Guata Porã - Belo Caminhar
Guata Porã - Belo Caminhar
Guata Porã - Belo Caminhar
Esses inventrios so produzidos pelo projeto Pesquisadores Guarani no Processo de Transmisso de Saberes e
Preservao do Patrimnio Cultural Guarani, no qual, jovens guarani, em parceria com os xerami (os mais velhos em
sua sabedoria) so os pesquisadores protagonistas do reconhecimento de suas prprias referncias culturais.
Nesse processo de construo coletiva com os Guarani, ressaltamos duas importantes conquistas em 2014: a
inscrio da Lngua Guarani Mbya no Inventrio Nacional da Diversidade lingustica/INDL, reconhecida como Referncia
Cultural do Brasil e o Registro da Tava: Lugar de Referncia do Povo Guarani, Patrimnio Cultural Imaterial do Brasil,
registrado no Livro dos Lugares.
Avanamos na inscrio de polticas participativas do projeto Salvaguarda dos Patrimnios Culturais Imateriais das
Comunidades da Nao Guarani no mbito do Centro Regional para a Salvaguarda do Patrimnio Cultural Imaterial para
Amrica Latina (Crespial/Unesco). A partir do compartilhamento de experincias de salvaguarda e metodologias de
identificao e reconhecimento do Patrimnio Cultural Guarani, desenvolvidas no Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai
e Bolvia, est em curso uma proposta do Iphan, tambm em parceria com o CTI, na qual ser criada a plataforma
Yvyrupa: Cartografia Cultural Guarani Mbya.
A plataforma pretende atender demanda de salvaguarda do modo de viver guarani, intimamente relacionado
ao territrio este, entendido, como territrio livre Yvyrupa. Ela permitir reunir informaes de diferentes fontes e
naturezas em um nico lugar e, assim, servir tanto para a autogesto do patrimnio cultural - pelos prprios Guarani quanto subsidiar aes educativas e de promoo e valorizao de sua cultura em todo o continente.
O Iphan reafirma seu compromisso de continuar essa aliana junto ao povo guarani Guarani no trabalho de
salvaguarda de um Patrimnio Cultural de enorme riqueza e significado, alm das divisas e fronteiras pelo esprito
fraterno da solidria convivncia entre naes e diferenas componentes da nossa extraordinria diversidade.
O Iphan, atravs do Departamento de Patrimnio Imaterial, iniciou a identificao do Patrimnio Cultural Guarani,
em 2004, com o Inventrio Nacional das Referncias Culturais (INRC) da Comunidade Mbya-Guarani no Rio Grande
do Sul. Entre os anos 2009 e 2011, em parceria com a Agncia Espanhola de Cooperao Internacional para o
Desenvolvimento (AECID), o CTI e a Comisso Guarani Yvyrupa (CGY), foi elaborado o INRC do povo Guarani Mbya nas
regies Sul e Sudeste, envolvendo aldeias situadas nos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paran, So Paulo,
Rio de Janeiro e Esprito Santo.
Entre os muitos aspectos que GUATA POR / Belo Caminhar suscita, cabe ressaltar aqueles relacionados sua
concepo: o registro de uma histria que vem sendo perenemente resguardada, vivida e anunciada, entre os Guarani,
com a fora da expresso verbal de seus prprios detentores e avaliadores, os xerami e xejary (ancies e ancis); e o
empenho dos pesquisadores guarani na transcrio e na traduo da riqussima variedade de expresses contidas nos
enunciados, de modo a incluir os jurua (no indgenas) entre os seus leitores.
A busca de palavras em portugus que dessem sentido a conceitos e expresses, muitas vezes intraduzveis, foi
parte relevante da pesquisa. Nos textos eleitos para compor o livro, com todas as ressignificaes possveis, foram
mantidas a cadncia e as maneiras de contar e aconselhar (nhemongueta) dos mestres guarani.
A escolha do Guata Por, como referncia cultural a ser pesquisada, revela a conscincia dos jovens guarani de
que as condies de vida, bem como os contextos atuais de insero dos Tekoa espao onde vivemos de acordo
com o nhandereko (nosso sistema) , esto intimamente vinculados aos acontecimentos relacionados s antigas
caminhadas, principalmente depois da chegada dos jurua.
Percebe-se que os pesquisadores no prescindiram do uso das prprias formas guarani de difuso de conhecimentos.
Ao entrevistar os xerami, as respostas s perguntas por que caminhavam os nossos avs antigos? Por que caminhamos?
Onde paramos? constituram aprendizados e motivaram a criao de caminhos de comunicao com a sociedade no
indgena, para que esta possa compreender e assimilar, nos termos do universo do pensamento e da cincia guarani,
como este povo construiu, passo a passo, sua territorialidade.
GUATA POR / Belo Caminhar se situa no mbito do Programa Nacional do Patrimnio Imaterial (PNPI), criado para
viabilizar aes de identificao, salvaguarda e promoo do Patrimnio Cultural Imaterial (PCI). Seguindo o mesmo
princpio, a Conveno para a salvaguarda do Patrimnio Cultural Imaterial, instituda em 2003 pela Organizao das
Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO), da qual o Brasil signatrio, define como medidas de
salvaguarda aquelas que assegurem a participao das comunidades nas pesquisas, nos processos de revitalizao, nas
formas de transmisso dos saberes, no acesso terra e s espcies naturais.
Nesse sentido, o Guata Por no qual os preceitos do modo de vida guarani e do uso do territrio (Yvyrupa), em
sentido amplo, so preconizados pelos xerami em seus relatos e vivncias fundamenta e constitui a territorialidade
guarani enquanto Patrimnio Cultural que deve ser reconhecido tanto no mbito das aes de salvaguarda, quanto na
esfera das polticas pblicas.
T.T. Catalo
Diretor do Departamento de Patrimnio Imaterial
Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN)
Ministrio da
Cultura
Diante de tantos escritos que foram produzidos sobre a histria da colonizao incidente no territrio guarani,
GUATA POR / Belo Caminhar surge como um contraponto s verses propagadas correntemente. Nas entrelinhas
deste livro, em que experincias e tempos se entrecruzam, ns, jurua, embora presentes, permanecemos calados. As
belas palavras, aqui reunidas, no so s para serem ouvidas, so para fazer pensar.
Em mais uma parceria com o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), temos a satisfao de apresentar esta nova
publicao do Programa de Valorizao do Universo Cultural Guarani.
Esses inventrios so produzidos pelo projeto Pesquisadores Guarani no Processo de Transmisso de Saberes e
Preservao do Patrimnio Cultural Guarani, no qual, jovens guarani, em parceria com os xerami (os mais velhos em
sua sabedoria) so os pesquisadores protagonistas do reconhecimento de suas prprias referncias culturais.
Nesse processo de construo coletiva com os Guarani, ressaltamos duas importantes conquistas em 2014: a
inscrio da Lngua Guarani Mbya no Inventrio Nacional da Diversidade lingustica/INDL, reconhecida como Referncia
Cultural do Brasil e o Registro da Tava: Lugar de Referncia do Povo Guarani, Patrimnio Cultural Imaterial do Brasil,
registrado no Livro dos Lugares.
Avanamos na inscrio de polticas participativas do projeto Salvaguarda dos Patrimnios Culturais Imateriais das
Comunidades da Nao Guarani no mbito do Centro Regional para a Salvaguarda do Patrimnio Cultural Imaterial para
Amrica Latina (Crespial/Unesco). A partir do compartilhamento de experincias de salvaguarda e metodologias de
identificao e reconhecimento do Patrimnio Cultural Guarani, desenvolvidas no Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai
e Bolvia, est em curso uma proposta do Iphan, tambm em parceria com o CTI, na qual ser criada a plataforma
Yvyrupa: Cartografia Cultural Guarani Mbya.
A plataforma pretende atender demanda de salvaguarda do modo de viver guarani, intimamente relacionado
ao territrio este, entendido, como territrio livre Yvyrupa. Ela permitir reunir informaes de diferentes fontes e
naturezas em um nico lugar e, assim, servir tanto para a autogesto do patrimnio cultural - pelos prprios Guarani quanto subsidiar aes educativas e de promoo e valorizao de sua cultura em todo o continente.
O Iphan reafirma seu compromisso de continuar essa aliana junto ao povo guarani Guarani no trabalho de
salvaguarda de um Patrimnio Cultural de enorme riqueza e significado, alm das divisas e fronteiras pelo esprito
fraterno da solidria convivncia entre naes e diferenas componentes da nossa extraordinria diversidade.
