Cultura Guarani Ñandewa
Cultura Guarani Ñandewa
Cultura Guarani Ñandewa
Incio
Agenda
Tese
Letras de msicas
Tese
Aqui voc tem o texto completo da Tese de Joo Jos de Flix Pereira.
Ela no apresenta a mesma formatao que o arquivo em PDF cujo o link se
encontra a ao lado e que est dentro das normas da ABNT, isso acontece
por limitaes de diagrao do prprio blogger.
MBORAYU,
O ESPRITO QUE NOS UNE:
MBORAYU,
O ESPRITO QUE NOS UNE:
UM CONCEITO DA ESPIRITUALIDADE GUARANI
MBORAYU,
O ESPRITO QUE NOS UNE:
UM CONCEITO DA ESPIRITUALIDADE GUARANI
BANCA EXAMINADORA
Lieve Troch Profa. Dra:_____________________
AGRADECIMENTOS
Xe aendu mborayu
amandu mborendy
ande eem porete
Xe amombeu emi guaxu
Haewete opawaer
Kowae ipor ande Reko.
Sinto o esprito que une meu ser natureza de todos os mundos.
Celebro o encontro com a polaridade que propicia surgir a luz da manh.
Canto contemplando o grande mistrio:
Agradecido pela incompletude que nos impulsiona para buscar o que nos
falta, desfrutando esta maravilha que a vida em movimento (dessa
maneira).
RESUMO
Palavras chaves: mborayu (o esprito que nos une); ande reko (maneira de
ser Guarani); aywu (a palavra); eem (termo-idia); amandu (a natureza
de todos os mundos).
ABSTRACT
Keywords: mborayu (the spirit that unites us); ande reko (guaran way of
being); aywu (the word); eem (term idea); amandu (the nature of all
words).
ABSTRACT
Palabras llaves: mborayu (el espritu que nos une); ande reko (manera de
ser Guaran); aywu (la palabra); eem (trmino /idea); amandu (la
naturaleza de todos los mundos).
SUMRIO
INTRODUO ....................................................................................... 12
CAPTULO 1: O POVO E A RELIGIO GUARANI....................... 17
1. 1. 1 O Povo Guarani, Como Definido, na Literatura ........................... 18
1. 1. 2 Os Escritos dos Clrigos................................................................. 23
1. 1. 3 Literatura Revisitada ..................................................................... 26
1. 1. 4 Etno-historia .................................................................................. 39
1. 1. 5 O Povo Guarani na Atualidade ...................................................... 32
1. 2 A RELIGIO GUARANI .............................................................. 41
CAPITULO 2: MITOS FUNDANTES DA RELIGIOSIDADE
GUARANI ............................................................................................... 51
2.1.1 Xume .............................................................................................. 53
2.1.2 O Mito dos Gmeos......................................................................... 56
2.1.3 O Dilvio ........................................................................................ 63
2.1.4 Anh ................................................................................................ 67
2.2 YWYMARHEYM: A TERRA-SEM-MAL ................................ 69
2.2.1 Guata mar: Descaminho ................................................................ 74
2.2.2 Guata Por: O Caminho Sagrado .................................................... 79
2.2.3 Ywyju: O lugar da Luz.................................................................... 81
2.3 MBORAYU HEYM .......................................................................... 84
CAPITULO 3: AYWU: A PALAVRA .................................................. 90
12
INTRODUO
13
14
15
Por outro lado temos o povo andewa Guarani, que hoje possui uma
identidade muito prpria e uma existncia que pede para ser considerada, e
uma voz que pede para ser ouvida. Porque entre os descendentes dos
colonizadores eles so vistos como exticos, e entre os Mbya e outras
parcialidades Guarani que esto mais marginalizadas so vistos como os
que tm obrigao de ajud-los e ao mesmo tempo, como os que no
pertencem ao seu povo. Talvez isso ocorra por ser um povo que se sente
pertencente s comunidades civis dos pases onde nasceram e ao mesmo
tempo se sentem Guarani, sem excluir ambas as pertenas, mas tambm
sem ser exclusivamente pertencentes a uma delas.
por onde tenho passado e vivido, tenho me juntado aos que combatem essa
idia por meio da afirmao da pluralidade do diferente e da rejeio
oposio binria do outro.
Mas, posso dizer, com segurana, partindo do que observamos nos aty, que
o povo andewa Guarani mantm ainda hoje consciente, a concepo
ancestral que os fazem sempre receptivos e cordiais, ante o forasteiro, e
que foi sempre destacada pelos viajantes que cruzaram pelas suas terras
em tempos diferentes; a concepo de que so filhos e filhas da me terra,
de andexyywyret e, portanto, de que esto irmanados com todos os
povos do mundo. Foi nesse tom que se expressaram as vozes dos anderui
e das andexyi, Guarani, que se manifestaram nas narrativas que
apresento principalmente no captulo 3 desta pesquisa, e que talvez seja o
tom original do Mborayu, o esprito que nos une.
16
17
18
Essas primeiras notcias, embora tenham sido dadas por aventureiros que
estavam de passagem, vo trazer informaes sobre aspectos
importantes do modo de ser do povo Guarani que os conhecimentos
posteriores viro confirmar. Assim a carta de Luis Ramirez, de 1528 diz:
Aqui com nosotros est outra generacin que son nuestros amigos, los
cuales se llamam Guaenis por outro nombre Chandris: ests andan
dellamados por esta tierra, y por otras muchas, como corsrios a causa de
ser enemigos de todas estotras naciones... son gente
19
muy trahidora... estos seoream gran parte de la India y confinan con los
que habitan la Sierra. Estos traen mucho metal de oro e plata en muchas
planchas y orejeras con que cortam la montaa para sembrar: estos comen
carne humana. (RAMREZ, 1941, p.98).
Diego Garcia (1530), por sua parte, chama a ateno sobre os recursos
alimentcios dos Guarani. Habitan el las islas otra generacin que se llama
los Guaranies; estos comen carne humana..., tienen e matan mucho
pescado e abates (milho), siembran e cogen calabazas. (GARCIA, 1941,
p. 47-52).
20
21
aptos para a vida. A ltima vez que pude presenciar uma cerimnia de
implantao de tembekwa ocorreu no ano de 2000, na aldeia do Araxai,
em Piraquara, no Paran, prximo Curitiba, porm, era da parcialidade
Guarani Mbya, e pude conferir o quanto dolorosa a implantao dos
tembekwa. A perfurao foi realizada pela esposa do paj Morangaju, a
Natalina (Jaxuka), em cerimnia conduzida pelo Morangaju. Mas logo depois,
passado algum tempo os adolescentes deixaram de usar os seus tembekwa,
e hoje nenhum deles usa o seu tembekwa. Talvez isso ocorra porque muitos
deles estudam em escolas da municipalidade de Piraquara em convvio com
a populao brasileira em geral, e isso os inibe, pela estranheza que
gerada, nos que no esto acostumados com isso, eles se apresentarem
usando um pirce de espinho.
22
23
passado no tem como ser confirmado, pelo menos com relao a essa
cerimnia, e a afirmao de canibalismo feita pelos estranhos ao povo
Guarani, principalmente pelos clrigos, que tinham interesse explcito de
interpretar de forma duvidosa toda manifestao da religiosidade Guarani,
acredito mesmo, que o sensacionalismo desses relatos pode ser
desconsiderado na sua afirmao.
A imagem dos Guarani que se desprende dos escritos de alguns clrigos que
estavam na conquista do Paraguai reproduz, em parte, a prpria viso dos
conquistadores, mas tambm dela se diferencia pela inteno especfica
que esses padres tm sobre os ndios, que a sua converso. Olhado como
ainda no cristo, o modo de ser do Guarani julgado pela distncia e o
contraste com a tica crist vivida ao modo espanhol da poca.
24
O movimento xamnico de Ober, surgido pelos anos 1579, foi contado nos
maus versos do arcediago Martn Barco de Centenera (1602: Canto XX).
Contemporneo dos fatos, o relato fornece elementos de primeira mo para
a etnografia religiosa Guarani, como j salientou Mtraux em suas revisitas
aos textos antigos (1967:23-26).
25
absoluta das vezes visando denegrir a cultura Guarani, e pior de tudo que
at a bem pouco tempo esses documentos eram vistos como fontes que
diziam de fatos ocorridos, eram vistos como fatos histricos e no como
uma reelaborao da realidade, ou seja, textos feitos pelos inimigos, e era
assim que estas coisas eram ensinadas nas escolas para
26
1. 1. 3 Literatura Revisitada
na segunda metade do sculo XIX que ser editada uma importante srie
de peas sobre as origens da colonizao e os primeiros contatos com os
ndios da regio. So as cartas de Luis Ramirez e Diego Garcia (1852; 1888),
a correspondncia de Irala e dos clrigos Martin Gonzalez e Domingo
Martinez, do ano de 1556, nas Cartas de ndias (1877), a Relacin de Irala,
ao des-fundar Buenos Aires em 1541 e o Requerimiento de Cabrera, que
27
Os Guarani continuaram ainda presentes na literatura de carter sciohistrico que se ocupa do processo e formao da nao paraguaia. Um
autor que teve uma influncia considervel na ideologia etnolgica da
poca foi Moiss Bertoni que trabalhou por muitos anos sobre o conceito de
civilizao Guarani. Cardozo ao expor sua obra (1959: 44-46), a considera a
primeira tentativa de constituir uma historiografia guarani, em sentido
prprio. Bertoni, na verdade, representa o primeiro intento de construo
etnolgica Guarani onde convergem histria, geografia, etnografia e
lingstica. Numa palestra de 1913 Bertoni j diz que el comunismo
Guarani, como la organizacin poltica, es completamente democrtico.
Solamente que os guaranes han sabido hacer de esta bella teoria una
realidad. Lo que fue y an es utopia entre los pueblos muy civilizados...
(BERTONI 1914, p.72). A recente biografia de Bertoni escrita por Schrembs
(1985:134) faz ver que essa teoria anuncia o que est dito ou retomado
por Pierre Clastres ao colocar os Guarani como exemplo de Sociedade
contra o Estado, especialmente quando fala de intercmbio e poder:
filosofia da
28
29
1. 1. 4 A Etno-Histria
30
(1954; 13-39, e prancha I), onde se reconstri a histria mais recente dos
Guarani a partir de relatos dos prprios ndios, histria que transmite o
drama do Guarani, estrangeiro na prpria terra, e o sentimento de
Nimuendaj que, sentindo-se e sendo ele mesmo Guarani pelo seu nome,
olha essa histria como sua (MELI, idem).
Hlne Clastres, ao realizar o estudo do profetismo Tupi-Guarani a partir do
mito da Terra-Sem-Mal, traz uma contribuio considervel para a
compreenso do fenmeno das migraes Guarani. Tambm inaugura a
suspeita com relao aos textos antigos, ela nos diz: Os cristos no
31
profundidade propriamente metafsica ou a suntuosa beleza da linguagem
que o exprime (CLASTRES, 1974, p.10).
Os Guarani esto presentes tambm no ensaio analtico que estuda o
artesanato indgena do Paraguai (SUSNIK 1986), onde vrios elementos da
cultura material e religiosa desses Guarani so, alm de bem descritos e
ilustrados, relacionados com suas tradies histricas (cf, MELI 1987, p.
68).
32
. 1. 5 O Povo Guarani na Atualidade
Sobre o passado dos Guarani muito se afirma, mas pouco se confirma de
tudo que podemos encontrar das anotaes e dos estudos realizados.
Conforme Meli, uns falam sobre a nao Guarani, outros sobre a civilizao
Guarani, outros falam sobre a Repblica e at mesmo sobre a democracia
anarquista ou at mesmo comunista dos Guarani (cf.MELI,1987, p.59).
Mas, o que podemos constatar mesmo que entre os Guarani
contemporneos a conscincia de unidade tribal no chegou a prevalecer.
Cada um dos subgrupos procura acentuar e exagerar as diferenas
existentes. A diversidade dos dialetos, das crenas e prticas religiosas, de
constituio psquica, serve de motivo para cada bando afirmar a todo o
33
andewa (os que somos ns, os que so dos nossos) autodenominao de
todos os Guarani. Gostam de usar expresses como adewaekwere (nossa
gente), andewa ete (eu sou mesmo Guarani, um dos nossos) e outros
semelhantes. Mas a nica autodenominao usada pelas comunidades
que falam o dialeto registrado por Nimuendaju com o nome de Apapokuwa e
que parece ter sido tambm falado pelos Taygua e algumas outras hordas
mencionadas por aquele autor. Proponho, por isso, que se reserve o nome
andewa para essa subdiviso. Pelos Mbya apelidada de Xiripai, os
Xiripazinhos.
Em duas aldeias do litoral paulista (Itariri e Bananal) vivem andewa que
nos aspectos mais visveis de sua cultura, especialmente na esfera material,
34
35
conscincia da miscigenao, faz mesmo parte de sua histria mtica
acreditar que foram formados por quatro povos diferentes e de diferentes
cores, uma de cada amba (direo).
Com relao s populaes do estado de So Paulo, h estudos que
delineiam a sua presena com bastantes detalhes, sobre isso nos diz
Schaden:
A histria dos Guarani em territrio paulista bastante conhecida, graas
aos trabalhos de Nimuendaju e de outros investigadores. Sabe-se que entre
eles no h remanescentes dos antigos Tupi da costa, desaparecidos j no
perodo colonial. Ligam-se s correntes migratrias, provenientes do oeste,
que se vm sucedendo desde o primeiro quartel do sculo passado. O
motivo das jornadas o ywy opa, o fim do mundo, profetizado pelos chefes
religiosos da tribo. Nimuendaju indica, entre os grupos que chegaram ao
litoral, a horda dos Taigu (1820), a dos Oguahuina (1820), a dos
Apopukuwa (1870), e, ainda, um grupo relativamente recente, vindo em
1912. H mais de um sculo, fundou-se um grande aldeamento em
Itaporanga, perto de Itarar, em terras que parecem ter sido doadas pelo
Baro de Antonina. Em 1910 viviam a uns 500 Guarani, que depois se
dispersaram todos ou quase todos. As causas da disperso foram de vrias
naturezas. Algumas famlias se estabeleceram nos aldeamentos do Itariri e
do Bananal (em 1927 contaram a Baldus que fizeram a mudana por motivo
de espoliao), outras foram regio da Noroeste, a convite de um
missionrio, Padre Sabino, para o auxiliarem na pacificao dos Kaingangue
do Rio Feio. notrio o episdio da morte do Padre Claro Monteiro, que
estava acompanhado de alguns desses Guarani. O bando foi depois aldeado
no Ararib, onde hoje se encontra o Posto Kurt Nimuendaj.
(SCHADEN, 1974, p. 5).
Estes estudos das migraes Guarani so importantes para se compreender
muitos dos grupamentos contemporneos e suas relaes espaciais com a
regio aonde se estabeleceram e com a regio de origem, principalmente
porque, essas migraes quase sempre tiveram motivao religiosa, como a
busca da Terra-Sem-Mal e hoje, esses locais estabelecidos (Tekowa), servem
como ponto de abrigo aos viandantes, posto que os Guarani circulam muito
visitando os parentes, embora deslocamento de grandes grupamentos
no se tenha notcia no presente, apenas de grupamentos relativamente
pequenos envolvendo uma famlia grande e agregados, em torno de 30
pessoas, como no recente caso do grupamento que se deslocou da
Argentina, passando pela ilha da Cutinga, por Superagui e que hoje se
36
No se pode afirmar que esteja encerrado definitivamente o ciclo das
migraes Guarani em direo ao litoral. Ainda em meados de 1947,
encontrei no oeste catarinense, na regio de Chapec, vrias famlias Mbya,
que manifestavam a inteno de ir at o litoral, a fim de se reunirem a seus
parentes e amigos. Haviam realizado parte da viagem e estavam espera
da ordem divina para lev-la a cabo. (SCHADEN, 1974, p. 5)
Maria Inz Ladeira nos diz que: Alm do motivo comum a Terra-Sem-Mal
(Ywymarheym), da Terra-perfeita (Ywyju mirim), aonde para se chegar
preciso atravessar grandes guas, o modo como os grupos familiares
traam sua historia atravs das caminhadas, criando e recuperando sua
tradio num novo lugar, faz com que sejam portadores de uma experincia
de vida e de sobrevivncia tambm comuns.
Devido s migraes e mobilidade entre as aldeias, os Mbya vivem em
contnuo processo de reorganizao social. E sob o determinador da busca
de localizao num espao que facilite o acesso Ywyju Mirim, do forma e
estrutura sua mobilizao. Desse modo, e sob a observncia severa das
regras, esses ndios conseguem, to criativamente, torn-las maleveis o
suficiente para que, sem transgredi-las possam se reproduzir cumprindo seu
projeto. (LADEIRA, 1992, p. 28 e 29)
Na verdade os Guarani encontram-se disseminados em ncleos muito
reduzidos de indivduos por uma extensa rea territorial e em diferentes
estados de convvio com as comunidades nacionais, sejam elas rurais ou
urbanas das cidades da Amrica do Sul, principalmente nos estados do Sul
do Brasil e nos pases vizinhos como a Argentina, o Paraguai, o Uruguai e a
Bolvia. Ento h aldeias em que o paj possui curso superior, como no caso
da aldeia do Canta Galo, no Rio Grande do Sul, e em outras, em que na
aldeia h computadores, televisores, mquinas de lavar roupa, e
comumente toda a populao tem telefone celular como na aldeia do Morro
da Saudade e na do Jaragua, no municpio de So Paulo e na aldeia do
37
Disseminados em pequenos ncleos numa extensa rea, os Guarani hoje
existentes em territrio nacional se caracterizam pela multiplicidade de
situaes de contato inter-tnico, oferecendo ao antroplogo a possibilidade
de estudar os fenmenos aculturativos em ampla escala de variao. Este
fato foi quase determinante com relao ao rumo a ser dado pesquisa.
Esta haveria de comportar, claro, o levantamento geral da cultura da
tribo, mas focalizaria de preferncia aspectos similares e diferentes da
aculturao nos vrios ncleos em funo da variabilidade das condies. A
par disso, compriria atender a outras conseqncias dos contatos
intertnicos, em especial aos problemas de miscigenao e s atitudes
ambivalentes dos ndios em face populao e da cultura nacionais, de
um lado, e ao entrosamento ecolgico e econmico com populaes
vizinhas e s respectivas formas de cooperao e competio, do outro.
Assim se compreeenderiam de maneira mais dinmica as mudanas
provocadas na alimentao, nas tcnicas, na organizao social, na religio
e assim por diante (SCHADEN,1974, p. 12).
Podemos dizer na apreciao que possvel de se fazer visitando o povo
Guarani em seus Tekowa, ou seja, nos espaos aonde preservada a sua
maneira de ser e de existir, que o povo Guarani, que em sculos passados
dominava em grandes extenses dos estados Meridionais do Brasil e dos
territrios limtrofes do Uruguai, da Argentina e do Paraguai, est hoje
reduzida a poucos milhares de indivduos, que, em sua maioria, exceo
feita dos que vivem no Paraguai oriental e no territrio argentino de
Missiones, j no ocupam reas extensas e concretas, mas esto confinados
a pequenas reservas ou aldeias sob proteo ou mesmo administrao
oficial. De outro lado, notrio que a cultura Guarani e o seu substrato
biolgico esto profusamente representados na atual populao mestia,
mormente do Paraguai, tendo a dado origem a uma cultura hbrida beroindgena sui generis, merecedora, de cuidadosa anlise antropolgica,
sobretudo, por causa de sua multiplicidade de aspectos, variando entre
formas quase tribais e rurais, de um lado, e culturas urbanas, de acentuado
carter civilizatrio, do outro.
38
de uma srie de hordas Guarani em direo ao litoral brasileiro vieram
aumentar ainda o nmero das modalidades de experincia cultural, levando
mesmo alguns grupos da tribo a contatos mais ou menos freqentes com a
moderna civilizao urbana.
Egon Schaden j indicava esta situao ambivalente e essa frico
intercultural em seus estudos apontando para o fato de que:
Os Guarani da atualidade constituem um dos exemplos mais instrutivos
para o estudo das conseqncias de situaes de contato entre populaes
aborgenes americanas e culturas de tipo ocidental. Nenhuma tribo
amerndia parece ter sido submetida, nestes quatro sculos, s influncias
de to variadas situaes interculturais.
Quem quer que procure conhecer em suas prprias aldeias os ndios
Guarani da atualidade, no deixa de perceber desde logo que certos
domnios de sua cultura se apresentam inteiramente abertos a influncias
estranhas, ao passo que em outros extraordinariamente forte o apego aos
padres tradicionais. bem complexo o conjunto dos fatores responsveis
por essa forma de reao aos contatos intertnicos, no podendo ser
compreendida seno como referncia ao problema terico central da
aculturao, concernente reinterpretao dos novos elementos em termos
do ethos tribal, ou seja, a acomodao do conflito, sobre a base de
experincias anteriores, entre as solues e os valores tradicionais, de um
lado, e as inovaes que se tornam necessrias ou desejveis, do outro.
Em sua composio numrica, as aldeias Guarani da atualidade variam,
entre uns 40 e algumas centenas de indivduos. Em conseqncia da
extraordinria mobilidade espacial, o tamanho dos ncleos est sujeito a
constantes modificaes. Os grupos menores so os que se encontram junto
39
relaes vicinais estreitas, que aparecem, por exemplo, na troca de servios
econmicos (sobretudo em mutires) e na freqncia com que os caboclos
participam das festas realizadas na aldeia ndia. A economia se aproxima da
dos caboclos, especialmente na importncia quase exclusiva do cultivo do
solo em detrimento da caa. Pela aceitao de indivduos estranhos na
comunidade como cnjuges das mulheres ndias romperam-se a primitiva
homogeneidade tnica, o que dificulta a realizao das cerimnias
religiosas, das quais, exige a tradio, devem participar todos os membros
do grupo, sem exceo. Os dvenas no somente ignoram os elementos
constitutivos e o significado das cerimnias, como tambm as acham
ridculas; por isso a sua realizao se tornou cada vez mais rara, at
praticamente extinguir-se. O principal fator de coeso comunitria, a
comunho dos ideais religiosos, perdeu, assim, a sua atividade, o que se
reflete nos constantes desentendimentos e inimizades no seio do grupo.
(SCHADEN, 1974, p. 12-13).
Por outro lado, d destaque maneira como os Guarani do Rio Branco
conservam a sua integridade. Na verdade esse apenas um exemplo, pois
40
De vez que a linha divisria entre culturas e subculturas no decorre
necessariamente de critrios objetivos bem definidos, aplicveis com rigor,
por assim dizer, matemtico, as classificaes das tribos tendem a variar de
autor para autor, segundo a posio terica e os conhecimentos de cada
um. Alm disso, a escolha de determinados problemas para a pesquisa de
campo e ulterior discusso cientfica no raro faz aparecerem como
essenciais as diferenas que de outros pontos de vista talvez pudessem ser
desprezadas, levando, inversamente, a descurar de semelhanas que em
perspectiva diferente se revelariam de importncia capital.
41
Ao contrrio do que afirma Graff, sobre a desonestidade implcita em todo
discurso histrico por sua prpria estrutura inerente, o que podemos
encontrar nos Fundamentos da Cultura Guarani, de Schaden uma
1 2 A RELIGIO GUARANI
Neste tpico abordo alguns aspectos da religiosidade Guarani e o mito da
emano dos nomes almas. Porm, antes, importante esclarecer, que,
toda tentativa de se fazer um estudo teolgico da religio Guarani, como o
caso das tentativas feitas pelas teologias indgenas e dos vrios estudiosos
que provm de religies crists, como o caso de Bertoni, Meli, Chamorro,
e de tantos outros, de uma tradio que vem desde os Jesutas da
conquista espiritual, est fadada a uma inadequao, pois dessa maneira,
isso no existe para o povo
42
Guarani, assim como no h por assim dizer sequer a noo do que isso
signifique, em sentido inverso, para algum que provenha da tradio
ocidental.
Para o povo Guarani, quando muito, h um mau entendimento do que seja
religio, e uma maneira inadequada de se conceber Deus, que no fica nem
dentro e nem fora da concepo crist, porque essa a concepo que tem
o ocidente, mesmo quando trata de culturas que no so ocidentais, e
quando essas culturas tentam dizer de maneira ocidental a sua maneira de
43
particulares de ordem religiosa e no mais, apenas, mgica que o
diferenciam sensivelmente do que em outros povos (idem: 34).
Diria mesmo que a religio Guarani nunca foi entendida em sua
complexidade pelos muitos estudiosos que sobre ela se debruaram, porque
no h religio para se entender, porque no h religio Guarani no sentido
que desejaram encontrar. O ocidente elaborou um sistema e uma
44
A religio para o povo Guarani a sua prpria condio de existncia, uma
vez que trs os ensinamentos sobre sobrevivncia, tolerncia e estratgias
de conceituao e de procedimento. Essa forma de existncia encontrada
pelos Guarani, se apia no fato de que a religio se constitui, hoje, em matiz
decisivo de diferenciao. Na medida em que, ao nvel do cotidiano, as
diferenas de hbitos se diluem, a religio a marca que os distingue, neste
mundo super povoado pelo outro.
