Jó e Seus Amigos CH Mackintosh
Jó e Seus Amigos CH Mackintosh
Jó e Seus Amigos CH Mackintosh
C. H. Mackintosh
P ROSPER IDADE DE JÓ
Na primeira folha deste notável livro vemos o patriarca Jó rodeado de tudo quanto
podia fazer o mundo agradável aos seus olhos, assim como de coisas que podiam outorgar-lhe
uma posição importante neste mundo. "Havia um homem na terra de Uz, cujo nome era Jó; e este era
homem sincero, reto e temente a Deus, e desviava-se do mal" (1:1). Vemos aqui o que era Jó em sua
vida. Vejamos agora o que ele tinha.
"E nasceram-lhe sete filhos e três filhas. E era o seu gado sete mil ovelhas, e três mil camelos, e
quinhentas juntas de bois, e quinhentas jumentas; era também muitíssima a gente ao seu serviço, de maneira
que este homem era maior do que todos os do oriente. E iam seus filhos, e faziam banquetes em casa de cada
um, no seu dia; e enviavam, e convidavam as suas três irmãs a comerem e beberem com eles" (1:2-4). Por
último, para completar o quadro, se nos apresenta o que Jó fazia.
"Sucedeu, pois, que, tendo decorrido o turno de dias dos seus banquetes, enviava Jó, e os santificava, e
se levantava de madrugada, e oferecia holocaustos, segundo o número de todos eles; porque dizia Jó: Porventura
pecaram meus filhos e blasfemaram de Deus no seu coração. Assim o fazia Jó, continuamente" (1:5). Aqui
temos, então, um modelo de homem bastante fora do comum. Era perfeito e reto, temeroso
de Deus e apartado do mal. Além disso, a mão de Deus o protegia em tudo, e derramava
sobre seu caminho as mais ricas bênçãos. Jó tinha tudo o que o coração poderia desejar: filhos,
O ORGULHO DE JÓ
Mas Jó necessitava ser provado. Abrigava no seu coração uma profunda raiz moral
que devia ser tirada à luz; uma justiça própria que devia sair à superfície e ser julgada.
Podemos, com efeito, vislumbrar esta raiz nos versículos que acabamos de ler. Ele diz:
"Porventura pecaram meus filhos..." (v. 5). Não parece ter contemplado a possibilidade de que ele
mesmo tenha cometido algum pecado. Uma alma que realmente tem-se julgado a si mesma,
uma alma quebrantada ante Deus, verdadeiramente consciente do seu próprio estado, das suas
tendências e incapacidades, teria pensado em seus próprios pecados e na necessidade de
oferecer um holocausto por si mesma.
Mas deve ser esclarecido ao leitor que Jó era um verdadeiro santo de Deus, uma alma
divinamente vivificada, um possuidor da vida divina e eterna. Não poderíamos insistir o
suficiente neste ponto. Ele era um homem de Deus tanto no primeiro capítulo como no
último. Se não nos apercebemos disto, nos privaremos de uma das grandes lições deste livro.
O versículo 8 do primeiro capítulo estabelece este ponto fora de toda cogitação: E disse o
Senhor a Satanás: "Observaste tu o meu servo Jó? Porque ninguém há na terra semelhante a ele, homem
sincero e reto, temente a Deus e desviando-se do mal".
Porém, apesar disso, Jó nunca tinha sondado as profundezas do seu próprio coração.
Ele não conhecia a si mesmo. Nunca tinha captado realmente a verdade da sua própria
condição de ruína, da sua total corrupção. Jamais havia aprendido a dizer: "...eu sei que, em mim,
isto é, na minha carne, não habita bem algum..." (Romanos 7:18). Se não se compreende este ponto,
não se entenderá o livro de Jó. Não captaremos o objetivo específico de todos esses
profundos e penosos exercícios pelos quais Jó teve que passar, a menos que deixemos
evidente o solene fato de que a sua consciência nunca tinha estado realmente na presença
divina, que ele nunca tinha se examinado ante a luz, que jamais tinha se medido com a vara
divina e que nunca havia se pesado na balança do santuário de Deus.
Se nos remetermos por uns instantes ao capítulo 29, acharemos uma prova
incontestável do que acabamos de afirmar. Veremos ali, de forma clara, a profunda e vigorosa
raiz da satisfação pessoal que havia no coração deste querido e honrado servo de Deus, e a
maneira como esta raiz nutria-se dos mesmos sinais do favor divino que a rodeavam. Este
capítulo encerra um patético lamento pelo brilho apagado dos seus dias passados; além disso,
o tom e o caráter deste lamento deixam manifesto quão necessário era que Jó se despojasse de
tudo a fim de conhecer a si mesmo à luz da presença divina que tudo o examina com atenção.
Ouçamos as suas palavras:
O mesmo aconteceu com Jó no capítulo 30. Porém, temos que levar em conta que o
despojamento de si mesmo e o descobrimento da hipocrisia e a veleidade do mundo não é
tudo. Podemos experimentar todas estas coisas e não achar finalmente senão problemas e
desilusões; e esse será o resultado se não elevamos o nosso olhar a Deus. Enquanto o coração
não encontrar em Deus a sua plena satisfação, qualquer mudança adversa de circunstâncias
nos deixará submersos na desolação; então, o descobrimento da veleidade e hipocrisia dos
homens nos encherá de amargura. Esta é a explicação pela linguagem que Jó utiliza no
Porém, ouçamos ainda mais expressões de desafogo: "Eram filhos de doidos, e filhos de
gente sem nome, e da terra eram expulsos. Mas, agora, sou a sua canção, e lhes sirvo de provérbio. Abominam-
me, e fogem para longe de mim, e no meu rosto não se privam de cuspir. Porque Deus desatou a sua corda e me
oprimiu; pelo que, sacudiram de si o freio perante o meu rosto. À direita, se levantam os moços; empurram os
meus pés, e preparam contra mim os seus caminhos de destruição. Desbaratam-me o meu caminho; promovem a
minha miséria; uma gente que não tem nenhum ajudador. Vêm contra mim como por uma grande brecha, e
revolvem-se entre a assolação" (30:8-14).
Agora bem, tudo isto —bem podemos dizer— estava muito, mas muito longe do alvo.
Lamentações por uma grandeza desvanecida e amargas invectivas contra nossos semelhantes
não servirão de nada para o coração, nem manifestam para nada o espírito e a mente de
Cristo; assim como também não glorificarão seu santo Nome. Se contemplarmos a bendita
pessoa do Senhor, veremos algo completamente diferente: o Senhor Jesus, "manso e humilde de
coração", recebe todo o desprezo do mundo, sofre o desengano em meio ao seu povo Israel e
se encontra com a incredulidade e os desatinos dos seus discípulos. Tudo isto Jesus assumiu
dizendo simplesmente: "Sim, ó Pai, porque assim te aprouve" (Mateus 11:26). Ele foi capaz de se
apartar de toda a agitação dos homens e olhar simplesmente para Deus, para proferir então
estas maravilhosas palavras: "Vinde a mim... e eu vos aliviarei" (Mateus 11:28). Nenhum desgosto,
amargura, invectivas nem palavras duras ou ofensivas poderemos achar neste gracioso
Salvador que desceu a este mundo frio e sem coração, para manifestar o perfeito amor de
Deus e prosseguir sua trilha de serviço apesar de todo o ódio dos homens.
Mas o mais excelente, o melhor dos homens, quando medido com a vara perfeita da
vida de Cristo, não lhe chega nem à sombra. A luz de Sua glória moral põe de manifesto os
defeitos e as imperfeições do mais perfeito dos filhos dos homens, "para que em tudo tenha a
preeminência" (Colossenses 1:18). Enquanto à paciente submissão que foi chamado a suportar,
Ele sobressai em vívido contraste com um Jó ou um Jeremias. Jó sucumbiu sob o peso das
provas por que teve de passar. Não só deixou escapar uma torrente de amargas invectivas
contra os seus semelhantes, mas até amaldiçoou o dia do seu nascimento. "Depois disto, abriu Jó
a sua boca, e amaldiçoou o seu dia. E Jó, falando, disse: Pereça o dia em que nasci, e a noite em que se disse:
Foi concebido um homem!" (3:1-3).