O Iphan, atravs do Departamento de Patrimnio Imaterial, iniciou a identificao do Patrimnio Cultural Guarani,
em 2004, com o Inventrio Nacional das Referncias Culturais (INRC) da Comunidade Mbya-Guarani no Rio Grande
do Sul. Entre os anos 2009 e 2011, em parceria com a Agncia Espanhola de Cooperao Internacional para o
Desenvolvimento (AECID), o CTI e a Comisso Guarani Yvyrupa (CGY), foi elaborado o INRC do povo Guarani Mbya nas
regies Sul e Sudeste, envolvendo aldeias situadas nos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paran, So Paulo,
Rio de Janeiro e Esprito Santo.
Entre os muitos aspectos que GUATA POR / Belo Caminhar suscita, cabe ressaltar aqueles relacionados sua
concepo: o registro de uma histria que vem sendo perenemente resguardada, vivida e anunciada, entre os Guarani,
com a fora da expresso verbal de seus prprios detentores e avaliadores, os xerami e xejary (ancies e ancis); e o
empenho dos pesquisadores guarani na transcrio e na traduo da riqussima variedade de expresses contidas nos
enunciados, de modo a incluir os jurua (no indgenas) entre os seus leitores.
A busca de palavras em portugus que dessem sentido a conceitos e expresses, muitas vezes intraduzveis, foi
parte relevante da pesquisa. Nos textos eleitos para compor o livro, com todas as ressignificaes possveis, foram
mantidas a cadncia e as maneiras de contar e aconselhar (nhemongueta) dos mestres guarani.
A escolha do Guata Por, como referncia cultural a ser pesquisada, revela a conscincia dos jovens guarani de
que as condies de vida, bem como os contextos atuais de insero dos Tekoa espao onde vivemos de acordo
com o nhandereko (nosso sistema) , esto intimamente vinculados aos acontecimentos relacionados s antigas
caminhadas, principalmente depois da chegada dos jurua.
Percebe-se que os pesquisadores no prescindiram do uso das prprias formas guarani de difuso de conhecimentos.
Ao entrevistar os xerami, as respostas s perguntas por que caminhavam os nossos avs antigos? Por que caminhamos?
Onde paramos? constituram aprendizados e motivaram a criao de caminhos de comunicao com a sociedade no
indgena, para que esta possa compreender e assimilar, nos termos do universo do pensamento e da cincia guarani,
como este povo construiu, passo a passo, sua territorialidade.
GUATA POR / Belo Caminhar se situa no mbito do Programa Nacional do Patrimnio Imaterial (PNPI), criado para
viabilizar aes de identificao, salvaguarda e promoo do Patrimnio Cultural Imaterial (PCI). Seguindo o mesmo
princpio, a Conveno para a salvaguarda do Patrimnio Cultural Imaterial, instituda em 2003 pela Organizao das
Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO), da qual o Brasil signatrio, define como medidas de
salvaguarda aquelas que assegurem a participao das comunidades nas pesquisas, nos processos de revitalizao, nas
formas de transmisso dos saberes, no acesso terra e s espcies naturais.
Nesse sentido, o Guata Por no qual os preceitos do modo de vida guarani e do uso do territrio (Yvyrupa), em
sentido amplo, so preconizados pelos xerami em seus relatos e vivncias fundamenta e constitui a territorialidade
guarani enquanto Patrimnio Cultural que deve ser reconhecido tanto no mbito das aes de salvaguarda, quanto na
esfera das polticas pblicas.
T.T. Catalo
Diretor do Departamento de Patrimnio Imaterial
Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN)
Ministrio da
Cultura
Diante de tantos escritos que foram produzidos sobre a histria da colonizao incidente no territrio guarani,
GUATA POR / Belo Caminhar surge como um contraponto s verses propagadas correntemente. Nas entrelinhas
deste livro, em que experincias e tempos se entrecruzam, ns, jurua, embora presentes, permanecemos calados. As
belas palavras, aqui reunidas, no so s para serem ouvidas, so para fazer pensar.
Coordenao editorial
Maria Ins Ladeira
Centro de Trabalho Indigenista (CTI)
Programa Guarani
Traduo
Ado Antunes Karai Tataendy
Augusto da Silva Karai Tataendy
Ronaldo Costa Karai Tukumbo
Timoteo Oliveira Karai Tataendy
e pesquisadores guarani
Edio de textos
Ana Maria Ramo y Affonso
Maria Ins Ladeira
Reviso
Jera Guarani (grafia guarani)
Tatiana Amaral
Imagens
Acervo CTI
Vincius Toro
Projeto grfico e capa
Renata Alves de Souza
Tipogrfico Comunicao
Apoio
Embaixada Noruega
MINC/IPHAN
Coordenao do Projeto
Daniel Calazans Pierri (CTI)
Coordenao Pedaggica
Ana Maria Ramo y Affonso
Jos Benites Karai Tataendy (Tekoa Mymba Roka, SC)
Vinicius Del Toro (audiovisual)
Coordenao Tcnica do Iphan
Juliano Martins Doberstein (Iphan-PR)
Pedro Gustavo Morgado Clerot (DPI/Iphan)
Regina Helena Meirelles Santiago (Iphan-SC)
Gesto
Ana Tomasuolo (CTI)
Eliza Bolsoni Castilla (CTI)
Realizao
AGUYJEVETE!
Reguatai ndaje rae, rireindaje reupityi
Presidente
Elisete da Silva Noleto
Coordenador Tenonde
Marcos Tup
Presidente da Repblica
Dilma Rousseff
Coordenao Geral
Gilberto Azanha
Maria Elisa Ladeira
Maria Ins Ladeira
Conrado Rodrigo Octavio
Daniel Calazans Pierri
Omar Silveira Junior
Pollyana Mendona
Coordenao Geral
Maurcio da Silva Gonalves, RS
Leonardo da Silva Gonalves, PR
Jos Benites, SC
Timoteo da Silva Vera Popygua, SP
Julio Garcia Xiju, RJ
Neudo Kuaray Mirim Poty Fernandes, ES
Ministro da Cultura
Juca Ferreira
Presidente do Iphan
Jurema de Sousa Machado
Secretrios
Marcelo Caio Nussenzweig Hotimsky
Neusa Poty Quadro, SP
verdadeiramente
Aguyjevete anhete
NHEMONGARAI
A revelao dos verdadeiros nomes 24
OPYI RE
Na Casa de Rezas 80
Esse o comeo de tudo, quando o deus Nhanderu Tenonde se gerou sozinho. Como? No comeo, esse planeta
era apenas formado pelo oceano, no tinha Sol, luz, nem nada que iluminasse o dia. Nhanderu Tenonde se gerou
como uma flor em meios s nvoas e em cima do mar. E, no momento em que isso aconteceu, ele, sendo Nhanderu,
j tinha pensado em tudo: como seria o que ele iria criar, como ia fazer, como ele queria ser lembrado e, assim, fez o
mundo. Criou vrias coisas e, com elas, as regras que cada criao iria seguir. [...] E, assim, quando ele fez a Terra, era
tudo mato, no tinha rio, nem cachoeiras, ou seja, no tinha gua potvel para o consumo. Ento, como ser que ele
sabia o que tinha que fazer? Ele fez seis nascentes no mundo inteiro para a gua escorrer entre os matos e, assim, se
criaram vrios rios, cachoeiras e a gua que podia ser consumida. [...] Quando Nhanderu se gerou, ele fez um tipo de
bengala (vara, cajado, popyguai) e, dessa bengala, ele fez a Terra; e nessa primeira Terra que ele criou o lago. Ali
o centro da terra, Yvy Mbyte, como se fosse o crebro da Terra, que, recentemente, os no indgenas descobriram
como Aqufero Guarani. Os xerami (avs, os mais velhos, lideranas espirituais) disseram a verdade sobre isso. [...]
A gua que est debaixo da Terra serve como se fosse um espelho, mas isso somente para aqueles que so os lderes
espirituais. Atravs disso, eles sabem onde podemos ir, onde existem outros parentes e assim por diante.
Timteo da Silva - Ver Popygua
(Tekoa Takuari, Eldorado/SP)
Nhanderu kuery
Pra contar tudo isso, precisaramos de muito tempo. Vou contar de forma resumida.
pra vocs gravarem e pra mostrarem nas suas aldeias. E eu falar sozinho, isso pode causar
confuso. Ento, pra vocs conhecerem essas histrias, bom que eu conte e vocs mostrem
pra todo mundo. Quando Nhanderu se gerou, ele estava sozinho, ele no tinha pai nem me.
Quando ele veio neste mundo, ele tinha um popygua e veio atravs dele, vagando pelo mar.
Mesmo sendo um deus, ele tambm passou dificuldade porque s vivia atravs do popygua
e do Kuaray jexaka, que o reflexo do Sol. Ele conseguia a fora s atravs desses dois.