45
Ret. Ento busquei esclarecer melhor isso, e a explicao me veio da
cosmogonia. A gnese Guarani revivida em todo o nascimento. Ela
explicou assim:
anderu Papa Tenonde traz uma luz resplandecente no peito e se descobre
sozinho nas trevas (ara ym).
46
Aps contextualizar o mundo de significados do nome de seu filho, ela passa
a dizer o que o diferencia dos outros humanos. A diferenciao se d pelo
desdobramento da criao. Porque a partir das quatro emanaes
primordiais, dos Ruete e das Xyete, ou seja, dos pais e mes da onde
provem os seres (nomes-almas), vem o selo de diferenciao. Porque Tup
tem uma caracterstica determinada, Jakaira outra, Kwaray outra e Karai
ainda outra. E essa distino que faz do seu filho um ser nico, e o seu
nome que identifica as suas qualidades por assim dizer inatas, que indica as
suas qualidades dentro do contexto do seu povo, ou seja, suas tendncias
sociais, seus talentos, que condicionam as suas possibilidades para
desempenhar determinado destino dentro da sociedade Guarani. A seguir
Krexu Poty passa ento a descrever esses selos ou signos:
Kwaray ru ete e Kwaray xy ete so o pai e a me das almas que vivem no
znite, ara mbyte (Kwaray ret).
As almas masculinas enviadas de Kwaray ret so: Poty, Kwaray, Miri,
Kwarayju, Kwaray Miri, amandu, Tataendy, Xapya, Xunui, Rataendy,
Guyrapepo e Awaju Miri.
As almas femininas enviadas de Kwaray ret so: Poty, Para, Para Poty, Para
Mirim, Para Guaxu, Jerojea, Papaju e Miri.
As almas femininas de Kwaray ru ete so enviadas para acompanharem os
pais e os irmos, so boas suas rezas, mas no exercem muitos trabalhos
que exijam fora fsica.
As almas masculinas de Kwaray ru ete so prprias para indicar o caminho
ao seu grupo.
Tup ru ete e Tup xy ete so pai e me das almas que vivem no poente,
andekupere.
As almas masculinas enviadas de Tup ret so: Tup, Tup Mirim, Wera,
Wera Mirim, Awa Ropeju, Popygua e Mbiguai.
As almas femininas enviadas de Tup ret so: Tataxy, Ara, Arai, Ara Poty
(Tup e Kwaray), Krexu, Rete, Krexu Mirim e Rya Poa.
As almas femininas de Tup so boas para dar ensinamentos.
As almas masculinas de Tup tm reza forte.
Os homens de Tup e de Kwaray podem ser Xondaro, isto , os guardies da
aldeia.
anderu ru ete e andexy ete so, o pai e me das almas que vieram em
ywy apy, a origem do mundo, para alcanar ywa paum em anderenondere,
que corresponde ao sol nascente.
anderenondere quer dizer nossa frente, para onde devemos nos voltar.
nessa direo que Kwaray nasce trazendo a luz do dia.
anderu pai das almas femininas. Apenas Awart masculina. So
femininas: Takwa, Ywa, Jaxuka, Jaxuka Mirim, anju e Kunh Karai.
As almas femininas de anderu ete vm para ajudar, tirar de perigo a
famlia, conduzindo-a para um lugar verdadeiro. Quando anderu ete tem
d de alguma famlia, envia uma de suas almas para ser sua guia.
Awart, alma masculina da mesma regio bom conselheiro e curador.
Destaca-se na organizao e nos comandos dos trabalhos nas roas. (cf.
PEREIRA, 1995, p.53)
Aps a identificao dos selos ou signos que determinam a identidade e a
diferenciao de cada pessoa da comunidade Guarani, esclarecendo o
significado do nome de seu filho; Krexu passa a relao espao-temporal
das divindades e seus trajetos. Isso necessrio porque complementa o
significado do nome de seu filho. Sendo seu filho de um
47
determinado Ret, ele deve seguir determinados trajetos, conforme os
Ruete e as Xyete tambm o perfazem.
Quando Kwaray ru ete est em anderenondere ele corresponde a anderu
ete. Portanto h identificao de anderu ete com Kwaray no local do seu
nascimento.
Assim o mundo, Ywy wai, a terra imperfeita, regida pelos pais das almas
que controlam as foras do mundo a partir de cinco regies de ara owy (o
firmamento) que fica diretamente sobre Ywy wai.
A cada regio corresponde um ee ru ete: andekupere comandada por
Tup ru ete, andekererovai por Jakaira ru ete, andekere por Karai ru ete,
Ara mbyte por Kwaray ru ete. anderu criou quatro seres para enviar almas
terra, para as criaturas que iro nascer. Entretanto o prprio anderu, o
responsvel pelas almas de anderenondere, regio do nascimento de
Kwaray.
O trajeto de Kwaray o seguinte: no meio dia est no centro (ara Mbyte).
No fim do dia, vai para andekupere (s nossas costas), o poente, e passa
por detrs do mundo para nascer em anderenondere (na nossa frente), na
direo do sol nascente. Seu percurso se d, portanto, pela frente e por
detrs do mundo. Reveza com Jaxy formando o dia e a noite.
As almas provenientes de Karai ret devem seguir em direo
anderenondere (no sentido anti-horrio) ou ir para ywy mbyte (Kwaray
ret) e de l seguir at anderenondere. Da provem almas masculinas:
Karai Mirim, Karai Poty, Karaiju, Karai Jekupe (Karai e Tup), Karai Jeguaka
(Karai e Jakaira), Karai Rataendy, Karai Tataendy e Karai Ruwixa. As almas
de Karai ru ete so fortes para dirigir as rezas, para dar bons conselhos,
para orientar o caminho e zelar pela aldeia.
As almas provenientes de Jakaira ret devem seguir em direo
anderenondere (no sentido circular horrio) ou ir at ywy mbyte e, em
linha reta, dirigir-se a anderenondere. Este o caminho de Jakaira ru ete.
Os trajetos percorridos pelos filhos de Jakaira e Karai passando pelo centro
da terra so percorridos pelas almas. Em vida, o percurso deve ser feito
circularmente pela beira do oceano. As almas provindas dessa regio so
masculinas: Jeguaka e Jeguaka Mirim. As almas de Jakaira ru ete destacamse pelas rezas e no cuidado da aldeia, no tm bom desempenho na
lavoura.
O nome de Krexu Poty nome composto, proveniente de mais de uma regio,
no indica que ela tenha mais de uma alma. Ela, possui uma s alma,
enviada por Tup e Kwaray (cf. PEREIRA, 1995, p.58).
Cadogan na dcada de 40 catalogou junto aos Guarani do Paraguai uma
verso anterior desse mito:
anderu cre cuatro grandes seres: Karai, dueo del ruido del crepitar de
llamas, dios del fuego, con su esposa, Krexu; Jakaira, dueo de ja humareda
vivificante, dios de la primavera, con su esposa Yxapy; amandu, dios do
sol, y su esposa Jaxuka; Tup ru ete, dios de las lluvias, el trueno u el rayo y
su esposa Para. A estos cuatro dioses y su esposas se les aplica el nombre
de i puru ey va e (los que carecem de ombligo), subrayando-se con esta
designacin el que fueron creados y no engendrados.
48
sincronismo do tempo e do espao. E isso no s diz respeito aos humanos,
diz respeito a toda a natureza, e se adquire conscincia desse evento
principalmente com relao s coisas mais ntimas, como com relao ao
awaxy (ao milho sagrado), erva-mate, ao petyn (ao tabaco Guarani), ao
takwa com o qual se faz o mimby (a flauta) e assim por diante. Maria Ins
Ladeira nos esclarece que:
Quando os Mbya (Guarani) transportam, onde quer que vo, as sementes do
milho sagrado (awaxy ete) eles no esto preocupados em produzir grandes
roas mais sim em perpetuar sua produo atravs do mesmo ciclo,
reproduzindo a origem do mundo. Nunca, ou quase nunca, os Mbya
guardam sementes do milho hbrido comum (awaxy tupi) aps a colheita, o
que indica que as coisas verdadeiras criadas por anderu nunca devem
acabar, o que no o caso do milho comum. (LADEIRA, 1995, p. 86).
Neste sentido a abundncia para os Mbya est relacionada qualidade dos
elementos criados por anderu, que tm a marca da perenidade.
de Cadogan ainda outra verso do mito original, desta vez dando
destaque a Takwa-Kama, o bambu mgico e ao mito dos gmeos, onde da
Legenria e do Bambu criada a humanidade. Vamos ao texto de Cadogan
apresentado por Roa Bastos:
Al regresar el padre Bartolom Meli, S. J., de uno de sus viajes de estudio a
la selva, vino acompaado por el mbya Carlos Antonio Lopes, y en compaa
de l me visito em junio de ese ano (1970). Es miembro del grupo al que
habia pertencido Vicente Gauto, y como este habla de Ywy Mbyte en sus
relatos, pergunt a Carlos Antonio se l sabia algo al respecto. Contest que
en Ywy Pyru, el ombligo de la tierra situado em Takwaro, est situada la
fuente sagrada Agua Yvu, de la que habia surgido Nuestra Abuela, la madre
del hroe solar, Pai rete Kwaray e anderu Pai. Que Takwaro es nombre de
una zona cuyas tierras fueron subdivididas hace alguns aos y repartidas
em lotes agrcolas a los paraguayos. Que l, siendo an nio habia visitado
la fuente en compaa de su padre, llamndole la atencin la profusin de
Takwa-kama que creca en el lugar, al borde de la fuente. Seguidamente
habl de la manera en que l y su padre haba fabricado flechas de estas
caas, siendo necesario someter algunas de ellas al calor del fuego para
enderezalas. Tambin explic que el nombre de Ywy Pyru con que se
designa la fuente sagrada situada en Ywy Mbyte, el centro de la tierra, se
debe al hecho de hallarse situada en una depresin comparable, en cierto
modo, al ombigo de un ser humano.
Nunca habia escuchado antes la palabra Takwa-kama, nombre de las caas
que crecan en profusin en Ywy Mbyte e Ywy Pyry, y las que Carlos
Antonio y su padre habia fabricado flechas, pero es evidente la relacin
entre el nombre de la palabra pai Kambajy, espcie de bambu
semilegendrio' (aporte a la etnografia Guarani del Amambai, Alto Ypan,
Rev. de Antropologa, So Paulo, X, 1 y 2, 1968), acerca de cuya caa
consign los seguintes informes: Kamayti, en ee rero-Kamayti, ejemplo
tpico de lo que el pai llama Kopypegua ee, y el mbya anderu aywu, el
vocabulario religioso. Podra traducirce por: la palabra-alma se expressa por
intermedio de Kamay blanco, habiendo unos versos de engarete de ane
Rami que dicen: Jaxuka vavero-Kamayti ny ma = Jaxuka se le ha provisto
de Kamayti, e Jaxuka se expresa pro intermedio de Kamayti.
Comentandolo, dijo agapito Lopez (uno dirigente de la parcialidad de los
Pai): Oi-Katuvo p ama ee, oguenoh mba ma ee, omoseja p ama ee = la
palabra-alma ha sido escogida, ha sido sacada, iliminada. Otro dirigente
avezado, Juan Bautista Ibarra, me inform
49
que Kamayti es el nombre secreto e religioso de la tacuara ritual.
(CADOGAN, 1978, p.54).
Mais frente o mito dos gmeos, no final, nos diz:
Kwaray tinha um recipiente com rocio mgico e que ... uno de los
animales que le rodeaban de un coz rompi en pedazos el recipiente. El
rocio se derram y, al mojar la tierra, surgi una planta de Ya (hya) =
legenria, y otra de Takua guadua, bambu y destas dos plantas se cre la
humanidade. (CADOGAN, 1978, p. 55). Em minha dissertao de mestrado
elucido esta questo da significao das coisas a partir da sua relao com
os mitos fundantes, digo que:
Na arte do Mimby o mito da criao se articula. Ao se cortar o bambu como
fez o Mbaekuaa (o iluminado, nossos irmos mais velhos, os sbios), ao se
buscar a fonte original, ao se portar awaxy ete (milho verdadeiro) e colar de
ywaum, o mundo original se perpetua. Sem a compreenso do significado
desses elementos, o Mimby no ser nada mais que um pedao de Takuara
Guaxu perfurada.
Na verdade o Mimby um pedao de bambu perfurado, mas tambm todo
um universo. No fazer o mito se faz gesto (ritmo, msica): quando
pedimos a um ndio que descreva como se faz (como se fabrica), este se
50
diferena seja pardica _ a forma intertextual que constitui,
paradoxalmente, uma transgresso autorizada, pois sua irnica diferena se
estabelece no prprio mago da semelhana. Escritores (historiadores,
religiosos, literatos, etc.) negros e ndios (tanto homens como mulheres)
parodiam, ou repetem com diferenas, as muitas tradies em cujo interior
atuam: europia/americana, indgena ou negra/branca, oral/escrita,
linguagem padro/ vernculo criolo, negro ou indgena: Os textos
cannicos ocidentais devem ser digeridos, e no regurgitados, mas
digeridos junto com textos cannicos nativos _ na forma e no vernculo
(Gates 1984: 6). Os ex-cntricos tm-se inclinado a afirmar, concordando
com Tereza de Lauretis, que a subjetividade constituda pelo
envolvimento pessoal e subjetivo do indivduo nas prticas, nos discursos e
nas instituies que do relevncia (valor, sentido e afeto) aos
acontecimentos do mundo (1984: 159). Entretanto, ao contrrio do
discurso ps-estruturalista masculino, branco e eurocntrico, que desafiou
da maneira mais vigorosa o ideal humanista de subjetividade, indiviso e
51
CAPITULO 2: MITOS FUNDANTES DA RELIGIOSIDADE GUARANI
Neste captulo pretendo expor alguns dos mitos aos quais sempre o povo
Guarani andewa recorre para entender a sua existncia. E entre esses
muitos mitos aos quais sempre se recorre, selecionei os que possuem
relao com o transcorrer desta pesquisa, seja por citao, seja por
referncia, seja por ajudarem na compreenso do conceito que norteador
desta investigao.
Escolhi o mito de Xume, o dos gmeos, o do dilvio e o do Anh.
Anteriormente apresentei o mito da origem dos nomes almas, e mais
frente apresentarei o da Terra-semmal. Como quase todos os mitos
Guarani, estes tambm sofreram apropriao por parte dos colonizadores e
por outro lado tambm absorveram elementos dos mitos cristos. Garimpar
o que possa ter sido estes mitos em uma poca pr-colombiana buscar o
impossvel, tambm penso que o que mais importa o que eles significam e
como so entendidos pelos Guarani hoje, ou seja, a sua verso possvel.
Xume tido por uma grande maioria das parcialidades Guarani como um
Karai, ou seja, um heri civilizador, em quase todas as verses
apresentado como um velhinho, porm muito forte e detentor de poderes,
de cabelos longos e grisalhos, branquinhos, e sua pele branca, sendo os
seus olhos apresentados ora como azuis, cor do cu; ora como verdes, cor
da mata. Em algumas verses Arandu, isto , celibatrio, em outras, ao
contrrio, tem muitas mulheres, ou seja, polgamo, sendo que em muitas
verses: pelas aldeias por onde passa lhe so oferecidas mulheres para que
dormisse com elas, e em outras era ele mesmo que tinha o dom do encanto
e eram as mulheres que com ele desejavam ficar e dele ter filhos. Devido a
sua qualidade e seus poderes, todos desejavam ser seu aliado.
A maneira como a parcialidade andewa v a histria de Xume passa por
todas essas imagens, mas o que fica mais forte a de que ele era um
Mbaekwaa, e que era irmo gmeo de Kexu Krito (de Jesus), e que foi ele
que reformou o ande Reko, deixando o desenho que perdura at hoje, e
mais importante ainda o fato de que foi ele que deixou o Mborai Por,
canto-poema no qual o ande Reko se firma. Em muitos casos tambm h a
lenda de que ele voltar no amandu AraGuaxuguy, isto , que haveria
um retorno de Xume, para prosseguir o seu trabalho civilizador e reativ-lo
nos aspectos em que ele possa ter sido esquecido ou adulterado, nas
vsperas da era de amandu.
O mito dos gmeos de certa forma se mescla com o de Xume, nos casos em
que Xume e Kexu Krito so apresentados como irmos gmeos, inclusive
nesses casos, Jesus no morre
52
na cruz, tem vida longa, mulher e filhos e exercem em alguns casos aes
conjuntas. Mas tambm h verses onde o mito totalmente independente
da pessoa de Xume. Parece haver dois mitos diferentes.
Optei por essa vertente, embora ela tambm tenha as suas variantes; em
alguns casos aparece a figura de Mayra e Motam, em alguns de Kwaray, o
sol e Jaxy, a lua. E em outros apenas a figura do irmo mais velho e seu
caula, isto andekyrei e seu irmo, nesse caso o problema se desloca
muitas vezes para a dupla partenidade dos gmeos.
Com relao ao mito do dilvio, este muito impressionou os primeiros
clrigos que aqui chegaram, achavam eles que podia se tratar de um
conhecimento bblico, ou que isso confirmasse uma verdade bblica. Porm
o mito Guarani do dilvio nada tem de semelhante com o mito bblico seno
na espcie da catstrofe. Tambm um mito que possui inmeras verses e
em alguns casos aparece relacionado com o mito de Ywymarheym, a
Terra-sem-mal. O mito do dilvio no isolado, ele acontece num segundo
momento, antes dele houve uma grande catstrofe, de igual proporo e,
que foi causada pelo elemento terra, terremotos e coisas assim; e depois
dele houve uma terceira catstrofe que esteve relacionada com o elemento
fogo, incndios, o sol trrido, tempestade de raios e de meteoros. Os
Guarani esperam uma quarta catstrofe que estar relacionada com o
elemento ar, com Ywytu, e que dever ocorrer antes de amandu
Araguaxuguy, da era de amandu, de Ywypyau ou Ywyjupor, a Terra
em seu novo resplendor.
Quanto a Anh, no mnimo o que se pode dizer que o mito mais
enigmtico e controvertido do panteo Guarani. Ele no uma Xyete, nem
um Ruete. Tambm no visto como um simples encantado. Creio que
est mais prximo figura dos Jekupe, guardies, uma forma parecida com
a dos anjos da guarda de pessoas e de lugares. Porm, Anh est mais
prximo de ser um Jukupe de lugar, mas tambm por vezes assume a forma
de um Ruwyxa, ou seja, de guia espiritual, embora tenha mais a funo de
confirmar ou reprovar as pessoas nos seus propsitos ou convices. o ser
do panteo mais relacionado com o humano. Por outro lado, talvez por sua
popularidade, sofreu ferrenha detratao por parte dos clrigos.
Apresento a seguir uma verso do mito de Xume, uma da dos gmeos, uma
da do dilvio, e discorro mais um pouco sobre o polmico Anh. Fao
algumas explanaes, mas decididamente escolhi estes mitos e nestas
verses por serem as mais correntes na parcialidade onde fiz meu estudo e
pela relao com o conceito que busco elucidar. Os mitos sero
apresentados pela ordem que enunciei e em alguns casos ser feita alguma
conexo com temas que ajudam a esclarec-los.
53
2 1.1 Xume
feita, para ser seu caminho: diz o mito que ele era j bastante idoso, e que
os Guarani Karijo, da costa, construram o caminho do Itupawa para facilitar
o seu caminhar. E que ele seguiu depois pelos Campos Gerais, indo pelo
Paraguai, subindo pelos Andes at o Pacfico, no trecho do Peabiru, do
caminho, que passa pelo Paraguai, h pegadas deixadas em pedras e que
so atribudas a Xume. Nesse mito no dito o que aconteceu depois,
apenas fica claro que ele veio de algum lugar, esteve entre os Guarani lhes
ensinando muitas coisas, que teve o auxlio dos Mbaekwaa, e que depois ele
seguiu em frente fazendo um trajeto do leste para o oeste, ou seja, do
Atlntico at o Pacfico.
Em muitas verses Xume designado como andekyrey, ou seja, como
nosso irmo mais velho, ou como o que veio antes, ou primeiro. Muitas
vezes os Mbaekwaa so
54
designados como sendo os andekyrey. H uma verso da origem da
civilizao Guarani que diz assim:
Naquele tempo, andekyrey vivia em Ywyapy, onde o mundo comea. De
l, seus filhos partiram para fundar os Tekowa, lugar onde os Guarani podem
viver de forma perfeita.
andekyrey ou Mbaekwaa, aqueles que sabem, aqueles que so portadores
de sabedoria, foram para Jakutinga, ou seja, para a ilha da Cutinga. Para
chegar em Jakutinga Mbaekwaa cortou takwa, bambu, e fez o apyka,
ascento, para atravessar as guas e chegar em Parakupe.
Entre Ywyapy e anderu Ret, a terra de nossos pais, esta Yyreen, o mar,
as grandes guas que podem ser atravessadas com o apyka, com o
ascento, que condus a Ywapaum. Em Ywapaum as almas so destrbuidas
e voltam s suas origens. Uma verso deste mito pode ser encontrado na
dissertao de Maria Ines Ladeira, complementado com outros mitos
(LADEIRA,1992, p.107).
Importante nesses mitos que falam da origem da civilizao Guarani, se
notar, a relao de Xume, com os Mbaekwaa, com andekyrey e com o
referencial da Ilha da Cutinga, de Jakutinga, localizada como o lugar da
partida de um evento civilizatrio. Thevet faz o primeiro relato da histria de
Xume, que chama de Sommay. Andr Thevet foi uma pessoa muito curiosa,
esteve na regio do Rio de Janeiro na segunda metade do sculo XVI, era
cosmgrafo, fez registros do que hoje concebemos como sendo a religio
Guarani, mas para ele, e certamente para qualquer pessoa dessa poca,
isso que eles viam no se assemelhava com nada que para eles pudesse
parecer com religio. Um ano antes dele tinha estado tambm no Rio de
Janeiro, Jean de Lry. Lry, discpulo de Calvino, em 1555, empreende
viagem ao Brasil; nesta data Villegaignon havia fundado uma modesta
55
pratica de algum servio religioso, no oram em forma de religio, quer em
publico, quer em privado, coisa nenhuma que seja (LRY, 1972, p. 59-60).
Thevet, fala sobre Lry, em discordncia, embora afirme a mesma coisa que
o Lry j tinha dito: aqui que devo zombar daquele que foi to temerrio,
a ponto de vangloriar-se de haver escrito um livro sobre a religio desses
selvagens. Fosse ele o nico a haver estado naquele pas, facilmente me
daria acreditar no que quisesse: mas sei, por certo, que esse povo sem
religio, sem livros, sem exerccio de adorao e conhecimento das coisas
divinas. (THEVET, 1944, p. 21-22).
Mas foi Thevet, tantas vezes irnico, sem hesitar em zombar dos ndios em
cada ocasio, quem nos traz pela primeira vez o mito de Xume, ou melhor,
como ele grafou, de Sommay. Ele informa no seu relato que Sommay,
grande paj e caraba, o pai dos dois irmos Tamendonare e Ariconte que,
entre outras coisas provocaram o dilvio (idem).
Hlne Clastres, relendo Thevet, Montoya e alguns outros, assim organiza
seu texto sobre Xume, nos diz:
Sabemos como se propagou entre os brancos a lenda segundo a qual o
apstolo So Tom teria vindo evangelizar as ndias Ocidentais. Os Guarani
diz Montoya sabem por tradio ancestral que So Tom , a quem eles
chamam Zum, viveu outrora em suas terras. A mesma crena atribuda
aos tupi. Reportemo-nos ao mito Tupinamb, Sum o heri civilizador a
quem os tupi atribuem, em especial, o conhecimento que tm da agricultura
e sua organizao social. Sume por conseguinte ensinou outrora aos
56
com o mito dos gmeos, uma questo bem difcil. Mas assim que o mito
de Xume entendido hoje em dia pelo povo andewa, com suas
concordncias e suas polmicas.
como pouco se alterou no correr dos sculos, apenas que temos que
suportar os comentrios do relator, Pierre Clastre nos apresenta uma verso
desse mito, traduzido do francs arcaico (CLASTRES,1974, p. 96-101). Ento
vou apresentar a verso que conheo do mito:
57
Cada noite, ela fazia seu animal domstico dormir ao lado de seu rosto. Com
sua asa o animal acariciava delicadamente o rosto de sua dona. Dessa
forma, ela ficou grvida.
Foi ento que a coruja se apresentou com um corpo divino: era nosso pai
primeiro-ltimo, o pequeno. Nosso pai forneceu o modelo de nossa conduta.
II
Mais tarde, anderuguaxu encontrou-se com anderumbaekwaa, nosso
pai que sabe das coisas. aderuguaxu disse a Mbaekwaa: Voc j conhece
este caminho, pois voc conhece tudo. E por isso ficou irritado com sua
mulher. E foi preparar a sua plantao. medida que a preparava, ela
enchia-se de espigas de milho verde. Em seguida, voltou para casa, para
comer. Disse sua mulher:
- Em nossa plantao tem milho macio para comermos.
Mas ela retrucou:
- Voc foi trabalhar a pouqussimo tempo e, j diz que h milho macio para
comer. E ficou muito irritada. No faltavam motivos de discrdia entre ela e
seu marido. E disse: No seu filho que trago no ventre e sim o do
Mbaekwaa, porque ele que sabe das coisas. E pegando o seu cesto foi
para a plantao.