Achamos algo idêntico no caso de Jeremias, esse bem-aventurado varão de Deus. Ele
também, não podendo resistir à pressão das diferentes provações que se iam acumulando, deu
lugar aos seus sentimentos com estas amargas palavras: "Maldito o dia em que nasci: o dia em que
minha mãe me deu à luz não seja bendito. Maldito o homem que deu as novas a meu pai, dizendo: Nasceu-te
um filho; alegrando-o com isso, grandemente. E seja esse homem como as cidades que o Senhor destruiu, sem
que se arrependesse: e ouça clamor pela manhã, e ao tempo do meio-dia um alarido. Por que não me matou
A história dos caminhos de Deus com as almas que nos apresenta este livro constitui o
campo mais fértil para o nosso estudo; a mais interessante história, sumamente instrutiva e
proveitosa. O principal e grande objetivo destes desígnios de Deus com as almas é o de
produzir uma verdadeira contrição e humilhação de espírito; apartar de nós toda falsa justiça;
fazer com que nos despojemos de toda confiança em nós, mandamentos e ensinar-nos a
buscar em Cristo o nosso único amparo. Todos têm que passar através do que poderia
denominar-se de "processo de despojamento e esvaziado de um mesmo". Uns experimentam
este processo antes de sua conversão ou novo nascimento; outros, depois. Alguns são trazidos
a Cristo passando por terríveis experiências e penosos exercícios de coração e de consciência,
exercícios que podem durar anos e, a vezes, toda a vida. Outros, em câmbio, obtêm esta
mesma graça através de exercícios de alma relativamente simples. Estes últimos se apropriam
de imediato das boas novas do perdão dos pecados que foi possível graças à morte expiatória
de Cristo. Seu coração se enche de gozo em seguida. Mas o despojamento e esvaziamento do
eu vem depois e, em muitos casos, pode sacudir a alma desde suas próprias fundações e fazê-
la duvidar de sua própria salvação.
Quão propícias são estas palavras para todos nós! Um espírito contrito e quebrantado
constitui uma das necessidades mais urgentes de nosso tempo. A maior parte de nossas
calamidades e dificuldades podem serem atribuídas a esta necessidade. Os progressos que
realizamos dia a dia, na vida familiar, na assembléia, no mundo, em toda a nossa vida prática,
quando o eu é subjugado e mortificado, são verdadeiramente admiráveis. Mil coisas que sem
este exercício seriam como uma chama que faz arder nossos corações, são estimados como
nada quando as nossas almas se encontram num estado verdadeiramente contrito. Podemos
então suportar repreensões e insultos; passar por alto menosprezos e afrontas; pisotear nossos
caprichos, predileções e prejuízos, como assim também ceder ante os outros quando não se
vejam comprometidos princípios fundamentais; estar dispostos a toda boa obra, manifestar
uma agradável amplidão de coração em todas as nossas relações, e ser menos rígidos em nosso
trato com os outros, de maneira de enfeitar a doutrina de Deus, nosso Salvador. Mas, ai, quão
freqüentemente acontece o contrário com nós! Manifestamos um temperamento relutante,
inflexível; combatemos em favor dos nossos direitos; nos inclinamos para todo o que nos dê
algum benefício; buscamos nossos próprios interesses pessoais; queremos impor nossas
próprias idéias. Tudo isto demonstra claramente que o nosso eu não é ponderado nem julgado
de forma habitual na presença de Deus.
Porém, o repetimos com ênfase: Deus quer vasos vazios. Nos ama demasiadamente
para nos deixar em nossa dureza e teimosia, e por isso julga conveniente nos fazer passar
através de todo tipo de exercícios a fim de nos trazer a um estado da alma em que possa nos
utilizar para a Sua glória. É necessário que a vontade seja quebrantada, que a confiança
própria, a auto-satisfação e o orgulho sejam arrancados de raiz. Deus se valerá das cenas e
circunstâncias por que temos que passar, assim como das pessoas com que nos relacionamos
na vida diária, a fim de disciplinar o nosso coração e quebrantar a nossa vontade. E, além
disso, Ele mesmo tratará diretamente com nós a fim de conseguir estes formidáveis resultados
práticos.
Tudo isto revela-se com grande claridade no livro de Jó, tornando suas páginas
sumamente atrativas e frutíferas. É muito evidente que Jó precisava ser fortemente
chacoalhado. Podemos estar seguros de que se isso não tivesse sido necessário, o Deus da
graça e da bondade não o teria feito passar por provações semelhantes. Sem dúvida, não foi
sem um propósito que Deus permitiu a Satanás disparar suas mortíferas flechas sobre seu
amado servo. Podemos afirmar, com absoluta certeza, que Deus não teria procedido dessa
forma se o estado de Jó não o houvesse necessitado. Deus amava a Jó com um amor perfeito;
mas tratava-se de um amor sábio e fiel, um amor que tinha em conta todos os detalhes da
vida, e que podia penetrar no coração deste amado servo de Deus, e descobrir uma profunda e
maligna raiz moral que Jó jamais tinha visto nem julgado. Que graça é ter que ver com
semelhante Deus! Que graça é estar nas mãos dAquele que não evita esforços quando tem que
submeter em nós tudo quanto seja contrário a Ele, e lavrar Sua bendita imagem em nós!
"E vindo um dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o Senhor, veio, também,
Satanás entre eles. Então o Senhor disse a Satanás: Donde vens? E Satanás respondeu ao Senhor, e disse: De
rodear a terra, e passear por ela. E disse o Senhor a Satanás: Observaste tu o meu servo Jó? Porque ninguém
há na terra semelhante a ele, homem sincero e reto, temente a Deus e desviando-se do mal. Então respondeu
Satanás ao Senhor, e disse: Porventura teme Jó a Deus debalde? Porventura não o cercaste tu de bens, a ele, e
a sua casa, e a tudo quanto tem? A obra das suas mãos abençoaste e o seu gado está aumentado na terra. Mas
estende a tua mão, e toca-lhe em tudo quanto tem, e verás se não blasfema de ti na tua face!" (1:6-11).
Que solene é pensar em tudo isto! Deveria induzir-nos a seguir uma senda humilde e
alerta, no meio da cena onde Satanás pratica o seu domínio! Esse encontra-se absolutamente
impotente frente a uma alma que permanece na dependência e obediência; e —bendito seja
Deus—, Satanás não pode, em caso nenhum, traspassar o limite traçado por prescrição divina.
Assim aconteceu com Jó: "E disse o Senhor a Satanás: Eis que tudo quanto tem está na tua mão;
somente contra ele não estendas a tua mão. E Satanás saiu da presença do Senhor" (1:12).
Tudo isto é profundamente comovente. Ser privado num instante dos seus dez filhos e
logo reduzido das riquezas principescas à penúria absoluta, era, humanamente falando, motivo
suficiente para cambalear. Que notável contrate entre as primeiras e as últimas linhas do
primeiro capítulo! Ao princípio, vemos Jó rodeado de uma numerosa família, desfrutando das
suas muitas possessões; enquanto que, ao último, o vemos abandonado, sumido na pobreza e
na nudez. E pensar que foi Satanás quem —com a permissão e, ainda mais, com o pedido de
Deus— o tinha reduzido a tal estado! E para que foi feito tudo isto? Para o proveito
permanente e profundo da preciosa alma de Jó. Deus via que o seu servo necessitava aprender
uma lição; e considerava, além disso, que tal lição só poderia ser ensinada fazendo passar a Jó
por uma prova penosa —por um verdadeiro tormento—, cuja simples menção enche a mente
de solene temor. Deus não deixará de ensinar a Seus filhos, ainda que tivesse que despojá-los
de tudo a que o coração se afeiçoa neste mundo!
