador é fundamentado na liberdade, na livre participação em Deus e na união com
Deus. Esse desafio transcende a natureza criada, mas apenas ao responder a ele essa natureza
consegue revelar a si própria em sua plenitude. Esse objetivo desafiador constitui um propósito, que
só pode ser realizado por meio da autodeterminação e dos esforços da criatura. Assim sendo, o
processo de transformação da criação reside realmente em sua liberdade, e é livre em sua realidade,
e é por meio dessa transformação que aquilo-que-não-era encontra sua plenitude e se completa
integralmente. Pois ele é guiado pelo objetivo desafiador. Nele existe espaço para a criação, a
construção, para a reconstrução – não apenas no sentido de uma recuperação, como também no
sentido de gerar o que é novo. O escopo dessa construtividade é definido pela contradição entre
a natureza e o objetivo. Num certo sentido, esse objetivo em si é “natural”, e próprio daquele que
executa as ações construtivas, de modo que a aderência a esse objetivo é, de certa forma, também
a realização do sujeito em si. Não obstante, esse “eu” que realiza e que se realiza através da
construtividade não é o “eu” empírico e “natural”, ainda mais na medida em que qualquer realização
do próprio “eu” constitui uma ruptura – um salto do plano da natureza para o plano da graça, porque
essa realização é a aquisição do Espirito, é participação em Deus. Apenas nessa “comunhão” com
Deus o homem pode se tornar “si mesmo”; na separação de Deus e no auto-isolamento, ao
contrário, ele desce a um plano inferior a si. Mas ao mesmo tempo, ele não se realiza a partir de si
mesmo. Devido ao fato de que o objetivo está além da natureza, ele se apresenta como um convite a
um vivo e livre encontro e uma união com Deus. O mundo é substancialmente diferente a partir de
Deus. E assim o plano de Deus para o mundo pode ser realizado apenas pela transformação criada
– porque esse plano não consiste num substrato ou numa substantia que chega à existência e se
completa, mas ele é o padrão e o coroamento da transformação do “outro”. Por outro lado, o
processo criador não constitui assim um desenvolvimento, ou, ao menos, ele não é apenas um
desenvolvimento; seu significado não consiste no mero desdobramento e na manifestação de fins
“naturais” inatos, ou não apenas nisso. Mais do que isso, a última e suprema autodeterminação da
natureza criada emerge em seu fervoroso impulso para exceder a si própria
numa s , conforme diz São Máximo. E um derramamento de unção da graça
responde a essa inclinação, coroando os esforços das criaturas.

O limite e o objetivo do esforço e da transformação do ser criado é a divinização (s) ou a


deificação (s). Mas mesmo nisso, o imutável e inalterável hiato entre as naturezas
permanecerá: qualquer “transubstanciação” da criatura está excluída. É verdade que, de acordo com
a frase de Basílio o Grande preservada por São Gregório o Teólogo, a criação “foi ordenada a que
se tornasse Deus”. Mas essa “deificação” consiste apenas numa comunhão com Deus,
numa participação () em Sua vida e Seus dons, e, por conseguinte, numa certa aquisição
de alguma similaridade com a Realidade Divina. Ungido e marcado pelo Espírito, os homens se
tornam conformes à Imagem Divina, ou protótipos de si mesmos; e por intermédio disso eles se
tornam “conformes a Deus” ( ). Com a Encarnação do Verbo, o primeiro fruto da
natureza humana foi inalteravelmente enxertado na Vida Divina, e desde então o caminho para a
comunhão com essa Vida se abriu para todas as criaturas, o caminho da adoção por Deus. Na frase
de Santo Atanásio, o Verbo “se tornou homem para nos deificar () Nele”, para que “os
filhos dos homens pudessem se tornar filhos de Deus”. Mas essa “divinização” só pode ser adquirida
porque Cristo, o Verbo Encarnado, nos tornou “receptivos ao Espírito”, porque Ele preparou para nós
tanto a ascensão e a ressurreição como a habitação e a apropriação do Espírito Santo. Através do
“Deus feito carne” nos tornamos “homens portadores do Espírito”; nós nos tornamos filhos “pela
graça”, “filhos de Deus à semelhança do Filho de Deus”. E assim se recupera o que havia sido
perdido desde o pecado original, quando “a transgressão do mandamento volveu o homem para
aquilo que ele era por natureza”, acima da qual ele havia sido elevado em sua primeira adoção ou
nascimento a partir de Deus, coincidente com sua criação inicial. A expressão tão cara a Santo
Atanásio e a São Gregório,  , encontra sua explicação complementar num dito de
dois outros Santos capadócios: ss . Se Macário o Egípcio ousa falar em
“transformação” das almas portadoras do Espírito “Na natureza Divina”, em “participação na natureza
Divina”, ele, entretanto, entende essa participação como s , ou seja, como uma
espécie de “mistura” das duas naturezas, preservando as propriedades e entidades de cada uma em
particular. Mas ele também sublinha que “a Trindade Divina vem habitar na alma que, pela
cooperação com a Divina Graça, se mantém pura – Ele vem habitar não tal como Ele é em Si,
porque ele não pode ser contido por nenhuma criatura – mas de acordo com a medida da
capacidade e da receptividade do homem”. Uma fórmula explícita referente a isso não foi
estabelecida de início, mas desde o princípio o abismo impassível entre as naturezas foi
rigorosamente marcado, e a distinção entre as noções de   (ou  )
e   foi rigorosamente observada e mantida. O conceito de “divinização” só foi
cristalizado quando a doutrina das “energias” de Deus foi estabelecida de uma vez por todas. A esse
respeito o ensinamento de São Máximo é significativo: “A salvação dos que são salvos é
realizada pela graça, não pela natureza”, e “se em Cristo a total plenitude da Divindade habita
corporalmente de acordo com a essência, em nós, ao contrário, não existe senão a plenitude da
Divindade de acordo com a graça”. A desejada “divinização” que virá consiste numa semelhança
pela graça, k       E, ainda que se tornando participante da
Vida Divina, “na unidade do amor”, “total e inteiramente coerdeira de Deus”
(  ss ), apropriando-se de tudo o que é Divino, a criatura “ainda
assim permanece fora da essência de Deus” – ss . E o que é mais
notável nisso é o fato de que São Máximo identifica diretamente a graça deificante com o Divino bel
prazer no que tange à criação, com o “fiat” criador. Em seus esforços para adquirir o Espírito, a
hipóstase humana se torna veículo e vaso da Graça; ele é de certo modo imbuído, de modo a que
assim a vontade criadora de Deus se realiza – a vontade que trouxe aquilo-que-não-era à existência
para que receba aqueles que virão em Sua comunhão. E o próprio bel prazer referente a cada um
em particular já constitui desde sempre por si só um fluxo descendente de Graça – mas nem todos
abrem ao Criador e Deus que bate à porta. A natureza humana deve ser livremente descoberta por
meio de um movimento de resposta, superando o auto-isolamento de sua própria natureza; e,
negando a si própria, podemos dizer, ela recebe essa misteriosa, terrível e indizível dupla natureza
por cuja causa o mundo foi feito. Pois ele foi feito para se tornar a Igreja, o Corpo de Cristo.

O sentido da história consiste nisso – que a liberdade da criação deve responder, aceitando o
conselho pré-temporal de Deus, tanto em palavras como em atos. Na dupla natureza prometida à
Igreja a realidade da natureza criada é afirmada desde o princípio. A criação é o outro, uma outra
natureza desejada por Deus a seu bel prazer, e trazida do nada pela Divina liberdade por causa da
liberdade da própria criação. Ela deve se conformar livremente ao padrão criador pelo qual ela vive,
se move, e deve sua existência. A criação não é esse padrão, e esse padrão não é a criação. De
alguma maneira misteriosa, a liberdade humana se torna uma espécie de “limitação” da onipotência
Divina, porque Deus quis salvar a criação, não compulsoriamente, mas livremente apenas. A criação
é “o outro”, e desse modo o processo de ascensão a Deus deve se realizar por seus próprios
poderes – com a ajuda de Deus, certamente. Através de Deus os esforços dos seres criados são
coroados e salvos. E a criação é restaurada à sua plenitude e realidade. E a Igreja segue, ou antes,
retrata o mistério e o milagre das duas naturezas. Como Corpo de Cristo, a Igreja é uma espécie de
“plenitude” de Cristo – como diz Teófano o Recluso, “assim como a árvore é a plenitude da
semente”. E a Igreja está unida à sua Cabeça. “Assim como normalmente não vemos o ferro quando
ele está ao rubro, porque suas qualidades são completamente escondidas pelo fogo”, diz Nicholas
Cabasilas em seu Comentário à Divina Liturgia, “da mesma forma, se você pudesse ver a Igreja de
Cristo em sua verdadeira forma, unida a Cristo e participando de Sua carne, você a veria como nada
além do próprio Corpo do Senhor”. Na Igreja a criação está para sempre confirmada e estabelecida,
por todos os séculos, em união com Cristo, no Espírito Santo.

[1] São Máximo o Confessor, Lib. de div. nomin. schol., V, 8, P.G. IV, 336.
[2]     (Apocalipse 10: 6).
[3] I Pedro 1: 25.
[4] Sabedoria 1: 14.
[5] Salmo 93: 1.
[6] Romanos 4: 17.
[7]O s  ss   s  s
sss.
[8] I Coríntios 7: 31.
[9]       .
[10] Lit. uma mentira “criadora de mitos”, eine dichtende Lüge.
[11] Sabedoria 1: 13.
[12] Romanos 8: 20, 21.
[13] Romanos 5: 12.
[14] s.
[15] s.
[16]   .
[17] os s.
[18]        .
[19] K      s     
[20] .
[21]     s   .
[22] s.
[23]    s    s s
ss s  s       
    s s      .
[24]ss  .
[25]  .
[26] Entelequia ou enteléquia, na filosofia aristotélica, é a realização plena e completa de uma
tendência, potencialidade ou finalidade natural, concluindo um processo transformativo de todo e
qualquer ser animado ou inanimado do universo. É o ser em ato, isto é, plenamente realizado, em
oposição ao ser em potência.
[27]   s     s.
[28]     .
[29] ss.
[30] Romanos 1: 19.
[31]   s .
[32]   s s  s (Romanos 1: 20).
[33] Como o ator está presente naquilo em que ele age.
[34]  s −  .
[35]  .
[36]  .
[37]   .
[38]    ss s     .
[39]   s  s 
[40] Efésios 3: 11.
[41] Efésios 3: 9.
[42] I Pedro 1: 19-20.
[43] Apocalipse 13: 8.
[44]
[45]
[46]

IV. O Mal
A existência do Mal enquanto paradoxo

Num mundo que foi criado por Deus e cujas leis e propósitos foram estabelecidos pela sabedoria e a
bondade Divinas – como é possível que exista o mal? Pois o mal é precisamente aquilo que se opõe
e resiste a Deus, que perverte Seus desígnios e repudia Seus mandamentos. O mal é aquilo que
não foi criado por Deus. E, uma vez que a vontade Divina estabelece as razões para tudo o que
existe – e somente essa Soberania pode estabelecer “razões suficientes” – podemos afirmar que o
mal, enquanto mal, existe apesar da falta de razões, que ele existe sem que haja uma única razão
para suportar sua simples existência. Como colocou São Gregório de Nissa, ele é “uma erva que não
foi plantada, sem sementes e sem raízes”. Podemos dizer: phaenomenon omnino non fundantum.
Somente Deus pode estabelecer os fundamentos do mundo.

Certamente, sempre existem, e em toda parte, causas e razões para que haja o mal. Mas
a causalidade do mal é profundamente particular. As causas e razões do mal são sempre um
absurdo, mais ou menos velado. Essa estranha causalidade não está incluída na “cadeia” ideal da
causalidade universal de Deus; ela a fende e desfigura. Trata-se de uma causalidade rival àquela do
Criador, como se provinda de um destruidor do mundo. E esse poder destruidor, de onde vem ele?
Pois todo poder real pertence somente a Deus. Podemos nos perguntar em que medida e existência
do mal é compatível com a existência de Deus. Mas, não obstante, esse poder ilegítimo não constitui
de modo algum um fantasma anêmico. Ele é realmente uma força, uma energia violenta. E a
oposição do mal a Deus é extremamente ativa. O Bem é seriamente limitado e oprimido pela
insurreição do mal. O próprio Deus está engajado numa luta contra os poderes das trevas. E, nessa
luta, existem perdas reais, existe uma perpétua diminuição do Bem. O mal constitui um perigo
ontológico. A harmonia universal, desejada e estabelecida por Deus, é de fato decomposta. O
mundo entra em queda. Todo o mundo se vê cercado pela luz crepuscular do nada. Já não se trata
daquele mundo que foi concebido e criado por Deus. Aparecem inovações mórbidas, novas
existências – falsas existências, mas reais. O mal acrescente algo àquilo que fôra criado por Deus,
ele possui uma força “milagrosa” de imitação da criação – de fato, o mal é produtivo em sua
destruição. No mundo decaído existe um incompreensível excedente, um excedente que penetrou
na existência contra a vontade de Deus. Num certo sentido, o mundo foi roubado de seu Mestre e
Criador. Trata-se de algo mais do que um paradoxo intelectual: é, na verdade, um escândalo, uma
tentação terrível para a fé, porque, acima de tudo, essa destruição da existência pelo mal é, em larga
medida, irreparável. A arrogante esperança “universalista” nos é proibida pelo testemunho direto da
Santa Escritura e pelo ensinamento explícito da Igreja. Para os “filhos da perdição” estão reservadas
as trevas exteriores no século futuro! No caso da perseverança do mal, todas as devastações e
perversões produzidas por ele ficarão preservadas para sempre na paradoxal eternidade do inferno.
O inferno é um testemunho sinistro do assombroso poder do mal. No chamado final dessa histórica
luta entre a Bondade Divina e o mal, toda devastação produzida pelos seres não arrependidos só
será conhecida pelo decreto final de condenação. A fenda perversa, introduzida no mundo de Deus
por um poder usurpador, parece eterna. A unidade do mundo está comprometida para sempre. O
mal parece ter sua conquista eterna. A obstinação no mal, sua decidida impenitência, não é nunca
apagada pela onipotente compaixão de Deus. Estamos agora em pleno reino do mistério completo.

A existência do Mal enquanto mistério.

Deus tem Sua resposta ao mundo do mal. “A antiga lei da liberdade humana”, como diz Santo Irineu,
é sempre respeitada por Deus, que desde o princípio concedeu essa dignidade aos serres
espirituais. Toda e qualquer coerção ou compulsão de parte da Divina Graça está excluída. De fato,
Deus respondeu ao autoritarismo do mal de uma vez por todas através de Seu Filho amado, que
veio à terra para carregar os pecados do mundo e os pecados de toda a humanidade. A resposta
absoluta de Deus ao mal foi a Cruz de Jesus, os sofrimentos do Servo de Deus, a Morte do Filho
encarnado. “O mal começou sobre a terra, mas ele inquietou os céus, e provocou a descida do Filho
de Deus à terra”, disse um pregador Russo do século XIX. O mal fez sofrer o próprio Deus, e Ele
aceitou esse sofrimento até o final. E a glória da vida eterna brilhou vitoriosamente desde o sepulcro
do Deus encarnado. A Paixão de Jesus foi um triunfo, uma vitória decisiva. Mas foi principalmente
um triunfo do Amor Divino que chamou e aceitou sem coerção alguma. Desde esse momento, a
existência do mal passou a nos ser dada apenas no contexto da estrutura desse Amor de Deus que
sofre conosco. E mesmo esse Amor, mesmo essa sublime majestade de Deus, se revelam a nós na
enigmática estrutura do mal e do pecado... Felix culpa quae tantum et talem meruit habere
Redemptorem[1].

Costuma-se definir o mal como uma ausência, um nada. Certamente, o mal jamais existirá por si
mesmo, mas apenas dentro da Bondade. O mal é uma pura negação, uma privação ou uma
mutilação. Indubitavelmente, o mal é uma falta, um defeito, um dejectus. Mas a estrutura do mal é,
antes, antinômica. O mal não é um vazio feito de nada, mas um vazio que existe, que engole e
devora as coisas. O mal é desprovido de potência: ele é incapaz de criar, mas sua energia destrutiva
é enorme. O mal nunca é ascendente, ele é sempre descendente. Mas o simples rebaixamento que
ele provoca é assustador. Entretanto, existe uma grandeza ilusória em si, nesse rebaixamento do
mal. Ocasionalmente, pode haver algo de gênio no mal e no pecado. O mal é caótico, ele consiste
numa separação, numa decomposição em progresso constante, numa desorganização de toda a
estrutura da existência. Mas o mal é também, sem dúvida, vigorosamente organizado. Tudo, em seu
triste domínio de corrupção e ilusão, é ambíguo e anfibólico. Sem dúvida, o mal vive apenas por
intermédio da vontade de Deus, que ele deforma, e que adapta às suas necessidades. Mas esse
“Universo” deformado constitui uma realidade que afirma a si própria.

Na verdade, o problema do mal não é simplesmente uma questão filosófica, e é por isso que ele
nunca pode ser resolvido no plano neutro de uma teoria da existência. Ele tampouco constitui uma
questão ética, e no plano da moral natural é impossível superar a correlatividade entre o bem e o
mal. O problema do mal só adquire seu verdadeiro caráter sobre o plano religioso. E o significado do
mal consiste numa oposição radical a Deus, uma revolta, uma desobediência, uma resistência. E a
única fonte do mal, no sentido estrito do termo, é o pecado, a oposição a Deus e a trágica separação
em relação a Ele. As especulações a respeito da liberdade de escolha são sempre estéreis e
ambíguas. A liberdade de escolha, a libertas minor de Santo Agostinho e
o   (vontade gnômica) de São Máximo o Confessor, constitui uma liberdade
desfigurada, uma liberdade diminuída e empobrecida, uma liberdade tal como existe depois da
queda, entre os seres decaídos. A dualidade de propósitos, as direções correlativas, não pertencem
à essência da liberdade primordial dos seres inocentes. Esta deve ser restaurada nos pecadores
renitentes por meio do ascetismo e da Graça. E o pecado original não apenas constituiu uma
escolha errada, uma opção na direção errada, como uma recusa à ascensão a Deus, uma deserção
do serviço a Deus.

De fato, tal escolha não era possível ao primeiro pecador porque o mal ainda não existia como uma
possibilidade ideal. Claro, se ele se tornou uma escolha, não foi uma escolha entre o bem e o mal,
mas uma escolha entre Deus e si mesmo, entre o serviço e a indolência. E é precisamente nesse
sentido que Santo Atanásio interpreta a queda e o pecado original em sua obra Contra Gentes. A
vocação do homem primordial, inata em sua própria natureza, era de amar a Deus com devoção filial
e servi-Lo no mundo no qual o homem tinha sido designado como profeta, sacerdote e rei. Era um
apelo do amor paterno de Deus ao amor filial do homem. Sem dúvida, seguir a Deus envolvia uma
rendição total aos braços Divinos. Não era ainda um sacrifício. O homem inocente não possuía nada
que pudesse sacrificar, pois tudo o que ele tinha provinha da Graça de Deus. Existe aqui algo de
mais profundo do que a voluptuosa ligação com o mundo. Antes, o que aconteceu foi um engano
amoroso. De acordo com Santo Atanásio, a queda do homem consistiu precisamente no fato de que
o homem se limitou a si próprio, que o homem se tornou como que apaixonado por si mesmo. E por
meio dessa concentração sobre si mesmo o homem se separou de Deus e quebrou o contato livre e
espiritual que tinha para com Ele. Foi uma espécie de delírio, uma obsessão auto-erótica, um
narcisismo espiritual. E com isso esse homem se isolou de Deus, e logo se tornou consciente de ter
se envolvido num fluxo cósmico exterior. Podemos dizer quer isso foi uma desespiritualização da
existência. Todo o resto veio como resultado disso – a morte e a decomposição da estrutura
humana. De qualquer modo, a queda aconteceu primeiro no domínio do Espírito, assim como já
acontecer ano mundo angélico. O significado do pecado original é o mesmo em toda parte –
autoerotismo, orgulho e vaidade. Todo o demais não passa de uma projeção dessa catástrofe
espiritual nas diferentes áreas da estrutura humana. O mal veio de cima, não de baixo: do espírito
criado, não da matéria. Isso é mais profundo do que uma falsa escolha ou direção, mais profundo
mesmo do que a escolha entre um bem inferior e outro superior. Antes, foi a infidelidade do amor, a
insana separação em relação ao Único digno de afeição e amor. Essa infidelidade foi a fonte única
do caráter negativo do mal. Ela foi a negação primordial, e foi fatal.

É necessário tomar precauções e não identificar a enfermidade da natureza decaída com a


imperfeição inerente da natureza criada. Não existe nada de mórbido ou sinistro na “imperfeição
natural” da natureza criada, exceto aquilo que a penetrou “desde cima” depois de consumada a
queda. Na natureza anterior à queda, talvez pudéssemos falar em falhas ou faltas; mas no mundo
decaído passa a existir algo mais – uma perversão, uma revolta, uma blasfêmia vertiginosa, uma
violência. É o domínio da usurpação. A escura maré desse amor pervertido engole todas as criaturas
e o cosmo inteiro. Por detrás de todas as negações do mal podemos sempre discernir algo quase
positivo, essa licenciosidade inicial, a arbitrariedade egoísta das personalidades finitas. O mundo
decaído é descentralizado, ou antes, ele é orientado em torno de um centro imaginário e fictício.
Podemos talvez dizer que o círculo (com um centro único) foi deformado, tornando-se uma elipse
com dois pontos de referência – Deus e o anti-Deus. A existência, em qualquer caso, foi
dinamicamente dividida em dois. Passam a existir duas tendências que se interceptam e se cruzam,
embora permanecendo ambas radicalmente distintas. Podemos dizer que existem dois mundos
dentro de um: existem Duas Cidades de Santo Agostinho. O mal, começando como um ateísmo
prático, colocou-se no lugar de Deus, resultando daí num ateísmo teórico e, consequentemente,
numa decidida deificação de si mesmo. E nesse mundo dualizado a verdadeira liberdade não existe.
A liberdade de escolha é apenas um remoto e pálido reflexo da liberdade real.

O mal é criado por agentes pessoais. O mal, no sentido estrito, só existe nas pessoas ou em suas
criações e atos. O mal físico e cósmico também se origina em atos pessoais. E é por isso que o mal
tem poder, que ele pode ser ativo. Pois o mal é uma atividade pessoal perversa. Mas essa atividade
se espalha inevitavelmente num nível impessoal. O mal despersonaliza a própria personalidade. A
completa despersonalização, é claro, jamais pode ser alcançada; existe um limite potencial que
jamais pode ser atingido. Mas a tendência e a aspiração ao mal rumo a esse limite de total
desintegração se acentuam energicamente por toda parte. Mesmo os demônios nunca deixam de
ser pessoas. A forma intrínseca de sua existência não pode ser perdida. Mas, como a personalidade
é a “imagem de Deus” nos seres espirituais, o caráter pessoal só pode ser preservado numa
constante conversação com Deus. Separada de Deus a personalidade evanesce, é ferida por uma
esterilidade espiritual. A personalidade isolada, que se fecha sobre si, em geral perde a si mesma.
No estado de pecado existe sempre uma tensão entre duas solicitações interiores: o “eu” e algo
impessoal, representado por instintos, ou antes, por paixões.
As paixões são o lugar, o assento do mal na pessoa humana. As “paixões” –   – dos Padres e
dos mestres da espiritualidade Grega, são ativas, elas capturam – é a pessoa possuída pelas
paixões que é passiva, é ela que sofre o constrangimento. As paixões são sempre impessoais: elas
constituem uma concentração de energias cósmicas que tornam a pessoa humana prisioneira,
escrava. Elas são cegas e cegam aqueles a quem possuem. O homem passional, o “homem das
paixões” não age mais por si, mas é agido desde fora: fata trahunt. Ele frequentemente perde sua
consciência de ser um agente livre. Ele duvida da existência e da possibilidade da liberdade em
geral. Ele antes adota um conceito de realidade “necessarionista” (na expressão de Charles
Rénouvier). Como consequência, ele perde sua personalidade, sua identidade pessoal. Ele se torna
caótico, com múltiplas faces, ou antes: máscaras. O “homem das paixões” de modo algum é livre,
embora possa dar a impressão de atividade e energia. Ele não passa de uma “bola” de influências
impessoais. Ele está hipnotizado por essas influências que de fato têm poder sobre si. Arbitrariedade
não é liberdade. Ou talvez seja uma liberdade imaginária que gera servidão. A vida espiritual começa
exatamente com a luta contra as paixões. E a “impassibilidade” é, com efeito, o principal objetivo da
ascensão espiritual.

A “impassibilidade” – a  dos Gregos – é, em geral, mal entendida e interpretada. Não se trata
de uma indiferença, de uma fria insensibilidade do coração. Ao contrário, ela é um estado ativo, um
estado de atividade espiritual, que só se pode adquirir depois de muitas lutas e experiências difíceis.
A impassibilidade é, antes, uma independência em relação às paixões. O “eu” de cada pessoa é
finalmente resgatado, liberto de uma escravidão fatal. Mas só é possível resgatar a si mesmo em
Deus. A verdadeira impassibilidade só pode ser adquirida mediante um encontro com o Deus vivo. O
caminho que conduz até aí é um caminho de obediência, até mesmo de servidão a Deus, mas essa
servidão gera a verdadeira liberdade, uma liberdade concreta, a real liberdade dos filhos adotivos de
Deus. No mal, a personalidade humana é absorvida pelo meio impessoal, e mesmo um pecador
pode pretender que é livre. Em Deus, a personalidade é restaurada e reintegrada no Espírito Santo,
embora uma severa disciplina seja imposta ao indivíduo.

O mal se revela a nós no mundo, em primeiro lugar, sob os aspectos do sofrimento e da tristeza. O
mundo é vazio, frio, indiferente (conforme e “natureza indiferente” de Pushkin). É como uma terra
devastada onde não há resposta. Todos nós sofremos por causa do mal. Disseminado por toda parte
no mundo, o mal causa sofrimento. E a contemplação desse sofrimento universal nos leva às vezes
à beira do desespero. O sofrimento universal não foi descoberto pela primeira vez por
Schopenhauer. Ele já havia sido atestado por São Paulo[2], que nos forneceu uma explicação
bastante clara: o mal se introduziu na criatura por meio do pecado. Toda a criação sofre. Existe um
sofrimento cósmico. Todo o mundo está envenenado pelo mal e pelas energias maléficas, e todo o
mundo sofre por causa disso.

O intrincado problema da Teodiceia foi primeiramente inspirado pela questão do sofrimento. Essa foi
uma das questões primárias de Dostoievsky. O mundo é duro, cruel e impiedoso, e é também terrível
e assustador: temor antiquus. Existe um caos no mundo, tempestades subterrâneas, uma desordem
elemental. E o homem se sente frágil e perdido nesse mundo inóspito. Mas o mal não vem ao nosso
encontro apenas de fora, do meio exterior, mas também internamente, em nossa própria existência.
Também estamos doentes – nós próprios – e então sofremos por causa disso. E, mais uma vez, nos
deparamos com uma descoberta inesperada: nós não apenas sofremos com o mal, mas fazemos o
mal. E algumas vezes nos sentimos deliciados com o mal e a infelicidade. Às vezes somos
capturados pelas Fleurs du mal, as “flores do mal”. Sonhamos com o “ideal de Sodoma”. O abismo
possui um apelo sinistro. Às vezes amamos as escolhas ambíguas, ficamos encantados com elas. É
mais fácil fazer o mal do que o bem. Todos podem descobrir em si essa escuridão “subterrânea”, um
subconsciente cheio de sementes malignas, de crueldade e dolo. As análises de Dostoievsky – e de
muitos outros – não são sonhos mórbidos de um pessimista que vê a vida através de óculos
embaçados. Elas são uma revelação verdadeira da triste realidade de nossa situação existencial. E
podemos encontrar as mesmas revelações nos antigos mestres da espiritualidade Cristã. Existe um
delírio, uma febre espiritual, uma libido no cerne “desse mundo”, no núcleo de nossa existência. Não
se pode exigir razões, de uma pessoa insana ou maníaca; ela não possui razões para sua loucura,
ela perdeu sua razão, ela está insana. Orígenes esteve muito perto da solução correta quando
atribuiu a origem do mal, no mundo dos espíritos, tanto ao tédio e à falta de propósito (desídia et
lahoris taedium in servando bono), como à saciedade da contemplação Divina e do amor[3]. De
qualquer modo, olhando para nos agora, encontramos em nosso coração e em nossa inteligência
muitas revivescências do mesmo paroxismo ou delírio, os mesmos absurdos. Libido não é a mesma
coisa que a concupiscência carnal. Trata-se de um termo mais amplo, sinônimo do autoerotismo,
que se origina no pecado. O mal, no homem, é uma ignorância (), uma insensibilidade, uma
cegueira da razão e um endurecimento do coração. O homem se fecha, encerra-se em si mesmo, se
isola e se separa. Mas o mal é multiforme e caótico. Existem formas contrastantes do mal: a forma
agressiva, sádica; e existe a solipsista, indiferente – o “coração gelado”. O mal tem uma divisão
interna: existe nele um desacordo e uma desarmonia, inordinatio. O mal é ambíguo, volúvel, variável:
ele não possui um caráter próprio estável. A sede do mal no homem está nas profundezas de seu
coração, e não apenas no plano empírico, a própria natureza é afetada, e já não é mais pura. Antes,
ela se torna dinâmica, mas de um dinamismo que consiste numa perversão funcional incapaz de se
consolidar numa transformação metafísica. A existência do mal é parasitária: o mal existe por causa
do Bem, ex ratione boni. Os mesmos elementos estão presentes no mundo original e no mundo
decaído, mas o princípio da organização mudou. E, embora dinâmica, a perversão é inconversível:
aquele que desceu voluntariamente aos abismos do mal não tem como subir de lá por si próprio. Sua
energia é exaurida. Sem dúvida, mesmo nas profundidades demoníacas da criatura permanece
ainda a obra de Deus e os traços do desígnio Divino nunca se apagam. A imagem de Deus,
obscurecida pela infidelidade do pecado, está, não obstante, preservada intacta, e é por isso que
sempre existe, mesmo no abismo, um receptáculo ontológico para o apelo Divino, para a Graça de
Deus. Isso é verdadeiro mesmo para aqueles que se colocaram obstinadamente de costas para o
apelo da Cruz, que se tornaram incapazes de receber os dons vivificantes do Amor Divino, os dons
do Paráclito. A identidade Metafísica não pode ser destruída, mesmo entre os demônios. De acordo
com a frase de São Gregório de NIssa, os demônios são ainda anjos por natureza, e a dignidade
angélica não pode jamais ser completamente abolida neles.

Mas talvez possamos dizer que essa imagem de Deus no homem se torna paralisada num certo
sentido, e tornada inefetiva depois da separação em relação Àquele que deveria se refletir nessa
imagem, nesse espelho vivo e pessoal. Não é bastante começar outra vez a ascensão a Deus – é
preciso ter a cooperação viva do próprio Deus, que restaura a circulação da vida espiritual no
homem morto, escravizado e paralisado pelo pecado e o mal. O paradoxo do mal reside
precisamente nessa divisão da existência humana e de toda a estrutura cósmica; ele reside na
divisão dinâmica da vida em duas, uma divisão resultante da separação em relação a Deus. É como
se existissem duas almas convivendo numa mesma pessoa. O Bem e o mal estão estranhamente
misturados, mas não existe síntese possível nisso. O Bem “natural” é por demais fraco para resistir
ao mal. E o mal só existe a partir do Bem. A unidade humana fica seriamente comprometida, senão
perdida. Somente a Graça de Deus é capaz de superar o impasse humano.

Uma análise formal do mal não é suficiente. A existência do mal é uma realidade no plano religioso.
E apenas através de um esforço espiritual é possível entender e resolver esse paradoxo, superar
esse escândalo e penetrar no mistério do Bem e do Mal.
V. Redenção
A Encarnação e a Redenção

“O Verbo se fez carne”: essa é a alegria máxima da fé Cristã. É a plenitude da Revelação. O mesmo
Senhor Encarnado é perfeito Deus e perfeito homem. Todo o significado e o propósito último da
existência humana estão revelados e realizados na Encarnação e através da Encarnação. Ele
desceu dos céus para redimir a terra, para unir o homem a Deus para sempre. “E se fez homem”.
Iniciou-se uma nova era. Agora contamos em anni Domini. Como escreveu Santo Irineu: “o Filho de
Deus se tornou Filho do Homem, para que o homem possa se tornar filho de Deus”. Não se trata
apenas da plenitude original da natureza humana restaurada ou restabelecida pela Encarnação. Não
se trata apenas do retorno da natureza humana para sua comunhão perdida com Deus. A
Encarnação é também a nova Revelação, o novo e próximo passo. O primeiro Adão era uma alma
vivente. Mas o último Adão é o Senhor dos Céus[1]. E na Encarnação do Verbo a natureza humana
não foi simplesmente ungida com um superabundante fluxo de Graça, mas foi assumida numa
unidade hipostática e íntima com a própria Divindade. Nesse reerguimento da natureza humana a
uma duradoura – para sempre – comunhão com a Vida Divina, os Padres da Igreja antiga viram
unanimemente a verdadeira essência da salvação, a base de toda a obra de redenção de Cristo.
“Pois é salvo o que está unido a Deus”, diz São Gregório de Nazianze. E o que não está unido não
pode ser salvo de modo algum. Essa foi sua principal razão para insistir, contra Apolinário, na
plenitude da natureza humana, assumida pelo Filho Unigênito na Encarnação. E essa foi a causa
fundamental de toda a teologia antiga, de Santo Irineu, Santo Atanásio, dos Padres Capadócios, de
São Cirilo de Alexandria e São Máximo o Confessor. Toda a história do dogma Cristológico foi
determinada por essa concepção fundamental: a Encarnação do Verbo como Redenção. Na
Encarnação a história humana se completa. A vontade eterna de Deus se realiza, “o mistério da
eternidade oculto e desconhecido até dos anjos”. Os dias de espera terminaram. O Prometido e
Esperado chegou. E doravante, para usarmos a frase de São Paulo, a vida do homem “está oculta
com Cristo em Deus[2]”.

A Encarnação do Verbo constituiu-se numa manifestação absoluta de Deus. E acima de tudo estava
a revelação da Vida. Cristo é o Verbo de Vida (   s): “e manifestou-se a vida, e nós a
vimos, e damos testemunho, e proclamamos a vocês a vida, a vida eterna, que estava com o Pai e
foi manifestada a nós[3]”. A Encarnação é o reavivamento do homem, como se fosse uma
ressurreição da natureza humana. Mas o clímax do Evangelho é a Cruz, a morte do Encarnado. A
Vida se revelou inteiramente por intermédio da morte. Esse é o mistério paradoxal da fé Cristã: a
vida através da morte, a vida no sepulcro e a partir do sepulcro, o mistério do sepulcro vivificador. E
nós nascemos para a vida real e eterna por intermédio de nossa morte batismal e de nosso
sepultamento em Cristo; somos regenerados com Cristo na fonte batismal. Essa é a lei invariável da
verdadeira vida. “Aquilo que tu semeias não volta à vida, a menos que morra[4]”.

“Grande é o mistério da divindade: Deus manifestou-se na carne[5]”. Mas Deus não se manifestou
para recriar o mundo pelo exercício de Seu poder Onipotente, ou para iluminá-lo e transfigurá-lo pela
luz transbordante de Sua glória. Essa Revelação da Divindade foi forjada na mais extrema
humilhação. A vontade Divina não aboliu o status original da liberdade humana, ou de seu
“autopoder” ( ), ela não destruiu ou aboliu a “antiga lei da liberdade humana”. Aqui se
revela uma certa autolimitação, ou “kenosis” do poder Divino. Mais do que isso, uma kenosis do
próprio Amor Divino. O amor Divino como que se restringe e se limita na manutenção da liberdade
da criação. O amor não impõe a cura por compulsão, como poderia fazer. Nunca existiu evidência de
obrigação nessa manifestação de Deus. Nem todos reconheceram o Senhor da Glória sob “o
aspecto do servo” com o qual Ele deliberadamente Se apresentou. E quem O reconheceu, o fez, não
por uma intuição natural, mas pela revelação do Pai[6]. O Verbo Encarnado apareceu sobre a terra
como um homem entre os homens. Nisso consistiu a assunção redentora da plenitude humana, não
apenas da natureza humana, mas de toda a plenitude da vida humana. A Encarnação tinha que se
manifestar em toda a plenitude da vida, na plenitude das eras humanas, para que todas as
plenitudes fossem santificadas. Esse é um dos aspectos da ideia da “síntese” de tudo em Cristo
(recapitulatio, s), que foi assumida com tanta ênfase por Santo Irineu a partir de São
Paulo. Nisso consistiu a “humilhação[7]” do Verbo. Mas essa kenosis não constituiu uma redução de
Sua Divindade, que permaneceu inalterada (s) na Encarnação. Ela consistiu, na verdade,
num reerguimento do homem, na “deificação” da natureza humana, na “theosis”. Como disse São
João Damasceno, na Encarnação “três coisas se realizaram simultaneamente: a assunção, a
existência e a deificação da humanidade pelo Verbo”. Devemos sublinhar que na Encarnação o
Verbo assume a natureza humana original, inocente e livre do pecado original, sem mácula alguma.
Isso não violou a plenitude da natureza, nem afetou a semelhança do Salvador para conosco, povo
pecador. Pois o pecado não pertence à natureza humana, mas trata-se de um tumor parasitário e
anormal. Esse ponto foi vigorosamente sublinhado por São Gregório de NIssa, e particularmente por
São Máximo o Confessor, em conexão com seus ensinamentos sobre a sede do pecado. Na
Encarnação, o Verbo assume a natureza do primeiro humano formado, criado “à imagem de Deus”,
e assim a imagem de Deus foi novamente restabelecida no homem. Ainda não se tratava da
assunção do homem sofredor ou da humanidade sofrida. Foi a assunção da vida humana, mas não
ainda da morte humana. A liberdade de Cristo em relação ao pecado original constituiu também Sua
liberdade em relação à morte, a qual é “o salário do pecado”. Cristo permaneceu intocado pela
corrupção e a mortalidade desde Seu nascimento. E, assim como o primeiro Adão antes da Queda,
Ele era capaz de não morrer, em absoluto, potens non mori, embora obviamente ele pudesse ainda
morrer, potens autem mori. Ele estava isento da necessidade da morte, porque Sua humanidade era
pura e inocente. Dessa forma, a morte de Cristo foi – e só poderia ser – voluntária, não pela
necessidade de uma natureza decaída, mas por Sua livre escolha e aceitação.

Devemos fazer uma distinção entre a assunção da natureza humana e a aceitação do pecado por
Cristo. Cristo é “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo[8]”. Mas Ele não tira o pecado do
mundo pela Sua Encarnação. Essa foi um ato da vontade, não uma necessidade da natureza. O
Salvador carrega o pecado do mundo (mais do que o assume) por uma livre escolha de amor. Ele o
carrega de tal maneira que o pecado não se torna Seu próprio pecado, nem viola a pureza de Sua
natureza e vontade. Ele o carrega livremente; doravante essa “aceitação” do pecado passa a ter um
poder redentor, como um ato livre de compaixão e amor. Mas assumir o pecado não constitui
meramente uma forma de compaixão. Nesse mundo, que “jaz em pecado”, mesmo a pureza em si
implica sofrimento, é uma fonte ou uma causa de sofrimento. Assim é que o coração justo se aflige e
dói por causa da injustiça, e sofre pela injustiça desse mundo. A vida do Salvador, enquanto vida de
justiça e pura existência, como vida pura e sem pecado, foi inevitavelmente nesse mundo a vida de
alguém sofredor. O bem é opressivo para esse mundo, e esse mundo é opressivo para o bem. O
mundo resiste ao bem e não procura a luz. Assim, ele não aceita Cristo, ele O rejeita tanto quanto
rejeita Seu Pai[9]. O Salvador submeteu-Se à ordem desse mundo, suportou-a, e a oposição desse
mundo foi encoberta por Seu amor que a tudo perdoou: “Eles não sabem o que fazem[10]”. Toda a
vida de nosso Senhor foi uma Cruz. Mas o sofrimento não foi ainda toda a Cruz: a Cruz é mais do
que meramente o sofrimento do Bem. O sacrifício de Cristo não se esgotou por Sua obediência e
capacidade de suportar, por sua paciência, sua compaixão, seu perdão universal. A obra única de
redenção de Cristo não pode ser separada em partes. A vida terrestre de nosso Senhor constitui um
todo orgânico, e Sua ação redentora não pode ser conectada exclusivamente a um ou outro aspecto
particular dessa vida. É claro que o clímax dessa vida foi Sua morte. E o Senhor deu um
testemunho claro para essa hora da morte: “Para isso Eu vim ao mundo[11]”. Pois a morte redentora
é o propósito último da Encarnação.

O mistério da Cruz está além de nossa compreensão racional. Esse “terrível espetáculo” parece
estranho e surpreendente. Toda a vida de nosso Senhor consistiu-se num grande ato de paciência,
misericórdia e amor. E tudo foi iluminado pela eterna irradiação da Divindade, embora essa
irradiação fosse invisível para o mundo de carne e de pecado. Mas a Salvação se completou no
Gólgota, não no Tabor, e a Cruz de Jesus foi prevista desde o Tabor[12]. Cristo veio, não apenas
para ensinar com autoridade e falar ao povo em nome do Pai, não apenas para que pudesse realizar
obras de misericórdia. Ele veio para sofrer e morrer, e para se levantar novamente. Ele próprio, mais
de uma vez, deu testemunho disso diante dos discípulos perplexos e surpresos. Ele não apenas
profetizou a Paixão e a morte por vir, mas disse claramente que era preciso, que Ele tinha que fazê-
lo, que Ele precisava sofrer e ser morto. “E Ele começou a ensiná-los que o Filho do Homem
deveria sofrer muitas coisas e ser rejeitado pelos anciãos, pelos sacerdotes e pelos escribas, e ser
morto, e ressuscitar dentro de três dias[13]”. “Era preciso” não apenas segundo a lei desse mundo,
no qual o bem e a verdade são perseguidos e rejeitados, não apenas de acordo com a lei do ódio e
do m al. A morte de nosso Senhor aconteceu com plena liberdade. Ninguém tirou Sua vida. Ele
próprio ofereceu Sua alma, por sua suprema vontade e sua suprema autoridade. “Eu tenho
autoridade” –  . Ele sofreu e morreu, “Não porque não pudesse escapar ao
sofrimento, mas porque Ele escolheu sofrer”, conforme coloca o Catecismo Russo. Escolha, não
apenas no sentido de suportar voluntariamente, de não resistir, não apenas no sentido de que Ele
permitiu que o furor do pecado e da injustiça desabassem sobre Ele, ele não apenas o permitiu,
como o quis. Ele tinha que morrer de acordo com a lei da verdade e do amor. A crucificação não foi
em absoluto um suicídio passivo, nem um simples assassinato. Ela foi um sacrifício e uma oblação.
Ele tinha que morrer. Não se tratava de uma necessidade desse mundo. Era uma necessidade do
Amor Divino. O mistério da Cruz começa na eternidade, “no santuário da Santa Trindade, inacessível
às criaturas”. Desse modo o mistério transcendente da sabedoria de Deus e de Seu amor é revelado
e cumprido na história. Por isso Cristo é chamado de Cordeiro, “que era conhecido antes da
fundação do mundo[15]”, e mesmo, que “foi sacrificado desde a fundação do mundo[16]”. “A Cruz de
Jesus, composta pela inimizade dos Judeus e a violência dos Gentios, não é outra coisa do que a
imagem e a sombra de sua Cruz de amor celestial”. A “necessidade Divina” da morte na Cruz
sobrepuja todo entendimento possível. E a Igreja jamais tentou qualquer definição racional desse
mistério supremo. Os termos escriturários pareceram ser – e ainda parecem – os mais adequados.
Em qualquer caso, nenhuma simples categoria ética o dará. As concepções morais, e mais ainda as
legais e jurídicas, jamais passam de um desbotado antropomorfismo. Isso também é verdade em
relação à ideia do sacrifício. O sacrifício de Cristo não pode ser considerado como uma mera
oferenda, ou uma rendição. Isso não explica a necessidade da morte. Pois toda a vida do Encarnado
foi um contínuo sacrifício. Então, por que essa vida puríssima foi ainda insuficiente para a vitória
sobre a morte? Por que a morte só pôde ser vencida pela morte? E terá sido a morte realmente uma
perspectiva aterradora para o Justo, para o Encarnado, especialmente diante da suprema
presciência da Ressurreição que viria ao terceiro dia? Mas mesmo os simples mártires Cristãos
aceitaram seus tormentos e sofrimentos, e a própria morte, com calma e alegria, como uma coroa de
triunfo. O Chefe dos mártires, o Protomártir Cristo, não foi menor do que eles. E, pelo mesmo
"decreto Divino”, pela mesma “necessidade Divina”, Ele “tinha” não somente que ser executado e
maltratado, como tinha que morrer e se levantar ao terceiro dia. Qualquer que seja nossa
interpretação da Agonia no Jardim, um ponto está perfeitamente claro. Cristo não foi uma vítima
passiva, mas o Conquistador, mesmo na sua mais extrema humilhação. Ele sabia que essa a
humilhação não consistia numa mera persistência ou obediência, mas que ela era o próprio caminho
para a Glória e a vitória derradeira. Tampouco a ideia da justiça Divina, sozinha, justitia vindicativa, é
capaz de revelar o significado último do sacrifício da Cruz. O mistério da Cruz não pode ser
adequadamente apresentado em termos de transação, de recompensa ou de resgate. Se o valor da
morte de Cristo foi infinitamente amplificado por Sua Divina Personalidade, o mesmo se aplica à
totalidade de Sua Vida. Todos os Seus feitos possuíram um valor infinito e um significado, enquanto
feitos do Verbo Encarnado de Deus. E com efeito eles cobriram de forma superabundante todos os
delitos e faltas da raça humana decaída. Finalmente, dificilmente poderia haver qualquer tipo de
justiça retributiva na Paixão e morte do Senhor, como talvez pudesse acontecer na morte de
qualquer homem justo. Pois não se tratava ali do sofrimento e da morte de um mero homem,
graciosamente suportada pela ajuda Divina por causa de sua fé e persistência. Essa morte constituiu
o sofrimento do próprio Filho Encarnado de Deus, o sofrimento de uma natureza humana sem
mácula, já deificada desde que assumiu a hipóstase do Verbo. Também não cabe a explicação por
meio da ideia da satisfação substituta, a satisfactio vicaria dos escolásticos. Não porque a
substituição não fosse possível. Cristo de fato tomou sobre Si os pecados do mundo. Mas porque
Deus jamais busca o sofrimento de alguém, ao contrário, Ele se aflige pelos que sofrem. Como
poderia a pena de morte do Encarnado, puríssimo e incorruptível, constituir-se na abolição do
pecado, se a própria morte é o salário do pecado, e se a morte só existe no mundo pecador? Pode a
Justiça reger o Amor e a Misericórdia, e seria a Crucificação necessária para abrir o amor perdoador
de Deus, que de outro modo permaneceria fechado, sem se manifestar, pela limitação de uma
justiça vindicatória? SE tivesse que haver uma limitação de qualquer tipo, seria antes uma restrição
do amor. E a justiça se realizou, e a Salvação foi forjada pela condescendência, pela kenosis, e não
por um poder onipotente. Talvez a recriação da humanidade decaída pela poderosa intervenção da
Divina onipotência pudesse nos parecer mais simples e mais caridosa. Estranhamente, a plenitude
do Amor Divino, que deseja preservar nossa liberdade humana, nos parece mais como uma
exigência severa da justiça transcendente, simplesmente porque ela implica um apelo à cooperação
da vontade humana. Assim, a Salvação se torna uma tarefa também do próprio homem, e só pode
se consumar em liberdade, mediante a resposta do homem. A “imagem de Deus” se manifesta na
liberdade. E a própria liberdade é frequentemente um peso para o homem. Num certo sentido ela é
de fato um dom e uma exigência sobre-humanos, um caminho sobrenatural, o caminho da
“deificação”, da theosis. Não é essa theosis um peso para o ser egoísta, autossuficiente e
autoaprisionado? E, no entanto, esse opressivo dom da liberdade é a marca definitiva do amor
Divino e da benevolência em relação ao homem. A Cruz não é um símbolo da Justiça, mas um
símbolo do Amor Divino. São Gregório de Nazianze expressa todas essas dúvidas com grande
ênfase em seu notável Sermão da Páscoa:

“Para quem, e por que, foi esse sangue derramado e vertido, o grande e preciosíssimo sangue de
Deus, Sumo Sacerdote e Vítima? (...) Estávamos sob o poder do Maligno, vendidos ao pecado, a
atraímos esse mal sobre nós mesmos por causa da sensualidade (...) Se o preço do resgate foi pago
a qualquer outro que não aquele cujo poder nos sujeitava, então eu pergunto, a quem e por que
razão esse preço foi pago? (...) Se foi para o Maligno, quão ultrajante é isso! O ladrão recebe o valor
do resgate; ele não apenas o recebeu de Deus, como recebeu o próprio Deus. Por sua tirania ele
recebeu um preço tão alto que só mereceria quem tivesse piedade de nós (...) Se foi para o Pai,
então, em primeiro lugar, de que maneira? Não estávamos cativos Dele? (...) Em segundo lugar, por
que motivo? Por qual razão o sangue do Filho Único agradaria ao Pai, que não aceitou o de Isaac,
oferecido por seu pai, mas trocou a oferenda pela vítima do cordeiro?”.