III
IV
58
Os traos, os inmeros traos de nossa me existem ainda agora em ns.
Nenhum deles, at agora, foi destinado a apagar-se. Por isso temos que
permanecer juntos, danar e cantar nossos cantos, para que todas as coisas
belas possam novamente ser vistas por nos.
V
Ela tinha caminhado um pouco quando sua criana pediu-lhe uma flor de
mbarakuja. Ela colheu-a para a criana e prosseguiu seu caminho. Mais
tarde, bateu na morada de seu filho e perguntou-lhe se sabia por onde
andava seu pai, e ele indicou o caminho por onde ele tinha seguido.
Andou um pouco mais, e a criana tornou a pedir-lhe uma flor. Colheu-a,
mas um mangang picou-a, Ela disse irritada ao seu filho:
- Por que voc, que ainda nem deste mundo, deseja uma flor e me faz ser
picada por uma vespa?
A criana ficou furiosa.
VI
Ela retomou o caminho e chegou ao lugar onde estava a madeira cruzada, o
Kuruxu. Perguntou criana:
- Por onde foi seu pai?
- Por ali.
E indicou o caminho das onas primignias, porque naquele caminho tinham
muitas flores de mbarakuja.
Andando pelo caminho das onas, chegaram morada das onas
primignias. Ento a av delas lhe disse:
- Por aqui! preciso que eu te esconda das minhas crianas. Normalmente
elas so muito desobedientes!
E cobriu-a com uma grande panela.
VII
No final da tarde as crianas chegaram. Traziam grandes pedaos de carne
de Koxy para a sua av. Porm os retardatrios no haviam caado nada. E
logo sentiram o cheiro
59
de caa na casa. E desconfiaram que a av tivesse escondido alguma coisa
na grande panela porque ela estava de boca para baixo.
VIII
Eles pegaram os mit e mergulharam-nos na gua quente. Depois puseram
a mo na gua e constataram que havia esfriado. Em seguida a velha ona
gritou:
- Peguem-nos e soquem no pilo e depois coloquem sobre as brasas!
E eles colocaram. Mais tarde, tatearam as brasas: elas estavam frias.
IX
Quando ficou mais forte, ele pde ir aos velhos jardins, com seu irmo
caula, para matar pequenos pssaros. A av ona lhes disse:
- No vo desse lado! Mas por ali vocs podem divertir-se, meus netos!
- Porque a av ona nos disse: no brinquem desse lado? Vamos l, pra
ver.
60
E foram.
XI
XII
XIII
XIV
61
XV
XVI
XVII
62
XVIII
XIX
63
Nos mitos Guarani, as coisas e os fatos se do naturalmente, de forma
corriqueira. So alegorias que norteiam a maneira de ser de um povo pela
beleza que atribuem a certa forma de elaborao e pela identificao que
sentem com o seu cotidiano.
No mito dos gmeos, a futura me do povo Guarani tem fluxo menstrual
como tem toda mulher que pode ser me. Porque a natureza se perpetua de
maneira natural. Anormal seria se a me dos Deuses fosse virgem e no
tivesse mestruao, isso seria uma aberrao.
Encontramos nesse mito muita ironia, como a de que a me primordial
pegou o pai primordial em uma arapuca e, o domesticou na forma de uma
urukurea (coruja). Por essa ironia, e pela teimosia atribuda primeira me,
pode-se perceber que essa verso do mito foi feita por um homem.
Aparece tambm nesse mito o conflito conjugal, a separao e a busca do
reencontro, o fato da busca ser empreendida pela mulher tambm confirma
a verso masculina, pois em muitos casos na verdade a busca da
reconciliao empreendida pelo homem. Enfim, o mito no diz de seres
sobrenaturais, mas diz da natureza humana e servem para instruir, divertir
e relembrar coisas. Nesse mito o mborayu aparece vinculado
preponderantemente ao drama familiar.
2. 1. 3 O Dilvio
64
acumularam-se sobre a terra, formando rios e oceanos. De Irin Mag
descendem os que iriam provar o segundo dilvio. (CLASTRES,1978, p. 25).
Hlne Clastres ainda nos conta outra verso, nela:
... o cataclisma atribudo a uma briga entre os heris Tamendonare e
Ariconte, filhos de Sum (Xume), por sua vez filho de Maira-Monan, primeiro
descendente de Irin Mag. Os dois irmos eram de diversa compleio e
natureza e por isso se odiavam mortalmente. Depois de uma violenta
discusso, Tamendonare bateu com tamanha rudeza na terra que desta
jorrou uma grande fonte dagua, to alta que em pouco tempo se elevava
acima das nuvens e assim perseverou at cobrir a terra toda. Vendo isso, os
dois irmos, preocupados em se salvar, escalaram as montanhas mais altas
de toda a regio: e trataram de se salvar subindo nas rvores com suas
mulheres. E fizeram assim, isto : Tamendonare subiu em um pindo e
Ariconte em um jenipapeiro. Por ocasio desse cataclismo, pereceram todos
os humanos, com exceo dos dois casais, de quem nasceram dois povos
com ascendncia comum, e inimigos mortais: os Tupinamba e os
Tamoi(idem).
De todos os mitos que dizem dos cataclismas das trs terras anteriores,
apenas o do dilvio mereceu grande ateno por parte do jurua, isso pela
semelhana, ainda que bem distante nos acontecimentos, com o dilvio
bblico, sendo a nica semelhana mesmo a do cataclismo em si. A seguir
conto uma verso muito comum entre os andewa, que sempre se ouve em
torno de um tatapor, e que em especial sempre pedido para ser
recontado pelas crianas. Escolhi esta verso por ach-la bonita e curta,
principalmente o canto muito bonito:
65
II
III
IV
66
67
No mito do dilvio ressaltada a importncia da dana para se adquirir
fora, como fator de disciplina espiritual. Tambm reforado um preceito
que o da proibio de casamentos consangneos. E deixa-se clara a
penalizao comum para os transgressores: morar apartado, onde poder
viver como desejar; na comunidade, para que haja harmonia entre os seus
integrantes, para o convvio, necessrio se obedecer alguns limites. Os
mitos, os poemas e os cantos reforam os Korai (regras, leis, costumes do
ande Reko).
2.1. 4 Anh
68
Sobre Anh difcil dizer alguma coisa, pois ele deve ser vivenciado junto
aos lugares que a ele so atribudos, no um mito que tenha uma histria,
ele tem lugares. Porm essa lacuna de histria foi preenchida por
atribuies que so oriundas da tradio crist, que tentou com ele fazer
analogia com o demnio cristo. E por ser aceito na verso crist por muitos
ndios que sofreram a influncia crist, muitos estudiosos acreditam nessa
analogia como sendo uma crena original. Inclusive h muitas lendas e
genealogias ps-crists que fazem essa converso, estigmatizando Anh.
De qualquer forma Anh no existe para que se fale dele, mas para que se
vivencie, podendo ser encontrado em seus lugares de irradiao, como o
Anhgawa. Tambm no Anhgawau, embora hoje fique no centro da
cidade de So Paulo, naquele vale ainda possvel de se sentir um pouco da
presena de Anh, nos contornos topogrficos daquela paisagem urbana, e
no raramente, ali perto, no Ptio do Colgio, onde nasceu a grande
megalpole, encontramos ndios Guarani vendendo seu artesanato e
fazendo sua peregrinao pelo lugar onde viveram seus antepassados,
silenciosos, no por mera coincidncia.
69
2. 2 YWYMARHEYM: A TERRA-SEM-MAL
70
71
72
73
do sculo XVIII, (no esquecer que Emilie Rousseau, irm de Jean Jaques
Rousseau era casada com Cenequeribe, um jovem Mbaekwaa Guarani, que
viveu e freqentou as reunies filosficas da Frana de Rousseau tendo a
uma relao de parentesco com o Iluminismo). De certa forma esse conceito
de ndio era a personificao da ptria que alcanara a independncia
poltica em 1822. Porm importante se salientar que Alencar no via com
simpatia todo esse envolvimento e tinha srias discordncias com
Gonalves de Magalhes, Gonalves Dias e Araujo Porto-Alegre. Sob o
pseudnimo Guarani Ig (de Iguau), Alencar ataca a mediocridade dos
versos, a linguagem, o estilo e a gramtica do poema Confederao dos
Tamoios, de Gonalves de Magalhes; por trs de tudo, a diferente viso do
ndio como tema literrio. Escreve Alencar:
pela grande exploso causada por um incndio. Peri o homem puro, filho
de uma natureza integra. Loredano o vilo, filho de toda a corrupo,
ganncia por poder e riqueza sem medida que caracterizava os homens que
vinham de alm mar. Estas duas cenas so tambm apresentadas por
Carlos Gomes na pera homnima. Mas neste momento vou me deter mais
no romance de Alencar do que na pera de Carlos Gomes, por ser mais
propcia para a compreenso do conceito que estou elucidando.
74
Um aforismo Guarani, atribudo a Xum (Tom), diz: se teu paje disser que
a terra-sem-mal est no cu, ento os pssaros chegaram l antes que voc
e assim a terra-sem-mal pertence aos pssaros. A verdade que a terrasem-mal est em qualquer lugar onde voc viva nela com contentamento.
75
Em sua alegoria Alencar nos conta que por essa poca, havia chegado ao
Convento dos Carmelitas, no Rio de Janeiro, certo Frei ngelo di Luca, como
missionrio. Logo depois, por seus mritos de religioso, tinha sido enviado
regio montanhosa vizinha ao Rio, com o objetivo de ali exercer sua misso.
76
77
Frei Luca teve que negar os fatos, at o prprio nome teve que mudar,
tornou-se ele mesmo um outro, Loredano, o aventureiro. Certamente seus
mritos como religioso no nasceram da inocncia, mas de sua
premeditao, no nasceram da verdade de ser, mas da sua capacidade de
dissimular: ser um bom religioso, apenas fazia parte de um plano, de um
meio para obter vantagens e confiana, para poder dar cobertura para
possveis aes escusas. dizer popular, que a ocasio faz o ladro. Penso
que a ocasio faz o ladro quando ele j latente no mais profundo do ser,
quando no h inocncia na ao, mas astcia. Esse o mote principal que
trabalha Alencar em seu personagem Frei Luca, o futuro Loredano, cujo fim,
Alencar trama de maneira que o prprio trajeto o enleia, Alencar d cordas
para que Loredano se enforque, mas no foi na forca, nem na fogueira,
como era costume naquele ento que Loredano encontrou seu fim.
78
O frade herege estava possesso, pelo castigo que ia sofrer e, tambm por
ter perdido a esperana de apossar-se de Ceclia e do tesouro. (ALENCAR,
2001, p. 81)
Ele era terrvel de se ver, nesse momento. Seu aspecto tinha uma expresso
brutal e feroz, bem digna do seu esprito.
- O bom-bocado no para quem o faz, herege! disse o homem que se
tinha apossado do mapa das minas.
- Vai para o inferno! gritou Loredano, antes que o amarrassem.
O seu derradeiro fim aconteceu junto com a grande exploso que apenas foi
testemunhada por Peri:
Por entre as folhas, Peri podia ver a casa, iluminada pelas chamas do
incndio que comeava a lavrar com intensidade.
De repente uma cena fantstica passou diante de seus olhos: a fachada do
edifcio caiu e ele pode ver a sala, iluminada pelas chamas. No centro. D.
Antnio, de p no meio do aposento, elevava com a mo esquerda um
crucifixo e, com a direita, preparava-se para atirar no rastilho que levava ao
paiol.
79
Peri e Ceci saem antes de seu mundo explodir. E, quando na seqncia vem
a enchente, se salvam sob um pindo (uma palmeira). Somente eles, sem
famlia, sem lugar, vo em direo ao desconhecido reconhecvel, na
medida em que Ceci se recusa a ir para a casa de sua tia, na capital, por lhe
ser estranha a cidade, j que sempre viveu na mata. Assim eles revivem o
mito fundador da humanidade (segundo, os Guarani), em que Tamanduare
e sua mulher povoam Ywyju (a Terra Resplandescente) que outra metfora
da Terra-sem-mal.
Muitos Guarani, assim como Tupis, partiram para Ywyju, uns partiram em
direo ao leste, outros para oeste (CLASTRES, 1978, p. 66), parece que a
direo no importava muito. Peri e Ceci a encontraram para alm das
guas.
80
81
82
tanto faz ir pra o oeste ou para leste, porque o que importa na verdade o
aguyje, ou seja, o estado de encontro, Ywymarheim o lugar do
encontro com o divino em ns. O Guata Por nos predispe, nos situa em
disposio de possvel sintonia. A palavra em Guarani para essa disposio
mboru, que significa: prontido, constncia, propsito inarredvel,
predisposio. Caminhar enquanto existir caminho, mboru, a nica luz
na escura noite da vida. Com esta luz se caminha para dentro dela.
Procurando e perscrutando cada dobra do caminho, cada abismo na
montanha. E em todas as partes est amandu, ento no se pode ser
contra nada. amandu o Mborayu. Para alm, est o desconhecido, e o
desconhecido no pode ser descrito. Podemos apenas indicar amandu
atravs de uma ltima descrio: o Mborayu. Alm desse ponto, do
Mborayu, no h Guata Por, porque no h mais o caminhante, chegou-se
em Ywyju, e Ywyju o lugar desconhecido para onde se caminha, o lugar
do encontro.
Tal elecin no deriva de ninguna voluntad. El sujeto que soy (que somos)
no es un sujeto que elige en y desde su voluntad en relacin a posibilidades
que se ofrecen a su entendimiento. Tal sujeto no es sujeto de voluntad sino
sujeto de eros, investido de eros (en tanto que suscitado por el daimon). Es
eros el que decide. La decisin entre la consumacin del encuentro o del
desencuentro no depende de la voluntad del sujeto, de esse sujeto que
soy.
83
Trias uma chave para algum de fora da cultura Guarani poder entender o
sentido de Ywymarheym. Alencar em O Guarani, tambm, assim como
Gomes. Alencar partilhou a mesma lngua e o mesmo espao Guarani, isso
lhe facilitou o entendimento, assim como a admirao pela cultura nativa; e
compreendeu que apenas atravs do Mborayu, do esprito que une, Peri e
Ceci puderam viver o aguyje, o estado de graa. Alencar coloca o aguyje
como a culminao do amor: amor que no acontece apenas por uma
pessoa em particular, mas pela existncia total. O Mborayu seria ento um
relacionamento vivo com a existncia total que nos cerca: estando
apaixonado em qualquer situao, se esta em aguyje. Se estamos
identificados com algo, ento no o outro; isto o aguyje, ser um com a
existncia, estar totalmente nela; e s o Mborayu nos possibilita esse estado
de apaixonamento pela vida. O Mborayu uma combinao de gratido,
amizade e compaixo. Por isso penso que Alencar e Gomes chegaram a
espaos que a percepo lgica e racional no conseguem sozinhas. H
espaos que so da poesia e da msica, e nesses espaos somente elas
podem nos ajudar no entendimento de aspectos da religiosidade que esto
imersos nesses sentimentos.
Peri no nega os fatos de sua vida, por isso ele inocente. Quando se nega
os fatos da vida no se pode ser inocente. Porque se torna astuto. Por isso
Loredano engana a si mesmo e aos outros. Peri corajoso o suficiente para
viver os fatos como eles se apresentam, ento ele torna-se inocente. Esta
inocncia no cultivada. Ele ela: inocente.
84
2. 3 MBORAYU HEYM
No verso que trago o que mais chama a ateno o uso da palavra heym
aps a palavra mborayu. Heym quando segue um termo muda o seu
significado em direo ao seu oposto complementar, normalmente, quando
o tradutor desconhece essas nuances da lngua Guarani, faz a traduo
usando o antnimo da palavra. Um exemplo clssico do que acabei de dizer
acontece com a traduo da expresso Ywymarheym, que reconhecida
pela tradio dos estudos Guarani como A Terra- sem- mal, na medida em
que Mar de certa forma significa mal, embora tambm possa designar
insanidade, doena, etc., Len Cadogan quando exemplifica a palavra Mar
em seu dicionrio da lngua Guarani tambm faz o uso do mito dos gmeos
com o sentido de dano (cf. CADOGAN 1992, p. 93). Mas o que quero dizer
que heym nem sempre designa o antnimo de um termo ao qual segue. No
caso do verso que citei do dilvio, a melhor palavra que traduziria o sentido
seria desunio, somente que no foi usada porque no caberia
musicalmente e nem combinaria poeticamente, nesse sentido esttico ficou
sendo prefervel a expresso mau amor, embora no seja um lxico que
equivala exatamente, mas claro que em se tratando de um canto-poema,
as coisas se complicam um pouco mais, embora acredite que, as verses
dizem bem mais do que as tradues literais. No caso do mito do dilvio o
mborayu heym gerou tal desunio que o Senhor do mau amor
85
teve que criar o seu prprio mundo, o mundo dos Tup Mirim, ou seja, dos
Tup pequenos. No poema tambm dito para mborayu heim: senhor da
funesta unio.
Sobre o Mborayu, neste primeiro momento, dei destaque para o termo que
designa o oposto complementar de um termo-idia, na medida de que isto
no tem como acontecer com um termo-objeto, pois um termo-objeto
neutro, exatamente por no apresentar aspectos complementares. Mas em
outro momento volto a esta questo. Neste momento, como disse, dei
destaque para o termo que designa o oposto complementar de uma idia,
que o heym, coisa que no existe na lngua portuguesa, mas que por outro
lado nos auxilia na compreenso de como as coisas acontecem na
semntica Guarani.
86
Neste trecho acima, do Pierre Clastres, Aywu confunde-se com eem e signo
com substncia. E, o Mborayu estaria relacionado com o fundamento da
socialidade, a palavra mborayu (aywu), inclui o radical ayu (aywu). Mas
algumas coisas no ficaram muito claras.
87
Outro engano traduzir eem por esprito, mesmo usar a palavra alma,
como muito comum nos estudos Guarani que provm da tradio crist
usa-se muito a expresso nome-alma (alma angue). At possvel se
fazer essas analogias, mas bom que se deixe claro que no se trata disso
exatamente. O que na tradio ocidental se denomina esprito, e est em
dicotomia com o corpo, para a compreenso Guarani apenas outro corpo,
um dos quatro corpos, sendo que o quinto o totalizante. Mas neste
momento no vou abrir para esta outra questo, mas para essas duas
questes que so o aywu e o eem, por estarem relacionados com a
compreenso do Mborayu.
amandu a fonte, pode ser tambm visto em sua forma pai (Ru), ou seja,
como anderu Papa Tenonde; tambm como andexy ete, nossa
Verdadeira Me. Uma ilustrao do que estou dizendo pode ser encontrada
no mito dos gmeos: Fonte de onde brota a vida: esse o nome originrio
de nossa me. E dessa fonte, que amandu, eem a gua. Ou seja, da
fonte de onde brota a vida, eem a vida. Por outro lado pode-se dizer que
eem designa a existncia. Pois um ser sem vida apenas outra
manifestao de eem, outra polaridade. Mborayu que aglutina a
existncia, e seu desaparecimento que desintegra a existncia, a nvel de
primeiro corpo. Mas vamos voltar ao Pierre Clastres, em seu dilogo com a
expresso usada por Cadogan para o termo Mborayu, no terceiro verso do
segundo canto do Aywu Rapyta:
88
89
90
Como poder ser observado nos pronunciamentos que sero feitos por
anderui e por andexyi Guarani da parcialidade andewa ete, o termo
aywu, significa palavra, ou seja, a mediao feita pelo verbo na expresso
de idias, sentimentos, etc.. verdade que em estudos feitos com outros
grupos esse termo se confunde com o termo eem. Como poder ser
observado, no ser o caso nos pronunciamentos que teremos a seguir.
Sobre essa questo temos muitas polmicas como a que acontece entre
Graciela Chamorro e Branislava Susnik. Graciela pe o foco de seu estudo
Kurusu eengatu na palavra a partir do que ouviu de Lauro, um dos
lideres espirituais Kaiowa de Panambizinho, em 1983: Ore Kurusu
eengatu rajy, ore ara jeguaka Ray (Nossotros somos hijos e hijas de La
cruz de La buena palavra, somos hijos Del adorno do universo
(CHAMORRO, 1995, p. 35). Importante se esclarecer que para os Guarani a
cruz no esta relacionada cruz da paixo e sim aos rapyta, ou seja, aos
sustentculos, aos fundamentos do mundo. A polmica com a Susnik
acontece porque esta suspeita da importncia da palavra para os Guarani,
para ela esse um fenmeno tardio, uma influncia crist. Em seu apoio
Chamorro busca Meli: Mientras
91
92
93
O Aty teve incio logo aps o pr-do-sol como de costume. Tudo estava bem
arranjado e ornado para esta ocasio.
Enquanto o mimby vai sendo tocado o paje faz pyte 6 nos objetos rituais e
nas pessoas presentes. passado tambm para os participantes aspirarem
Yypety7 e Parika8. Aps terminar o seu circuito o paje passa o petyngua
para a andexyi Jaxy Rendy que faz um circuito parecido com o do paj e
passa o petyngua para o anderui Karai Tatawa. E assim as coisas
prosseguem at o petyngua retornar s mos do paj novamente. Para as
pessoas que terminam o pyte, a andexyi Yxapy Rendy serve kaayu9.
94
Quero agradecer a vinda do Karai Tup, uma alegria t-lo aqui e retribuir
um pouco da hospitalidade que sempre teve para conosco na Kambyija,
terra maravilhosa mirada por Tupambae. Hewei.
Quero agradecer muito a companhia de xerayxy Yxapy Rendy por nos ter
preparado o kwaxya de Karai Poty, pelo carinho que teve no preparo do Opy
e de todas as coisas necessrias para este Aty. Aty em que honramos
Ruete e Xyete Jakaira, os criadores do mundo e do seu desdobramento em
toda procriao.
95
Por outro lado, tentar ver onde esta mais amandu, esta mais em Kwaray?
Para mim, so expresses diferentes e igualmente vlidas das criaes.
Gosto de sentir que meu pai o Sol e minha me a terra e que a terra
fecundada pelo pai e que todos somos seus filhos e filhas, todos somos
irmos e irms.
96
enseanzas. Por ejemplo donde uno habla de onza el otro de Len, donde
uno dice Tierra sin Mal el otro los reinos de los Cielos.
Otro momento importante fue conocer lo dicho por Karai Poty, donde
confirma esta versin hablando del hermano gemelo de Jess.
Confirmando esto dice Kara Poty algunos Kexuita eran de los nuestros,
fumaban pety y tomaban Kaayu. Seguramente un espiritu de tanta Luz
como el de Kexu Krito, con un desafo tan impresionante, con la misin de
abrir un camino de Luz, a contracorriente del pensamiento de la poca, de
sentar un precedente as, haya encarnado la energa de los quatro Amb,
con una conciencia pura de amandu. Creo que el ande Reko es una forma
de vivir para recuperar nuestra verdadera esencia espiritual, nuestra
expresin csmica. Lo cual trasciende lo guaran en s. Si bien el pueblo
Guaran tuvo, como otros, la misin sagrada de cuidar y proteger este
conocimiento SupremoHewete a todos los Awa y Kua Ete, Ywyraija e
Ywyraijari, anderui y anderxyi, Mboea, Mboruwixawete y Mbaekuaa
que hicieron posible esto.
Esta manera del ande Rek nos permite dejar de ser la enfermedad y
convertirnos en la cura, es nuestra opcin, nuestra sanacin dejar de ser el
cncer y convertirnos en luz. Cada Aty, cada Maety, cada sanacin personal
nos ayudamos como parte de la madre Tierra, de andexy Ywy Ret a
sanarnos. Hewete amandu, Hewete anderu, Hewete andexy.
amadu Mbyte Por andekwerupe.
Hewei.
97
- Kwaray o Deus-Sol e que o mundo est como est porque no tem mais
me, s pai; e comeou a falar em Guarani mbya ficando muito
emocionado.
Depois se aproximou uma jovem ndia que se chama Ara Poty, nome civil,
Neiva, a qual estava quase parindo. Disse que: Tup Jesus Cristo; e diz
que no consegue continuar falando em portugus sobre os ruete e xyete.
Diz que o paj fala durante as rezas dos ruete e xyete e da terra-semmal, diz: - a terra-sem-mal um lugar onde no existem as coisas desse
mundo e que todos eles um dia iro para esse lugar. Disse mais uma vez: o
paje poderia falar mais sobre esse assunto.
Gostei porque nessa aldeia havia um puxiro de awaxy e uma pequena horta
familiar. Pude tambm ver a produo de artesanato deles: colares,
petyngua, instrumentos musicais, mbarakai.
e Karai encerra seu aywu e passa o ywyrayu para o anderui Karai Tup
que o chacoalha e inicia o seu aywu:
98
Recuerdo como primer hecho significativo el haber nacido en las faldas del
Tupamba, desde nio en la escuela siempre se deca que ese era un
cementerio charra 11.
Recuerdo una noche que haban salido publicadas en varios diarios ese
descubrimiento que presa de la alegra y la excitacin salimos con dos
Esa noche algo sucedi en nuestros seres. Al poco tiempo con 3 amigos
mas: Pablo, Toti y Gustavo, comenzamos lo que sera la primer subida al
Tupamba.