Como ele vivia sozinho, pensou em fazer uma companheira pra ele. Foi assim que gerou a
companheira dele! Mas, mesmo sendo ele Nhanderu, ela no queria ser mulher, no queria
se levantar. Meus avs diziam que, quando ele fez a mulher, ela no tinha fora pra se levantar,
caa. Ento, ele tirou um osso da parte da costela, pra fazer a mulher ficar forte, pra levantar.
Tirou aquele pedacinho e colocou na mulher, na companheira dele, pra viverem juntos at
hoje. Nhanderu fez a companheira pra ele de seu osso. [...] Foi isso que eu ouvi. J aquela
histria do homem que veio do barro, no nossa; ela veio atravs do conhecimento dos no
indgenas, por meio do kuatia (livro). A histria do barro, eu escuto dos no ndios. A histria
que eu contei a nica que eu sei, a que os meus avs me contaram. Mas a nossa gnesis, o
nosso incio, ningum sabe certo, ningum vai saber certo como que aconteceu.
Xerami Joo Silva Vera Mirim
(Tekoa Xapukai/Brakui, Angra dos Reis/RJ)
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O primeiro mundo quem fez foi Nhamandu Ru Ete, o primeiro Nhanderu que existiu. Ele fez o mundo e quando
ficou pronto, ele pensou: poxa, eu estou muito sozinho. Ento, ele fez uma mulher para ser companheira dele. Como
ele Nhanderu, aquele que tem poder, que to poderoso, ele pensou: mas, s assim no d. Eu vou fazer outros.
E ele fez Tup. Tup dono da gua; quem manda a chuva Tup Ru Ete.
Nhamandu Ru Ete pensou: est faltando mais. Ento, ele fez de novo Karai Ru Ete. Ele Nhanderu tambm;
pra ns deus. Ento, Nhamandu pensou um pouquinho e disse: est faltando mais. Ento, ele fez Jakaira Ru Ete,
outro Nhanderu tambm. Mas todos eles so mais novos que Nhamandu Ru Ete, porque ele foi o primeiro que existiu.
Depois, ele mesmo destruiu essa terra, pra renovar de novo.
[...] Nhanderu Tenonde o primeiro de todos. A direo na qual ele mora o leste, como os jurua (brancos, no
indgenas) falam. Cada deus mora em certa direo. Existe Nhanderu Tup, que fica na direo oeste. H tambm
Nhanderu Jakaira, que fica na direo sul, depois h tambm Nhanderu Karai, que mora no norte, em direo ao norte.
Assim, nas quatro regies eles tm amba (lugar, morada) deles. Esses deuses todos se conhecem, todos so deuses e
todos so igualmente poderosos. Por isso, na nossa sabedoria realmente h quatro deuses, ns conhecemos quatro
deuses. Agora, no conhecimento do jurua existe apenas um. Eles conhecem apenas o deus que criou o mundo, s aquele,
mais ningum. Realmente, existem esses quatro deuses, mas, alm desses, h mais subdeuses que so seus auxiliares,
foram criados por eles. A sim, entra Karai Jekupe, que mora ao lado deles. A morada dele mais perto de ns.
Xerami Marcolino da Silva - Karai Tataendy Marangatu
(Tekoa Araai, Piraquara/PR)
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Quando Tup manda os xondaro dele so os xondaro que sempre vm, quando d aqueles ventos , ento,
eles esto voando baixinho, olhando o que que tem aqui na Terra, o que tem de ruim, essas coisas. Ento, nesse
momento, ns temos que ficar bem quietinhos e no podemos usar coisas que brilham, nada. E nem fumar no
pode fumar, porque Tup no quer ver. Na hora que os Tup vm com chuva, com vento forte, dando trovoada, no
se pode brigar, tem que ficar bem quieto. Ento, eles sabem que a gente est respeitando, e deixam mais sade pra
gente e nos fazem ficar mais fortes, nos fortalecem.
Aquele petgua (cachimbo) que a gente usa, quando precisamos de Karai kuery. Eles so outros Nhanderu.
Quando a gente v alguma coisa ruim que est acontecendo, ou que vai acontecer, pra se salvar tem que usar o
petgua. Karai kuery respeita e cuida. Eles no deixam acontecer.
[...] O primeiro Nhanderu que existiu foi Nhamandu Papa. O filho dele foi Papai. Esse filho que agora est nos
iluminando, ele j foi da Terra, porque ele veio e teve um filho aqui na Terra j. Tem Nhamandu Papa, e tem o Papai
e depois tem Pai. Pai aquele que est nos iluminando. Esse Sol que a gente est vendo um trem. Por que eles
vm? No s uma pessoa que vem. Ele vem cheio de passageiros. a luz do trem que a gente est vendo como
Sol. Eles vo de Karai ret (a cidade de Karai) at Tup ret (a cidade de Tup), e passa por l. Tem muitos que dizem
que passa por dentro da Terra; no, s aldeia por l, mas a gente no v. Porque a est passando pelo Japo. O
Japo fica bem na baixada, bem do outro lado da Terra. Agora no Japo j est escurecendo. Quando amanhece l
que o trem est voltando. Ento tem Nhamandu Papa, Nhamandu Papai e Nhamandu Pai. Se diz que ele nem
falou com o pai dele ainda, desde que ele foi embora daqui da Terra. Porque, se faltar o Sol, pra ns vai ser muito
ruim, muita gente vai morrer. [...] Por isso que dizem que o Sol no pode parar, tem que vir sempre. Chegou a hora,
tem que estar.
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Marangatu pra ns Kuaray. Ns chamamos de Nhamandu. Ele mora aqui no cu. A capital aqui no cu. No
do outro lado do mar, no do outro lado de Tup. do cu. L tem duas cidades. Nhamandu tem uma cidade,
que ele divide com Jakaira. Jakaira do outro lado da rua. O Sol, Kuaray, trabalha todo dia, no para, porque ele
tem Marangatu, ele tem amor pelas pessoas. Pode fazer qualquer coisa, mas ele vai esclarecer pra poder continuar
andando aquele que nada sabe. como Nhanderu, esclarece pra todo mundo. Porque ele tem Marangatu, ele que
tem Marangatu, tem amor pelas pessoas. Ele esclarece, com esse amor que tem, amor por todo mundo. No s
pelos seres humanos, todos os bichinhos, cada formiguinha, de dia esclarece e eles vo trabalhando. Os pssaros se
levantam. Ele ama a todos. Estando aqui no mundo, ele ama. Ento, ele tem Marangatu, e a que est. [...] Sempre
Marangatu jareko, ns temos corao marangatu.
[...] Isso a que estava contando. Esse que ns chamamos de Nhamandu pai. Esse , tipo, igual Jesus Cristo. Ele
que nos ensinava o que amos fazer, como o nome do passarinho, da rvore, todas as coisas. Por isso que at agora
ns chamamos de Nhanderekomboeare, Nhanderu Pai Kuaray. Esse que nasceu aqui neste mundo, n, igual que
Jesus Cristo. Para todas as rvores, todas as frutas, todos os passarinhos, todas as mariposas, todos os peixinhos, ele
que d o nome pra ns saber; todas as armaes, todas as flechas, balaios, tudo isso a ele que deixou pra ns. No
deixa na escrita, mas ns sabemos atravs dele.
Xerami Timoteo Oliveira Karai Tataendy
(Tekoa Itanhaen, Biguau/SC)
O segundo mundo
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Ento, primeiramente, essa terra ns sabemos que Nhanderu que fez pra ns, em primeiro lugar. Ele pensou o que
haveria de fazer. Primeiro fez os bichos, os peixes, fruta nativa, mel. Pensou de novo: o que que eu vou fazer?. Para
caar, para comer as frutas do mato, para pescar. Foi ento que pensou em nos fazer, e fez os homens e as mulheres, os
Guarani. Tudo aquilo, foi para ns que fizeram, no nome dos Guarani que ficou tudo aquilo. No que ns somos os
donos da Terra, ou desta terra, mas ela para ser ocupada por ns, para ser usada por ns; foi para ns que a fizeram.
Por isso ns sabemos que essa a nossa terra, que para ser usada por ns. O dono mesmo Nhanderu. Este mundo
no tem outros donos. Em qualquer pas, a populao est s usando a terra. A hora que ele quiser terminar, o dono
que vai resolver. Por isso que ns Guarani temos vergonha de dizer que ns somos os donos da terra. Essa terra, ns
s usamos.