Com essas questões, São Gregório tenta deixar claro que é impossível explicar a Cruz em termos de
justiça vindicatória. E ele conclui: “Fica assim evidente que o Paio aceitou (o sacrifício), não porque
Ele o exigiu ou precisasse dele, mas pela economia e porque o homem tinha que ser santificado pela
humanidade de Deus”.
A Redenção não é simplesmente o perdão dos pecados, não é apenas a reconciliação do homem
com Deus. A Redenção é a abolição total do pecado, a libertação do homem do pecado e da morte.
E a Redenção se realizou na Cruz, “pelo sangue em Sua Cruz”. Não apenas pelo sofrimento na
Cruz, mas precisamente pela morte na Cruz. E a vitória última foi forjada, não pelo sofrimento e a
persistência, mas pela morte e a ressurreição. Chegamos aqui numa profundeza ontológica da
existência humana. A morte de nosso Senhor foi a vitória sobre a morte e a mortalidade, não apenas
a remissão dos pecados, não meramente a justificação do homem, tampouco a satisfação de alguma
justiça abstrata. E a verdadeira chave do Mistério só pode ser dada por uma doutrina coerente sobre
a morte humana.

***

O Mistério da Morte e Redenção

Ao se separar de Deus a natureza humana se torna instável, desarmônica, como se estivesse


descomposta. A própria estrutura do homem se torna instável. A unidade entre a alma e o corpo se
torna insegura. A alma perde seu poder vital, e já não é capaz de estimular o corpo. O corpo se torna
um túmulo e uma prisão para a alma. E a morte física se torna inevitável. O corpo e a alma já não
estão, por assim dizer, seguros e ajustados um ao outro. A transgressão do mandamento “recolocou
o homem no estado de natureza”, diz Santo Atanásio –      - “na qual ele
fôra feito a partir do nada, de modo que em sua existência de fato ele sofresse no devido tempo a
corrupção de acordo com toda a justiça”. Pois, tendo sido feito do nada, a criatura sempre existe
sobre o abismo do nada, ela está sempre pronta a cair nele. A natureza criada, diz Santo Atanásio, é
mortal e enferma, “fluindo e sujeita à decomposição” – s  . Ela só pode
ser salva da “corrupção natural” pelo poder da Graça celeste, “pela habitação do Verbo”. Assim
sendo, a separação de Deus conduz a criatura à decomposição e degradação. “Pois todos
precisamos morrer, somos como a água derramada sobre o solo, que não pode ser recolhida
novamente[17]”.

Na experiência Cristã, a morte é primeiramente revelada como uma profunda tragédia, como uma
dolorosa catástrofe metafísica, como uma misteriosa falha do destino humano. Pois a morte não é o
fim normal da existência humana. Ao contrário. A morte do homem é anormal, é uma falha. Deus
não criou a morte; Ele criou o homem para a incorrupção e a existência verdadeira, aquela que
“deveríamos ter sido” – s [18]. A morte do homem é “o salário do pecado[19]”. É uma
perda e uma corrupção. E, desde a Queda, o mistério da vida foi deslocado pelo mistério da morte.
O que significa “morrer” para o homem? O que de fato morre, é obviamente o corpo, porque somente
o corpo é mortal, e falamos sempre da alma “imortal”. Nas filosofias de hoje em dia, a “imortalidade
da alma” é enfatizada a um ponto tal, que a “mortalidade do homem” é quase ignorada. Na morte,
essa existência externa, visível e corporalmente terrena cessa. Mas, por algum instinto profético,
dizemos que quem morre “é o homem”. Pois a morte certamente interrompe a existência humana,
embora se admita que a alma humana seja “imortal” e que a personalidade seja indestrutível. Assim,
a questão da morte é, em primeiro lugar, a questão do corpo humano, da corporeidade do homem. E
o Cristianismo proclama não apenas a vida póstuma da alma imortal, como ainda a ressurreição do
corpo. O homem se tornou mortal depois da Queda, e ele realmente morre. E a morte do homem se
torna uma catástrofe cósmica. Pois no homem que morre a natureza perde seu centro imortal, e é
como se ela morresse no homem. O homem foi extraído da natureza, ele foi feito do pó da terra. Mas
de certa forma ele foi retirado da natureza, porque foi Deus quem soprou nele o sopro da vida. São
Gregório de Nissa comenta da seguinte forma a narrativa do Gênesis: “Pois Deus, tomou o pó da
terra, moldou o homem e com Seu próprio sopro colocou vida na criatura formada, de modo a que os
elementos terrestres pudessem ser elevados por sua união com o Divino, e de forma que a Divina
graça num mesmo plano pudesse se estender uniformemente a toda a criação, misturando a
natureza inferior com aquela que está acima do mundo”. O homem é uma espécie de “microcosmo”,
todos os tipos de vida se encontram combinados nele, e somente nele o mundo todo entra em
contato com Deus. Consequentemente, a hipóstase do homem é capaz de alienar de Deus toda a
criação, devastá-la e privá-la de Deus. A Queda do homem fragmentou a harmonia cósmica. O
pecado é desordem, desacordo, ausência de lei. Estritamente falando, somente o homem morre. A
morte, com efeito, é uma lei da natureza, uma lei da vida orgânica. Mas a morte do homem implica
sua queda ou emaranhamento dentro do movimento cíclico da natureza, exatamente o que não era
para ter ocorrido. Como disse São Gregório, “a mortalidade foi transferida da natureza dos animais
irracionais para a natureza que fôra criada para a imortalidade”. Somente para o homem a morte é
contrária à natureza e a mortalidade consiste num mal. Somente o homem é ferido e mutilado pela
morte. Na vida genérica dos animais irracionais, a morte constitui antes um momento natural no
desenvolvimento das espécies; ela é mais uma expressão do poder regenerador do que de uma
enfermidade. Naturalmente, com a queda do homem, a mortalidade, mesmo na natureza, assumiu
um significado trágico e maligno. A natureza em si foi, por assim dizer, envenenada pelo veneno fatal
da decomposição do homem. Entre os animais irracionais, a morte não passa da descontinuação da
existência individual. No mundo humano, a morte atinge a personalidade, e a personalidade é maior
do que a mera individualidade. É o corpo que se torna corruptível e sujeito à morte através do
pecado. Apenas o corpo pode se desintegrar. Mas não é o corpo que morre, senão o homem todo,
pois o homem é organicamente composto por corpo e alma. Nem o corpo, nem a alma, representam
separadamente o homem. Um corpo sem alma não passa de um cadáver, e uma alma sem corpo é
um fantasma. O homem não é um fantasma sem cadáver, e o cadáver não é uma parte do homem.
O homem não é um “demônio sem corpo”, simplesmente confinado na prisão de um corpo. Tão
misteriosa quanto a união entre alma e corpo de fato é, a consciência imediata do homem atesta a
inteireza orgânica de sua estrutura psicofísica. Essa inteireza orgânica da composição humana foi
desde o início enfatizada por todos os mestres Cristãos. É por isso que a separação da alma e do
corpo constitui a morte do homem em si, a descontinuação de sua existência, de sua inteireza, isso
é, de sua existência enquanto homem. Por conseguinte, a morte e a corrupção do corpo são uma
espécie de desbotamento, de desfalecimento da “imagem de Deus” no homem. São João
Damasceno, em dos seus hinos gloriosos do Serviço do Sepultamento, diz a respeito disso: “Eu
choro e me lamento, quando contemplo a morte, e vejo nossa beleza, moldada à imagem de Deus,
jazendo desfigurada na tumba, desonrada, despojada de sua forma”. São João não fala do corpo do
homem, mas do próprio homem. “Nossa beleza à imagem de Deus” –
     s – não se refere ao corpo, mas ao homem. Ele é ainda
uma “imagem da insondável glória” de Deus, ainda que ferido pelo pecado –   s. E
na morte se revela que o homem, essa “estátua racional” modelada por Deus, para usarmos a
expressão de São Metódio, não passa de um cadáver. “O homem não passa de ossos secos, mau
odor e comida para vermes”. Esse é o enigma e o mistério da morte. “A morte é realmente um
mistério: pois a alma é arrancada do corpo com violência, ela é separada, pela vontade Divina, da
sua conexão e composição naturais (...) Ó maravilha! Por que fomos nós entregues à corrupção, e
por que fomos casados com a morte?”. No medo da morte, frequentemente tão mesquinho e
covarde, revela-se um profundo alarme metafísico, não apenas uma ligação pecaminosa com a
carne terrestre. No medo da morte o pathos da totalidade humana fica manifesto. Os Padres
costumavam ver na unidade entre alma e corpo no homem uma analogia com a unidade indivisível
das duas naturezas na hipóstase única de Cristo. A analogia pode ser enganosa. Mas, ainda por
analogia, podemos falar do homem como sendo simplesmente “uma hipóstase em duas naturezas”,
não apenas de, mas precisamente em duas naturezas. E na morte essa hipóstase humana única se
quebra. Por isso se justificam o luto e as lágrimas. O terror da morte só pode ser rebatido pela
esperança na ressurreição e na vida eterna.
Naturalmente, a morte não é apenas a auto-revelação do pecado. A morte em si é desde logo,
podemos dizer, a antecipação da ressurreição. Com a morte, Deus não apenas pune, como cura a
natureza humana decaída e arruinada. E isso não apenas no sentido de que Ele, por meio da morte,
corta pela raiz a vida pecadora, prevenindo assim a propagação do pecado e do mal. Deus
transforma a própria mortalidade do homem num meio de cura. Na morte, a natureza humana é
purificada, como se fosse pré-ressuscitada. Essa era a opinião comum dos Padres. Essa concepção
foi colocada com grande ênfase por São Gregório de Nissa. “A Divina Providência introduziu a morte
na natureza do homem com um desígnio específico”, disse ele, “para que, pela dissolução do corpo
e da alma, o vício possa ser apagado e para que o homem possa ser remodelado outra vez através
da ressurreição, são, livre de paixões, puro e sem nenhuma mescla com o mal”. Nisso constitui-se
especificamente a cura do corpo. Na opinião de São Gregório, a jornada do homem além-túmulo
consiste num meio de purificação. A estrutura corporal do homem é purificada e renovada. Na morte,
podemos dizê-lo, Deus aprimora o vaso de nosso corpo numa fornalha refinadora. Pelo exercício
livre de sua vontade pecadora o homem entrou em comunhão com o mal, e nossa estrutura
misturou-se com o veneno do vício. Na morte o homem é feito em pedaços, como um vaso
cerâmico, e seu corpo é decomposto novamente na terra, de maneira que, pela purificação da
sujeira acumulada, ele possa ser restaurado em sua forma normal, através da ressurreição.
Consequentemente a morte não é um mal, mas um benefício – . A morte é o salário do
pecado, mas ao mesmo tempo é também um processo de cura, uma medicina, uma espécie de
têmpera abrasadora da débil estrutura humana. A terra é como que semeada com as cinzas
humanas, para que possa brotar no último dia, pelo poder de Deus; essa era a analogia Paulina. Os
restos mortais são confiados à terra para a ressurreição. A morte implica em si mesma a
potencialidade da ressurreição. O destino do homem só pode ser realizado na ressurreição, e na
ressurreição geral. Mas apenas a Ressurreição de nosso Senhor ressuscita a natureza humana e
torna possível a ressurreição geral. A potencialidade da ressurreição inerente a cada morte foi
realizada apenas em Cristo, “primícias dos que estão adormecidos[20]”.

A redenção é, acima de tudo, um escape à morte e à corrupção, a libertação do homem da


“escravidão da corrupção[21]”, a restauração da integridade original e da estabilidade da natureza
humana. A plenitude da redenção está na ressurreição. Ela será realizada plenamente no “impulso”
geral, quando “o último inimigo for abolido, a morte” – s s. Mas a restauração da
unidade interna da natureza humana só é possível pela restauração da união do homem com Deus.
A ressurreição só é possível em Deus. Cristo é a Ressurreição e a Vida. “A menos que o homem se
uma a Deus, ele jamais poderá participar da incorruptibilidade”, diz Santo Irineu. O caminho e a
esperança da ressurreição só se revelam por meio da Encarnação do Verbo. Santo Atanásio
expressa esse ponto mais enfaticamente. A misericórdia de Deus não permite “que a criatura que foi
feita racional, e que participou do Verbo, se arruíne e retorne à não-existência por causa da
corrupção”. A violação da lei e a desobediência não eliminam o propósito original de Deus. A
abolição desse propósito equivaleria a violar a verdade de Deus. Mas o arrependimento humano não
é suficiente. “A penitência não liberta do estado de natureza (ao qual o homem foi relegado pelo
pecado), ela apenas descontinua o pecado”. Pois o homem não apenas pecou, como ele mergulhou
na corrupção. Consequentemente o Verbo de Deus desceu e se tornou homem, assumindo nosso
corpo, “de tal maneira que, tendo o homem se voltado para a corrupção, Ele os pudesse guiar
novamente para a incorrupção, e impulsioná-los para fora da morte pela apropriação de seu corpo e
pela graça da Ressurreição, banindo deles a morte, como uma palha retirada do fogo”. A morte foi
enxertada no corpo, e assim a vida tem que ser outra vez enxertada nele, para que o corpo possa
jogar fora a corrupção e se revestir de vida. De outro modo, o corpo não poderá ser erguido. “Se a
morte tivesse sido afastada do corpo por um simples comando, nem por isso ele deixaria de ser
mortal e corruptível, de acordo com a natureza de nossos corpos. Mas como isso não pode ser, ele
se reveste do incorpóreo Verbo de Deus, e assim ele já não teme a morte nem a corrupção, pois ele
possui a vida como uma vestimenta, e a corrupção foi afastada dele”. Assim, de acordo com Santo
Atanásio, o Verbo se tornou carne para abolir a corrupção na natureza humana. Claro, a morte foi
vencida, não pela irrupção da Vida no corpo mortal, mas antes pela morte voluntária da Vida
Encarnada. O Verbo se tornou encarnado tendo em vista a morte na carne, como enfatiza Santo
Atanásio. “Para aceitar a morte, Ele tomou um corpo”, e somente através de Sua morte a
ressurreição se tornou possível.

A razão última para a morte de Cristo pode ser vista na mortalidade do homem. Cristo sofreu a
morte, mas passou por ela e superou a mortalidade e a corrupção. Ele próprio vivificou a morte. Com
Sua morte Ele aboliu o poder da morte. “O domínio da morte foi cancelado com Tua morte, ó
Poderoso”. E o sepulcro se tornou a vivificadora “fonte de nossa ressurreição”. A partir daí, todo
sepulcro se tornou um “leito de esperança” para os fiéis. Com a morte de Cristo, a própria morte
recebeu um novo sentido e um novo significado. “Ele destruiu a morte com a morte”.

***

Imortalidade, Ressurreição e Redenção

A morte é uma catástrofe para o homem; esse é o princípio básico de toda a antropologia Cristã. O
homem é um ser “anfíbio”, tanto espiritual como corpóreo, e é assim que Deus o quis criar. O corpo
pertence organicamente à unidade da existência humana. E talvez seja essa a novidade mais
contundente da mensagem Cristã original. A pregação da Ressurreição, assim como a pregação da
Cruz, era uma loucura e um entrave para os Gentios. O corpo sempre repugnou a mente Grega. A
atitude geral do Grego nos primeiros tempos do Cristianismo era fortemente influenciada pelas ideias
Platônicas e Órficas, e havia uma opinião corrente de que o corpo era uma espécie de “prisão” na
qual a alma decaída estava encarcerada e confinada. Os Gregos sonhavam mais com uma
desencarnação final completa. O famoso lema Órfico era:  -. E a crença Cristã numa
Ressurreição por vir só poderia confundir e aterrorizar a mente do Gentio. Ela implicava que a prisão
seria perene, que o aprisionamento seria renovado outra vez e para sempre. A expectativa de uma
ressurreição corporal viria a calhar para os vermes da terra, sugeriu Celsus, e ele zombava em nome
do senso comum. Essa coisa sem sentido a respeito de uma ressurreição futura parecia a ele tanto
irreverente como não-religiosa. Deus jamais faria algo tão estúpido, não realizaria um desejo tão
criminoso e caprichoso, que parecia inspirado por um amor carnal impuro e fantástico. Celsus
apelidou os Cristãos de  s, “a turma do amor à carne”, e se referia aos
Docetistas[23] com muito mais simpatia e compreensão. Tal era a atitude geral diante da
Ressurreição.

São Paulo já havia sido chamado de “tagarela” pelos filósofos Atenienses justamente por ter pregado
entre eles “Jesus e a Ressurreição[24]”. Na opinião geral daqueles dias infiéis, um desgosto quase
físico do corpo era frequentemente expresso. Havia ainda uma influência disseminada do Oriente
mais longínquo; podemos lembrar da inundação que foi o Maniqueísmo ao se espalhar por todo o
Mediterrâneo. Santo Agostinho, ele próprio um fervente Maniqueu de início, insinuou em
suas Confessiones que essa aversão ao corpo tinha sido a principal razão para que ele tivesse
hesitado por tanto tempo em abraçar a fé da Igreja, a fé na Encarnação.

Porfírio, em sua Vida de Plotino, disse que este, ao que parece, “envergonhava-se por ser de carne”,
e é a partir daí que Porfírio começa sua biografia. “Dentro desse quadro mental, ele se recusava a
falar, tanto de seus antepassados e de seus pais, como de sua terra natal. Ele jamais posaria para
um escultor ou um pintor para fazer uma imagem permanente dessa forma perecível”. “Já é
suficiente que tenhamos que carregá-la agora[25]”. Esse ascetismo filosófico de Plotino,
naturalmente, deve ser distinguido do ascetismo Oriental, Gnóstico ou Maniqueísta. O próprio Plotino
escreveu energicamente “contra os Gnósticos”. É claro que o q eu temos aqui é apenas uma
diferença de motivos e métodos. A questão prática nos dois casos era uma só e a mesma, a “fuga”
desse mundo corpóreo, era escapar do corpo. Plotino sugeria a seguinte analogia: dois homens
vivem numa mesma casa. Um deles acusa o construtor e sua obra, por ser feita de madeira e pedra
inanimadas. O outro elogia a sabedoria do arquiteto porque o edifício foi erguido tão habilmente.
Para Plotino, esse mundo não é mau em si, ele é a “imagem” ou o reflexo do mundo acima dele, e
talvez seja mesmo a melhor das imagens. Mesmo assim, devemos aspirar além das imagens, da
imagem para o protótipo, do mundo mais baixo para o mais alto. E Plotino louva, não a cópia, mas o
modelo. “Ele sabe que, quando vier o tempo, ele sairá e já não terá necessidade de uma casa”. Essa
frase é muito característica. A alma deve ser liberada dos laços do corpo, deve despir-se, e então
poderá ascender à sua própria esfera. “O verdadeiro despertar consiste na verdadeira ressurreição
em relação ao corpo, não com o corpo. Pois a ressurreição com o corpo seria não mais do que uma
passagem de um sono para outro, para alguma outra morada. O único despertar verdadeiro consiste
em escapar de todo e qualquer corpo, uma vez que o corpo é, por natureza, oposto à natureza da
alma. Tanto a origem, como a vida e a decadência dos corpos mostram que eles não correspondem
à natureza das almas”. Em todos os filósofos Gregos o medo da impureza era mais forte do que o
receio do pecado. De fato, o pecado, para eles, significava impureza. A “natureza inferior”, corpo e
carne, a substância corporal e densa, era geralmente apresentada como a fonte e a sede do mal. O
mal provinha da poluição, não da perversão da vontade. A pessoa deveria se libertar e se lavar
dessa vergonha.

Sobre esse ponto o Cristianismo também trouxe uma nova concepção do corpo. Desde o início, o
Docetismo foi rejeitado como a mais destrutiva das tentações, uma espécie de anti-Evangelho
tenebroso, procedente do Anti-Cristo, do “espírito da falsidade[26]”. Isso foi fortemente enfatizado por
Santo Inácio, Santo Irineu e Tertuliano. “Porque não queremos ser despojados da nossa veste, mas
revestir a outra por cima desta, e assim, aquilo que é mortal seja absorvido pela vida[27]”. Isso
constitui precisamente a antítese do pensamento de Plotino. “Ele colocou um ponto final aqui para
aqueles que depreciam a natureza física e injuriam a nossa carne”, comentou São João Crisóstomo.
“Não é da carne, como ele disse, que nos livramos, mas da corrupção; o corpo é uma coisa, a
corrupção é outra. Nem o corpo é a corrupção, nem a corrupção é o corpo. É verdade que o corpo é
corrupto, mas ele não é a corrupção. O corpo morre, mas ele não é a morte. O corpo é obra de
Deus, mas a morte e a corrupção penetraram nele pelo pecado. Desse modo, diz ele, eu vou me
livrar dessa coisa estranha que não me pertence. E essa coisa estranha não é o corpo, mas a
corrupção. A vida futura esmaga e abole, não o corpo, mas o que se agarrou a ele, a corrupção e a
morte”. Sem dúvida alguma, Crisóstomo expressou aqui o sentimento comum da Igreja. “Devemos
esperar pela primavera do corpo”, como colocou um apologista Latino do século II – expectandun
nobis etiam et cor ports ver est. Um acadêmico russo, Vladimir Ern, falando sobre as catacumbas,
relembrou alegremente essas palavras em suas cartas desde Roma. “Não existem palavras que
melhor possam descrever a impressão de sereno júbilo, o sentimento de repouso e a inabalável
tranquilidade dos primeiros locais Cristãos de enterramento. Aqui o corpo jaz, como trigo sob a
mortalha do inverno, aguardando, antecipando e prevendo a Primavera eterna do outro mundo”. Isso
é similar ao que foi posto por São Paulo. “Assim é a ressurreição dos mortos. Ele é semeado na
corrupção, mas se ergue na incorrupção[28]”. É como se a terra fosse semeada com cinzas
humanas para que possa dar frutos, pelo poder de Deus, no Grande Dia. “Como sementes lançadas
ao solo, não perecemos ao morrer, mas, tendo sido semeados, erguemo-nos novamente”. Cada
sepulcro é desde já o altar da incorrupção. É como se a morte fosse iluminada pela luz de uma
esperança triunfante.
Existe uma distinção profunda entre o ascetismo Cristão e o ascetismo pessimista do mundo não-
Cristão. O Padre Pavel Florenskii descreve esse contraste da seguinte maneira: “Um está baseado
na má notícia de um mundo dominado pelo mal, ou outro na boa notícia da vitória, da conquista
sobre o mal no mundo. O primeiro oferece superioridade, o segundo, santidade. O primeiro tipo de
asceta se retira de modo a escapar, a se esconder, o segundo se retira para se tornar puro, para
conquistar. A continência pode ser inspirada por diferentes motivos e com diferentes propósitos.
Certamente havia alguma verdade nas concepções, tanto Órficas como Platônicas. E também de
fato frequentemente a alma vive sob a escravidão da carne. O Platonismo estava certo em seu
esforço para libertar a alma racional da escravidão dos desejos da carne, em sua luta contra a
sensualidade. E alguns elementos desse ascetismo Platônico foram absorvidos pela síntese Cristã.
Mas, ainda assim, o objetivo era muito diferente nos dois casos. O Platonismo anseia pela
purificação apenas da alma. O Cristianismo insiste na purificação do corpo igualmente. O Platonismo
prega a desencarnação final. O Cristianismo proclama a transfiguração cósmica última. A existência
corporal em si deve ser espiritualizada. Existe a mesma antítese que há entre a expectativa e a
aspiração escatológicas: “despir-se” e “revestir-se”, novamente e para sempre. E, por estranho que
possa parecer, a esse respeito Aristóteles está mais perto do Cristianismo do que Platão.

Na interpretação filosófica de sua esperança escatológica, a teologia Cristã se apega a Aristóteles


desde o princípio. Sobre esse ponto, o escritor de prosa entre uma multidão de poetas, sóbrio entre
inspirados, vai mais alto do que o “divino” Platão. Essa preferência tendenciosa pode parecer ao
mesmo tempo inesperada e estranha. Pois, estritamente falando, não existe, nem pode existir em
Aristóteles qualquer destino humano post mortem. Em sua interpretação, o homem é um ser
inteiramente terrestre. Nada que seja realmente humano passa além do túmulo. O homem é
completamente mortal, centímetro por centímetro, assim como tudo o mais na terra; ele morre para
jamais retornar. Aristóteles simplesmente nega a imortalidade pessoal. Seu ser singular não é uma
pessoa. E o que de fato sobrevive não é propriamente humano e não pertence ao indivíduo, mas é
um elemento “divino”, imortal e eterno. Mas na própria fraqueza de Aristóteles reside sua força.
Aristóteles tem um entendimento real da unidade da existência humana. Para Aristóteles, o homem é
acima de tudo um ser individual, um organismo, uma unidade viva. E o homem é uno em sua
dualidade, como um “corpo animado” ( ); os dois elementos que existem nele só existem
juntos, numa correlação concreta e indivisível. No “corpo”, a matéria é “conformada” pela alma, e a
alma só se realiza em seu corpo. “A partir daí não há necessidade de inquirir em que medida a alma
e o corpo são uma só coisa, do mesmo modo como a cera e o timbre ( ) são um só, ou, em
geral, assim como a matéria de alguma coisa é a mesma coisa que aquilo que é feito dessa
matéria[29]”. A alma é justamente a “forma” do corpo (s , 407b
23; s s s, 411ª 12), ela é seu “princípio” e seu “termo” ( e s), seu ser de fato
e verdadeiro. E Aristóteles cunha um novo termo para descrever essa correlação peculiar: a alma
é , “a primeira realidade do corpo natural” (   s , 412a
27). Alma e corpo não são para Aristóteles dois elementos, combinados ou conectados entre si, mas
simplesmente dois aspectos da mesma realidade concreta. “Juntos, a alma e o corpo constituem o
animal. Assim, não é preciso provar que a alma não pode ser separada do corpo[30]”. A alma
constitui a realidade funcional do correspondente corpo. “Alma e corpo não podem ser definidos fora
dessa relação mútua; um corpo morto é propriamente somente matéria; pois a alma é a essência, a
verdadeira existência daquilo a que chamamos corpo”. Uma vez que essa unidade funcional entre
alma e corpo é rompida pela morte, já não subsiste nenhum organismo, e o cadáver já não constitui
um corpo, e um homem morto já não pode ser chamado de homem, de forma alguma. Aristóteles
insistia na completa unidade de cada existência concreta, tal como dada hic et nunc. A alma “não é o
corpo, mas algo que pertence ao corpo (s), e que assim reside no corpo, e, o que é
mais importante, num corpo específico (   ). Nossos predecessores estavam
errados em se esforçar para vestir a alma num corpo sem uma determinação posterior da natureza e
das qualidades desse corpo, embora não possamos sequer encontrar qualquer das duas coisas ao
acaso sem que uma implique a outra ( s ...  ). Pois a realidade de cada coisa
naturalmente se desenvolve na potencialidade de cada coisa; em outras palavras, de maneira
apropriada” (  , 414a 20).

A ideia da “transmigração” das almas estava assim igualmente excluída para Aristóteles. Cada alma
habita seu “próprio” corpo, que ela cria e forma, e cada corpo possui sua “própria” alma, como seu
princípio vital, “eidos” ou forma. Essa antropologia era ambígua e sujeita a perigosas interpretações.
Ela conduz facilmente a simplificações biológicas e a se transformar num naturalismo cru, no qual o
homem é quase completamente igualado aos outros animais. Essa era também a conclusão de
alguns seguidores do Stagirita, de Aristoxenos e Dikaerkos, para quem a alma não passava de uma
“harmonia”, ou de uma disposição do corpo ( ou s, “tensão), e também de Strato, etc. Já
não se fala mais de uma alma imaterial, de uma razão separada, de um puro pensamento. O objeto
da ciência é a alma incorporada, a alma unida ao corpo. A imortalidade é negada abertamente. A
alma desaparece na medida em que o corpo morre; eles possuem um destino comum. Mesmo
Teofrastes e Eudemo não acreditam na imortalidade. Para Alexandre de Afrodisias, a alma era
apenas um s - um “tipo de eidos”. O próprio Aristóteles teve dificuldades para escapar a
esses perigos inerentes à sua concepção. É certo que o homem, para ele, era um “ser inteligente”, e
que a faculdade de pensar constituía sua marca distintiva. Ainda assim, a doutrina do Nous não
cabia muito bem no quadro geral da psicologia Aristotélica. Ele é obviamente a parte mais obscura e
complicada do sistema. Qualquer que seja a explicação dessa incoerência, o percalço está aí. “O
fato é que a posição do Nous no sistema é anômala”. O “intelecto” não pertence à unidade concreta
do organismo individual, e ele não é um  de nenhum corpo natural. Ele é antes um
elemento “divino” e alienígena, que provém de fora, de certo modo. Trata-se de uma “espécie distinta
de alma” (ss), separado do corpo, que “não se mistura” com a matéria. Ele é
impassível, imortal e eterno e, portanto, separável do corpo, “assim como aquilo que é eterno o é do
que é perecível”. Esse intelecto impassível ou ativo sobrevive de fato a toda existência individual,
mas não pertence propriamente aos indivíduos e não transmite imortalidade alguma aos seres
particulares. Alexandre de Afrodisias parece ter captado a ideia principal do Mestre. Ele inventou o
termo: ss. ele não é de modo algum uma parte ou um poder da alma humana. Ele
sobrevém como algo que realmente provém de fora. Trata-se de uma fonte comum e eterna de todas
as atividades intelectuais nos indivíduos, mas que não pertence a nenhum deles. Antes, trata-se de
uma substância auto-existente, eterna, imperecível, de uma energia imaterial, desprovida de toda
matéria e potencialidade. E, obviamente, não pode haver senão uma única substância assim.
O ss não é apenas “divino”, ele deve ser de fato identificado com a própria divindade,
com a causa primeira de toda energia e movimento.

A verdadeira falha de Aristóteles não estava em seu “naturalismo”, mas no fato de que ele não via
nenhuma permanência no indivíduo. Mas essa era realmente uma falha de toda a filosofia antiga.
Platão tinha a mesma estreiteza de visão. Para além do tempo, o pensamento Grego só conseguia
enxergar o “tipo”, e nada realmente pessoal. A própria personalidade era pouco conhecida nos
tempos pré-Cristãos. Hegel sugeriu, em seu Aesthetics, que a escultura fornecia a chave para toda a
mentalidade Grega. Recentemente, um acadêmico Russo, Alexei Fedorovich Losev, colocou que
toda a filosofia Grega constituía um “simbolismo escultural”; ele estava pensando especificamente no
Platonismo. “Contra um fundo escuro, como resultado de uma interação e um conflito entre luz e
sombra, ali está um orgulhoso e majestoso corpo, cego, sem cor, frio, marmóreo e divinamente belo,
uma estátua. E o mundo é essa estátua, e os deuses são estátuas; também a cidade-estado, os
heróis, os mitos, as ideias, tudo oculta sob si essa intuição escultural originária (...) Não existe
personalidade, nem olhos, nem uma individualidade espiritual. Existe um “algo”, mas não um
“alguém”, existe um “isto” individualizado, mas não uma pessoa com seu próprio nome (...) Não
existe ninguém, na verdade. Existem corpos, existem ideias. O caráter espiritual das ideias foi morto
pelo corpo, mas o calor do corpo está restringido pela ideia abstrata. O que existe são estátuas,
belas, mas frias e ditosamente indiferentes”. E ainda assim, no esquema geral dessa mentalidade
impessoalista, Aristóteles sentiu e entendeu p indivíduo mais do que qualquer outro. Ele chegou
mais perto do que todos à verdadeira concepção da personalidade humana. Ele proveu os filósofos
Cristãos de todos os elementos sem os quais uma concepção adequada da personalidade não
poderia ser construída. Sua força consistiu justamente em seu entendimento da totalidade empírica
da existência humana.

A concepção de Aristóteles foi radicalmente transformada em sua adaptação Cristã, pois então
abriram-se novas perspectivas, e todos os termos receberam novos significados. Mesmo assim, não
se pode deixar de reconhecer a origem Aristotélica das principais ideias escatológicas da teologia
Cristã primitiva. Encontramos essa cristianização do Aristotelismo em Orígenes, e em certa medida
em São Metódio de Olímpia e mais tarde em São Gregório de NIssa. A própria ideia
de  passou a receber uma nova profundidade na experiência da vida espiritual. O termo
em si nunca foi utilizado pelos Padres, mas não há dúvidas quanto às raízes Aristotélicas de suas
concepções. A quebra entre o intelecto, impessoal e eterno, e a alma, individual, porém mortal, foi
curada e superada pela nova autoconsciência de uma personalidade espiritual. A própria ideia de
personalidade constituiu uma grande contribuição Cristã para a filosofia. E mais uma vez, estamos
aqui diante também de um agudo entendimento da tragédia da morte.

O primeiro grande ensaio sobre a Ressurreição foi escrito na metade do século II por Atenágoras de
Atenas. Dentre os muitos argumentos colocados por ele, sua referência à unidade e à integridade do
homem é de particular interesse. Atenágoras prossegue desde o fato dessa unidade até a futura
ressurreição. “Deus não concedeu uma existência independente, tampouco uma vida, nem para a
natureza da alma em si, nem para a natureza do corpo separadamente, mas para o homem,
composto de corpo e alma, de tal maneira a que essas mesmas partes das quais ele se compõe,
uma vez que ele nasce e vive, possam elas alcançar ao término de sua vida um fim comum; a alma
e o corpo compõem no homem uma única entidade viva”. Não se pode falar em homem, enfatiza
Atenágoras, se a inteireza dessa estrutura se romper, pois então a identidade do indivíduo se rompe
também. A estabilidade do corpo, sua continuidade em sua própria natureza, deve corresponder à
imortalidade da alma. “A entidade que recebe o intelecto e a razão é o homem, e não apenas a alma.
Por conseguinte, o homem deve permanecer para sempre composto de alma e corpo. E isso não é
possível se não houver ressurreição. Pois, se não houver ressurreição, a natureza humana já não é
mais humana”.

Aristóteles concluiu da mortalidade do corpo que a alma individual, que não passa do poder vital do
corpo, é também mortal. Ambos perecem juntos. Atenágoras, ao contrário, infere a ressurreição do
corpo a partir da imortalidade da alma racional. Ambos se mantêm sempre juntos. A ressurreição,
entretanto, não consiste num simples retorno ou repetição. O dogma Cristão da Ressurreição Geral
não constitui um “eterno retorno”, como era professado pelos Estoicos. A ressurreição é uma
verdadeira renovação, a transfiguração, a reforma da totalidade da criação. Ela não é apenas um
retorno ao que se passou, mas um soerguimento, um incremento, um aprimoramento de algo melhor
e mais perfeito. “O que é semeado não é a planta que virá a ser, mas a semente nua (...) O que é
semeado é um corpo físico, o que cresce é um corpo espiritual[31]”. Nisso está implicada uma
mudança considerável. E existe aqui uma real dificuldade filosófica. Como é possível pensar nessa
“mudança” de modo a que a “identidade” não se perca? Encontramos nos textos antigos não mais do
que uma asserção sobre essa identidade. A distinção de São Paulo entre o corpo “natural”
( ) e o corpo “espiritual” ( ) obviamente requer interpretações
posteriores[32].
No período das primeiras controvérsias com os Docetistas e os Gnósticos, tornou-se urgente uma
resposta precisa e cuidadosa. Orígenes foi provavelmente o primeiro a tentar. A escatologia de
Orígenes foi, desde o começo, vigorosamente denunciada por muitos, até com boas razões, e sua
doutrina sobre a Ressurreição foi talvez a razão principal pela qual a Ortodoxia foi interpelada. O
próprio Orígenes jamais reclamou para si uma autoridade formal por sua doutrina. Ele meramente
ofereceu algumas explicações, para serem testadas e checadas pela Igreja. Para ele não era o
bastante simplesmente referir-se à onipotência Divina, como o fizeram os primeiros autores, ou citar
algumas passagens da Santa Escritura. A preocupação maior era a de mostrar como a doutrina da
Ressurreição cabia na concepção geral do destino e da finalidade da vida humana. Orígenes
explorava o caminho do meio entre a concepção carnal dos simpliciores[33] e a negação dos
Docetistas: fugere se et nostrorum carries, et haereticorum phantasmata, como colocou São
Jerônimo. E ambos ficaram insatisfeitos e ofendidos.

A Ressurreição é, de fato, um artigo de fé. Os mesmos indivíduos levantar-se-ão, e a identidades


individual dos corpos será preservada. Mas, para Orígenes, isso não implica identidade alguma com
a substância material, nenhuma identidade de estado. O corpo será, de fato, transfigurado ou
transformado na Ressurreição. De qualquer modo, o corpo que irá se levantar será um corpo
“espiritual”, e não um corpo carnal. Orígenes retoma a comparação de São Paulo. Esse corpo carnal,
o corpo da vida terrena, é sepultado na terra, como uma semente é semeada, e se desintegra. Uma
coisa é semeada, e outra nasce. O poder germinador não se extingue no corpo morto, e, no tempo
devido, pela palavra de Deus, o novo corpo se levantará, como o broto que se projeta da semente.
Algum princípio corporal permanece indestrutível e não é afetado pela morte. O termo usado por
Orígenes era obviamente Aristotélico: “ s”, “espécie” ou “forma”. Mas não era a alma que
Orígenes considerava como sendo a forma do corpo. Antes, tratava-se de algum tipo de
corporeidade potencial, pertencente a cada alma e a cada pessoa. Seria o princípio formador e
vivificador do corpo, assim como uma semente capaz de germinar. Orígenes também utilizou o
termo s s, ratio seminalis. É impossível esperar que todo o corpo seja restaurado na
ressurreição, uma vez que a substância material muda tão rapidamente, e não é a mesma no corpo
depois de dois dias, e certamente não poderá jamais reintegrar-se outra vez. A substância material
nos corpos ressuscitados não será a mesma dos corpos dessa vida
(     ). Ainda assim, será o mesmo corpo, assim como
nosso corpo é o mesmo ao longo dessa vida, apesar de todas as mudanças que acontecem em sua
composição geral. E, mais uma vez, um corpo deve estar adaptado ao meio, às condições de vida,
e, obviamente, no Reino dos Céus os corpos não poderão ser os mesmos, como são aqui na terra. A
identidade individual não é comprometida, porque o “eidos” de cada corpo não é destruído
( s    ). Trata-se do próprio principium individuationis. Para Orígenes
“o próprio corpo é seu princípio vital”. Seu s corresponde de perto à  de Aristóteles.
Mas, para Orígenes, essa “forma” ou poder germinativo é indestrutível; isso torna possível a
construção de uma doutrina da ressurreição. Esse “´princípio de individuação” é também
um principium surgendi. Nesse corpo definido as partículas materiais estão compostas ou arranjadas
por essa “forma” individual, ou s. Portanto, seja lá qual for o tipo de partícula com o qual é
formado o corpo ressuscitado, a identidade estrita da individualidade psicofísica não é modificada,
uma vez que o poder germinativo permanece inalterado. Orígenes presume que a continuidade da
existência individual é suficientemente assegurada pela identidade do princípio reanimador.

Esse ponto de vista foi mais de uma vez repetido posteriormente, especialmente sob a influência
renovada de Aristóteles. E a questão permanece aberta da moderna teologia Romana: em que
medida o reconhecimento da identidade material dos corpos ressuscitados com os corpos mortais
pertence à essência do dogma? Toda a questão gira mais em torno de uma interpretação do que de
um problema de fé. Podemos mesmo sugerir que em seu tempo Orígenes não expressou tanto sua
opinião, quanto refletiu uma opinião corrente. Existem muitas coisas questionáveis nas opiniões
escatológicas de Orígenes. Elas não podem ser vistas como um todo coerente. E não é fácil
reconciliar sua concepção “Aristotélica” sobre a Ressurreição com uma teoria da pré-existência das
almas, ou com a concepção dos ciclos recorrentes e periódicos de mundos até a aniquilação final da
matéria. Não existe uma concordância total entre essa teoria da Ressurreição e a doutrina da
“apokatastasis[34] geral”. Muitas das ideias escatológicas de Orígenes podem ter sido mal
compreendidas. Mesmo assim, sua especulação sobre a relação entre o corpo carnal dessa vida e o
corpo permanente da ressurreição foi um passo importante na direção da concepção sintética da
Ressurreição. Seu maior opositor, São Metódio de Olímpia, parece não o ter entendido bem. A
crítica de São Metódio chegou ao ponto da completa rejeição de toda a concepção de s. Não
será a forma do corpo tão mutável quanto a substância material? Pode a forma realmente sobreviver
ao próprio corpo, ou antes, não se dissolverá e se decomporá ela, quando o corpo do qual é forma
morre e cessa de existir como um todo? Em qualquer caso a identidade da forma não constitui
garantia da identidade pessoal, se a totalidade do substrato material for inteiramente diferente. Para
São Metódio a “forma” significa antes meramente o aspecto externo do corpo, e não seu poder vital
interno, como o é para Orígenes. E muitos de seus argumentos simplesmente esquecem esse ponto.
Mas sua ênfase na inteireza da composição humana foi um complemento real ao excessivo
formalismo de Orígenes.

Em sua doutrina escatológica, São Gregório de Nissa se esforçou para reunir essas duas
concepções, para conciliar as verdades de Orígenes e Metódio. E sua tentativa de síntese teve uma
importância excepcional. São Gregório começou pela unidade empírica do corpo e da alma, sua
dissolução e sua morte. E o corpo separado da alma, despojado de seu “poder vital”
( s), por meio do qual os elementos corpóreos são mantidos e enlaçados juntos
durante a vida, se desintegra e é levado pela circulação geral da matéria. A própria substância
material, naturalmente, não é destruída – apenas o corpo morre, não seus elementos. Além disso, na
própria desintegração as partículas do corpo em dissolução preservam em si certos “sinais” ou
“marcas” de sua primitiva conexão com sua alma (    s). Uma vez
mais, em cada alma algumas “marcas corporais” são preservadas, como num pedaço de cera,
alguns sinais de união. Por meio de um “poder de reconhecimento” (  ), mesmo
na separação causada pela morte, a alma de algum modo permanece próxima dos elementos de
seu próprio corpo decomposto (  ). No dia da Ressurreição, cada alma será
capaz de “reconhecer” seus elementos familiares por meio dessas marcas duplas. Esse é o “eidos”
do corpo, sua “imagem interior”, ou “tipo”. São Gregório compara esse processo de restauração do
corpo com a germinação de uma semente, com o desenvolvimento do feto humano. Ele difere
radicalmente de Orígenes na questão da substância que irá constituir os corpos da ressurreição, e
aqui ele se aproxima de São Metódio. Se os corpos ressuscitados fossem inteiramente construídos a
partir de novos elementos, isso “não seria uma ressurreição, mas a criação de um novo homem” –
      s,    . O corpo
ressuscitado deverá ser reconstruído a partir de seus elementos originais, marcados ou selados pela
alma no dia de sua encarnação; de outro modo, ele seria simplesmente outro homem. Não obstante,
a ressurreição não constituirá um mero retorno, nem será, em absoluto, uma repetição da existência
presente. Essa repetição seria realmente uma “miséria interminável”. Na ressurreição, a natureza
humana será restaurada não à sua condição presente, mas à sua condição normal e “original”.
Estritamente falando, ela será conduzida a esse estado pela primeira vez, no qual ela deveria ter
sempre estado (mas nunca o fez no passado), se o pecado não tivesse entrado no mundo pela
Queda. E tudo na existência humana, que está conectado com essa instabilidade, não constitui tanto
um retorno, quanto uma consumação. Esse é o novo modo da existência humana. O homem
ressuscita para a eternidade, a forma do tempo desaparece. E na corporeidade ressuscitada toda
sucessão e toda mudança será abolida e condensada. Não se tratará apenas de
uma s, mas de uma recapitulatio. O excedente do mal, aquilo que pertence ao
pecado, é eliminado. Mas de modo algum isso constitui uma perda. A plenitude da personalidade
não é prejudicada por essa subtração, pois esse excedente não pertence de modo algum à
personalidade. De qualquer modo, nem tudo da composição humana deverá ser restaurado. E, para
São Gregório, a identidade material do corpo da ressurreição para com o corpo mortal significa,
antes, a realidade última da vida que foi vivida, que deve ser transferida para a era futura. Aqui, mais
uma vez, ele difere de Orígenes, para quem a vida empírica e terrestre constituía apenas um
episódio transitório a ser finalmente esquecido. Para São Gregório, a identidade da forma, isso é, a
unidade e a continuidade da existência humana, era o único ponto importante. Ele manteve a mesma
concepção “Aristotélica” da conexão única e íntima entre a alma individual e o corpo.

A própria ideia de algo único foi radicalmente modificada na filosofia Cristã, se comparada com a
filosofia Grega pré-Cristã. Na filosofia Grega, tratava-se de uma singularidade “escultural”, uma
cristalização invariável de uma imagem congelada. Na experiência Cristã, trata-se da singularidade
da vida que foi experimentada e vivida. No primeiro caso, havia uma identidade atemporal, no
segundo, uma singularidade no tempo. A concepção total do tempo é diferente nos dois casos.