"E, vindo outro dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o Senhor, veio, também,
Satanás entre eles apresentar-se perante o Senhor. Então o Senhor disse a Satanás: De onde vens? E
respondeu Satanás ao Senhor, e disse: De rodear a terra, e passear por ela. E disse o Senhor a Satanás:
Observaste o meu servo Jó? Porque ninguém há na terra semelhante a ele, homem sincero e reto, temente a
Deus, e desviando-se do mal, e que ainda retém a sua sinceridade, havendo-me tu incitado contra ele, para o
consumir sem causa. Então Satanás respondeu ao Senhor, e disse: Pele por pele, e tudo quanto o homem tem
dará pela sua vida. Estende, porém, a tua mão, e toca-lhe nos ossos, e na carne, e verás se não blasfema de ti
na tua face! E disse o Senhor a Satanás: Eis que ele está na tua mão; poupa, porém, a sua vida. Então saiu
Satanás da presença do Senhor, e feriu a Jó de uma chaga maligna, desde a planta do pé até ao alto da cabeça.
E Jó, tomando um pedaço de telha para raspar com ele as feridas, assentou-se no meio da cinza. Então sua
mulher lhe disse: Ainda reténs a tua sinceridade? amaldiçoa a Deus, e morre. Mas ele lhe disse: Como fala
qualquer doida, assim falas tu; receberemos o bem de Deus, e não receberíamos o mal? Em tudo isto, não pecou
Jó com os seus lábios." (2:1-10).
Esta é uma passagem muito notável. Nos instrui acerca do lugar que ocupa Satanás a
respeito do governo de Deus. Ele não é mais do que um instrumento; e, embora esteja sempre
pronto para acusar o povo de Deus, não pode fazer nada, a não ser apenas o que Deus lhe
permite. Seus esforços, no que a Jó se refere, viram-se frustrados e, trás esgotar seus últimos
Estamos ansiosos de que o leitor capte com clareza este ponto. Constitui, em grande
parte, a clave de todo o livro de Jó. O objetivo divino era expor aos olhos de Jó as
profundezas do seu próprio coração, a fim de que aprendesse a se deleitar na graça e na
misericórdia de Deus; todas as acusações de Satanás se desmoronaram em sua própria cara;
porém, Jó continuava sem ser um vaso vazio, e portanto, não estava preparado para "o fim
do Senhor", esse fim bendito para todo coração contrito, um fim caracterizado pela
misericórdia e a compaixão. Deus —bendito seja o Seu Nome— não tolerará que Satanás nos
acuse; mas Ele quer nos fazer ver o que há em nosso coração, a fim de que nos julguemos a
nós mesmos e aprendamos a desconfiar dos nossos próprios corações e a repousar na
inquebrantável firmeza da Sua graça.
Por enquanto, vemos que Jó "retêm a sua integridade". Enfrenta com calma as terríveis
aflições que Satanás lhe causou com a permissão de Deus; e além disso, rejeita o insensato
conselho de sua mulher. Em uma palavra, aceita tudo como proveniente da mão de Deus, e
inclina a sua cabeça ante Suas misteriosas dispensações.
Tudo isto sem dúvida era bom. Porém, a chegada dos três amigos de Jó provoca uma
mudança notável. A sua simples presença, o mero fato de serem testemunhas oculares de sua
miséria, influiu nele de uma maneira surpreendente. "Ouvindo, pois, três amigos de Jó, todo este mal
que tinha vindo sobre ele, vieram cada um do seu lugar: Elifaz, o temanita, e Bildade, o suíta, e Sofar, o
naamatita; e concertaram juntamente virem condoer-se dele, e consolá-lo. E, levantando de longe os seus olhos e
não o conhecendo, levantaram a sua voz e choraram; e rasgando cada um o seu manto, sobre as suas cabeças
lançaram pó ao ar. E se assentaram juntamente com ele na terra, sete dias e sete noites; e nenhum lhe dizia
palavra alguma, porque viam que a dor era muito grande." (2:11-13).
Isto é muito notável. Seus amigos, pelo visto, não haviam proferido uma única palavra.
Sentaram em absoluto silêncio, com suas vestes rasgadas e suas cabeças cobertas de cinzas,
contemplando uma aflição tão profunda que era impossível sondar. Jó mesmo foi quem
rompeu o silêncio. Todo o terceiro capítulo consiste em um desabafo de seus amargos
lamentos, evidenciando assim, tristemente, um espírito indômito. Podemos dizer com certeza
que é impossível que alguém que haja aprendido a dizer em alguma medida "seja feita a Tua
vontade", possa alguma vez amaldiçoar o dia em que nasceu ou empregar a linguagem que
vemos no terceiro capítulo do nosso livro. Sem dúvida, alguém pode dizer: "é fácil falar
quando nunca nos tocou ter que suportar as terríveis provas de Jó". Isto é muito certo, e
podemos agregar que nenhum outro homem haveria agido melhor em circunstâncias
semelhantes. Tudo isto compreendemos perfeitamente; mas não muda em absoluto o grande
ensino moral do livro de Jó, ensino que temos o privilégio de aprender. Jó era um verdadeiro
santo de Deus; mas ele —como todos nós— necessitava conhecer a si mesmo. Precisava que
as raízes ocultas do seu ser moral fossem descobertas ante seus próprios olhos, de modo que
pudesse verdadeiramente aborrecer-se e arrepender-se no pó e nas cinzas. E necessitava,
também, ter uma percepção mais profunda e verdadeira do que Deus era, para assim poder
confiar nEle e justificá-Lo em todas as circunstâncias.
Todas estas coisas, porém, as buscaremos em vão no primeiro discurso de Jó. "E Jó,
falando, disse: Pereça o dia em que nasci, e a noite em que se disse: Foi concebido um homem! (...) Por que não
morri eu desde a madre, e, em saindo do ventre, não expirei?" (3:2-3,11). Estes não são os pontos de
um espírito contrito e quebrantado, nem de alguém que tem aprendido a dizer: "Sim, ó Pai,
porque assim te aprouve" (Mateus 11:26). Se há alcançado um importante ponto na história da
alma quando se é capaz de inclinar mansamente ante todas as dispensações da mão de nosso
Pai. Uma vontade quebrantada é um dom precioso e extraordinário. Tem se alcançado um
grau elevado na escola de Cristo quando se é capaz de dizer: "já aprendi a contentar-me com o que
tenho" (Filipenses 4:11). Paulo teve que aprender isto. Não era conforme à sua natureza; e com
certeza jamais o teria aprendido aos pés de Gamaliel. Teve que quebrar-se por completo aos
pés de Jesus de Nazaré antes de conseguir dizer desde o fundo do coração: "estou contente".
Teve que sopesar o significado destas palavras: "A minha graça te basta", antes de poder "se
aperfeiçoar na fraqueza" (2 Coríntios 12:9). O homem que foi capaz de empregar esta linguagem
é o antípoda do que pode amaldiçoar o dia em que nasceu, e exclamar: "pereça o dia em que
nasci". Pense só num santo de Deus, num herdeiro da glória, dizendo: "pereça o dia em que nasci".
Ah, se Jó tivesse estado na presença de Deus nunca teria pronunciado palavras semelhantes!
D I SCURSOS D OS AMIGOS DE JÓ
Elifaz e a experiência
A partir destas declarações fica evidente que Elifaz pertencia a essa classe de gente que
gosta de argüir se baseando na própria experiência. Seu ditado era: "Eu vi". Agora bem, é
possível que o que hajamos "visto", seja o que for, seja absolutamente verdadeiro. Mas é um
erro terrível fazer da nossa experiência individual uma regra geral; porém, milhares têm esta
inclinação. O que tinha a ver, por exemplo, a experiência de Elifaz com a situação de Jó?