Por que ns Guarani estamos por aqui? Como que ns viemos? Para que ns viemos? Quando Nhanderu estava
comeando a fazer o mundo, ele comeou bem no meio do mundo, onde hoje Paraguai. Yvy mbyte quer dizer o
meio do mundo (o centro do mundo). L tinha uma nascente muito grande; l bem o meio do mundo, bem o centro
mesmo. Como Nhanderu Nhanderu, diz que ns tnhamos uma avozinha, que Nhanderu mesmo fez. Ento, diz que
Nhanderu, de uma pessoa s, dessa avozinha, fez duas pessoas: uns somos ns e os outros so vocs, os jurua (no
indgenas ou brancos). L em Paraguai, em Yvy Mbyte, tambm: no era Paraguai, nem sabemos como era o nome.
S vivamos por a, mas naquele tempo no tinha pases e os outros brancos no tinham vindo ainda. Ento, diz que
Nhanderu deixou os Guarani no mato e aqueles que deviam ser jurua foram deixados no limpo, no campo. S que, na
verdade, diz que em um primeiro momento Nhanderu no deixou aos jurua comida. Eles tinham que procurar a sua
comida, que criar a sua comida. E, aos Guarani, que somos ns hoje, nos deixou pobres. Nhanderu no nos deu poder
para fazer de tudo: ferro, roupas, etc.; no nos ensinou. Ele ensinou os jurua a fazer algumas coisas e, assim, trabalham
at hoje, cada vez mais sabendo o que tm que fazer.
[...] Diz que quando o dono da Terra (Papa) veio neste mundo, fez o mundo, fez a terra, o mato, como continuao
de outra Terra, aquela que Nhanderu Tenonde fez. Quando fez a segunda Terra, foi o filho de Nhanderu Tenonde,
Nhanderu Papa, quem fez a mulher do ajaka (cesto). Nhanderekor oanga i rive, ele j marcou tudo. verdade que
a mulher foi feita do ajaka e o homem foi feito do arco. O arco foi feito para o filho de Nhanderu Papa. Ele deixou a
mulher grvida e, quando a deixou, ela foi atrs dele, com o filho na barriga. Ela chegou onde no devia chegar, na
casa de outros animais. Eles a devoraram e tiraram o filho dela de dentro da barriga. A av destes animais pediu pra
guardar o filho pra ela comer, pois a sua carne era mais macia. Foi assim que nasceu Kuaray. Quando ia comer ele, fez
de tudo para cozinh-lo. Botou pra assar no fogo, botou no pilo, mas no conseguiu. Colocou para secar ao Sol, e foi
assim que se levantou Kuaray. Quando ele se levantou, viu as larvas no sangue da me dele, que tinha sido devorada.
Tinha vrias espcies de moscas e larvas no sangue da me dele. Quando viu esses insetos, esses vrios bichinhos, ele
pediu pra fazer o arco para a av daqueles animais, pra poder matar e assustar os insetos, pra eles irem embora dali.
Ele ia matando os insetos e, enquanto os matava, ele ia dando os nomes para esses insetos e borboletas. verdade
mesmo, todos os bichos que a gente conhece foi Kuaray quem os nomeou. Foi essa a histria que eu ouvi desde
criana. Sempre chamaram a mulher ajaka retei, o corpo que foi feito do balaio, e o homem guyrapa retei, o corpo
que foi feito de arco. O ser do balaio e o ser do arco. [...] Esse conhecimento vem atravs de Nhanderu, que escolhe
pra quem contar; o que sabemos, sabemos por ele.
Nhanderu disse assim aos Guarani: agora, eu vou acabar este mundo, vou deixar tudo pronto e depois vou embora,
vou pro cu. Mas um dia vocs me seguem, para alcanar a minha terra. Por isso que nos deixou no mato, para ser
pobres; no precisamos ter nada, no precisamos aprender a fazer nada. O nico que nos deixou foi o algodo. Ento,
devagar os antigos foram aprendendo a fazer o tecido, grosso, pra fazer tanga. Faziam tambm uma esteira para botar
nas costas. Essa era a roupa inteirinha. At os meus sete anos, eu ainda via esse tipo de roupa.
Xerami Augusto da Silva Karai Tataendy
(Tekoa Marangatu, Imaru/SC)
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Quando Nhanderu fez a Terra, quando estava gerando os Guarani, tinha outro Nhanderu, chamado Xari. Xari
foi o criador dos no indgenas. Quando Nhanderu gerou os Guarani, Xari estava l querendo imitar o que Nhanderu
estava fazendo. Xari queria fazer o mesmo que Nhanderu, queria gerar as coisas que ele estava gerando. Como viu
Nhanderu trazendo a madeira para fazer o arco, do qual faria o homem, ele foi buscar tambm no mato, mas ele no
achou essa madeira, e trouxe outra madeira, comum. Como no achou, trouxe yvyrapaju, aquela madeira comum
que amarela por dentro. S trouxe aquela para fazer os homens. Ele no achou guembepy (cip) e tambm no
encontrou a semente para tingir o balaio. Ele fez tudo igual a Nhanderu, mas o material no era o mesmo. Apenas
balaio branquinho ele fez. Quando ele soprou o arco que fez com yvyrapaju, gerou um homem que no era ndio, que
era igual, mas meio branquinho. O balaio que ele fez, que no tinha misturado com outra cor, ele soprou e saiu outra
mulher, que no era ndia. Assim que os meus avs contaram pra mim. assim que eu sei, mas tem vrios outros Karai
(pessoas de conhecimento), que fumam petgua (cachimbo), que falam diferente. Algumas pessoas diziam que foram
feitos de barro, e que a mulher foi feita da costela do homem. Mas eu conto aos jovens do jeito que eu sei.
Xerami Timoteo Oliveira Karai Tataendy
(Tekoa Itanhaen, Biguau/SC)
Esse mundo, Nhanderu Tenonde fez pra ns, l em Yvy Mbyte, o centro do mundo. L que dividiu pra ns. S
campo deixou ao Paraguaio. Ento, a nao Paraguaia pegou s campo. E ns Guarani pegamos s mato. Deixou s
mato para ns. Mas desde o comeo fazamos plantaes. Os Guarani se entendiam com os Paraguaios. Levavam e
trocavam aipim, batata doce; trocavam por faco, por foice, machado, e a j Guarani usava essas coisas. Naquela
poca, esses Paraguaios j eram jurua. Os Nhanderu que deixaram. Por isso que eles so nativos daqui. O nico branco
que nativo o Paraguaio s. Igual que ns, tambm. Nesta terra, ns Guarani dividimos com os Paraguaios brancos,
que ficam com os campos e ns com o mato. assim que ns sabemos. Os brancos agora esto dizendo: ah, voc veio
do Paraguai. Mas, antigamente, chamavam Paraguai a ilha toda, porque uma terra nica que deixaram os Nhanderu.
Eles no vieram de outro lugar, no outro pas, nada. Eles so nativos daqui tambm. Os nicos brancos nativos: a
nao Paraguaia. E tambm ns Guarani.
O branco sabe onde a terra dele. L pra Alemanha, Portugal, Espanha. Onde ser que fizeram Roma? Foi nessas
terras que Ado e Eva existiram. Essa histria a pra ns j outra, do branco; para o branco mesmo que Nhanderu
fez assim. Aquela terra fez para eles mesmos. Os brancos no vo saber, porque aqui, nesta Terra, antigamente, antes
de chegar os brancos, neste mundo mesmo, Nhanderu fez essa separao. Assim que a nossa sabedoria. Mas certo
mesmo isso. Pedro lvares Cabral no vai conhecer mesmo, porque ele s chegou depois de muitos anos. Como que
ele vai saber? No vai saber mesmo. Sobre ns, sobre esta Terra, ningum vai saber, nunca. Sobre o Japo, Alemanha,
eles vo saber, porque a terra deles mesmo.
Xerami Timoteo Oliveira Karai Tataendy
(Tekoa Itanhaen, Biguau/SC)
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NHEE KUERY
Os Espritos Protetores
Nhanderu nos mandou aqui na Terra. L no cu eles tambm
tm os filhos, as filhas so os nossos nhee, somos ns. Depois que
fazemos 30 ou 40 anos l, que ele nos manda aqui na Terra. s
porque a pessoa nasce aqui na Terra que vira beb de novo. Quando
Nhanderu nos manda ele diz: agora, minha filha, voc vai descer l
na Terra. L na Terra, voc tem tambm o teu pai e a tua me. Ento,
agora, voc vai trabalhar bem com eles, de novo, que nem aqui.
Quando comea o vero, dizem que todos os nossos nhee vo
de novo pro cu. Eles fazem festa l: danam, cantam no Nhanderu
amba, no lugar de Nhanderu. [...] Quando comea o vero, eles todos
vo. S o nosso esqueleto [o nosso corpo] que fica por aqui. Agora,
durante o inverno, Nhanderu fecha a porta, pra ningum entrar, pra
ningum sair. Ento, os nossos nhee esto todos na gente de novo,
porque Nhanderu j no olha muito mais pra c. No inverno, no olha
muito aqui na Terra. Ento, o nosso nhee que cuida da gente. [...]