***

Tempo, Eternidade e Redenção

A filosofia Grega não conhecia, nem estava preparada para admitir nenhuma passagem do tempo
para a eternidade – o temporal parecia-lhe, eo ipso, transitório. Aquilo que está acontecendo não
pode jamais se tornar perene. O que nasce deve, inevitavelmente, morrer. Somente o que não nasce
ou que não tem origem pode persistir. Tudo o que tem um começo deve ter um fim. Somente o que
não tem começo pode ser permanente, ou “eterno”. Assim sendo, para um filósofo Grego admitir a
imortalidade futura implicava por princípio pressupor uma preexistência eterna. Sendo assim, todo o
significado do processo histórico se mostra como uma espécie de descida desde a eternidade para o
tempo. O destino do homem depende mais de seu germe inato do que se suas aquisições criativas.
Para um Grego, o tempo era simplesmente um modo de existência rebaixado e reduzido.
Estritamente falando, dentro do tempo nada é produzido ou adquirido, nem tampouco existe nada a
ser produzido ou adquirido. As realidades “eternas” e invariáveis são meramente como que
“projetadas” numa esfera inferior. Nesse sentido, Platão chamou o tempo de “imagem móvel da
eternidade” –    s [35]. Platão se referia ao tempo astronômico, ou
seja, na rotação dos céus. Não se visualizava nenhuma progressão. Ao contrário, o tempo “imitava”
a eternidade, e “se desenrolava de acordo com as leis do número[36]”, de modo a se parecer ao
máximo possível com a eternidade. O tempo não passa de uma permanente reiteração de si mesmo.
A ideia básica é de uma reflexão, não de uma realização. Pois tudo aquilo que merece existir, existe
realmente de um modo mais perfeito antes de todos os tempos, numa invariabilidade estática
atemporal, e não há nada que possa ser acrescentado a essa plenitude perfeita. Por conseguinte,
tudo o que acontece deve ser absolutamente transitório. Tudo é perfeito e completo, e nada há que
precise ser aperfeiçoado ou completado. Sendo assim, todo peso do tempo, com sua rotação de
inícios e fins, se torna enfadonho e sem sentido. Não existe sentido numa obrigação criativa na
mente Grega. A impassibilidade, e mesmo a indiferença do sábio, constituem o clímax da perfeição.
O sábio não está implicado nem se distrai com as vicissitudes da ordem temporal. Ele sabe que tudo
está acontecendo de acordo com as eternas leis e medidas invioláveis. Em meio ao tumulto dos
eventos, ele aprendeu a contemplar a harmonia eterna e invariável do Cosmo. O antigo filósofo
sonhava com a eternidade, enquanto vivia fora do tempo. Ele sonhava com escapar desse mundo
para um outro, imóvel, impassível e permanente. Daí advém o sentido de destino que era tão típico
antes de Cristo. Esse era o clímax e o limite da filosofia antiga. A perspectiva temporal da filosofia
antiga estava para sempre fechada e limitada. Ainda assim, sendo o Cosmo eterno, não existirá fim
para as “revoluções” cósmicas. O Cosmos tem uma existência periódica, como um relógio. O mais
elevado símbolo da vida consiste num círculo recorrente. Como colocou Aristóteles, “o círculo é uma
coisa perfeita” – e apenas o círculo, não qualquer linha reta. Isso explica também a voz corrente que
afirma que os assuntos humanos formam um círculo, e que existe um círculo em todas as coisas que
possuem um movimento natural, tanto vindo à existência quanto deixando-a. Isso é devido ao fato de
que todas as coisas são discriminadas pelo tempo, e os fins e começos são pensados como
formando um círculo; pois o próprio tempo é pensado como um círculo. Toda essa concepção está
obviamente baseada na experiência astronômica. De fato, os movimentos celestes são periódicos e
recorrentes. Toda rotação se cumpre dentro de um dado período – o “Grande Ano”, s s.
A partir daí inicia-se uma repetição, um novo círculo, ou ciclo. Não existe uma progressão contínua
no tempo, mas um “eterno retorno”, uma “cicloforia”. Os Pitagóricos parecem ter sido os primeiros a
professar com clareza uma exata repetição. Eudemo se refere a essa concepção Pitagórica: “Se
acreditarmos em Pitágoras, então, dentro de um certo tempo eu estarei mais uma vez lendo isso
para vocês, com a mesma vara nas mãos, e todos vocês, então como agora, estarão sentados
diante de mim, e da mesma maneira tudo o mais acontecerá novamente”. Em Aristóteles, essa
concepção periódica do Universo recebe um desenho científico estrito e é elaborado dentro de um
sistema coerente da Física. Mais tarde, essa ideia de retornos periódicos será retomada pelos
Estoicos.

Os primeiros Estoicos professaram uma dissolução periódica (s) e a palingenesis de todas


as coisas, de modo a que cada minuto seria reproduzido exatamente. Haverá outra vez um Sócrates,
o filho de Sofrônico e Fenarete, e ele se casará com Xantipa, e será outra vez traído por Anitos e
Meletes. A mesma ideia podemos encontrar em Cleanto e Crísipo, em Poseidônio e Marco Aurélio, e
em muitos outros. Esse retorno era o que os Estoicos chamavam de “restauração universal” –
s . Esse era obviamente um termo astronômico. Certamente existe
alguma diferença, mas evidentemente progresso algum, seja qual for. E num círculo todas as
posições são relativas de fato. Trata-se de uma espécie de perpetuum mobile cósmico. Todas as
existências individuais são envolvidas sem esperança nessa rotação cósmica perpétua, nesses
ritmos cósmicos e nesses “cursos astrais” – isso é precisamente o que os Gregos costumavam
chamar de “destino” ou “fado”,  : vis positionis astrorum. Devemos ter em mente que essa
repetição exata de mundos não implica necessariamente continuidade alguma de existências
individuais, qualquer sobrevivência ou permanência dos indivíduos, nenhuma imortalidade individual.
O próprio Universo continua a ser numericamente o mesmo, suas leis continuam imutáveis e
invariáveis, e cada mundo seguinte se assemelhará exatamente ao anterior em todos os detalhes.
Mas, estritamente falando, não se exige para tanto, que haja alguma sobrevivência individual. As
mesmas causas inevitavelmente produzirão os mesmos efeitos. Nada de realmente novo pode
acontecer. Existe uma continuidade no Cosmo, mas de modo algum uma verdadeira continuidade de
indivíduos.

Pelo menos, essa era a visão de Aristóteles, dos Aristotélicos e de alguns Estoicos. Essa ideia
periódica foi também mantida pelos Neoplatônicos. Tratava-se de uma miserável caricatura da
ressurreição. A permanência dessas rotações, esse pesadelo de uma predestinação cósmica
invariável, um verdadeiro aprisionamento de todas as existências, fizeram dessa teoria algo de
assustador e tedioso. Não existe uma história real. “O movimento cíclico e a transmigração das
almas não é história, observa Losev espirituosamente. “Tratava-se de uma história construída
segundo um padrão astronômico, na verdade, era como se fosse em si uma espécie de astronomia”.
O próprio sentimento ou a apreensão do tempo foi radicalmente transformado pelo Cristianismo. O
tempo tem começo e fim, mas é no tempo que o destino humano se realiza. O próprio tempo é
essencialmente único, e nunca retorna. E a Ressurreição Geral constitui o limite final desse tempo
único, desse destino único de toda a criação. Na filosofia Grega, um ciclo, ou uma rotação, eram os
símbolos do tempo. Na filosofia Cristã o tempo é simbolizado antes por uma linha, uma lança ou uma
flecha. Mas a diferença é ainda mais profunda. De um ponto de vista Cristão, o tempo não consiste
nem numa rotação infinita, nem numa infinita progressão que nunca atinge sua meta[37]. O tempo
não é meramente uma sequência de momentos, nem uma forma abstrata da multiplicidade. O tempo
é vetorial e finito. A ordem temporal é organizada desde dentro. A concretude do propósito conecta
por dentro o fluxo de eventos num todo orgânico. Os eventos são precisamente eventos, não meros
acontecimentos que passam. A ordem temporal não é p reino da privação, como o era para a mente
Grega. Ela é mais do que uma correnteza. Trata-se de um processo criativo, no qual aquilo que foi
trazido do nada à existência pela Vontade Divina, ascende em direção à sua consumação última,
quando o Divino propósito se realizar, no último dia. E o centro da história é a Encarnação e a vitória
do Senhor Encarnado sobre a morte e o pecado. Santo Agostinho apontou essa mudança trazida
pelo Cristianismo: viam rectam sequentes, quae nobis est Christus, eo duce ac Salvatore, a vano et
inepto impiorium circuitu iter fidem mentemque avertamus[38]. São Gregório de Nissa descreve nos
seguintes termos a vetorialidade da história: “Quando a humanidade alcançar sua plenitude, então
infalivelmente, esse fluxo móvel da natureza cessará, por ter encontrado seu necessário fim; e essa
vida será substituída por outro modo de existência, distinto do atual, que consiste em nascimento e
destruição. Quando nossa natureza, na devida ordem, preencher o curso do tempo, então,
infalivelmente, esse movimento fluido, criado pela sucessão das gerações, chegará a um fim. O
preenchimento do Universo tornará impossível qualquer avanço ou progresso ulterior, e então a
plenitude total das almas retornará do estado informal e disperso para um estado coeso, e os
mesmos elementos serão reunidos na mesma combinação que lhes é própria”. Esse fim e objetivo
final consiste na Ressurreição Geral. São Gregório fala de um cumprimento interior da história. O
tempo chegará ao seu fim. Pois, cedo ou tarde, todas as coisas se cumprirão. As sementes irão
amadurecer e brotar. A ressurreição dos mortos é o destino, o único destino de todo o mundo, de
todo o Cosmo, de uma vez por todas e por todos, num equilíbrio universa e católico. Não existe nada
de naturalístico nessa concepção. O poder de Deus levantará os mortos. Acontecerá a nova e
definitiva revelação de Deus, do poder e glória Divinos. A Ressurreição Geral é a consumação da
Ressurreição de nosso Senhor, a consumação de Sua vitória sobre a morte e a corrupção. E, para
além do tempo histórico, haverá o Reino futuro, “a vida no século por vir”. Estamos ainda in via, na
era da esperança e da expectativa. Mesmo os Santos nos céus ainda “esperam pela ressurreição
dos mortos”. A consumação final virá primeiro para toda a raça humana. Então, no fim, para toda a
criação, será inaugurado de uma vez para sempre o “Sábado Bendito”, o “dia do repouso”, o
misterioso “Sétimo dia da criação”. Por ora, o esperado é ainda inconcebível. “Ainda não se
manifestou o que há de vir[39]”. Mas a promessa está feira. Cristo ressuscitou.

***

Sumo Sacerdote e Redentor

Na Epístola aos Hebreus, a obra de redenção de nosso Senhor é descrita como o ministério do
Suma Sacerdote. Cristo veio ao mundo para cumprir a Vontade de Deus. Através do Espírito eterno
Ele ofereceu a Si próprio a Deus, ofereceu Seu sangue para a remissão dos pecados humanos, e
realizou isso por meio de Sua Paixão. Por Seu sangue, o sangue do Novo Testamento, da Nova
Aliança, Ele entrou nos céus e no interior mesmo do Santo dos Santos, além do véu. Depois do
sofrimento e da morte, Ele foi coroado com honra e glória, e sentou-se à direita do Pai para sempre.
A oferenda sacrificial começou na terra e se consumou nos céus, onde Cristo nos apresentou e
segue nos apresentando a Deus, como eterno Sumo Sacerdote – “o Sumo Sacerdote das boas
coisas que virão” (s  ) – como o Apóstolo e o Sumo Sacerdote de
nossa confissão, como o ministro do verdadeiro tabernáculo e santuário de Deus. Em resumo, como
o Mediador da Nova Aliança. Por intermédio da morte de Cristo revelou-se a Vida Eterna, “os
poderes do século futuro” foram abertos e revelados (s  s s). No sangue de
Jesus revelou-se o caminho novo e vivo, o caminho para o eterno Sábado, quando Deus descansou
de seus feitos formidáveis.

Assim é que a morte na Cruz constitui uma oferenda sacrificial. E oferecer um sacrifício não significa
apenas entregar-se. Mesmo do ponto de vista meramente moral, o significado total do sacrifício não
consiste numa negação em si, mas no poder sacrificial do amor. O sacrifício não constitui
simplesmente uma oferta, ele é antes uma dedicação, uma consagração a Deus. O poder efetivo do
sacrifício está no amor[40]. Mas a oferta do sacrifício é mais do que a evidência do amor, ela é
também uma ação sacramental, um ofício litúrgico, e mesmo um mistério. A oferta do sacrifício da
Cruz é de fato o sacrifício do amor, “como Cristo nos amou, e Se entregou por nós, como uma
oferenda e um sacrifício a Deus com perfume agradável[41]”. Mas esse amor não foi apenas
simpatia ou compaixão e misericórdia para com os caídos e os oprimidos. Cristo entregou a Si
mesmo não apenas “pela remissão dos pecados”, mas também para nossa glorificação. Ele Se
entregou não apenas pela humanidade pecadora, mas também pela Igreja: para lavá-la e consagrá-
la, para torná-la santa, gloriosa e sem mácula[42]. O poder da oferenda sacrificial está na sua
capacidade de lavar e consagrar. E o poder do sacrifício da Cruz está em que a Cruz é um caminho
de glória, na Cruz o Filho do Homem foi glorificado e Deus foi com ele também glorificado[43]. Nisso
reside a plenitude do sacrifício. “Não deveria porventura Cristo ter sofrido essas coisas, e entrado em
Sua glória?[44]”.

A morte na Cruz foi efetiva, não como a morte de um Inocente, mas como a morte do Senhor
Encarnado. “Nós precisávamos de um Deus Encarnado: Deus foi morto, para que pudéssemos viver”
– para usar a frase corajosa de São Gregório de Nazianze. Esse é “o terrível e mais glorioso
mistério” da Cruz. NO Gólgota, o Senhor Encarnado celebrou o Santo Ofício, in ara crucis, e
ofereceu Sua própria natureza humana em sacrifício, a mesma que desde sua concepção “no seio
da Virgem” fôra assumida na indivisível unidade de Sua Hipóstase, e que, ao ser assumida, foi
restaurada à sua pureza original impecável. Não existe hipóstase humana em Cristo. Sua
personalidade é Divina, ainda que encarnada. O que existe é a completa plenitude da natureza
humana, “a totalidade da natureza humana”, e assim Cristo é o “perfeito homem”, conforme afirmou
o Concílio de Calcedônia. Mas não existiu uma hipóstase humana. Por conseguinte, não foi um
homem que morreu na Cruz. “Pois aquele que sofreu não era um homem comum, mas Deus feito
homem, lutando por suportar o sofrimento”, como disse São Cirilo de Jerusalém. Pode ser
apropriado dizer que Deus morreu na Cruz, mas em Sua própria humanidade. “Aquele que habitava
nas alturas foi contado entre os mortos, e alojado n um pequeno sepulcro”. Essa é a morte voluntária
Daquele que é em Si a Vida Eterna, que é verdadeiramente a Ressurreição e a Vida. Ele sofreu de
fato uma morte humana, mas obviamente uma morte na hipóstase do Verbo, do Verbo Encarnado.
Portanto, uma morte ressuscitadora.

“Eu vim trazer o fogo sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso! Eu tenho um batismo no
qual serei batizado; e quão ansioso estou para que isso se cumpra[45]”. O fogo – o Espírito Santo –
descendo do alto em línguas ardentes, no “temível e impenetrável mistério do Pentecostes”. Esse foi
o Batismo no Espírito. E o Batismo consiste na morte na Cruz e no derramamento de sangue, “o
batismo do martírio e do sangue, com o qual o próprio Cristo foi batizado”, como sugeriu São
Gregório de Nazianze. A morte na Cruz como batismo de sangue é a própria essência do mistério
redentor da Cruz. O Batismo é uma limpeza. E o Batismo na Cruz é como se fosse a limpeza da
natureza humana, que marchava no caminho da restauração na Hipóstase do Verbo Encarnado.
Nisso consistiu a lavagem da natureza humana – no derramamento do sangue sacrificial do Cordeiro
Divino. E, em primeiro lugar, numa limpeza do corpo: não apenas numa limpeza dos pecados, mas
numa limpeza das enfermidades humanas e da própria mortalidade. É a limpeza da natureza
humana para a ressurreição por vir: uma limpeza de toda a natureza humana, de toda a humanidade
na pessoa de seu novo e místico Primogênito, no “Segundo Adão”. Esse é o batismo de sangue de
toda a Igreja. “Tu adquiriste Tua Igreja pelo poder da Tua Cruz”. E a totalidade do Corpo tem que ser
e precisa ser batizado com o batismo da Cruz. “Da taça que eu beber, beberão vocês; e com o
batismo com que eu for batizado, serão vocês batizados[46]”.

Mais do que isso, a morte na Cruz perfaz a limpeza da totalidade do mundo. Trata-se do batismo de
sangue de toda a criação, a limpeza do Cosmo por meio da limpeza do Microcosmo. “A purificação,
não para uma pequena parcela do mundo do homem, não por um curto período de tempo, mas para
todo o Universo, e por toda a Eternidade”, para citarmos ainda uma vez São Gregório de Nazianze.
Dessa forma, toda a criação partilha misteriosamente da Paixão do Mestre e Senhor Encarnado.
“Toda a criação mostrou terror em sua face quanto Te contemplou pregado à Cruz, ó Cristo (...) O
sol obscureceu-se e as fundações da terra foram sacudidas: todas as coisas sofreram Contigo em
simpatia, Contigo que criaste todas as coisas”. Isso não consistiu num co-sofrimento de compaixão
ou piedade, mas num co-sofrimento de temor e terror. “As fundações da terra tremeram de terror
ante Teu poder”, também sofrendo na alegre apreensão do grande mistério da morte ressuscitadora.
“Pois pelo sangue de Teu Filho foi a terra abençoada”. “Muitos foram, com efeito, os milagres desse
tempo”, disse São Gregório de Nazianze, “o Deus crucificado, o sol apagando-se e reacendendo;
pois era preciso que as criaturas sofressem junto com seu Criador. O véu se partiu em dois, sangue
e água jorraram de Seu flanco – sangue, porque Ele era homem, água porque era mais do que
homem. A terra tremeu, as pedras se despedaçaram por causa da Rocha. Os mortos se levantaram
como uma promessa da ressurreição final e geral. Os milagres antes do sepulcro, os milagres no
sepulcro – quem os poderá cantar? Mas nenhum foi como o milagre de minha salvação. Umas
poucas gotas de sangue recriaram o mundo todo e se tornaram para nós o que o coalho é para o
leite, aglutinando-nos a todos e amalgamando-nos numa unidade”.

A morte na Cruz é um sacramento, ela não possui apenas um sentido moral, mas também um
significado sacramental e litúrgico. Ela foi a Travessia, Páscoa do Novo Testamento. E seu
significado sacramental foi revelado na Última Ceia. Pode parecer estranho que a Eu8caistia tenha
precedido o Calvário, e que na Câmara Superior o próprio Salvador tenha dado Seu corpo e Seu
sangue aos discípulos. “Esse é o cálice do novo testamento em meu sangue que é derramado por
vós[47]”. É claro que a Última Ceia não foi apenas um rito profético, assim como a Eucaristia não
constitui uma mera lembrança. Trata-se de um verdadeiro sacramento. Pois Cristo, que o realiza, é o
Sumo Sacerdote do Novo Testamento. A Eucaristia é o sacramento da Crucificação, o Corpo partido
e o Sangue derramado. E, junto com isso, é ainda o sacramento da transfiguração, a misteriosa e
sacramental “conversão” da carne no alimento espiritual glorioso (). O Corpo partido, com
efeito morrendo na própria morte, e ressuscitando outra vez. Pois o Senhor subiu por Sua própria
vontade à Cruz, à Cruz da vergonha e da glória. São Gregório de Nissa fornece a seguinte
explicação: “Cristo não esperou pelo constrangimento da traição, assim como não esperou pelo
ataque rapace dos Judeus, ou pelo julgamento ilegal de Pilatos, para que esses males fossem a
fonte da salvação geral dos homens. Por Sua própria economia Ele antecipou suas transgressões
através de um tiro hierúrgico, inefável e incomum. Ele apresentou a Si mesmo como uma oferenda e
um sacrifício por nós, fazendo-se ao mesmo tempo Sacerdote e Cordeiro de Deus, o que “tira” os
pecados do mundo. Ao oferecer Seu corpo como alimento, Ele mostrou claramente que a oferenda
sacrificial do Cordeiro já havia sido realizada. Pois o corpo sacrificial não poderia ser utilizado como
alimento se ainda estivesse animado. Assim sendo, quando Ele deu aos discípulos o Corpo a comer
e o Sangue a beber, então, pela livre vontade e o poder do sacramento, Seu Corpo já havia sido
oferecido em sacrifício, de modo inefável e invisível, e Sua alma, juntamente com o poder Divino
unido a ela, estavam já em outro lugar, para onde os transportara o poder Daquele que o ordenara”.
Em outras palavras, a separação voluntária da alma em relação ao corpo, a agonia sacramental, por
assim dizer, do Encarnado, é como se já tivesse começado ali. E o Sangue, livremente derramado
pela salvação de todos, se tornou uma “medicina de incorrupção”, uma medicina de imortalidade e
de vida.

O Senhor morreu na Cruz, e essa foi uma morte verdadeira. Mas, com efeito, não foi uma morte
como a nossa, simplesmente porque se tratava da morte do Senhor, a morte do Verbo Encarnado, a
morte no interior da indivisível Hipóstase do Verbo feito homem. Mais uma vez, foi uma morte
voluntária, uma vez que na natureza humana não corrompida, livre do pecado original, que fôra
assumida pelo Verbo na Encarnação, não havia necessidade inerente de morte. E a livre
“assumpção” pelo Senhor do pecado do mundo não constituiu para Ele nenhuma necessidade
irrevogável de morte. A morte foi aceita apenas pelo desejo do Amor redentor. Sua morte não
consistiu no “salário do pecado”. E o ponto principal é que se tratou da morte no interior da Hipóstase
do Verbo, a morte da humanidade “enipostatizada”. De modo geral a morte constitui uma separação,
e também na morte do Senhor seu corpo precioso e sua alma foram separados. Mas a Hipóstase
única do Verbo Encarnado não foi dividida, a “união Hipostática” não foi quebrada ou destruída. Em
outras palavras, embora separados pela morte, a alma e o corpo permaneceram ainda unidos
através da Divindade do Verbo, da qual nenhum dos dois foi alienado. Isso não alterou o caráter
ontológico da morte, mas mudou seu significado. Foi uma “morte incorrupta”, e desse modo a
corrupção e a morte foram superadas nela própria, e aí teve início a ressurreição. A própria morte do
Encarnado revelou a ressurreição da natureza humana. E a Cruz se manifestou como vivificadora,
como anova árvore da vida, “pela qual a lamentação da morte foi consumida”. A Igreja coloca uma
ênfase especial nisso no Sábado de Aleluia.

“Embora Cristo tenha morrido como homem, e Sua santa alma tenha se separado de Seu puríssimo
corpo”, diz São João Damasceno, “Sua Divindade permaneceu tanto com a alma como com o corpo,
que continuaram inseparáveis dela. E assim a hipóstase única não foi dividida em duas hipóstases,
pois desde o início tanto o corpo como a alma existiram com a hipóstase do Senhor. Embora, na
hora da morte, o corpo e a alma tenham se separado, cada um deles foi preservado, tendo a
hipóstase única do Verbo. Assim, a hipóstase única do Verbo foi igualmente a hipóstase do corpo e a
da alma. Pois nem o corpo, nem a alma, jamais receberam uma hipóstase própria, diferente da do
Verbo. Assim, a hipóstase do Verbo permanece sempre uma, e jamais existem no Verbo duas
hipóstases. De acordo com isso, a Hipóstase de Cristo é sempre única. E embora a alma tenha se
separado do corpo no espaço, ainda assim eles permaneceram hipostaticamente unidos por meio do
Verbo”.

Existem dois aspectos do mistério da Cruz. Em primeiro lugar, há um mistério de tristeza e de


alegria, um mistério de desonra e glória. É um mistério de tristeza e angústia mortais, um mistério de
deserção, de humilhação e desonra. “Hoje o Mestre da Criação e o Senhor da Glória foi pregado à
Cruz (...) foi espancado nos ombros, recebeu cusparadas e feridas, indignidades e bofetadas na
face”. O Deus-homem padeceu e sofreu no Getsêmani e no Calvário até que se cumprisse o mistério
da morte. A partir Dele foi revelada toda a raiva e a cegueira do mundo, toda a obstinação e a
loucura do mal, todo o desamparo e a mesquinhez dos discípulos, toda a “justiça” da
pseudoliberdade humana. E a tudo ele cobriu com Seu amor compassivo e pesaroso, que a tudo
perdoou e que sofreu conjuntamente, rezando por aqueles que o crucificaram, porque eles não
sabiam o que estavam fazendo. “Ó meu povo, o que foi que eu fiz contra vós? Quando eu vos
aborreci?[48]”. A salvação do mundo se realizou por meio desses sofrimentos e dessas tristezas e
lamentações: “por Suas feridas fomos curados[49]”. E a Igreja nos guarda contra a atitude docética
de subestimar a realidades e a plenitude desses sofrimentos –
    s  . E a Igreja ainda nos protege contra todo exagero
oposto, contra todo excesso de ênfase kenótica. Pois o dia da vergonhosa Crucificação, quando
nosso Senhor foi contado entre os ladrões, esse é o dia da glória. “Hoje festejamos, porque nosso
Senhor foi pregado à Cruz”, na aguda frase de São João Crisóstomo. E a madeira da Cruz é “o
eternamente glorioso lenho”, a verdadeira Árvore da Vida, “por meio da qual a corrupção foi
destruída”, “pela qual a lamentação da morte foi abolida”. A Cruz é o “selo da salvação”, um sinal de
poder e de vitória. Não apenas um símbolo, mas o próprio poder da salvação, “o fundamento da
salvação”, como disse Crisóstomo – s s s. A Cruz é o sinal do Reino. “Eu o
chamei de Rei, porque eu O vi crucificado, pois é característico do Rei morrer por Seus súditos” –
mais uma vez, João Crisóstomo. A Igreja conserva dos dias da Cruz e honra-os com solenidades –
não apenas como um triunfo de humildade e amor, mas também como uma vitória da imortalidade e
da vida. “A Igreja saúda Tua Cruz como a vida da criação, ó Senhor”. Pois a morte de Cristo é em si
a vitória sobre a morte, a destruição da morte, a abolição da mortalidade e da corrupção. “Tu
morreste e me vivificaste”. E a morte na Cruz constitui uma vitória sobre a morte, não apenas por ter
sido seguida e coroada pela Ressurreição. A Ressurreição simplesmente revelou e estabeleceu a
vitória conquistada na Cruz. A Ressurreição se realizou na própria dormição do Deus-homem. E o
poder da Ressurreição é precisamente o “poder da Cruz”, o “inconquistável, indestrutível e Divino
poder da honrada e vivificadora Cruz”, o poder da Paixão e morte voluntárias do Deus-homem.
Como estabeleceu Gregório da Nazianze: “Ele deixou Sua vida, mas Ele tinha o poder de recuperá-
la; e o véu se rasgou, porque as misteriosas Portas dos Céus foram abertas; as rochas se partiram,
os mortos se levantaram (...) Ele morreu, mas Ele deu a vida, e por meio de Sua morte destruiu a
morte. Ele foi sepultado, mas levantou-se novamente. Ele desceu aos Infernos, e trouxe de lá as
almas”. Sobre a Cruz, o Senhor “restaurou nossa santidade original”, e “pela Cruz veio a felicidade
para todo o mundo”. Sobre a Cruz o Senhor não apenas sofreu e se esvaiu, mas repousou, “tendo
adormecido, como se estivesse morto”. E ele concedeu o repouso ao homem também, restaurou-o e
renovou-o, “e repousando sobre o madeiro, Tu me concedeste o repouso, a mim que estava
sobrecarregado com o peso dos pecados”. Desde a Cruz, Cristo derrama a imortalidade sobre os
homens. Com seu sepultamento Ele abriu as portas da morte, e renovou a natureza humana
corrompida. “Toda ação e todo milagre de Cristo são divinos e maravilhosos”, diz João Damasceno,
“mas o mais maravilhoso de todos foi Sua honorável Cruz. Pois nenhuma outra coisa subjugou a
morte, expiou o pecado dos primeiros antepassados, despojou o Hades, trouxe a ressurreição,
concedeu poder a nós para condenar a própria morte, preparou o retorno à santidade original, abriu
as portas do Paraíso, concedeu à nossa natureza um assento à direita de Deus, tornou-nos filhos de
Deus, senão a Cruz de nosso Senhor Jesus Cristo. A morte de Cristo sobre a Cruz nos revestiu com
a Sabedoria hipostática e o Poder de Deus”. O mistério da Cruz ressuscitadora é especialmente
comemorado no Sábado de Aleluia. Conforme explica o Synaxarion desse dia, “no Grande e Santo
Sábado, celebramos o sepultamento divinamente corpóreo de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo
e Sua descida aos Infernos, por meio da qual, tendo sido resgatada de sua corrupção, nossa raça
passou para a vida eterna”. Isso não constituiu simplesmente a véspera da salvação – foi o próprio
dia de nossa salvação. “Esse é o Sábado bendito, o dia do repouso, no qual o Filho Unigênito de
Deus descansou de todos os Seus feitos”. Esse é o doa da Descida aos Infernos. E a Descida aos
Infernos é, desde logo, a Ressurreição.

Os grandes “três dias da morte” (triduum mortis) constituem os misteriosos dias sacramentais da
Ressurreição. Em Sua carne o Senhor permaneceu no sepulcro, mas Sua carne não foi abandonada
por Sua Divindade. “Embora Seu Templo tivesse sido destruído na hora da Paixão, mesmo então ele
era a Hipóstase de Sua Divindade e de Sua Carne”. A carne do Senhor não sofreu corrupção, ela
permaneceu incorruptível mesma na própria morte, ou seja, viva, como se nunca houvesse morrido,
pois ela residia no próprio seio da Vida, na Hipóstase do Verbo. Como está dito em um dos hinos
ortodoxos, “Tu provaste a morte, mas não conheceste a corrupção”. São João Damasceno sugeriu
que a palavra “corrupção” () possui um duplo significado. Primeiramente, ela significa “todos
os estados passivos do homem” ( ), como a fome, a sede, a fadiga, a prisão, a própria morte
– ou seja, a separação da alma e do corpo. Nesse sentido, podemos dizer que o corpo do Senhor
estava sujeito à corrupção () até a Ressurreição. Mas a corrupção também significa a
completa decomposição do corpo e sua destruição. Essa é a corrupção no sentido próprio – ou
antes, a “destruição” () – mas o corpo do Senhor de modo algum experimentou esse modo
de corrupção, e permaneceu “incorrupto” mesmo na morte. Vale dizer, ele nunca se tornou um
cadáver. E nessa incorrupção o Corpo foi transfigurado em um estado de glória. A alma de Cristo
desceu aos Infernos, também inseparada de Sua Divindade, “no Inferno, em alma, como Deus” – a
“alma deificada” de Cristo, como sugeriu São João Damasceno –  .

Essa descida aos Infernos significou antes de tudo uma entrada ou uma penetração no domínio da
morte, no domínio da mortalidade e da corrupção. Nesse sentido, ela aparece simplesmente como
um sinônimo da morte em si. É difícil identificar esse Inferno, ou Hades, ou “morada subterrânea” ao
qual desceu o Senhor, com o “inferno” de sofrimentos dos pecadores e dos ímpios. Em toda sua
realidade objetiva o inferno dos sofrimentos e tormentos corresponde certamente a um modo
espiritual de existência, determinado pelo caráter pessoal de cada alma. E ele não consiste em algo
que virá, mas, numa grande medida, ele já se encontra constituído para o pecador obstinado, pelo
simples fato de sua perversão e apostasia. Os ímpios encontram-se de fato no inferno, na escuridão
e na desolação. Em qualquer caso, não podemos imaginar que as almas dos pecadores renitentes, e
as dos Profetas da Antiga Aliança, que falaram pelo Espírito Santo e pregaram a vinda do Messias,
como o próprio São João Batista, estivessem no mesmo “inferno”. Nosso Senhor desceu até as
trevas da morte. O Inferno, ou Hades, consiste apenas na escuridão e nas sombras da morte, antes
um lugar de angústia mortal do que um lugar de tormentos penais, um escuro “sheol”, um lugar de
descorporificação e desencarnação sem esperanças, escassa e fracamente iluminado pelos raios
oblíquos de um Sol ainda não nascido, por esperança e expectativas não cumpridas. Por causa da
Queda e do Pecado Original, toda a humanidade caiu na mortalidade e na corrupção. E mesmo a
mais alta justiça sob a Lei é incapaz de salvar o homem, seja da inevitabilidade da morte empírica,
seja da desesperança e impotência para além do túmulo, que resultam da impossibilidade de uma
ressurreição natural e da incapacidade de restaurar a inteireza esfacelada da existência humana. É
como se fosse uma espécie de enfermidade ontológica da alma, a qual, ao se separar na morte,
tivesse perdido sua faculdade de representar a verdadeira “entelechia[51]” de seu próprio corpo, a
incapacidade, de uma natureza decaída e machucada, de se defender. E, nesse sentido, todos
desceram “ao inferno”, às trevas infernais, podemos dizer, ao próprio Reino de Satanás, o príncipe
da morte e o espírito da negação; e todos estiveram sob seu poder, ainda que os justos não
participassem de suas perversões demoníacas e malignas, porque estavam confinados na morte
pelas garras de uma impotência ontológica, mas não por causa de sua perversão pessoal. Eles eram
realmente “espíritos aprisionados”. E foi a essa prisão, a esse Inferno, que o Senhor e Salvador
desceu. Por entre as trevas da paliçada da morte brilhou a inextinguível luz da Vida, da Vida Divina.
Foi isso que destruiu o Inferno e que destruiu a mortalidade. “Embora tiveste descido ao túmulo, ó
Misericordioso, ainda assim destruíste o poder do Inferno”. Nesse sentido, o Inferno foi simplesmente
abolido, “e já não existem mortos nos túmulos”. Pois “Ele cobriu-se de terra, e ainda assim encontrou
o céu”. A morte foi superada pela Vida. “Quando desceste à morte, ó Vida Eterna, flagelaste o
Inferno com o brilho de Tua Divindade”.

A descida de Cristo ao Inferno constitui a manifestação da Vida em meio à desesperança da morte, a


vitória sobre a morte. De modo algum implica que Cristo tenha “tomado sobre si” os “tormentos
infernais dos esquecidos de Deus”. O Senhor desceu aos Infernos como Vitorioso, Christus Victor,
como o Mestre da Vida. Ele desceu em Sua glória, não humilhado, embora tenha sido através da
humilhação. Mas até a morte, Ele a assumiu voluntariamente e com autoridade. “Não foi por causa
de nenhuma fraqueza do Verbo, que nele existisse, que Seu corpo morreu, mas para que nele o
poder da morte fosse derrotado pelo poder do Salvador”, disse Santo Atanásio. O Senhor desceu
aos Infernos para anunciar a boa nova e para pregar às almas que estavam ali aprisionadas[52],
para, pelo poder de Sua aparição e de Sua pregação, libertá-las, para mostrar a elas sua libertação.
Em outras palavras, a descida aos Infernos foi a ressurreição do “Adão total”. Uma vez que “o
Inferno se lamentou” e “se afligiu”, com Sua descida Cristo “destruiu os grilhões eternos” e restituiu
toda a raça humana. Ele destruiu a própria morte, “a garra da morte se partiu e o poder de Satanás
foi aniquilado”. Nisso consistiu o triunfo da Ressurreição. “E arrebentaste as portas de ferro, e nos
conduziste para fora da escuridão e da sombra da morte, e rompeste nossas cadeias”. “Esvaziaste a
morada da morte com Tua morte e iluminaste a tudo com Tua luz da Ressurreição”. Assim a própria
morte foi transmutada em Ressurreição. “Eu sou o primeiro e o último: Eu sou Aquele que vive, e
que estava morto; e vede, estou vivo para todo o sempre, Amém. E eu possuo as chaves da morte e
do Hades[53]”.

A Crucificação, a Ressurreição e a Redenção

A impotência da morte sobre Ele se revelou na morte do Salvador. Na plenitude de Sua natureza
humana nosso Senhor era mortal, uma vez que a potentia mortis é inerente mesmo à natureza
humana original e pura. O Senhor foi morto e morreu. Mas a morte não O reteve. “Não era possível
que Ele fosse retido por ela[54]”. São João Crisóstomo comentou: “Ele próprio o permitiu (...) Ao
toma-lo, a própria morte sofreu dores como num parto, e foi magistralmente ferida (...) Então, Ele se
ergueu como se nunca tivesse estado morto”. Ele é a Vida Eterna, e destruiu a morte com o próprio
fato de Sua morte. Sua simples descida ao Inferno, ao reino da morte, foi uma poderosa
manifestação da Vida. Com Sua descida ao Inferno Ele vivificou a própria morte. A impotência da
morte ficou manifesta na Ressurreição. A alma de Cristo, separada pela morte, cheia do poder
Divino, uniu-se outra vez ao corpo, que permanecera incorruptível ao longo de toda a separação
mortal, durante a qual ele não sofreu nenhuma decomposição física. Na morte do Senhor ficou
manifesto que Seu puríssimo corpo não estava sujeito à corrupção, que ele estava livre da
mortalidade que envolveu a natureza humana original desde a Queda.

No primeiro Adão a potencialidade da morte pela desobediência foi inaugurada e realizada. No


segundo Adão a potencialidade da imortalidade pela pureza e a obediência foi sublimada e realizada
numa impossibilidade de morte. “Pois assim como tudo morreu em Adão, em Cristo tudo é
vivificado[55]”. Toda a construção da natureza humana em Cristo mostrou-se estável e forte. A saída
da alma do corpo não se consumou como uma ruptura. Mesmo na banal morte do homem, como
observou São Gregório de Nissa, a separação entre a alma e o corpo jamais é absoluta; uma certa
conexão sempre se mantém. Na morte de Cristo, essa conexão provou não ser apenas uma
“conexão de conhecimento”; sua alma em nenhum momento deixou de ser a “força vital” do corpo.
Sendo assim, Sua morte, em toda a sua realidade, enquanto verdadeira separação e
descorporificação, foi como um adormecer. “Foi então que a morte do homem se mostrou como um
sono”, conforme disse São João Damasceno. A realidade da morte não foi de fato abolida, mas sua
impotência foi revelada. O Senhor morreu de fato e verdadeiramente. Mas em Sua morte,
manifestou-se em eminente medida a “dynamis da ressurreição”, que está latente e é inerente a toda
morte. A gloriosa comparação com o grão de trigo[56] pode ser aplicada à Sua morte em sua total
extensão. E em Sua morte manifestou-se a glória de Deus. “Eu O glorifiquei e vou glorificá-Lo de
novo[57]”. No corpo do Encarnado esse intervalo entre a morte e a ressurreição foi abreviado.
“Semeado em desonra, ele se levanta em glória; semeado em fraqueza, levanta-se em poder;
semeado num corpo natural, levanta-se num corpo espiritual[58]”. Na morte do Encarnado esse
misterioso crescimento da semente realizou-se em três dias – triduum mortis.
Ele não permitiu que o templo de Seu corpo permanecesse por muito tempo morto, mas, tendo-o
apresentado morto pelo contato com a morte, rapidamente ressuscitou-o ao terceiro dia, e, com ele,
ergueu o sinal da vitória sobre a morte, vale dizer, a incorrupção e a impassibilidade manifestadas no
corpo”. Com essas palavras, Santo Atanásio estabelece o caráter vitorioso e ressuscitador da morte
de Cristo. Nesse misterioso triduum mortis, o corpo de nosso Senhor foi transfigurado em corpo de
glória, e revestiu-se de poder e de luz. A semente amadureceu. O Senhor levantou-se de entre os
mortos, como um Noivo que deixa a câmara nupcial. Isso se realizou pelo poder de Deus, como
acontecerá no último dia com a ressurreição geral, que será também realizada pelo poder de Deus.
E na Ressurreição a Encarnação se completa, como uma vitoriosa manifestação da Vida no seio da
natureza humana, um “enxerto” de imortalidade na composição humana.

A Ressurreição de Cristo foi uma vitória, não apenas sobre Sua morte, como sobre a morte em geral.
“Celebramos a morte da Morte, a ruína do Inferno, e o começo de uma vida nova e eterna”. Em Sua
Ressurreição, toda a humanidade, toda a natureza humana, ressuscitou junto com Cristo, “a raça
humana revestiu-se de incorrupção”. A ressurreição conjunta não significou que todos se levantem
dos túmulos. Os homens continuam a morrer: mas a desesperança da morte foi abolida. A morte foi
destituída de seu poder, e a toda natureza humana foi dado o poder, ou a “potentia” da ressurreição.
São Paulo deixou isso bem claro: “Se não existir a ressurreição dos mortos, então Cristo não
ressuscitou (...) Pois se os mortos não ressuscitam, tampouco Cristo ressuscitou[59]”. São Paulo
quer dizer que a Ressurreição de Cristo não teria significado, se não fosse uma realização universal,
se a totalidade do Corpo não estivesse implicitamente “pré-ressuscitado” junto com a Cabeça. E a
própria fé em Cristo perderia o sentido e se tornaria vazia e vã: não haveria nada em que acreditar.
“Se Cristo não ressuscitou, vossa fé é em vão[60]”. Sem a esperança da Ressurreição Geral, a
crença em Cristo seria vã e sem sentido, não passaria de vanglória. “Mas agora Cristo ressuscitou
dos mortos, e se tornou as primícias dos que adormeceram[61]”. É nisso que reside a vitória da vida.
“É verdade que ainda morremos, como antes”, diz São João Crisóstomo, “mas não permanecemos
mortos; e isso não é morrer (...) É nisso que consiste o poder e a própria realidade da morte, no fato
de que um homem morto não tem possibilidade de voltar a viver (...) Mas se após a morte ele
ressuscita, e, mais do que isso, recebe uma vida melhor, então essa não é a morte, mas um
adormecer apenas”. Encontramos a mesma definição em Santo Atanásio. A “condenação da morte”
foi abolida. “Tendo cessado a corrupção, tendo sido afastada pela graça da Ressurreição, somos
daqui por diante dissolvidos apenas por algum tempo, de acordo com a natureza mortal de nossos
corpos; como sementes lançadas à terra, não perecemos, mas semeados na terra voltamos a nos
erguer, pois a morte foi reduzida a nada pelo Salvador”. Nisso constituiu-se a cura e a renovação da
natureza, e doravante se torna de certo modo uma compulsão; todos irão ressuscitar, todos serão
restaurados à plenitude de seu ser natural, ainda que transformados. Daqui por diante, toda
descorporificação não passará de temporária. O vale escuro do Hades foi abolido pelo poder da
vivificadora Cruz.

São Gregório de Nissa enfatiza veementemente a interdependência orgânica entre Crucificação e


Ressurreição. A Ressurreição não se resume a uma consequência, mas trata-se de um fruto da
morte na Cruz. São Gregório aponta dois aspectos em especial: a unidade da Hipóstase Divina, na
qual a alma e o corpo de Cristo estão unidos, mesmo em sua separação pela morte; e a absoluta
ausência de pecado do Senhor. E ele prossegue: “Quando nossa natureza, ainda que estando Nele,
segue seu próprio curso e avança para a separação da alma e do corpo, Ele outra vez une os
elementos desconexos, cimentando-os uns aos outros, como se fosse com o cimento de Seu Divino
poder, e recombina o que foi danificado numa união que já não poderá ser quebrada. Nisso consiste
a Ressurreição – ou seja, o retorno, depois de terem sido dissolvidos – desses elementos que antes
se encontravam ligados uns aos outros, numa união indissolúvel por meio de uma incorporação
mútua; dessa forma, a graça primordial que ungia a humanidade pode ser reativada, e nós podemos
ser restaurados à vida eterna, quando o vício que se misturara à nossa espécie se evapora junto
com nossa dissolução (...) Pois, assim como o princípio da morte surgiu numa pessoa e passou
sucessivamente a toda a espécie humana, da mesma forma o princípio da Ressurreição se expande
de uma pessoa para toda a humanidade (...) Pois quando, nessa humanidade concreta que Ele
tomou para Si, a alma retornou ao corpo após a dissolução, a partir daí essa reunião das diversas
partes passou, como por meio de um novo princípio, com igual força para toda a raça humana. Esse
é o mistério do plano de Deus em relação à Sua morte e à Sua Ressurreição após a morte”. Em
outra parte, São Gregório explica seu significado pela analogia do junco partido ao meio. Quem
juntar as duas metades partindo de uma das pontas, necessariamente, ajuntará a outra ponta, “e o
junco partido ficará completamente rejuntado”. Assim também, a união da alma e do corpo em
Cristo, restaurando-se, permitiu a reunião “de toda a natureza humana, que havia sido dividida em
duas partes pela morte”, uma vez que a esperança da ressurreição restabelece a conexão entre as
partes que estavam separadas. Em Adão, nossa natureza foi fendida ou cortada em dois pelo
pecado. Mas em Cristo esse rasgo foi completamente curado. Nisso consiste a abolição da morte, ou
antes, da mortalidade. Em outras palavras, trata-se da restauração dinâmica e potencial da plenitude
e da inteireza da existência humana. É a recriação da totalidade da raça humana, a “nova criação”
(  s), a nova revelação do amor e do poder Divinos, a consumação da criação.

É preciso distinguir cuidadosamente entre a cura da natureza e a cura da vontade. A natureza foi
curada e restaurada quase que compulsoriamente, pelo poder da graça onipotente e invencível de
Deus. Podemos dizer, por uma certa “violência da graça”. A inteireza, a totalidade, a completude foi
como que forçada sobre a natureza humana. Pois em Cristo toda a natureza humana (a “semente de
Adão”) foi plena e completamente curada de sua incompletude e mortalidade. Essa restauração será
atualizada e revelada em sua plena extensão na Ressurreição Geral, a ressurreição de tudo, tanto
dos justos como dos iníquos. Ninguém, até onde alcança a natureza, pode escapar da regra
soberana de Cristo, pode excluir-se do invencível poder da ressurreição. Mas a vontade do homem
não pode ser curada da mesma maneira irresistível; pois todo o sentido da cura da vontade está na
sua livre conversão. A vontade do homem deve voltar-se por si só para Deus; deve haver uma
resposta livre e espontânea de amor e adoração. A vontade do homem só pode ser curada em
liberdade, no “mistério da liberdade”. Somente por meio desse esforço livre e espontâneo o homem é
capaz de penetrar na nova e eterna vida revelada em Jesus Cristo. Uma regeneração espiritual só
pode ser forjada em perfeita liberdade, na obediência ao amor, pela autoconsagração e a
autodedicação a Deus. Essa distinção foi enfatizada com grande insistência no notável tratado A
vida em Cristo, de Nicolas Cabasilas. A ressurreição é a “retificação da natureza”
( s s  s), e isso é concedido gratuitamente por Deus. Mas o Reino
dos Céus, a visão beatífica, a união com Cristo, pressupõem o desejo (  ss),
e, portanto, só estão à disposição daqueles que desejaram, amaram e esperaram por isso. DessaA
imortalidade será concedida a todos, assim como todos desfrutarão da Divina providência. Não
depende de nossa vontade se iremos ou não ressuscitar depois da morte, assim como não foi por
nossa vontade que nascemos. A morte e a ressurreição de Cristo trouxeram a imortalidade e a
incorrupção para todos da mesma maneira, porque todos possuímos a mesma natureza que o
Homem Jesus Cristo. Mas ninguém pode ser forçado a desejar. Assim sendo, a Ressurreição é um
dom comum a todos, mas a beatitude só será concedida e alguns. Mais uma vez, o caminho da vida
é o caminho da renúncia, da mortificação, do auto-sacrifício e da auto-oblação. É preciso morrer para
si para viver em Cristo. Cada qual deve associar-se a Cristo livremente e pessoalmente, a Cristo, o
Senhor, Salvador e Redentor, numa confissão de fé, numa escolha de amor, num juramento de
lealdade. Cada qual deve renunciar a si próprio, deve “perder sua alma” por Cristo, deve tomar sua
cruz e segui-Lo. O esforço Cristão está em “seguir” a Cristo, seguir o caminho de Sua Paixão e Cruz,
mesmo na morte, e, acima de tudo, segui-Lo com amor. “Dessa forma percebemos o amor de Deus,
porque Ele deu Sua vida por nós; e devemos dar nossas vidas por nossos irmãos (...) Nisso está o
amor, não em amarmos a Deus, mas em que Deus nos amou, e enviou Seu Filho para a remissão
de nossos pecados[62]”. Quem não morre com Cristo não pode viver com Ele. “A menos que, por
nossa livre escolha, aceitemos morrer com Sua Paixão, Sua vida não estará em nós”, disse Santo
Inácio de Antioquia. Não se trata de uma mera regra ascética ou moral, não é uma simples
disciplina. Trata-se da lei ontológica da existência espiritual, diremos mesma da própria vida.