Este hecho fue de tal trascendencia, que sin extenderme en l, puedo decir
que se nos corri un velo en la visin y en la comprensin.
Nunca en todas las veces que volv a ir al Tupamba, v lo que vimos aquella
tarde, miles y miles de crculos de piedra, algunos de ellos hasta con el
pasto cortado, extendindose desde la falda a la cumbre.
11 Charrua: povo que habitava o Rio Grande do Sul e o Uruguai. Uma boa
parcela dos Charru vivia o ande Reko Guarani.
99
Karai Tup passa o ywyraywu para a andexyi Krexu Rete. Que faz seu
aywu:
- Xe hewete amandu kowae aty, opy, tata por, kaayu, pety, parika,
yypety. Quero agradecer ao Awaju e a Yxapy por este aty e pedir mbyte
Krexu passa o ywyrayu para o anderui Tataendy eery. Que faz seu aywu:
Tataendy passa o ywyraywu para a andexyi Yxapy Rendy que faz o seu
aywu:
100
Agradecida por ser mulher, me, esposa. Sinto a alegria de adentrar no Opy
e perceber a energia de acolhida e aconchego da casa de reza. Haewete
pelo poder sanador do tata por, que refaz meu corpo, sana meu esprito e
conforta meu ser mais profundo. Haewete por amandu ter criado juntos a
partir do seu sonho anderu Papa Tenonde e andexy Ete, por poder dar
espao para Nossa Me, e pensar e sentir Deus como um ser Feminino.
No discurso proferido no peteyn ara Karai Poty coloca que amandu criou
nossos primeiros pais anderu Papa Tenonde e andexy Ete. Isso vem de
encontro da palavra que o Karai Tataendy deu para a e Karai sobre o
mundo estar sem me. Isto de se relegar o aspecto feminino quando se
reza, quando se pensa na divindade, sem dvida alguma est gerando um
desequilbrio imenso no pensar e no sentir a espiritualidade e tudo que
compreende a existncia do prprio ser humano.
3. 1. 2 Comentando o texto
101
Tambm trouxe o sincretismo da jovem Ara Poty, que estava por parir, e que
lhe disse que Tup era Jesus Cristo.
O anderui Karai Tup relata a sua saga de retorno ao ande Reko. Fala do
seu encontro com as pedras talhadas que so pedras milenares, resduos de
uma cultura muito antiga. De sua profunda relao com a montanha
Tupambae, em cujo sop vive. Falou tambm de uma forma muito
emocionada do seu sagrado encontro com o anderui Karai Tatawa.
102
103
O Aty teve incio logo aps o pr-do-sol. Na primeira hora de aty o paj faz
pyte, os cantos e as rezas preliminares, sauda os Ruete e as Xyete, sauda
os presentes e passa o ywyraywu para a andexyi Krexu Rete que faz o seu
aywu, suas palavras:
Pensar que amandu es uno para cada uno de nosotros, que uno solo es el
camino y diferentes son los pasos, que cada uno tiene su manera de
caminar y asi ir lapidando la piedra para asi aprender lo que es esse
sentimiento que llamamos mborayu, amor. Amor por sobre todas las cosas
amor incondicional, y asi poder reconoser el andar de cada uno poder amar
cada cosa, toda la exisistencia porque todo es tuyo amandu, poder tener
asi el entendimiento para comprender el caminar de cada uno, poder ver
desde el corazon, poder
104
oir desde el corazon. Sintiendo que todo es uma continua practica y la vida
nos da la posibilidad de poder sanar, comprender y amar para asi llegar a el
aguyje por el guata por rumbo a ywymarhey.
Como dijo kexu krito: solo llegaran a nuestro padre a travez de mi. Uma
parte de la estrofa que me gustaria de recordar es la siguiente: Ahora si
ustedes me pidieran decir quien es amandu, yo te digo que pasaria la vida
diciendo del y em cada momento te diria diferente y de nada serviria para ti
porque solo tu puedes sentir y saber para ti. Entonces yo no digo nada, yo
canto, yo danzo, yo rio, yo lloro. Haewete amandu, agradesco apoder
cerrar este ciclo, agradesco poder ir practicando em mi vida, com mi andar,
esta maravilla que muestra nuestro camino Guarani, andereko. Haewete
Karai Awaju Poty, haewete Yxapy Rendy, haewete karai Tatawa, haewete
e Karai, haewete por la vida, pido a amandu mucho mboru,
Sinto que amandu est em tudo, e que tudo est interligado, como o
sangue que une uma famlia, tudo est relacionado entre si. Tudo que agride
a terra agride seus filhos, somos parte desta terra e ela parte de ns. Mas
ns temos que assumir tambm a realidade e no viver em um mundo
imaginativo, que no existe, porque seno estaremos fora da realidade e
por tanto pisando no ar, e para caminharmos temos que pisar no cho,
seno ficamos patinando.
105
difceis, mas ainda temos o opy, o tata por, o pety, o kaayu, o awaxy ete, o
ywaum, o tekowa por, gua pura, ar puro, o alimento puro. Temos
amandu ento temos tudo. Temos a vida e a morte nas mos.
Sinto que para aqueles que conhecem o ande Reko esta realidade de
sentimento simples percebida e vivida. Agora, para os juru que pensam
que o bom, o belo, o ideal est no paraso, ou seja, no paradisaco, no
parado a que h o grande engano, pois a vida, a natureza movimento e
movimento desequilibrado. Pois se assim no fosse estaramos mortos.
Haewei.
Es una bendicin conocer una sntesis tan bella, tan pedaggica, tan clara,
un resumen perfecto de la tradicin Guaran. Con el aroma de nuestros
montes, con la Sabidura que brota de esta parte de andexy Ywyret,
nuestra Madre Tierra.
Estas palabras nos muestran una sabidura actual y a la vez mas all del
tiempo.
106
Kara Poty nos habla del Gnesis y como desde la explosin de Luz y Sonido,
el Amor Mborayu, entre andexy y anderu le dan forma al Universo.
A pesar de que veamos que todo est mal, que enfrentar esta cultura que
est tan dentro nuestro, es tan difcil, que devorar la onza desde adentro es
una ardua tarea. Kara Poty nos dice:
As, Kara Poty habla de la actitud correcta, para hacer el Maety, para
buscar el camino hacia la Tierra-sin-mal.
107
Sado meus amigos aqui presentes neste crculo sagrado com o corao
repleto de agradecimentos e no propsito maior da colheita do awaxy ete
mirim, neste perodo de Ara Karai, yxa de Tajaxu.
uma pessoa, pois uma pessoa aquilo que escolhe ser no aqui e agora, no
presente, sempre mutante de cada segundo de vida.
108
Karai Poty nos diz que: S um mbaekwaa sabe trabalhar os golpes como
ferramentas para construir seu apyka. Isso porque a caracterstica de um
mbaekwaa o aguyje, o amadurecimento. E amadurecimento doura,
plenitude de mborayu por. sal que neutraliza a acidez, chuva que irriga
a aridez. um maety trabalhado, pronto para dar sementes maduras, para
assistir folhas tenras, flores e frutos. Com razes firmes sustentando a vida e
a morte.
109
3. 2. 2 Comentando o texto
3. 3 MBORAYU ETE
110
Mborayu, esta fra que mantem a integralidade do mundo. Com isso ela
quis dizer que o mundo formado por muitos elementos, mas que ele um
(peteym). Pois, no cinco, temos a integralidade (peteympo). Seguimos com
a sua fala:
111
Se tivesse que hacer um resumem diria que solo nos queda trabajar para
lograr o Mborayu ete, e el sentimiento que amandu tiene para todos
nosotros. E complementa: (...) poder ter asi el entendimiento para
compreender el caminar de cada uno, poder ver desde el corazon, poder oir
desde el corazon. Sentiendo que todo es uma continua practica y la vida nos
da la possibilidad de poder sanar, compreender y amar para asi llegar a el
aguyje por el guata por rumbo a Ywymarheym.
112
Schaden foi talvez o nico pesquisador que tentou entender esse universo
da anatomia do ser Guarani, digo isso porque apesar dele ter na verdade
feito uma srie de confuses, pois tenta sistematizar esses elementos
dentro de uma perspectiva lgico-racional-ocidental, e claro que isso
no d conta da compreenso do mundo do sonho, um mundo que tem sua
prpria lgica e sua prpria razo. Ele fica da pgina 102 pgina 135, do
seu Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani, tateando nesse escuro,
mas conseguiu trazer algumas luzes para a compreenso. No vou fazer
uma anlise crtica desse texto agora, no me traz nenhum acrscimo no
que quero tratar neste momento, vou apenas apontar as suas luzes. Ele diz
assim: o chefe religioso dos Mbya do Itariri admite a existncia de quatro
almas em cada pessoa, uma situada na cabea, outra no corao e duas
que ficam de fora, cuidando do indviduo. Segundo as palavras textuais do
informante: Txee irundy eenkwery arek; petein areko txepyare, petein
areko txeakre, mokoim arek okape, ogarekova txereh (SCHADEN,
1974, p. 117).
113
114
Aprendi a perceber que cada corpo tem o seu prprio tipo de sonho. O Rete
sofre ao sonhar as impresses que so causadas pelas interferncias que o
corpo fsico recebe, ou seja, ele pode at mesmo ser estimulado de fora;
exemplo: se algum cutuca a pessoa com dois espinhos, o sonhador pode
sonhar que esta sendo picado por uma cobra (mboi); os sonhos causados
por desejos reprimidos tambm acontecem nesse corpo, creio que os
sonhos estudados por Freud eram dessa natureza. O Aikwe, como o Rete,
tambm pode ser estimulado, os mborai, os mbopu, ou seja, os cantos e a
msica podem estimular esse corpo, assim como o pyte, ou o tataxina
Cada corpo tem sua prpria simbologia, assim cada vez que um sonho
passa de um corpo para outro, ele traduzido simbologia daquele corpo.
A experincia do een Por o sonho dos videntes, dos profetas, dos que
vivenciam o futuro em seus sonhos. Nesse estado o sonhar no diz mais
respeito ao indivduo, mas conscincia que ele tem do todo. Por exemplo,
o mito do dilvio existe em todo o mundo, no h registro histrico dele,
mas ainda h um registro, esse registro pertence ao een Por, ele pode
sonhar a respeito deles.
115
percebe como ele , mas, como espelhado, atravs dos conceitos. Num
segundo momento percebe que ele sonhado e que o sonho pode existir
sem ele, mas ai, ainda assim, existe o rio da vida.
Ainda h outras maneiras de se dizer isso, por isso que o Schaden disse:
Infelizmente os dados que tenho sobre a teoria psicolgica dos Kayova
so demasiado dspares e incongruentes para se poder tentar uma
sistematizao (opus cit.). Mesmo assim ele constatou que (...) Todos os
conhecedores da doutrina Guarani com que trabalhei admitiam como certa
a pluralidade da alma humana (SCHADEN, 1974, p. 110 - 111).
116
Mas, o que quis com toda essa exposio sobre os rete e os ret (corpos e
mundos), foi tentar ajudar no entendimento de que tudo isso faz parte da
compreenso que os Guarani tem de si e do mundo (mbae Guarani), e que o
Mborayu rene tudo em todas as direes, e tambm em direo ao centro
(amandu Mbyte Por), que uma potncia latente, porm parada, o
paraso. Por isso o corpo-alma deve caminhar pelos een tape, por todos
que somos cada um (opawaer peteyna, peteyna).
117
com tudo quanto existe na materialidade. Cada ser o que buscou ser.
Temos que respeitar isso, as opes de cada um de nossos irmos da
natureza.
118
119
O paje Karai Poty, cujo nome civil era Gumercindo Fernandez, viveu seu
perodo de xtase mstico, ou seja, de misso redentora, antes de ir para
ywymarhey, a terra sem males, do final da dcada de 60 at o incio da
dcada de 80, no tekowa Jaixa Por, aldeia de Ubatuba, por
aproximadamente treze anos. Ele veio do Uruguay tendo passado pela
Argentina, pelo Paraguai e pelos estados do sul do Brasil; quando se fixou no
tekowa Jaixa Por, j era idoso.
120
Karai Poty omombeu, significa Karai Poty nos disse. E seus dizeres que
segundo a tradio aconteceram nos aywu, na parte em que se
pronunciam verbalmente nos aty, durante 13 dias em que esteve com um
grupo em guata por, em caminhada, para ywymarheym.
No mokoym ara, discurso do segundo dia, ele aborda algumas questes que
so ao mesmo tempo polmicas e muito caras ao povo andewa, e que os
diferencia dos outros grupamentos Guarani; que so: a absoro do
conceito Deus, e a traduo desse termo por amandu; a admisso da
contribuio de Xume para o ande Reko; o considerar Xume irmo gmeo
de Kexu Krito (Jesus); reconhecer o convvio com o Kexuita, o Jesuta; aceitar
ao aspecto Tup de amandu a designao de Deus dos exrcitos; e,
considerar Tup, Jakaira, Kwaray e Karai como emanaes de amandu.
No peteympo ara, discurso do quinto dia, Karai Poty esclarece que o que o
Juru chama de religio e de cincia, para os Guarani o ande Reko.
No mboapy meme ara, discurso do sexto dia, ele responde uma pergunta
que lhe feita. A pergunta que lhe feita refere-se aos Juru, mas ele diz
que no quer falar do Juru mas deles (do povo que o estava ouvindo).
Nesse discurso ele diz que peteym (um ou uma)
121
No mboapy meme rire peteym ara, discurso do stimo dia, Karai Poty fala
sobre o maety, desenho de plantio do awaxy ete, o milho sagrado.
Lembrando que as cerimnias nas quais o texto dos Treze Dias
Memorveis citado, foram feitos para celebrar o plantio (ara poty
atyguy) e para a colheita (ara ym atyguy) do awaxy ete.
No irundy meme ara, discurso do oitavo dia, Karai Poty aborda uma das
superties comuns a Guarani e brasileiros, o mau olhado. Ele diz que
o Mborayu como um horizonte que se descortina e que com mau
olhado no se pode enxergar esse horizonte.
No irundy meme rire peteym ara, o discurso do nono dia, ele responde uma
pergunta que no enunciada. Diz que no com f e nem com dvidas
que se chega a ywyju, mas caminhando/passeando.
No mokoympo rire peteym ara, discurso do dcimo primeiro dia, Karai Poty
faz um discurso dramtico, onde repreende os anderui e as andexyi, os
ywyraija e as ywiraijari presentes e diz que eles fazem de conta
(representam para os outros) que so felizes, mas que na verdade eles no
suportam a si mesmos.
4. 1. 1. 01 Peteym Ara
Quem criou tudo foi amandu, porque ele criou nossos primeiros pais
anderu Papa Tenonde e andexy Ete. E de anderu Papa Tenonde e
andexy Ete nasceram ruete e xyete
122
4. 1. 1. 02 Mokoym Ara
Kexu Krito foi Kwaray quando andou aqui nesta terra e Xum seu irmo
gmeo.
Depois veio o kexuita e uns eram dos nossos e fumaram petyn e tomaram
kaayu com nossos pais e com as nossas mes. E ns aprendemos tambm
com os kexuita sobre amandu Tup, o Deus dos exrcitos.
E o Deus dos exrcitos lutou com a gente para vencer os jurua que nos
atacavam, e nos vencemos o jurua, seno quem estaria aqui contando esta
histria.
Mas hoje tem muito Guarani que est perdendo esta luta e est se
entregando para a tristeza. Isso esta acontecendo porque esta perdendo a
lembrana de muitas coisas.
Por isso hoje eu quero dizer que amandu Tup vai curar o nosso corao e
que amandu Jakaira vai animar a nossa dana e que amandu Karai vai
animar o nosso canto
123
4. 1. 1. 03 Mboapy ara
Hoje a terceira noite em que falo com vocs. Ficaremos juntos por treze
noites. E ento ns iremos para Ywymarhey12. Ficaremos assim por
treze dias, somente fumando petym e tomando Kaayu, ser a nossa
despedida.
Essa minha fala para vocs que iro permanecer aqui por mais um tempo.
A anju Mirim est escrevendo o que estou dizendo em um kwaxya, ela
ainda sabe fazer kwaxya e escrever com as letras sagradas.
Tambm quero dizer que estamos indo porque o Mboruwyxa est vindo, ns
viemos para preparar o caminho.
A anju Mirim vai entregar para ele este kwaxya que est escrevendo, no
ser difcil de encontr-lo, porque ningum semelhante a ele. Ele veio em
um veculo de amandu e foi conduzido at o ventre de sua me por um (a)
Jukupe Guaxu.
12 Ywymarhey: a terra-sem-mal.
124
O propsito das minhas vidas foi preparar o caminho para amandu Ara
Guaxu15 . Hewei.
4. 1. 1. 04 Irundy ara
Tem tambm gente que diz que no serve para nada o Guata Por (caminho
sagrado). Que coisa de louco, de quem no tem o que fazer. Ento eu digo
que, nossas avs e nossos avs jamais diriam isso porque eles e elas tinham
o caminho como a coisa mais importante da vida. E todo o mundo estava
em equilbrio. Hoje tudo esta em desequilibro at a natureza o homem
desequilibrou e como ns fazemos parte da natureza tambm
desequilibramos e temos essa loucura de dizer que no h caminho. Ento
quem est no caminho mais tem que cantar, mais tem que danar para
compensar, para manter a vida, para lembrar-se das nossas avs e de
nossos avs, para alegrar o esprito de nossas crianas.
14 Kwaarupe: arte marcial guarani que ao ser aprendida pelos afrodescendentes deu origem capoeira.
125
awaxy ete, o ywaun, o tekowa por, gua pura, ar puro, e alimento puro.
Temos amandu, ento ainda temos tudo. Temos a vida e a morte nas
mos.
4. 1. 1. 05 Peteympo ara
Os paj dos jurua vem aqui e querem ensinar a religio deles para ns. Tudo
bem bom aprender coisas diferentes. Mas no bom eles acharem que
ns no temos religio, ou quererem que ns sejamos da religio deles.
Agora uma coisa bem diferente: o jurua pensa que existe. Ento eles
foram devorados pela ona e agora precisam devorar a ona de dentro dela.
126
Toda vez que voc vai para um aty deve reconhecer que l esto nossos (as)
ancestrais e que h ali todo um mundo de espritos ao redor. No momento
do aty o que se tem que fazer penetrar no mais profundo do corao e
escutar o ritmo. Escutar a maneira como ele ou ela fala e escutar a maneira
como canta o esprito. O problema que muitas vezes a gente no escuta o
bastante para ouvir.
bom saber que fcil viver bem no ara poty da vida, mas s os Mbaekwaa
sustentam o ywyra rete (a dignidade) no ara ym da vida. S um (a)
Mbaekwaa sabe trabalhar os golpes como ferramenta para construir seu
apyka. Agora para aqueles (as) que resolvem caminhar juntos nesta vida, a
melhor maneira de comear iniciar reconhecendo o sagrado em tudo.
Um ou uma Mbaekwaa pode andar desnudo (a) e todos esto desnudos (as)
para o seu olhar. Mas s um ou uma Mbaekwaa pode reconhecer outro (a)
Mbaekwaa. Quem tem o olho fechado no pode enxergar nada. Quem tem o
ouvido fechado mesmo ouvindo um ou uma Mbaekwaa cantar no escuta
nada.
127
Porm, o que tem que acontecer com a semente para ela se transformar em
uma planta?
128
estava protegendo a planta antes dela encontrar o solo certo pode prender
a vida -- ento a planta morre na semente.
Vocs esto aqui e me fazem perguntas, no por sua causa que vocs
esto aqui, por mim, porque minha semente no existe mais, ento vocs
podem se abrigar embaixo dos meus galhos e alimentar-se dos meus frutos,
porque eu no existo mais, apenas a rvore que nasceu de mim, embora
dizer mim no seja certo, porque nenhum mim existe mais.
Hoje eu digo que quem tem mal olhado no poder ir com a gente porque
para quem tem mal olhado tudo mau. O mal como culos. Para ir para
ywymarahey, voc tem que tirar esse culos.
Quem diz que o outro mau, quem diz que o mundo mau, est vendo o
outro e est vendo o mundo com esses culos. E esse culos no deixa ver
o caminho que leva para ywymarahey.
129
O tempo vai ficando cada vez menor, a morte vai se aproximando e voc
no conseguiu ainda chegar a ywyju. como se voc tivesse se tornado um
ygarape estagnado, secando cada vez mais at morrer. E voc me diz que
no entende por qu?
Eu te digo que um awa ou uma kunh que tenha f nunca chegar a ywyju e
digo o mesmo de quem tenha dvida.
Mas voc deseja o impossvel e quer subir a montanha com uma perna s
para se sentir capaz.
4. 1. 1. 10 Mokoympo ara
E na vida tudo incerto, nada garantido. Tudo o que voc possa alcanar
na vida lhe ser tomado. Se voc bendito, afamado, pode estar certo que
mais cedo ou mais tarde voc ser maldito pelos que vo morrer.
130
Mas eu digo que as aparncias enganam. Que tudo o que voc alcana
para sempre, no pode ser perdido. O que voc caminhou ningum nunca
poder lhe tirar porque a sabedoria no pode regredir uma vez atingida
torna-se parte de voc. No algo que voc possua torna-se parte de voc
torna-se seu prprio ser, no se engane sobre isso.
Agora vou dizer para vocs que vo ficar e que vo voltar para seus Tekowa
(para suas aldeias) o porqu disso estar acontecendo. Eu digo que isto est
acontecendo porque vocs so cegos que gostam de serem guiados por
cegos e que esto indo na direo de um abismo sem fim, com a cara e a
coragem de tolos, com o sorriso de um bobo alegre estampado no rosto e
vazios de ee Por (vazios do esprito).
131
A vida de vocs essa corrida, essa fuga de vocs mesmos, porque vocs
no esto desenvolvendo o Mborayu de vocs. Ento assim no tem sada,
para vocs no h descanso, vo para onde forem vocs levam junto os
seus demnios, pois eles so de vocs, e vocs gostam de carregar tralhas,
mesmo que sejam demnios.
Um dia um paj muito famoso, como muitos que esto aqui, morreu. Ento
os seus ywyraija e ywyraijari pararam de comer e danaram por ele at
morrer. E com ele se reencontraram no mundo dos mortos.
Ficaram muito felizes. O lugar em que estavam parecia muito bonito e tinha
todas as coisas que eles desejavam. Ento o paj disse: Cumpri minha
promessa para vocs, trouxe vocs para o paraso, para o reino dos cus.
Ento veio um belo anjo de asas negras e mostrou para eles a vida de seus
irmos na aldeia, que trabalhavam muito, mas que pouca coisa conseguiam.
E isso reanimou o apetite deles pelas coisas e eles voltaram a ter muitos
desejos que imediatamente eram satisfeitos. Mas passado algum tempo,
novamente eles se entediavam de ficar naquilo, de ter todos os seus
desejos satisfeitos Ento foram ao anjo e disseram: No
132
queremos ver nosso povo, porque tambm nos enjoamos deles, nos
queramos ver um lugar que acho que reanimaria os nossos desejos, mas
temos muito medo de pedir porque depois no vamos ter mais para onde
olhar. O anjo disse: Mas que lugar esse que vocs querem olhar? Eles
responderam: O inferno. Ento o anjo deu uma longa gargalhada e disse:
Mas aonde vocs pensam que esto? Vocs esto no lugar do tdio eterno,
onde tudo s existe para isso: para um ver a desgraa do outro. Olhem um
para o outro, vocs j esto no inferno.
Hoje no vou dizer nenhuma novidade, vou dizer s o que acho importante
de tudo o que j disse.
Digo para no esquecer que ikowe (a vida) amandu. E que a sua garantia
o Mborayu.
Amenhete.
Neste dia Karai Poty no fez nenhum aywu (discurso), apenas a reza inicial
(agradecimentos) e a final (bendies). Ao final do aty (da cerimnia), deu
um sorriso radiante e disse jaaju (adeus) e danando partiu com os seus.
Como espectros desapareceram no horizonte. E nunca mais foram vistos.
Aos que ficaram restou fazer o opaaty e regressar para as suas vidas.
133
4. 1. 2 Comentando o texto
Sem dvida no foi sem medida que a andexyi Yxapy Rendy escolheu o
texto do Karai Poty, e que a andexyi Jaxy Rendy o endossou. Tambm no
foi por acaso que a andexyi e Karai escolheu as palavras do Tuja Karai
Tataendy que exaltou andexy Ete, a Grande Me. Elas escolheram estas
falas porque so mulheres e sentem nas suas vidas o resultado desse
desiquilbrio, em direo ao masculino, que se traduz em forma de opresso
sobre as suas feminilidades. Os seus apelos so em direo a uma
compensao, a um respeito pelos seus seres.