Xerami Augustinho da Silva Karai Tataendy Oka
(Tekoa Guyrai tapu, Parati/RJ)
Pra falar dos nhe muito difcil; no qualquer um que fala, e no qualquer
um que entende, que compreende. E at mesmo para os xerami difcil. Ns
os chamamos mombyry vae kuery, aqueles que vieram de longe.
Xerami Mario Guimares Kuaray Mirim
(Tekoa Marangatu, Imaru/SC)
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Nhanderu fala: filho, voc pode ir agora Terra. Ento, voc pode ter um filho. Nhanderu fala: voc pode ir, e
voc vem. Tem que ouvir a palavra de sua me. Antes de vir aqui na Terra, Nhanderu j falou isso. Nhanderu passa o
conselho ao onhemboery vae [aquele que descobre o nome], que fala depois com a me, com o pai da criana. Quando
a me est grvida, ela j senta para ouvir o conselho do onhemboery vae. E continua assim at a criana nascer. Se
voc onhemboery vae, voc pode dar conselho para todos. No precisa ser a sua filha para sentar e conversar. Se
os pais da criana quiserem saber e buscar a verdade, s precisa ter respeito. Antigamente, os pais sentavam com o
onhemboery vae desde o comeo da gravidez. O onhemboery ia sabendo se aquela criana veio para o pai ou para a
me, quem essa criana vai fortalecer, encorajar (mbaraete, pya guaxu). O onhemboery ia conversando com o nhee.
Nhanderu que, antes de vir Terra, j define o que cada nhee vai fazer aqui, e isso depende de qual regio
ele est vindo. Ento, o onhemboery vae [aquele que descobre o nome] faz o Nhemongarai e coloca os nomes nas
crianas. Ele faz isso porque Nhanderu mesmo definiu que esse seria o seu trabalho. Mas difcil, para ns, saber
o nome verdadeiro da criana, um trabalho bem pesado. Cada xerami tem o prprio trabalho. Nhanderu que
d. Se voc trabalha s para colocar o nome em guarani, ento voc onhemboery vae. Voc pode trabalhar com
as crianas, ou com os adultos. Se Nhanderu deixou voc sozinho pra colocar os nomes, voc tem que ter mbaraete
(fora). No s uma criana que est no meio de ns, so muitas aqui na Terra; por isso tem que ter fora. Tem que
perguntar ao pai dela [ao pai l no alto, nas moradas dos Nhanderu], de qual lugar est vindo. [...] Antigamente, o
onhemboery vae perguntava quele [nhee] que est em cima dele, ojapyxaka (aquele que sabe escutar), qual o
nome da criana, e esse vai falar com outro, at chegar em Nhanderu Ete que vai contar para que veio essa criana,
qual o nome e o trabalho dela aqui na Terra. Ento, aquele que fica em cima do onhemboery ilumina (omoexka),
conta para o onhemboery, e este fala aos pais da criana. Hoje, cada vez mais difcil saber de onde viemos, de qual
tet (cidade) dos Nhanderu veio o nosso nhee: se foi do norte, do sul, do leste ou do oeste de Karai, de Tup, de
Jakaira ou de Nhamandu. Se algum tiver uma filha ou um filho enviado de Karai ret, ento Karai Ete quem vai
enviar a criana. S que vai enviar ela sozinha. A, quando nasce, ela vai querer outra criana para acompanh-la,
para ser amigo, porque ela no est muito feliz sozinha (ndaipyaguaxu por). s vezes, tem o nome de Kerexu se for
menina e, quando for menino, Karai. Mesmo enviando de Karai ret, no s um Nhanderu que envia seus filhos, tm
vrios. Assim, cada nhee tem um sobrenome diferente. Se o seu nhee for de Nhamandu, o seu nome vai ser Kuaray
Papa, esse o nome verdadeiro. Se a criana for de Kuaray, ela mais sensvel (fraquinha).
S os mais antigos que sabiam mesmo falar sobre os nomes. Se voc tiver o nome, mas no falaram o sobrenome,
voc vai viver, mas no to bem. Vai ficar sempre doente, triste. Onhemboery vae pode dar o nome, mas se o seu
nhee no contou o sobrenome, ele no vai saber. Voc vai vivendo assim, triste. Ento, Nhanderu vai iluminar pra voc
o seu sobrenome, ou vai mandar um filho como uma forma de fortalecer voc. Mas s que voc tem que tentar se
consultar com onhemboery vae, perguntar a ele: o que posso fazer para ficar bem?. s vezes, voc pode no estar
bem, porque no lhe deram o seu nome verdadeiro. A, se ele souber, ele vai contar o seu nome verdadeiro. Ele vai
contar, e voc vai viver feliz, forte. Hoje ns, os mais vividos, no temos muito disso, de ficar triste, de sentir tristeza.
criana pode no ficar bem; para a menina e para o menino a mesma coisa. A gente tem muita coisa (boa, perfeita)
(mbae por) l no cu que a gente no tem aqui na Terra. Quando voc no est bem e senta com onhemboery vae,
ele vai contar para voc que voc no tem aquilo que era seu l (mbae por), e que voc precisa daquilo. Ento, voc
tem que pedir para Nhanderu as suas coisas, para voc se alegrar, para voc ficar bem. Tem que lembrar daquilo
que voc deixou l em cima: o seu relgio, a sua roupa... Porque temos vrias coisas que deixamos l em cima. Voc
procura na cidade coisas boas que voc quer, mas voc no acha. A, voc compra, mas voc fica com elas s algum
tempo, e a voc joga fora de novo, porque isso no seu. Ns vivemos assim, por isso as crianas no ficam felizes
aqui na Terra. Se voc quer que ela viva feliz com voc, se voc quer ver ela crescer, tem que perguntar pra Nhanderu
o que que ela no trouxe l de cima, se isso mesmo que falta pra ela, porque se ela no trouxe, ela chora.
Antes, o nhee andava com ns na Terra, ficava no meio de ns, mas agora ele j no est mais aqui, ele s fica
olhando, l de cima. Porque antes o nhee que mandava em ns. O nhee de cada um cuida do prprio corpo. O nhee
por nunca pisa na Terra. Ele no chega a se misturar com o nosso corpo, no encosta. Vocs sabem quantos nhee a
gente tem? Quantos nhee temos, ns Mbya ete (Mbya verdadeiro)? Eu no sei quantos nhee ns temos. Nem eu sei
certo. Nhanderu mandou o nhee puro (por), sem nem um pouquinho de sujeira. Mas quando a gente est na Terra,
o nosso corpo faz muita coisa errada, e o nosso nhee vai se afastando aos poucos.
isso que agora estamos vivendo aqui na Terra, porque, muitas vezes, o esprito mal (yvy rupi gua) que est
levantando o nosso corpo. A o Karai tem que achar o nome verdadeiro (ery ete) e, desse jeito, o esprito mal no
chega mais na pessoa. porque no tem nome verdadeiro que o esprito mal perturba a pessoa. Depois de ter o nome
verdadeiro, voc j vai ter vontade de ir passear, caar no mato, visitar os parentes. Mas, de tarde, voc pode voltar se
sentindo mal, o yvy rupi gua (outros espritos que caminham pela Terra) no querem te ver por ali (no gostam do seu
nome, do seu nhee). Ento, voc vai de novo com o Karai, e ele troca o seu nome. Desse jeito o yvy rupi gua fala: ah,
quem est vindo no a mesma pessoa. E voc vai vivendo bem, fica alegre!
s vezes, ao crescer, a pessoa no sabe se cuidar, no se lembra das coisas que o pai verdadeiro falou para ela, dos
conselhos que ouviu antes de vir Terra. Ento, Nhanderu viu que ela no agiu de acordo, e diz: agora basta!, e ela
falece. No soube ser obediente, cumprir a palavra de Nhanderu. Cada coisa de errado que a gente faz, tudo para
Nhanderu. Se a gente tiver um filho, tem que falar, tem que aconselhar do mesmo modo que Nhanderu nos aconselha
(nhanhemongueta) quando nos envia Terra: pra viver bem, no ser uma pessoa m, no fazer mal aos outros e,
assim, no trazer doenas pra ns. Os conselhos que a gente d como aprendemos. No s porque amamos
muito o nosso filho, porque Nhanderu nos ensinou a fazer do mesmo modo que eles falam ao nosso nhee. Quando
estamos na Terra, somos ns que temos que aconselhar. Sei que muitas vezes os filhos no levam a srio os conselhos,
a, quando eles desobedecem aos pais aqui na Terra, o pai verdadeiro [Nhanderu Ete] fica desanimado com os filhos,
fica triste. Assim, a gente acaba envergonhando ele com nossas desobedincias.