Simbolismo Batismal e Realidade Redentora

A vida Cristã se inicia com um novo nascimento, pela água e pelo Espírito. Primeiramente, requer-se
o arrependimento, “ ”, uma mudança interior, íntima e resoluta.

O simbolismo do Santo Batismo é complexo e múltiplo. O Batismo deve ser realizado em nome da
Santa Trindade; e a invocação Trinitária é vista unanimemente como a condição mais necessária
para a validade e a eficácia do sacramento. Acima de tudo, o Batismo consiste em revestir-se de
Cristo[63], na incorporação ao Seu Corpo[64]. A invocação Trinitária é requerida porque fora da fé
Trinitária é impossível conhecer a Cristo, reconhecer em Jesus o Senhor Encarnado, “Um da
Santíssima Trindade”. O simbolismo do Batismo é acima de tudo um simbolismo de morte e
ressurreição, da morte e ressurreição de Cristo. “Ou não sabeis que todos os que fomos batizados
em Jesus Cristo fomos batizados em Sua morte? Dessa forma, fomos sepultados com Ele pelo
batismo na morte; para que, assim como Cristo ressuscitou da morte pela glória do Pai, também nós
caminharemos numa vida nova[65]”. Podemos dizer que o Batismo é a ressurreição sacramental de
Cristo, uma ressurreição com Ele e Nele para uma vida nova e eterna: “Sepultados com Ele no
batismo, no qual também com Ele ressuscitastes por meio da fé no poder de Deus, que O
ressuscitou dos mortos[66]”. Somos co-ressuscitados com Ele exatamente através do sepultamento:
“porque, se morremos com Ele, também viveremos com Ele[67]”. Pois no Batismo o fiel se torna um
membro de Cristo, enxertado em Seu Corpo, “enraizado e edificado Nele[68]”. Dessa forma, a graça
da Ressurreição é derramada sobre todos. Antes de ser consumada na Ressurreição Geral, a Vida
Eterna se manifesta no renascimento espiritual dos fiéis, concedida e realizada no Batismo, e a
união com o Senhor Ressuscitado constitui a iniciação da ressurreição e da Vida futura. “Pois todos
nós que com a face descoberta contemplamos como num espelho a glória do Senhor, somos
transformados por essa mesma imagem, de glória em glória, pelo Espírito do Senhor (...) Sempre
trazendo no corpo a morte do Senhor Jesus, para que a vida de Jesus possa também se manifestar
em nosso corpo (...) Sabendo que Aquele que ressuscitou o Senhor Jesus também a nós
ressuscitará por Jesus, e nos apresentará juntamente convosco (...) Pois sabemos que, se a morada
terrestre desse tabernáculo for dissolvida, teremos um edifício em Deus, uma morada não feita por
mãos, eterna nos Céus. Por isso aqui suspiramos, confiantemente desejosos de nos revestirmos
dessa nossa morada que está nos Céus (...) não porque queiramos nos despir, mas sim revestirmo-
nos, para que a mortalidade possa ser tragada pela vida[69]”. Não apenas seremos, como somos de
fato transformados. A regeneração batismal e a ascese caminham juntas: a morte com Cristo e a
ressurreição são desde já operacionais entre os fiéis. A ressurreição é operativa não apenas como
um retorno à vida, mas também como uma elevação ou uma sublimação à glória. Não se trata
apenas de uma manifestação do poder e da glória de Deus, mas também de uma transfiguração do
homem, na medida em que ele morre com Cristo. Ao morrer com Ele, o homem também vive. Todos
ressuscitarão, mas somente ao fiel fervoroso a ressurreição será uma verdadeira “ressurreição para
a vida”. Ele não passará pelo Juízo, mas passará da morte para a vida[70]. Somente em comunhão
com Deus e por meio de uma vida em Cristo a restauração da totalidade do homem terá sentido.
Para aqueles que estão na total escuridão, que por sua própria vontade confinaram-se “fora de
Deus”, fora da Luz Divina, a Ressurreição em si poderá ser vista como desnecessária e imotivada.
Mas ela virá, a “ressurreição para o Juízo[71]”. E com isso se completará o mistério e a tragédia da
liberdade humana.

Estamos aqui ainda no limiar do inconcebível e do incompreensível. A apokatastasis da natureza não


elimina a vontade livre. A vontade deve ser movida desde dentro pelo amor. São Gregório de Nissa
tinha um entendimento muito claro a esse respeito. Ele antecipou uma espécie de “conversão”
(conversio) universal das almas no pós-vida, quando a Verdade de Deus se revelar e se manifestar
com evidência convincente e definitiva. Nesse ponto ficam óbvias as limitações do pensamento
Helenístico. Para este, a evidência parece ter sido a razão ou o motivo decisivo para a vontade,
como se o “pecado” fosse meramente uma “ignorância”. O pensamento Helenístico teve que passar
por uma longa e difícil experiência de ascetismo, de um autoexame e de um autocontrole ascéticos,
para ser capaz de se libertar dessa ingenuidade e dessa ilusão intelectualistas, e descobrir um
escuro abismo na alma decaída. Somente em Máximo o Confessor, depois de séculos de
preparação ascética, encontramos uma interpretação da apokatastasis nova, remodelada e mais
profunda. Toda a natureza, todo o Cosmo, serão restituídos. Mas as almas mortas ainda
permanecerão insensíveis à própria revelação da Luz.

A Luz Divina brilhará para todos, mas aqueles que deliberadamente passaram sua vida terrestre
entre desejos carnais, “contra a natureza”, serão incapazes de perceber ou desfrutar da felicidade
eterna. A Luz é o Verbo que ilumina as mentes naturais dos fiéis; mas para os outros ela é o fogo
devorador do julgamento –   ss. Este irá punir aqueles que, através do amor à
carne, se apegaram à escuridão noturna dessa vida. São Máximo admite uma apokatastasis no
sentido da restituição de todos os seres a uma integridade de natureza, da manifestação universal
da Vida Divina, que será percebida por todos; mas isso não significa que todos participarão
igualmente dessa revelação do Bem. São Máximo estabelece uma clara distinção entre
umconhecimento, e uma , compreensão. Os dons divinos são concedidos na
proporção das capacidades dos homens. A plenitude dos poderes naturais será restaurada em
todos, e Deus estará de fato em todos; mas apenas nos Santos Ele estará presente com a
graça,   . Nos ímpios ele estará presente sem a graça,   . Nenhuma
graça será outorgada aos ímpios, porque a união definitiva com Deus requer a determinação da
vontade. Os ímpios serão separados de Deus por sua falta de uma resoluta decisão pelo bem.
Temos aqui a mesma dualidade que existe entre natureza e vontade. Na ressurreição toda a criação
será restaurada. Mas o pecado e o mal estão enraizados na vontade. O pensamento Helenístico
conclui daí que o mal é instável e que ele deve inevitavelmente desaparecer por si só. Pois nada
pode ser perpétuo, a menos que esteja enraizado num decreto Divino. Assim, o mal não pode deixar
de ser transitório. Entretanto, a inferência Cristã é o oposto. Existe uma estranha inércia e
obstinação da vontade, e essa obstinação pode permanecer incurável mesmo depois da restauração
universal. Deus nunca violenta o homem, e a comunhão com Deus não pode ser forçada nem
imposta aos obstinados. Como coloca São Máximo, “o Espírito não produz resolução indesejada,
mas transforma um objetivo escolhido numa theosis”. Pois o pecado e o mal não provêm de uma
impureza externa, mas de uma falha interna, de uma perversão da vontade. Consequentemente, o
pecado só pode ser superado por uma conversão e uma mudança interiores, e o arrependimento é
selado pela graça nos sacramentos.

A morte física entre a humanidade não é ab-rogada pela Ressurreição de Cristo. A morte é tornada
impotente, de fato; a mortalidade e superada pela esperança e pela promessa da ressurreição futura.
E ainda assim cada qual deve justificar essa ressurreição para si. Isso só pode ser feito por meio de
uma livre comunhão com o Senhor. A imortalidade da natureza, a permanência da existência, deve
ser atualizada na vida no Espírito. A plenitude da vida não consiste meramente numa existência sem
fim. No batismo somos iniciados nessa real ressurreição da vida, que será consumada no último dia.
São Paulo fala de uma “similaridade” com a morte de Cristo[72], mas essa “similaridade” significa
mais do que uma semelhança. Trata-se de algo mais do que um mero sinal ou lembrança. O
significado dessa “similaridade” para o próprio São Paulo era que em cada um de nós Cristo pode e
deve ser “formado[73]”. Cristo é a Cabeça e os fiéis são Seus membros, e Sua vida se atualiza
neles. Todos são chamados e cada um é capaz de acreditar, e de ser impulsionado pela fé e o
batismo a viver Nele. O Batismo é a regeneração, s, um nascimento novo, espiritual e
carismático. Como diz Cabasilas, o Batismo é a causa de uma vida beatífica em Cristo, não
meramente de uma vida. São Cirilo de Jerusalém explica lucidamente a verdadeira realidade de todo
o simbolismo batismal. É verdade, diz ele, que na fonte batismal morremos e somos sepultados
apenas “em imitação”, apenas “simbolicamente” ( ). Não levantamos de um sepulcro
verdadeiro ( s), mas, ainda assim, “se a imitação é uma imagem, a salvação
está ali verdadeiramente”,     . Cristo foi realmente crucificado e sepultado, e
realmente levantou-se do sepulcro. O termo Grego empregado para isso é s. É algo mais, e
mais forte, do que simplesmente s – “em verdade”; é algo que enfatiza o caráter sobrenatural
da morte e ressurreição de nosso Senhor. Doravante Ele nos concedeu essa chance, por meio de
uma participação “imitativa” em Sua Paixão, para que possamos adquirir a “salvação em realidade”
(     s). Não se trata apenas de uma “imitação”, mas antes de
uma participação, de uma similitude. “Cristo foi realmente crucificado e sepultado, mas a você é
dado ser crucificado, sepultado e ressuscitado com Ele em similitude” ( ). Devemos nos
lembrar que São Cirilo menciona não apenas a morte, mas também o sepultamento. Isso significa
que no batismo o homem desce “sacramentalmente” até a escuridão da morte, e então, junto com o
Senhor Ressuscitado, ele se ergue novamente e passa da morte para a vida. “E a imagem se
completa em todos vocês, pois são vocês a imagem de Cristo”, conclui São Cirilo. Em outras
palavras, todos são enlaçados por e em Cristo, a partir da possibilidade de fato da “semelhança”
sacramental.

São Gregório de Nissa atenta para o mesmo ponto. Existem dois aspectos no batismo. O batismo é
um nascimento e uma morte. O nascimento natural é o começo da existência mortal, que começa e
termina na corrupção. O outro, o novo nascimento, precisa ser descoberto, e começa na vida eterna.
No batismo, “a presença do poder Divino transforma aquilo que nasceu com uma natureza corrutível,
num estado de incorrupção”. Essa natureza se transforma seguindo e imitando; e assim, o que foi
prenunciado pelo Senhor se realiza. Apenas seguindo a Cristo a pessoa pode passar pelo labirinto
da vida e sair dele. “Pois eu chamo de labirinto a inescapável guarda da morte, na qual a
humanidade sombria se vê aprisionada” (    ). Cristo escapou daí
depois de três dias morto. Na fonte batismal “ se realiza a imitação de tudo o que Ele fez”. A morte é
“representada” pelo elemento água e, assim como Cristo se levantou novamente para a vida, quem é
batizado, unido a Ele numa natureza corporal, “imita a ressurreição ao terceiro dia”. Trata-se apenas
de uma “imitação”, não de uma “identidade”. No batismo o homem não ressuscita de fato, mas
apenas se livra do mal natural e da inescapabilidade da morte. A continuidade do vício é cortada. Ele
não ressuscitou, porque ele não morreu, mas permanece nessa vida. O batismo apenas antecipa a
ressurreição. No batismo, antecipamos a graça da ressurreição final. O batismo constitui uma
“ressurreição homiomática[74]”, para usarmos a frase de um acadêmico Russo. Mas de certa forma,
no batismo a ressurreição se inicia. “O batismo é o começo, , e a ressurreição é o final e a
consumação,  (...) e tudo o que vier a acontecer na grande Ressurreição tem seu início e sua
causa n batismo”. São Gregório não quer dizer com isso que a ressurreição seja apenas uma
remodelagem de nossa composição. A natureza humana avança em direção para esse objetivo
como uma espécie de necessidade. Ele fala de uma plenitude da ressurreição, de uma “restauração
para um estado bendito e divino, livre de toda culpa e tristeza. Essa é a apokatastasis, a verdadeira
ressurreição para a vida”.

Devemos observar que São Gregório enfatiza particularmente a necessidade de manter e assegurar
a graça batismal, pois no batismo não é apenas a natureza, mas também a vontade, que é
transformada e transfigurada, tornando-se livre por meio dele. Se a alma não for lavada e purificada
no livre exercício da vontade, o batismo se mostra infrutífero; a transfiguração não se atualiza; a
nova vida não é consumada. Isso não subordina a graça batismal a uma permissão humana. A
graça, de fato, desce no batismo. Mas ela não pode ser forçada a uma pessoa que é livre e feita à
imagem de Deus, ela deve ser correspondida e corroborada pela sinergia entre o amor e a vontade.
A graça não impulsiona e abrilhanta as almas fechadas e obstinadas, as “almas mortas”. É preciso
que haja resposta e cooperação. Isso acontece porque o batismo consiste numa morte sacramental
com Cristo, numa participação à Sua morte voluntária, em Seu Amor sacrificial, e, assim, ele só pode
ser realizado com liberdade. Por isso o batismo de morte de Cristo na Cruz é refletido e reproduzido
como numa imagem viva e sacramental. O Batismo é em primeiro lugar uma morte e um
nascimento, um sepultamento e um “banho de regeneração”, “um tempo de morte e um tempo de
vida”, para citarmos São Cirilo de Jerusalém.

A Eucaristia e a Redenção

Na Igreja Primitiva o rito da iniciação Cristã não era dividido. Três dos sacramentos estavam unidos:
o Batismo, o Santo Crisma (Confirmação) e a Eucaristia. A Iniciação descrita por São Cirilo, e mais
tarde por Cabasilas, incluía os três.

Os sacramentos foram instituídos para capacitar o homem a participar da morte redentora de Cristo
e assim receber a graça de Sua ressurreição. Essa era a ideia central de Cabasilas. “Somos
batizados a fim de morrer por Sua morte e ressuscitar por Sua ressurreição. Somos ungidos com o
crisma para podermos partilhar de Sua unção real de deificação. E quando somos alimentados com
o santíssimo Pão e bebemos do santíssimo e Divino Cálice, participamos da mesma carne e do
mesmo sangue que nosso Senhor assumiu, e assim nos unimos a Ele, que se encarnou por nós,
que morreu e ressuscitou (...) O Batismo é um nascimento, o Crisma é a causa dos atos e dos
movimentos, e o Pão da vida e o Cálice da ação de graças são nossos verdadeiros alimento e
bebida. Em toda a vida sacramental e devocional da Igreja, a Cruz e a Ressurreição são “imitadas” e
refletidas em diversos símbolos e ritos. Todo simbolismo é realista. Esses símbolos não apenas nos
relembram algo do passado. Por intermédio desses símbolos sagrados, a Realidade última é
verdadeiramente revelada e transmitida. Todo esse simbolismo hierático culmina no augusto mistério
do Santo Altar. A Eucaristia é o coração da Igreja, o Sacramento da Redenção em sentido eminente.
Ela é mais do que uma “imitação” (imitatio). Ela é a própria Realidade, velada e revelada no
Sacramento.

Trata-se do “Sacramento perfeito e final”, diz Cabasilas, “e não é possível ir além, nem existe nada
que possa ser acrescentado”. Ela é “o limite da vida” – s s. “Depois da Eucaristia não há
mais nada a desejar; devemos apenas permanecer ali e aprender sobre como preservar esse
tesouro até o final”.

A Eucaristia é a Última Ceia, sempre e sempre repetida, mas não representada em cada nova
celebração – ela é a mesma “Ceia Mística” que foi celebrada pela primeira vez pelo próprio Divino
Sumo Sacerdote, “na noite em que foi entregue, ou antes, que Se entregou pela vida do mundo”.
O verdadeiro Celebrante de cada Liturgia é o próprio Nosso Senhor. Isso foi enfatizado cm grande
destaque por São João Crisóstomo em várias ocasiões. “Acredite, portanto, que mesmo agora se dá
a mesma Ceia, na qual Ele próprio se sentou. Pois essa não difere em nada daquela. Pois não é o
homem que celebra esta, enquanto Ele celebra a outra, mas ambas são obra Dele. Assim, quando
você vê o sacerdote que entrega a comunhão a você, não pense que é esse sacerdote que o faz,
mas que é a mão de Cristo que se estande a você”. E ele retoma, em outra parte: “O Mesmo que fez
essas coisas naquela Ceia, é Ele que opera agora. Nós ocupamos o cargo de ministros. Aquele que
santifica e transubstancia é o Mesmo. E a mesa é a mesma, nada mais, nada menos. Pois não é que
Cristo tenha feito aquilo, e que o homem faça isso, mas é Ele que opera as duas coisas. E tudo
acontece na Câmara Alta, onde estavam todos então”. E “Cristo está presente também agora, Ele
que adornou aquela mesa e que agora adorna essa (...) O sacerdote investe-se da figura, mas o
poder e a graça são de Deus”.

Tudo isso é de fundamental importância. A Última Ceia foi um oferecimento do sacrifício da Cruz. A
oferenda continua ainda agora. Cristo continua agindo como Suma Sacerdote em Sua Igreja. O
Mistério é ainda totalmente o mesmo. O Sacrifício é único, a Mesa é única. O sacerdote é o mesmo.
E não é que um Cordeiro é morto e oferecido nesse dia, e outro outrora; nem é um aqui, outro em
outra parte. Ele é o mesmo, sempre e em todo lugar. Somente um verdadeiro Cordeiro de Deus,
“que tira os pecados do mundo”, o mesmo Senhor Jesus.

A Eucaristia é um sacrifício, não porque Jesus seja morto mais uma vez, mas porque o mesmo
Corpo e o mesmo Sangue estão de fato sobre o Altar, apresentados e ofertados. E o Altar é
realmente o Santo Sepulcro, no qual o Mestre Celestial adormeceu. Nicolas Cabasilas expressa isso
da seguinte maneira: “Ao Se oferecer e Se sacrificar de uma vez por todas, Ele não encerrou Seu
sacerdócio, mas passou a exercer seu ministério perpétuo por nós, no qual Ele é nosso advogado
junto a Deus para sempre, e por essa razão foi dito dele, que ‘és Tu sacerdote para todo o sempre’”.

O poder e o sentido da morte de Cristo se tornam plenamente manifestos na Eucaristia. O Cordeiro é


morto, o Corpo é ferido, o Sangue derramado, e ainda assim tudo isso constitui um alimento
celestial, e “a medicina da imortalidade e o antídoto para que já não morramos, mas vivamos para
sempre em Jesus Cristo”, para usarmos a famosa frase de Santo Inácio de Antioquia. Trata-se
realmente do “Pão celestial e do Cálice da vida”. Esse tremendo Sacramento consiste para o fiel nas
verdadeiras “Bodas da Vida Eterna”. Pelo fato de que a Morte de Cristo em si constituiu a Vitória e a
Ressurreição, essa Vitória e esse Triunfo é o que observamos e celebramos no Sacramento do Altar.
Eucaristia significa ação de graças. Trata-se de um hino, mais do que de uma prece. É o serviço de
uma alegria triunfante, a Pascoa perpétua, a festa real do Senhor da Vida e da glória. “E assim toda
a celebração do Mistério constitui uma imagem da totalidade da economia de nosso Senhor”, diz
Cabasilas.

A Santa Eucaristia é o clímax de nossas aspirações. O começo e o fim estão aqui ligados: as
reminiscências do Evangelho e as profecias da Revelação, ou seja, a totalidade do Novo
Testamento. A Eucaristia é uma antecipação sacramental, um antegozo da Ressurreição, uma
“imagem da Ressurreição” ( sss: a frase é da prece de consagração de São
Basílio). A vida sacramental dos fiéis constitui a construção da Igreja. Por intermédio dos
sacramentos, e nesses sacramentos, a nova vida de Cristo se estende e é concedida aos membros
de Seu Corpo. Através dos Sacramentos a Redenção é apropriada e se revela. Podemos
acrescentar: nos Sacramentos consuma-se a Encarnação, a verdadeira união do homem com Deus
em Cristo.
Ó Cristo, grande e santíssima Pascoa! Ó Sabedoria, Verbo e Poder de Deus! Concede-nos que Te
comunguemos mais intimamente no dia de Teu Reino que não conhece o ocaso[75]!

[1] Cf. I Coríntios 15: 47.


[2] Colossenses 3: 3.
[3] I João 1: 1-2.
[4] I Coríntios 15: 36.
[5] I Timóteo 3: 16.
[6] CF. Mateus 16: 17.
[7] Cf. Filipenses 2: 7.
[8] João 1: 29.
[9] João 15: 23-24.
[10] Lucas 23: 24.
[11] João 12: 27.
[12] CF. Lucas 9: 31.
[13] Marcos 8: 31; Mateus 16: 21; Lucas 9: 22, 24: 26.
[14] João 10: 18.
[15] Pedro 1: 20.
[16] Apocalipse 13: 8.
[17] II Samuel 14: 14.
[18] Sabedoria 6: 18; 2: 23.
[19] Romanos 6: 23.
[20] I Coríntios 15: 20.
[21] Romanos 8: 21.
[22] Literalmente: corpo-prisão.
[23] Docetismo é o nome dado a uma doutrina cristã do século II, considerada herética pela Igreja
primitiva. Antecedente do gnosticismo, acreditavam que o corpo de Jesus Cristo era uma ilusão, e
que sua crucificação teria sido apenas aparente.
[24] Atos 17: 18; 32.
[25] Vida de Plotino, 1.
[26] I João 4: 2-3.
[27] II Coríntios 5: 4.
[28] I Coríntios 15: 42.
[29] De anima, 417b.
[30] De Anima, 413a 4)
[31] I Coríntios 15: 37, 44.
[32] Cf. o contraste entre o corpo “de nossa humilhação”, s s , e o corpo “de Sua
glória”, s s , em Filipenses 3: 21.
[33] O antropomorfismo, um dos dogmas mais populares e igualmente bíblicos do cristianismo
antigo, foi difundido não apenas entre os simpliciores (os simples) da ecclesia primitiva, mas também
entre seus eruditi (seus membros educados), particularmente partidários do estoicismo, como
Tertuliano. Os autores Cristãos Platonizantes, (Orígenes no Oriente e Marius Victorinus no
Ocidente), desenvolveram uma campanha de promoção da doutrina de um Deus incorpóreo. Numa
época em que o próprio clero concebia em grande parte Deus como uma entidade corpórea, os
platonistas cristãos empregavam a retórica da erudição para defender uma agenda
antiantropomorfista. Orígenes de Alexandria foi dos primeiros a relacionar a posição antropomorfista
com os membros ignorantes da comunidade cristã, os simplicistas. Mais tarde, Cassiano, Sócrates,
Sozomeno e Palladio comentarão os eventos do debate origenista por meio da mesma distinção
entre simpliciores e eruditi. (Harvard Theological Review, 2015)
[34] Apocatástase é o termo criado por Orígenes de Alexandria (185-253 d.C.) para designar a
restauração final de todas as coisas em sua unidade absoluta com Deus. A apocatástase representa
a redenção e salvação final de todos os seres, inclusive os que habitam o inferno. É, assim, um
evento posterior ao próprio apocalipse.
[35] Timeu 37d.
[36] Ibid., 38a, b.
[37] “Die schlechte Unendlinchkeit” da terminologia Hegeliana, ou , para os filósofos Gregos.
[38] “...seguindo a Via reta, que para nós é o Cristo, com ele, Guia e Salvador, do vão e molesto
círculo dos ímpios a mente e o caminho da fé desviemos”.
[39] I João 3: 2.
[40] Cf. I Coríntios 13: 3.
[41] Efésios 5: 2.
[42] CF. Efésios 5: 25.
[43] Cf. João 13: 31.
[44] Lucas 24: 26.
[45] Lucas 12: 49-50.
[46] Marcos 10: 39; Mateus 20: 23.
[47] Lucas 22: 20.
[48] Miqueias 6: 3. Parafraseado e aplicado ao Senhor no Ofício da Sexta-Feira da Paixão, Matinas,
Antífona XII, Tropário.
[49] Isaías 53: 5.
[50] “A fim de que não se torne inútil a Cruz de Cristo” (I Coríntios 1: 17).
[51] No aristotelismo, a enteléquia designa a realização plena e completa de uma tendência,
potencialidade ou finalidade natural, com a conclusão de um processo transformativo até então em
curso em qualquer um dos seres animados e inanimados do universo.
[52]    s    s (I Pedro 3: 19 – “Ele proclamou a vitória, inclusive
aos espíritos aprisionados”); s  (I Pedro 4: 6 – “Por que o Evangelho foi anunciado
também aos mortos”).
[53] Apocalipse 1: 17-18.
[54] Atos 2: 24.
[55] I Coríntios 15: 22.
[56] João 12: 24.
[57] João 12: 28.
[58] I Coríntios 15: 43-44.
[59] I Coríntios 15: 13, 16.
[60] Ibid., 17.
[61] Ibid. 20.
[62] I João 3: 16; 4: 10.
[63] Gálatas 3: 27.
[64] I Coríntios 12: 13.
[65] Romanos 6: 3-4.
[66] “s    ,      s s s s 
  s   ” (Colossenses 2: 12).
[67] II Timóteo 2: 11.
[68] Colossenses 2: 7.
[69] II Coríntios 3: 18; 4: 10, 14; 5: 1, 2.
[70] João 5: 24-29; 8: 51.
[71] “ss” (João 5: 29).
[72] “    ” (Romanos 6: 5).
[73] Cf. Gálatas 4: 19.
[74] "Homiomático", termo criado por Florovsky a partir de "ὁμοίωμα" – "homoiôma, atos", objeto
semelhante, imagem. Não foi possível identificar o acadêmico Russo a que o autor se refere, mas o
termo eslavônico e russo “подобие” aparece frequentemente como tradução de ὁμοίωμα nas fontes
russas. „Подобие" significa “similitude/similar/ semelhante/semelhança".
[75] Hino da Comunhão, repetido pelo sacerdote a cada celebração da Divina Liturgia.

[1] “Ó culpa feliz, que mereceu tal e tamanho Redentor” (São Tomás de Aquino).
[2] Romanos 8: 20-22.
[3] De princ.. II, 9-2; 8-3.

VI. As Dimensões da Redenção

Cur Deus Homo?


O motivo da Encarnação.

“Eu sou o Alfa e o Ômega”.


(Apocalipse 1: 8)

Desde o princípio, a mensagem Cristã foi uma mensagem de Salvação, e, de acordo com isso,
nosso Senhor foi retratado basicamente como um Salvador, que veio para redimir Seu povo da
escravidão do pecado e da corrupção. O próprio fato da Encarnação era usualmente interpretado, na
teologia do Cristianismo primitivo, a partir de uma perspectiva de Redenção. As concepções
equivocadas a respeito da Pessoa de Cristo, contra as quais a Igreja primitiva teve que lutar, foram
criticadas e refutadas precisamente porque tendiam a solapar a realidade da Redenção humana. Era
de opinião geral que o próprio sentido da Salvação estava em que a união íntima entre Deus e o
homem havia sido restaurada, e isso se inferia devido a que o Redimido tinha que permanecer
imutável de ambos os lados, ou seja, que Ele, em primeiro lugar, era tanto Divino como humano,
pois, de outro modo, a comunhão entre Deus e o homem, que havia se partido, não poderia ser
restabelecida. Essa foi a principal linha de raciocínio de Santo Atanásio em sua contenda com os
Arianos, de São Gregório de Nazianze em sua refutação ao Apolinarianismo, e ainda de outros
escritores dos séculos IV e V. “Pois é salvo aquilo que está unido a Deus”, disse São Gregório de
Nazianze. O aspecto redentor e o impacto da Encarnação eram enfaticamente reforçados pelos
Padres. O propósito e o efeito da Encarnação eram definidos precisamente como a Redenção do
homem, e sua restauração às condições originais que haviam sido destruídas pela queda e o
pecado. O pecado do mundo foi ab-rogado e eliminado pelo Único Encarnado, e somente Ele, por
ser a um tempo Divino e humano, poderia tê-lo feito. Por outro lado, seria injusto afirmar que os
Padres viam o propósito redentor como a única razão para a Encarnação, de maneira a que ela não
teria acontecido caso o homem não houvesse pecado. Essa questão, assim colocada, nunca foi
desenvolvida pelos Padres. A questão a respeito do motivo último da Encarnação nunca foi discutida
na era Patrística. O problema da relação entre o mistério da Encarnação e o propósito original da
Criação nunca foi colocado pelos Padres; eles jamais elaboraram esse ponto sistematicamente.
“Talvez seja verdadeiro dizer que o pensamento de uma Encarnação independente da Queda se
harmonize com o teor geral da teologia Grega. Algumas frases patrísticas parecem implicar que esse
pensamento tenha aparecido aqui e ali, e talvez mesmo, tenha sido discutido[1]”. Mas essas “frases
patrísticas” nunca foram coletadas e examinadas. De fato, os mesmos Padres se expressaram a
favor de opiniões opostas. Não é o bastante reunir frases, retirando-as de seu contexto e ignorando
o propósito, muitas vezes polêmico, por cuja razão tenham sido escritas. Muitas dessas “frases
patrísticas” eram colocações “ocasionais”, e só é possível empregá-las com grande cuidado e
precaução. Seu significado específico só pode ser alcançado quando lidas dentro do contexto, vale
dizer, a partir da perspectiva do pensamento de cada escritor em particular.

II

Rupert de Deutz (1075-1129) parece ter sido o primeiro dentre os teólogos medievais a levantar
formalmente a questão do motivo da Encarnação, e sua posição era de que a Encarnação pertencia
ao desígnio original da Criação e que, portanto, era independente da Queda. Em sua interpretação, a
Encarnação constituía a consumação do propósito criativo de Deus, um objetivo em si e não
meramente um remédio redentor para a falha humana. Outro teólogo, o alemão Honorius de Autun
(1080-1151) tinha a mesma convicção. Os grandes doutores do século XIII, como Alexandre de
Hales (1185-1245) e Albert Magnus (1193-1280), admitiam a ideia de uma Encarnação independente
da Queda, como a solução mais conveniente para o problema. Duns Scotus (1266-1308) foi quem
elaborou toda a concepção com grande cuidado e consistência lógica. Para ele a Encarnação
independente da Queda era não apenas a assumpção mais conveniente, como também uma
pressuposição doutrinal indispensável. Para ele, a Encarnação do Filho de Deus era a verdadeira
razão de toda a criação. De outro modo, essa suprema ação de Deus teria sido algo meramente
acidental, ou “ocasional”. “Mais uma vez, se a Queda fosse a causa da predestinação de Cristo,
seguir-se-ia daí que a maior obra de Deus seria não mais do que ocasional, pois a glória de tudo não
seria tão intensa como a de Cristo, e pareceria irrazoável pensar que Deus tivesse renunciado a
essa obra por causa das boas ações de Adão, caso este não houvesse pecado”. Para Duns Scotus,
toda a questão residia precisamente na ordem da “predestinação” ou propósito divino, isso é,
na ordem dos pensamentos no Divino conselho da Criação. Cristo, o Encarnado, foi o primeiro objeto
da vontade criativa de Deus, e foi por causa de Cristo que todo o resto foi criado. “A Encarnação de
Cristo não foi prevista ocasionalmente, mas foi vista como um fim imediato por Deus desde a
eternidade; assim, falando a respeito de coisas que foram predestinadas, Cristo, em sua natureza
humana, foi predestinado antes do que tudo, uma vez que é Ele quem está mais próximo do fim”.
Essa ordem dos “propósitos” ou das “previsões” era, evidentemente, apenas lógica. A ênfase
principal de Duns Scotus estava no caráter incondicional e primordial do decreto Divino da
Encarnação, visto dentro da perspectiva total da Criação. Tomás de Aquino (1225-1274) também
discutiu extensamente a questão. Ele viu o peso total dos argumentos em favor da opinião de que,
mesmo independente da Queda, “Deus teria se tornado Encarnado”, e citou a frase de Santo
Agostinho: “na Encarnação de Cristo, mais coisas devem ser consideradas além da absolvição do
pecado[2]”. Mas Aquino não pôde encontrar, nem na Escritura, nem nos textos Patrísticos, um
testemunho definitivo dessa Encarnação independente da Queda, e assim ele se inclinou a acreditar
que o Filho de Deus não teria se encarnado se o primeiro homem não tivesse pecado: “Ainda que
Deus pudesse se encarnar independentemente da existência do pecado, não obstante seria mais
apropriado dizer que, se o homem não houvesse pecado, Deus não teria se tornado encarnado,
dado que na Sagrada Escritura a razão da Encarnação está no pecado do primeiro homem”. O
mistério insondável da vontade Divina só pode ser compreendido pelo homem se for plenamente
atestado pela Sagrada Escritura, “somente na medida em que essas coisas são transmitidas pela
Sagrada Escritura”, ou, como diz Aquino em outra parte, “somente quando informadas pela
autoridade dos santos, a quem Deus revelou Sua vontade”. Somente Cristo conhece a resposta
certa para essa questão: “A verdade a respeito disso somente Ele a conhece, Ele que nasceu e que
não erra, porque também Ele o quis”. Boaventura (1221-1274) sugeriu a mesma cautela.
Comparando as duas opiniões – uma a favor da Encarnação independente da Queda, a outra
dependente dela – ele concluiu: “Ambas as opiniões excitam a alma à devoção por meio de
diferentes considerações: a primeira, é verdade, é mais condizente com o julgamento da razão; mas
a segunda parece ser mais agradável à piedade da fé”. É preciso confiar mais no testemunho direto
das Escrituras do que nos argumentos da lógica humana. De modo geral, Duns Scotus foi seguido
pela maior parte dos teólogos da Ordem Franciscana, e por muitos fora dela, como, por exemplo,
Dionysius Carthusianus, Gabriel Biel, John Wessl, e, por ocasião do Concílio de Trento (1545-1563),
por Giacomo Nachianti, Bispo de Chiozza, bem como por alguns dos primeiros Reformadores, como
Andreas Osiander. Essa opinião recebeu forte oposição de outros, não apenas dos Tomistas
radicais, e todo o problema foi muito discutido, tanto por Católicos Romanos como por teólogos
Protestantes ao longo do século XVII. Dentre os defensores Católicos Romanos do decreto absoluto
da Encarnação podemos mencionar especialmente Francisco de Sales e Malebranche. Esse último
insistiu fortemente na necessidade metafísica da Encarnação, praticamente independente da Queda,
pois, caso contrário – afirmava – não haveria razão adequada, nem propósito para o ato da Criação
em si. A controvérsia prossegue entre os teólogos Católicos Romanos, algumas vezes acalorada e
vigorosamente, e a questão não ficou resolvida. Dentre os Anglicanos, no último século, o Bispo
Westcott arguiu uma “motivação absoluta”, em seu admirável ensaio “O Evangelho da Criação”. Mais
recentemente, o Padre Sergei Bulgakov foi de opinião de que a Encarnação deveria ser vista como
um decreto absoluto de Deus, anterior à catástrofe da Queda.

III

No decurso dessa longa discussão, um apelo recorrente foi feito ao testemunho dos Padres.
Estranhamente, o item mais importante foi deixado de lado nessa antologia de citações. Uma vez
que a questão do motivo da Encarnação nunca foi formalmente levantada durante a era Patrística,
muitos dos textos empregados nas discussões ulteriores não forneceram nenhuma orientação direta.
São Máximo o Confessor (580-662) parece ter sido o único dos Padres que estava diretamente
preocupado com o problema, embora não da mesma maneira que os teólogos do Ocidente. Ele
colocou claramente que a Encarnação devia ser vista como um propósito absoluto e primário de
Deus no ato da Criação. A natureza da Encarnação, dessa união da majestade Divina com a
fraqueza humana, permanece um mistério insondável, mas podemos pelo menos captar a razão e o
propósito desse mistério supremo, seu logos e seu skopos. E essa razão original, esse propósito
último, na opinião de São Máximo, era precisamente a Encarnação em si e nossa consequente
incorporação ao Corpo do Encarnado. As frases de São Máximo são diretas e claras. Nas Questio
ad Thalassium, existe um comentário a I Pedro 1: 19-20: “Cristo era como um cordeiro sem
inculpável e imaculado, que havia sido predestinado desde a fundação do mundo”. Agora, a questão
é: São Máximo começa por sumarizar brevemente o verdadeiro ensinamento a respeito da Pessoa
de Cristo, e então prossegue: “Esse é o fim abençoado, por cuja causa todas as coisas foram
criadas. Esse é o propósito Divino, que foi pensado desde o início da Criação, e ao qual
denominamos como a plenitude almejada. Toda a criação existe tendo em vista essa plenitude, mas
essa plenitude não existe em função de nada que tenha sido criado. Uma vez que Deus teve
totalmente em vista esse fim, então Ele produziu as naturezas das coisas. Esse é verdadeiramente o
cumprimento da Providência e de todo o planejado. Através disso existe uma recapitulação a Deus
daquilo que foi criado por Ele. Esse é o mistério que circunscreve todas as eras, o maravilhoso plano
de Deus, acima do infinito e infinitamente pré-existente às eras. O Mensageiro, que é
essencialmente Ele próprio o Verbo de Deus, se tornou homem tendo em vista essa realização. E
devemos dizer que foi Ele próprio que restaurou as profundezas mais interiores manifestadas da
bondade ordenada pelo Pai; e Ele revelou a plenitude em Si próprio, por quem a criação recebeu o
começo de sua verdadeira existência. Pois foi por causa de Cristo, vale dizer, por causa do mistério
referente a Cristo, que todo o tempo e tudo o que existe no tempo teve sua existência, do começo ao
fim, em Cristo. Pois antes do tempo existiu secretamente uma determinação da união das eras, do
determinado com e Indeterminado, do mensurável com o Incomensurável, do finito com o Infinito, da
criação com o Criador, do movimento com o repouso – uma união que foi tornada manifesta em
Cristo nos últimos dias[3]”. É preciso distinguir cuidadosamente entre o ser eterno do Logos, no seio
da Santa Trindade, e a “economia” da Encarnação. A “previsão” se refere precisamente à
Encarnação. “Dessa maneira Cristo estava previsto, não tal como Ele era de acordo com Sua
natureza, mas como mais tarde ele viria a aparecer encarnado para nossa salvação de acordo com a
economia final[4]”. A “absoluta predestinação” de Cristo é aludida aí com toda clareza. Essa
convicção estava em total acordo com o teor geral do sistema teológico de São Máximo, e ele voltou
a esse problema diversas vezes, tanto em respostas a Thalassius como em sua Ambigua. Por
exemplo, em conexão com Efésios 1: 9, São Máximo diz: “[por Sua Encarnação e por nossa era] Ele
nos mostrou o propósito pelo qual fomos feitos e a enorme boa vontade de Deus para conosco antes
das eras[5]”. Por sua simples constituição o homem antecipa em si “o grande mistério do propósito
Divino”, a consumação última de todas as coisas em Deus. Para São Máximo, toda a história da
Divina Providência está dividida em dois grandes períodos: o primeiro culmina com a Encarnação
do Logos, e constitui a história do rebaixamento Divino (a condescendência, “através da
Encarnação”); o segundo é a história da ascensão humana à glória da deificação, como se fosse
uma extensão da Encarnação a toda a criação. “Dessa forma, podemos dividir o tempo em duas
partes de acordo com seu desígnio, e podemos distinguir cada uma das eras relativamente ao
mistério da Encarnação do Divino, e as eras concernentes à deificação do humano pela graça (...)
Resumidamente: tanto as eras que se referem à descida de Deus ao homem, como as que
começam com a ascensão do homem a Deus (...) Ou, para expressar melhor, o começo, o meio e o
fim de todas as eras, as que já se foram, as do tempo presente e aquelas que ainda virão, tudo isso
é nosso Senhor Jesus Cristo[6]”. Na visão de São Máximo, a consumação última está ligada com a
vontade e o propósito primordiais criadores de Deus, e assim toda sua concepção é estritamente
“teocêntrica”, ao mesmo tempo de também é “Cristocêntrica”. Mas, claramente, em sentido algum
isso obscurece a triste realidade do pecado, da absoluta miséria da existência pecadora. A grande
ênfase é colocada por São Mácimo na conversão e na limpeza da vontade humana, na luta contra as
paixões e o mal. Mas ele vê a tragédia da Queda e a apostasia do criado a partir de uma perspectiva
mais ampla do plano original da Criação.

IV
Qual é o verdadeiro peso do testemunho de São Máximo? O que existe aí além de uma “opinião
pessoal”, e onde repousa a autoridade de tal “opinião”? É bastante claro que, em relação à
“motivação” primeira e última da Encarnação, nada além de uma resposta “hipotética” (ou
“conveniente”) pode ser dada. Mas muitas afirmações doutrinais são precisamente afirmações
hipotéticas, ou “teologúmenas”. E parece que a “hipótese” de uma Encarnação independente da
Queda é, no mínimo, possível dentro do sistema da teologia Ortodoxa, e se encaixa bastante bem na
principal linha do ensinamento Patrístico. Uma resposta adequada para a questão do “motivo” da
Encarnação pode ser dada apenas dentro do contexto da doutrina geral da Criação.

[1] A frase é do Bispo Anglicano Brooke Foss Westcott, em “O Evangelho da Criação”, 1892 (NT).
[2] De Trinitate, XIII, 17.
[3] P.G. XC, 621, A-B.
[4] P.G., XC, 624D.
[5] P.G., 1097C.
[6] P.G., XC, 320 B-C.

VII. A Sempre Virgem Mãe de Deus

O autor está plenamente consciente do quanto é inadequada essa exposição. Não se trata aqui de
um ensaio teológico em senso estrito. Essa é apenas uma mensagem ocasional escrita
apressadamente algum tempo depois de ter sido improvisada. A única intenção do autor foi a de
sugerir uma maneira pela qual o objeto poderia ser enfocado, de modo a abrir uma discussão. O
principal objetivo desse estudo foi o de provar que a Mariologia pertence ao próprio corpo da
doutrina Cristã, ou, se podemos nos expressar assim, a um consenso doutrinal minimamente
essencial, fora do qual nenhuma verdadeira unidade de fé poderá ser reclamada.
(Georges Florovsky)

Todo o ensinamento dogmático a respeito de nossa Senhora pode ser condensado nesses dois
nomes atribuídos a ela: Mãe de Deus e Sempre Virgem – s e s. Ambos os nomes
possuem a autoridade formal da Igreja Universal, bem como uma autoridade ecumênica. O
Nascimento Virginal está claramente atestado no Novo Testamento e constitui uma parte integra da
tradição Católica desde então. “Encarnou-se pelo Espírito Santo e a Virgem Maria” (ou “nascido da
Virgem Maria”) é uma frase do Credo. Não é apenas uma afirmação de um fato histórico. Trata-se
precisamente de uma afirmação do Credo, uma solene profissão de fé. O termo “Sempre Virgem” foi
formalmente adotado pelo Quinto Concílio Ecumênico (553). E Theotokos é mais do que um nome
ou título honorífico. Trata-se antes de uma definição doutrinal – numa única palavra. Ele foi a pedra
de toque da fé verdadeira e uma marca distintiva da Ortodoxia mesmo antes do Concílio de Éfeso
(432). Já São Gregório de Nazianze alertava Cledonius: “se alguém não reconhece Maria como
Theotokos, está distanciado de Deus[1]”. De fato, o nome foi amplamente empregado pelos Padres
do século IV, e possivelmente também do século III[2]. Ele já era tradicional quando foi contestado e
repudiado por Nestorius e seu grupo. A palavra não aparece nas Escrituras, assim como o
termo s também não aparece. Mas, certamente, nem em Nicéia, nem em Éfeso, a Igreja
estava inovando ou impondo um novo artigo de fé. Uma palavra “não escriturária[3]” foi escolhida e
utilizada, precisamente para vocalizar e salvaguardar a crença tradicional e a convicção comum às
eras. É verdade, sem dúvida, que o Terceiro Concílio Ecumênico se referia primariamente ao dogma
Cristológico, e que não formulou nenhuma doutrina Mariológica em especial. Mas, exatamente por
essa razão, é verdadeiramente notável que um termo Mariológico tenha sido selecionado e
estabelecido como o teste último da ortodoxia Cristológica, para ser utilizado, digamos, como uma
“palavra de ordem”, uma “senha” ou “jargão[4]” na discussão Cristológica. Tratava-se realmente de
uma palavra-chave para toda a Cristologia. “Esse nome, dizia São João Damasceno, contém todo o
mistério da Encarnação[5]”. Como habilmente colocou Petavius: Quem in Trinitatis explicando
dogmate  vox, eundem hoc in nostro Incarnationis usum ac principatum
obtinet  nomen[6]. O motivo e propósito dessa escolha é óbvio. A doutrina Cristológica não
pode ser correta e adequadamente estabelecida sem incluir um ensinamento cabal a respeito da
Mãe de Cristo. De fato, todas as dúvidas e todos os erros Mariológicos dos tempos modernos
dependem em última precisamente de uma absoluta confusão Cristológica. Eles revelam um
irremediável “conflito em Cristologia”. Não existe espaço para a Mãe de Deus numa “Cristologia
reduzida”. A teologia Protestante simplesmente não tem nada a dizer a respeito dela. Mas ignorar a
Mãe implica interpretar erroneamente o Filho. Por outro lado, a pessoa da Bendita Virgem pode ser
propriamente entendida e corretamente descrita apenas num contexto Cristológico estabelecido. A
Mariologia consiste em adicionar um capítulo no tratado da Encarnação, jamais em estabelecer um
“tratado” independente. Claro, não será um capítulo casual, nem um apêndice. Ela pertence ao
próprio corpo da doutrina. O Mistério da Encarnação inclui a Mãe do Encarnado. Algumas vezes,
entretanto, a perspectiva Cristológica foi obscurecida por um exagero devocional, por um pietismo
desbalanceado. A piedade deve ser sempre guiada e verificada pelo dogma. Mais uma vez, deve
haver um capítulo Mariológico no tratado sobre a Igreja. Mas a doutrina da Igreja em si não passa de
uma “Cristologia estendida”, a doutrina do “Cristo total”, totus Christus, caput et corpus.