Karai Poty tem amandu no seu devido lugar, como ee Guaxu, Grande
Esprito, como ee Por, Esprito Sagrado, que cria ao mesmo tempo
anderu Papa Tenonde, Nosso Pai Primeiro ltimo e Verdadeiro e andexy
Porm, Karai Poty faz um sincretismo, que aparece tambm na ltima carta
de Andresito Guakurare. Esse sincretismo surgiu quando a defesa do povo
Guarani foi necessria na grande guerra de extermnio que ocorreu no final
do sculo XIX. Andresito na sua ltima carta, quando v que no tem sada
e sabe que sua luta suicida, mas que para ele e para o seu contingente
melhor morrer de p do que curvado, invoca tambm amandu Tup, o
Deus dos Exrcitos. Deus dos Exrcitos que aprendeu nas redues, com o
kexuita, com os jesutas. Karai Poty relembra essa evocao no Ara Mokoy,
no texto do segundo dia de aty que fez
134
com o seu povo. E rearticula dizendo que o Deus dos exrcitos lutou com a
gente para vencer o jurua os invasores que nos atacavam, e nos
vencemos o jurua, seno quem estaria aqui contando esta histria.
E mais:
135
E mais: Len Cadogan, antes de tornar-se Tup Kuxuwy, diz que: - havia
sido exatamente essa a parte que o havia levado a penetrar fundo, durante
anos, a fim de compreender a cultura Guarani. Disse ainda que permaneceu
seis anos transcrevendo hinos, conselhos, mitos.
Ento, o segundo canto do Aywu Rapyta foi recolhido por Len Cadogan
junto ao paje Pablo Wera. A traduo apresentada foi realizada por mim,
junto com a andexyi Yxapy Rendy.
136
O kwaa-ra-ra wy ma,
II
O -my wy ma,
O kwaa-ra-ra wy ma,
O kwaa-ra-ra wy ma,
O guero-ywara anderu.
Ywy oikwo ey re
Mbae-jekwaa ey re,
Tenonde gua
III
Aywu rapyta r i
Oikwaa ma wy o jeupe
137
O kwaa-ra-ra wy ma,
O kwaa-ra-ra wy ma,
Mborayu rapyta r i
Oikwaa o jeupe.
IV
I ma wy,
Ma wy,
O kwaa-ra-ra wy ma,
O guero-jera o jeupe.
Aywu rapyta
Mbae-jekwaa ey re,
Mbae-a petey i
O guero-jera o jeupe.
I ma wy o jeupe;
O mbo-jo i aw;
138
O xareko io ma wy,
O kwaa-ra-ra wy ma,
VI
O xareko io ma wy
O kwaa-ra-ra wy ma
VII
O kwaa-ra-ra wy ma,
Karai ruete r,
Jakaira ruete r,
Tup ruete r,
O mbo-ywara jekwaa.
VIII
O mbo-ywara jekwaa.
139
amandu Xy ete r i
Karai ru ete
O mbo-ywara jekwaa
Karai xy ete r i
O mbo-ywara jekwaa
Tup xy ete r i.
IX
Rire ma;
Ao kwe i py:
ee ruete pawengatu,
ee xyete pawengatu.
amandu ruete
O pya rekei wr
O mbo-ywara jekwaa
amandu xy ete r i
140
4. 2. 2 Traduo do texto
Principiando tudo,
II
Manifestando-se assim
Do saber inerente gerou
o seu divino ser
III
E pequenas palavras do futuro
Como coisas que sero grandes
Um dia, teceram mundos e
Como fonte de todos os cantos
O amor manifestou-se assim.
IV
E pequenas palavras do futuro
Como fonte de todas as coisas
Manifestaram-se assim em canto
141
E do saber inerente ao amor
As palavras desdobraram-se em mundos
V
E pequenas palavras do futuro
Como fonte de todas as coisas
Manifestaram-se assim em canto
E do saber inerente ao amor
Brotaram os divinos companheiros
VI
E pequenas palavras do futuro
Como fonte de todas as coisas
Refletiram-se no grande corao
Pai de todos os mundos
E de todos os filhos do mundo.
VII
E depois dessas coisas
Refletiu-se no grande corao
Tomando a forma de sua divindade
Karai, Jakaira, Tup irradiantes
Pais de todos os mundos.
VIII
E depois destas coisas
Refletiu-se no grande corao
Tomando forma em frente,
Dos Pais irradiantes
As Mes de todos os mundos.
142
IX
E tendo todas essas coisas
Ganhou formas que se expressavam
O amor desdobrou-se em silncios,
Em palavras, em gritos de louvor
Ao Pai e a Me dos Mundos.
4. 2. 3 Comentando o texto
O Aywu Rapyta mereceu muitos comentrios dos estudiosos advindos da
cultura crist. No Aywu Rapyta, amandu apresentado como Pai
Verdadeiro; isso inadmissvel para uma Kunh Guarani andewa, como
pode ser observado no pronunciamento das andexyi, relatado no captulo
anterior desta pesquisa, porque amandu no pai nem me. Por outro
lado, os estudiosos gostaram muito do Aywu Rapyta, talvez pelo eco
cristo que podemos observar nesse texto, dando destaque para o aspecto
masculino da divindade: Deus pai. Mas na sequncia, dando continuidade
a essa questo, vou comentar alguns pronunciamentos que so importantes
para o entendimento desse texto e que muito tem condicionado a leitura
dele.
Sobre o relato de Len Cadogan do desaparecimento de Pablo Wera (in
BASTOS, 1978, p. 27), Bartolomeu Meli comenta que: Es cierto que
aquellos cantores profticos de Aywu Rapyta han desaparecido y quienes
ahora les suceden no son ms que los sobrevivientes de um pueblo ya
atacado por La enfermedad de La incoherencia y deslizndose hacia La
imprecisin de las costumbres (in BASTOS, 1978, p. 57). Talvez isso possa
ter acontecido com os mbya Del Mbae Wera, muito provavelmente as
coisas foram assim. Muitos grupamentos encontraram o seu fim neste
sculo que se passou, basta lembrar a horda dos Xeta que nos ltimos
cinqenta anos foi reduzida a seis pessoas e suas terras foram ocupadas
pelos empreendimentos agroindustriais do norte do estado do Paran. Dos
Xeta restaram apenas as imagens do Kozak. Da horda do Mbae Wera o
Aywu Rapyta, graas ao empenho de Len Cadogan.
143
Porm o prprio Meli compreende a rearticulao do ande Reko, nos
termos: Esta aparente impureza (dos costumes) contribuye al conocimiento
de uma estrutura dinmica: estrutura y processo em um mismo acto de
4. 3 MBORAYU POR
No canto que fala do mito do dilvio, temos o termo Mborayu Heym ou
seja, mau amor; o verso completo diz: mborayu heym ijaraguy, ou seja,
senhor do mau amor. Isso acontece porque heym quando segue um
termo, muda o seu sentido em direo ao seu oposto complementar. No
prprio verso tambm usada a traduo: senhor da funesta unio.
144
No mesmo poema cantado que: amandu mandou um homem e uma
mulher de cada ret (dos quatro mundos): Tup, Jakaira, Kwaray e Karai. E,
quando chegaram neste mundo, o esprito do bom amor (mborayu por) os
uniu.
Ento temos o termo complementar de mborayu heym que mborayu
por. Os termos que possuem complementares so designados como
termos-idias. E os que no tm como termos-objetos.
145
Porm ao usar o termo conscincia tenho que fazer alguns ajustes, pois no
uso do termo conscincia, deve-se considerar algo que no est ligado ao
ara, ou seja, ao tempo-espao. No se refere a algo ligado ao passado
(waekwe) ou ao futuro (waer), nem memria (mandua), mas a algo
perene. No a algo interminvel, porque o interminvel carrega um
sentido de tempo-espao. Quando h um comeo h um fim, ento a
causalidade significante, esse um termo-idia. Mas o termo-objeto o
fluxo sem comeo nem fim (Opawaer), tudo se dissolve em outra coisa,
tudo vm de outra coisa, como ondas, como ciclos, como os pndulos, como
as perguntas e as respostas, como os plantios e as colheitas. As coisas
acontecem por si mesmas. Ns mesmos acontecemos, somos
acontecimentos. Toda a existncia um acontecer, no um fazer.
A causa de todo esse engano Mandua (o esprito que lembra), e que
normalmente traduzida como memria. Mandua nos vai lembrando os
acontecimentos: nascemos, fomos crianas, jovens, amamos, odiamos, nos
tornamos velhos, colocamos as sementes na terra, colhemos os gros e
pensamos que somos o que mandua nos faz lembrar que somos, um
acumulado de lembranas, at mesmo a lembrana do nosso corpo e de
que somos humanos (cdigo gentico).
Mas esse um engano, uma m compreenso do que Mandua nos trs, pois
ikowe, a vida, apenas um transbordamento de existncia sem qualquer
finalidade. Ikowe um sonho (pytum). E a sua nica qualidade a
insegurana. Quanto mais segura uma pessoa esta, menos viva ela esta. Por
exemplo, um homem morto no pode morrer; assim ele est imune morte,
e esta uma grande segurana.
Uma pessoa das que acompanhavam o Guata Por conduzido por Karai Poty
lhe pede garantia do encontro de ywyju. E Karai Poty responde: Voc me
pede garantias. Eu te digo que a morte a nica garantia, ou pelo menos
parece assim. E normalmente as pessoas escolhem pela aparncia e gostam
das coisas que so garantidas. E na vida tudo incerto, nada garantido.
Quando se vive exposto vida, cada momento completo em si mesmo.
No h predeterminao, no h nenhum plano pr-estabelecido. Assim,
quando h algo para ser feito, deve ser feito. Nada deve ser adiado, porque
o futuro no existe nada se sabe sobre ele, e o momento perene, real.
Importa o Guata Por (o andar), no o ywymarheym, porque
146
andando inexoravelmente chegamos. Porque todos chegam ao aguyje. Mas
dele nada sabemos se no estamos nele, e se no estamos nele ele no
existe. Esse o estado de um Mbaekwaa (de todos que iniciaram seu
caminho para Ywyju). Mas um Mbaekwaa no um santo (Arandu). Porque
os santos renunciam ao mundo (mundo social, mundano, material), e um
147
amandu sempre graa e, sempre amor. Mborayu amor, graa e
compaixo, elas so a mesma coisa, no so diferentes entre si.
O anderui Karai Tatawa Fernandes, em seu aywu diz que: La vida (ikowe)
es amandu y el camino (tape) es sentir, practicar e desenvolver Mborayu.
Em muitos caminhos os caminhantes iniciam j pela chegada, por Deus. No
Guata Por, o caminhante comea consigo, pois como bem observou Pierre
Clastres no Aywu Rapyta, no segundo canto, o texto enumera de certa
forma os trabalhos de amandu, os diferentes modelos de sua pedra
filosofal, raiz e modelo de toda imagem futura. No vendo os humanos
como coisas do mundo, mas humanos como parte do divino (cf. CLASTRES,
1974, p. 27). Ento o caminho Guarani um desvelar da prpria divindade
do humano, por isso possvel dizer: desenvolver o Mborayu. Ou seja, para
conhecer necessrio ser.
Se examinarmos os sentimentos humanos, normalmente observamos que
se apresentam trifurcados, segregando as pessoas em trs grupos distintos:
o grupo daqueles de quem se sente prximo, o daqueles por quem sente
averso e o daqueles por quem sente indiferena. Consideramos certos
seres como parentes e amigos chegados (irum). Mantemos outros a
distncia, consideramos eles maus.
Tambm importante observar que embora nos sintamos prximos dos
nossos amigos, parentes, e sejamos de um modo geral bons para eles
(katu), essa bondade tem origem no interesse. Achamos que esta pessoa
nos beneficiou desta maneira ou que aquela outra se relacionou conosco
daquela maneira. Assim, quando usamos o termo bondade (katu), estamos
nos referindo a algo que seria mais corretamente chamado de astcia.
Quando tomamos conscincia da incerteza da vida (ikowe), da incerteza dos
relacionamentos, da impermanncia, do sofrimento; acabamos por perceber
a futilidade de agarrarmos uma pessoa (possessividade, a ona do aikwe), e
de odiarmos outras (por cime, insegurana), pois a caracterstica da vida
exatamente a insegurana.
Os inimigos so aqueles que podem nos fazer mal, e somos hostis com
relao a eles por causa disso. No entanto, olhando as coisas a partir de
outro ngulo, podemos obter uma grande experincia e prtica a partir do
nosso relacionamento com os nossos inimigos. Em suma: todos os seres,
inclusive nossos inimigos, nos oferecem uma grande ajuda de vrias
maneiras e, direta ou indiretamente, nos prestam um servio extremamente
necessrio. Por essa razo, os antepassados do povo andewa Guarani,
honravam os que tinham sido dignos de serem seus inimigos, e que
tombavam em combate, com o mesmo funeral que dispensavam aos que
lhe eram caros.
148
Morangaju, o esprito da bondade como a gua que irriga um lugar
propcio para o plantio (amba maety rupa) onde, se nela for plantada a
149
150
CAPITULO 5: MBORAYU
No foi pelo poder da palavra, mas pela apreciao musical, que os
Guarani se aproximaram dos jesutas; e no foi com palavras, mas com a
dana, que enfrentaram as suas doutrinas. (cf. CHARLEVOIX II, 1912, p.
60).
Numa carta de 5 de julho de 1556, o clrigo Martn Gonzles relatou um
movimento ocorrido, provavelmente na regio de Assuno. Conta ele que,
levantando um menino, que anunciava o contra batismo (cerimnia que
controvertia o batismo cristo), dizia-se ser Deus ou filho de Deus. O clrigo
sugeriu que o levante era resultado da servido a que eram submetidos os
ndios encomendados e mostrou-se apreensivo com a possibilidade de
esses movimentos se multiplicarem, como na verdade aconteceu. Proibidos
de danar (bailar) e de cantar, eles contraverteram a ordem danando e
cantando at conseguir a libertao pela morte. Assim se pronuncia
Gonzales:
Tenemos nueva que entre los ndios se h levantado uno, com um nio que
dice ser Dios o hijo de Dios, y que tornan com esta invencin a sus cantares
passados, a que son inclinados de su natureza: por los cuales cantares
tenemos noticia que em tiempos passados muchas veces se perdieron,
porque entretanto que dura, ni siembran ni paran em sus casas, sino como
locos, de noche y de dia, em outra cosa no entienden, sino em cantar y
bailar, hasta que mueren de cansacio, sin que quede hombre ni mujer, nio
ni viejo, y as pierden los tristes la vida y la anima (CARTAS DE INDIAS II,
1974, p. 651).
Crianas e mulheres, velhos e homens usaram o contrasigno para combater
a doutrina que lhes invadia. E quando no era possvel o enfrentamento, se
iam pela porta da morte, esse era o opaaty nessas circunstncias. Abaixo
dou um exemplo de contrasigno.
Uma ndia do Paran, _em algum momento entre 1626 e 1627, segundo
registro do padre Durn, _ apresentou-se aos padres dizendo que era La
madre de Dios, a padroeira da reduo de Santa Maria Del Iguazu, e que
por ser assim aquela reduo estava sobre seu amparo. O texto do padre:
Levanto el demnio outra India del Paran, que se nos opuso, i se entro
donde estbamos diciendo que ella era La madre de Dios que desde el
principio aviamos puesto debajo de su amparo esta reduccin (CARTAS
ANUAS II, 1927-9, p. 281).
O contrasigno consistia em contraverter um meio usado pelos clrigos a seu
favor, se apoderar-se da oratria foi um contrasigno, esta uma questo
que de difcil acertiva. Por outro lado, dar o destaque que a gestualidade e
a dana sempre tiveram no aty, no nega o
151
papel importante que ocupa o aywu, a palavra, a oratria, dentro do ande
Reko. Essa questo sempre trouxe controvrsias entre os autores, e suscitou
uma polmica entre Graciela Chamorro e Branislava Susnik.
Branislava Susnik, mesmo reconhecendo na oratria dos Guarani um
potencial desabafo psicoemocional, coloca a palavra-dico-reza como um
elemento tardio na religio do grupo. Introduzida com a religio crist, a
palavra teria conseguido se sobrepor ao sentido tradicional da dana, at
convert-la em um canto religioso (cf.SUSNIK, 1981: 146, 149; 1984-85: 83).
Chamorro, em concordncia com Meli destaca a primazia da palavra:
Escuchar palavras divinas h sido siempre para los Guarani el principio de
su ser y de su sabiduria (in CHAMORRO,1995, p.13).
Todas as manifestaes do ande Reko so importantes, no vem ao caso
polemizar sobre qual delas a mais importante, particularmente me
interesso muito pelos cantos e pela msica, poderia ento dizer que esta a
mais bela e importante manifestao dentro do ande Reko, mas sei que
no o caso; certamente se fosse um estudioso de etnomedicina, acharia
que seria os ritos de cura e as ervas medicinais o mais importante, e assim
por diante. Dentro do aty h um perfeito equilbrio entre suas partes. Neste
trabalho dei um grande destaque para o aywu, pois foi minha principal fonte
de pesquisa, mas agora vou apresentar a minha leitura do Mborayu dentro
das outras partes do aty.
O aty uma reunio que ocorre cotidianamente aps o por do sol e que
perdura at aproximadamente a meia-noite. Aps o por do sol, os Guarani
se preparam e se encaminham para o opy, que a casa de reza, canto,
dana e da manifestao da palavra.
152
H aty especficos, que possuem finalidades determinadas, como o aty
realizado para encaminhar o Ykarai, a imposio dos nomes Guarani; para
o trabalho no maety, a preparao da terra para o plantio dos awaxy, e
tambm para a colheita; para o emongarahei, a festa que comemora o
pice do ano; entre outros, com outras motivaes.
Os aty seguem o calendrio anual e para cada perodo possuem um
significado determinado. Tambm so realizados aty para cura, julgamentos,
casamento, comemoraes e funerais. A vida em um Tekowa (aldeia) gira
em torno do Opy. E a vida do Opy gira em torno do tata por. A polaridade
gerada pelo opy e pelo maety cria a dinmica que rege o cotidiano do
ande reko (da maneira de ser Guarani). Nos prximos tpicos teremos a
observao do Mborayu em sua manifestao nas duas ltimas partes que
perfazem o ltimo momento do aty e que so o Jeroky (a dana) e o opaaty
(a gestualizao de encerramento do aty).
153
conversar juntos e do danar juntos vo se estabilizando e desestabilizando,
num eterno jogo de memria.
Karai Poty, no Yrundy ara nos diz que:
amandu, anderu e andexy; Ruete Tup, Jakaira, Kwaray, Karai; Xyete
Tup, Jakaira, Kwaray, Karai; andeija. Um s o caminho, uma s a
porta, mas diferentes so os passos, cada um tem a sua maneira de
caminhar. amandu um, mas um para cada um de ns.
Agora se voc me pede para dizer quem amandu, eu digo que passaria a
vida te dizendo dele e em cada momento te diria diferente e de nada
adiantaria para voc. Ento eu no digo nada, ou canto, ou dano, ou rio, ou
choro.
No fazer o mito se faz gesto (ritmo e msica): quando pedimos a um
ndio que descreva como se faz (como se fabrica), este se encontra na
situao de dizer uma palavra inusual, j que tem de traduzir em palavras
movimentos ancestrais, sempre repetidos, porm, talvez nunca ditos
(PEREIRA, 1995, p.61).
O mesmo acontece com o conceito Mborayu, embora no sentido inverso, na
medida em que uma palavra que se expressa em gestos, em msica, em
atitudes. E o verbo se corporifica no Jeroky, a dana sagrada.
Reavivando memrias recentes convm lembrar aqui, o que a andexyi
Jaxy Rendy disse no seu aywu: eu hoje sinto uma grande necessidade de
equilibrar o princpio masculino e o princpio feminino dentro de mim. E o
que o anderui Karai Tatawa disse: nosotros no enfrmanos la tierra,
154
existem ainda agora em ns. Nenhum deles, at agora, foi destinado a
apagar-se. Por isso temos que permanecer juntos, danar e cantar nossos
cantos, para que todas as coisas belas possam novamente ser vistos por
nos.
E no mito do dilvio temos:
No corao das guas danam sua dana e cantam seu canto. E mais a
frente: E juntos eles danam, e tudo ficou como era antes.
O anderui Tataendy eery resalta o dizer de Karai Poty: os detentores e
as detentoras da tradio esto perdendo a sua fora.
A andexyi Yxapy Rendy categrica ao afirmar que ao se relegar o
feminino se esta gerando um desequilbrio imenso.
Mas finalmente bom lembrar o que nos disse Karai Poty no Mboapy meme
ara, antes do seu derradeiro jeroky: o esprito une as pessoas para dar a
oportunidade delas caminharem juntas. Quando isso acontece elas ouvem o
Mborai Mborayu, a cano do amor. um canto ao qual ningum pode
resistir, ouve aonde estiver, pode estar acordado ou dormindo, longe ou
perto, no tem como deixar de ouvir. No tem como deixar de danar.
A terceira estrofe do segundo canto do Aywu Rapyta, lembra, pois nem tudo
est perdido, o Mborayu, em concordncia com Karai Poty:
- E pequenas palavras do futuro/ Como coisas que sero grandes/ Um dia,
tecero mundos e/ Como fonte de todos os cantos/ O amor manifestou-se
assim.
anju Mirim anotou em seu kwaxya que no dcimo terceiro dia Karai Poty
no fez nenhum aywu (discurso) apenas a reza inicial (agradecimento) e a
final (bendio). Ao final do aty (da cerimnia), deu um sorriso radiante e
disse jaaju (adeus) e danando partiu com os seus. Como espectros
desapareceram no horizonte. E nunca mais foram visto. Aos que ficaram
restou fazer o opaaty e regressaram para as suas vidas. Partiram
danando, saram do lugar comum; aos que no entraram na dana, restou
voltar para as suas vidas cotidianas.
Graciela Chamorro fez uma bonita apreciao do Jeroky entre os Guarani
Kaiowa, na festa do avatikyry, observou que o jeroky um caminho:
As como tiene una meloda desde el comienzo (otoada pe ijapy), el cantodanza tambin tiene un camino desde el comienzo (hape pe ijapy).
Pensndolo bien, la melodia es el camino, todo el canto-danza es un camino
(tapek pe jorosy). El jerosy est dividido en varios jasuka. Cada jasuk
puede ser comprendido como unidad de medida de la espacialidad del
jerosy, una especie de kilometraje. La distancia entre un jasuka y otro es
recorrida por el rezo. Cuanto ms jasuk se alcanza, ms cerca se est de la
casa de la madre de Tup. El primer jasuk es la parte del chembojegua che
Ru, adrname mi padre. Este jasuk vuelve a dividirse en tres partes (deben
entenderse cuatro o cinco) activas (caminadas) y una parte pasiva de
descanso (oipapvo seiha opytuu). Despus empieza otro jasuk, y el
camino contina.
155
Paulito desgrana de nuevo el rezo hasta llegar al lugar donde puede parar.
Paulito transporta el buen hijo y la buena hija de Tup en su rezo
(ogueroguata tup rajy h tup raiy ha tup rayi katu) (CHAMORRO, 1995,
p. 89).
O Jeroky um Guata Por (um caminhar), esta-se caminhando no Opy, no
espao de cerimnia, esta-se caminhando ao encontro do divino (anderu
ou andexy). Ao mesmo tempo esse caminhar um caminhar no corpoesprito do awaxy (do milho sagrado), a cerimnia realizada para se
partilhar a existncia do awaxy junto comunidade de seres existentes.
El jerosy empieza en che ru guasu, mi gran padre, que es el dueo del maz,
avatijra, Jakaira guasu. Empieza aqu y va subiendo ms y quedndose
ms lindo (iporavma oho yvatevmajave) (Mariana). Hacia el amanecer, el
jerosy llega al cuerpo del ndio (ava retpe), que es el cuerpo del prprio
maz (itymbi retpe), el cuerpo de Nuestro Padre (ande Ru retre) (Mrio).
Hasta la madrugada, recorrer el camino del jerosy es algo normal, despus
empiezan los peligros. Paulito es como um guia. Va abriendo el camino com
su rezo. Em la posicin de guia, l necesita de ayudantes (ivyraij), para
que en caso de el yerre, dos dems consigan hacer pasar la palabra por los
lugares de dificultad (ojavyramo outro oabri tape). Sobre todo la
madrugada, los Kaiov no deben abandonar el guia (oremba ejra
ndaikati roheja hach). Si lo abandonaren, no habra ms camino, ni rezo.
La gente terminario llorando amargamente al recordar las cosas que les
sucedieron en el pasado. El jerosy no slo es un camino (tape), es una
persona (hnteko pe jerosy), es la carne del Ser (tek jar pe jerosy)
(Paulino). (CHAMORRO, 1995, p. 89).
A concepo Guarani de que o jeroky encarna o verbo parece uma coisa
esquisita, mas compreende-se ao se levar em considerao que a palavra
expressa sentimentos, e que atravs da palavra estes sentimentos so
transmitidos de um para outro. E que esses sentimentos do origem aos
cantos e que esses cantos conduzem a dana (jeroky). Se a pessoa no
expressa esse sentimento, se eles no fazem diferena para ela, ento eles
no foram corporificados, ento eles no so possveis de serem danados.
Mas se as palavras tiveram sentido, houve uma transformao, fizeram uma
diferena, ento o ser transformado dana o sentimento que corporificou, e
o novo sentido que trouxe para a sua vida, essas coisas so propiciadas pelo
Jeroky, nesse sentido o Jeroky encarna a palavra, o aywu. O aywu
carregado pelo canto-dana, e no mborai contada a saga desse
acontecimento, e todo esse acontecimento o Jeroky. Graciela Chamorro diz
que essas coisas conta o jeroky:
Estas cosas cuenta el jerosy (koavae mbavaeko Jerosy ombopapa). Para
quien no es instrudo en la cultura guarani, el jerosy parece ser una cosa
recta; pero nos es as. Al contrrio, tiene muchos asuntos, narra la historia
del cuerpo del maz, desde el brotecito hasta la mies (hendaetpe ytymby
guive hu apeve heteichagua oipapa).