Talvez ele jamais se encontrou com um outro caso exatamente igual ao de Jó; e embora
houvesse existido um único rasgo de disparidade entre os dois casos, toda a argumentação
baseada na experiência de um deles não teria sido de utilidade alguma para o outro. E isto fica
claro no acontecido a Jó: assim que Elifaz acabou de falar, Jó —que não lhe havia prestado a
menor atenção—, prosseguiu falando das próprias aflições, intercalando palavras de
justificação própria e amargas recriminações contra os desígnios de Deus (cap. 6 e 7).
Bildade e a tradição
Agora bem, devemos admitir que Bildade nos conduz a um campo muito mais vasto
que aquele de Elifaz. A autoridade de uma multidão de "padres" tem muito mais peso e
respeitabilidade que a experiência de um simples indivíduo. Por outra parte, se deixar conduzir
pela voz de uma multidão de homens sábios e eruditos parece muito mais modesto que fazê-lo
à luz da experiência de um só deles. Mas o assunto é que nem a experiência nem a tradição
servirão de nada. A primeira, até onde chega, pode ser verdadeira; mas dificilmente acharemos
duas pessoas cujas experiências coincidam de maneira perfeita. Referente à segunda, é uma
profusa confusão; pois um difere do outro, e nada pode ser mais volúvel e incerto do que a
voz da tradição ou a autoridade dos pais.
Zofar e a legalidade
Estas palavras têm um forte gosto de legalidade. Mostram claramente que Zofar não
tinha uma percepção justa do caráter de Deus. Não conhecia Deus. Ninguém que possua o
verdadeiro conhecimento de Deus poderia falar dEle como de alguém que abre a boca contra
o pobre pecador afligido ou que exige algo de uma criatura desvalida e necessitada. Deus —
bendito seja Seu Nome por todo o sempre— não é contra nós, senão por nós (Romanos 8:
31). Ele não é um cobrador ou um demandante legal, senão um generoso doador.
Observemos nos últimos versículos que lemos; Zofar diz: "Se tu preparaste o teu coração" (11:13).
Agora bem, que aconteceria se Jó não tivesse preparado o seu coração? É verdade que um
homem deveria ter sempre disposto o seu coração; mas isso não será possível em tanto e
Por esta razão, os três amigos não puderam persuadir Jó. Seu ministério era de uma
natureza parcial e, em vez de fechar a boca de Jó, só conseguiram levá-lo a um campo de
discussão que parecia interminável. Jó, então, não deixa de lhes responder palavra por palavra,
e de agregar muitas mais: "Na verdade, que só vós sois o povo, e convosco morrerá a sabedoria. Também eu
tenho um coração como vós, e não vos sou inferior; e quem não sabe tais coisas como estas?" (12:2-3). "Vós,
porém, sois inventores de mentiras, e, vós todos, médicos que não valem nada. Oxalá vos calásseis de todo, que
isso seria a vossa sabedoria!" (13:4-5). "Tenho ouvido muitas coisas como estas, todos vós sois consoladores
molestos. Porventura não terão fim estas palavras de vento? Ou que te irrita, para assim responderes? Falaria
eu, também, como vós falais, se a vossa alma estivesse em lugar da minha alma? Ou amontoaria palavras
contra vós e menearia contra vós a minha cabeça?" (16:2-4). "Até quando entristecereis a minha alma, e me
quebrantareis com palavras? Já dez vezes me envergonhastes; não tendes vergonha de contra mim vos
endurecerdes? (...) Compadecei-vos de mim, amigos meus, compadecei-vos de mim, porque a mão de Deus me
tocou." (19:2-3, 21).
Todas estas expressões demonstram que Jó estava longe de ter esse espírito
quebrantado e essa atitude humilde que surgem como resultado de estar na presença de Deus.
Sem dúvida, seus amigos estavam errados, completamente errados em suas noções acerca de
Deus tanto quanto em suas maneiras de tratar com Ele. Mas seus erros não justificavam a Jó.
Se a sua consciência tivesse estado na presença de Deus, ele não teria respondido aos seus
amigos, ainda quando o seu erro tivesse sido mil vezes maior e a sua maneira de tratá-lo, mil
vezes mais severa. Teria inclinado a cabeça com humildade e permitido que a maré das
repreensões e acusações o atropelasse. Teria se beneficiado com a mesma severidade dos
amigos ao considerá-la como uma disciplina saudável para o seu coração. Mas não; Jó ainda
não tinha conseguido acabar consigo mesmo. Se justificava a si mesmo, proferia invectivas
"Então aqueles três homens cessaram de responder a Jó; porque era justo aos seus próprios olhos. E
acendeu-se a ira de Eliú, filho de Baraqueel, o buzita, da família de Ram: contra Jó se acendeu a sua ira,
porque se justificava a si mesmo, mais do que a Deus. Também a sua ira se acendeu contra os seus três amigos:
porque, não achando que responder, todavia condenavam a Jó" (32:1-2).
Eliú, com uma lucidez e um vigor extraordinários, vai direito ao centro do problema
em cada uma das partes. Resume, em duas breves sentenças, as extensas discussões que
abarcaram 29 capítulos. Jó se justificava em vez de justificar a Deus; seus amigos, por outra
parte, o tinham condenado em vez de guiá-lo ao julgamento de si mesmo.
Mas Jó ainda não havia aprendido a caminhar por esta senda maravilhosa e bendita.
Ainda estava revestido de sua própria justiça. Ainda achava plena complacência em si mesmo.
Por isso Eliú se acendeu de ira contra ele. A ira haverá de cair com certeza sobre a própria
justiça. Não poderá ser de outra maneira. O único terreno legítimo para o pecador é o de um
sincero arrependimento. Ali não se encontra mais que a pura e preciosa graça que reina "pela
justiça mediante Jesus Cristo, Senhor nosso". Nela permanece impassível para sempre. À
própria justiça não lhe espera outra coisa senão a ira; mas ao eu julgado, só a graça.
Querido leitor, lembre-se disto. Detenha-se uns instantes e considere. Em que terreno
você se encontra? Tem se inclinado ante Deus com um verdadeiro arrependimento? Tem se
medido em verdade alguma vez em Sua santa presença? Ou se encontra no terreno da sua
própria justiça, da sua justificação pessoal e da sua auto-satisfação? Lhe rogamos
encarecidamente que sopese estas solenes perguntas. Não as desconsidere. O nosso desejo é
chegar ao coração e à consciência do leitor. Não apontamos meramente ao seu entendimento,
a sua mente ou ao seu intelecto. Sem dúvida, é bom tentar iluminar o entendimento pela
Palavra de Deus; mas lamentaríamos profundamente se todo o nosso trabalho tivesse que
acabar ali. Há muito mais do que isso. Deus quer operar no coração, na alma, no homem
interior. Ele quer nos ter diante dEle em nosso real estado. De nada vale que edifiquemos a
nossa própria opinião; pois nada pode ser mais seguro do que o fato de que toda a nossa obra,
construída com tais materiais, será demolida. O dia do Senhor estará contra toda exaltação e
altivez; é sábio, pois, ocupar agora uma posição humilde e ter um coração culpado, já que,
quando somos humildes, apreciamos com maior clareza a Deus e a sua salvação. Que o leitor
penetre, com o poder do Espírito, na realidade de todas estas coisas! Que todos lembremos
que Deus se deleita em ver um espírito contrito e quebrantado, e que Ele sempre encontra Sua
morada com os tais, mas ao altivo olha desde longe!
Assim sendo, podemos entender por que a ira de Eliú se acende contra Jó. Ele estava
do lado de Deus. Jó, porém, não. Não ouvimos falar a Eliú senão até o capítulo 32, embora é
evidente que tenha sido um ouvinte atento durante toda a discussão. Havia prestado ouvidos
pacientemente às duas partes, achando que ambas estavam erradas. Jó fez mal em tratar de se
defender; seus amigos, em tratar de condená-lo.