O nome Theotokos enfatiza o fato de que a Criança a quem Maria deu à luz não era um “simples
homem”, não era uma pessoa humana, mas o Filho Unigênito de Deus, “Um da Santíssima
Trindade”, ainda que Encarnado. Essa é obviamente a pedra de ângulo da fé Ortodoxa. Vamos
relembrar a fórmula de Calcedônia: “Seguindo assim os santos Padres, confessamos um único e
mesmo Filho (   ), nosso Senhor Jesus Cristo (...) gerado pelo Pai como Divindade
antes de todos os séculos, mas que nos últimos dias, por nós e para nossa salvação, o mesmíssimo
( ), nascido de Maria, a Virgem Mãe de Deus, como Humanidade”. Toda a ênfase está na
absoluta identidade da Pessoa: o Mesmo, o Mesmíssimo, unus identique segundo São Leão. Isso
implica uma dupla geração do Verbo divino (mas enfaticamente não uma dupla Filiação; essa seria
precisamente a perversão Nestoriana). Não existe senão um Filho: Aquele que nasceu da Virgem
Maria é, em sentido pleno, o Filho de Deus. Como disse São João Damasceno, a Santa Virgem não
gerou “um homem comum, mas o verdadeiro Deus[7]”, “não nu, mas encarnado[8]”. O Mesmo,
nascido do Pai desde toda eternidade, “nos últimos dias” nasceu da Virgem “sem nenhuma
alteração[9]”. Não existe confusão de naturezas. A “segunda s” é de fato a Encarnação.
Nenhuma nova pessoa veio à existência quando o Filho de Maria engravidou e deu à luz: apenas o
Eterno Filho de Deus se tornou homem. É nisso que consiste o mistério da divina Maternidade da
Virgem Maria. Pois, de fato, a Maternidade constitui uma relação pessoal, uma relação entre
pessoas. Porém, o Filho de Maria era em verdade uma Pessoa divina. O nome Theotokos é uma
consequência inevitável do nome Theantropos, o Deus-Homem. Ambos se afirmaram e nasceram
juntos. A doutrina da União Hipostática implica e solicita a concepção da divina Maternidade.
Infelizmente, o mistério da Encarnação foi tratado modernamente com frequência de modo
demasiado abstrato, como se não passasse de um problema metafísico, ou mesmo de um enigma
dialético. É fácil entregar-se à dialética do Finito e do Infinito, do Temporal e do Eterno, etc., como se
esses fossem termos de alguma relação lógica ou metafísica. Corre-se o risco de passar por cima,
ou de perder de vista, o ponto essencial: a Encarnação foi precisamente uma ação poderosa do
Deus Vivo, sua intervenção mais pessoal na existência criada, de fato uma “descida” da pessoa
Divina, de Deus em pessoa. Mais uma vez, existe aqui um sabor docético[10] sutil, mas real, nas
tentativas mais recentes de reescrever a fé tradicional em termos modernos. Existe uma tendência a
enfatizar excessivamente a iniciativa divina na Encarnação, a tal ponto que que a própria existência
histórica do Encarnado desaparece num “Incógnito Filho de Deus”. A identidade direta do Jesus
histórico de do Filho de Deus é negada explicitamente. Todo o impacto da Encarnação é reduzido a
símbolos: o Senhor Encarnado é visto mais como um expoente de algum nobre princípio ou ideia
(seja a Ira de Deus ou o Amor, a Cólera ou a Misericórdia, o Julgamento ou o Perdão), do que como
uma Pessoa viva. Em ambos os casos as implicações pessoais da Encarnação são passadas por
alto ou negligenciadas – falo de nossa adoção na verdadeira filiação de Deus no Senhor Encarnado.
Ora, algo de muito real e definitivo aconteceu com o homem e para o homem quando o Verbo de
Deus “se fez carne e habitou entre nós”, ou antes, “fez sua morada em nosso meio” – de fato, uma
transformação pictórica,   [11].

“Mas quando veio a plenitude dos tempos, Deus enviou Seu Filho, nascido de uma mulher[12]”. Essa
é uma afirmação escriturária a respeito do mesmo mistério pelo qual os Padres disputaram em
Calcedônia. Mas qual é o sentido pleno e o propósito da expressão “nascido de uma mulher”? A
Maternidade, em geral, n]ao se esgota no mero fato da procriação física. Seria de uma cegueira
lamentável se ignorássemos esse aspecto espiritual. De fato, a procriação em si estabelece uma
relação espiritual íntima entre a mãe e a criança. Essa relação é única e recíproca, e sua essência
consiste na afeição ou amor. Podemos nós ignorar essa implicação do fato de que nosso Senhor
“nasceu da Virgem Maria”? Certamente, nenhuma redução docética é permissível nesse caso, assim
como deve também ser evitada em qualquer outro aspecto da Cristologia. Jesus era (e é) o Deus
Eterno, e também Encarnado, e Maria era Sua Mãe em sentido pleno. De outra forma, a Encarnação
não teria sido genuína. Mas isso significa precisamente que para o Senhor Encarnado existe uma
pessoa humana específica em relação à qual Ele possui uma relação especial – em termos precisos,
uma pessoa em relação à qual Ele não é apenas o Senhor e Salvador, mas também o Filho. Por
outro lado, Maria era a verdadeira mãe de seu Filho – a verdade de sua maternidade humana não é
menos relevante e importante do que o mistério de sua maternidade divina. Mas a Criança era
divina. Ainda assim, as implicações espirituais de sua maternidade não poderiam ser diminuídas pelo
caráter excepcional do caso, nem poderia Jesus deixar de ser verdadeiramente humano em sua
resposta filial ao afeto materno daquela de quem Ele nascera. Isso não é uma especulação vã. De
fato, seria uma impertinência violar o sagrado campo dessa intimidade sem paralelo entre a Mãe e
seu divino Filho. Mas seria não menos impertinente ignorar o mistério. Em qualquer caso, equivaleria
a um empobrecimento da ideia se víssemos a Virgem Mãe apenas como um instrumento físico para
que o Senhor tomasse a carne. Ademais, tal erro de interpretação é formalmente excluído pelo
ensinamento explícito da Igreja, atestado desde os primeiros tempos: ela nunca foi um “canal”
através do qual veio o Senhor Celestial, mas, realmente, a mãe de quem Ele obteve Sua
humanidade. São João Damasceno resume precisamente com essas palavras o ensinamento
Católico: Ele não veio como “através de um conduto” (s s), mas
assumiu dela ( s) uma natureza humana consubstancial à nossa[13].

Maria “encontrou favor em Deus[14]”. Ela foi escolhida e foi-lhe ordenado que servisse ao Mistério da
Encarnação. E, por causa dessa eleição eterna ou predestinação, ela foi, de certo modo, colocada à
parte e recebeu um privilégio e uma posição únicos em toda a humanidade, e mesmo em toda a
criação. É como se ela tivesse recebido um grau transcendente. Em primeiro lugar, ela era
representativa da raça humana, e foi assim colocada à parte. Existe uma antinomia aqui, implicada
na divina eleição. Ela foi colocada à parte. Ela foi colocada numa posição única e sem paralelo com
Deus e com a Santíssima Trindade, mesmo antes da Encarnação, em sua condição prospectiva de
Mãe do Senhor Encarnado, exatamente porque isso não iria constituir um acontecimento histórico
ordinário, mas a importante consumação do decreto eterno de Deus. Ela ocupava uma posição
única, mesmo dentro do plano divino da salvação. Através da Encarnação, a natureza humana foi
restaurada novamente à amizade com Deus, que havia sido destruída e ab-rogada depois da Queda.
A humanidade sagrada de Jesus foi a ponte que superou o abismo do pecado. E essa humanidade
foi recebida da Virgem Maria. A própria Encarnação constituiu um novo começo no destino do
homem, o começo de uma nova humanidade. Na Encarnação nasceu o “homem novo”, o “Último
Adão”: Ele era verdadeiramente humano, mas era também mais do que homem: “o segundo homem
é o Senhor dos céus[15]”. Enquanto Mãe desse “Segundo Homem”, a própria Maria estava
participando do mistério da recriação redentora do mundo. Certamente, ela deve ser contada entre
os redimidos. Ela evidentemente necessitava a salvação, Seu Filho é seu Redentor e Salvador,
assim como é o Redentor do mundo. Sim, ela é o único ser humano para quem o Redentor foi
também um filho, seu verdadeiro filho, a quem ela gerou. Jesus realmente nasceu “não da vontade
da carne, nem da vontade humana, mas de Deus[16]”, mas, ao mesmo tempo, ele é o “fruto do
ventre” de Maria. Seu nascimento sobrenatural constitui o modelo e a fonte da nova existência, do
novo e espiritual nascimento de todos os fiéis, que não é outra coisa do que a participação em sua
santa humanidade, uma adoção à filiação de Deus – no “segundo homem”, no “último Adão”. A Mãe
do “segundo homem” necessariamente deveria ter seu caminho específico e peculiar nessa nova
vida. Não é demasiado dizer que, para ela, a Redenção foi, em certo sentido, antecipada no próprio
fato da Encarnação em si – e antecipada de um modo peculiar e pessoal. “O Espírito Santo desceu
sobre ela, e o poder do Altíssimo ocultou-a com Sua sombra[17]”. Isso constituiu uma verdadeira
“presença teofânica” – na plenitude da graça e do Espírito. A “sombra” é precisamente um símbolo
teofânico. E Maria estava realmente “cheia de graça”, gratia plena, . A Anunciação foi
para ela uma espécie de Pentecoste antecipado. Somos compelidos a arriscar esse ousado
paralelismo pela inescrutável lógica da eleição divina. Pois, de fato, não podemos encarar a
Encarnação apenas como um milagre metafísico sem qualquer relação com o destino pessoal e a
existência das pessoas envolvidas. O homem jamais lidou com Deus como se não passasse de uma
ferramenta nas mãos do mestre. Pois o homem é uma pessoa viva. De modo algum pode ter havido
uma graça “instrumental”, quando a Virgem foi “coberta pela sombra” do poder do Altíssimo. A
posição única da Virgem Maria não foi obviamente uma aquisição sua, não uma mera “recompensa”
por seus “méritos” – nem mesmo foi a plenitude da graça dada a ela em “previsão” de seus méritos e
virtudes. Tratou-se acima de tudo de um dom gratuito de Deus, em sentido estrito – gratia grátis
data. Foi uma eleição eterna e absoluta, embora não incondicional – pois estava condicionada e
relacionada ao mistério da Encarnação. Maria obteve sua posição única e constituiu-se numa
“própria categoria”, não como mera Virgem, mas como Virgem-Mãe, , como a Mãe
predestinada do Senhor. Ela possuiu uma dupla função na Encarnação. De um lado, ela assegurou a
continuidade da raça humana. Seu Filho foi, em virtude de seu “segundo nascimento”, o Filho de
Davi, de Abrahão e de todos os “antepassados” (o que é enfatizado nas duas versões da genealogia
de Jesus). Na frase de Santo Irineu, Ele “recapitulou em si o longo registro da humanidade[18]”,
“reunindo em si todas as nações, que estavam dispersas desde Adão[19]”, e “tomou sobre si o
caminho antigo da criação[20]”. Mas, por outro lado, Ele” manifestou um novo tipo de geração[21]”.
Ele era o Novo Adão. Esse foi a mais drástica solução de continuidade, a verdadeira reversão do
processo anterior. E essa “reversão” começa precisamente com a Encarnação, com o Nascimento
do “Segundo Homem”. Santo Irineu fala de recirculação – de Maria a Eva[22]. Enquanto Mãe do
Novo Homem, Maria teve antecipada sua participação nessa novidade. Naturalmente, Jesus Cristo é
o único Senhor e Redentor. Mas Maria é Sua mãe. Ela é a estrela da manhã que anuncia o nascer
do sol, o nascimento do verdadeiro Sol salutis:    . Ela é a “aurora do dia
místico”,  ss (ambas as frases são do Hino Akathisto). E, em certo sentido,
mesmo o nascimento de nossa Senhora pertence ao mistério da salvação. “Teu nascimento, ó Mãe
de Deus e Virgem, encheu de alegria todo o universo – pois de ti nasceu o Sol de Justiça, Cristo
nosso Deus[23]”. O pensamento Cristão se move sempre na dimensão das personalidades, não no
domínio de ideias gerais. Ele apreende o mistério da Encarnação enquanto mistério da Mãe e da
Criança. Essa é uma salvaguarda definitiva contra qualquer docetismo abstrato, uma salvaguarda
contra a concretude evangélica. O ícone tradicional da Bendita Virgem, na tradição Oriental, é
precisamente um ícone da Encarnação: a Virgem está sempre com o Menino. E, certamente,
nenhum ícone, isso é, nenhuma imagem da Encarnação, será jamais possível sem a Virgem Mãe.

Mais uma vez, a Anunciação é “o começo de nossa salvação e a revelação do mistério que existe
desde a eternidade: o Filho de Deus se tornou Filho da Virgem, e Gabriel proclamou as boas novas
da graça[24]”. A vontade divina foi proclamada e declarada pelo arcanjo. Mas a Virgem não
permaneceu em silêncio. Ela respondeu ao chamado divino, respondeu com humildade e fé. “Eis
aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a Sua vontade”. A vontade divina foi aceita e
recebeu sua resposta. A obediência de Maria contrabalança a desobediência de Eva. Nesse sentido,
a Virgem Maria é a Segunda Eva, assim como seu Filho é o Segundo Adão. Esse paralelo foi
estabelecido desde muito cedo. O mais antigo testemunho foi dado por São Justino[25], e em Santo
Irineu encontramos uma concepção elaborada, organicamente conectada com a ideia básica da
recapitulação. “Assim como Eva foi seduzida pela fala de um anjo, também Maria recebeu as boas
novas por meio da fala de um anjo, para que carregasse a Deus em seu seio, sendo obediente a
essas palavras. E, embora a primeira tenha desobedecido a Deus, a outra foi atraída no sentido de
obedecer a Deus; assim, a Virgem Maria se tornou a advogada de Eva. E assim como a raça
humana foi levada à morte por uma virgem, por uma virgem foi salva, e assim o equilíbrio foi
preservado, entre a desobediência de uma virgem e a obediência de outra[26]”. E ainda: “Assim o nó
que constituiu a desobediência de Eva foi desatado pela obediência de Maria; e o que foi amarrado
pela incredulidade de Eva, soltou-se pela fé de Maria[27]”. Essa concepção era tradicional,
especialmente no ensinamento catequético, tanto no Leste como o Oeste. “Trata-se de um grande
sacramento (magnum sacramentum) que, por causa de uma mulher, a morte tenha se tornado nosso
fado, e que a vida tenha nascido de uma mulher”, diz Santo Agostinho[28]. “A morte veio por Eva, a
vida por Maria”, declara São Jerônimo[29]. Permitam-me citar ainda uma passagem admirável e
concisa de um dos sermões do Metropolita Filarete de Moscou (1782-1867), no dia da Anunciação:
“Durante os dias da criação do mundo, quando Deus proclamou suas palavras vivas e poderosas:
“Faça-se...”, Suas palavras trouxeram as criaturas à existência. Mas no dia, único na existência do
mundo, em que a Santíssima Maria expressou seu humilde e obediente “faça-se”, eu não ouso
expressar o que se passou então – a palavra da criatura causou a descida do Criador ao mundo.
Também Deus proclamou sua palavra então: “Você irã conceber em seu seio e gestar um filho (...)
Ele será grande (...) Ele reinará sobre a casa de Jacó para sempre[30]”. E mais uma vez acontece
aquilo que é divino e incompreensível – a própria palavra de Deus posterga sua ação, permitindo-se
ser recusada pela palavra de Maria: “Como pode ser isso?”. Seu humilde “faça-se” era necessário
para a realização do poderoso “Faça-se” de Deus. Que secreto poder está contido nessas simples
palavras: “Eis aqui a serva do Senhor: faça-se em mim segundo a Sua vontade” – para produzir um
efeito tão extraordinário? Esse poder maravilhoso é a pura e perfeita autodedicação de Maria a
Deus, a dedicação de sua vontade, de seu pensamento, de sua alma, de todo o seu ser, de todas as
suas faculdades, de todas as suas ações, de todas as suas esperanças e expectativas[31]”. A
Encarnação foi de fato um ato soberano de Deus, mas foi uma revelação não só de seu poder
onipotente, como, acima de tudo, de seu amor e compaixão paternais. Ali estava implicado mais uma
vez um chamado à liberdade humana, assim como um apelo à liberdade esteve implicado no próprio
ato da criação, especificamente na criação dos seres racionais. Naturalmente, a iniciativa era divina.
Porém, como os meios de salvação escolhidos por Deus consistiam numa verdadeira assumpção da
verdadeira natureza humana pela Pessoa divina, era preciso que o homem tivesse uma participação
ativa no mistério. Maria estava vocalizando a resposta obediente do homem ao decreto redentor do
amor divino, e dessa maneira ela se tornou representativa de toda a raça humana. É como se ela
exemplificasse em sua pessoa toda a humanidade. Sua aceitação obediente e alegre do propósito
redentor de Deus, tão belamente expresso no Magnificat, foi um ato de liberdade. De fato, foi uma
liberdade de obediência, não de iniciativa – mas ainda assim uma verdadeira liberdade, uma
liberdade de amor e adoração, de humildade e crença – e uma liberdade de cooperação[32]. É isso
que significa a liberdade humana. A graça de Deus jamais pode ser acrescentada, como que
mecanicamente. Ela precisa ser recebida em livre obediência e submissão.

Maria foi escolhida e eleita para ser a Mãe do Senhor Encarnado. Devemos assumir que ela foi
moldada para esse ofício temível, que ela foi preparada para esse chamado excepcional – e
preparada por Deus. Podemos definir com propriedade a natureza e o caráter dessa preparação?
Estamos aqui diante de uma antinomia crucial (de que já falamos acima). A Virgem Abençoada
era representativa da raça, isso é, da raça humana decaída, do “velho Adão”. Ela foi colocada à
parte pelo plano eterno de Deus, mas essa “separação” não tinha como objetivo destruir sua
solidariedade essencial para com o resto da humanidade. Será possível resolvermos esse mistério
antinômico por meio de algum esquema lógico? O dogma Católico Romano da Imaculada
Concepção da Virgem Maria constitui uma nobre tentativa de sugerir uma solução. Mas essa solução
só é válida no contexto de uma doutrina específica e altamente irregular a respeito do pecado
original, e não funciona fora desse quadro particular. Estritamente falando, esse “dogma” consiste
numa complicação desnecessária, e sua terminologia infeliz só obscurece a indiscutível verdade da
crença Católica. Os privilégios da divina Maternidade não dependem de uma “libertação do pecado
original”. A plenitude da graça foi verdadeiramente concedida à Virgem Maria, e sua pureza pessoal
foi preservada pela assistência perpétua do Espírito. Mas isso não implicou a abolição do pecado. O
pecado só foi destruído no lenho da Cruz, e nenhuma isenção era possível, simplesmente pelo fato
de que ele constituía a condição geral e comum a toda a existência humana. Ele não foi destruído
nem mesmo aquando da Encarnação, embora a Encarnação tenha sido a inauguração da Nova
Criação. A Encarnação não foi outra coisa que a base e o ponto de partida da obra redentora do
Senhor. E o próprio “Segundo Homem” entrou em Sua plena glória pela porta da morte. A Redenção
constituiu um ato complexo, e é preciso distinguir cuidadosamente seus diversos momentos, embora
eles fossem supremamente integrados no único e eterno plano de Deus. Estando integrados no
plano eterno, esses momentos se refletem em cada representação temporal, e sua consumação final
está prefigurada e antecipada desde os primeiros estágios. Existiu de fato um progresso real na
história da Redenção. Maria recebeu a graça da Encarnação, enquanto Mãe do Encarnado, mas
essa não foi ainda a graça total, uma vez que a Redenção ainda não havia se realizado. Ainda
assim, sua pureza pessoal era possível mesmo num mundo não redimido, ou melhor – num mundo
que estava em processo de Redenção. A verdadeira questão teológica é a da eleição divina. A Mãe
e o Menino estão inseparavelmente ligados no decreto único da Encarnação. Enquanto evento, a
Encarnação constitui o ponto de mutação da história – e esse ponto de mutação é inevitavelmente
antinômico: ele pertence ao mesmo tempo ao Velho e ao Novo. O resto é silêncio. Devemos
permanecer em tremor e temor no limiar do mistério.

A experiência íntima da Mãe do Senhor está oculta a nós. Ninguém jamais esteve apto a partilhar
dessa experiência única, pela própria natureza do caso. Trata-se do mistério da pessoa. Isso explica
a reticência dogmática da Igreja em relação à doutrina Mariológica. A Igreja fala dela mais numa
linguagem de poesia devocional, numa linguagem de metáforas e imagens antinômicas. Não existe
necessidade, nem motivo, para assumir que a Virgem Abençoada tenha realizado desde o início
toda a plenitude e todas as implicações desse privilégio único concedido a ela pela graça de Deus.
Não existe necessidade, nem motivo, para interpretar a “plenitude” da graça num sentido literal,
incluindo aí todas as perfeições possíveis e toda a variedade dos dons espirituais particulares. A
plenitude era para ela, ela estava cheia de graça. E, inclusive, tratava-se de uma plenitude
“especializada”, a graça da Mãe de Deus, da Virgem Mãe, da “Noiva sem noivo”,  .
De fato, ela tinha seu próprio caminho espiritual, seu próprio crescimento na graça. O significado
completo do mistério da salvação foi apreendido por ela gradativamente. E ela teve sua própria parte
no sacrifício da Cruz: “Quanto a você, uma espada há de atravessar-lhe a alma[33]”. Somente na
Ressurreição a luz brilhou com toda sua intensidade. Até esse momento, o próprio Jesus ainda não
havia sido glorificado. É depois da Ascensão que encontramos a Virgem Abençoada entre os Doze,
no centro da Igreja crescente. Um ponto está fora de dúvida. A Virgem Abençoada ficou para sempre
marcada, se podemos nos exprimir assim, pela saudação angélica, pela anunciação e pelo
surpreendente mistério do nascimento virginal. Como poderia ela não ter sido marcada? Mais uma
vez, o mistério de sua experiência se oculta a nós. Mas podemos nos esquivar a essa piedosa
suposição sem trair o próprio mistério? “Maria, porém, conservava todos esses fatos, e meditava
sobre eles em seu coração[34]”. Sua vida interior estava concentrada nesse evento crucial de sua
história. Pois, de fato, o mistério da Encarnação foi para ela também o mistério de sua própria
existência. Sua situação existencial era única e peculiar. Ela tinha que se adequar à dignidade sem
precedentes dessa situação. Talvez seja aí que reside a essência de sua dignidade particular, que é
descrita como “Sempre Virgem”. Ela é a Virgem. Ora, a virgindade não consiste simplesmente numa
condição corpórea ou numa configuração física em si. Acima de tudo está uma atitude espiritual e
interior, e, fora dessa, a condição corporal seria totalmente desprovida de sentido. O título de
Sempre Virgem significa certamente mais do que uma afirmação “fisiológica”. Ele não se refere
apenas ao nascimento virginal. Ele não implica apenas uma exclusão de qualquer intercurso marital
posterior (que, aliás, seria por completo inconcebível se de fato crermos no nascimento virginal e na
Divindade de Jesus). Em primeiro lugar, ele exclui todo e qualquer envolvimento “erótico”, todo e
qualquer desejo ou paixão egoísta e sensual, toda e qualquer dissipação do coração e da mente. A
integridade corporal, ou a incorrupção, não passam de um sinal exterior de uma pureza interior. O
ponto em questão é precisamente a pureza de seu coração, essa condição indispensável para “ver a
Deus”. Trata-se da libertação em relação às paixões, da verdadeira , que sempre foi descrita
como a essência da vida espiritual. A liberdade em relação às paixões e desejos constitui
a , a impermeabilidade aos maus pensamentos, conforme São João Damasceno coloca.
Sua alma era governada apenas por Deus (), ela estava supremamente ligada a Ele.
Todo seu desejo estava voltado para dignas de desejo e afeição – São João diz , atraída,
inclinada. Ela não tinha paixões,. Ela preservou para sempre a virgindade ne mente, na alma
e no corpo[35]. Tratava-se de uma orientação imperturbável de toda sua vida pessoal para Deus,
uma autodedicação completa. Ser verdadeiramente a “serva do Senhor” significa exatamente ser
sempre-virgem, e não possuir nenhuma preocupação carnal. A virgindade espiritual é imaculada,
sem pecado, mas ainda não consiste na “perfeição”, e não liberta das tentações. Mesmo o Senhor
esteve, nesse sentido, sujeito às tentações, e foi realmente tentado por Satanás no deserto. Talvez
nossa Senhora tenha também tido suas tentações, mas ela as superou com sua firma confiança no
chamado de Deus. Mesmo o amor materno comum culmina numa identificação espiritual com a
criança, que tantas vezes implica o sacrifício e a autonegação. Nada menos do que isso deve ser
entendido no caso de Maria: seu Filho seria grande e iria ser chamado de Filho do Altíssimo[36].
Obviamente, Ele era “o que estava por vir”, o Messias[37]. Isso é especificamente professado por
Maria no Magnificat, um hino de louvor e ação de graças. Maria não poderia ter deixado de se dar
conta disso, ainda que fracamente, por algum tempo, e gradualmente, na medida em que ela
ponderava todas as gloriosas promessas em seu coração. Esse era o único caminho concebível
para ela. Ela teve que ser absorvida por esse pensamento único, numa confiança obediente ao
Senhor “que viu a baixeza de Sua serva” e “fez grandes coisas [por ela]”. É exatamente assim que
São Paulo descreve o estado e o privilégio da virgindade: “a mulher solteira e a virgem meditam nas
coisas do Senhor, a fim de serem santas de corpo e espírito[38]”. O clímax dessa aspiração virginal
constitui a santidade da Virgem Mãe puríssima e imaculada.

O Cardeal Newman, em seu admirável “Carta ao Ver. E. B. Pusey, D. D., por ocasião de seu
Eirenicon[39]” (1865), diz com acerto: “A Teologia se ocupa de assuntos sobrenaturais, e está
sempre caminhando entre mistérios que a razão não é capaz de explicar nem resolver. Suas linhas
de pensamento chegam a um fim abrupto, e tentar prosseguir com elas equivale a mergulhar no
abismo. Santo Agostinho nos alerta a esse respeito, dizendo que se tentarmos unir as pontas de
duas linhas que se estendem ao infinito, só entraremos em contradição conosco mesmos”. É de
geral acordo que as considerações definitivas que determinam uma verdadeira avaliação de
quaisquer pontos específicos da tradição Cristã, são doutrinais. Nenhum argumento puramente
histórico, seja da antiguidade, seja esquecido, poderá ser decisivo. São sempre objeto de escrutínios
teológicos ulteriores e de revisão segundo a perspectiva da fé Cristã tomada em sua totalidade. A
questão definitiva é simplesmente essa: somos realmente capazes de conservar a fé na Bíblia e na
Igreja, aceitamos e recitamos o Credo Católico exatamente no sentido em que ele foi desenhado e
no qual se supõe seja entendido, realmente acreditamos na verdade da Encarnação? Permitam-me
citar Newman mais uma vez: “Eu já disse antes, quando trabalhamos essa ideia, que Maria gerou,
amamentou e carregou nos braços o Eterno em forma de um menino, e assim, qual é o limite
concebível para o dilúvio de pensamentos que essa doutrina envolve? Quanto espanto e surpresa
devemos esperar desse conhecimento, do fato de que uma criatura tenha chegado tão perto da
Essência Divina?[40]”. Felizmente, o teólogo Católico não está abandonado à lógica e à erudição.
Ele é conduzido pela fé: credo ut intelligam. A fé ilumina a razão. E a erudição, a memória do
passado, é impulsionada pela experiência contínua da Igreja. O teólogo Católico é guiado pelo
ensinamento sob a autoridade da Igreja, por sua tradição viva. Mas, acima de tudo, ele próprio vive
na Igreja, que é o Corpo de Cristo. O mistério da Encarnação, podemos dizer, continua a ser
representado na Igreja, e suas “implicações” são reveladas e abertas à experiência devocional e à
participação sacramental. Na Comunhão dos Santos, que é verdadeiramente a Igreja Católica e
Universal, o mistério da Nova Humanidade é revelado como uma nova situação existencial. E nessa
perspectiva e nesse contexto vivo do Corpo Místico de Cristo a pessoa da Abençoada Virgem e Mãe
aparece em sua plena luz e glória. A Igreja a contempla agora num estado de perfeição. Ela agora é
vista inseparavelmente unida ao seu Filho, que “está sentado à direita do Pai”. Para ela, a
consumação da vida já chegou, como uma antecipação. “Foste além da Vida, tu que és a Mãe da
Vida”, reconhece a Igreja, “nenhum sepulcro ou morte teve poder sobre a Mãe de Deus (...) pois a
Mãe da Vida veio à Vida por Aquele que habitou em seu seio eternamente virgem[41]”. Mais uma
vez, não se trata tanto de uma recompensa celestial por sua pureza e virtude, mas de uma
“implicação” por seu ofício sublime, por ser a Mãe de Deus, Theotokos. A Igreja Triunfante é, acima
de tudo, a Igreja de adoração, e sua existência constitui uma participação no ofício de intercessão de
Cristo e no Seu amor redentor. A incorporação a Cristo, que constitui a essência da Igreja e de toda
a existência Cristã, é, antes de qualquer coisa, uma incorporação ao seu amor sacrificial pela
humanidade. E existe aqui um lugar especial para aquela que está unida ao Redentor pela íntima e
única afeição e devoção maternal. A Mãe de Deus é verdadeiramente a mãe comum a todos os
vivos, a toda a raça Cristã, nascida ou renascida no Espírito e verdade. Uma identidade afetiva com
a criança, consuma-se aqui em sua perfeição última. A Igreja não dogmatiza muito respeito desses
mistérios de sua própria existência. Pois o mistério de Maria é precisamente o mistério da
Igreja. Mater Ecclesia e Virgo Mater, ambas deram nascimento à Nova Vida. E ambas são orantes. A
Igreja convida o fiel e o ajuda a crescer espiritualmente nesses mistérios da fé que são também os
mistérios de sua própria existência e de seu destino espiritual. Na Igreja o fiel aprende a contemplar
e a adorar o Cristo vivo, junto com toda a assembleia e a Igreja do Primogênito, que está inscrita no
céu[42]. E nessa assembleia gloriosa ele distingue a eminente pessoa da Virgem Mãe do Senhor e
Redentor, cheia de graça e amor, de caridade e compaixão – “Mais venerável que os Querubins, e
mais gloriosa que os Serafins, que ilibadamente deste à luz o Verbo de Deus”. À luz dessa
contemplação e no espírito de fé, o teólogo deve realizar seu ofício de interpretar aos fiéis e aos que
buscam a verdade, o mistério insuperável da Encarnação. Esse mistério continua a ser simbolizado,
como o era no tempo dos Padres, por um nome simples e glorioso: Maria, Theotokos, a Mãe do
Deus Encarnado.

[1] Epístola 101.


[2] Por Orígenes, por exemplo, cf. Sócrates, Hist. Eccl., VII, 32, e nos textos preservados em séries,
como In Lucam Hom. 6-7, ed. Rauer, 44. 10 e 50. 9.
[3] (inglês) Unscriptural word.
[4] (inglês) Shibbollet.
[5] De Fide Orth., III, 12.
[6] De Incarnatione, liv. V, cap. 15.
[7]     ...   .
[8]    .
[9] De Fide Orth. III, 12.
[10] Docetismo (do grego δοκέω, "para parecer") é o nome dado a uma doutrina cristã do século II,
considerada herética pela Igreja primitiva. Antecedente do gnosticismo, acreditavam que o corpo de
Jesus Cristo era uma ilusão, e que sua crucificação teria sido apenas aparente.
[11] “...e habitou entre nós” (João 1: 14).
[12] Gálatas 4: 4.
[13] De Fide Orth. III, 12.
[14] Lucas 1: 30.
[15] I Coríntios 15: 47.
[16] João 1: 13. Esse versículo se refere tanto à Encarnação quanto à regeneração batismal.
[17] Lucas 1: 35.
[18] Adv. Haeres, III, 18, 1: longam hominum expositionem in se ipso recapitulavit.
[19] III, 22, 3.
[20] IV, 23, 4.
[21] V, 1, 3.
[22] III, 22, 4.
[23] Tropário da Festa da Natividade de nossa Senhora.
[24] Tropário da Festa da Anunciação.
[25] Diálogos, 100.
[26] V, 19, 1.
[27] III, 22, 34.
[28] De Agone Christ., 24.
[29] Epist. 22.
[30] Lucas 1: 30-33.
[31] Coletânea de Sermões e Discursos do Metropolita Filarete de Moscou, pg. 187, Paris, 1866.
[32] Cf. Santo Irineu, Adv. Haeres., III, 21, 8: “Maria cooperou com a economia”.
[33] Lucas 2: 35.
[34] Lucas 2: 19.
[35]        (Homil. 1, in Nativitatem B.V. Mariae 9 e 5,
Migne, Ser. Ger. XCVI 676A e 668C.
[36] Lucas 1: 32.
[37] Lucas 7: 19.
[38] I Coríntios 7: 34.
[39] Difficulties felt by Anglicans in Catholic Teaching, 5th ed., page 430.
[40] Op. cit., pg 431.
[41] Tropário e Kondakion para a festa da Assunção da Virgem Maria, s.
[42] CF. Hebreus 12: 23.

VIII. O Sacramento do Pentecostes

A Igreja é uma. Isso não significa simplesmente que existe apenas uma Igreja, mas também que a
Igreja é uma unidade. Nela a humanidade é transportada a um novo plano de existência, de modo a
que possa aperfeiçoar-se como unidade na imagem da vida da Trindade. A Igreja é uma no Espírito
Santo e o Espírito a “constrói” no Corpo perfeito e completo de Cristo. A Igreja é predominantemente
uma na irmandade dos sacramentos. Colocando de outra maneira, a Igreja é uma no Pentecostes,
que foi o dia da misteriosa fundação e consagração da Igreja, quando todas profecias a ser respeito
se cumpriram. Nessa “celebração temível e desconhecida”, o Espírito Consolador descer e entrou no
mundo no qual nunca estivera antes presente do mesmo modo como Ele então passou a habitar. Ele
então entrou no mundo para morar nele e para se tornar a fonte onipotente da transfiguração e da
deificação. A concessão e descida do Espírito consistiu numa única e irrepetível Revelação. Naquele
dia, naquele momento, uma fonte inexaurível de água viva e Vida Eterna se abriu aqui na terra.

O Pentecostes, assim, constitui a plenitude e a fonte de todos os sacramentos e de todas as ações


sacramentais, a fonte única e inexaurível para toda a misteriosa e espiritual vida da Igreja. Habitar ou
viver na Igreja implica a participação no Pentecostes. Mais do que isso, o Pentecostes se torna
eterno na Sucessão Apostólica, na ordenação hierárquica ininterrupta na qual todas as partes da
Igreja estão, a todo momento, organicamente unidas à sua fonte primária. As linhas do poder
procedem da Câmara Alta. A Sucessão Apostólica não é meramente uma espécie de esqueleto
canônico da Igreja. Falando de modo geral, a hierarquia é, em primeiro lugar, um princípio
carismático, ou seja, um “ministério dos sacramentos”, ou uma “economia divina”. E é precisamente
nessa capacitação que a hierarquia constitui um órgão da unidade Católica da Igreja. Essa é a
unidade da graça. Ela é para a Igreja aquilo que a circulação do sangue é para o corpo humano. A
Sucessão Apostólica não e tanto uma fundação mística e canônica da unidade da Igreja. Ela está
mais associada ao lado divino do que ao lado humano da Igreja. Do ponto de vista histórico a Igreja
se mantém uma no seu sacerdócio. É pela ininterruptibilidade das ordenações sucessivas que a
totalidade da Igreja é conectada a uma unidade de corpo a partir de uma unidade de Espírito. E aí só
existe um caminho e uma perspectiva: aproximar-se e beber da fonte única da vida, agora revelada.

A função específica dos bispos é de serem o órgão da Sucessão Apostólica. Os bispos diferem dos
padres por seu poder de ordenar, e somente por isso. Isso sequer constitui um privilégio canônico,
mas apenas um poder de jurisdição. Trata-se de um poder de ação sacramental que está além
daquele que o padre possui. Na celebração da Eucaristia o bispo não tem nenhuma precedência
sobre o padre, nem pode ter, pois o padre tem pleno poder para celebrar, sendo seu propósito
primário exatamente o de oferecer o Sacrifício Eucarístico. É enquanto celebrante da divina
Eucaristia que o padre é ministro e construtor da unidade da Igreja. A unidade do Corpo de Cristo se
derrama a partir da unidade do alimento Eucarístico. Mas adicionalmente a isso o bispo tem sua
função particular na construção da unidade da Igreja, não como aquele que oferece o Sacrifício
Incruento, mas como aquele que o ordena. A Última Ceia e o Pentecostes estão inseparavelmente
ligados um ao outro. O Consolador desce quando o Filho é glorificado em Sua morte na Cruz. Mas
eles permanecem sendo dois sacramentos que não podem ser mesclados um ao outro.

O mesmo se aplica aos dois graus em ordem: o bispo está acima do padre e é através do
episcopado que o Pentecostes se torna universal e eterno. Mais do que isso, toda Igreja em
particular, através de seu bispo – ou melhor, em seu bispo – se vê incluída na plenitude Católica da
Igreja como um todo. Através de seu bispo ela se liga com o passado e com a antiguidade. Através
de seu bispo ela toma parte do organismo vivo do Corpo da Igreja Universal. Pois todo bispo é
ordenado por muitos bispos em nome do episcopado indiviso. Em seu bispo toda Igreja particular
cresce e transcende seus próprios limites, entre em contato e se mistura às demais Igrejas, não
meramente num amor fraterno ou numa lembrança comum, mas na unidade de uma misteriosa vida
na graça.

Assim é que cada Igreja local encontra seu centro e sua unidade no bispo, não tanto por ser ele o
cabeça e o pastor local, mas porque é através dele que ela está incluída na
misteriosa sobornost (“catolicidade”) da Igreja-corpo por todos os tempos. “Afirmamos que a ordem
dos bispos é tão necessária à Igreja que, sem ela, a Igreja não é a Igreja e um Cristão não é um
Cristão, e sequer podem receber esse nome. Pois o bispo é um sucessor dos Apóstolos por meio da
imposição das mãos e da invocação do Espírito Santo, recebendo sucessivamente o poder
concedido por Deus ligar e desligar. Ele é uma imagem viva de Deus sobre a terra, e devido à
atividade divina e ao poder do Espírito Santo ele se torna a fonte abundante de todos os
sacramentos da Igreja Universal por meio dos quais a salvação pode ser obtida. Consideramos que
o bispo é essencial à Igreja, como a respiração o é para o homem, e o sol para o mundo[1]”.

No Dia de Pentecostes o Espírito desceu não apenas sobre os Apóstolos, como também sobre todos
os que estavam ali presentes com eles: não só sobre os Doze, mas sobre uma quase multidão
(compare-se com os Discursos de Crisóstomo e sua interpretação dos Atos). Isso significa que o
Espírito desceu sobre toda a Igreja Primitiva então presente em Jerusalém. Mas, embora o Espírito
seja um, os dons e os ministérios da Igreja são muitos e variados, de modo que, no Sacramento de
Pentecostes, o Espírito desceu sobre todos, mas apenas aos Doze ele concedeu o poder e o grau
do sacerdócio prometido a eles por nosso Senhor nos dias de Sua carne. As qualidades distintivas
do sacerdócio não foram ofuscadas pela plenitude abarcante do Pentecostes. Mas a simultaneidade
dessa aspersão Católica do Espírito sobre toda a Igreja testemunha o fato de que o sacerdócio foi
fundado dentro da sobornost da Igreja.

É com isso que se relaciona especificamente a proibição direta da ordenação num sentido “geral” ou
“abastrato” (por exemplo, sem a nomeação definida para uma Igreja ou congregação), conforme a
Regra No. 6 do IV Concílio Ecumênico. Também é proibida a ordenação secreta. Ela deve ser
sempre pública e aberta, na própria Igreja, diante do povo e com o povo. Mais do que isso, a
participação do “povo” é requerida na própria ordenação, e não apenas como espectadores
reverentes que acompanham as orações. O “aksios” ou “amém” obrigatórios não constituem um
mero acompanhamento, mas também um testemunho e uma aceitação. O poder de ordenar é
concedido aos bispos, e somente a eles, mas foi concedido a eles dentro da Igreja, enquanto
pastores de um rebanho definido. E eles podem e devem realizar esse poder apenas
na sobornost da Igreja, e em acordo com todo o Corpo – vale dizer, os sacerdotes e o povo – e não
“em geral” ou de modo “abstrato” isso implica que o bispo deve habitar a Igreja, e a Igreja deve
habitar o bispo.

A antiga determinação de que um bispo deve ser ordenado por dois ou três bispos é especialmente
significativa. A implicação desse requisito é quase óbvia[2]. Mas o que estão testemunhando os
bispos que ordenam? Na ordenação de um bispo, nenhum bispo isoladamente pode agir por si como
bispo de uma Igreja local específica e definida, pois nesse caso ele permaneceria como um estranho
tanto quanto como em relação a qualquer outra diocese ou bispado. Ele age como representante
da sobornost dos demais bispos, como um membro e um participante dessa sobornost. Ademais,
está implícito que esses bispos pertencem a alguma diocese particular, e como bispos dirigentes
eles não estão separados, nem podem ser separados de seus rebanhos. Cada bispo que ordena
age em nome da sobornost e da plenitude Católica, conforme o I Sínodo Ecumênico, regra 4: “é mais
digno para um bispo ser indicado por todos os bispos de sua região; mas se isso for inconveniente
por alguma razão especifica, ou devido à distância, que pelo menos três se reúnam num lugar, e que
os ausentes expressem sua aquiescência por carta, permitindo que se prossiga com a ordenação”.

Mais uma vez, essas não são medidas canônicas, administrativas ou disciplinares. Existe uma
profundidade mística aqui. Nenhuma realização ou extensão da Sucessão Apostólica é possível de
outra forma, que não dentro da inquebrantável sobornost de toda a Igreja. A Sucessão Apostólica
não pode ser prejudicada ou divorciada do contexto orgânico da vida de toda a Igreja, embora
possuindo sua própria raiz divina. No rito Romano apenas um bispo ordena, mas a presença de
“testemunhas” ou “assistentes” é necessária, de modo a confirmar a plenitude e a sobornost do ato
sacramental. O ponto principal reside aqui na cooperação de toda a Igreja, ainda que isso seja
concedido e representado simbolicamente. Sob condições normais da vida da Igreja a Sucessão
Apostólica jamais pode ser reduzida a uma enumeração abstrata de ordenadores sucessivos. Nos
tempos antigos, a Sucessão Apostólica usualmente implicava, antes de tudo, a sucessão a uma
cátedra definida, a uma sobornost específica e local. A Sucessão Apostólica não representa uma
cadeia autossuficiente, nem uma lista ordenada de bispos. Ela é um órgão e um sistema da
unicidade singular da Igreja. Mais do que isso, não apenas as “santas ordens” (ordo), como também
o “poder sacerdotal” (jurisdictio) são congruentes na graça. A “jurisdição” significa a concretude do
poder e da dignidade do bispo, e ela se mantém precisamente pela sobornost, vale dizer, pela
unidade orgânica com o corpo específico do povo de uma Igreja. Dessa maneira, fora da “jurisdição”,
ou seja, na mera autossuficiência do grau episcopal, o poder de ordenar não pode ser praticado. Se
uma ordenação “abstrata” não pode ser reconhecida como válida, ela será ainda não apenas “ilegal
(ilícita), como também será misticamente deficiente. Pois toda ruptura dos limites canônicos implica
simultaneamente uma certa perda da graça, a saber: o isolamento, a separação, o abandono, o
esquecimento místico, a limitação da vigilância da Igreja, e uma diminuição do amor. Pois a
Sucessão Apostólica foi estabelecida para a garantia da unidade e da sobornost, e jamais deve se
tornar um veículo de exclusivismo e divisão.

A Apostolicidade da Igreja não se esgota pelo caráter ininterrupto da sucessão sacerdotal a partir
dos Apóstolos. A Sucessão Apostólica não deve ser separada da Tradição Apostólica, e, de fato, não
pode. A Tradição Apostólica não constitui uma reminiscência histórica, e tampouco a fidelidade à
Tradição significa apenas uma obstinada insistência no que é antigo, nem exige uma adaptação
arcaica do presente aos modos e costumes do passado. A Tradição não é uma arqueologia da
Igreja, mas uma vida espiritual. Ela é a memória da Igreja. Ela é, em primeiro lugar, uma corrente de
vida espiritual ininterrupta que procede desde a Câmara Alta. Tampouco a fidelidade à Tradição
Apostólica uma fidelidade restrita apenas à antiguidade, mas uma ligação viva com a plenitude da
vida da Igreja. A fidelidade à Tradição é, similarmente, uma participação no Pentecostes, e a
Tradição representa a realização do Pentecostes: “Quando vier o Espírito da Verdade, ele
encaminhará vocês para toda a verdade[3]”. Falando de modo geral, a Tradição não é tanto uma
salvaguarda e um princípio conservador, quanto um princípio progressista e condutor, o começo da
vida, a renovação e o crescimento. Os tempos Apostólicos não constituem apenas um exemplo
exterior a serem imitados ou repetidos, mas uma fonte eternamente renovada, uma experiência da
vida na graça. A Tradição é o poder de ensinar, confessar, testemunhar e proclamar a profundidade
da experiência da Igreja, que permanece sempre a mesma e incomparável. E esse “poder de
ensinar” (potestas magisterii) está incluído na Sucessão Apostólica e se baseia nela. O poder de
ensinar é conferido exatamente no episcopado – ele é o “poder” mais apostólico de todos.

Mas esse “poder” é uma função da plenitude Católica da Igreja. “De omnium fidelium ore
pendeamus, quia in omnem fidelem Spiritus Dei spirat”. Podemos dizer que a hierarquia, em sua
capacidade de ensinar, representa os lábios da Igreja. Isso não significa que a hierarquia adquire do
povo da Igreja sua credencial para ensinar, pois ela a recebe do Espírito Santo, como uma “unção de
verdade” (charisma veritatis certum), de acordo com a expressão de Santo Irineu de Lyon, no
sacramento da ordenação. Esse é o direito, ou o poder, de expressar e dar testemunho da fé e da
experiência da Igreja. A hierarquia ensina enquanto órgão da Igreja. Por isso ela é limitada pelo
“consenso da Igreja” (consensu ecclesiae), e mais uma vez não tanto na ordem dos cânones quanto
na vida e na evidência espiritual. Somente à hierarquia é concedido o direito de ensinar e
testemunhar na Igreja. Mas a hierarquia não constitui um “corpo de ensinamento” completo e
autossuficiente na Igreja. A hierarquia só ensina de modo Católico quando deveras tem e contém a
Igreja dentro de si. Toda Igreja local tem direito a uma “voz que ensina” na exclusiva pessoa de seu
bispo, o que, naturalmente, não exclui o direito à liberdade de opinião. Por outro lado, o bispo possui
seu “poder de ensinar” somente dentro da Igreja, somente dentro da verdadeira sobornost de seu
povo e de seu rebanho. O bispo recebe esse poder e essa capacidade de ensinar, não de seu
rebanho, mas do próprio Cristo, de cujo ministério de ensinamento ele participa através da graça da
Sucessão Apostólica. Mas o poder de ser uma espécie de coração de seu povo é conferido a ele, e
desse modo o povo também tem um direito e uma obrigação de dar testemunho, de consentir, e de
recusar seu consentimento, na busca pela total unanimidade e plenitude da sobornost.