Xerami Aristides da Silva - Karai
(Tekoa Tarum Mirim, Araquari/SC)
s vezes, a criana no quer ouvir o nome (o nhee no conta). Por qu? Isso porque ele (nhee por) no quer
viver em Yvy Vai, nesta Terra m, porque l no cu (Yvate) ele no v nada de ruim, vive feliz. Ento, ele vive um pouco
aqui, e a ele volta. Todos ns no estamos aqui porque queremos, ningum quer vir l de cima. Estamos aqui porque
Nhanderu mandou. Se ele mandar, tem que vir, no h outra opo. Tem que vir para viver na Terra. Ento, sempre a
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NHEMONGARAI
A revelao dos verdadeiros nomes
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Uma vez, me contaram, estava chovendo. Caiu um raio que queimou o mato. No outro dia, foram olhar e estava
tudo queimadinho, bonito. Ento, o Karai falou: vamos deixar pra ver o que vai acontecer. Se no sair nada, ns
vamos plantar. Esperaram umas duas semanas, a foram ver e tinha nascido avaxi etei (milho verdadeiro). Aquele
foi Nhanderu que deixou para os Guarani. Por isso que ns temos hoje. Existem vrias espcies de milho, e cada um
tem um nome. Tem avaxi xi ete, avaxi para, avaxi vaka, avaxi takua, avaxi ponhi... s Tup mesmo que, at hoje,
d o avaxi. ele que sempre cuida. Nhanderu Tup rega, molha a terra pra no ficar muito seca. Mas ns tambm
temos que saber cuidar. Por isso, ns temos que batizar primeiro para poder plantar. Temos que fazer sempre o
Nhemongarai. Assim que o meu irmo faz l. Por isso, os milhos l so bonitos.
Tendo esse milho, antes de colher, ele refora a sade das crianas e tambm dos adultos. Os nossos nhee ficam
mais fortalecidos. Para isso, Tup mandou o avaxi (milho) pra ns. Quando colhemos esse milho (em dezembro), as
crianas que nasceram, mas ainda no tm nome na Terra, so batizadas atravs desse milho. Cada um pe um pouco
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de sementes, em um poronguinho, para cada criana; o Karai batiza isso e, depois, batiza todas as crianas. A gente j
vem com o nome de l dos amba dos Nhanderu, mas, aqui na Terra, ningum sabe ainda. Batiza o milho que est na
mo da criana e de todo mundo. Ento, eles mesmos, os nhee, se apresentam. Eles contam: eu vim de tal lugar, de
tal parte, e meu nome assim. E o Karai conta o nome no outro dia de manh.
Nhanderu diz: meu filho, voc vai Terra agora. O teu pai est l, a tua me est l. Ento, voc vai dar fora, nimo e
sade pra eles. voc que vai cuidar deles. Ento, ele nasceu pra cuidar do pai e da me. Mas se o casal comea a brigar
muito, a criana no gosta, e ela mesma pode tambm ir ficando brava, sempre brava. A, a gente no entende nada; mas
isso por causa da me ou do pai. Se a gente cuida bem dos nossos filhos desde pequenininhos, eles no vo ficar bravos,
vo estar sempre calmos, e eles tambm vo cuidar da gente, porque o nhee deles ajuda o pai e a me.
s vezes, tem criana que nasce e, dependendo da me e do pai aqui da Terra, de sua atitude, ela quer voltar logo,
no quer ficar mais na Terra, e pede pra Nhanderu levar ela de volta. Mas tem o Karai que pode falar com o pai dela l
de cima, pra poder deixar ela de novo aqui. O Nhemongarai tambm faz isso. Tem algumas pessoas que casam e logo a
mulher fica grvida. Mas ento um dos dois, o pai ou a me, acha outra pessoa de quem gosta mais. Mas a criana no
quer mais ficar na Terra, porque no acha bom. A gravidez um momento complicado e, por isso, s vezes a criana
no quer ficar, e ela morre. Mas em ocasies, possvel pedir pra outro Nhanderu trocar o nome. Ento, troca o nome.
Xerami Augusto da Silva Karai Tataendy
(Tekoa Marangatu, Imaru/SC)
Eu fazia o Nhemongarai da semente do avaxi (milho). O Nhemongarai do kaa (erva-mate) se fazia quando chegavam
as visitas. assim que eu sabia: esse Nhemongarai se fazia como agradecimento pela visita que estvamos recebendo.
Quando chegavam as visitas, omotxi (espalhava a fumaa) do tabaco por cima do kaa para saber se aquelas pessoas
estavam bem ou no. Sabamos atravs de tataxina (fumaa) do Nhemongarai. Eu queria fazer assim tambm, mas j
no fazemos. O outro Nhemongarai que fazamos era para saber os nomes; fazamos com o kaa e com a semente do
milho. Eu nunca fiz o Nhemongarai da gua, mas sei que tem uma rvore que se chama yyari. As pessoas se molhavam
com essa casca, antes de sentar no banco para serem curados, ou antes de se levantar pra danar, dentro da Opy. Eles
faziam isso, mas no era como Nhemongarai. Era s uma preparao para o benzimento (motxi).
As pessoas chamam o amba (lugar, morada) que fica dentro da Opy de maneiras diferentes: ns o chamamos
tataxina amba, mas tem outros que o chamam nhee amba, s que pra ns o nhee amba o nosso corpo. Pra mim, o
nhee amba o meu corpo (a morada do meu nhe).
Xerami Joo Silva Vera Mirim
(Tekoa Xapukai/Brakui, Angra dos Reis/RJ)
Tery gui gua ma, o nome, s vem no Ara Pyau (tempo novo), no final de janeiro. em Ara Pyau que se d o nome.
As plantas comeam a brotar. Hoje em dia, para plantar alguma coisa j mais difcil. Antes, sabiam quando tinham
que plantar e quando tinham que colher. Mas, como a gente est quase no fim, os dias so mais curtos, passam mais
rpido, e fica difcil saber quando mesmo o dia de cada coisa, de plantar, de colher. Os dias esto se fechando. O
mundo est perto de acabar, est quase chegando no final.
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A gente vai seguir o mesmo caminho de antigamente pra dar o nome pra criana? Qual caminho temos que pegar?
Tem que ser do mesmo jeito que antigamente? O que precisamos, o que o pai e a me tm que levar? Se houver
algum que pode mostrar o nome em uma aldeia, ento, temos que levar todas as crianas que no tm nome,
sentarmos na Opy, para ouvirmos o nome de nosso filho, e cham-lo pelo seu nome verdadeiro. Quando assim, se
abre o caminho e se v quanto tempo vai levar para receber o nome. A, o Karai (lder espiritual) vai falar: agora est
quase chegando o dia para fazer o Nhemongarai. Para dar o nome precisa ter mbojapei (po de milho). Quando o
avaxi (milho guarani) comea a florescer, ento, j para dar o nome. A, as mes tm que preparar mbytai (bolo de
milho), mbojapei, para as filhas delas, em nome de cada pessoa. Tem que fazer para colocar na Opy, tem que colocar
na mo da criana para ela mesma colocar no nhimbei (suporte para colocar os mbojape). No caso dos meninos, tem
que pegar o kaa (erva-mate) e amarrar as folhas. Depois, o Karai vai omotxi (fumar, espalhar a fumaa) sobre as
folhas para saber o nome da criana. O prprio menino que tem que amarrar o kaa (erva-mate). Mas se o menino no
souber, pode ser o prprio pai. No pode s amarrar, tem que falar que para saber o nome do filho. A, o onhemboery
vae (aquele que descobre o nome) vai ouvir o nome e vai contar.
Antigamente, antes das crianas nascerem, eles j olhavam, plantavam com o propsito de dar o nome para a
criana. Hoje, os mais velhos esto falecendo e, agora, quem vai continuar levando pra frente so os jovens, as crianas,
para ter conhecimento. Nhanderu sabe como tem que andar certo, mas s que ele no est falando como temos que
levar nosso caminho pra frente. Ele sabe como o conhecimento do xerami, ele sabe que a gente tem que guardar.