El jerosy sigue en las huellas de las palabras tradicionales del maz Blanco
(oho avati morotim eengrare). Se admira de la forma como el maz
plantado sin
156
abono nace y crece tan bien. El jerosy pregunta: por que el maz tiene la
flor tan linda? (mbavaeichapa ipoty par hagu?). Cmo es posible que en
su copa llegue y permanezca el gua? (Mbava eichapa pe hu ame oiy
mamoke ipiru?).
157
Pero as como el maz es gente, nuestro cuerpo tambin puede ser
comparado con un maz recin nacido. anderetko peteim itymby, afirmam
Mrio y Maria, con la misma vehemencia con que dijeron el maz es una
criatura. Y de hecho es asi, nosotros no tenemos hora; no sabemos si va a
sobrevenirnos vida finada o no (...) Lo mismo es con el maz. l no sabe si
maana habr tempestade de granizos (amandau) o tormenta (yvytu
guaxu) que lo destruya (oity omopemb). Todo esto puede ocurrir, pero el
maz no sabe; l ni sabe si llegar a la mies. As es nuestra vida, nuestro
cuerpo es como del maz, no comoce el maana. (CHAMORRO, 1995, p.
90).
O awaxy importante para os Guarani, no apenas por razes nutricionais,
ou seja, por ser o cereal principal de seu sistema alimentar, mas bem mais
por razes afetivas. O awaxy lembra os fatos passados, as cerimnias
realizadas nos anos anteriores, e traz lembrana os que j se foram. Por
outro lado tambm h o deleite esttico, o feitio da mandala de plantio e as
vrias cores do awaxy (22 cores diferentes). A dana surge da alegria de vlos brotando, de v-los em flor, e de v-los maduros. Mas ao comear a
dana, os temas vo se aprofundando, e todo um contexto se articula: a
presena e o presente dos que esto no Jeroky, e o gesto dos que no esto
mais. Sobre o Jeroky, e em especial sobre o Jeroky vinculado ao awaxy (ao
maiz), a Graciela Chamorro coletou o mais completo relatrio existente.
Assim ela se reporta:
Para los Kaiov, el jerosy cuenta el comienzo de l as cosas, cmo empez el
maz (pe jerosy pukngo ojagarra oipapa pe comeo, ombopapa
ininpyrumby); por eso la comunidad debe celebrar, para garantizar la
duracin, para que las cosas sepan guardar su inicio (embojerosyvar
inypyru kuaa hagu, hekove hagu). Como dijo Mircea Eliade, es recitando
el mito de origen, (que) se Le obliga al arroz a crecer tan bello, vigoroso y
abundante como era cuando apareci por la primera vez (1972, p. 19). Por
eso, desde mucho tiempo atrs (yma ete guive), existe la ley de rezar y
hacer danzar el maz, antes de consumirlo; as se garantizaria la duracin
del propio maz, del mundo y de los Kaiov (ndaiporivivo avati morotim
opvar mundo, ndojepuraheivi voe opamavar teyi).
Cuando los Tup decidieron abandonar la tierra recin fundada, dejaron el
maz para los kaiov. Para que nunca termine, el maz debe ser danzado,
debe ser cantado, eso Le gusta a Jess.
El maz es como una criatura y como tal debe ser incorporado en el buen
sistema (jakero marangatuar, miticha jarekoar). Por eso hay que
bendecirlo, contarle su comienzo hasta que madure (upmaramo jahovasa,
158
maduro. A los cuatro dias volvi a la chacra y cosech maz blanco y
amarillo, hasta llenar un canastro. Traa tambin consigo mbakuku, una
comida hecha del maz. Al llegar a su casa le pregunta al marido: - De que
hiciste el maz blanco? l el responde: - Este maz el nuestro diente. Los
dientes de aqul que andaba lleno de pique, eran semilla, haba sido.
Cmo debemos tener este maz blanco, hiu (papai)? Le pregunta su hija.
- Tenemos que tenerlo en su amor, porque l es criatura, tenemos que
cantarle para que madure.
- Pra que eso?
- Para que cuando lo comamos no nos empache, no nos haga crecer la
barriga, ni nos deje nervioso. Debes rezarlo para que no te mate
(CHAMORRO, 1995, p. 92).
Outra questo que surge a da criao (da educao), e a do contgio (da
propagao) de um sentimento. Para os Guarani importante o cuidado e o
carinho para com as coisas que lidam. Ento cantar e danar para o awaxy
garante uma boa relao com a planta. Propicia que ela se torne ainda
melhor, que se desenvolva ainda melhor. Porque se ela recebe o bem (se
educada no bem), far tambm o bem. A Graciela Chamorro continua assim
o seu relato:
Para Maria, al festejar el maz est garantizando la continuidad de la
existncia kaiov.
Che Ru Jakaira Guasu le conto todo a su hijo sobre cmo tratar el maz,
para que hasta hoy, si nosotros nos morimos, se quede um comienzo, una
159
no hay ms rezo. Puedes ir a la aldea de los Guarani (refirindose a los
andeva o Chiripa, de la alde de Dourados), ellos mezclan maz blanco con
maz amarillo y ahora casi no cosechan ms nada. (CHAMORRO, 1995, p.
92).
Por outro lado, o Jeroky um incorporar de sentimentos onde o verbo se faz
carne, isto , corporifica. E isto traz consigo uma carga difcil de ser
sustentada por quem conduz os canto-danas, muitas vezes tendo de ser
apoiado. Porque corporifica-se toda uma decorrncia de existncia tribal, de
partilha de alegria e de sofrimentos, de nascimentos e de mortes, de
plantios e de colheitas. Fiquei muito admirado da capacidade que Graciela
Chamorro teve para relatar e para descrever o Jeroky. Participei de muitos
Jeroky em minha vida, conduzi (guiei) muitos Jeroky, mas no me sinto
160
(oguapyta nde rehe poriahu ha ne raseta). Ocurre lo mismo con el jerosy. En
l tambin hay una historia. Si yo, por ejemplo, recibo el jerosy de Paulito,
va a Haber mucha alegria! Hasta podemos rernos y contar casos, en
compaia de mi pap y de mia mam. Pero despus, cuando yo guie el
jerosy, al llegar a La media noche y a la madrugada, el canto va a quedarse
triste para mi (iporiahma cheve), porque voy a recordarme de mi mam,
Mario deixa tambm entrever nas suas palavras um temor, o da diluio dos
saberes presentes na morte, ou seja, no passado sem memria. Ento a
alegria do presente turbada
161
pela tristeza da perda, de no poder voltar a estas circunstncias. Paulito
esta idoso, quem ira assumir o seu posto? Assim se expressa Mario para
Graciela Chamorro:
La tristeza del jerosy es irresistible. Nosotros tambin pensamos: Y cuando
Paulito pare (sea de hacer el jerosy o de vivir) quin va a bautizar el maz?
Quin va a curar las criaturas que nacieron con alegria imperfecta? Todos
nuestros quebrantos son contados en jerosy. l nos hace recordar de
nuestros padres. Ese recuerdo nos hace llorar. Nosotros sabemos gracias al
jerosy lo que sucedi con nosotros y lo que ha de ocurrir an. (CHAMORRO,
1995, p.94).
Em especial os Guarani Kaiowa vivem, neste momento, um estado de muita
penria. No est havendo sucesso nos trabalhos sacerdotais, os jovens
encontram-se com muita angstia e grande desiluso com a vida: almejam
uma maneira de viver semelhante a dos outros brasileiros que esto sua
volta, mas no podem ter acesso a essa condio sem deixar de ser Kaiowa;
esse impasse apresenta-se como insolvel para esta parcialidade at o
momento, e tem levado o grupo a ter um grande nmero de suicdio entre
os adolescentes. Mas para alguns ainda h o awaxy e o Jeroky e a
esperana de continuidade e de sanao de nossa terra inacabada; e a
partir de pessoas como Mario, os Kaiowa encontraro a soluo para esse
impasse.
162
Danamos para nos alegrar, para afastar os perigos que nos rondam.
Frente aos vrios momentos em que fomos ameaados de extermnio
danamos para saudar a vida, e a permanncia do nosso existir, reavivando
o movimento csmico em torno do tata por; o Jeroky uma reunio com o
universo, me disse a andexyi Yxapy Rendy ao terminar o aty de
primavera, e reiterou: no jeroky est presente a rebelio de nossos corpos
que permanecem, de nosso canto, de uma fala que no se deixou calar. No
espao do opy dana todo o povo, a msica e o canto de todo o povo, dos
nossos avs e avs, de nossos meninos e meninas, a alegria de termos
muitas vozes. Vozes que bom de se recordar em suas afirmaes e
negaes, que saudamos no opa, no final do aty.
Aps a dana e o cessar da msica em torno do tata por forma-se um
grande crculo e todos tocam as mos espalmadas uns dos outros e elevam
as mos em direo ywa rupi, o cu, que est alm da abbada do opy,
depois retornando as palmas das mos em direo ao tata por, o fogo
sagrado e as trazendo tocando o kwaray mbyte, ponto situado dois dedos
abaixo do umbigo, o ee por mbyte, o ponto situado no plexo cardaco e no
jaxy tata mbyte, o ponto situado na raiz do nariz entre os olhos. Todos
louvam: hewei amandu. Assim termina o aty, a Cerimnia Guarani.
No opaaty elevam-se as mos unidas, em um impulso geral de baixo para
cima, direcionado pela cabea, que uma analogia ao crecimento do
awaxy, depois as mos se separam e se faz um grande alongamento, e no
seu pice as mos retornam em direo ao tata por, ao fogo sagrado que
estende suas labaredas em contraste com a horizontalidade da terra.
Sincronicamente a cabea se volta para baixo, dobrando apenas na altura
do pescoo, subvertendo a cabea como extremidade, o corpo continua
ereto. Os olhos, no momento da mxima curvatura da cabea, voltam-se
para os dedos dos ps, que repousam na poeira, e quando chove, na lama.
As mos ento se deslocam da direo do tata por e fazem um movimento
introspectivo, demorando-se no ventre, ponto do sol (Kwaray mbyte) e na
testa (jaxy tata mbyte: fagulhas da divina me, que so as estrelas). Ento
as cabeas so levantadas, e todos se curvam na altura da cintura e dizem
(antes de retirarem-se para seus cantos e dormir): Japytu uxu. Ento todos
se afastam para seus cantos e deitam-se com a cabea em direo parede
do opy e com os ps em direo ao tata por.
Na gestualizao do opaaty, todo o aty revivido, todo o ande Reko
revivido, acontece o aguyje coletivo, metaforicamente ou realmente (ete),
essa a inteno ao terminar o aty, se isso acontece, no vem ao caso, mas
163
O opaaty tambm insere os Guarani no eterno drama humano, da
finalizao, da brevidade dos acontecimentos, da prpria vida. Lembra a
morte do awaxy, e porque no, da prpria vida que nos anima. Entre o cu e
a terra, representa-se indefinidamente o drama da morte. A origem desse
drama deve-se a um obscuro desejo de ultrapassar os limites da
horizontalidade, ou seja, ao impulso geral de baixo para cima que orienta o
crescimento dos seres vivos, num movimento constante e montono.
Todavia, a transgresso do limite que dado pela terra - plano horizontal
por excelncia - no passa de um evento episdico, e o amplo movimento
do solo em direo ao cu tem, como contrapartida inevitvel, a curta
durao da vida, porque a contradio trabalha, ela jamais est em repouso
e, nunca se fixa numa imagem acabada.
O homem deixando de ser um arborcola (como os smios) tornou-se ele
mesmo uma rvore, ou seja, levanta-se no ar reto como um vegetal, como
um awaxy, porm sem perder a sua capacidade de locomoo; recolheu
suas razes para dentro do abdmem (que so os intestinos, o senhor dos
nossos arbtrios). E todos quando esto com os corpos eretos, e com a
cabea abaixada, parecem decapitados. Ento deixando de olhar para os
cus e as coisas do cu, olha para os seus ps na lama. Essa atitude retrata
a origem das imagens idealizadas do ser humano sempre privilegiando a
cabea em detrimento dos rgos mais baixos, privilegiando a busca da
verticalidade, mantida mesmo quando abaixa a cabea e contempla os ps.
Assim, no penso esse drama da dissociao do corpo, da sua diluio e da
morte como sendo um drama exclusivo de um povo, ou seja, no penso o
drama existencial Guarani apartado do drama existencial humano. E digo
que aps a cultura ocidental matar Deus, o executivo central do universo, o
capito do mundo (o capo da existncia), que aps decapitarem o seu
mundo, tambm criaram para si uma religio atia, como a religio
Guarani num sentido metacsmico. Com esse episdio poderia-se dizer que
a cultura contempornea embarcou no barco Guarani. Com muitas
diferenas, mas tambm com muitas similaridades. Vou explicar o que estou
dizendo fazendo uma abordagem do gesto ocidental retratado em suas
obras plsticas e literrias, e apresentados por seus corpos, para depois
retornar dana das palavras que ata o Mborayu (que acontecer no
prximo tpico: 5.3). Vou comear a minha analogia pelo mito cristo que
apareceu referenciado em aty, o mito de Salom, um mito que pela sua
expressividade encanta os Guarani. No aty de outono, na celebrao da
colheita dos awaxy, a colheita da cabea de Joo Batista por Salom assim
lembrada:
164
Vida problema. A esperana est relacionada com a soluo de
problemas que, inevitavelmente, sempre so encontrados. Como na historia
da bailarina que pede ao rei a sagrada cabea de Hu.
Na verdade problema soluo. Se no existe soluo porque no existe
problema. Mesmo quando a soluo um problema (3. 2. 1).
Vou trazer essa aproximao do mito de Salom, no segundo o texto
bblico, mas segundo a cultura sem Deus da Europa pr-contempornea,
apresentado por Oscar Wilde. Wilde morreu em 1900, sem presenciar o
sucesso que o seu texto veio a ter no sculo XX, sendo em 1905 musicado
por Richard Strauss, tomei conhecimento da verso de Wilde partir de
Strauss. Preferi o texto de Wilde por ser mais prximo ao paradigma Guarani
do que o texto Biblico, no texto de Wilde a princesa resolve um problema
com outro problema a quisa de soluo para a sua angstia.
A lasciva princesa, na concepo de Wilde, traz duas novas caractersticas
ao mito. A primeira delas que a herona de Wilde uma virgem
apaixonada: sua ferocidade justifica-se pelo amor que sente por Iokanaan,
nome pago de Joo Batista, o primeiro homem que avistou na vida e que
lhe fez provar a dor do desejo contrariado. A decapitao, nesse caso, no
se origina da ordem materna - motivada pelo dio que Herdias acalenta
por Batista desde que este denuncia seu casamento criminoso com Herodes
-, como acontece nas escrituras. No texto de Wilde, a execuo decorre da
paixo ardente de Salom pelo profeta.
Esse um caso de mborayu heym, de desamor, e da perda da vida. Uma
coisa implica na outra. Um lao rompido ou no correspondido implica no
rompimento de um liame que muitas vezes sustenta a vida. Salom teve a
perda do amor, e a soluo encontrada para o seu problema foi outro
problema, porque a soluo no lhe trouxe completude.
Ser tambm a paixo o motor das aes do Herodes Wildiano que,
arrastado por um arrebatador desejo pela danarina e encolerizado com seu
beijo na cabea degolada do santo, acaba por conden-la morte,
transformando-a em vtima de seu prprio excesso. A morte de Salom
observa Ellmann, enquadra-se em uma parbola da paixo que consome a
si mesma. Perigosa aproximao, entre o amor e a morte que cativou o
espirito romntico, engendrando uma conscincia trgica sintetizada por
Wilde na idia de que somos todos assassinos daquilo que amamos (cf.
ELLMANN, 1988, p. 303 e 98).
Temos a uma srie de paradoxos. A citao do mito feito pela andexy em
meio a um paradoxo de resoluo de problemas, e as solues encontradas
pela Salom e pelo Herodes de Wilde. Na afirmao de Wilde de que somos
todos assassinos daquilo que amamos
165
tambm h um paradoxo, mas tambm pode haver resduos da culpa crist
pela celebrao da paixo e da eucaristia (antropofagia, ou melhor, teofagia
simblica).
A outra caracterstica do texto do escritor ingls indicada por Pennafort ao
observar que. exceo de Wilde, a descrio da dana da princesa nbil
diante do tetrarca e dos lascivos convivas do festim constituiu um morceau
de bravoure para os escritores dedicados ao tema, como necessariamente
teria de ser, na medida em que os elementos artsticos, que tal motivo
contm podiam ser explorados com resultados magnficos (cf. Pennaforte,
1960: 75). Mas esta outra caracterstica no vem ao caso de ser estudada
neste momento por fugir ao interesse temtico que o Mborayu.
Importa ressaltar, no texto de Wilde, a construo do medo. As imagens
recorrentes dessa recusa de ver, que congela a ao num determinado
momento _ Herodes tapando os olhos, os nazarenos caindo no cho, as
luzes naturais e artificiais sendo apagadas _ indicam a intensidade do pavor.
Por isso, essas imagens tambm apontam para o peso da cabea decepada
do profeta, sem dvida um peso puramente metafrico, mas igualmente
insustentvel.
O smbolo dessa cabea pode ser a do Deus que comanda o mundo,
tambm o peso dado ao crebro pela cultura ocidental moderna, onde a
morte s anunciada quando h morte cerebral, considera-se a cabea
como sendo o lugar do ser que vive.
A fora do mito, na verso de Wilde, ecoa sua mxima violncia. E, se no
jogo entre o velado e o desvelado o escritor ingls nos oferece a imagem de
Herodes cobrindo o rosto com as mos, para em seguida recordar que, da
mesma maneira, Batista cobriu sua face para no ver Salom. Perturbadora
aproximao, que nos leva a concluses inesperadas. Porque, se ela
realmente tiver sentido, aquilo que se esconde no sexo de Salom pode ser
o mesmo que faz a vista recuar diante da cabea decepada do santo.
Dizemos que um homem pode perder a cabea pelo que v ou que uma
mulher pode perder a cabea.
Wilde no nos diz o que ; contudo, ao longo do seu texto, faz diversas
sugestes, indica pistas. Talvez no seja apressado dizer que essa
aproximao entre a sexualidade difusa de Salom e a cabea decapitada
de Joo Batista atenta para um tema que a modernidade esttica no se
cansar de representar: a perda de unidade do corpo. Estamos, portanto,
nos domnios da morte (cf. WILDE, 1990, p. 559).
Esse gesto brutal, reportado pela andexy, juntamente com a sua
enunciao de que a vida problema. Assim como o tratamento dado a ele
por Wilde, trs em si a questo da perda por um lado, e a da busca de
soluo para a questo da morte, por isso a vida problema. Sem dvida a
perda de uma parte do corpo representa a perda da unidade desse
166
corpo, retrata a desunio em nosso prprio ser e mais grave, a
impossibilidade de estarmos integrados em um todo, isto , de estarmos em
Mborayu, de termos qualquer sentido na existncia.
Dos tantos mitos do oriente mdio que incorpou o ocidente, e que atravs
dos colonizadores chegou aqui nas ndias, esse foi o nico mencionado
neste texto por uma andexyi. Alguns mitos semelhantes aos mitos
bblicos os Guarani possuam, como j foi visto, mas no caso deste, temos
uma assimilao. No escolhi o texto bblico que fala da morte de Joo
Batista, porque o texto no lembrado, apenas sabe-se que uma princesa
danou para um rei e que por essa dana Hu, Joo Batista, esse sim um
nome incorporado ao panteo Guarani e que s vezes confundido com o
Joo Evangelista, teve a cabea decepada. A assimilao desse mito
provavelmente tenha acontecido pela via jesutica. Certamente os jesutas
ensinaram outros mitos cristos, mas eles acabaram no esquecimento,
porque esse no?
Georges Bataille prope que o sentido do erotismo a fuso, a supresso
dos limites, inscrevendo a atividade ertica nos domnios da violncia.
fuso dos corpos corresponde a violao das identidades: dissoluo de
formas constitudas, destruio da ordem descontnua das individualidades.
Na experincia do amor, objetos distintos se fundem e se confundem at
chegar a um estado de ambivalncia no qual o sentido de tempo _ de
durao individual _ amplia sua significao. A passagem da vida , ento,
testada no seu termo final: o sentido ltimo do erotismo a morte
(BATAILLE, 1987, p. 129 e 143).
O esprito que nos une, nos une por diversos motivos e de diversas
maneiras, indiferentemente se somos Guarani ou no. Muitas vezes nos une
por foras de atrao como o magnetismo ou o erotismo, e nesse caso se
aproxima do significado de amor. Mas paradoxalmente esse amor tem
levado tantas vezes os humanos ao dio e a violncia, alis, amor e
violncia so duas coisas por demais acontecidas conjuntamente, assim
como o ertico vem tantas vezes impregnado de crueldade.
Em Les Larmes dEros, publicado em 1959, h uma passagem na qual
Bataille afirma que o perodo posterior a Sade e Goya assistiu a um
expressivo declnio da violncia: verdade que as guerras, no sculo XX,
deram a impresso de um desencadeamento da violncia. Mas, no importa
a magnitude desse horror, esse desencadeamento foi desmedido, tornou-se
a ignomnia perfeita atravs da disciplina!. No se tratava, pois, de
afirmar que a natureza humana tornou-se mais dcil, mas de confirmar a
167
Hoje estamos unidos em um planeta global, mas seccionados pelos
interesses que regulam essa unidade. Desde os primeiros encontros que nos
conduziram a essa unidade os desencontros foram grandes. Os gestos
foram desencontrados, como podem ser confirmados em relatos como os de
Las Casa (Op. Cit.).
Diante do aperfeioamento das tecnologias da morte nos ltimos sculos,
os antigos ritos sacrificiais s poderiam restar como nostalgia, mesmo toda
guerra de conquista e toda a violncia do passado, como a que podemos
encontrar no Paraso Destrudo de Las Casas (Op. Cit.).
Porm, os gestos da cultura que se impunha e dominava essa globalidade
inacabada, acreditava em uma possvel ordem, em um possvel
ordenamento dos elementos que compunham esse corpo de idias que
sustentavam a aparente normalidade do mundo, como se fosse natural e
eterno, como se o mundo sempre tivesse sido assim, por eles dominado
com a graa de um Deus que se lhes fizera semelhantes. E mantinham-se
fechados para qualquer outra possibilidade. Mas a realidade trouxe o
esfacelamento dos imprios coloniais e guerras de extermnio na
contemporaneidade envolvendo esse mundo globalizado.
Porm nos domnios da escritura e das artes, a ordem dos elementos era
mantida, dentro da cultura oficial, o gesto mantinha-se o mesmo, aps
sculos de convvio com a arte pr-colombiana, africana, oriental. O quadro
de Picasso, Les Demoiselles DAvignon, revoluciona a arte em 1907, trs
um novo gesto e um novo plano para a representao do corpo. Numa total
desconsiderao pela anatomia realista, pelas leis de composio e
perspectiva do passado, Picasso pintou cinco mulheres nuas numa
compacta estrutura plstica composta por losangos e tringulos,
introduzindo planos e elementos inesperados, alguns deles inspirados em
esculturas ibricas arcaicas e mscaras africanas. Les Demoiselles foi, como
observou Sevcenko, um atentado de desestabilizao da linguagem,
desvelando o ilusionismo por meio do qual a arte inoculava valores na
sociedade (cf. SEVCENKO, 1992, p. 197).
Em 1928, Mir criou um quadro objeto intitulado A danarina espanhola,
que consistia em uma tela virgem onde estavam colados um alfinete de
chapu e uma pluma. Suprimindo os elementos da linguagem pictural, a
tela sem pintura qual haviam sido incorporadas as imagens mais tpicas
de uma dana espanhola, convidava o espectador a repensar a hierarquia
dos objetos e reconsiderar sua equivalncia. A mulher no precisava mais
ser descrita para aparecer, suntuosa e radiante, no centro daquele mundo
transparente que a projetava como objeto do desejo. Dessa forma, Mir
168
procura do objeto de sua realizao dispe estranhamente os dados
exteriores, procurando egoisticamente conservar deles somente aquilo que
pode servir sua causa (in NADEAU,1985, p.144).
Lanada a identidade a seu ponto de fuga, o que resta um princpio de
mutao permanente a comandar a percepo sensvel do universo: o
sonho funde-se viglia, o dia noite, o homem mulher, o ser humano ao
verme. Tudo se inscreve na equivalncia dos contrrios, anulando qualquer
pretenso de verdade. As formas perdem sua estabilidade: uma bicicleta
pode transformar-se em touro (Picasso), um ferro de passar roupa em ourio
(Man Ray), um pssaro em montanha (Magritte), uma lagosta em telefone
(Dali).