O poder de ensinar está. Portanto, baseado numa dupla continuidade. Primeiramente, no caráter
ininterrupto da vida espiritual da Igreja, enquanto “plenitude Daquele que plenifica tudo[4]”. Todo o
sentido e a grandeza da vida Cristã consiste em receber o Espírito. Entramos em comunhão com o
Espírito por intermédio dos sacramentos, e devemos nos esforçar para estarmos cheios do Espírito
nas orações e nas ações. Nisso consiste o mistério de nossa vida interior. Mas, mesmo nessa vida
interior, é pressuposto que pertençamos à Igreja e que sejamos parte de sua própria textura. Cada
maneira de vida individual está incluída na sobornost, e isso significa que ela é condicionada e
limitada pela Sucessão Apostólica. Em segundo lugar, a comunhão universal por todo o tempo ou a
união nos sacramentos só é possível mediante a não interrupção da sucessão sacerdotal. O
desenvolvimento histórico da Igreja, sua integridade orgânica em revelar o “depositum fidei”
fundamental é, da mesma forma, baseada na Sucessão Apostólica. A plenitude Católica do
ensinamento da Igreja só é possível para nós mediante a Sucessão Apostólica, que ultrapassa a
relatividade histórica das eras separadas, e que ainda age como um verificador interno entre o que é
variável e o que é permanente. A liberdade de investigação teológica e de opinião encontra suporte e
fundamento para si na “unção de verdade” hierárquica. É precisamente a Sucessão Apostólica que
nos permite, em nossa teologia, nos erguermos acima e além do espírito de nosso tempo e penetrar
na plenitude da verdade.

Genericamente falando, a eficácia e a realidade dos sacramentos não dependem da fé daqueles que
deles participam. Pois os sacramentos são cumpridos pelo poder de Deus, e não do homem, e a
fragilidade e imperfeição de um sacerdote individualmente são tornadas boas pela misteriosa
participação de toda a Igreja em suas ações – da mesma Igreja que o escolheu e autorizou a realizar
o “ministério dos Sacramentos”. De qualquer forma, independentemente disso, é quase impossível
isolar por completo o momento objetivo em que a graça se manifesta nos sacramentos. Por exemplo,
como pode a Sucessão Apostólica ser preservada quando a Tradição Apostólica foi rompida
juntamente com a continuidade da vida espiritual? Em nenhum caso uma injúria à fé deixa de se
refletir de alguma maneira na hierarquia dessas comunidades nas quais o “depósito de fé” Apostólico
não foi preservado, e onde a plenitude da Tradição foi diminuída pelas brechas na continuidade
histórica. Isso se aplica especialmente aos casos em que a injúria atinge os motivos básicos da
própria “sucessão”, quando a fé Eucarística se torna turva, e quando a ideia de sacerdócio se torna
vaga e imprecisa. Podemos acrescentar que em tais casos a ligação empírica com a plenitude da
vida da Igreja, tanto passada quanto presente, costuma ser rompida, e a comunidade se torna
contida em si mesma e isolada, de modo que surge aí uma separação empírica – um cisma. Esse
desejo de isolamento e, podemos dizer, essa solidão, não pode deixar de afetar esse ministério da
Igreja, cujo sentido total reside na preservação e na expressão da unidade. Mais uma vez, não se
trata apenas de uma questão de legalidade ou “jurisdição”. Não é tanto canonicamente, quanto
misticamente, que cada sacerdote age em favor e em nome de toda a Igreja – e somente então seu
ministério Divino se enche de valor místico. A Eucaristia é uma e indivisível, e só pode ser celebrada
dentro dos limites místicos da Igreja Católica. Como poderia um “dissidente” celebrar a Eucaristia?

Ainda mais equivocada é a continuidade da Sucessão Apostólica nos corpos cismáticos, em especial
se ela foi continuada, ou mesmo “restabelecida” com o objetivo de tornar a separação permanente.
Como pode uma corrente hierárquica persistir na divisão, quando sua própria razão de ser é a
unidade? Como podem hierarcas cismáticos agir em favor ou em nome da Igreja Católica? Ainda
assim, a vida da Igreja na prática testemunha o fato de que isso é possível, e que a vida na graça
dentro dos corpos cismáticos não se extingue nem se esgota, a qualquer custo, pelo menos não
imediatamente. Entretanto, não podemos pensar que seja possível que isso prossiga inalterado,
precisamente pela razão de que não se pode isolar diferentes aspectos do todo orgânico da vida da
Igreja. O isolamento humano e histórico, ainda que juntos não cheguem a romper com a Sucessão
Apostólica, devem, de um modo ou de outro, enfraquece-la misticamente. Pois a unidade na graça
só pode ser revelada no “mistério da liberdade”, e apenas por meio de um retorno à plenitude e à
comunhão Católica, cada corpo hierárquico separado pode recobrar todo seu significado místico.
Simultaneamente a esse retorno, acontece a aceitação do “depósito de fé” Apostólico na sua
totalidade. A Sucessão Apostólica só pode ser fortalecida pela fidelidade e a realização da Tradição
Apostólica. Nessa inseparabilidade reside a plenitude do Pentecostes.

CONSENSUS ECCLESIAE, Nov. 24, 1934

[Duas notas explicativas ao artigo do Professor Florovsky sobre “O Sacramento do Pentecostes”]

I. “Somente à hierarquia é dado o direito de ensinar e testemunhar na Igreja”. Isso não significa
que o clero e os leigos estejam destinados simplesmente a uma obediência formal e incondicional do
episcopado. Similarmente, isso não implica que o “direito de ensinar” seja conferido aos bispos,
independentemente do povo. Ao contrário, não existe espaço para o exclusivismo dentro da Igreja.
Dessa forma, o agudo contraste que existe na Igreja Romana entre as Igrejas “que ensinam” e “que
aprendem” é abandonado. É mais correto falar em coordenação entre os estratos, ou elementos,
dentro da Igreja. Mais uma vez, enfatizo que “o bispo tem o poder de ensinar” apenas dentro da
Igreja, apenas dentro da sobornost de seu povo e de seu rebanho. Todos na Igreja são chamados
não somente à obediência, como também ao entendimento. Precisamente em questões de fé e
dogma, todos são compelidos a uma responsabilidade pessoal. É preferível não falar em
“responsabilidade” – o termo é demasiado formal – e é melhor dizer que todos devem residir na
verdade. O rebanho deve não apenas ouvir, como também aquiescer. Não é tanto a autoridade que
decide, quanto uma evidência interior de vida espiritual. Dentro dos limites da sobornost intacta
existe uma atribuição de atividades e de tarefas. Para todos os efeitos, todos são chamados a ser
um exemplo vivo e um testemunho de sua fé e de sua verdade, para ensinar e ajudar qualquer
pessoa. Essa questão não se coloca aqui, como também não se coloca um problema de busca
teológica, que formalmente não pode ser delimitada por nenhuma posição da Igreja. A questão é
como relação ao direito ao testemunho dogmático a favor da Igreja.

Mais uma vez, o poder da hierarquia não implica que a verdade seja como que revelada ao bispo
automaticamente, por força de sua ordenação e dignidade, ou que ele possa descobri-la sem
consulta ou comunhão com a Igreja, fora da qual ele perde todo seu “poder”. Porém, apenas a ele é
dado o poder de falar de maneira Católica. Não se trata apenas de um direito ou privilégio canônico.
Isso está vinculado ao fato de que o bispo enquanto tal constitui um centro místico de seu rebanho,
unindo em si a unicidade da agremiação sacramental. O fato de que com muita frequência os bispos
não sejam bons teólogos não contradiz essa determinação. Nesses casos eles são forçados a
encontrar apoio em outros sacerdotes mais instruídos do que eles. Isso aconteceu desde os tempos
mais antigos: basta lembrar Eusébio de Cesareia, cujo conselheiro principal era Basílio o Grande.
Não se trata de uma contradição maior do que o simples fato de que existem bispos indignos, tanto
quanto existem Cristãos indignos. Mesmo os leigos podem e devem estudar, discutir, pregar,
escrever e argumentar; e eles podem ainda discordar dos bispos. Mas testemunhar em favor da
Igreja, somente os bispos podem fazê-lo. Podemos também colocar as coisas da seguinte maneira:
o direito de opinião e aconselhamento é dado a todos, mas o “poder de ensinar” é concedido apenas
à hierarquia – naturalmente, dentro da agremiação intacta da sobornost. A falta de bispos instruídos
dentro da Igreja Ortodoxa nos tempos recente é lamentável, mas de modo algum está ligado a esse
postulado.

Com relação aos “teólogos leigos” na Rússia, não se pode dizer que eles tenham o poder de ensinar
em favor de toda a Igreja – o que, de modo algum, limita seu grande significado histórico. Pois a voz
dos leigos deve ser ouvida no coro Ortodoxo. O líder do coro, naturalmente, só pode ser um bispo.
Existem inúmeros dons, e todos os dons são necessários. Porém, somente um é apontado como
pastor, e o cajado é confiado a ele. “E o rebanho o segue, pois conhece a Sua voz[5]”.

II. A desunião dentre os Cristão implica, naturalmente, uma fraqueza mística, e aqui nada é muito
claro. Eu gostaria apenas de enfatizar um ponto. O simples fato de que exista uma divisão na Igreja
é um paradoxo e uma antinomia. Um abandono da Igreja é mais compreensível do que uma divisão
na Igreja, na medida em que, num cisma, a própria eficácia dos sacramentos em si não elimina o
fato indubitável de que o espírito de divisão constitui um sintoma de falta de saúde. Não é fácil
desenvolver esse ponto de vista, pois se trata precisamente de um paradoxo. Porém, creio que foi o
Ocidente que se separou do Oriente, e que a culpa do Ocidente é maior. Toda a história do desvio
Romano dá testemunho disso, e ainda sobrecarrega a Igreja Anglicana tanto quanto. Mas isso nos
levaria a um novo e complicado tema, a saber, a divisão entre as Igrejas, e é mais aconselhável
voltar em separado a ele em outra ocasião.

[1] Epistola dos Patriarcas do Oriente aos Bispos da Grã-Bretanha, 1723, §10.
[2] “...tome com você mais uma ou duas pessoas, para que toda a questão seja decidida sob a
palavra de duas ou três testemunhas” (Mateus 18: 16).
[3] João 16: 13.
[4] Efésios 1: 23.
[5] João 10: 14.

IX. A Veneração dos Santos

Cristo conquistou o mundo. Essa vitória foi posteriormente revelada e realizada no fato de que Ele
construiu Sua Igreja. Em Cristo e por Cristo a unidade da humanidade foi verdadeiramente realizada
pela primeira vez, pois aqueles que creram em Seu Nome se tornaram o Corpo de Cristo. E ao se
unirem a Cristo eles, da mesma forma, uniram-se uns aos outros na mais sincera concórdia de amor.
Nessa grande unidade todas as distinções empíricas e todas as barreiras foram também afastadas:
diferenças de nascimento na carne foram apagadas dentro da unidade do nascimento espiritual. A
Igreja é um novo povo cheio de graça, que não coincide com nenhuma fronteira física nem com
nenhuma nação terrestre – nem Gregos, nem Judeus, nem Citas, nem bárbaros – e essa nação não
surge de uma relação de sangue, mas através da liberdade num Corpo. Todo o significado do Santo
Batismo consiste no fato de que se trata de uma misteriosa aceitação para entrar na Igreja, na
Cidade de Deus, no Reino da Graça. Através do Batismo o fiel se torna um membro da Igreja, ele
entra para “a Igreja única de anjos e homens”, se torna “co-cidadão dos santos, para sempre com
Deus”, de acordo com as misteriosas e solenes palavras de São Paulo – a pessoa chega ao “monte
Sião, e à cidade do Deus vivo, a Jerusalém celeste, a uma inumerável companhia de anjos, à
assembleia geral e à Igreja do primogênito, que está inscrita nos céus, ela chega a Deus, o Juiz de
todas as coisas, e aos espíritos dos homens que se tornaram perfeitos”. E em meio a essa grande
multidão ela se une a Cristo. Pois “unnus Christianus, nullus Christianus[1]”.

A essência da Igreja reside em sua unidade. Pois a Igreja é a Morada do Espírito Único. Não se trata
de uma unidade, ou catolicidade, externa ou empírica. O caráter Ecumênico da Igreja não é algo
externo, quantitativo, espacial, nem mesmo qualquer qualidade geográfica, e de modo algum
depende de uma dispersão universal de fiéis. A unidade visível da Igreja é meramente um resultado,
mas nunca um fundamento para a catolicidade da Igreja. A “universalidade” geográfica é uma
derivação e não uma necessidade essencial. A catolicidade da Igreja não foi menor nas primeiras
eras da Cristandade, quando as comunidades dos fiéis eram espalhadas como pequenas ilhas,
quase perdidas num imenso mundo de descrença e resistência. Tampouco ela se vê diminuída
agora, quando a maior parte da humanidade não está com Cristo. “Embora uma cidade, ou mesmo
uma província, possa abandonar a Igreja Ecumênica, diz o Metropolita Filareta, esta permanecerá
sempre sendo um corpo completo e incorruptível”. Da mesma forma a Igreja continuará Ecumênica
nos “últimos dias”, quando ela for reduzida ao “pequeno rebanho”, quando o mistério da “retirada” for
revelado e quando a fé quase não for mais encontrada sobre a terra. Pois a Igreja é Católica de
acordo com a sua natureza.

Se buscarmos por definições externas, talvez a natureza Ecumênica da Igreja possa ser melhor
expressada pelo seu aspecto de “atemporalidade” (por perpassar todas as eras). Pois fiéis de todas
as idades e de todas as gerações, que vivem, viveram ou viverão, pertencem a ela da mesma
maneira. Todos formam um corpo, e por meio da mesma oração se veem unidos em um diante do
Trono único do Senhor da Glória. A experiência dessa unidade através de todos os tempos é
revelada e selada no ciclo total da adoração Divina. Na Igreja, o tempo é ultrapassado
misteriosamente. O transbordamento da graça parece parar o tempo, deter a marcha dos minutos e
das estações, ultrapassar inclusive a ordem geral da sucessão e da separação das coisas que
parecem acontecer em tempos diferentes[2]. Numa unidade com Cristo através da graça, no dom da
comunhão com o Espírito Único, homens de diferentes épocas e gerações se tornam nossos
contemporâneos vivos. Cristo reina por igual na Igreja – dentre os que partiram e dentre os que
estão vivos, pois Deus não é um Deus dos mortos, mas dos vivos.

A Igreja constitui um Reino que não é deste mundo, mas que é um Reino eterno, porque possui um
Rei eterno: Cristo. A Igreja é uma espécie de imagem misteriosa da eternidade e uma antevisão da
Ressurreição geral. Pois Cristo, a Cabeça do Corpo, é “vida e ressurreição” de Seus servos e
irmãos. O montante dos nascimentos ainda não se completou, e o rio da vida ainda corre. A Igreja
continua nas suas andanças, mas mesmo agora o tempo não tem força nem poder sobre ela. É
como se o momento do Apocalipse tivesse sido antecipado – quando já não houver tempo, e quando
todo tempo houver cessado. A morte terrestre, a separação da alma em relação ao corpo, já não
destrói o laço entre aqueles que têm fé, já não divide nem separa os que são co-membros em Cristo,
já não exclui os falecidos dos limites e da composição da Igreja. Na oração pelos mortos e em outros
ofícios fúnebres oramos a Cristo, “nosso Rei e Deus imortal” para que envie as almas dos falecidos
para “onde vivem os santos”, “a morada dos justos”, “o seio de Abrahão”, onde todos os justos
encontram o repouso. E, com particular expressividade, nessas preces fúnebres, lembramos e
clamamos pelas hostes dos justos, e pela Mãe de Deus, pelos poderes celestiais, pelos santos
mártires e por todos os santos, enquanto nossos concidadãos celestiais na Igreja. Com poderosa
ênfase a sempre presente e católica consciência da Igreja se abre no ofício do sepultamento. O fiel
que alcança uma genuína união com o próprio Cristo, em sua luta e dentro dos “mistérios” salvífico,
não pode ser separado Dele, mesmo na morte. “Benditos os que morrem no Senhor, pois suas
almas habitarão com o Abençoado”. E as preces pelos falecidos são a testemunha e a medida
da consciência católica da Igreja.

Reverentemente, a Igreja procura quaisquer sinais da graça que testemunhem e confirmem o


esforço terreno dos que partiram. Com uma visão interior a Igreja reconhece tanto os justos vivos
como os falecidos, e o sentimento da Igreja é selado pelo testemunho do sacerdócio da Igreja. É
nesse reconhecimento de seus irmãos e membros que “alcançaram a perfeição”, que consiste a
essência mística daquilo que o Cristianismo Ocidental denominou como “a canonização dos santos”,
e que é entendido pelo Oriente Ortodoxo como sua glorificação, magnificação e bênção.
Primeiramente, é a glorificação do Deus – “Maravilhoso é o Senhor em Seus santos”. “Os santos de
Deus, diz São João Damasceno, governaram e dominaram suas paixões e mantiveram intacta a
semelhança e a imagem de Deus, segundo a qual foram criados; por sua livre vontade eles se
uniram a Deus e receberam-No na morada de seus corações, e, tendo-O recebido em comunhão,
através da graça, tornaram-se em suas naturezas tais como Ele”. Deus repousa neles – eles se
tornaram “os tesouros e as puras moradas de Deus”. Nisso é que se realiza o mistério. Pois, como
diziam os antigos Padres, o Filho de Deus se tornou homem, para que os homens pudessem ser
deificados, para que os filhos dos homens pudessem se tornar filhos de Deus. E é no justo que
chega a amar dessa maneira, que se realiza o crescimento e a “semelhança” em Cristo. “Durante
suas vidas os santos já estavam cheios do Espírito Santo, continua São João Damasceno, e quando
eles morreram a graça do Espírito Santo continuou presente em suas almas e seus corpos nos
sepulcros, bem como em suas imagens e em seus santos ícones, não por causa de sua natureza,
mas por causa da graça e de sua atividade (...) os santos estão vivos e com coragem e ousadia eles
se postam diante do Senhor; eles não estão mortos (...) a morte dos santos se parece mais com um
adormecimento do que com uma morte (...) pois eles “habitam nas mãos de Deus” – vale dizer, na
vida e na luz – e “depois que Aquele que é a própria Vida e a fonte de toda vida foi contado entre os
mortos, já não consideramos como mortos aqueles que partiram com a esperança da ressurreição e
com fé Nele”. E não é apenas para obter ajuda e intercessão, que o Espírito Santo ensina a todos os
fiéis a orar aos santos glorificados, mas também porque esse chamado, mediante a comunhão na
prece, aprofunda a consciência da unidade católica da Igreja. Em nossa invocação dos santos
demonstramos a medida de nosso amor Cristão, e expressa-se um sentimento vivo de unanimidade
e do poder da unidade da Igreja; e, inversamente, as dúvidas e a incapacidade de sentir a
intercessão da graça e a intervenção dos santos perante Deus em nosso favor mostra não apenas
um enfraquecimento do amor e da fraternidade nos laços e relações da Igreja, como ainda um
declínio na plenitude da fé no valor Ecumênico e no poder da Encarnação e da Ressurreição.

Uma das mais misteriosas antecipações da Igreja Ortodoxa é a contemplação do “Véu Protetor da
Mãe de Deus”, de sua incansável intercessão pelo mundo, rodeada por todos os santos, diante do
trono de Deus. “Hoje a Virgem se coloca na Igreja e, juntamente com as hostes invisíveis dos santos,
ora a Deus por todos nós; os anjos e os altos sacerdotes adoram; os apóstolos e os profetas
abraçam-se mutuamente – pois é por nós que a Mãe de Deus ora diante do Deus Eterno”. É assim
que a Igreja recorda a visão que teve Santo André, o louco de Cristo. E aquilo que foi visivelmente
revelado naquele momento permanece ainda e permanecerá por todas as eras. A “Contemplação do
Véu Protetor” da Mãe de Deus é a visão da Igreja celestial, a visão da unidade indestrutível e
duradoura entre as Igrejas celestial e terrestre. E é também uma antevisão de toda a existência de
além-túmulo, dos justos e dos santos, numa prece incansável, numa incessante intercessão e
mediação. Pois o amor é “a união de todas as perfeições”. E a veneração dos santos é uma espera
no amor. O grande santo do Oriente, Isaac o Sírio, com ousadia incomparável, deu testemunho do
abarcante poder que coroa o esforço do Cristão. De acordo com suas palavras, esse esforço por
Deus adquire sua realização e plenitude, e alcança seu objetivo, na pureza – e a pureza é “um
coração misericordioso para com todos os seres criados”. E o que é um coração misericordioso?,
pergunta o santo, e ele próprio responde: “Um coração que queima por toda a criação, pelo homem,
os pássaros, os animais, os demônios e todas as demais criaturas. E os olhos desse homem
derramam lágrimas à sua recordação e à sua contemplação; por causa da enorme compaixão que
esse coração possui, e por sua grande fidelidade, ele é inundado por uma terna piedade e não é
capaz de suportar, nem ouvir ou ver a menor ofensa a eles, a menor tristeza sofrida por esses
animais. E assim ele ora a todo momento pelos animais irracionais, pelos inimigos da Verdade e por
aqueles que o prejudicam, para que eles sejam guardados e que recebam misericórdia; e ele ora
também pelos répteis, por causa dessa grande compaixão que brota constantemente em seu
coração à semelhança de Deus”. E se tão ardente é a oração dos santos sobre a terra, ainda mais
ardentemente ela queima “lá”, no “regaço do Pai”, no seio do Amor Divino, junto a Deus, cujo Nome
é Amor, cuja atenção para com o mundo é Amor. E na Igreja Triunfante jamais cessam as orações
por toda a Igreja Católica. Como disse São Cipriano, “a prece Cristã é ara todo o mundo”; todos
oram, não apenas por si mesmos, mas para todo o povo, pois todos formam um só, e assim oramos
não com uma prece individual particular, mas com uma prece que é comum a todos, com uma só
alma. Todo o ato de orar deve ser determinado por uma consciência ecumênica e um amor unânime,
que inclui do mesmo modo aqueles cujos nomes são conhecidos apenas por Deus. Não é típico de
um Cristão sentir-se só e separado de todos, porque ele só pode ser salvo na unidade da Igreja. E o
coroamento de todas as orações consiste nesse amor ardente que foi expresso na prece de Moisés:
“Perdoa seus pecados; mas, se não o fizeres, eu Te peço, apaga-me desse livro que Tu próprio
escreveste”. O centro da adoração da Igreja é a adoração Eucarística. Aqui toda a Igreja se encontra
unida. Aqui se realiza o sacrifício e são oferecidas as orações “por todos e por tudo”, aqui toda a
Igreja é lembrada, a militante e a triunfante. No misterioso ato da Liturgia “os poderes celestes
celebram invisivelmente conosco”, eles estão presentes e celebram junto com o sacerdote
celebrante. E aos grandes santos às vezes se concede pela graça de Deus contemplar de forma
visível aquilo que está oculto aos olhos dos pecadores – a concelebração dos anjos. É sabido, por
exemplo, que em certa ocasião foi concedido a São Serafim de Sarov ver a entrada triunfante do
Senhor da Glória, rodeado pelas hostes de anjos. Essa entrada do Senhor da Glória é comumente
representada na forma de ícone sobre a parede do santo Altar, e não apenas como símbolo, mas
como uma indicação de que, invisivelmente, isso verdadeiramente acontece. E toda a decoração em
ícones da Igreja fala da misteriosa unidade, da presença real dos santos entre nós. “Representamos
a Cristo, o Rei e Senhor, sem separá-Lo de Seu exército, pois o exército do Senhor são os Seus
santos”, disse São João Damasceno. Os santos ícones não são simplesmente imagens de
recordação, “imagens do passado e dos justos”, eles não são meras figuras, mas são de fato objetos
sagrados por intermédio dos quais, conforme explicaram os Padres, o Senhor está “presente” e, por
meio da graça, ‘em comunhão” com eles. Existe uma ligação misteriosa entre a “imagem” e o
“Protótipo”, entre a semelhança e aquele que está representado, coisa que é especialmente marcada
nos ícones milagrosos que mostram o poder de Deus. O “culto de veneração” dos santos ícones
expressa claramente a ideia que a Igreja concebe a respeito do passado: não se trata de uma
recordação dirigida a algo que se passou, mas de uma visão pela graça de algo que está fixado na
eternidade, uma visão de algo misterioso, uma presença pela graça daqueles que morreram e
partiram, uma “alegre visão da unidade de toda a criação”.

Toda a criação tem sua Cabeça em Cristo. E por intermédio de Sua Encarnação, o Filho de Deus, de
acordo com a maravilhosa expressão de Santo Irineu de Lyon, “inicia-se uma nova linhagem de
seres humanos”. A Igreja constitui a posteridade espiritual do Segundo Adão, e, na sua história, Sua
obra redentora se realiza e se completa, enquanto seu Amor brota nela e a inflama. A Igreja constitui
a plenitude de Cristo e Seu Corpo. De acordo com as palavras de São João Crisóstomo, “somente
então Aquele que a tudo preenche se torna a Cabeça, tendo formado um corpo perfeito”. Existe um
movimento misterioso, que começa no formidável dia de Pentecostes, quando, na figura dos poucos
primeiros escolhidos toda a criação tivesse recebido um batismo abrasador pelo Espírito, que
apontou para o fim derradeiro, quando em toda a sua glória a Nova Jerusalém deverá aparecer e o
Noivado do Cordeiro se iniciará. Ao longo das eras, os convidados e os escolhido vêm sendo
buscados. O povo do Reino eterno está sendo reunido em assembleia. O Reino está sendo eleito e
colocado além dos limites do tempo. A plenitude será realizada na ressurreição última – e então a
completa plenitude, a glória e o significado total da catolicidade da Igreja serão revelados.

[1] “Um só Cristão, nenhum Cristão”.


[2] “...to overcome even the general order of consecutiveness and the disconnectedness of those
things which took place at different times.”

X. Os Santos Ícones

O primeiro domingo da Quaresma é o Domingo da Ortodoxia. Ele foi estabelecido como um dia
especial de rememoração do Concílio de Constantinopla em 843. Acima de tudo, ele comemora a
vitória da Igreja sobre a heresia dos iconoclastas. O uso e a veneração dos Santos Ícones foram
restaurados. Nesse dia cantamos até hoje o Tropário da Santa Imagem de Cristo: “Diante de Teu
venerável ícone prostramo-nos...”.

À primeira vista, parece ser uma ocasião inapropriada para comemorar a glória da Igreja e todos os
heróis e mártires da Fé Ortodoxa. Não seria mais razoável fazê-lo nos dias dedicados à memória dos
grandes Concílios Ecumênicos, ou aos Padres da Igreja? Não será a veneração dos Ícones senão
uma peça de um ritual exterior e cerimonial? Não será a pintura de Ícones apenas uma decoração,
bonita sem dúvida, e instrutiva de muitas maneiras, mas dificilmente um artigo de Fé? Essa é a
opinião comum, infelizmente muito difundida, mesmo entre os próprios Ortodoxos. E ela é
responsável por sensível decadência da arte religiosa. Normalmente, confundem-se os Ícones com
“pintura religiosa”, e assim não há dificuldades em utilizar as figuras mais inadequadas como Ícones,
mesmo em nossas igrejas. Esquecemos do verdadeiro papel e do propósito último dos Ícones.

Vejamos o testemunho de São João Damasceno – um dos primeiros e maiores defensores dos
Santos Ícones durante o período do Iconoclasmo – grande teólogo e poeta devocional de nossa
Igreja. Em um de seus sermões em defesa dos Ícones, ele disse: “Eu vi a imagem humana de Deus,
e minha alma se salvou”. Trata-se de uma colocação forte e comovente. Deus é invisível, Ele habita
na luz inacessível. Como pode um frágil homem contemplá-Lo? Mas Deus manifestou-se na carne.
O Filho de Deus, que está no seio do Pai, “desceu dos céus” e “se fez homem”. Ele habitou entre os
homens. Esse foi o maior movimento do Amor Divino. O Pai Celestial comoveu-se com a miséria do
homem e enviou Seu Filho, porque Ele amou o mundo. “Nenhum homem jamais viu a Deus; apenas
o Filho Único, que está no seio do Pai, o revelou a nós[1]”. O Ícone de Cristo, Deus Encarnado,
constitui um testemunho permanente da Igreja relativo ao mistério da Santa Encarnação, que é a
base e a substância de nossa fé e de nossa esperança. Jesus Cristo, nosso Senhor, é o Deus
Encarnado. Isso implica que desde a Encarnação, Deus é visível. Podemos agora ter uma
verdadeira imagem de Deus.

A Encarnação constitui uma identificação íntima e pessoal de Deus para com o homem, para com as
necessidades e a miséria do homem. O Filho de Deus “se fez homem”, conforme é declarado no
Credo, “por nós e por nossa salvação”. Ele tomou sobre Si os pecados do mundo, e morreu por nós,
pecadores, sobre o madeiro da Cruz, e desse modo Ele transformou a Cruz na nova árvores da vida
para os fiéis. Ele se tornou o novo e Último Adão, a Cabeça de uma nova e renovada Humanidade.
A Encarnação representou uma intervenção pessoal de Deus na vida do homem, uma intervenção
de Amor e Misericórdia. O Santo Ícone de Cristo é um símbolo disso, mas vai além de um mero
símbolo ou signo. Ele é também um sinal eficiente e uma prova da presença de Cristo na Igreja, que
é Seu Corpo. Mesmo num retrato comum, sempre existe algo da pessoa representada. Um retrato
não apenas nos lembra a pessoa, como, de certo modo, carrega em si alguma coisa dela, isso é,
representa a pessoa, ou seja, “torna a pessoa presente”. Isso é ainda mais verdadeiro quando se
trata da sagrada Imagem de Cristo. Como nos ensinaram os professores da Igreja – em especial
São Teodoro Estudita, outro grande confessor e defensor dos Ícones – um Ícone, de certa forma,
pertence à própria personalidade de Cristo. O Senhor está ali, em suas “Santas Imagens”.

Por isso, não é a todos que é permitido realizar ou pintar um Ícone, se é que deverá ser um
verdadeiro Ícone. O iconógrafo deve ser um fiel membro da Igreja, e deve se preparar para essa
tarefa sagrada por meio de jejuns e orações. Não se trata apenas de uma questão de arte, ou de
habilidades artística ou técnica. Trata-se de um testemunho, de uma profissão de fé. Pela mesma
razão, a arte em si deve ser subordinada em sua materialidade à regra da fé. Existem limites para a
imaginação artística. Existem determinados padrões estabelecidos que devem ser seguidos. Em
qualquer caso, o Ícone de Cristo deve ser executado de modo a se encaixar na verdadeira
concepção de Sua pessoa, isto é, deve testemunhar Sua Divindade, ainda que Encarnada. Todas
essas regras foram estritamente conservadas pela Igreja por séculos, até um momento em que
foram esquecidas. Mesmo pessoas sem fé foram autorizadas a pintar ícones de Cristo nas igrejas,
de tal maneira que alguns desses “ícones” modernos não passam de pinturas mostrando um homem
qualquer. Essas pinturas falham em ser “Ícones” no sentido próprio e verdadeiro, e deixam de ser
testemunhos da Encarnação. Em casos como esses, não se faz mais do que “decorar” nossas
igrejas.

A utilização dos Santos Ícones foi sempre um dos caracteres distintivos da Igreja Ortodoxa do
Oriente. O Ocidente Cristão, mesmo antes do Cisma, tinha pouco entendimento a respeito da
essência dogmática e devocional da pintura de Ícones. No Ocidente eles nunca passaram de
decoração. E foi sob a influência do Ocidente que a pintura de Ícones se deteriorou no Oriente
Ortodoxo nos tempos modernos. A decadência da pintura de Ícones foi um sintoma do
enfraquecimento da fé. A arte dos Santos Ícones não é uma questão neutra. Ela pertence à fé.

Não pode haver acaso, nem “improvisação” na pintura de nossas igrejas. Cristo jamais está sozinho,
conforme o argumento de São João Damasceno. Ele está sempre com Seus santos, que são Seus
amigos por todo o sempre. Cristo é a Cabeça, e os verdadeiros fiéis são Seu Corpo. Nas igrejas
antigas, toda a Igreja Triunfante tinha que ser representada sobre as paredes. Repetimos, não se
tratava de decoração, nem de uma mera história contada em cores e linhas para os ignorantes e os
iletrados. Antes, tratava-se de uma visão da realidade invisível da Igreja. Todo o mundo celestial
estava representado sobre as paredes, porque ele estava presente ali, embora invisivelmente. Nós
sempre rezamos a Deus na Divina Liturgia, durante a Pequena Entrada, que “conceda que,
juntamente com a nossa entrada, se realize também a dos (Teus) santos Anjos que conosco
concelebram (e glorificam a Tua bondade)”. E não há dúvidas de que nossa prece é atendida. Claro,
não vemos os Anjos. Nossa vista é fraca. Mas é dito que São Serafim costumava vê-los, pois eles de
fato estavam lá. O eleito do Senhor podia vê-los, e a toda a Igreja Triunfante. “Quando nos
encontramos no templo em Tua glória, parece-nos estarmos nos Céus”.

Assim, é quase natural que no Domingo da Ortodoxia celebremos, não apenas a restauração da
veneração dos Ícones, como ainda comemoremos esse glorioso coro de testemunhos e fiéis que
professaram sua fé, ainda que a custo de sua segurança terrena, de sua prosperidade e de suas
próprias vidas. É um grande dia para a Igreja. De fato, nesse Domingo celebramos a Igreja do Verbo
Encarnado: celebramos o Amor redentor do Pai, o Amor Crucificado do Filho e a Amizade do Espírito
Santo, que se tornaram visíveis para nós, na companhia de todos os fiéis, inclusive dos que já
estraram no Repouso Celestial, na Alegria eterna de seu Senhor e Mestre. Os santos Ícones são
nosso testemunho da glória do Reino que virá, e que já está presente entre nós.

[1] João 1: 18.

XI. A Imortalidade da Alma

I. Preliminares

Estarão os Cristãos, enquanto Cristãos, obrigados a crer na Imortalidade da alma humana? E o que
exatamente significa a imortalidade no universo Cristão do discurso? Essas questões, de modo
algum, são meramente retóricas. Etienne Gilson, em seu Gifford lectures, sentiu-se compelido a
expor o seguinte argumento: “No seu todo, o Cristianismo sem a imortalidade da alma não é
completamente inconcebível – a prova está em que isso foi concebido. Ao contrário, o que é
absolutamente inconcebível é um Cristianismo sem a Ressurreição do Homem”. Um aspecto
impactante da história da doutrina primitiva do Cristianismo sobre o Homem está em que muitos
escritores importantes do século II negaram enfaticamente a imortalidade (natural) da alma. E isso
parece não ter sido uma opinião excepcional ou extravagante de alguns escritores apenas, mas
antes o ensinamento comum daquele tempo. Tampouco foi essa convicção completamente
abandonada posteriormente. O Bispo Anders Nygren, em seu famoso livro Den kristna karlakstanken
genm tiderna, louva os Apologistas do século II precisamente por sua corajosa posição e vê nela
uma expressão do verdadeiro espírito Evangélico. A principal ênfase, que na opinião de Nygren deve
se manter ainda e sempre, está mais na “Ressurreição do corpo” do que na “Imortalidade da alma”.
Um erudito Anglicano do século XVII, Henry Dodwell (1641-1711), publicou em Londres um curioso
livro com o desconcertante título: An Epistolary Discourse, proving, from the Scriptures and the First
Fathers, that the Soul is a Principle naturally Mortal; but immortalized actually by the Pleasure of God,
to Punishment; or to Reward, by its Union with the Divine Baptismal Spirit. Wherein is proved, that
None have the Power of giving this Divine Immortalizing Spirit, since the Apostles, but only the
Bishops (1706).

A argumentação de Dodwell é frequentemente confusa e complicada. O maior valor do livro, por sua
vez, estava na sua imensa erudição. Dodwell, provavelmente pela primeira vez, coletou um enorme
volume de informações das antigas doutrinas Cristãs a respeito do Homem, ainda que nem sempre
as tenha utilizado com propriedade. E ele estava quase certo em sua alegação de que o Cristianismo
não se referia a uma “imortalidade” natura, mas antes a uma Comunhão sobrenatural da alma para
com Deus, “o único que possui a Imortalidade[1]”. Não é de espantar que o livro de Dodwell tenha
provocado uma violenta controvérsia. Uma acusação formal de heresia foi levantada contra o autor.
Mesmo assim, ele conseguiu alguns aliados fervorosos. E um escritor anônimo, “um Presbítero da
Igreja da Inglaterra” publicou dois livros a respeito, apresentando um cuidadoso estudo das
evidências Patrísticas de que “o Espírito Santo (era) o Autor da Imortalidade, ou a Imortalidade (era)
uma Graça peculiar ao Evangelho (e) não um ingrediente natural da Alma”, e de que “a Imortalidade
(era) preternatural em relação às almas humanas, o Dom de Jesus Cristo, instituído pelo Espírito
Santo no Batismo”. O que constituiu o principal interesse nessa controvérsia foi que a tese de
Dodwell sofreu oposição especialmente dos “liberais” da época, tendo sido seu maior oponente o
famoso Samuel Clarke, de Saint James, Westminster, um seguidor de Newton e correspondente de
Leibnitz, notório por suas crenças e ideias pouco ortodoxas, um típico homem do
Latitudinarianismo[2] e do Iluminismo. Tratava-se de uma situação inusitada: a “imortalidade”
contestada por um “Ortodoxo” e defendida por um Latitiduinário. Com efeito, era bem isso que se
poderia esperar. A crença numa imortalidade natural era um dos poucos “dogmas” do Deísmo
iluminista daquele tempo. Um homem do Iluminismo poderia facilmente desprezar as doutrinas da
Revelação, mas não poderia aceitar nenhuma dúvida a respeito da “verdade” da Razão. Gilson
sugeria que “o que conhecemos pelo nome da doutrina Moralista do século XVII consistia
originalmente num retorno da posição dos Primeiros Padres, e não, como se crê usualmente, numa
manifestação de um espírito libertino. Enquanto colocação geral, isso é insustentável. A situação no
século XVII era muito mais complexa e confusa do que aparentemente supõe Gilson. Mesmo assim,
no caso de Dodwell (e outros), a suposição de Gilson é plenamente justificada. Havia um óbvio
“retorno às posturas dos Primeiros Padres”.

II. A Alma enquanto “criatura”

São Justino, em seu Diálogo com Trifão, conta a história de sua conversão. Em sua busca pela
verdade, primeiro ele recorreu aos Filósofos, e por algum tempo esteve plenamente satisfeito com os
ensinamentos Platônicos. “A percepção das coisas incorpóreas me subjugou, e a teoria Platônica
das ideias deu asas à minha mente”. Então ele encontrou um mestre Cristão, um respeitável ancião.
Dentre as questões que foram levantadas no decurso de suas conversações, estavam aquelas a
respeito da natureza da alma. O Cristão afirmava que não deveríamos considerar a alma como
sendo imortal. “Pois, caso o fosse, seríamos obrigados a dizer que ela tampouco teria tido
começo[3]”. Essa, naturalmente, era a tese dos Platônicos. Ora, somente Deus é “não-nascido” e
imortal, e é por essa mesma razão que Ele é Divino. Por sua vez, o mundo “começou”, e as almas
fazem parte dele. “Talvez tenha havido um tempo em que elas não existiam”. Portanto, elas não
seriam imortais, “uma vez que o mundo apareceu para nós como tendo um começo”. A alma não é a
vida em si, ela apenas “participa” da vida. Somente Deus e vida, a alma não vai além de ter vida.
“Pois o poder de viver não é um atributo da alma, mas de Deus”. De resto, Deus concede vida às
almas “conforme Seu agrado”. Todas as coisas criadas “possuem a natureza de se deteriorarem, e
são feitas de modo a se apagarem e deixarem de existir”. Essas criaturas são “corruptíveis”. As
principais demonstrações clássicas da imortalidade, derivadas do Fedon e do Fedro, são recusadas
e refutadas, e seus pressupostos básicos abertamente rejeitados. Como notou o Professor A. E.
Taylor, “para a mente Grega,  ou  normalmente significavam praticamente a
mesma coisa que “divindade”, e incluíam concepções como não-gerado e indestrutível”. Dizer que “a
alma é imortal” equivaleria para um Grego a dizer que ela é “incriada”, isso é, eterna e “divina”. Tudo
o que possui um começo deve ter um fim. Em outras palavras, para um Grego a “imortalidade” da
alma implicaria imediatamente sua “eternidade”, ou seja, sua eterna “pré-existência”. Apenas aquilo
que não tem começo pode durar para sempre. Os Cristãos não podiam concordar com essas
assertivas “filosóficas”, na medida em que acreditavam na Criação, e desse modo tiveram que negar
a “imortalidade” (no sentido Grego do termo). A alma não constitui um ser independente e
autogovernado, ela é uma criatura, e sua existência é devida a Deus, o Criador. De acordo com isso,
ela não pode ser “imortal” por natureza, isso é, por si mesma, mas apenas “ao agrado de Deus”, isso
é, pela graça. O argumento “filosófico” a respeito da “imortalidade” (natural) estava baseado na
“necessidade” da existência. Ao contrário, afirmar que o mundo é criado equivale a enfatizar,
primeiramente, sua contingência radical, e mais precisamente, uma contingência na ordem da
existência. Em outras palavras, um mundo criado é um mundo que poderia perfeitamente nunca ter
existido. Isso equivale a dizer que o mundo é, acima de tudo e inteiramente, ab oleo[4], e em
nenhum sentido um se? Como coloca Gilson, “existem alguns seres que são radicalmente diferentes
de Deus, no mínimo pelo fato de que, ao contrário Dele, poderiam não existir, e porque ainda
poderão, a qualquer tempo, deixar de existir”. “Poderão deixar”, entretanto, não significa
necessariamente “irão (verdadeiramente) deixar”. São Justino não era um “condicionalista”, e seu
nome foi invocado pelos defensores de uma “imortalidade condicional” praticamente em vão. “Eu não
disse, de fato, que toda alma morrerá...”. Toda a argumentação era polêmica, e seu objetivo era o de
enfatizar a crença na Criação. Encontramos o mesmo raciocínio em outros escritos do século II. São
Teófilo de Antioquia insistia no caráter “neutro” do Homem. “Por natureza”, o Homem não seria nem
“imortal”, nem “mortal”, mas “capaz de ambas as coisas”,  . “Porque se Deus
tivesse feito o Homem imortal desde o início, Ele o teria feito Deus”. Se no começo o Homem tivesse
escolhido as coisas imortais, em obediência ao mandamento de Deus, ele teria sido recompensado
com a imortalidade e teria assim se tornado Deus, um “Deus adotivo”, deus
assumptus, ss[5]. Taciano foi ainda mais longe. “A alma em si não é imortal, ó
Gregos, mas mortal. Mas a ela é possível não morrer[6]”. O pensamento dos primeiros Apologistas
não estava livre de contradições, e nem sempre foi expresso com precisão. Mas a principal alegação
sempre foi clara: o problema da imortalidade humana tinha que ser encarado no contexto da doutrina
da Criação. Podemos dizer também: não apenas como um problema metafísico, mas enquanto
problema religioso acima de tudo. A “Imortalidade” não é um atributo da alma, mas algo que, em
última instância, depende da relação verdadeira que o homem tem com Deus, seu Mestre e Criador.
Não somente o destino derradeiro do Homem só pode ser alcançado na Comunhão com Deus, como
a própria existência do Homem e sua “sobrevivência”, ou duração, dependem da vontade de Deus.
Santo Irineu prossegue dentro dessa tradição. Em sua disputa com os Gnósticos, ele tinha um
motivo especial para enfatizar o caráter criado da alma, ela não provinha de um “outro mundo” isento
de corrupção; ela pertencia exatamente a este mundo criado. Foi colocado, diz Santo Irineu, que,
para que a alma tenha existência ela deve ser “incriada”, pois de outro modo ela teria que morrer
com o corpo. Ele rechaça esse argumento. Enquanto criaturas, as almas “duram tanto quanto Deus
quer que elas durem” – perseverant autem quoadusque eas Deus et esse, et perseverare voluerit. A
palavra perseverantia corresponde aqui obviamente ao Grego . Santo Irineu utiliza quase
que as mesmas frases de São Justino. A alma não é vida em si; ela participa da vida, concedida por
Deus. Somente Deus é Vida, e Ele é o único Doador da Vida[7]. Mesmo Clemente de Alexandria,
apesar de seu Platonismo, lembrava ocasionalmente que a alma não era imortal “por natureza”.
Santo Atanásio pretendeu demonstrar a imortalidade da alma com argumentos que podem ser
rastreados até Platão, mas ele insistia fortemente que todo o criado é “por natureza” instável e está
exposto a destruição[8]. Mesmo Santo Agostinho estava consciente da necessidade de qualificar a
imortalidade da alma: Anima hominis immortalis est secundum quendam modum suum; non enim
moni modo sicut Deus[9]. “Conforme a transitoriedade dessa vida, podemos dizer que ela é
mortal[10]”. São João Damasceno dizia que mesmo os Anjos não são imortais por natureza, mas
apenas pela graça[11], e provava isso mais ou menos do mesmo modo que os Apologistas[12].
Encontramos a mesma colocação enfática na correspondência sinodal de São Sofrônio, Patriarca de
Jerusalém (634), que foi lida e recebida favoravelmente no Sexto Concílio Ecumênico (681). Na
última parte dessa correspondência, Sofrônio condena os erros dos Origenistas, a pré-existência da
alma e a apokatastasis, e estabelece claramente que “os seres intelectuais” ( ), embora não
morram (  s), tampouco são “imortais por natureza”, mas apenas pela graça de
Deus[13]. Podemos acrescentar que ainda no século XVII essa tradição antiga não estava esquecida
no Oriente, e temos também uma interessante notícia de uma disputa contemporânea entre dois
Bispos Gregos de Creta, exatamente a respeito dessa questão: em que medida a alma é imortal “por
natureza”, ou “pela graça”. Podemos concluir: quando discutimos o problema da Imortalidade de um
ponto de vista Cristão, devemos ter em mente a natureza criada da alma. A própria existência da
alma é contingente, ou seja, é como se ela fosse “condicional”. Ela é condicionada pelo fiat criador
de Deus. Vale dizer, ela tem uma existência que lhe foi concedida, isso é, uma existência que não
está necessariamente implicada na sua “essência”, mas que não é necessariamente transitória.
O fiat criador foi um ato livre, mas definitivo, de Deus. Deus criou o mundo simplesmente para a
existência:      . Não há previsão de que esse decreto criador seja
revogado. A fisgada da antinomia está exatamente nisso: o mundo possui um começo contingente,
mas não um fim. Ele permanece pela vontade imutável de Deus.