Tudo isto é uma digressão a que nos permitimos com o objetivo de evitar que, ao
termos urgido o leitor à importância de cultivar um espírito quebrantado e dócil, este pudesse
ter inferido que com isso quisemos dizer que é necessário abandonar uma Igreja ou um til da
divina revelação. Agora retornemos ao nosso tema.
"Eliú, porém, esperou para falar a Jó, porquanto tinham mais idade do que ele. Vendo, pois, Eliú
que já não havia resposta na boca daqueles três homens, a sua ira se acendeu" (32:4-5). Note-se isto: "não
havia resposta". Em todos os seus arrazoamentos, em todos os seus argumentos, em todas as
suas alusões à experiência, à legalidade e à tradição, "não havia resposta". Isto é muito instrutivo.
Eis aqui a única autoridade segura; a única norma infalível. "Os grandes não são os sábios,
nem os velhos entendem o que é reto. Pelo que digo: Dai-me ouvidos, e também eu declararei a minha opinião.
Eis que aguardei as vossas palavras, e dei ouvidos às vossas considerações, até que buscásseis razões.
Atendendo, pois, para vós, eis que nenhum de vós há que possa convencer a Jó, nem que responda às suas
razões; Para que não digais: Achamos a sabedoria, Deus o derribou, e não homem algum. Ora ele não dirigiu
contra mim palavra alguma, nem lhe responderei com as vossas palavras. Estão pasmados, não respondem
mais, faltam-lhes as palavras." (32:9-15).
O ministério de Eliú bate na alma com uma força e uma profundidade extraordinárias.
Encontra-se em vívido contraste com o incompleto e tremendamente defeituoso ministério
dos três amigos. Era o remédio para pôr fim a uma controvérsia que parecia interminável; uma
controvérsia entre um férreo egotismo por parte de Jó, e uma flutuante experiência, uma
volúvel tradição e uma presunçosa legalidade de parte dos seus amigos; uma controvérsia que
não servia para nada, ao menos para Jó, e que acabaria deixando as partes muito mais
enfrentadas do que estavam no princípio. Porém, essa controvérsia não deixa de ter o seu
valor e interesse para nós. O claro ensinamento que nos deixa é este: duas partes em disputa
jamais poderão chegar ao entendimento a menos que exista de uma das partes certo grau de
quebrantamento e avassalamento do coração. Esta é a valiosa lição a que todos nós devemos
prestar atenção. Não só no mundo, mas também na igreja, existe uma grande quota de
obstinação e de arrogância; uma grande quantidade de atividades centradas no homem; uma
forte dose de "eu, eu, eu" para tudo; e isso, além, prevalece onde menos esperaríamos, a
Ai!, apesar de tudo isto, não existe, querido leitor, largas e estendidas demonstrações
deste eu aborrecível e não-subjugado no terreno da profissão cristã e do ministério cristão?
Quem poderia negá-lo? A medida que os nossos olhos examinam o relato da notável
discussão entre Jó e seus amigos, descobrimos com surpresa que só no que vá dos capítulos
29 ao 31, Jó menciona a si mesmo aproximadamente umas cem vezes! Em resumidas contas,
tudo é "eu", "mi", "me", nestes capítulos.
Todas estas coisas não nos dizem nada? Acaso não nos chamam a despojar-nos
primeiramente do nosso grande egotismo, antes de condenar ao do nosso antigo patriarca?
Com certeza ele não procedeu bem; mas nós estamos muito mais enrolados no mal. O fato de
que um homem que vivia no escurecido crepúsculo das distantes épocas patriarcais se visse
prisioneiro na armadilha do orgulho, deveria surpreender-nos muitíssimo menos que o de um
santo na mesma situação, mas sob a luz do Cristianismo. Cristo ainda não tinha aparecido.
Nenhuma voz profética havia chegado ainda aos ouvidos dos homens. Nem sequer a própria
lei tinha sido entregue quando Jó vivia, falava e pensava. Podemos fazer-nos uma muito ligeira
idéia, certamente, do tão tênue raio de luz que alumbrava a trilha dos homens nos tempos de
Jó. Mas nós temos o elevado privilégio e a santa responsabilidade de andar na luz culminante
de um Cristianismo cumprido. Cristo já veio. Viveu, morreu, ressuscitou e ascendeu aos céus.
Ele enviou o Espírito Santo para morar nos nossos corações, como testemunha de Sua glória,
como selo da redenção cumprida e como as garantias de nossa herança até a redenção da
possessão adquirida. O cânon da Escritura está fechado. O círculo da revelação está completo.
A Palavra de Deus está concluída. Temos ante nós a história divina dAquele que se despojou a
si mesmo e que ia de lugar em lugar fazendo o bem; o maravilhoso relato do que fazia e de
Agora, o que sabia Jó de tudo isto? Nada. Como podia saber o que não foi revelado
senão cinco séculos depois dele? A medida do conhecimento de Jó se põe de manifesto ao ler
as suas veementes e comoventes palavras ao final do capítulo 19: "Quem me dera, agora, que as
minhas palavras se escrevessem! Quem me dera que se gravassem num livro! E que, com pena de ferro, e com
chumbo, para sempre fossem esculpidas na rocha! Porque eu sei que o meu Redentor vive e que, por fim, se
levantará sobre a terra. E, depois de consumida a minha pele, ainda em minha carne verei a Deus. Vê-lo-ei
por mim mesmo, e os meus olhos, e não outros, o verão; e por isso, os meus rins se consomem dentro de mim."
(19:23-27).
Este era o conhecimento de Jó —seu credo. Num sentido, o seu conhecimento era
grande; mas, em comparação com o extenso e proeminente círculo de verdades em meio ao
qual temos o privilégio de sermos introduzidos, é muito pequeno. Jó olhava para a frente,
através de um enfraquecido crepúsculo, para algo que havia de cumprir-se num porvir
distante. Nós, por outro lado, desde o topo das águas da revelação divina, olhamos para trás, a
algo consumado. Jó pode dizer do seu Redentor que "por fim se levantará sobre a terra". Nós
sabemos que o nosso Redentor, depois de ter vivido, trabalhado e morrido na terra, sentou-se
à destra do trono da Majestade nos céus.
Por outro lado, quando nos sentimos obrigados a dirigir-nos a alguém em atitude e
tom de repreensão, com quanto rudeza, brutalidade e aspereza desempenhamos esta
necessária tarefa! Que pouco tato e que pouca suavidade no tom! Quanto falta de doçura e de
ternura! Que pouca bondade, que pouco desse "bálsamo excelente" (Salmo 141:5). Que difícil
é achar entre nós corações quebrantados e olhos chorosos! Que miserável capacidade para
Não é nada agradável escrever estas coisas. Pelo contrário. Mas sentimos que é o
nosso dever fazê-lo. Nos aflige sobremaneira ver —e isto com a maior solenidade— a
crescente frivolidade e indiferença da época em que vivemos. Nada é mais aterrador que a
desproporção entre a nossa profissão e a nossa prática. Se professam as mais elevadas
verdades em relação imediata com uma mundanalidade e uma licenciosidade grosseiras. Em
alguns casos, pareceria como se o caminhar fosse ainda mais baixo quanto mais elevadas são
as doutrinas professadas. Vemos em meio de nós uma extensa difusão da verdade, mas onde
está o seu poder formativo? Torrentes de luz derramam na inteligência, porém, onde estão os
profundos exercícios de coração e de consciência na presença de Deus? A regra de apresentar
a verdade de maneira precisa e exata se cumpre com extremo rigor, mas, onde estão os
resultados práticos? Desenvolve-se a sã doutrina segundo a letra, mas onde está o espírito?
Vemos a forma das palavras, mas onde está a representação vivente?