Uma vez liberados de suas aparncias, de suas propriedades fsicas e de
suas funes, os objetos passam a ser dotados de um inesgotvel poder de
migrao. Instaura-se uma atmosfera de indeterminao e de incerteza que
evoca um tempo primeiro, quando as coisas no conheciam estados
definitivos, no havia oposio nem contrrios. Um tempo de incessantes
metamorfoses.
Foucault observa, contudo, que nesse espao sulcado em todas as direes,
havia um ponto privilegiado, saturado de analogias, esse ponto era o
homem: ele est em proporo com o cu, assim como com os animais e
as plantas, assim como com a terra, os metais, as estalactites ou as
tempestades (FOUCAULT, 1981, p. 38).
No caso Foucault tenta ainda manter o gesto humano como proporo do
gesto do mundo, o homem ainda como o que mantm o movimento da sua
dana na dana do mundo. Deixa-se de projetar o poder de determinao
em um Deus antropomorfo, em um rei dos cus, para tornar-se o humano o
rei da terra, em desconsiderao a todos os outros reinos. Gerando todo o
desiquilbrio que constatamos hoje, de uma humanidade em total
desiquilbrio e desproporo com as plantas e com os animais, como se no
fosse ela mesma apenas mais uma das muitas espcies animais, entre
tantas espcies animais e vegetais existentes.
L-se em Histoire de Juliette: O nascimento do homem constitui o comeo
de uma existncia assim como a morte no significa o seu fim, e a me que
engravida no confere mais vida que um criminoso que oferece a morte: a
primeira produz uma espcie de matria orgnica, em determinado sentido,
ao passo que o segundo d oportunidade ao renascimento de uma matria
diferente, qualquer deles efetuando um ato de criao (SADE, 1987, p. 17).
169
Lautreamonte nos Chants de Maldoror diz que: A metamorfose nunca
surgiu aos seus olhos seno como a alta e magnfica retumbncia de uma
felicidade perfeita que eu h muito esperava. Esta surgiu, finalmente, no dia
em que eu fui um porco! Afiava os dentes na casca das rvores e
contemplava com delcia o meu fucinho (LAUTREAMONT, 1980, p. 701).
Bataille afirma que Podemos definir a obsesso da metamorfose como uma
necessidade violenta, que, alis, se confunde com cada uma das
necessidades animais, que levam um homem a afastar-se de repente dos
gestos e das atitudes exigidas pela natureza humana (BATAILLE, 1987, p.
208).
Trata-se de buscar novas bases para o pensamento, diz Annie Le Brun,
como se uma percepo mais viva da complexidade contraditria das
relaes do homem com o mundo exigisse respostas cada vez mais sutis e
mais concretas (LE BRUN, 1989, p. 133).
Dessa forma, o homem no ultrapassa seus limites abrindo mo da sua
condio biolgica, mas tornando-a ainda mais ampla: segundo Bachelard,
em Lautramond o homem aparece como uma soma de possibilidades
vitais, como um superanimal; tem todas as possibilidades sua disposio
(BACHELARD, 1989, p. 21). Trata-se, portanto, da conquista de um potencial
biolgico variado, que permite ao ser humano habitar todas as ptrias
imaginveis (o ar, a terra, a gua). Nessa peregrinao indomvel e
retilnea, o homem realiza a totalidade animal.
Com esse procedimento, Lautramont parece inaugurar uma nova
disposio em relao natureza, que consiste fundamentalmente em
abolir as fronteiras convencionais entre seus diversos reinos. Depois dos
acasalamentos monstruosos realizados por Maldoror _ e, algumas dcadas
mais tarde, das metamorfoses vividas por Gregor Samsa _ um leitmotiv
invade a poesia e a pintura, notadamente no Surrealismo, e mais tarde no
Hiperrealismo Fantstico da Amrica Latina: o animal habita o homem. A
partir da, a figura humana se bestializa, dando forma a seres hbridos que
vm compor um inesperado bestirio moderno.
Ou seja, com o realismo fantstico escritores latino-americanos propem um
novo bestirio, para que o ser humano possa considerar outras
possibilidades animais. Embora possa me contentar com a esperana de
que possamos encontrar respostas mais sutis e concretas (cf. LE BRUN, op.
cit.).
Porm, esse mais sutil e concreto, exige uma nova abordagem da natureza
que se constri a partir da negao das taxionomias tradicionais que tm
como pressuposto a auto-suficincia dos trs reinos naturais. Breton
intransigente ao denunciar os eloqentes naturalistas presos ao visvel e ao
palpvel, que frustram essa necessidade ardente e urgente que nos conduz
no na direo do que vemos nos objetos sensveis, mas na direo do que
170
no vemos. Ao poeta cabe a tarefa de estabelecer os novos critrios de
reconhecimento dos seres vivos: preciso sair da loja do naturalista,
reitera Aragon, para provar a vertigem da floresta e reencontrar o caos
primitivo (in MAILLARD-CHARY, 1994, p. 42).
H toda uma proposta que mitifica um mundo primordial, ou seja, ao ruir o
edificio de areia da cincia ocidental, que tinha estabelecido um mundo sem
rupturas, que tinha ligado pela forma e pela sintaxe idias soldadas como
gros de areia midas espremidas na mo, v-se de repente entregue sua
prpria sorte, e isso era tudo o que se queria, poder vislumbrar um
horizonte sem barreiras e poder contemplar a possibilidade de uma nova
localizao, mas, para isso, antes tinham que louvar o caos primeiro, onde
todo corpo ter o seu repouso e posterior desintegrao.
A fauna selvagem _ com seus animais virgens de homens, como prope
Vitrac _ representa o testemunho vivo das foras primitivas que a civilizao
teria domado. A exemplo de Lautramont, os surrealistas tambm
reconhecem na animalidade, um estado original a ser reconquistado. Da
que, os bichos figurem quase sempre sob atributos positivos, como resume
Hugnet no Dictionnaire abreg Du surrealisme: os animais encantadores
porque esto despidos, interiormente tambm (in. BRETON, 1987, p. 7).
Isso explica por que o verbete Metamorfose _ includo no Dicionrio
Crtico publicado pela Documents _ imediatamente sucedido pelo
subttulo animais selvagens. Para Bataille, a histria do reino animal
constitui-se de uma simples sucesso de metamorfoses desconcertantes.
Se essas transformaoes so insuportveis _ levando o pensamento
clssico a fix-las em imagens ideais _ porque, no limite, elas dizem
respeito a todos os seres vivos, do cavalo ao animal homem e deste s
figuras nobres e delicadas que surgem nas sadas de um nauseabundo
esgoto. Recordemos uma passagem do verbete: Podemos definir a
obsesso da metamorfose como uma violenta necessidade que, alis, se
confunde com cada uma das nossas necessidades animais, que levam um
homem a afastar-se de repente dos gestos e atitudes exigidos pela natureza
humana (BATAILLE, 1987, p. 208-9).
Ao vir-a-ser animal que projeta todo ser humano para alm de sua condio
antropomrfica, sucede, portanto, o vir-a-ser coisa do homem, cuja
manifestao primeira Bataille reconhece no emprego de mscara: a
destruio da normalidade humana revelada pelo animal e pela mscara,
Por encarnar os inabalveis desgnios da natureza que conduzem o homem
deteriorao e a morte, a mscara antecipa a coisa que todo ser se torna
ao morrer. Por isso, ainda que a inteligncia humanize o mundo, dando-lhe
formas previsveis, resta em todo homem uma obscura vontade de negar a
aparncia humana: a mscara apresenta-se
171
diante de mim como um semelhante, e este semelhante, que me desfigura,
traz em si a figura da minha prpria morte (BATAILLE, 1987, p. 403-6).
Assim como se colocam projees sobre os animais e a natureza sem gente
civilizada; o imaginrio ocidental tambm busca alegorias no extico e nos
humanos que se supem ser selvagem, isso no sentido de despidos das
angstias que afligem o homem moderno, como se o homem que chamam
de arcaico vivesse sem ter o sentido da morte; se resolveram melhor essa
questo, isso j outra coisa, mas em ambos os casos o sentido o mesmo,
assim como para ambos o medo presente, da dissoluo e do
desaparecimento das lembranas, do retorno ao nada, ao no-existir. Porque
o Mborayu nos une e, une o que existente ao que no existente, ao que
surge e ao que se dilui na inexistncia, nesse datado e limitado jogo de
aparncias e de mscaras, sejam elas cerimoniais, sejam elas coladas em
nossas faces.
Os diversos avatares por que passam os corpos humanos - das mutilaes
fsicas aos estados de bestialidade - ou suas extenses imaginrias - das
mscaras aos monstros - precipitam o antropomorfismo ao grande jogo das
metamorfoses. No limite desse processo de decomposio, a figura humana
reduzida por completo ao estado de coisa; no limite desse irreversvel
processo de desamtropormofisao, reitera-se a imagem do homem como
uma engrenagem do nada (idem).
Ao comentar as sries de Masson dedicadas ao tema da violncia, Michel
Leiris observa que, nelas, tudo se separa e se rene ao mesmo tempo de tal
forma que os corpos decepados se apresentam como animais vivos que
resistem. E justamente nesse ponto, conclui o autor, que os Sacrificios e
os Massacres do pintor se diferenciam em essncia das angstias imveis
dos crucificados (in ADES, 1994, p.16). As palavras de Masson so
conclusivas a esse respeito: acusam-me de mutilar o corpo com o nico
objetivo de injuriar enquanto que, para mim, a fragmentao e a disperso
dos corpos correspondia a uma idia de reunio com o universo (in
ROUDAUT, 1988, p. 201).
172
Nessa deciso revela-se o possvel do homem, que da em diante s pode
ser totalidade e no mais atividade a servio de outrem, na medida em que
esse possvel no se subordina a qualquer ocupao servil. Para o homem
soberano, que decide viver o vazio de sua existncia, no h escapatria: o
presente e a presena se impem sobre qualquer idia de futuro e sobre
qualquer discurso, abolindo todo intervalo que separa o ser do cosmos.
Tudo acontece, como se, no mundo moderno, o dilaceramento do homem
tivesse se tornado a nica sada a permitir reencontr-lo por inteiro, no
mais na ilusria completude antropomrfica, mas em seu permanente
inacabamento.
Se h um segredo do homem, diz Michel Camus ao analisar a figura do
acfalo moderno, ele est na morte: nada, alm dela, pode revelar a
intensidade muda e enigmtica de sua condio. Mas ainda que o homem
seja outra coisa que o homem _ e at mesmo o seu contrrio _, ainda que
ele seja, como props Bataille, a problematizao sem fim daquilo que
designa seu nome, ele no consegue livrar-se de si mesmo. no interior
desse paradoxo que se move o pensamento Batailliano, na tentativa de
refazer o homem desrealizando-o na consumao de seu prprio nada
(CAMUS,1980, p. I).
No se trata mais, como sonhava Jarry, de criar outro mundo suplementar
a este, mas de, depois de ter recusado a realidade do mundo habitual, criar
o nico verdadeiro. A frmula de Shakespeare, o mundo inteiro um
teatro, invertida, como assinala Genevive Serreau em seu livro sobre o
novo teatro: o teatro um mundo, o mundo em que a irrealidade real,
apresentada em um espetculo, torna-se nosso real. (cf. in GARAUDY, 1973,
p. 140).
O grande intento de um ou uma Jerokywa (de um ou uma Guarani que
dana) o de que o seu gesto seja por si, e no uma mimese. De que a
mscara que veste seja o ser que , e no a representao de algo. De ser
em si um termo-objeto e no a idealizao de algo ou de algum mundo ou
173
Beckett O que acontece, escreve Beckett _ isto: nada acontece _ a
ausncia e a espera, no vazio desta ausncia, de alguma coisa, de algum
que daria sentido a tudo. isto, ser salvo. Salvo da ausncia? Salvo do
escndalo de uma vida que no se pode nem viver nem morrer (in
GARAUDY, 1973, p. 140).
Essa reduo da existncia humana e do corpo humano insignificncia,
como num antropomorfismo s avessas, onde ces, gatos, cavalos, so
mais bem cuidados do que os seres da espcie humana. E isso, no num
sentido de dignificao do humano e do animal, formam hoje imagens
invertidas, de funesta apario nos meios de comunicao, contrapondo
programas de variedades com documentrios de violncia. Essa imagem
perturbadora, que decompe o homem em pores para definir de forma
exata do que ele feito, evoca com terrvel poder de sntese a reduo do
corpo humano a um quase nada. O artigo _ atribudo a George Bataille ou,
pelo menos, produzido por ele a partir de eventuais registros das sbias
pesquisas de algum positivista _ parte de um princpio radicalmente
materialista. Nessa decomposio vertiginosa do antropomorfismo, o ser
humano se resume a umas poucas qualidades de matria e, ainda, a
quantidade de valor irrisrio.
Nesse ponto h um grande desencontro entre a maneira como as culturas
que tm cosmoviso vem a realidade humana da como vem os
materialistas, embora possam parecer prximas. Para as culturas que tm
uma dimenso csmica de viso do mundo o homem tem uma significao
dentro de uma realidade pulsante de vida e de morte, e no se resume aos
seus componentes estruturais, sejam culturais, sejam materiais, ou seja, o
homem e a mulher, bem como tudo que existe no so possveis de reduo
as suas partes amontoadas e dissecadas; ao se romper com a sua
totalidade, ele deixa de ser. Portanto um ser dissecado no o que foi isso
parece bvio, mas no quando se disseca buscando entender o
174
pouco de potssio e de enxofre, mas em quantidade inutilizvel. Essas
diversas matrias-primas, avaliadas na moeda corrente, representam uma
soma em torno de 25 francos (in PLACE, 1991, p. 215).
Ser possvel reduzir o gesto humano a esse significado mnimo? Quando se
faz o Opaaty se tem a esperana de um prximo aty, de um novo
amanhecer e de um reencontro. Mas em vista dos acontecimentos temos a
ameaa de no ter uma prxima vez. A terra est apresentando os seus
sinais. As estaes esto desproporcionais, o inverno est muito quente, o
vero muito seco; acontecem tempestades e irregularidades que nunca
antes tinham acontecido, seno nas histrias mitolgicas. Sendo estas
coisas resultantes da ao humana, nos causa uma baixa estima, uma
desqualificao como espcie. Essa considerao apresentada do ser
humano como um quase nada traz a lembrana do nada a apresentar, do
nada a fazer mais seno deixar que a prpria natureza se recupere. Como
na msica de Jonh Cage, sem nenhum som, apenas pausa, apenas o
silncio, apenas a ausncia, a msica dilacerada em seu mnimo sentido,
apenas a gestualidade muda, sem a execuo, sem ter o que executar.
Assim, reforo que no possvel pensar esse drama da dissociao do
corpo, da sua diluio e da morte, como sendo um drama exclusivo de um
povo. No penso o drama existencial Guarani apartado do drama existencial
humano. Porm, podemos aprender que a maneira como cada povo
soluciona as suas questes, pode ajudar a outro no entendimento de seus
prprios problemas. Mas para isso necessrio que se tenha muito cuidado,
porque incorrer em erros conceituais pode gerar ainda maiores desvios e
descaminhos no entendimento e na busca de compreenso do drama
existencial humano.
175
5. 3 O ESPRITO QUE NOS UNE
Antes de recorrer aos dicionrios e de rememorar o amplo sentido do
Mborayu conforme foi expresso pelos anderui e pelas andexyi - quando
ento sigo para o afunilamento de nosso ponto de vista sobre esta questo ainda trago um ltimo eco do sentido reduzido dado ao termo, ou seja,
amor.
O reducionismo terico e cientfico tem trazido muito mal entendidos, e por
outra via, acomoda as questes que surgem evitando aprofundar na sua
complexidade. Fica-se na superfcie dos dados e na sua constatao sem
levar em considerao as suas implicaes. verdade que hoje temos
muitas linhas tericas e muitos mtodos de estudo da realidade, porm, o
reducionismo ainda uma maneira bastante usual de acomodao das
inquietaes que acometem a humanidade. E assim uma simplificao leva
a outra, uma arquitetura conceitual serve de base para outra, formando
todo um edifcio de idias que apenas atenuam um anseio de conhecimento
ao invs de estimular a apreenso das suas contradies e o conhecimento
das relaes e tenses implicadas na sua existncia, contentando-se com a
sua mera materialidade.
Da mesma maneira como o corpo humano reduzido a um nfimo material
qumico, o seu esprito tambm vem sendo reduzido a um nfimo estmulo
de qumicas sobre o sistema cerebral, assim sendo, segundo esse esquema,
o Mborayu teria o seguinte mecanismo, pelo menos se partindo da traduo
de Montoya, amor. Somente que num mundo desdivinizado, nos unimos e
somos guiados pelos seguintes estmulos:
176
e perdas e registrando progressos para a meta: a unio emocional, fsica e
at espiritual com o amado (FISHER, 2006, p. 104).
Esse um sentido moderno para o conceito de unio emocional.
Por outro lado quando recorremos aos dicionrios buscando o sentido da
palavra Mborayu, vamos encontrar sempre a referncia ao seu significado
dentro de um contexto cristo, salvo raras excees. Assim como tambm
vamos encontrar as grafias mais variadas possveis. Em sntese penso que
os dicionrios so bem ruins, quase sem exceo. Esta questo ainda no
esta bem resolvida, pois ainda no h um bom dicionrio da lngua Guarani
traduzindo para outro idioma. Ento dentro desta precariedade busco mais
dar uma referncia do que qualquer outra coisa para que se tenha uma
idia dos estudos lingsticos sobre o termo Mboraywu que, alis, nos
dicionrios aparece escrita como: Tayhu, hayhu, mborayvu, porayvu, para
apenas citar algumas formas. Assim, ainda no h uma traduo despida
desse contedo antigo. Ainda no foi feita uma abordagem lingstica
dentro dos parmetros das novas teorias da linguagem e da semitica.
Os verbetes trazem sempre o sentido cristianizado, salvo excees
encontradas em verbetes de estudos antropolgicos, como foi o caso
encontrado em Pierre e Hlne Clastres.
A traduo para o portugus mais usual encontrada nos dicionrios : amor,
bondade, viver ou andar em amor, carinho, gostar. Esse o caso do Dooley,
1998: 21; do De Canese, 1998: 79; do Colmn, 1994: 30; do Guarania, 1997:
214.
Cadogan traduz especificamente como: amor ao prximo; conferir no
dicionrio de Cadogan, 1992: 116. Todas estas tradues parecem ter uma
origem comum: a Arte Vocabulrio Tesoro y Catecismo de la Lengua
Guarani de Antonio Ruiz de Montoya, obra de 1640, e que muito
condicionou o entendimento posterior da lngua Guarani. Montoya grafa
como ahayhu, p. 226 e exemplifica assim: Tup oporayhu, guayhvamo,
ou seja, si Dios es amado, l tambien ama.
O amor carnal referenciado pelo termo Joaju, Guarania, 42; Cadogan usa a
variante joajue para unir-se carnalmente em forma distinta a la normal (sic).
Outro termo usado eporeno, ver Guarania, 42. Tambm so usados os
termos Jeupi e emonha, ver Dooley, 57. Cadogan usa o termo mbojupi; e
para o acto carnal vedado, ilcito (sic) o termo Jeupie, 70. Na verdade a
palavra jeupi pode ser usada para designar o verbo subir. O termo emonha
na verdade significa procriar ou multiplicar-se.
Hlne Clastres, em nota na sua obra Terra-Sem-Mal, esclarece: que para
fazer a traduo do termo mborayu, teve que recorrer a vrios termos em
francs. Assim ela diz: vrios termos franceses foram nescessrios para
restituir todos os matizes do Guarani
177
mborayu. Conforme o contexto, traduzido por 1- amor, quando se trata de
relao adultos-crianas; 2- amizade ou solidariedade, quando diz respeito
s relaes sociais dos adultos entre si; 3-solicitude, quando se trata da
relao dos divinos com os humanos. (CLASTRES, 1978, p. 123).
Creio que o esforo de Hlne Clastres trouxe alguns matizes do termo
Mborayu, excelente o seu trabalho de traduo. Porm, creio que foi Pierre
Clastres que conseguiu a traduo mais feliz para o termo.
Pierre Clastres em sua obra A Fala Sagrada, chega, creio, traduo ideal
do termo Mborayu, ele esclarece a sua traduo, nos diz assim:
O terceiro verso do texto marca com clareza a idia de socialidade. Disse
isso referindo-se ao verso trs do canto dois do Aywu Rapyta. E prossegue
Tentamos, na traduo, mostrar essa idia atravs da palavra em Guarani
Mborayu, que Leon Cadogan, por sua vez, traduz como amor al prjimo
(amor ao prximo). (CLASTRES, 1974, p.29). E segue:
Tratando-se de to profundo conhecedor da lngua guarani, foi-nos preciso
explicar a nossa prpria traduo. No guarani vernacular, mborayu significa,
com efeito, amor; amor profano dos homens e das mulheres por Deus (o
Deus cristo) e de Deus pelos homens. Excluindo qualquer eco cristo
178
esfera do divino. O canto sagrado assegura a comunicao entre a tribo dos
excelentes e o mundo dos deuses. Ele , sobretudo, palavra cujo movimento
conduz do mesmo ao mesmo, dos homens enquanto regio do divino ao
divino em si. O canto sagrado no um ato de f, no o suspiro
angustiado da comunidade de crentes. Nele, os homens, antes, afirmam o
saber intransigente de sua prpria divindade. (CLASTRES, 1974, p. 31).
Embora Pierre Clastres tenha tido todo um cuidado para incluir outra
possibilidade de traduo que no a academicamente aceita ento que era
a traduo de seu mestre, Cadogan, que por sua vez tem sua origem na
tradicional traduo de Montoya, ele aponta para um outro sentido que o
sentido que o termo tem para o Guarani, posto que amor um sentido para
o entendimento dentro da cultura crist.
O fato dos Guarani se considerarem filhos da terra, de Ywy Ret e de
sentirem que tudo na terra filho ou filha da terra, portanto irms e irmos
seus. E o fato de considerarem a terra filha de andexy Ete, e de que dela
todos nasceram juntos; e que aps, cada ser vivente foi tomando o seu
rumo, faz do Universo, por assim dizer, uma irmandade csmica, com o qual
o povo Guarani se sente intimamente aparentado, e, at mesmo se sente
saudoso, como no caso dos parentes que esto distantes e, que se tornam
s vezes um pouco esquecidos.
Na sua fala, no aty de primavera a andexyi Jaxy Rendy expressou dessa
forma esse sentimento:
- Gosto de sentir que meu pai o Sol e minha me a terra e que a terra
fecundada pelo pai e que todos somos seus filhos e filhas, todos somos
irmos e irms.
J o Nanderui Karai Tatawa Fernandes traz uma preocupao que o abarca,
pela situao em que se encontra o planeta, ele no se exclui dos
problemas da terra, pois, se sente parte desse problema. Ao mesmo tempo
se sente capaz de sanao, e sente que a sua sanao ajuda na sanao do
planeta. Vejamos o seu aywu:
- Esta forma de vida, este camino nos permite la sanacin personal y a
travs de ella la del planeta, nosotros no enfermamos a la Tierra, somos la
expresin de la enfermedad del planeta, somos la expresin de un
pensamiento de separacin, de autodestruccin de contradiccin del
planeta.
Esta manera del ande Rek nos permite dejar de ser la enfermedad y
convertirnos en la cura, es nuestra opcin, nuestra sanacin dejar de ser el
cncer y convertirnos en luz. Cada Aty, cada Maety, cada sanacin personal
nos ayudamos como parte de la madre Tierra, de andexy Ywy Ret a
sanarnos. Hewete amandu, Hewete anderu, Hewete andexy.
amadu Mbyte Por andekwerupe. A andexyi e Karai faz em seu
aywu uma
179
referncia ao que lhe disse o tuja octogenrio Karai Tataendy (Hortncio),
com relao ao fato de estarmos esquecendo andexy, assim se
expressando: Tataendy me disse que:
180
gerando um desequilbrio imenso no pensar e no sentir a espiritualidade e
em tudo que compreende a existncia do prprio ser humano.
181
182
Isso que interliga, une e rene, que mantem e sustenta o mundo o
Mborayu. A mesma fora misteriosa que neste momento proporciona este
texto, unindo as palavras s idias, conforme o seu poder de atrao, como
num jardim de letras que se esparramam sobre uma folha de papel em
branco ou em uma tela de computador.
Isso que interliga, une e rene e que mantem o povo Guarani como povo, e
o que o faz irmanado, solidrio com o mundo, com a natureza, como o
com algum que da famlia, esse sentimento que representado no
mito da criao, de que tudo foi gerado pelo casal csmico: anderu Papa
Tenonde e andexy Ete, e que todos vieram vida num parto nico. Esse
sentimento de pertena faz com que se tenha um carinho por tudo, como se
tem por um parente ntimo, e possibilite tratar ywyret como um grande
jardim, e que cuide desse jardim, como para enfeitar a me terra (gua).
Entendo, como nos esclarece Karai Poty, que esse sentimento o Mborayu,
que esse sentimento o esprito que une o povo Guarani a tudo e a todos
com uma afetividade que foi aprendida e ensinada atravs do mito da
partognese do mundo.
H muitas diferenas que fazem dos andewa Guarani um povo com estilo
prprio; diferenas tais como: lngua, calendrio, medicina, agricultura (...).