Xerami Aristides da Silva Karai
(Tekoa Tarum Mirim, Araquari/SC)
Poty (flor) nome mesmo, isso j sempre existiu. H Karai Poty... Eu vou tentar explicar, mesmo que vocs no
compreendam, porque vocs so jovens ainda. Por que exatamente h pessoas que tm o nome Poty, no caso homens
e mulheres? Normalmente, para as mulheres Para Mirim Poty, Jera Poty. Dos homens, o que existe mais Karai
Poty. pelo simples fato de que, quando estvamos no nosso cl mesmo, l na casa do nosso pai, na nossa morada
eterna, cuidvamos do jardim ou vivamos num local onde havia bastante flor. Ento, s por isso que quando ele
[o nhee] vem aqui, ele tem nome de Poty. Essa pessoa provavelmente cuidava e regava uma flor quando estava
vivendo na casa do pai dela. Ento, so essas pessoas que tm Potyi em seu nome. Karai Poty nome de homem;
Jera Poty, nome feminino. Com certeza, quando veio para c, antes ele estava no meio de jardins de flores. Jera Endy,
esse tambm um nome interessante que eu vou explicar agora. Ela vivia no amba de onde ela vem, que o dos
deuses troves. Quando se abre a porta do fogo nesse lugar, ns ouvimos troves. Tem pessoas que cuidavam desse
fogo, e so essas pessoas que, quando vm aqui, tm nome de Endy. H tambm as que tm nome de Jaxuka Endy.
Agora, Mirim aquela pessoa que, quando estava na casa do seu pai verdadeiro, era mais sensvel, mais calmo, mais
tranquilo. Provavelmente, aquela pessoa, que quando estava na casa de seu pai, era mais sensvel com seu pai, mais
respeitoso. Essas pessoas que tm nome de Mirim. Acredito tambm que sejam menos corajosas, arriscam menos.
Xerami Marcolino da Silva Karai Tataendy Marangatu
(Tekoa Araai, Piraquara/PR)
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H muitos anos atrs, existiu um Guarani, a quem hoje conhecemos como Xapa. Ele era tekoaxy como ns, um
mero ser humano. Ele se casou e teve dois filhinhos, que eram dois meninos. Um dia, os dois faleceram. Ele chorou
muito, tanto que at ia morrer tambm, mas, ento, ele se lembrou de Nhanderu e pediu a fora, o nimo, a sade.
Pediu pra levar ele pro cu, porque morreram os dois filhos dele. Nhanderu ficou sentindo por ele e, ento, falou:
tudo bem, mas voc tem que fazer aquilo que eu pedir. A eu vou te ajudar. De l onde estava, ele s escutou; ele
no viu, no enxergou. Foi ento que Nhanderu falou para ele que, se ele quisesse mesmo ter fora para continuar,
ele tinha que se separar da mulher. Ele era casado, mas comearam a dormir separados, no namoraram mais. Nunca
mais mexeu com a mulher e nem a mulher mexeu com ele.
Quem estava determinando isso era Nhanderu, porque ele j estava prestes a atravessar o mar. Nhanderu falou
pra ele: voc j pode se preparar, a sua hora chegou. Os tembiguai (os auxiliares de Nhanderu) j vo chegar pra te
levar. Ele foi e deixou os dois filhos na Terra; no levou nenhum. Quando eles morreram, Nhanderu falou pra ele no
ficar triste, pra deixar um pouco tekoaxy (a condio de ser humano, de viver na Terra). Ento, ele foi e chegou beira
do mar. Comeou a cantar e vieram os tembiguai (ajudantes de Nhanderu), em um barco, para atravessar o mar. Ns,
tekoaxy, no sabemos por onde ele atravessou, em qual praia exatamente eles vieram busc-lo. No sabemos o local
exato onde ele se encontrou com os tembiguai, os nhee xondaro (espritos guardies) de Nhanderu kuery. Eles se
aproximaram e disseram: voc pediu, e agora ns estamos aqui. Pode pr o p neste barco. Xapa falou assim: eu
no posso, porque eu sou tekoaxy. Podem abrir um caminho pra mim, no meio do mar, para eu passar? Assim ser
melhor pra mim. Assim que aconteceu.
Ele estava passando o mar e, quando chegou do outro lado, algum trouxe para ele um pedao de cip imb.
Nhanderu ia testar aquele que seria o primeiro Nhanderu Mirim nesta Terra, Xapa, pra ver se ele estava sabendo mesmo;
fez mais um teste. Xapa entendeu e pegou o cip imb sabendo que no foi entregue toa pra ele; ele teria que us-lo
para algo. Sabia que devia se preparar para o que vinha pela frente. Ento, quando ia botar o p em Yvy Mar ey (Terra
que nunca vai terminar), vieram em sua direo dois lees marinhos gigantes. Vinha cada um de um lado, querendo
atacar ele. Ento, ele falou pra Nhanderu: eh xerui, meu pai, eu sei que isto uma prova, uma teko a. Eu no tenho
medo. Ele disse que acreditava mesmo em Nhanderu, por isso, no tinha medo. Como ele j sabia, ele pegou aquele
cip imb e laou os dois lees marinhos pelo pescoo e foi levando. Ele terminou de fazer a travessia, depois soltou os
dois lees marinhos e mandou eles voltarem ao mar, que a casa deles. Nhanderu Xapa foi o primeiro Nhanderu Mirim.
, meu irmo, minha irm! Ns temos que lembrar deles. As futuras geraes,
as mulheres, as crianas, os homens, tinham que lembrar deles.
Ns sabemos disso, mas no fazemos sempre o que ele falou!
Xejaryi Maria Guimares Para Rete
(Tekoa Marangatu, Imaru/SC)
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Depois de um ano, ele voltou de novo nesta Terra, pessoalmente. Ele foi ao cemitrio, onde tinha enterrado os dois
filhos dele. Fez eles se levantarem de novo e os levou; foi embora e, at agora, no veio mais. Quando os outros viram,
ele j estava l em cima. Ento, eles disseram que tambm queriam ir para o cu. Fizeram uma Opy bem grande para
todo mundo se unir. Um dia, Nhanderu disse ao chefe deles: agora que vocs so bastantes, agora vocs seguem
beira do mar. E mostrou a estrada para eles. Eles viram e se encaminharam at l, at aquele lugar que se chama hoje
Porto Seguro. Nhanderu os ajudou a fazer uma passarela e, por isso, eles no tiveram tanta dificuldade pra chegar.
Alguns passaram, mas outros ficaram e morreram, porque no obedeciam realmente o Karai (aquele que tinha o
conhecimento), ento, Nhanderu no perdoou. Aqueles que chegaram foi porque eram protegidos por Nhanderu, e
nenhum bicho incomodava eles.
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Nhanderu Xapai, Nhanderu Mirim Tenonde. Xapa foi o primeiro que foi com Nhanderu, o
primeiro Nhanderu Mirim. Os que vieram depois, buscando, eles iam pelo mesmo caminho que
Xapa, e foram construindo as Tava (casas de pedra, tambm conhecidas como Misses Jesuticas).
Aqueles que vinham atrs iam fazendo o mesmo que Nhanderu Xapa. Bastante gente veio depois
pelo mesmo caminho que Xapa, e eles iam fazendo as Tava, de acordo com o que o prprio
Nhanderu dizia. Eles as fizeram com os jurua (no indgenas, brancos).
Por causa disso que ns estamos por aqui at hoje. Cada vez mais. Porque ns seguimos
aqueles que alcanaram a terra de Nhanderu. Os nossos antepassados queriam ir tambm, por
isso que eles vieram. Mas no deu. Alguns passaram, mas s um ou outro consegue. A maioria
dos que vieram no alcanaram porque no obedeciam o Karai. Alguns acreditavam e outros no
acreditavam muito. E, assim, foram indo. Por isso que houve muitos que ficaram, se criaram por
aqui, por onde hoje o Brasil, e na Argentina tambm. Porque, pra ficar como Argentina, dizem
que quem descobriu foram os espanhis. E este pedao aqui, foram os Portugueses. Quando um
descobria, o outro tambm queria. Depois de muitos anos, dividiram esta terra. Por isso que tem
Brasil, Bolvia, Argentina. Agora, Yvy Mbyte est no lugar, at hoje, onde Nhanderu deixou.
[...] Quando a pessoa no falece na Terra e vai para a morada de Nhanderu, ns o chamamos
Nhanderu Mirim. Eles so os segundos donos da Terra. Nhanderu Tenonde o primeiro dono da Terra.
O segundo so aqueles que, h muito tempo atrs, caminharam e passaram para Yvy Mar ey
O primeiro Nhanderu Mirim era tambm uma pessoa, que era tekoaxy, um mero ser humano,
que erra. Nhanderu mesmo que nos fez assim, para sermos tekoaxy. Mas, como que os
Nhanderu Mirim, sendo tekoaxy, conseguiam passar? Eles se concentravam na Opy. Eles rezavam
e pediam pra Nhanderu, e Nhanderu mostrava o caminho. Ele dizia: agora vocs podem ir. O
Nhanderu Mirim r (aquele que ser Nhanderu Mirim), ele inicia a caminhada. Ele no vai ficar
em um s lugar, vai mudando, vai mudando. Durante todo esse tempo, ele fica na Opy, cantando,
perguntando pra Nhanderu como que tem que ser. Ento, Nhanderu vai mostrar outro lugar, pra
onde ele tem que ir. E vai mudar de novo, at atravessar o mar. isso que aconteceu.