Queremos dizer com isto que não apreciamos a sã doutrina? Queremos dizer que
subestimamos a ampla difusão das preciosas verdades da Palavra em suas formas mais
elevadas? Longe, longe de nós esse pensamento! A linguagem humana seria insuficiente para
expressar a nossa estima por estas coisas. Que Deus nos guarde de escrever um última linha
que pudesse de alguma forma fazer minguar na mente do leitor o inefável valor e a
importância de manter uma elevadíssima —em rigor, a mais elevada— norma de verdade,
tanto quanto alguma de Sua doutrina. Estamos plenamente persuadidos de que jamais
melhoraremos a nossa conduta rebaixando —embora fosse só pela espessura de um cabelo—
a medida dos princípios de Deus.
Mas, querido leitor, lhe perguntamos com amor e solenidade: não lhe aflige o fato de
que em meio de nós exista tão trágica ausência de consciências delicadas e de corações
exercitados? Andam lado a lado a nossa piedade prática e a profissão dos nossos princípios?
Está a medida de nossa conduta prática na mesma altura que a medida da doutrina que
professamos? Ai, prevemos a resposta do leitor sério e reflexivo! Sabemos muito bem os
termos em que ela haverá de ser expressa. Fica claro que a verdade não atua em nossas
consciências como seria de esperar, que a doutrina não brilha em nossas vidas e que a prática
não é coerente com a nossa profissão.
Falamos por nós e para nós. Escrevemos estas linhas num espírito de juízo próprio; na
mesma presença de Deus, já que Deus é a nossa testemunha. É nosso ardente desejo que a
Queira o Senhor nos fazer realmente humildes, zelosos e devotos! Que a expressão
íntima do nosso coração seja: "Senhor, sou teu, somente teu, todo teu, teu para sempre".
Isto pode parecer a alguns uma digressão do nosso tema principal; mas confiamos que
esta pequena divagação que nos temos permitido não seja em vão, mas que pela graça de
Deus, deixe algum proveito ao coração e à consciência do escritor e do leitor; e assim
estaremos melhor preparados para entender e apreciar o poderoso ministério de Eliú, ao qual
dirigiremos agora a nossa atenção, confiando-nos à orientação de Deus.
O leitor não pode deixar de notar o duplo efeito que produz este notável ministério: o
seu efeito sobre o nosso patriarca e o seu efeito sobre os seus amigos. Não podia se
esperar outra coisa. Eliú, como já fizemos notar, havia escutado pacientemente os argumentos
esgrimidos por ambas as partes. Ele tinha deixado, por assim dizer, que falassem até o
"E respondeu Eliú, filho de Baraqueel, o buzita, e disse: Eu sou de menos idade, e vós sois idosos;
receei-me e temi de vos declarar a minha opinião. Dizia eu: Falem os dias, e a multidão dos anos ensine a
sabedoria." (32:6-7). Esta é a ordem natural das coisas. Pressupomos que a sabedoria esteja na
cabeça dos homens na mesma medida que os seus cabelos brancos; é, pois, razoável e
conveniente que os jovens sejam prontos para ouvir e tardios para falar na presença dos seus
maiores. Podemos assentir, como um princípio quase invariável, que um jovem impetuoso
não é conduzido pelo Espírito de Deus; que jamais se tem medido na presença divina, e que
nunca quebrantou o seu coração diante de Deus.
Não há dúvida que —como sucedeu a Jó e seus amigos— muitas vezes homens
maiores proferem muitas palavras sem sentido. Os cabelos brancos e a sabedoria nem sempre
caminham juntos; e também é um fato não pouco freqüente que homens de idade, apoiando-
se meramente no número dos seus anos, atribuem a si um lugar ao qual não têm nenhum
direito moral, intelectual nem espiritual. Tudo isto que dizemos é perfeitamente certo, e digno
de consideração por aqueles que pudessem sentir-se identificados com estas coisas. Mas todas
estas misérias não desmerecem no mínimo o delicado sentimento moral que pode ver-se nas
primeiras palavras de Eliú: "Eu sou de menos idade, e vós sois idosos; receei-me e temi de vos declarar a
minha opinião". Isto sempre estará bem. Sempre é bom e agradável que um jovem tema declarar
a sua opinião. Podemos ter certeza de que um homem que possui força moral interior jamais
procurará levar vantagem com precipitação; mas, pelo contrário, quando se coloca na frente,
está seguro de que vai ser ouvido com respeito e atenção. A modéstia em combinação com a
força moral comunicam um irresistível atrativo ao caráter da pessoa; tanto que os talentos
mais esplêndidos perdem brilho por causa de uma personalidade que confia em si mesma.
Mas voltemos às palavras de Eliú: "Os grandes não são os sábios, nem os velhos entendem o
que é reto. Pelo que digo: Dai-me ouvidos, e também eu declararei a minha opinião. Eis que aguardei as vossas
palavras, e dei ouvidos às vossas considerações, até que buscásseis razões. Atendendo, pois, para vós, eis que
nenhum de vós há que possa convencer a Jó, nem que responda às suas razões" (32:9-12). Notemos
particularmente isto: "nenhum de vós há que possa convencer a Jó". Isto claramente era suficiente. Jó,
no final da discussão, estava tão longe de ter sido convencido quanto o estava no começo da
mesma. E podemos dizer, em efeito, que cada novo argumento extraído do tesouro da
experiência, da tradição e da legalidade não serviram mais que para provocar novas e mais
profundas manifestações da natureza não julgada, não subjugada e não mortificada de Jó.
Mas, quão instrutiva é a razão de tudo isto!: "Para que não digais: Achamos a sabedoria,
Deus o derribou, e não homem algum" (32:13). Nenhuma carne se gloriará na presença de Deus. A
carne pode vangloriar-se e orgulhar-se das suas empresas, enquanto Deus não é levado em
consideração. Mas, leitor, ao introduzir Deus, toda soberba e vanglória, toda ilusão vaidosa,
toda jactância e arrogância se dissipam em um abrir e fechar de olhos. Lembremos isto. "A
jactância é excluída" (Romanos 3:27). Sim, toda jactância, a de Jó e a dos seus amigos. Se Jó
tivesse conseguido estabelecer suas pretensões, teria se vangloriado. Se, por outra parte, seus
amigos tivessem conseguido lhe tapar a boca, eles que teriam se jactado. Porém não, "o vence
Deus, não o homem".
Assim foi, assim é e assim vai ser sempre. Deus sabe como humilhar um coração
soberbo e avassalar uma vontade inflexível. De nada serve que um se enalteça a si mesmo,
pois podemos tirar o cavalinho da chuva que quem quer que se enalteça será, antes ou depois,
humilhado. O governo moral de Deus tem determinado que todo o que se eleve e enaltece
deve ser derrubado até o pó. Esta é uma verdade saudável para todos nós; mas especialmente
para os jovens entusiastas e para os ambiciosos. A senda humilde, recatada e oculta é,
inquestionavelmente, a melhor, a mais segura e ditosa. Que possamos segui-la sempre, até que
alcancemos essa cena brilhante e abençoada, onde o orgulho e a ambição são coisas
desconhecidas!
Porém, o princípio de Eliú tem vigor em todos os tempos. Todo aquele que deva falar
com força e eficácia, devera ser capaz de dizer, em alguma medida: "Porque estou cheio de
palavras; o meu espírito me constrange. Eis que o meu ventre é como o mosto sem respiradouro, e virá a
arrebentar, como odres novos. Falarei, e respirarei; abrirei os meus lábios, e responderei." (32:18-20). Assim
será sempre, quanto menos em alguma medida, entre aqueles que queiram falar com
verdadeira força e eficácia ao coração e à consciência dos seus semelhantes.