III. O Homem é mortal

No pensamento atual, a “imortalidade da alma” costuma ser de tal modo enfatizada que a mais
básica “mortalidade do homem” é deixada de lado. Apenas nas filosofias “existencialistas” recentes
somos novamente fortemente lembrados de que a existência do homem permanece
intrinsecamente sub specie mortis. A morte é uma catástrofe para o homem. Ela é seu “último” (ou
melhor, definitivo) inimigo – s s[15]. “Imortalidade” é, obviamente, um termo negativo;
ele é correlativo do termo “morte”. E aqui encontramos mais uma vez o Cristianismo num conflito
aberto e radical com o “Helenismo”, e em primeiro lugar com o Platonismo. W. H. V. Reade, em seu
livro recente, The Christian Challenge do Philosophy, confronte habilmente duas colocações: “E o
Verbo se fez carne e habitou entre nós[16]”, e “Plotino, o filósofo de nosso tempo, parecei se
envergonhar por ser de carne[17]”. Reade prossegue: “Quando a mensagem do Natal e o breve
sumário de Porfírio sobre o credo de seu mestre são colocados em comparação direta, parece não
restar dúvida de que ambos são totalmente incompatíveis; de que nenhum Cristão pode ser
Platônico, e nenhuma Platônico, Cristão; a respeito desse fato elementar os Platônicos estavam
perfeitamente conscientes; mas devo acrescentar que, infelizmente, os Cristãos parecem não terem
se dado conta desse fato”. Por séculos, até a nossa época, o Platonismo foi a filosofia favorita dos
sábios Cristãos. Não é nosso propósito aqui explicar o modo como isso aconteceu. Mas essa infeliz
confusão (para não dizermos mais) resultou numa confusão posterior no pensamento moderno a
respeito da imortalidade e da morte. Podemos utilizar ainda a antiga definição de morte: trata-se da
separação da alma em relação ao corpo – s s  s[18]. Para um Grego,
tratava-se de uma libertação, de um “retorno” à esfera nativa dos espíritos. Para um Cristão era
uma catástrofe, a frustração da existência humana. A doutrina Grega da Imortalidade jamais poderia
resolver o problema Cristão. A única solução adequada havia sido oferecida pela mensagem da
Ressurreição de Cristo e pela promessa de uma Ressurreição Geral dos mortos. Se nos voltarmos
novamente para a antiguidade Cristã, encontraremos esse ponto claramente estabelecido desde
uma data muito recuada. São Justino foi especialmente enfático a esse respeito: “pessoas que dizem
não haver ressurreição dos mortos, e que suas almas, após a morte, são levadas ao céu, não são
Cristãos de modo algum[19]”. O autor desconhecido do tratado Sobre a
Ressurreição (tradicionalmente atribuído a São Justino) coloca o problema com muita precisão: “Pois
o que é o homem senão um animal racional, composto de corpo e alma? Será a alma por si só o
homem? Não, ela é a alma do homem. Será o corpo por si só o homem? Não, mas ele é chamado
de corpo do homem. Se nenhum desses dois são em si o homem, ao contrário, aquilo que é formado
por ambos é chamado de homem, e Deus chamou o homem à vida e à ressurreição. Ele chamou,
não uma parte, mas o todo, que é composto de corpo e alma[20]”. Atenágoras de Atenas desenvolve
o mesmo argumento sem seu admirável tratado Sobre a ressurreição dos mortos. O homem foi
criado por Deus com um propósito definido, para a existência perpétua: “Deus concedeu existência e
vida, não à natureza da alma em si, nem à natureza do corpo em separado, mas ao homem,
composto de corpo e alma, de maneira que, com as mesmas partes com que ele é composto, tendo
nascido e vivido, eles possam alcançar, depois do término de sua vida, seu fim comum; a alma e o
corpo, compondo no homem uma entidade viva”. Já não haveria um homem, argumenta Atenágoras,
se a completude dessa estrutura fosse rompida, pois nesse caso a identidade do indivíduo seria
rompida também. A estabilidade do corpo, sua continuidade dentro de sua natureza própria, deve ter
seu correspondente na imortalidade da alma. “A entidade que recebe o intelecto e a razão é um
homem, e não apenas uma alma. Por conseguinte, o homem deve permanecer para sempre
composto de corpo e alma”. De outro modo não haveria um homem, mas apenas partes de um
homem. “E isso é impossível, caso não exista a ressurreição. Pois, se não houver ressurreição, a
natureza do homem enquanto homem não poderá continuar”. O pressuposto básico dessa
argumentação é de que o corpo pertence intrinsecamente à totalidade da existência humana. Assim
sendo, o homem, enquanto homem, cessaria de existir, se a alma tivesse que permanecer para
sempre “desincorporada”. Isso é exatamente o oposto do que os Platônicos sustentam. Os Gregos
sonhavam mais com uma completa e definitiva desencarnação. Receber um corpo era precisamente
a maldição da alma. Para os Cristãos, por outro lado, a morte não constituía um fim normal para a
existência humana. A morte do homem é considerada anormal, uma falha. A morte do homem é “o
salário do pecado[21]”. Trata-se de uma perda e de uma corrupção. E desde a Queda o mistério da
vida foi deslocado pelo mistério da morte. Tão misteriosa quanto a “união” da alma com o corpo de
fato é, a consciência imediata do homem testemunha a completude orgânica de sua estrutura psico-
física. Anima autem et Spiritus pars hominis esse possunt, homo autem nequaquam, disse Santo
Irineu[22]. Um corpo sem uma alma é um cadáver, e uma alma sem um corpo é um fantasma. O
homem não é um fantasma sem corpo, e um cadáver não é uma parte do homem. O homem não é
um “demônio sem corpo”, simplesmente confinado na prisão do corpo. É por isso que a “separação”
da alma e do corpo consiste na morte do homem em si, na descontinuidade de sua existência, de
sua existência enquanto homem. Consequentemente, a morte e a corrupção do corpo são uma
espécie de desvanecimento da “imagem de Deus” no homem. Um homem morto não é plenamente
humano. São João Damasceno, em um de seus gloriosos hinos dos Ofícios memoriais, diz o
seguinte: “Eu soluço e me lamento, quando contemplo a morte, e vejo nossa beleza, moldada
segundo a imagem de Deus, jazer desfigurada num sepulcro, desonrada e desprovida de forma”.
São João fala, não do corpo do homem, mas do próprio homem. “Nossa beleza à imagem de Deus”,
não consiste no corpo, mas no homem. Ele é de fato uma “imagem da insondável glória de Deus”,
ainda que “marcada pelo pecado”. E, na morte, revela-se que o homem, essa “estátua racional”
moldada por Deus – para usarmos a frase de São Metódio[23] – não passa de um cadáver. “O
homem não passa de ossos secos, mau odor e comida de vermes”. Podemos falar do homem como
sendo “uma hipóstase em duas naturezas”, e não apenas de, mas em duas naturezas. E na morte
essa hipóstase humana se rompe, e já não existe homem ali. A partir de então, o homem espera
pela “redenção de seu corpo[24]”. Conforme diz São Paulo em outra parte, “porque não queremos
ser despojados da nossa veste, mas revestir a outra por cima desta, e assim, aquilo que é mortal
seja absorvido pela vida[25]”. O aguilhão da morte está precisamente em que ela é “o salário do
pecado”, isso é, a consequência de uma relação distorcida com Deus. Não se trata de uma
imperfeição natural, nem de um impasse metafísico. A mortalidade do homem reflete o
distanciamento do homem em relação a Deus, que é o único Dispensador da Vida. E, nesse
distanciamento de Deus, o homem simplesmente não pode “perdurar” como homem, não pode
permanecer inteiramente humano. O status da mortalidade é essencialmente “sub-
humano”. Enfatizar a mortalidade do homem não implica oferecer uma interpretação “naturalística”
da tragédia humana, mas, ao contrário, significa traçar a condição humana até sua derradeira raiz
religiosa. A ênfase da teologia Patrística estava precisamente em seu interesse na mortalidade
humana, e, por conseguinte, na mensagem da Ressurreição. A miséria da existência no pecado não
era de modo algum subestimada, mas interpretada, não apenas em categorias éticas e morais, mas
em categorias teológicas. O fardo do pecado consistia não só em autoacusações da consciência
humana, não apenas na consciência da culpa, mas na extrema desintegração do complexo total da
natureza humana. O homem decaído já não era um homem, ele se encontrava existencialmente
“degradado”. E o sinal dessa “degradação” estava na mortalidade humana, na morte do homem. Ao
se separar de Deus, a natureza humana se torna deslocada, como se estivesse fora do tom. A
própria estrutura do homem se torna instável. A “união” entre a alma e o corpo se torna insegura. A
alma perde sua força vital, já não é capaz de impulsionar o corpo. O corpo se torna um túmulo e uma
prisão para a alma. E a morte física se torna inevitável. O corpo e a alma já não estão, podemos
dizer, assegurados e ajustados entre si. A transgressão do mandamento Divino “restabeleceu o
homem no estado da natureza”, como coloca Santo Atanásio – s   .
“Tendo sido feito a partir do nada, em sua própria existência ele sofre, no devido tempo, a corrupção
de acordo com a justiça total”. Pois, tendo sido feita a partir do nada, a criatura passa a existir sobre
um abismo de nada, sempre prestes a cair nele[26]. “Pois é necessário que ele morra, sendo como
água derramada sobre a terra, que não pode ser outra vez ajuntada[27]”. O “estado de natureza” de
que fala Santo Atanásio, é o movimento cíclico do Cosmo, no qual o homem decaído está enredado
sem esperança, e esse enredamento significa a sua degradação. Ele perdeu sua posição
privilegiada na ordem da Criação. Mas essa catástrofe metafísica consiste justamente na
manifestação de sua relação rompida com Deus.

IV. “Eu sou a Ressurreição e a Vida”

A Encarnação do Verbo foi uma manifestação absoluta de Deus. E acima de tudo foi uma revelação
da Vida. Cristo é o Verbo da Vida –  sss[28]. A Encarnação em si foi, num certo
sentido, um reavivamento do homem, como que uma ressurreição da natureza humana. Na
Encarnação, a natureza humana não foi simplesmente ungida com um superabundante influxo de
Graça, mas foi assumida numa unidade íntima e “hipostática” com a própria Divindade. Nesse
reerguimento da natureza humana a uma comunhão perene com a Vida Divina, os Padres da Igreja
primitiva viram unanimemente a própria essência da salvação: “É salvo aquilo que está unido a
Deus”, disse São Gregório de Nazianze. E o que não estava unido não poderia ser salvo de modo
algum[29]. Esse foi o tema central por toda a teologia primitiva – em Santo Irineu, Santo Atanásio, os
Capadócios, São Cirilo de Alexandria, São Máximo o Confessor. Entretanto, o clímax da Vida
Encarnada foi a Cruz, a morte do Senhor Encarnado. A Vida se revelou plenamente através da
morte. Esse é o mistério paradoxal da fé Cristã: a vida por intermédio da morte, a vida desde o
sepulcro e a partir dele, o mistério do sepulcro vivificador. E os Cristãos só renascem para a vida real
e eterna através de sua morte batismal e de seu sepultamento em Cristo: eles são regenerados com
Cristo na fonte batismal[30]. Essa é a lei invariável da verdadeira vida. “Aquilo que você semeia não
volta à vida, a não ser que morra[31]”. A salvação se completou no Gólgota, não no Tabor, e a Cruz
de Jesus já havia sido mencionada no Tabor[32]. Cristo tinha que morrer, de modo a conceder a vida
abundante a toda a humanidade. Não foi pela necessidade do mundo. Foi, podemos dizer, pela
necessidade do Amor Divino, uma necessidade de ordem Divina. E nós falhamos em compreender
esse mistério. Por que deveria a verdadeira vida ser revelada através da morte do Único que era, Ele
próprio, “a Ressurreição e a Vida”? A única resposta é que a Salvação teria que constituir-se numa
vitória sobre a morte e a mortalidade do homem. O último inimigo do homem era precisamente a
morte. A Redenção não consistia apenas no perdão dos pecados, nem era ela uma reconciliação do
homem com Deus. Ela era a libertação do pecado e da morte. “A penitência não liberta do estado da
natureza (no qual o home foi mergulhado pelo pecado), ela apenas descontinua o pecado”, diz Santo
Atanásio. Pois o homem não apenas pecou, ele “caiu na corrupção”. Porém, a misericórdia de Deus
não permitiu que “a criatura, feita racional e participando do Verbo, prosseguisse até a ruína e
retornasse à não-existência por causa da corrupção”. Por isso o Verbo de Deus desceu e se tornou
homem, assumindo nosso corpo, “para que, tendo o homem se voltado para a corrupção, Ele
pudesse reconduzi-lo à incorrupção, e erguê-lo da morte pela apropriação de seu corpo e pela graça
da Ressurreição, banindo dele a morte, como quem retira uma palha do fogo[33]. Assim é que, de
acordo com Santo Atanásio, o Verbo se tornou carne, a fim de abolir a “corrupção” da natureza
humana. Mas a morte foi vencida, não pela aparição da Vida num corpo mortal, mas pela morte
voluntária da Vida Encarnada. O Verbo se tornou encarnado com vistas à morte na carne, enfatiza
Santo Atanásio. “Foi para aceitar a morte que Ele recebeu um corpo[34]”. Ou, para citarmos
Tertuliano, forma moriendi causa nascendi est[35]. A razão definitiva para a morte de Cristo deve ser
encontrada na mortalidade do homem. Cristo sofreu a morte, mas passou por ela e superou a
mortalidade e a corrupção. Ele reviveu a própria morte. “Ele destruiu a morte com a morte”. A morte
de Cristo foi assim, podemos dizer, como que uma extensão de Sua Encarnação. A morte na Cruz
foi efetiva, não enquanto morte de um Inocente, mas na medida em que foi a morte do Senhor
Encarnado. “Precisávamos de um Deus Encarnado, de um Deus que pudesse ser levado à morte,
para que pudéssemos viver”, para
usarmos a surpreendente e ousada frase de São Gregório de Nazianze –  
  . Não foi um homem que morreu na Cruz. Em Cristo não havia
uma hipóstase humana. Sua personalidade era Divina, ainda que encarnada. “Pois Aquele que
sofreu não era um homem comum, mas Deus feito homem, combatendo a batalha do sofrimento”,
diz São Cirilo de Alexandria[37]. Podemos dizer corretamente que Deus morreu na Cruz, mas em
Sua própria humanidade (a qual era, contudo, “consubstancial” à nossa). Essa foi a morte voluntária
Daquele que era Ele próprio a Vida Eterna. Uma morte humana, de fato, uma morte “conforme e
humanidade”, e ainda assim uma morte dentro da hipóstase do Verbo, do Verbo Encarnado.
Portanto, uma morte ressuscitadora. “Eu tenho um batismo com o qual serei batizado[38]”. Foi a
morte na Cruz, e o derramamento de sangue – “o batismo do martírio e do sangue, com o qual o
próprio Cristo foi batizado”, conforme sugeriu São Gregório de Nazianze[39]. A morte na Cruz foi um
batismo de sangue, e ela constitui a verdadeira essência do mistério redentor da Cruz. O batismo é
uma purificação. E o Batismo na Cruz é como se tivesse sido a purificação da natureza humana, que
seguia o caminho da restauração na Hipóstase do Verbo Encarnado. É como se a natureza humana
fosse lavada no sangue sacrificial derramado da Cordeiro Divino, e, em primeiro lugar, uma limpeza
do corpo: não apenas uma lavagem dos pecados, mas uma limpeza das enfermidades humanas e
da própria mortalidade. Tratava-se da purificação com vistas à ressurreição por vir: uma limpeza de
toda a natureza humana, de toda a humanidade, na pessoa de seu novo e místico Primogênito, o
“Último Adão”. Tal foi o batismo de sangue de toda a Igreja, e, de fato, de todo o mundo. “Uma
purificação, não para uma pequena parcela do mundo humano, não por um curto período de tempo,
mas para todo o universo e por toda a eternidade”, para citarmos ainda uma vez São Gregório de
Nazianze[40]. O Senhor morreu na Cruz. Foi uma morte verdadeira. Porém, não foi uma morte total,
como é a nossa, simplesmente porque foi a morte do Verbo Encarnado, uma morte dentro da
indivisível Hipóstase da Verbo feito homem, a morte da humanidade “enipostatizada”. Isso não
alterou o caráter ontológico da morte, mas mudou seu significado. A “União Hipostática” não foi
rompida nem destruída pela morte, e dessa maneira a alma e o corpo, embora separados um do
outro, permaneceram unidos através da Divindade do Verbo, do qual nenhum dos dois se afastou.
Essa foi a “morte incorrupta”, e desse modo a “corrupção” e a “mortalidade” foram superadas nela, e
com isso começou a ressurreição. A própria morte do Encarnado revelou a ressurreição da natureza
humana[41]. “Hoje celebramos a festa, porque nosso Senhor foi pregado na Cruz”, na sentença
incisiva de São João Crisóstomo[42]. A morte na Cruz é uma vitória sobre a morte, e não apenas por
ter sido seguida da Ressurreição. Ela foi em si uma vitória. A Ressurreição apenas revelou e
estabeleceu a vitória conquistada na Cruz. Ela já se realizara com a dormição do Deus-homem. “Tu
morreste e me reviveste”. Como coloca São Gregório de Nazianze: “Ele deixou Sua vida, mas tinha o
poder de tomá-la de volta; e o véu se rasgou, pois as misteriosas portas dos Céus se abriram; as
pedras se romperam, os mortos despertaram (...) Ele morreu, mas deu a vida, e com Sua morte
destruiu a morte. Ele foi sepultado, mas voltou a viver. Ele desceu ao Hades, mas de lá trouxe as
almas[43]”. Esse mistério da Cruz ressuscitadora é comemorado especialmente no Sábado Santo.
Esse é o dia da descida ao Hades. E a descida ao Hades é, desde logo, a Ressurreição dos mortos.
Pelo simples fato de Sua morte, Cristo se fez acompanhar pelos que partiram. Essa foi uma nova
extensão da Encarnação. O Hades não passa da escuridão e da sombra da morte, mais o lugar de
uma angústia mortal do que o lugar de tormentos penais, um “sheol” escuro, um lugar de
desencarnação e descorporificação desesperançadas, iluminado fracamente pelos raios oblíquos de
um Sol não nascido, pelas esperanças e a expectativas não cumpridas. É como se fosse uma
espécie de enfermidade ontológica da alma, a qual, na separação da morte, perdeu a faculdade de
ser a verdadeira enteléquia[44] de seu próprio corpo – a desesperança de uma natureza decaída e
ferida. Não se trata de um “lugar”, mas de um estado espiritual: “os espíritos aprisionados[45]”. Foi a
essa prisão, a esse “Inferno” que Cristo o Salvador desceu. Em meio à escuridão da pálida morte
brilhou a luz inesgotável da Vida, da Vida Divina. A “descida ao Inferno” constituiu a manifestação da
Vida no meio da desesperança da dissolução mortal, a vitória sobre a morte. “Não foi por causa de
qualquer fraqueza natural do Verbo que o habitava, que morreu o corpo, mas para que, por meio
dele, pudesse a morte ser derrotada pelo poder do Salvador”, diz Santo Atanásio[46]. O Sábado
Santo é mais do que a véspera da Páscoa. Ele é o “Sabbath bendito”, “Sanctum Sabbatum” –
requies Sabbati magni, nas palavras de Santo Ambrósio. “Esse é o Sábado bendito, o dia do
repouso, quando o Filho Unigênito de Deus descansou de todos os seus feitos[47]”. “Eu sou o
primeiro e o último, Eu sou o que Vive, e estava morto; mas vede, Eu estou vivo para todo o sempre.
Amém. E eu tenho as chaves da morte e do Hades[48]”. A esperança Cristã na imortalidade está
enraizada e assegurada nessa vitória de Cristo, e não em algum tipo de doação “natural”. E isso
significa também que essa esperança está baseada num evento histórico, isso é, na auto-revelação
histórica de Deus, e não numa disposição estática ou constitutiva da natureza humana.

V. O Último Adão

A realidade da morte não foi propriamente abolida, mas revelou-se sua impotência. “É verdade que
ainda morremos – diz São Joao Crisóstomo – mas já não permanecemos na morte, e isso não é
morrer (...) o poder e a própria realidade da morte consiste apenas nisso, em quem um homem
morto não tem a possibilidade de voltar à vida; mas se, após a morte, ele for reavivado e, mais do
que isso, receber uma vida melhor, então ele não terá morrido, mas simplesmente adormecido[49]”.
Ora, na frase de Santo Atanásio, “tal como uma semente lançada à terra, não perecemos ao morrer,
mas, tendo sido semeados, renascemos[50]”. Isso constitui a cura e a renovação da “natureza”
humana, e por isso todos irão renascer, todos serão reavivados e restaurados na plenitude de sua
existência natural, agora transformada. Doravante, toda desincorporação será temporária. O escuro
vale do Hades foi abolido pelo poder da vivificadora Cruz. A potencialidade inerente da morte pela
desobediência foi revelada e efetivada no primeiro Adão. No segundo Adão, a potencialidade da
imortalidade, pela pureza e a obediência, foi sublimada e realizada na impossibilidade da morte.
Esse paralelo já havia sido estabelecido por Santo Irineu. Sem a esperança na Ressurreição Geral, a
crença em Cristo seria vã e sem propósito. “Mas agora Cristo levantou-se da morte e se tornou as
primícias de todos os que estão adormecidos[51]”. A Ressurreição de Cristo é um novo começo.
Trata-se de uma “nova criação” –   s. Podemos mesmo dizer que é um
começo escatológico, um passo definitivo na história da Salvação. Mas ainda temos que fazer uma
clara distinção entre a cura da natureza e a cura da vontade. A “natureza” é curada e restaurada de
certo modo compulsoriamente, pelo poder do Deus onipotente e por sua invencível graça. A
totalidade dessa cura é como que “forçada” à natureza humana. Pois em Cristo toda a natureza
humana (a “semente de Adão”) é plena e completamente curada de sua incompletude e mortalidade.
Essa restauração será efetivada e revelada em toda sua extensão no devido tempo, na Ressurreição
Geral, na ressurreição de todos, tanto dos justos como dos ímpios. E ninguém, até onde chega a
natureza, pode escapar desse mandamento real de Cristo, ou escusar-se ao invencível poder da
ressurreição. Mas a vontade do homem não pode ser curada da mesma maneira incoercível. A
vontade do homem deve volta-se para Deus por si mesma. Deve haver uma resposta de amor e de
adoração, livre e espontânea, uma “conversão livre”. A vontade do homem só pode ser curada no
contexto do “mistério da liberdade”. Somente por meio desse esforço livre pode o homem entrar
nessa nova e eterna vida que é revelada em Cristo Jesus. Uma regeneração espiritual só pode ser
forjada em perfeita liberdade, numa obediência de amor, por uma autoconsagração e uma
autodedicação a Deus, em Cristo. Essa distinção foi estabelecida com grande insistência por
Nicholas Cabasilas em seu memorável tratado A Vida em Cristo: a Ressurreição é a “retificação da
natureza” –  ss s – e isso é concedido gratuitamente por Deus.
Mas o Reino dos Céus, a visão beatífica e a união com Cristo, pressupõem do desejo –
  ss – e, dessa forma, só estão disponíveis para aqueles que esperaram,
amaram e desejaram essas coisas. A imortalidade será concedida a todos, assim como todos podem
desfrutar da Divina providência. Não depende de nossa vontade se vamos ou não renascer após a
morte, assim como não dependeu de nós o termos nascido. A morte e a ressurreição de Cristo
trouxeram imortalidade e incorrupção para todos igualmente, porque todos possuímos a mesma
natureza que o Homem Cristo Jesus. Mas ninguém pode ser obrigado a desejar. Assim, a
Ressurreição e um dom comum concedido a todos, mas a beatitude será dada a apenas alguns[52].
Novamente: o caminho da vida é o caminho da renúncia, da mortificação, do auto-sacrifício e da
auto-oblação. É preciso morrer para si, para viver em Cristo. Cada um deve, livre e pessoalmente,
associar-se a Cristo, o Senhor, o Salvador e o Redentor, na confissão da fé, na escolha do amor,
num voto místico de entrega e dedicação. Quem não morre com Cristo não pode com Ele. “A menos
que, por nossa livre escolha, aceitemos morrer em Sua paixão, Sua vida não virá a nós[53]”. Não se
trata de uma mera regra ascética ou moral, de uma simples disciplina. Essa é a lei ontológica da
existência espiritual, é a lei da própria vida. Pois apenas em comunhão com Deus e através da vida
em Cristo pode a restauração da totalidade humana ter significado. Para os que vivem na escuridão
total, que deliberadamente se confinaram “fora de Deus”, a própria Ressurreição pode parecer mais
como desnecessária e sem motivação. Mas ela virá, como “ressurreição do julgamento[54]”. E nela
se completará a tragédia da liberdade humana. Aqui ainda estamos no limiar do inconcebível e do
incompreensível. A apokatastasis da natureza não abole a vontade livre, e a vontade deve ser
movida desde dentro pelo amor. São Gregório de Nissa tinha um claro entendimento a esse respeito.
Ele anteviu uma espécie de conversão universal das almas após a morte, quando a Verdade de
Deus se revelar e se manifestar com evidência definitiva e convincente, quase obrigatória. É nesse
ponto que que as limitações do pensamento Grego ficam óbvias. Para este, a evidência aparecia
como a razão decisiva, ou o motivo da vontade, como se o “pecado” não passasse de uma
“ignorância”. O pensamento Helenístico teve que passar por sua longa e difícil experiência de
ascetismo, de autoexame e autocontrole ascéticos, para poder se libertar desse
intelectualismo naïve e ilusório, e descobrir o abismo escuro da alma decaída. Apenas em São
Máximo, depois de alguns séculos de preparação ascética, poderemos encontrar uma nova, mais
profunda e remodelada interpretação da apokatastasis. São Máximo não acreditava na conversão
inevitável das almas obstinadas. Ele supunha uma apokatastasis da natureza, isso é, uma restituição
de todos os seres a uma integridade de natureza, uma manifestação universal da Vida Divina, que
será evidente para todos. Mas aqueles que deliberadamente desperdiçaram suas vidas na terra em
desejos carnais, “contra a natureza”, serão incapazes de desfrutar dessa bênção eterna. O Verbo é a
Luz que ilumina as mentes naturais dos fiéis, mas, como o fogo ardente do
julgamento,   ss, Ele pune aqueles que, através de suas vidas na carne,
penderam para a escuridão noturna dessa vida. A distinção se dá entre s e s[55].
“Conhecer” não é o mesmo q eu “participar”. Deus estará realmente em todos, mas estará presente
apenas nos Santos, “com graça” ( ); nos que forem reprovados, Ele estará presente
“sem graça” (  ). E os ímpios ficarão separados de Deus por causa de sua falta de
uma resoluta opção pelo bem. Estamos aqui diante da mesma dualidade entre natureza e vontade.
Na ressurreição toda a criação será restaurada, isso é, será levada à perfeição e à estabilidade
definitiva. Mas o pecado e o mal estão enraizados na vontade. O pensamento Helenístico concluiu
daí que o mal é instável e que, por causa disso, ele deverá inevitavelmente desaparecer. Pois nada
pode ser perpétuo, a menos que esteja enraizado num decreto Divino. A inferência Cristã é
exatamente o oposto. Existe uma inércia e uma obstinação da vontade, e essa obstinação
permanecera sem cura mesmo na “Restauração universal”. Deus jamais violenta o homem, e a
comunhão com Deus não pode ser forçada aos obstinados. Na frase de São Máximo, “o Espírito não
produz uma resolução indesejada, mas transforma um propósito escolhido em theosis[56]”. Vivemos
num mundo transformado: ele foi transformado pela Ressurreição redentora de Cristo. A vida foi
dada, e ela deve prevalecer. O Senhor Encarnado é verdadeiramente o Segundo Adão e Nele toda
a nova humanidade será inaugurada. Não apenas está assegurada uma “sobrevivência” definitiva,
como também a realização total do propósito criador de Deus. O homem foi criado “imortal”. Ele não
pode cometer um “suicídio metafísico” último e lançar a si mesmo para fora da existência. Mesmo a
vitória de Cristo não forçou a “Vida Eterna” às existências “fechadas”. Pois, como disse Santo
Agostinho, para a criatura, “existir não é o mesmo que viver[57]”.

VI. “E Vida Eterna”

Existe uma tensão inevitável entre as concepções Cristãs a respeito do que “é dado” e do que “é
esperado”. Os Cristãos esperam “pela Vida no mundo que virá”, mas eles não estão menos
conscientes da Vida que já veio: “pois a Vida se manifestou, e nós a vimos, e disso damos
testemunho, e lhes mostramos a Vida eterna, que está com o Pai e se manifestou a nós[58]”. Isso
não constitui apenas uma tensão no tempo – entre o passado, o presente e o futuro. Trata-se de
uma tensão entre destino e decisão. Talvez se possa dizer: a Vida eterna foi oferecida ao homem,
mas ele precisa recebê-la. Para o indivíduo, a realização do “destino” depende de uma “decisão da
fé”, que não é uma “conscientização” apenas, mas uma “participação” desejada. A vida Cristã se
inicia com um novo nascimento, pela água e pelo Espírito. E, em primeiro lugar, é preciso um
“arrependimento” –   - uma mudança interior, íntima e resoluta. O simbolismo do Santo
Batismo é complexo e multifacetado. Mas acima de tudo ele é um simbolismo de morte e
ressurreição, da morte e ressurreição de Cristo[59]. Trata-se de uma ressureição sacramental com
Cristo, pela participação em Sua morte, um reerguimento com Ele e Nele para uma nova e eterna
Vida[60]. Os Cristãos ressuscitam junto com Cristo precisamente por meio do sepultamento: “se
morremos com Ele, com Ele viveremos[61]”. Cristo é o Segundo Adão, mas os homens devem
renascer e serem incorporados a Ele, para poderem participar dessa nova Vida que é Ele. São Paulo
fala de uma “semelhança” na morte de Cristo[62] -
 (...)     mas essa "semelhança" vai além de uma
parecença. Ela é mais do que um simples sinal ou uma lembrança. O sentido dessa semelhança,
para o próprio São Paulo, está em que, em cada um de nós, Cristo pode e deve ser “formado[63]”.
Cristo é a Cabeça, todos os fiéis são Seus membros, e Sua vida se atualiza neles. Esse é o mistério
do Cristo Total – totus Christus, Caput et Corpus. Todos somos chamados, e cada qual é capaz de
crer, e de ser reavivado pela fé e o batismo, para viver com Ele. O Batismo é, assim, uma
“regeneração”, uma s, um nascimento novo, espiritual e carismático. Conforme diz
Cabasilas, o Batismo é a causa da vida beatífica em Cristo, não meramente da vida[64]. São Cirilo
de Jerusalém explica de maneira lúcida a verdadeira realidade de todo o simbolismo batismal. É
verdade, diz ele, que na fonte batismal morremos (e somos sepultados) apenas “por imitação”,
apenas, digamos, “simbolicamente” –   – e não renascemos de um sepulcro real.
Porém, “se a imitação está numa imagem, a salvação é bem real”. Pois Cristo foi de fato crucificado
e sepultado, e realmente levantou-se do túmulo. A palavra Grega é s. ela é mais forte do que
simplesmente s, “verdadeiramente”. Ela enfatiza o significado último da morte e da
ressurreição de Cristo. Ela foi uma nova conquista. A partir dela Ele nos deu a chance, na
participação “imitativa” de Sua Paixão –   (...) s – para adquirimos a salvação
“realmente”. Não se trata apenas de uma “imitação”, mas de uma “similitude” –  . “Cristo
foi realmente crucificado e sepultado, mas a você é concedido ser crucificado, sepultado e
ressuscitar com Ele em similitude”. Em outras palavras, no batismo o homem desce
“sacramentalmente” às trevas da morte, mas ele renasce outra vez com o Senhor renascido e passa
da morte para a vida. “E a imagem se completa em você, pois é você a imagem de Cristo”, conclui
São Cirilo. Em outras palavras, somos postos juntos por Cristo e em Cristo; daí advém a
possibilidade real de uma “semelhança” sacramental[65]. São Gregório de Nissa se ocupa desse
mesmo ponto. Existem dois aspectos no batismo. O batismo é um nascimento e uma morte. O
nascimento natural é o começo da existência mortal, que começa e termina em corrupção. O outro, o
novo nascimento, precisa ser descoberto, e ele irá iniciar para a vida eterna. No batismo “a presença
do poder Divino transforma aquilo que nasceu com uma natureza corruptível, num estado de
incorrupção[66]”. Ela é transformada ao seguir e imitar; e assim, aquilo que havia sido prefigurado
pelo Senhor é agora realizado. Apenas seguindo a Cristo é possível passar através do labirinto da
vida e sair dele. “Pois ao inescapável guarda da morte, que mantém prisioneira a humanidade
entristecida, eu chamo de labirinto”. Cristo escapou daí após três dias morto. Na fonte batismal, “se
cumpre a imitação de tudo o que Ele fez”. A morte é “representada” pelo elemento água. E, assim
como Cristo renasceu da morte, também o recém batizado, unido a Ele segundo a natureza corporal,
“imita a ressurreição ao terceiro dia”. Trata-se apenas de uma “imitação” – s – não de uma
“identidade”. No batismo o home não renasce verdadeiramente, mas ele se livra do mal natural e da
inescapabilidade da morte. Nele é cortada a “continuidade do vício”. Ele não ressuscita, porque não
morreu, mas ainda permanece nessa vida. O batismo apenas prefigura a ressurreição; no batismo se
antecipa a graça da ressurreição final. O batismo é o início, , e a ressurreição é o final e a
consumação, s; e tudo o que acontecerá na grande Ressurreição tem já seu início e causa no
batismo. Podemos dizer que o batismo é uma “ressurreição homiomática[67]”. Devemos ressaltar
que São Gregório enfatizava especialmente a necessidade de conservar e de se agarrar à graça
batismal. Pois no batismo não é apenas a natureza, mas também a vontade, que é transformada e
transfigurada, tornando-se livre a longo do processo. E se a alma não foi lavada e purificada pelo
livre exercício da vontade, o batismo se mostra infrutífero. A transfiguração não é realizada, a nova
vida não se consuma. Isso não subordina a graça batismal à licença humana; a graça de fato desce.
Mas ela não pode ser forçada a alguém que é livre e feito à imagem de Deus; ela deve ser
correspondida e corroborada pela sinergia entre amor e vontade. A graça não reaviva nem faz brilhar
as almas fechadas e obstinadas, aquelas almas “verdadeiramente mortas”. É preciso que haja
resposta e cooperação. Isso acontece porque o batismo é a morte sacramental com Cristo, uma
participação em Sua morte voluntária, em seu amor sacrificial; e isso só pode se cumprir em
liberdade. Assim, no bat8ismo a morte de Cristo na Cruz se reflete como se fosse uma imagem viva
e sacramental. O batismo é, em primeiro lugar, uma morte e um nascimento, um sepultamento e um
“banho de regeneração”, “um tempo de morte e um tempo de nascimento[68]”, para citarmos São
Cirilo de Jerusalém. O mesmo é verdade para todos os sacramentos. Todos os sacramentos foram
instituídos para permitir aos fiéis “participarem” da morte redentora de Cristo, para assim ganhar a
graça de Sua ressurreição. Nos sacramentos, o caráter único e universal da vitória e do sacrifício de
Cristo são apresentados e enfatizados. Essa era a ideia central de Nicolas Cabasilas em seu
tratado A Vida em Cristo, no qual se encontra sintetizada admiravelmente toda a doutrina
sacramental da Igreja do Oriente. “Somos batizados exatamente para que morramos com Sua morte
e renasçamos com Sua ressurreição. Somos ungidos com o crisma para que possamos partilhar de
Sua unção real de deificação (theosis). E quando somos alimentados com o santíssimo Pão e
quando bebemos do Divino Cálice, partilhamos da mesma carne e do mesmo sangue que o Senhor
assumiu, e assim nos unimos a Ele, que se encarnou por nós, morreu e ressuscitou (...) O Batismo é
um nascimento, e o Crisma é a causa de atos e movimentos, e o Pão da vida e o Cálice de ação de
graças são o verdadeiro alimento e a verdadeira bebida[69]”. Em toda a vida sacramental da Igreja a
Cruz e a Ressurreição são “imitadas” e refletidas em múltiplos símbolos. todo esse simbolismo é
realista. Os símbolos não apenas nos lembram algo no passado, algo que aconteceu. O que teve
lugar “no passado” foi o começo daquilo que “dura Eternamente”. Sob todos esses “símbolos”
sagrados, e neles próprios, a Realidade derradeira está de fato revelada e expressa. Esse
simbolismo hierático culmina no augusto Mistério do Santo Altar. A Eucaristia é o coração da Igreja,
o Sacramento da Redenção em sentido eminente. É mais do que uma “imitação”, do que uma
“comemoração” simplesmente. Trata-se da própria Realidade, até então velada, e que é rebelada no
Sacramento, como diz Cabasilas, “e não é possível ir além, nem nada existe que possa ser
acrescentado”. Esse é o “limite da vida” – s s. “Depois da Eucaristia não existe mais
nada a se esperar, mas temos que permanecer aqui e aprender como podemos preservar esse
tesouro até o fim[70]”. A Eucaristia é a própria Última Ceia, reapresentada por assim dizer uma e
outra vez, embora jamais repetida. Pois cada nova celebração não apenas “reapresenta”, mas em
verdade constitui a mesma “Ceia Mística” que foi celebrada pela primeira vez (e para sempre) pelo
próprio Divino Altíssimo Sacerdote, como uma antecipação e uma iniciação voluntárias ao Sacrifício
sobre a Cruz. E o verdadeiro Celebrante de cada Eucaristia é sempre o próprio Cristo. São João
Crisóstomo é bastante enfático a esse respeito: “Acreditem, portanto, que ainda agora é aquela
mesma Ceia, na qual Ele próprio estava sentado. Pois esta, sob todos os aspectos, não é diferente
daquela[71]”. “Aquele mesmo que operou essas coisas naquela Ceia, é o mesmo que as opera
agora. Estamos apenas presentes dentre seus ministros. Aquele que as santifica e transmuta é o
Mesmo. Essa mesa é a mesma que aquela, e nada lhe falta. Pois não é que Cristo operou então, e
agora opera o homem, mas é Ele quem opera em ambas as ocasiões. Essa é a mesma Câmara Alta
aonde estavam todos então[72]”. Tudo isso é de uma importância básica. A Última Ceia foi a oferta
do sacrifício, do sacrifício da Cruz. A oferenda continua ainda, cristo ainda age como o Alto
Sacerdote nessa Sua Igreja. O Mistério é o mesmo, o Sacerdote é o mesmo, a Mesa é a mesma.
Para citarmos Cabasilas mais uma vez: “Ao oferecer e sacrificar a Si mesmo de uma vez por todas,
Ele não encerrou Seu Sacerdócio, mas exerceu Seu ministério por nós, no qual Ele é nosso
advogado perante Deus eternamente[73]”. E o poder ressuscitador e o significado da morte de Cristo
estão plenamente manifestados na Eucaristia. Trata-se da “medicina da imortalidade e de um
antídoto, para que possamos não morrer, mas viver para sempre em Jesus Cristo”, para citarmos a
famosa frase de Santo Inácio[74]. É o “Pão celestial e o Cálice da vida”. Esse Sacramento tremendo
é para o fiel a verdadeira “Núpcia da Vida Eterna”, exatamente porque a morte de Cristo foi em si a
Vitória e a Ressurreição. Na Eucaristia o começo e o fim estão amarrados: as memórias do
Evangelho e as profecias da Revelação. Trata-se de um sacramentum juturi porque constitui
uma anamnese da Cruz. A Eucaristia é uma antecipação sacramental, uma prefiguração da
Ressurreição, uma “imagem da Ressurreição” –   s
s, conforme a prece de consagração de São Basílio. Ela ainda não passa de uma
“imagem”, não porque seja um mero signo, mas porque a história da Salvação continua, e é preciso
olhar para a frente “para ver a vida do século futuro”.

VII. Conclusão

Os Cristãos, enquanto Cristãos, não estão obrigados a nenhuma doutrina filosófica sobre a
imortalidade. Mas eles são compelidos a acreditar na Ressurreição Geral. O homem é uma criatura.
Sua própria existência é uma dádiva de Deus. Sua existência é contingente. Ele existe pela graça de
Deus. Mas Deus criou o homem para a existência, isso é, para um destino eterno. Esse destino pode
ser adquirido e consumado apenas em comunhão com Deus. O rompimento dessa comunhão frustra
a existência humana, mas mesmo assim o homem não deixa de existir. A morte e a mortalidade do
homem são sinais de uma comunhão rompida, o sinal do isolamento do homem, de seu
distanciamento da fonte e da meta de sua existência. Mas, mesmo assim, o fiat criador continua a
operar. A comunhão é restaurada na Encarnação. A vida se manifesta outra vez na sombra da
morte. O Encarnado é Vida e Ressurreição. O Encarnado é o Conquistador da morte e do Hades. E
Ele constitui as primícias da Nova Criação, as primícias para todos os que estão adormecidos. A
morte física do homem não é apenas um “fenômeno natural” irrelevante, mas um sinal fatídico da
tragédia original. Uma “imortalidade” de “almas” desincorporadas não resolve o problema humano.
Uma “imortalidade” num mundo sem Deus, uma “imortalidade” sem Deus ou “fora de Deus”,
equivaleria à danação eterna. Os Cristãos, enquanto Cristãos, aspiram a algo maior do que uma
imortalidade “natural”. Eles aspiram a uma comunhão eterna com Deus, ou, para usarmos a ousada
expressão dos primeiros Padres, a uma theosis. Não existe nada de “naturalista” ou de panteísta a
respeito do termo. Theosis significa nada mais do que uma comunhão íntima das pessoas humanas
com o Deus vivo. Estar com Deus significa habitar Nele e partilhar de Sua perfeição. “Assim o Filho
de Deus se tornou o filho do homem, para que o homem possa se tornar filho de Deus[75]”. Nele, o
homem está para sempre unido a Deus. Nele temos a Vida Eterna. “E nós que, com a face
descoberta, refletimos como num espelho a glória do Senhor, somos transfigurados nessa mesma
imagem, cada vez mais resplandecente pela ação do Senhor, que é Espírito[76]”. E ao final, para
toda a criação, o “Sábado Santo”, o verdadeiro “Dia do descanso”, o misterioso “Sétimo dia da
criação” será inaugurado, na Ressurreição Geral e no “Mundo que há de vir”.

[1] I Timóteo 6: 16.


[2] Latitudinarianismo é a doutrina esposada por teólogos, estudiosos e clérigos ingleses da
Universidade de Cambridge que também eram anglicanos moderados. Em particular, eles
acreditavam que aderir a doutrinas muito específicas, liturgias muito determinadas e formas
organizacionais rígidas, como faziam os puritanos era desnecessário e poderia ser até prejudicial: "a
sensação de se ter instruções especiais de Deus faz os indivíduos menos acessíveis à moderação e
à transigência, ou à própria razão". Assim, os latitudinários apoiavam um protestantismo de amplas
bases.
[3]    s.
[4] Ab oleo: expressão figurada que indica algo que foi criado a partir de algum trabalho. Ou seja, “o
mundo é, acima de tudo e inteiramente, ab oleo (vale dizer, criado), e em nenhum sentido um se (ou
seja, ele não existe por si).
[5] Ad Autolycum II, 24, 27.
[6] Oratio ad Graecos, 13.
[7] Adversus haereses II, 34.
[8] Adversus Gentes, 33, 41:     .
[9] Epist. VFF ad Hieronymun.
[10] In Jo. Tr. 23, 9; cf. De Trinitate, I.9.15, e De Civ. Dei, 19.3: mortalis in quantum mutabilis.
[11] De fide Orth., ii, 3:   .
[12] Dial. c. Manich., 21.
[13] Mansi, XI, 490-492; Aligne, LXXXVII, 3, 3181.
[14] “Ele criou tudo para a existência...” (Sabedoria 1: 14.
[15] I Coríntios 15: 26.
[16] João 1: 14.
[17] Porfírio, Vida de Plotino, I.
[18] Nemésio, De natura hominis, 2.
[19] Diálogos, 80.
[20] Sobre a Ressurreição, 8.
[21] Romanos 6: 23.
[22] Adv. Haereses, V, 6.1.
[23] De ressurrectione I, 34: 4 –    .
[24] Romanos 8: 23 –     .
[25] II Coríntios 5: 4.
[26] De incarnatione, 4 e 5.
[27] II Samuel 14: 14.
[28] I João 1: 1.
[29] Epist. 101 ad Cledonium.
[30] Cf. Romanos 6: 3-5.
[31] I Coríntios 15: 36.
[32] Cf. Lucas 9: 31.
[33] De Incarnatione, 6-8.
[34] Ibid., 44.
[35] De carne Christi, 6.
[36] Orat. 45, in S. Pascha, 28.
[37] Catech. 13, 6.
[38] Lucas 12: 50.
[39] Orat. 37, 17.
[40] Orat. 45, 13.
[41] São João Damasceno, De fide Orth., 3: 37; cf. Homil. in Magn. Sabbat., 29.
[42] In crucem et latronem, hom. 1.
[43] Orat. 41.
[44] Enteléquia: realização plena e completa de uma tendência, potencialidade ou finalidade natural,
com a conclusão de um processo transformativo até então em curso em qualquer um dos seres
animados e inanimados do universo.
[45] I Pedro 3: 19.
[46] De inc., 26.
[47] Hino, Vésperas do Domingo de Páscoa, rito Oriental.
[48] Apocalipse 1: 17-18.
[49] In Hebr., hom. 17, 2 –  s   s.
[50] De Inc., 21.
[51] I Coríntios 15: 20.
[52] De Vita in Christo II, 86-96.
[53] Santo Inácio, Magnes, 5.
[54] João 5: 29 – sss.
[55] Conhecimento e participação.
[56] Quaest. Ad Thalass., 6.
[57] De Genest ad litt., I, 5.
[58] I João 1: 2.
[59] Romanos 6: 3-4.
[60] Colossenses 2: 12; Filipenses 3: 10.
[61] II Timóteo 2: 11.
[62] Romanos 6: 5 – “Se permanecermos completamente unidos a Cristo com morte semelhante à
dele, também permaneceremos com ressurreição semelhante à dele”.
[63] Gálatas 4: 19.
[64] De vita in Christo II, 95.
[65] Mystag. 2: 4-5, 7; 3: 1.
[66] Orat. Cat., 33.
[67] Orat. Cat., 35.
[68] Mystag. II, 4 –  ss.
[69] De vita II, 3, 4, 6, etc.
[70] De vita IV, i, 4, 15.
[71] In Matt., hom, 50, 3.
[72] Ibid., hom. 82, 5.
[73] Expla. Div. Liturg., c. 23.
[74]  s        . Efésios 20: 2.
[75] Santo Irineu, Adv. Haeres., III, 10.2.
[76] II Coríntios 3: 18.

XII. As Últimas Coisas e os Últimos Acontecimentos

“Contemplai, pois fiz novas todas as coisas.”