Sem dvida no Brasil e nos pases do cone sul j no se tem o hbito de
comemorar solstcios e equincios; nem de seguir um calendrio agrcola
em que o awaxyete o polarizador de uma atividade ritualstica.
No entanto tambm h inmeras coisas comuns com os demais integrantes
da populao brasileira e dos pases do cone sul, tais como: a de freqentar
as mesmas escolas, os mesmos espaos de lazer e de serem bombardeados
pelas informaes dos mesmos meios mediticos, entre tantas outras coisas
em comum. Alis, so os andewa bombardeados pelas informaes dos
mesmos meios mediticos que informam globalmente nosso planeta. E
tambm lem muitos livros e revistas semelhantes, assistem a filmes em
comum e praticam artes e esportes comuns.
Inclusive importante destacar que foi a arte o elemento de conexo entre
o universo Guarani e o europeu. Foi atravs da msica que os jesutas se
fizeram amistosos e foi por apreciar a msica dos jesutas que os Guarani
foram por eles atrados e os consideraram dignos de sua amizade, de
partilhar a intimidade do Tekowa. E hoje as coisas se ampliaram, mtua a
admirao pela literatura, pelas artes plsticas, pelas artes cnicas. Ou seja,
as artes desde o inicio e atualmente continuam sendo o ponto de conexo
183
nos pases onde vivem. Porque atravs da arte os Guarani se sentem
cocriadores do mundo, ou seja, a arte faz parte do ande Reko, da
religiosidade Guarani.
Hlne Clastres foi a primeira estudiosa da cultura Guarani que
compreendeu que os Guarani puderam forjar uma religio atia. Da a
ausncia de cultos ou de sacrifcios, mas no de prtica (CLASTRES, 1978,
p. 32). E nessa prtica observada pela Hlne Clastres est inclusa a arte e
o artesanato, bem como a literatura oral, e a arte de se fazer humano e de
caminhar pelas maravilhas da terra em busca de seus lugares mais belos,
movidos pelo anseio de unir-se, de fundir-se com o csmico, de cocriar com
as divindades.
No mito do dilvio aparece o termo mau-amor (mborayu heym). E depois o
mesmo termo traduzido como funesta unio. Pois coloca o senhor da
funesta unio (Tup Mirim) distncia dos outros nossos primeiros pais. Ele
se afastou de anderu Ret pois desobedeceu um Korai (uma norma), e
por isso ele desdobra outro mundo para si, um mundo em que aquela norma
deixa de ter sentido. Aps isso, amandu mandou casais que reunidos pelo
Mborayu estabelecem o antigo mundo, porm numa totalidade inacabada,
pois nele havia a ausncia de Tup Mirim e da sua Ijaixe.
Porm o mundo de amandu no exclui o mundo de Tup Mirim, porque ele
todos os mundos. Em ltima instncia ento amandu o grande
mistrio. E assim podemos apenas indicar amandu atravs de uma ltima
descrio: o Mborayu. Alm desse ponto, do Mborayu, no h Guata Por
(caminhar), porque no h mais o caminhante, chegou-se em Ywyju Por. E
o Mborayu seria ento um relacionamento vivo com a existncia total que
nos cerca. O Mborayu que aglutina a existncia, e seu desaparecimento
que desintegra a existncia, a perda da conscincia da sua existncia.
Na concepo andewa no h Deus, s h divindades, porque Deus trs
em si uma limitao, porque ele exclui. amandu inclui tudo o que h.
Abrange tudo, nada excludo. a natureza de todos os mundos. amandu
o Mborayu na medida em que somos no mundo como ele se apresenta.
Porm o Mborayu no uma fora esttica, o Mborayu tem movimento,
uma fora que anda. Porque apresenta trs aspectos relacionados que esto
ligados entre si pelo decorrer do tempo. Ento ele se articula ora como
termo-objeto (amandu rete ete) e ora como termo-idia (amandu rete
por).
184
que esta acontecendo; que o Mborayu Por diz do que poder ser
(Waer), a partir do que est sendo feito por mim e por todos; o Mborayu
carrega em si uma grande bagagem ertica, pesada como a cabea de Hu;
no Mborayu Por reside a esperana no esprito que nos manter unidos
amanh (Koer). O Mborayu Heym, diz do que foi, do que est
desintegrando, do que caminha para a morte, para o esquecimento, diz do
passado e da ausncia aonde o esprito que nos une vai deixando de existir
no plano de nossa concincia dando lugar ao esquecimento e mandua
(o esprito da memria) que tenta manter de alguma maneira os liames,
reelaborando e recriando o que deixou de existir no plano de nossa
concincia. Quando no existe a presena nem o presente, e nem a
esperana do vir-a-ser, fica por um tempo a lembrana do ausente, e por
fim o nada, o retorno a amandu em seu mbyte (vrtice), no lugar
potencial, focal (fogo), da onde tudo vem-a-ser, matria prima da criao,
que reunida e reanimada pela fora do esprito que une e rene, cria e
recria incessantemente por puro prazer. Por isso, parafraseando Bataille,
diria, pela bagagem que carrega, que o sentido ltimo do Mborayu: a
morte.
5. 4 CONCLUINDO
Pelo que pude compreender de tudo que observei e aprendi com esta
pesquisa, ficou que algumas questes dadas como resolvidas sobre o ande
Reko e a concepo do termo Mborayu, deixavam enormes lacunas em seu
entendimento. E que na abordagem que fiz nesta pesquisa, com a ajuda dos
anderui, das andexyi e, com a orientao que tive da professora Lieve
Troch, com o auxilio terico prestado pelos professores do programa de
Cincias da Religio da Universidade Metodista de So Paulo, e do apoio
encontrado nos textos dos autores que estudaram previamente a cultura
Guarani, pude acrescentar alguns elementos e preencher algumas lacunas
nessa busca de uma maior compreenso dessas questes.
A primeira questo que se evidencia a de que o entendimento do termo
Mborayu, quase sempre vem impregnado de sentido cristianizado ou
romantizado, salvo em raras excees, como no caso das observaes feitas
por Pierre e Hlne Clastres.
185
perspectiva meta-csmica, no poderia dizer de outra maneira. Partindo da
herana recebida, de uma cultura que tinha a divindade fora do universo
tangvel, o que ela poderia deduzir era que os Guarani no tinham uma
divindade assim.
Dentro de uma concepo meta-csmica, a divindade transcendente, ou
seja, o mundo fica dividido entre o que sagrado e o que profano; por
essa razo, a realidade tangvel (a matria, a natureza), destituda da
divindade.
Na Cosmoviso Guarani a divindade imanente, e o transcendente est
dentro do imanente, ou seja, no h essa dualidade, essa dicotomia entre o
profano e o sagrado, entre o imanente e o transcendente.
Na concepo da divindade surge o grande desvio de interpretao que
eclipsa todos os demais entendimentos. Como os Guarani no tm uma
divindade que esteja fora da realidade imanente, fica fcil considerar que
no tm religio, e quando muito, - e no poderia ser de outra maneira,
partindo desse ponto de vista, - considera-se que tm uma religio atia.
Partindo dessa perspectiva, o Frei Antnio Ruiz de Montoya inaugura uma
linha de interpretao que perdura enquanto tivermos uma concepo de
mundo metacsmico e uma noo da divindade como transcendente. A de
que se Deus amado, ele tambm nos ama: Tup oporayhu,
Guyhuvamo (MONTOYA, 1640, p. 226).
Enquanto para os Guarani, Mborayu o espirito que nos une. Esse ns, no
sentido de todos os que foram destinados a existir. Une o presente ao
passado e ao futuro; o que com o que foi e o que ser. Nos une com o
divino na natureza; com a vida e com a morte.
A segunda questo diz respeito ao reflexo desse entendimento, do Mborayu,
nas relaes sociais. O problema a esta na dissociao entre uma coisa e a
outra, pois, para os Guarani a religio media tambm as relaes sociais. O
aty o frum onde os problemas cotidianos so explanados, onde se busca
resolues para as diferenas de opinio e de tendncias com relao
administrao e conduo da vida no Tekowa.
Pierre Clastres diz que Mborayu marca com clareza a idia de socialidade
(CLASTRES, 1990, p.29). Na traduo do terceiro verso do Aywu Rapyta
usa a expresso: o que esta destinado a reunir (idem). E afirma:
excluindo qualquer eco cristo desses textos indgenas, pensamos que o
186
Idia de socialidade, o que est destinado a reunir, amor ao prximo;
so idias prximas, as mais prximas que foram possveis dentro de uma
viso metacsmica. Uma concepo em que o eu e o outro so
indivduos independentes, e no parte de um todo onde tudo est includo,
reunido intrinsecamente.
No improvvel, que tudo quanto foi dito, at este momento, nesta
concluso, poa parecer simples, e talvez seja simples, porm no
simplista. Pois, nesse engano, nesse desvio de interpretao e
entendimento, pode estar razo de toda uma trajdia.
Desde o prncipio de uma relao, desde os primeiros contactos com os
clrigos e com os viajantes; como podemos encontrar nos depoimentos
desses clrigos e desses viajantes, temos o testemunho de que os Guarani
foram amistosos, que forneceram viveres, que partilharam o seu espao e o
seu tempo com as pessoas que estavam chegando, foram tidos poltica e
socialmente, como eventual aliado; economicamente, como possvel
fornecedor de alimento. (MELI, 1987, p. 20).
Com os clrigos partilharam a sua religio, que por estes foi totalmente
desconsiderada, foi entendida como mero folclore, a ponto de Lery dizer:
No confessam nem adoram nenhum Deus (LERY, Ed. 1972, p. 59-60).
Tambm com os estudiosos partilharam o que tinham de mais precioso: os
seus saberes, a sua religio, e a sua divindade, para onde toda a sua
existncia convergia; e foram considerados como tendo forjado uma religio
atia (cf. CLASTRES, 1978, p. 32).
Porm, insisto em ressaltar, que no caso de Pierre e Hlne Clastres, a
questo foi a falta de conceito adequado e no a de entendimento. De
qualquer maneira, prefervel para um Guarani ser considerado ateu em
uma natureza desdivinizada, do que ter de adorar um Deus que esta fora da
realidade manifesta.
Todavia, esta questo pode parecer datada, que no uma questo
presente. Mas isso no verdade, neste presente momento esto em ao
hordas missionrias levando o seu Deus metacsmico para culturas em que
187
essa maneira de ser da comunidade Guarani como uma sociedade contra o
estado (1962; 1974, p. 25-42). Evidentemente a comunidade Guarani no
nem comunista e nem democrtica, e tambm no uma sociedade
contra o estado. Mas sem dvida, por falta de conceitos, foram usadas
essas similaridades para descrev-la.
Na verdade, o Mborayu tonaliza uma maneira de ser, um ande Reko que
bem pouco compreendido, seja no plano social, seja no plano numinoso. A
religio Guarani no atia, assim como a comunidade Guarani no
Comunista ou Democrtica; apenas uma comunidade que no delega a
sua responsabilidade a outrem e que no entrega poder a no ser para a
prpria comunidade de seres existentes, sejam eles humanos como
integrantes do reino animal; animais; vegetais ou minerais; que coexistem
em suas divindades, em famlia.
Ou seja, o Mborayu baliza o ande Reko e determina toda uma existncia
pautada pela noo de irmandade, como filhos e filhas de uma mesma
origem, sejam humanos ou no, e todos unidos pela existncia em comum,
que nos torna intrinsecamente relacionados em um todo que nos abarca
sem distines.
O Mborayu nos torna flores-estrelas do grande jardim csmico que
amandu, a natureza de todos os mundos.
188
189
GLOSSRIO
190
Kuruxu: cruz Guarani, sustentculo do mundo.
Kwaarupe: arte marcial Guarani.
Kwaray: sol nascente, manifesta-se no matiz dourado. Padre e madre sol.
Kwaxya: escrito, escrituras, signaturas.
Maety: mandala de plantio do awaxy.
Mandua: memria, lembrana, gnese, cdigo gentico.
Mbaekwaa: sbio.
Mbarakaguaxu: Harpa guarani (paraguaia).
Mbyte: vrtice, centro de algo.
Mborai: canto, cano cerimonial.
Mborai Por: canto sagrado que possue 113 estrofes e atribudo a Xume.
Mborayu: o esprito que nos une; amor.
Mborayu por: Unio ideal, amor ideal.
Mboru: prontido, constncia, propsito inarredvel, predisposio.
Mombeu: discurso.
Mimby: flautas Guarani.
ande Reko: nossa maneira de ser. Religio Guarani.
anderenondere: leste.
andekere: sul.
andekerowai: norte.
andexy: nossa me.
andekupere: Oeste.
andekyrey: nosso irmo mais velho, maior.
anderui: sacerdote Guarani.
191
Opawaer: universo.
Opy: casa de reza-dana.
Oke: sonho.
Paje: autoridade espiritual, padre.
Paranmimbyguy: trombeta de concha marinha.
Parika: p de tabaco Guarani com essncia.
Petyn: Fumo Guarani.
Petyngua: cachimbo Guarani.
Po: ervas que elevam, enteginas.
Pyte: espargir insenso com o petyngua.
Rete: corpo
Tata Por Guaxu: grande fogueira.
Tekowa: local estabelecido, local onde se pode viver o ande Reko.
Tembekwa: adorno posto por perfurao abaixo dos lbios (como um pirce).
Tendota: o que vai frente, o que abre caminhos.
Tup: sol poente, tambm senhor dos raios e tempestades, manifesta-se no
matis do vermelho.
Xiwy: ona.
YYowu: dilvio.
YYpety: sumo de tabaco.
Ywyraija: o que conduz o plantio de awaxy, o que porta o ywyramaety.
Ywyraywu: basto da palavra.
Ywyret: planeta terra (gua).
192
193
ANEXO ILUSTRAES E MAPAS
Figura 01: Opy do Tekowa Ywoty Renda (foto Karai Tatawa)
Figura 03: Aty de Kunh Kwere (Aty de mulheres) (foto Ygua Pyt)
194
Figura 04: Aty Ara Poty Guy Aty de Primavera (foto Ygua Pyt)
195
Figura 05 e 06: Caminho Pr-Colombiano do Itupava (foto Ygua Pyt)
196
Figura 07: Karai Tataendy (de chapu) (foto Karai Tatawa)
197
Figuras 08 e 09: Montanha do Anhangava (foto Guyrauna)
Figura 10: Nascente de gua Caverna de Xum (foto Ywytu Pytu)
198
199
Figura 13: Misso Guarani de Santo ngelo (Dep.Tur. Santo ngelo)
Figura 14: Misso Guarani de So Miguel Arcanjo (Dep. Tur. S. ngelo)
200
Figura 15: rea Indgena Guarani no Litoral Paranaense Ilha de Cutinga
Figura 16: Litoral norte do Paran Aldeia Guarani
201
Figura 17: Aldeias Guarani do litoral do Estado do Paran e do Estado de
Santa Catarina. (PEREIRA, Joo Jos de F. A Arte andewa-Guarani de Fazer
e Tocar Flauta de Bambu: Dissertao de Mestrado PUC/SP, So Paulo,
1995)
202
Figura 18: Mapa da Repblica Guarani (in. LUGON, Clovis. A Repblica
Comunista Crist Dos Guaranis. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1968)
203
204
REFERNCIAS
ADES, Dawn. Masson. Barcelona: Poligrafia, 1994.
ALENCAR, Jos de. O Guarani. So Paulo: Scipione, 2001.
__________ Iracema. So Paulo: Scipione, 1999.
ANDRADA, Francisco de. Carta del Presbitero Francisco de Andrada, dirigida
al Consejo Real de las Indias. Buenos Aires: Documentos Historicos y
205
BERTONI, Moiss. Resumen de Prehistoria y Protohistoria de los Guaranies.
Asuncin: Estabelecimento Grfico M. Brossa, 1914.
BRETON, Andre. Diccionario del Surrealismo. Buenos Aires: Rengln, 1987.
BUENO, Silveira. Vocabulario Tupi-Guarani-Portugus. So Paulo: Brasilivros,
1987.
CABEZA DE VACA, Alvar Nues. Naufragios y Comentarios, com dos cartas
de Hernando de Ribera. Madrid: Ed. Espasa-Calpe, 1971.
CADOGAN, Len. Diccionario Mbya-Guarani-Castellano. Asuncin, Paraguay:
Biblioteca Paraguaya de Antropologa: 1992.
___________ Aywu Rapyta. So Paulo: Boletins da Faculdade de Filosofia,
Cincias e Letras. Universidade de So Paulo. SP, 1953-1954.
___________ Ticumberu. San Bernardo (Chile): Ed. La Idea, 1960.
___________ Kotyu Mamorangua. Villarica: Revista Guairea de Cultura, 1961.
206
CHARLEVOIX, Pierre. Historia del Paraguai. Madri: Librera General de
Victoriano Surez, 1910-1916.
CHMYZ, Igor. Contatos intertnicos verificados em stios arqueolgicos no
Estado do Paran, Brasil.Curitiba: Revista do Instituto de Biologia e
Pesquisas Tecnolgicas, n. 16, p. 11-14, 1971.
CLASTRES, Helne. Terra Sem Mal. So Paulo: Brasiliense, 1978.
CLASTRES, Pierre. A Fala Sagrada. Campinas, So Paulo: Papirus, 1990.
____________ change et Pouvoir: Philosophie de la Chefferie Indienne. Paris:
LHomme, 1962.
____________ Le Grand Parler. Paris: Ed. Du Seuil, 1974.
COHEN, Sande. Structuralism and the Writining of Intellectual History. Rev.
History and Theory. Nova Iorque: Columbia University Press, 1978.
COLMAN, Mario Vera. Diccionario Trilingue espaol, guarani e portugus.
Asuncin, Paraguay: Centro Editorial Paraguayo S. R. L., 1994.
DE LAURETIS, Teresa. Alice Doesnt: Feminism, Semiotics, Cinema.
Bloomington: Indiana University Press, 1984.
207
FERNANDES, Florestan. Investigao etnolgica no Brasil e outros ensaios.
Petrpolis: Vozes, 1975.
FERNANDES, Florestan. Investigao etnolgica no Brasil e outros ensaios.
Petrpolis: Vozes, 1975.
FERNANDEZ, Miguel Angel. El Gnesis de los Apapokuva-Guarani de Augusto
Roa Bastos. Asuncin:Alcor, segunda poca, n.1, 1971.
FISHER, Helen. Por que Amamos. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2006.
FOULCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. So Paulo: Martins Fontes,
1981.
____________ Madness and Civilization: A History of Insanity in the Age of
Reason. Nova Iorque: Random Hause, 1973.
____________ The Archaeology of Knowledge and the Discourse on Language.
Nova Iorque: Pantheon, 1972.
____________ Language. Nova Iorque: Cornell University Press, 1977.
GARAY, Blas. Compendio Elemental de Historia del Paraguay. Madrid: Ed.
Uribe y Cia, 1896
GARAUDY, Roger. Danar a Vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
GARAVAGLIA, Juan Carlos. Mercado Interno y Economia Colonial. Mxico: Ed.
Grijalbo, 1983.
___________ La Demografia Paraguaia. Asuncin: Suplemento Antropolgico,
v. 19, 1984.
208
GONZLEZ, Gustavo. Los guaranes. Orgenes. Dispersin. Cultura,
Organizacin social. Religin. Idioma. Asuncin: Proa, n. 2-10, 1951-1952.
GONZLES, Martin. Cartas de India, tomo II. Madrid: Arquivo Real, 1877.
GRAFF, Gerald. The Myth of the Postmodernism Breakthrough. Chicago:
University of Chicago Press, 1973.
GRENAND, Franoise. Pequeno Dicionrio da Lngua Geral. Manaus, Brasil:
Governo do Estado do Amazonas, 1989.
GUARANIA, Flix de. Diccionario Ilustrado. Buenos Aires: Colihue S. R. L.,
1997.
GONZLEZ, Gustavo. Los guaranes. Orgenes. Dispersin. Cultura,
Organizacin social. Religin. Idioma. Asuncin: Proa, n. 2-10, 1951-1952.
HUTCHEON, Linda. Potica do Ps-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
IRALA, Domingo. Cartas de India, t. II. Madrid:Arquivo Real, 1877.
JAEGER, l. Gonzaga. A famlia guarani cristianizada. Anais do Segundo
Congresso de Histria e Geografia Sul rio-grandense, I, 1937.
JUKUPE, Kaka Wera. Tup Tenonde. So Paulo: Ed. Peirpolis, 2001.
KRISTEVA, Julia. Desire in Language. Nova Iorque: Columbia University Press,
1980.
LA CAPRA, Dominick. History and Criticism. Nova Iorque: Cornell University,
1985.
LADEIRA, Maria I. O Caminhar Sob a Luz: dissertao de Mestrado PUC/SP,
So Paulo, 1992.
209
___________________ La Raza Pampeana y la Raza Guarani. Buenos Aires: I
Congresso Cientifico Latinoamericano, tomo V, 1900.
___________________ Etnologia Argentina. Buenos Aires: Imprenta de Coni
Hermanos, 1909.
LAPLATINE, Franois. Aprender Etnopsiquiatria. So Paulo: Brasiliense,1994.
LAS CASAS, Bartolom. O Paraso Destruido. Porto Alegre/RS: LPM, 2001. .
LAUTRAMONT. Euvres Potiques Completes. Paris: Robert Laffont, 1980.
LE BRUN, Annie. Sade, Aller et Dtours. Paris: Plon, 1989.
LRY, Jean de. Viagem Terra do Brasil. So Paulo: Ed. USP, 1972.
LVI-STRAUSS, Claude. Mythologiques. I. L cru et l cuit. Paris: Plon, 1964.
LOTHROP, Samuel. Indians of the Paran Delta. NY: Annals of the New York
Academy of Science, vol. XXXII, 1932.
LUGON, Clovis. A Republica Comunista Crist Dos Guaranis. Rio de Janeiro:
Ed. Paz e Terra, 1968.
MAILLARD-CHARY, Claud. Le Bestiaire ds Surrealistes. Paris: Presses de la
Sorbonne, 1994.
MANUSCRITOS DA COLEO DE ANGELIS. Rio de Janeiro: Biblioteca
Nacional, 1951-1970.
MARTINEZ, Domingo. Carta de Domingo Martinez al Emperador Don Carlos.
Madrid: Cartas de Indias, tomo II, 1877.
MELI, Bartolomeu. La Cration dum Language Chrtien Dans Les
Rduction Des Guarani au Paraguay. Strasbourg: Universit de Strasbourg,
1969.
___________ El Modo de Ser Guarani en la Primera Documentacin Jesutica.
So Paulo: Revista de Antropologia, vol. 24, 1981.
__________ La Lengua Guarani del Paraguay. Caracas: Monte Avila Editores,
1983.
210
211
PENAFORT, Onestaldo. O Festim, a Dana e a Degolao. Rio de Janeiro:
Livraria So Jos, 1960.
PEREIRA, Joo Jos de F. A Arte andewa-Guarani de Fazer e Tocar Flauta de
Bambu: Dissertao de Mestrado PUC/SP, So Paulo, 1995.
PLACE, Jean Michel. Revista Documents n 4. Paris: Ed. Fac-similar, 1991.
RECALDE, Juan Francisco. A criao do mundo e o dilvio universal na
religio dos primitivos Guarani. So Paulo: Revista do arquivo Municipal, p.
100-111, 1950
RIBEIRO, Darci. Os ndios e a civilizao. A integrao das populaes
indgenas no Brasil moderno. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1970.
ROUDAUT, Jean. Une Ombre au Tableau. Chavagne: Ed. UBACS, 1988.
SADE, Marqus de. Euvres Complets. Paris: Pauvert, 1986-1991.
SAID, Edward. Beginnings: Intention and Method. Nova Iorque: Basic,1975.
____________ An Ideology of Difference. Nova Iorque: Basic, 1985.
SCHADEN, Egon. Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani. So Paulo:
Edusp, 1974.
__________ Caracteres Especficos da Cultura Mbya-guarani. Buenos Aires:
Jornadas Internacionais de Arqueologia y Etnografia, v. 2, 1962.
SCHMIDL, Ulrich. Derrotero y Viaje a Espaa y las Indias. Buenos Aires:
Espasa-Calpe, 1944.
SEPP, Antonio. Continuatio Laborum Apostolicorum, Quos R. P. Antonius
Sepp, Soc. Jesu Missionarius Apostolicus in Paraquaria ab Anno Christi 1693.
Nurenberg: Ed. J. Hoffmanns, 1696.
SEUCENKO, Nicolau. Orfeu Exttico na Metrpole. So Paulo: Companhia das
Letras, 1992.
SPIVAK, Gayatri. Feminism and Critical Theory. Winnipeg: Associao
Canadense de Literatura Comparada, 1978.
212
SUSNIK, Branislava. Religin y Religiosidade em los Antigos Pueblos
Guaranes. Asuncin: Ed. Loyola, 1981.
_____________ Los Aborigenes del Paraguai. Asuncin: Ed. Museu Etnogrfico,
1984-1985.
Tese parte 1
Tese parte 1
Mborayu: O esprito que nos une
Tese parte final
Tese parte final
Mborayu: O esprito que nos une
Awaju Poty
Awaju Poty
Arquivo do blog
2012 (2)
2011 (1)
2010 (6)
2009 (2)
2008 (2)
2007 (5)
Colaboradores
xywy
awajupoty