Nisto estriba o grande segredo da força e do êxito ministerial. "Se alguém falar, fale
segundo as palavras de Deus" (1 Pedro 4:11). Não se trata simplesmente —note-se com
cuidado— de falar conforme às Escrituras: algo, com certeza, sumamente importante e
essencial. Mas é mais do que isso. Um homem pode levantar-se e dirigir-se aos seus
Assim sendo, que todos nós aprendamos esta importante lição da atuação de Eliú;
uma lição, sem dúvida, muito necessária. Alguns podem se sentir dispostos a dizer que se trata
de uma lição muito dura e difícil. Mas não; se vivermos na presença do Senhor, no sentimento
de que não somos nada e de que Ele basta para tudo, aprenderemos a conhecer o precioso
segredo de um ministério eficaz. Saberemos apoiar-nos sempre e somente em Deus, para
sermos, no bom sentido, independentes dos homens; poderemos compreender o significado e
a força das seguintes palavras de Eliú: "Oxalá eu não faça aceitação de pessoas, nem use de lisonjas com
o homem! Porque não sei usar de lisonjas; em breve me levaria o meu Criador." (32:21-22).
Porém, Eliú não cometeu esse erro. Ele seguiu um critério totalmente diferente. Fez
com que a luz da "verdade" atuasse sobre a consciência de Jó e, ao mesmo tempo, derramou
o precioso bálsamo da "graça" em seu coração, quando disse: "1 Assim, na verdade, ó Jó, ouve as
minhas razões, e dá ouvidos a todas as minhas palavras. Eis que já abri a minha boca; já falou a minha
língua debaixo do meu paladar. As minhas razões sairão da sinceridade do meu coração, e a pura ciência dos
meus lábios. O Espírito de Deus me fez; e a inspiração do Todo-Poderoso me deu vida. Se podes, responde-me,
dispõe bem as tuas razões, e levanta-te. Eis que vim de Deus, como tu; do lodo, também, eu fui formado. Eis
que não te perturbará o meu terror, nem será pesada sobre ti a minha mão" (33:1-7). Com estes acentos,
o ministério da "graça" se revela de forma grata e poderosa ao coração de Jó. O ministério dos
três amigos carecia por completo deste excelentíssimo ingrediente. Eles não se mostraram
senão mas do que dispostos a "agravar sua mão" sobre o coitado do Jó. Eram juizes implacáveis,
drásticos censuradores e intérpretes falsos. Podiam ver com maus olhos e com frieza as feridas
sofridas pelo seu afligido amigo, e surpreender-se de como tinham chegado ali. Consideravam
as ruínas de sua casa, e chegavam à dura conclusão de que não só eram conseqüência de sua
má conduta. Contemplavam a sua desvanecida fortuna e, com inexorável severidade,
chegavam à conclusão de que a perda da fortuna era devida às suas faltas. Não demonstraram
ser juízes totalmente imparciais. Não compreenderam em absoluto os desígnios de Deus, nem
perceberam toda a força moral destas importantes palavras: "O Senhor prova o justo" (Salmo
11:5). Em uma palavra, se extraviaram totalmente. Seu ponto de vista era falso e,
conseqüentemente, todo o seu campo visual, defeituoso. Em seu ministério não havia nem
"graça" nem "verdade" e, por conseguinte, não puderam redargüir a Jó. O condenaram —isso
sim—, mas sem convencê-lo; quando o que deveriam ter feito era redargüi-lo a fim de que ele
condenasse a si mesmo.
O proceder de Eliú apresenta aqui um vívido contraste com o deles. Ele anuncia a Jó a
verdade; porém não "se agravou a mão" sobre ele. Eliú havia aprendido a conhecer o
misterioso poder da "voz mansa e delicada" (1 Reis 19:12); conhecia a virtude da graça que
subjuga a alma e derrete o coração. Jó tinha proferido um monte de falsas noções acerca de si
mesmo, e essas noções tinham brotado de uma raiz à qual era preciso aplicar o afiado
machado da "verdade". "Na verdade, tu falaste aos meus ouvidos; e eu ouvi a voz das tuas palavras;
dizias: Limpo estou, sem transgressão; puro sou; e não tenho culpa" (33:8-9). Que palavras temerárias
para um pobre mortal pecador! Com certeza, embora aquela "luz verdadeira" na qual andamos
Agora, quando o nosso coração se inclina ante o peso desta grande verdade moral, nos
achamos então na atitude adequada para discernir o objeto dos desígnios de Deus a respeito
de nós. Ele seguramente terá a primazia. "Por que razão contendes com ele? Porque ele não dá contas de
nenhum dos seus feitos. Antes Deus fala uma e duas vezes; porém ninguém atenta para isso. Em sonho ou em
visão de noite, quando cai sono profundo sobre os homens, e adormecem na cama, Então abre os ouvidos dos
homens, e lhes sela a sua instrução. Para apartar o homem do seu desígnio, e esconder do homem a soberba;
Para desviar a sua alma da cova, e a sua vida de passar pela espada." (33:13-18).
Isto é de imensa importância para todos nós. Somos muito propensos a esquecer o
proeminente fato de que "o Senhor prova o justo". "Do justo não tira os seus olhos" (36:7). Estamos
continuamente em Suas mãos e sob o Seu olhar. Somos os objetos do Seu amor profundo,
doce e invariável; mas também somos os objetos do Seu sábio governo moral. Seus desígnios
para conosco são diversos. Algumas vezes são preventivos; outras, corretivos; mas sempre são
Se o leitor confrontar por um momento Hebreus 12: 3:12 ("Considerai, pois, aquele que
suportou tais contradições dos pecadores contra si mesmo, para que não enfraqueçais, desfalecendo em vossos
ânimos. Ainda não resististes até ao sangue, combatendo contra o pecado, E já vos esquecestes da exortação
que argumenta convosco como filhos: Filho meu, não desprezes a correção do Senhor, e não desmaies quando,
por ele, fores repreendido; Porque o Senhor corrige o que ama, e açoita a qualquer que recebe por filho. Se
suportais a correção, Deus vos trata como filhos; porque, que filho há a quem o pai não corrija? Mas, se estais
sem disciplina, da qual todos são feitos participantes, sois então bastardos, e não filhos. Além do que tivemos os
nossos pais, segundo a carne, para nos corrigirem, e nós os reverenciamos; não nos sujeitaremos, muito mais, ao
Pai dos espíritos, para vivermos? Porque aqueles, na verdade, por um pouco de tempo, nos corrigiam, como bem
lhes parecia; mas este, para nosso proveito, para sermos participantes da sua santidade. E, na verdade, toda a
correção, ao presente, não parece ser de gozo, senão de tristeza, mas, depois, produz um fruto pacífico de justiça,
nos exercitados por ela. Portanto, tornai a levantar as mãos cansadas, e os joelhos desconjuntados."), achará
muitas instruções preciosas acerca do tema dos caminhos de Deus com Seu povo. Não é o
nosso propósito deter-nos nesta passagem, mas simplesmente fazer notar que a mesma
representa três maneiras diferentes em que podemos receber o castigo da mão do nosso Pai.
Em primeiro lugar, podemos "menosprezar" a disciplina, tomando-a como se a mão e a voz
do Pai não interviessem no assunto. Em segundo lugar, podemos "desmaiar" sob a disciplina,
como se fosse intolerável, e não o precioso fruto do seu amor. E por último, podemos ser
"exercitados" por meio dela, e assim recolher, ao seu tempo, os "pacíficos frutos de justiça".
Agora, se o nosso patriarca tivesse tão somente compreendido o brilhante fato de que
Deus estava concretizando os Seus desígnios para com ele; que o estava provando para seu
proveito ulterior; que empregava as circunstâncias, os homens, os sábios e mesmo Satanás
como instrumentos em Suas mãos; se tivesse compreendido que todas suas provas, a perda de
tudo quanto possuía, suas desgraças e seus padecimentos, não eram outra coisa senão as
operações maravilhosas de Deus para concretizar seus sábios e misericordiosos desígnios, e
que Ele queria seguramente aperfeiçoar coisas que considerava necessárias em seu querido e
muito amado servo —porque para sempre é a sua misericórdia—; numa palavra, se Jó tão
somente tivesse apartado do seu olhar todas as circunstâncias e causas secundárias, e tivesse
fixado seus pensamentos em nada mais que no Deus vivo, e aceito tudo como proveniente da
Sua benévola mão, teria certamente obtido mas rapidamente a divina solução de todas as suas
dificuldades.