Apocalipse 21: 5

I. Escatologia
A escatologia foi por muito tempo um terreno negligenciado na moderna teologia. A arrogante frase
de Ernst Troeltsch – “O departamento de escatologia está quase inteiramente encerrado” – foi uma
característica distintiva de toda a tradição liberal, desde o Iluminismo. Mas esse desprezo pelos
assuntos escatológicos não foi completamente superado no pensamento contemporâneo. Em
algumas frentes a escatologia continua sendo vista como uma relíquia obsoleta de um passado a ser
esquecido. O próprio tema é evitado, ou sumariamente rejeitado como algo irreal e irrelevante. O
homem moderno não está preocupado com os últimos acontecimentos. Essa atitude de negligência
foi recentemente reforçada pelo surgimento do Existencialismo teológico. Porém o mesmo
Existencialismo proclama ser, ele próprio, uma doutrina escatológica. Mas trata-se de um abuso dos
termos. A escatologia é radicalmente interiorizada na sua reinterpretação existencialista. Na verdade,
ela é engolida pelo imediatismo das decisões pessoais. Num certo sentido, o Existencialismo
moderno na teologia não passa de uma variação recente do velho tema Pietista. Em última instância,
ele remonta ao desmonte histórico radical[1] da fé Cristã. Os acontecimentos históricos apresentam-
se eclipsados pelos eventos da vida interior. A própria Bíblia é usada como um livro de parábolas e
regras. A história não passa de um arcabouço ultrapassado. A eternidade pode ser encontrada e
experimentada a qualquer momento. A história deixou de ser um problema teológico.

Por outro lado, precisamente nas últimas décadas, a historicidade básica da fé Cristã voltou a ser
contemplada e reafirmada em diversas linhas da teologia contemporânea. Foi uma oportuna
mudança no pensamento teológico. De fato, constituiu um retorno à fé Bíblica. É claro, não se pode
encontrar na Bíblia nenhuma “filosofia da história”. Mas nela existe uma ampla visão da história, uma
perspectiva de um tempo que se desdobra, que vai de um “começo” até um “fim”, e que é guiado
pela vontade soberana de Deus em direção ao cumprimento de seu propósito último. A fé Cristã é,
em primeiro lugar, um testemunho obediente dos poderosos feitos de Deus na história, que
culminaram “nos últimos dias”, no Advento de Cristo e em Sua vitória redentora. De acordo com isso,
a teologia Cristã deve ser construída como uma “Teologia da História”. A fé Cristã está alicerçada em
acontecimentos, não em ideias. O próprio Credo é um testemunho histórico, um testemunho dos
acontecimentos salvíficos ou redentores, que são apreendidos pela fé como os feitos poderosos de
Deus.

Essa recuperação da dimensão histórica da fé Cristã trouxe outra vez a questão escatológica para o
foco da meditação teológica. A Bíblia e o Credo, ambos apontam para o futuro. Sugeriu-se
recentemente que a filosofia Grega estava inescapavelmente “presa ao passado”. A categoria
“futuro” era quase irrelevante para a versão Grega da história. A história era concebida como uma
rotação, com um retorno inevitável à posição inicial, a partir da qual uma nova repetição de eventos
se iniciaria mais uma vez. Ao contrário, a visão Bíblica descortina o futuro, no qual as coisas novas
serão reveladas e realizadas. E a realização última do propósito divino está antecipada no futuro,
além do qual não existe movimento temporal – vale dizer, num estado de consumação.

Na espirituosa frase de Hans Urs von Balthasar, “a escatologia está no ‘olho do furacão’ na teologia
de nosso tempo”. De fato, trata-se de um “nó sutil” no qual todas as linhas do pensamento teológico
estão interconectadas e inextricavelmente tecidas. A escatologia não pode ser discutida como se
fosse um tópico específico, como um artigo de fé em separado. Ela só pode ser entendida a partir de
uma perspectiva total da fé Cristã. O que é característico do pensamento teológico contemporâneo é
precisamente a redescoberta da dimensão escatológica da fé Crista. Não existe um consenso na
teologia contemporânea a respeito das “Últimas coisas”. O que acontece é mais um conflito de
visões e de opiniões. Mas também existe uma nova abertura de perspectiva.
A contribuição de Emil Brunner para a discussão atual foi tanto provocativa quanto construtiva. Sua
teologia é uma teologia de esperança e expectativa, como convém a alguém que pertence à tradição
Reformada. Sua teologia é intimamente orientada para os “Últimos acontecimentos”. Ainda assim,
em muitos pontos, sua visão é limitada por seus pressupostos teológicos gerais. De fato, sua
teologia reflete sua experiência pessoal da fé, aquilo que ele próprio chama de “sua existência
devota”.

II. O mistério das Últimas Coisas

O mistério das Últimas Coisas está baseado no paradoxo básico da Criação. De acordo com
Brunner, o termo Criação, em seu uso Bíblico, não denota o modo como o termo é empregado
atualmente – vir à existência – mas implica apenas a soberana Senhoria de Deus. No ato da Criação
Deus estabelecer algo que é inteiramente outro em relação a Ele, “adjacente” a Ele. De acordo com
isso, o mundo das criaturas possui seu próprio modo de existência – derivado e subordinado,
dependente, mas, mesmo assim, real à sua própria maneira. Brunner é quase formal a respeito: “Um
mundo que não é Deus passa a existir paralelamente a Ele”. Assim, a própria existência do mundo
implica uma certa dose de “limitação” auto imposta do lado de Deus, Sua kenosis, que alcança seu
máximo na cruz de Cristo. Deus abre espaço para a existência de algo diferente. O mundo foi
“chamado à existência” com um propósito, para que possa manifestar a glória de Deus. O Verbo é o
princípio e o objetivo último da Criação.

Com efeito, o simples fato da Criação constitui o paradoxo básico da fé Cristã, em relação ao qual
podem ser deduzidos todos os demais mistérios de Deus – ou antes, em relação ao qual eles estão
implicados. Brunner, entretanto, não distingue claramente, a esse respeito, entre o próprio “ser” de
Deus e Sua “vontade”. De fato, o “ser” de Deus simplesmente não pode ser “limitado”, em nenhum
sentido. Se existe uma “limitação”, ela só pode se referir à Sua “vontade”, na medida em que foi
“chamada à existência” outra vontade, que poderia não ter nunca existido. Essa “contingência”
básica da Criação testemunha a absoluta soberania de Deus. Por outro lado, o clímax definitivo
da kenosis criadora só poderá ser encontrado nos “Últimos Eventos”. O ferrão do paradoxo,
dessa kenosis, não reside na existência do mundo, mas na possibilidade do Inferno. De fato, o
mundo ode ser obediente a Deus, assim como pode desobedecê-lo, e em sua obediência ele serve a
Deus e manifesta Sua glória. Não se trata de uma “limitação”, mas de uma expansão da majestade
de Deus. Ao contrário, o Inferno significa resistência e distanciamento, pura e simplesmente.
Entretanto, mesmo num estado de revolta e rebelião, o mundo continua pertencendo a Deus. Ele
jamais poderá escapar ao Seu Juízo.

Deus é eterno. Essa não é uma definição negativa. Ela simplesmente significa que a noção de tempo
não pode ser aplicada à Sua existência. Com efeito, o “tempo” não passa de um modo da existência
criada. O tempo foi dado por Deus. Não se trata de um modo de existência imperfeito ou deficiente.
Não existe nada de ilusório a respeito do tempo. A temporalidade é real. O tempo realmente se
move, de forma irreversível. Mas não se trata de um fluxo, nem de uma rotação. Ele não é uma série
de “átomos de tempo” indiferentes que possam ser concebidos ou postulados como infinitos, sem fim
ou limite. Trata-se antes de um processo teleológico, organizado internamente com vistas a um
determinado objetivo final. Existe um telos implicado em todo desígnio da Criação. De acordo com
isso, o que acontece no tempo é significativo – significativo e real para o próprio Deus. A História não
é uma sombra. Definitivamente, a história possui um objetivo “meta-histórico”. Brunner não utiliza
esse termo, mas ele enfatiza a “finitude” inerente à história. Uma história infinita, que se
desenvolvesse indefinidamente, sem destino ou fim, seria uma história vazia e desprovida de
significado. A história deve ter um fim, uma conclusão, uma katharsis, uma solução. A trama deve
ser revelada. A história precisa ter um termo, no qual ela será “realizada”, “preenchida”,
“consumada”. Ela foi originalmente desenhada para ser “realizada”. No final, já não haverá história
de espécie alguma. O tempo se realizará na eternidade, como coloca Brunner. Naturalmente, nessa
conexão a eternidade significa simplesmente Deus. O tempo só tem significado contra um fundo de
eternidade, ou seja, somente no contexto do desígnio divino.

De fato, a história não é apenas o desdobramento desse desígnio primordial e soberano. O tema da
história real, da única história que de fato conhecemos, é dado pela existência do pecado. Brunner
dispensa a querela sobre a origem do pecado. Ele apenas enfatiza sua “universalidade”. O pecado,
no sentido Bíblico do termo, não é primitivamente uma categoria ética. De acordo com Brunner, ele
apenas denota a necessidade de redenção. Os dois termos são intrinsecamente correlativos. Agora,
o pecado não é um fenômeno primário, mas uma quebra, um desvio, uma rejeição do princípio. Sua
essência é a apostasia e a rebelião. É esse aspecto do pecado que é ressaltado na história Bíblica
da Queda. Brunner recusa ver a Queda como um evento real. Ele insiste apenas que sem o conceito
de Queda a mensagem básica do Novo Testamento, vale dizer, a mensagem da salvação, seria
absolutamente incompreensível. Efetivamente, não devemos nos perguntar a respeito do “quando” e
do “como” da Queda. A essência do pecado só pode ser discernida à luz de Cristo, ou seja, à luz da
redenção. O homem, tal como o observamos na história, sempre aparece como pecador, incapaz de
não pecar. O homem histórico é sempre um “homem revoltado”. Brunner está perfeitamente ciente
da força do pecado – tanto no mundo, quanto na história humana. Ele adota a noção Kantiana do
pecado radical. O que ele diz sobre o pecado Satânico, como sendo diferente do pecado humano,
sobre o poder Satânico supra pessoal, é impressionante e altamente relevante para o
questionamento teológico, tanto quanto tudo o que inevitavelmente ofende e perturba a mente do
homem moderno. Mas a questão principal permanece ainda sem resposta. Teve a Queda o caráter
de um evento? A lógica do argumento de Brunner parece nos compelir a vê-la como um evento, um
elo na cadeia dos acontecimentos. De outro modo, ela não passaria de um símbolo, de uma hipótese
de trabalho, indispensável para finalidades interpretativas, mas irreal. Realmente, o fim da história
deve ser visto, de acordo com Brunner, como “um evento”, por mais misterioso que deva ser esse
evento. Também “o começo” tem um caráter de “evento”, como o primeiro elo da cadeia. Mais do
que isso, a redenção é obviamente um “evento” que pode ser datado com exatidão – de fato, o
evento crucial, determinativo de todos os demais. Dessa perspectiva parece imperativo ver a Queda
como um evento, qualquer que seja a maneira como ela é visualizada ou interpretada. Em qualquer
caso, a redenção e a Queda estão intrinsecamente relacionadas entre si, na interpretação de
Brunner.

Brunner distingue claramente as criaturas enquanto tais do pecado. As criaturas provêm de Deus. O
pecado provém de uma fonte oposta. O pecado se revela em eventos, em atos e ações
pecaminosos. De fato, trata-se de um abuso de poder, de uma perversão dessa liberdade
responsável que foi concedida ao homem no mesmo momento em que ele foi chamado à existência.
Com efeito, antes de que o abuso se tornasse um hábito, ele precisou ser exercido pela primeira vez.
A revolta precisou começar um dia. Essa asserção está alinhada com o restante da exposição de
Brunner. De outra forma pode-se cair numa espécie de dualismo metafísico que o próprio Brunner
denuncia vigorosamente. De qualquer modo, a existência das criaturas e a pecaminosidade não
podem ser igualadas ou identificadas.

De fato, Brunner está certo ao sugerir que devemos iniciar a partir do centro, ou seja, com a boa
nova da redenção em Cristo. Mas em Cristo nós contemplamos não apenas nossa desesperada
“situação existencial” enquanto pecadores miseráveis, mas, acima de tudo, o envolvimento histórico
do homem com o pecado. Nós nos movemos num mundo de eventos. Somente por essa razão
estamos justificados em olhar para frente, para os “Últimos Acontecimentos”.
O curso da história foi radicalmente desafiado por Deus – e num ponto crucial. De acordo com
Brunner, desde a vinda de Cristo, o próprio tempo se carregou, para os fiéis, com uma qualidade
totalmente nova, com uma “diversa e desconhecida qualidade de decisão”. Desde então, os fiéis são
confrontados com uma alternativa definitiva, confrontados agora, nesse “tempo histórico”. A escolha
é radical, entre os céus e o inferno, qualquer momento da história pode se tornar decisivo – para
aqueles que estão encarregados de tomar decisões, através do desafio e da revelação de Cristo.
Nesse sentido, de acordo com Brunner, “o tempo terrestre, para a fé, está carregado com uma
tensão de eternidade”. O homem agora está inescapavelmente chamado a tomar decisões, desde
que Deus manifestou Sua própria decisão, em Cristo, e em Sua Cruz e Sua Ressurreição. Significa
isso que “decisões eternas” – vale dizer, decisões “para a eternidade” – devam ser tomadas nesse
“tempo histórico”? Pela fé em Jesus Cristo, o Mediador, podemos, desde já, “participar” da
eternidade. Desde Cristo, os fiéis já habitam como que em diferentes dimensões, tanto dentro quanto
fora do tempo “ordinário[2]”. É como se o tempo tivesse sido “polarizado” pelo Advento de Cristo.
Assim, ao que parece, o tempo agora está relacionado com a eternidade, ou seja, com Deus, de
uma maneira dupla. Por um lado, o tempo está sempre relacionado intrinsecamente com o Deus
eterno, seu Criador: Deus concede o tempo. Por outro lado, o tempo, nesses últimos dias, foi
radicalmente contestado pela intervenção direta e imediata de Deus, na pessoa de Jesus Cristo.
Como o próprio Brunner diz, “a temporalidade, a existência no tempo, ganha um novo caráter
através de sua relação com esse evento, Jesus Cristo, o eph hápax[3]da história, a qualidade “de
uma vez por todas” de Sua Cruz e Ressurreição, e ela é remodelada de uma maneira paradoxal que
é ininteligível, se guiada apenas pela razão”.

Buscamos expor o ponto crucial da exposição de Brunner. Sua interpretação do destino humano e
estritamente Cristológica e Cristocêntrica. Somente a fé em Cristo dá sentido à existência humana.
Esse é seu ponto forte. Mas existe um cunho docético[4] ambíguo nessa Cristologia, e isso afeta
gravemente seu entendimento da história. Estranhamente, o próprio Brunner dirige o mesmo ataque
à Cristologia tradicional da Igreja, afirmando que ela jamais deu suficiente atenção ao Jesus
histórico. Trata-se de um ataque sumário que não podemos analisar e “refutar” nesse momento. O
que é relevante para nosso propósito atual é que a Cristologia de Brunner é obviamente mais
docética do que a da tradição Católica. A atenção de Brunner ao Jesus histórico é fortemente
ambígua. Segundo ele, Cristo é uma personalidade histórica apenas enquanto homem. Quando Ele
“Se revela” – ou seja, quando Ele revela Sua Divindade àqueles que possuíam os olhos da fé – Ele
deixa por completo de ser uma personalidade histórica. De fato, a humanidade de Cristo, segundo
Brunner, não passa de um “disfarce”. O verdadeiro “self” de Cristo é divino. Para a fé, Cristo descarta
Seu disfarce, Seu “incógnito”, para usarmos a expressão de Brunner. “Quando ele Se revela, a
história desaparece, e inicia-se o Reino de Deus. E quando Ele Se revela, Ele já não é uma
personalidade histórica, mas o Filho de Deus, de eternidade a eternidade”. É de fato uma linguagem
surpreendente.

Na verdade, a humanidade de Cristo é apenas uma maneira de entrar na história, ou melhor, de


aparecer na história. A relação de Deus com a história, e com a realidade humana, é como se fosse
apenas tangencial, mesmo no mistério crucial da Encarnação. De fato, a humanidade de Cristo
interessa a Brunner apenas como meio da revelação, da auto-revelação divina. Com efeito, para
Brunner, em Cristo Deus encontrou uma base firme na humanidade. Mas isso não significa nada
além de que Deus agora desafiou o homem em seu próprio elemento humano, em seu próprio
terreno e grau humano. Para encontrar o home, Deus teve que descer ao próprio nível humano. Isso
pode ser entendido de uma maneira estritamente ortodoxa. De fato, esse era o pensamento favorito
dos antigos Padres. Mas Brunner nega qualquer interpenetração real dos aspectos divino e humano
na pessoa de Cristo. De fato, eles não passam de “aspectos”. Dois elementos se encontram, mas
não numa unidade real. O Cristo da fé é apenas divino, ainda que num disfarce humano. Sua
humanidade é apenas um meio de entrar na história, ou antes, de aparecer na história. Será a
história não mais do que uma tela na qual a divina “eternidade” é projetada? Deus teve que assumir
as vestes de um mendigo, pois de outro modo ele seria incapaz de encontrar o homem. Nunca
houve uma verdadeira “assunção” da realidade humana na experiência pessoal do Encarnado. O
papel da humanidade de Cristo teria sido unicamente instrumental, um disfarce. Basicamente, trata-
se de um completo docetismo, ainda que se possa dar muita atenção ao “Jesus histórico”. Antes de
tudo, o “Jesus histórico” não pertence, nessa interpretação, ao domínio da fé.

As verdadeiras decisões não são tomadas no plano da história, diz Brunner. “Pois essa é a esfera na
qual o homem veste sua máscara. Por causa de nossa “mascarada”, vale dizer, por causa de nossa
pecaminosa falsidade, também Cristo, se é que posso me expressar assim, teve que vestir uma
máscara; nisso consistiu Seu Incógnito”. Agora, sob a ação da fé, o homem retira sua máscara.
Então, em resposta, também Cristo tira Sua máscara, Seu disfarce humano, e aparece em Sua
glória. A fé, segundo Brunner, destrói a história. A fé constitui, em si, uma espécie de ato “meta-
histórico”, que transcende a história, e até mesmo a dispensa. Brunner enfatiza o caráter único da
revelação redentora de Deus em Cristo. Para o homem, isso significa que o desafio é radical e
definitivo. Ao homem é dada uma única oportunidade, ou ocasião, para tomar sua decisão, para
superar sua própria humanidade limitada, até mesmo sua temporalidade intrínseca – por um ato de
fé que o leva além da história, ainda que apenas em esperança e promessa, até que o kairos[5] final
chegue. Mas será a história humana definitivamente não mais do que uma mascarada? De acordo
com a enfática declaração de Brunner, a temporalidade em si não é um pecado. Por que, então,
deveria a divina revelação em Cristo descartar a história? Por que haveria a história de ser um
obstáculo para a auto-revelação de Deus, um obstáculo a ser radicalmente removido?

Em última instância, a mudança radical na história – a Nova Era, inaugurada com o Advento de
Cristo – parece consistir apenas numa oportunidade nova e sem precedentes de tomar um partido.
Deus, na realidade, permanece tão oculto na história quanto antes ou, provavelmente, até mais do
que antes, uma vez que a incomensurabilidade definitiva da revelação divina, em relação à
mascarada humana, se tornou auto evidente e visível. Deus só pode se aproximar do homem se for
disfarçado. O verdadeiro curso da história não se alterou, seja pela intervenção de Deus, seja ela
opção do homem. Fora da decisão da fé a história é vazia e sempre pecaminosa. A textura íntima da
verdadeira existência histórica não foi afetada pela revelação redentora. Não obstante, foi dado um
aviso: o Senhor voltará. Então Ele virá como Juiz, não como Redentor, embora o Julgamento deva
realmente realizar e estabilizar a redenção.

Pela fé podemos agora discernir uma “tensão escatológica” no próprio curso da história, embora seja
inútil e vão entregar-se a qualquer espécie de cálculos apocalípticos. Essa tensão parece existir
apenas no nível humano. O intermezzo escatológico é a época das decisões – a serem tomadas
pelo homem, pois a decisão de Deus já foi tomada desde sempre.

Como um todo, a história Cristã, de acordo com Brunner, foi um doloroso fracasso, uma história de
decadência e desentendimento. Esse é um esquema antigo, firmemente estabelecido pela
historiografia Protestante, pelo menos desde Gottfried Arnold. Primitiva comunidade Cristã,
a ecclesia, foi uma genuína comunidade Messiânica, “a portadora da nova vida da eternidade e do
poder do mundo divino”, conforme coloca Brunner. Mas essa ecclesia primitiva não sobreviveu, pelo
menos não enquanto entidade histórica, como um fator histórico. Brunner reconhece alguns
“adventos” parciais e provisórios do Reino de Deus ao longo da história. Mas todos esses “adventos”
são esporádicos. Onde está a fé, aí está a ecclesia, ou o Reino. Mas ele se encontra oculto na
“mascarada” permanente da história. Finalmente, a marcha da história é uma espécie de campo de
testes, onde cada homem é desafiado e suas respostas são tentadas e testadas. Mas será que a
“história salvífica” ainda prossegue? Estará Deus ainda ativo na história, depois do Primeiro Advento
– ou terá sido a história deixada de lado, depois da grande intervenção de Cristo, relegada ao
homem apenas, com essa condição escatológica de que finalmente Cristo voltará?

Agora, obviamente a história não passa de um estágio provisório e passageiro no destino do homem.
O homem é chamado à “eternidade”, não à “história”. É por isso que a “história” deve chegar a um
termo, a um fim. E, de fato, a história é também um estágio de crescimento – o trigo e o joio crescem
juntos, e sua separação definitiva é adiada – até o dia da colheita. O joio cresce, rápida e
selvagemente. Mas o trigo também cresce. De outra forma, não haveria oportunidade para nenhuma
colheita, exceto a do joio. De fato, a história amadurece não apenas para o julgamento, mas também
para a consumação. Mais do que isso, Cristo continua ativo na história. Brunner desconsidera, ou
ignora, esse componente da história Cristã. Em sua visão, a história Cristã está como que
“atomizada”. Ela se reduz a uma série de atos existenciais, praticados pelo homem, e,
estranhamente, apenas os atos negativos, os atos de rebelião e de resistência, são integrados e
solidarizados. Mas, de fato, a ecclesia não é simplesmente um agregado de atos esporádicos, mas
um “corpo”, o Corpo de Cristo. Cristo está presente na ecclesia não apenas como um objeto de fé e
reconhecimento, mas como sua Cabeça. Ele está realmente reinando e governando. Isso assegura a
continuidade e a identidade da Igreja através dos séculos. Na concepção de Brunner Cristo parece
estar a parte da história, ou acima dela. Estará Ele realmente presente agora, no presente, sem ser
por intermédio da memória do passado e da esperança no futuro, e verdadeiramente nos atos “meta-
históricos” da fé?

A criação, de acordo com Brunner, tem seu próprio modo de existência. Mas ela não passa de um
“meio” da revelação divina. Ela deve ser, digamos, transparente para a luz e a glória divinas. E,
estranhamente, isso nos lembra da gnose Platônica de Orígenes e seus seguidores. Toda a história
é reduzida à dialética do eterno e do temporal. O termo utilizado por Brunner é “parabólica”.

III. A noção de “fim”

A noção de “fim” – de um fim definitivo – é uma noção paradoxal. Um “fim” tanto pertence a uma
série como a encerra. Ele é tanto “um evento” quanto “o fim de todos os eventos”. Ele pertence à
dimensão da história, ao mesmo tempo em que rejeita toda dimensão. A noção de “começo” –
primeiro e radical – também é uma noção paradoxal. Como disse São Basílio, “o começo do tempo
ainda não é o tempo, mas precisamente o começo deste[6]”. Ambos são “um instante”, e também
mais do que isso.

Do futuro, só podemos falar em imagens e parábolas. Essa era a linguagem da Escritura. Essa
imageria não pode ser adequadamente decifrada agora, e não deve ser tomada literalmente. Mas de
modo algum ela pode ou deve ser “desmistificada”. Brunner é formal a esse respeito. A esperada
Parúsia de Cristo deve ser vista como “um evento”. O caráter desse evento é inimaginável.
Dificilmente poderemos encontrar símbolos e imagens melhores do que os que são empregados na
Bíblia. “Qualquer que seja a forma que tome esse evento, tudo se resume ao fato de que ele
acontecerá”. O kerygma[7] Cristão é decisivo a esse respeito: “a síntese redentora definitiva terá o
caráter de um evento”. Em outras palavras, a Parúsia pertence à série de “acontecimentos”
históricos, que ela deverá concluir e fechar. “Uma fé Cristã sem a expectativa da Parúsia é como
uma escada que não leva a lugar algum e que termina no vazio”. Mas num aspecto, de qualquer
modo, podemos ir além das imagens: é Cristo que virá. A Parúsia é um “retorno”, assim como é a
novidade definitiva. Os “Últimos Eventos” estão centrados na pessoa de Cristo.
O fim virá “subitamente”. Mesmo assim, num certo sentido, ele terá sido preparado dentro da
história. Como diz Brunner, “a história do homem revela radicalmente traços apocalípticos”. Nesse
ponto ele se entrega a especulações metafísicas. “O balanço do pêndulo se torna cada vez mais
rápido”. Essa aceleração do tempo da vida humana pode atingir um ponto além do qual não é
possível ir. A história pode simplesmente explodir de repente. Por outro lado, num nível mais
profundo, as desarmonias da existência humana estão crescendo firmemente: existe uma “brecha
crescente na consciência humana”. É claro que essas sugestões não têm mais do que um valor
subsidiário e hipotético. Brunner tenta transferir o conceito paradoxal de fim para o pensamento
moderno. Mas isso é também característico de sua própria visão da realidade humana. A história
está pronta para explodir, ela está oprimida e desgastada por tensões não resolvidas. Há alguns
anos um filósofo religioso Russo, Vladimir Ern, sugeriu que a história humana é uma espécie de
“progresso catastrófico”, uma progressão retilínea em direção a um fim. Porém, esse final deverá vir
do alto, na Parúsia. Concordantemente, tratar-se-á de algo mais do que apenas uma “catástrofe”, ou
um “julgamento” imanente ou interno – uma revelação das contradições e tensões inerentes. Ele
deverá ser um julgamento absoluto, o Juízo de Deus.

Mas o que é um Julgamento? Ele não é menos um “evento” do que a Parúsia. Trata-se de um
encontro definitivo entre a humanidade pecadora e o Deus Santo. Em primeiro lugar, será uma
revelação ou uma manifestação do verdadeiro estado de cada homem e da humanidade como um
todo. Nada ficará escondido. Assim o Julgamento encerrará esse estado de confusão e de
ambiguidade, de inconclusão (como coloca Brunner), que caracterizou todo o estágio histórico do
destino humano. Isso implica uma “discriminação” derradeira e final – à luz de Cristo. Será um
desafio final e definitivo. A vontade de Deus finalmente será cumprida. A vontade de Deus será
definitivamente imposta. De outra forma, na frase de Brunner, “todo discurso sobre responsabilidade
não passa de conversa vã”. De fato, ao homem foi concedida a liberdade, mas não se trata de uma
liberdade de indiferença. A liberdade humana é essencialmente uma liberdade de resposta – a
liberdade de aceitar a vontade de Deus. A “liberdade pura” só pode ser professada por ateus. “Ao
homem foi confiado, do homem se espera, meramente um eco, um cumprimento subsequente de
uma decisão que Deus previamente tomou por ele e para ele”. Não existe senão uma opção justa
para o homem – obedecer; não existe um dilema real. O propósito e a finalidade do homem foram
fixados por Deus.

Tudo isso é perfeitamente verdadeiro. Mas, precisamente nesse ponto, surge uma questão
acabrunhadora. Irão todos os homens aceitar, no Juízo Final, a vontade de Deus? Existirá espaço
para alguma forma de resistência radical e irreversível? Poderá a revolta do homem estender-se
para além do Julgamento? Poderá algum ser criado, dotado de liberdade, persistir num
distanciamento de Deus, persistentemente praticado desde antes, ou seja: poderá ele persistir em
sua própria vontade? Poderá esse ser ainda “existir” – num estado de revolta e oposição, contra a
vontade salvífica de Deus, fora do propósito salvífico de Deus? Será possível ao homem perseverar
numa rebelião, apesar do chamado e do desafio de Deus? Será a imagem Escriturária da separação
– entre ovelhas e bodes – a última palavra sobre o destino derradeiro do homem? Qual será o status
definitivo da “liberdade” criada? O que significa que a vontade de Deus deverá prevalecer
finalmente? Essas questões são embaraçosas e intrigantes. Mas elas não podem ser evitadas. Elas
não são ditadas apenas por uma curiosidade especulativa. Trata-se de questões “existenciais”. De
fato, o Juízo Final é um mistério terrível, que não pode nem deve ser racionalizado, que está além do
conhecimento e do entendimento. Trata-se de um mistério de nossa própria existência, do qual não
podemos escapar, ainda que não possamos compreendê-lo ou entendê-lo intelectualmente.
Brunner rejeita enfaticamente o “terrível teologúmeno[8]” da dupla predestinação como sendo
incompatível com o pensamento da Bíblia. Não existe uma discriminação eterna no desígnio criador
de Deus. Deus chama todos os homens à salvação, e foi com esse propósito que Ele lhes deu
existência. A salvação é o único proposito de Deus. Mas o paradoxo crucial permanece sem solução.
O problema crucial é estabelecer em que medida esse propósito único de Deus será realmente
realizado, em toda sua plenitude e extensão, tal como é admitido e postulado na teoria da salvação
universal, para a qual se pode alegar a evidência Escriturária. Brunner rejeita a doutrina
da Apokatastasis como sendo uma “perigosa heresia”. Ela estaria errada enquanto doutrina. Ela
implica uma segurança errônea para o homem – todos os caminhos levam, em definitivo, ao mesmo
fim, e assim não existe uma tensão real, um perigo real. Ainda assim, Brunner admite que a doutrina
da graça remissória, e da justificação pela fé , conduz logicamente ao conceito da redenção
universal; pode a vontade do Deus onipotente encontrar resistência, ou, por assim dizer, ser
revertida pela obstinação de criaturas frágeis? O paradoxo pode ser resolvido apenas dialeticamente
– na fé. Não podemos conhecer a Deus teoricamente. É preciso acreditar em Seu amor.

É típico que Brunner discuta todo o problema exclusivamente da perspectiva da vontade divina. Por
essa razão ele perde o verdadeiro ponto do paradoxo. Ele simplesmente ignora o aspecto humano
do problema. De fato, a “danação eterna” não é infligida por um “Deus raivoso”. Deus não é o autor
do Inferno. A “danação” é um castigo auto infligido, a consequência e a implicação da oposição
rebelde a Deus e à Sua vontade. Brunner admite que existe uma possibilidade real de danação e de
perdição. É perigoso e errôneo ignorar essa possibilidade real. Mas podemos esperar que ela nunca
se realize. Porém, a própria esperança deve ser realista e sóbria. Estamos diante da alternativa: ou,
no Juízo Final, os infiéis e os pecadores renitentes serão finalmente movidos pelo desafio divino, e
ser converterão “livremente(essa é a hipótese de São Gregório de Nissa); ou sua obstinação será
simplesmente sobrepujada pela Onipotência divina, e eles serão salvos pelo constrangimento da
divina misericórdia e da vontade divina – sem seu consentimento livre e consciente. A segunda
solução implica contradição, a menos que entendamos a “salvação” de uma maneira formal e
forense. De fato. Criminosos podem ser exonerados numa corte de justiça, ainda que não se
arrependam, e que perseverem em sua perversão. Eles apenas escapam à punição. Mas não
podemos interpretar o Juízo Final dessa maneira. Em qualquer caso, a “salvação” envolve a
conversão, envolve um ato de fé. Ela não pode ser imposta a ninguém. Será então a primeira
solução mais convincente? Claro, a possibilidade de uma “conversão” tardia – na “décima primeira
hora, e até mais tarde – não pode ser teoricamente descartada, e o impacto do amor divino é infinito.
Mas essa oportunidade, ou possibilidade de conversão, antes do Tribunal de Cristo, estabelecido em
glória, não pode ser discutido in abstracto, genericamente. Antes de tudo, a questão da salvação,
assim como a decisão da fé, é um problema pessoal, que só pode ser colocado e encarado no
contexto de uma existência concreta e individual. As pessoas são salvas, ou perecem. E cada caso
pessoal deve ser estudado individualmente. A principal fraqueza do esquema de Brunner está em
que ele sempre fala em termos gerais. Ele fala sempre da condição humana, e nunca de pessoas
vivas.

O problema do homem, para Brunner, é essencialmente o problema da condição de pecado. Ele


teme toda e qualquer categoria “ôntica”. De fato, o homem é pecador, mas ele é, antes de tudo,
homem. É verdade, também, que a verdadeira estrutura da hominidade só foi exibida em Cristo, que
era mais do que homem e ao mesmo tempo não era homem. Mas em Cristo nos foi concedido não
apenas a remissão, mas ainda o poder de sermos, ou nos tornarmos, filhos de Deus, vale dizer: nos
tornarmos aquilo que deveríamos ser. Claro, Brunner admite que os fiéis podem estar em comunhão
com Deus desde já, na vida presente. Mas um dia chega a morte. Poderá a fé, ou estar a pessoa –
verdadeiramente – em Cristo, fazer alguma diferença nesse momento? Será a comunhão com
Cristo, estabelecida pela fé (e, de fato, pelos sacramentos), ser rompida pela morte? Será verdadeiro
que a vida humana seja uma “vida para a morte”? a morte física é o limite da vida física. Mas
Brunner fala da morte da pessoa humana, do “Eu”. Ele afirma que se trata de um mistério, de um
mistério impenetrável, do qual o homem racional é incapaz de saber seja lá o que for. Mas, de fato, o
conceito dessa “morte pessoal” não passa de uma asserção metafísica, derivada de certos
pressupostos filosóficos, e jamais um datum de nenhuma experiência verdadeira ou possível,
incluindo a experiência da fé. A “morte” da pessoa é apenas o afastamento de Deus, mas, mesmo
nesse caso, ela não implica aniquilação. Num sentido, a morte significa a desintegração da
personalidade humana, porque o homem não foi designado para ser imaterial. A morte corporal
reduz a integridade da pessoa humana. O homem morre, mas ainda assim sobrevive – na
expectativa do fim geral. A antiga doutrina da Comunhão dos Santos aponta para a vitória de Cristo:
Nele, através da fé (e dos sacramentos), mesmo os mortos estão vivos, e partilham – por
antecipação, mas realmente – da vida eterna. A Communio Sanctorum é um tópico escatológico
importante. Brunner simplesmente ignora tudo isso – certamente, não por acidente, mas de modo
consistente. Ele fala da condição da morte, não de casos pessoais. O conceito de uma alma imortal
pode ser uma adição Platônica, mas a noção de “pessoa indestrutível” é parte integral do Evangelho.
De fato, somente nesse caso existe espaço para um Julgamento universal ou geral, no qual todas as
pessoas históricas, de todas as eras e todas as nações, deverão aparecer – não como uma massa
confusa de frágeis e inúteis pecadores, mas como uma congregação de pessoas interessadas e
responsáveis, cada qual com seu caráter distinto, congênito e adquirido. A morte é uma catástrofe.
Mas as pessoas sobreviverão, e aqueles em Cristo já estão vivas – mesmo no estado de morte. Os
fiéis não apenas esperam pela vida que virá, mas estão desde já vivos, embora esperem todos pela
Ressurreição. Brunner, naturalmente, está completamente ciente disso. Em suas próprias palavras,
aqueles que creem “não morrerão para o nada, mas em Cristo”. Quererá isso dizer que os que não
creem “morrerão para o nada”? E o que é o “nada”: as “trevas exteriores” (que é provavelmente o
caso), ou o verdadeiro “não-ser”?

É também verdade que essa integridade total da existência pessoal, distorcida e reduzida pela
morte, será restaurada na Ressurreição geral. Brunner enfatiza o caráter pessoal da Ressurreição.
“A fé do Novo Testamento não conhece outro tipo de vida eterna, senão a das pessoas individuais”.
A carne não irá renascer, mas alguma forma de corporeidade está implicada na Ressurreição. Tudo
irá renascer, porque Cristo ressuscitou. Mas a Ressurreição é, em primeiro lugar, uma Ressurreição
para a vida em Cristo, e uma Ressurreição para o Juízo. Brunner discute a Ressurreição geral no
contexto da fé, do perdão e da vida. Mas, e quanto ao status daqueles que não creem, que não
pediram pelo perdão e que jamais conheceram o amor redentor de Cristo, ou que provavelmente se
obstinaram em denunciá-lo e rejeitá-lo como sendo um mito, ou uma fraude, um engodo, ou como
uma ofensa à personalidade autônoma?

Isso nos devolve ao paradoxo do Julgamento. Estranhamente, nesse ponto Brunner fala mais como
filosofo do que como teólogo, precisamente porque ele tenta evitar a inquirição metafísica, e todos os
problemas que foram suprimidos reaparecem disfarçados. Brunner coloca a questão dessa maneira:
como podemos conciliar a Onipotência divina e a liberdade humana, ou – num nível mais profundo –
a santidade divina (ou justiça) e a misericórdia e o amor divinos? Trata-se de um problema
estritamente metafísico, mesmo que seja discutido numa base escriturária. Por outro lado, o
verdadeiro problema teológico é o seguinte: qual será o status existencial dos infiéis – na visão de
Deus e na perspectiva do destino humano? O problema real é existencial – o status e o destino das
pessoas individuais. Para Brunner, o problema fica obscurecido por sua escolha inicial – sua
classificação abrangente de todos os homens como pecadores, sem nenhuma discriminação real,
ôntica ou existencial, entre os justos e os ímpios. De fato, todos estarão sob Julgamento, é óbvio –
mas não no mesmo sentido. O próprio Brunner distingue entre os que caíram em tentação e os que
escolheram tentar os outros e seduzi-los. Ele conhece a perversão deliberada. Mas ele não pergunta
como uma pessoa humana individual pode ser afetada, em sua estrutura interior e íntima, por uma
perversão deliberada e obstinada, pela apostasia ou pelo “amor ao mal”. Existe uma diferença real
entre fraqueza e impiedade, entre fragilidade e recusa de Deus. Poderão todos os pecados ser
perdoados, mesmo os não confessos e os impenitentes? Não será o perdão recebido apenas com
humildade e fé? Em outras palavras, será a “condenação” apenas um “castigo”, no sentido forense,
ou algum tipo de “recompensa” negativa? Ou será simplesmente uma manifestação daquilo que é
oculto – ou antes, quase exposto e visível – naqueles que escolheram, por um abuso da “liberdade”,
o caminho largo que conduz à Geena?

Não existe um capítulo sobre o Inferno em nenhum dos livros de Brunner. Mas o Inferno não é uma
mera figura de linguagem “mítica”. Tampouco se trata de uma perspectiva sombria, a qual –
esperamos – pode jamais realizar-se. Horrible dictu – trata-se de uma realidade, para a muitos seres
humanos estão desde já destinados, por sua própria vontade, ou, no mínimo, por sua própria
escolha e decisão, o que pode significar, em última instância, escravidão, mas que é normalmente
confundida com liberdade. O “Inferno” é um estado interior, não um “lugar”. É o estado de
desintegração pessoal, que é confundido como uma autoafirmação – não sem razão, porque essa
desintegração está fundamentada no orgulho. É um estado de auto confinamento, de isolamento e
de alienação, de orgulhosa solidão. O estado de pecado é em si “infernal”, ainda que possa ser, por
uma ilusão da imaginação egoísta, confundido com o “Paraíso”. Por esse motivo os pecadores
escolhem o “pecado”, a atitude orgulhosa, a atitude de Prometeu. É possível fazer do Inferno um
“ideal”, e persegui-lo, deliberada e persistentemente. “Onde quer que eu esteja, aí está minha
vontade livre, e onde está minha livre vontade, o inferno absoluto e eterno está em meu poder[9]”.
De fato, em definitivo, ele não passa de uma ilusão, uma aberração, uma violência, um erro. Mas o
aguilhão do pecado está precisamente na negação da realidade divinamente instituída, na tentativa
de estabelecer uma outra ordem ou regime, que consiste, em contraste com a verdadeira ordem
divina, numa desordem radical, mas para a qual é possível dar, numa exaltação egoística, a
preferência definitiva. Mas o pecado foi destruído e ab-rogado – não podemos dizer que o pecado
tenha sido redimido, pois apenas pessoas podem ser redimidas. Mas não é o bastante reconhecer,
pela fé, o fato da divina redenção – é preciso nascer outra vez. Toda a personalidade deve ser limpa
e curada. O perdão deve ser aceito e alcançado em liberdade. Ele não pode ser imputado – ele só
existe num ato de fé e gratidão, num ato de amor. Paradoxalmente, ninguém pode ser salvo apenas
pelo amor divino, sem que esse seja correspondido por um amor agradecido da pessoa humana. De
fato, existe sempre a possibilidade do “arrependimento” e da “conversão” no decurso dessa vida
terrestre e histórica. Podemos admitir que essa possibilidade continua depois da morte? Brunner
dificilmente aceitaria a ideia de um “Purgatório”. Mas, mesmo no conceito de Purgatório não está
implicada a chance de uma conversão radical. O Purgatório inclui apenas os fiéis, aqueles com boas
intenções, devotados a Cristo, mas deficientes quanto ao seu crescimento e aquisições. A
personalidade humana é construída e moldada nessa vida – no mínimo, ela é orientada nessa vida.
A dificuldade da salvação universal não está do lado divino – com efeito, Deus quer que todos os
homens “se salvem”, não tanto, provavelmente, para que Sua vontade se cumpra e para que Sua
Divindade seja assegurada, mas para que a existência humana possa ser completa e abençoada.
Mas, do lado da criatura, dificuldades insuperáveis podem ser levantadas. Antes de tudo, será a
“resistência derradeira” um paradoxo maior, uma ofensa maior do que qualquer resistência ou revolta
que realmente perverta a ordem total da Criação, que desabilite o ato da redenção? Somente se nos
comprometermos com uma visão Docética da história, e se negarmos a possibilidade das decisões
definitivas na história, nessa vida, sob o pretexto de que ela é temporal, podemos escapar do
paradoxo da resistência última.

São Gregório de Nissa antecipou uma espécie de conversão universal das almas no pós-vida,
quando a Verdade de Deus se revelar e se manifestar com esmagadora evidência. Justamente
nesse ponto a limitação do pensamento Helênico se torna óbvio. A evidência parece ser para ele o
motivo decisivo da vontade, como se o “pecado” fosse meramente uma ignorância. O pensamento
Helênico teve que passar por uma longa e difícil experiência de ascetismo, de autoexame e de
autocontrole ascético, para poder superar sua ingenuidade e ilusão intelectual e descobrir o abismo
escuro da alma decaída. Somente em São Máximo o Confessor, depois de alguns séculos de
preparação ascética, encontramos uma interpretação nova e mais profunda da Apokatastasis. Com
efeito, a ordem da Criação será inteiramente restaurada nos últimos dias. Mas as almas mortas
continuarão insensíveis à própria revelação da Luz. A Luz Divina brilhará para todos, mas aqueles
que antes escolheram a escuridão continuarão indispostos e incapazes de desfrutar a bênção
eterna. Eles permanecerão apegados à escuridão noturna do egoísmo. Eles serão incapazes
exatamente de desfrutar, eles permanecerão “de lado” – porque a união com Deus, que é a essência
da salvação, pressupõe e requer a determinação da vontade. A vontade humana é irracional e suas
motivações não podem ser racionalizadas. Mesmo a “evidência” pode falhar em impressioná-la e
movê-la.

A escatologia é o domínio das antinomias. Essas antinomias estão enraizadas e fundamentadas no


mistério básico da Criação. Como pode algo existir para além de Deus, se Deus e a plenitude do
Ser? Somos tentados a resolver o paradoxo, ou antes a escapar dele, alegando os motivos da
Criação, às vezes a tal ponto e de tal maneira que chegamos a comprometer a absolutividade e a
soberania de Deus. Deus criou com perfeita liberdade, ex mera liberalitate, ou seja, sem nenhuma
“razão suficiente”. A criação é o dom gratuito de um amor insondável. Mais do que isso, ao homem,
na Criação, foi concedida essa autoridade misteriosa e enigmática da livre decisão, dentro da qual o
mais enigmático não é a possibilidade de falha ou de resistência, mas a própria possibilidade do
assentimento. Não é a vontade de Deus de tal dimensão que ela tem que ser simplesmente
obedecida, sem necessidade de nenhum verdadeiro – vale dizer, livre – assentimento responsável?
Na realidade, o mistério está na liberdade criada. Por que teria ela sido colocada num mundo criado
e governado por Deus, por Sua infinita sabedoria e amor? Para que seja real, a resposta humana
deve ser mais do que uma mera ressonância. Ela deve constituir um ato pessoal, um compromisso
interior. Em qualquer caso, a forma da vida humana – e agora devemos talvez acrescentar, a forma
e o destino do cosmo – depende da sinergia ou do conflito entre duas vontades, a divina e a criada.
Muitas coisas acontecem que Deus abomina, no mundo que é obra Sua e objeto Seu.
Estranhamente, Deus respeita a liberdade humana, conforme disse uma vez Santo Irineu, embora,
de fato, a manifestação mais visível dessa liberdade seja a revolta e a desordem. Estamos nós
autorizados a esperar que finalmente a desobediência humana será desconsiderada e
“desrespeitada” por Deus, e que Sua Santa Vontade seja imposta, indiferentemente de qualquer
assentimento? Ou isso tornaria a história humana uma “mascarada” temível? Qual será o sentido
dessa terrível história de pecado, de perversão, de rebelião, se finalmente tudo for apagado e
reconciliado pelo exercício da Onipotência divina?

Realmente, a existência do Inferno, ou seja, a oposição radical, implica uma espécie de “insucesso”
parcial do desígnio criador. De fato, tratava-se mais do q eu de um desígnio, de um plano, de um
padrão. Foi o chamado à existência, ao próprio “ser” das pessoas vivas. Falamos às vezes do “risco
divino”. Provavelmente essa é uma palavra melhor do que kenosis. Trata-se, de fato, de um mistério,
que não pode ser racionalizado – é o mistério primordial da existência criada.

Brunner leva a possibilidade do Inferno muito a sério. Não existe segurança de uma “salvação
universal”, embora essa seja, abstratamente falando, ainda possível – para o Amor onipotente de
Deus. Mas Brunner espera ainda que não haja Inferno. Mas o problema é que o Inferno existe. Sua
existência não depende de uma decisão divina. Deus jamais enviou alguém para o Inferno. O Inferno
foi criado pelas próprias criaturas. Ele é uma criação humana, de fora, podemos dizer, da “ordem da
criação”.

O Juízo Final permanece um mistério.

[1] “Radical dehistorization”.


[2] “Hoc universum tempus, sive saeculum, in quo cedunt morientes sucedunque nascentes” – “Esse
tempo universal, ou século, no qual os que morrem dão lugar aos que nascem” (Sto. Agostinho, Civ.
Dei, XV.I)
[3] Efésios, 7: 27.
[4] Docetismo é o nome dado a uma doutrina cristã do século II, considerada herética pela Igreja
primitiva. Antecedente do gnosticismo, acreditavam que o corpo de Jesus Cristo era uma ilusão, e
que sua crucificação teria sido apenas aparente.
[5] Palavra de origem grega, que significa "momento certo" ou "oportuno"..
[6] Hexaem. 1.6.
[7] Palavra usada no N. T. com o significado de mensagem, pregação, anúncio ou proclamação.
[8] Proposição teológica que não pode ser considerada imediatamente como doutrina oficial da
Igreja, como proposição dogmática que obriga a fé, sendo que, porém, é antes de tudo resultado de
expressão do esforço por entender a fé buscando conexões entre as proposições obrigatórias de fé
(analogia da fé) e confrontando doutrinas dogmáticas com a experiência e o saber (profanos) de um
homem (o de um tempo determinado).
[9] Marcel Jouhandeau, Algèbre des valeurs morales.

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