Devemos concluir este artigo. Com muito prazer nos estenderíamos mais sobre o
bendito ministério de Eliú. Com prazer e proveito poderíamos citar as suas outras apelações
ao coração e à consciência de Jó, seus cortantes argumentos e as suas incisivas perguntas. Mas
devemos deixar que o leitor medite por si mesmo nos capítulos restantes. Quando o tivermos
feitos, veremos que tão logo Eliú termina o seu ministério, o próprio Deus começa a tratar
diretamente da alma do Seu servo (capítulos 38-41). Com o objetivo de fazer sentir Jó a sua
própria insignificância, Deus apela às obras da Criação que mostram Seu poder e sabedoria.
Não é a nossa intenção extrair fragmentos de uma das partes mais sublimes e magníficas do
inspirado cânon. Estas passagens devem ser lidas no seu conjunto. Não necessitam nenhuma
explicação. A única coisa que poderia fazer o dedo do homem é obscurecer seu brilho. A sua
claridade só pode ser igualada a sua grandeza moral. Tudo o que queremos fazer é
simplesmente chamar a atenção ao poderoso efeito produzido no coração de Jó através do
ministério mais maravilhoso que possa já ter ouvido um mortal, a saber, o ministério direto do
mesmo Deus vivente.
Este efeito foi triplo. Tocava a Deus, ao próprio Jó e a seus amigos; três pontos em
que precisamente estava tão completamente errado. No que se refere a Deus, Eliú havia
apontado o erro de Jó nestas palavras: "34 Jó falou sem ciência; e às suas palavras falta prudência. Pai
meu! provado seja Jó até ao fim, pelas suas respostas, próprias de homens malignos. Porque ao seu pecado
acrescenta a transgressão; entre nós bate as palmas, e multiplica contra Deus as suas razões. (...) 45 Bem sei
eu que tudo podes, e nenhum dos teus pensamentos pode ser impedido." (34:35-37; 45:2). Note-se a
mudança aqui. Dê ouvidos aos suspiros de um espírito verdadeiramente arrependido, às
breves expressões —embora completas— de um juízo retificado: "Então respondeu Jó ao Senhor,
e disse: Bem sei eu que tudo podes, e nenhum dos teus pensamentos pode ser impedido. Quem é aquele, dizes tu,
que, sem conhecimento, encobre o conselho? Por isso falei do que não entendia; coisas que para mim eram
maravilhosíssimas, e que eu não compreendia. Escuta-me, pois, e eu falarei; eu te perguntarei, e tu ensina-me.
Com o ouvir dos meus ouvidos ouvi, mas agora te vêem os meus olhos." (42:1-5).
Retratação de Jó
Aqui, então, começa a retratação de Jó. Todas suas anteriores declarações acerca de
Deus e dos Seus caminhos ele as assinala agora como "palavras sem entendimento". Que
confissão! Que momento na vida de um homem quando este descobre que tinha estado
Nisto residia o problema de Jó. Seus novos pensamentos acerca de Deus geraram nele
de imediato novos pensamentos acerca de si mesmo. Sua elaborada apologia da sua própria
justificação, seu apaixonado egotismo, a sua veemente satisfação e regozijo de si mesmo, os
espaçosos argumentos em favor de si mesmo, tudo foi posto de lado; tudo ficou eclipsado
pelo brilho destas quatro lacônicas palavras: "Eis que sou vil" (40:4). E o que devia ser feito com
este eu vil? Falar acerca dele? Elogiá-lo? Ocupar-nos dele? Deliberar sobre ele? Providenciar
os seus desejos? De maneira nenhuma: "Me abomino" (40:6).
Este é o verdadeiro terreno no qual todos nós devemos nos guardar. A Jó lhe custou
muitíssimo tempo alcançá-lo, e o mesmo pode custar a muitos de nós. Muitos dentre nós
acreditam ter conseguido acabar com o eu quando deram um assentimento nominal à
doutrina da corrupção humana ou julgaram algumas traças da mesma que se manifestavam na
conduta externa. Mas, ai!, é de se temer que pouquíssimos dentre nós conheçamos realmente a
plena verdade acerca de nós mesmos. Uma coisa é dizer: "Nós somos vis", e outra muito
diferente exclamar com humilhação, desde o profundo do coração: "Eu sou vil". Isto só pode
ser conhecido e experimentado na forma habitual na imediata presença de Deus. As palavras
"agora te vêem os meus olhos" e "por isso, me abomino", sempre vão juntas. Quando a luz do que é
Deus ilumina o meu entendimento acerca do que sou, abomino a mim mesmo; o
aborrecimento próprio é então uma coisa real. Não é de palavra nem de língua, mas de fato e
em verdade. Se manifestará em uma vida de renuncia própria, num espírito humilde, numa
mente submissa e num caminhar na graça através das situações pelas quais somos chamados a
transitar. De pouco vale professar pensamentos vis acerca do eu quando, ao mesmo tempo,
somos prontos a ressentir-nos de qualquer menosprezo que nos façam; a ofender-nos de
qualquer insulto imaginário, de qualquer menoscabo ou detração. O verdadeiro segredo para
ter um coração quebrantado e contrito consiste em permanecer na presença de Deus, e então
seremos capazes de conduzir-nos retamente para com todos aqueles com quem nos
relacionamos.
Assim, vemos que tão logo Jó endireitou seus pensamentos acerca de Deus e de si
mesmo, também fez o mesmo acerca dos seus amigos, pois aprendeu a orar por eles. Sim, ele
conseguiu orar pelos "consoladores molestos" e pelos "médicos nulos" (13:4); pelos mesmos
homens com quem havia mantido tão longas disputas com tanto inteireza e veemência. "E o
Senhor virou o cativeiro de Jó, quando orava pelos seus amigos" (42:10).
Que magnífica cena! Fruto precioso do ministério divino! Que falta? Que mais é
necessário? Que mais podemos agregar se Deus colocou a última pedra deste precioso
edifício? E vemos também que não há carências de natureza nenhuma, pois lemos: "e o Senhor
acrescentou a Jó outro tanto, em dobro, a tudo quanto dantes possuía." (42:10). Mas, como se logrou
isto? Com que recursos? Foi acaso pelo próprio esforço independente de Jó e pela sua
habilidosa administração? Não, tudo está mudado. Jó se encontra moralmente num novo
terreno. Ele tem novos pensamentos acerca de Deus, acerca de si mesmo, dos seus amigos e
de todas as suas circunstâncias; numa palavra, todas as coisas são feitas novas. "Então vieram a
ele todos os seus irmãos, e todas as suas irmãs, e todos quantos dantes o conheceram, e comeram com ele pão em
sua casa, e se condoeram dele, e o consolaram de todo o mal que o Senhor lhe havia enviado; e cada um deles
lhe deu uma peça de dinheiro, e cada um pendente de ouro. E assim abençoou o Senhor o último estado de Jó,
mais do que o primeiro; porque teve catorze mil ovelhas, e seis mil camelos, e mil juntas de bois, e mil jumentas.
Também teve sete filhos e três filhas. E chamou o nome da primeira Jemima, e o nome da outra Cássia, e o
nome da terceira Keren-hapuch. E em toda a terra não se acharam mulheres tão formosas como as filhas de Jó;
e seu pai lhes deu herança entre seus irmãos. E, depois disto, viveu Jó cento e quarenta anos; e viu a seus filhos,
e aos filhos dos seus filhos, até à quarta geração. Então morreu Jó, velho e farto de dias." (42:11-17).