Eles sabiam viver da forma certa pra seguir o caminho. Eles no falavam besteira, no brigavam,
faziam as suas plantaes e no comiam o alimento dos jurua. Sempre seguiam em frente,
fazendo aquilo que Nhanderu falava. Era assim que eles, os Nhanderu, os deuses, conseguiam
conhecer todo mundo, se poderiam ser ou no Nhanderu Mirim. Plantavam abbora, milho, jety
(batata doce), faziam kaguyjy (bebida de milho), plantavam mandui (amendoim). Nhanderu dizia
quais eram os alimentos que eles podiam comer. No podiam comer qualquer alimento, porque
estavam prestes a fazer a caminhada. J estavam se preparando. Quanto mais eles se aproximavam
do local sagrado, tinha mais coisas que no podiam fazer. Eles comeavam a obedecer a palavra
de Nhanderu, sobre aquilo que pode comer e aquilo que no pode comer. Ento, eles aprendiam
como fazer para atravessar o mar. So os Nhanderu Mirim, que aparecem como um raio (overa)
no cu. s vezes, de noite, a gente v um raio sem chover. Esse o Nhanderu Mirim, aquele que
viveu na Terra. Ele que faz esse raio com o banco de Tup, Kuapy Tukumbo.
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Eles vieram de Paranagu; passaram por Paran. Oguata por! Eles caminharam belamente,
fizeram uma boa caminhada. Os jurua no tinham chegado ainda. Antes deles chegarem, ns j
estvamos aqui, neste lugar. Eles, aqueles que seriam Nhanderu Mirim, tinham o pensamento
dentro do corao, no peito, e s por isso que eles vieram. Nhanderu que falou aos xerami para
fazerem essa caminhada, e as outras pessoas seguiam esses xerami. Nhanderu que d esse
conhecimento pra fazer a caminhada. No caminhavam somente porque eles queriam. Nhanderu
que mandava fazer essa caminhada. Foram os xerami e as xejaryi daquela poca que abriram o
caminho. Naquela poca, era tudo mato fechado. Nem o branco existia naquela poca. Mesmo
assim, eles vinham caminhando. Nhanderu guiava, mostrava o caminho. Eles perguntavam para
Nhanderu: podemos ir?. J est aberto o caminho. Vai mesmo, diziam os Nhanderu kuery.
A, eles andaram. Os mais velhos sempre andavam com Nhanderu, em esprito, sempre rezando.
Eles caminhavam no s por caminhar, mas seguindo o propsito, o objetivo que eles tinham.
Guata por, o belo caminhar, isso. Eles fizeram a travessia; atravessaram o mar seguindo as
orientaes de Nhanderu. Eles atravessaram o mar; este mesmo mar que ns vemos hoje.
Estou contando, mas no vou contar tudo. No vou me prolongar muito, porque pra eu contar
a histria desde o incio, difcil pra vocs compreenderem. Os xerami e as xejaryi fizeram
toda essa caminhada e atravessaram o mar junto com os nhe (espritos). A caminhada que
eles faziam era muito difcil. Eles andavam pela floresta, por lugares onde nunca ningum tinha
pisado antes e, mesmo assim, no acontecia nada. Eles vinham, e paravam em alguns lugares, s
vezes ficavam anos, s vezes paravam uma ou duas noites s. Mesmo assim, no acontecia nada
com eles. No caminho, sempre encontravam algo pra se alimentar; nunca passaram fome, nunca
faltou nada pra eles. E, assim, eles atravessaram. Aqueles que caminhavam, chegavam at o lugar
que Nhanderu tinha mostrado. L eles encontravam os tembiguai kuery (ajudantes de Nhanderu)
e de l eles partiam para a morada de Nhanderu. Quando chegavam perto do mar, os xerami
ficavam esperando os nhee kuery, os tembiguai kuery. Nhanderu mesmo que escolhia aquelas
pessoas que obedeceram regra. E ele levava essas pessoas. Aqueles que fizeram algum mal pra
algum ficavam. O prprio Nhanderu mandou os xondaro para atravessar aqueles que seguiram
a regra, a lei. Quem segue certo, chegava beira do mar. A, Nhanderu mandava os xondaro pra
atravessar eles no barco.
Isso que foi lembrado desde o comeo. Aconteceu isso, eles atravessaram. Fizeram o que
tinha que ser feito; por isso que atravessaram. Por isso que os xerami falam at hoje, porque
real o que aconteceu tempos atrs. Por isso que eles dizem Guata Por, belo caminhar, porque
eles acreditaram.
Xerami Mario Guimares Kuaray Mirim
(Tekoa Marangatu, Imaru/SC)
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Aqueles que seriam Nhanderu Mirim caminhavam l de Yvy Mbyte (o centro do mundo), onde tinha uma Opy. Eles no
caminhavam sozinhos. Eles caminhavam atravs da palavra de Nhanderu, que ilumina onde tem que ir. No era a pessoa
sozinha que queria caminhar e ia. Eles conseguiam atravs da casa de reza, atravs da reza eles conseguiam realizar a
caminhada. Aquele que ia na frente, o Karai (liderana espiritual), tinha amor, por isso eles conseguiam. Todos os parentes,
os filhos e os netos, ele queria que vivessem em tranquilidade, que todos tivessem mbaraete (fora). Eles conseguiam
atravs da reza, contando, passando informao para Nhanderu sobre a comunidade, pedindo para Nhanderu fortalecer a
todos. Eles tinham amor pela vida das pessoas. Por isso que eles conseguiam que Nhanderu iluminasse o caminho para eles.
Nhanderu tenonde, yvyraija tenonde, aquele que ficava na frente da comunidade, tinha amor por todos, e ele mostrou isso
a Nhanderu. Nhanderu estava vendo o que eles estavam fazendo, o trabalho que fizeram. Eles tinham amor, igual ao amor
de Nhanderu. Atravs disso, eles conseguiram que Nhanderu iluminasse aquele caminho para eles.
Os nossos parentes que vieram pela primeira vez, esto todos do outro lado do mar, todos; no ficaram por aqui.
Atravessaram muitas pessoas que esto hoje l em Yvy Mar ey. Nhanderu Xapa o primeiro Nhanderu Mirim. Ele veio
sozinho, de Yvy Mbyte. Ele no pegou nem canoa, nem nada, atravessou por cima do mar, passou. Nhanderu colocou s
uma fumaa, por cima do mar; ns chamamos essa fumaa de tataxina. Ele caminhou e atravessou. Antes de chegarem
os brancos ele j havia atravessado.
Agora, ns estamos na beira de Nhanderu ret (a cidade de Nhanderu), pertinho da capital de nosso deus. Mas
ns, pessoas, no vemos, pensamos que longe. No . Ns j estamos pertinho. Me pediram para lembrar de
Nhanderu reko, do sistema de Nhanderu, e isso muito doloroso.
Eu ouvi tambm que, antigamente, quando aqueles que seriam Nhanderu Mirim chegavam ao mar, vinha uma
espcie de cobra muito grande, com a boca enorme. Aquele que quer atravessar, no deve ter medo. Ele entra,
tranquilamente. Porque ns vemos como cobra, mas tipo um navio; a gente entra como em um navio. Quem tem
coragem, j vai l para o outro lado, para Yvy Mar ey. Mas aquele que no tem coragem fica, no vai mais.
Xerami Joo Silva Vera Mirim
(Tekoa Xapukai/Brakui, Angra dos Reis/RJ)
Os nossos Nhanerami kuery que viveram h muito tempo atrs j se foram e no temos mais aqueles que poderiam
contar todas as suas histrias. Mesmo assim, tem alguns que ainda sabem. Tento lembrar como e onde comeou, mas
muito difcil a gente passar o nosso conhecimento aos outros. tudo verdade, h muito tempo atrs os Nhanerami
kuery vieram. Eles vieram do centro da Terra. Caminhavam sem parar, parando s para comer e dormir. Sempre vinham
seguindo ao lado da beira do mar. Nessas caminhadas, eles passavam dificuldades. Sempre que chegavam em algum
lugar onde tinha terra boa, eles faziam plantao. Eles ficavam mais ou menos um ano nesse lugar. por isso que estas
aldeias de hoje j existiam h muito tempo atrs. Quando faziam a caminhada e faziam paradas, eles aprendiam como
a sabedoria dos bichos, das plantas e de todas as coisas. Eles eram Karai kuery, por isso que eles tinham a sabedoria.
Pra mim, na minha sabedoria, a estrada dos Nhanderu Mirim vem l de So Miguel e de Yvy Mbyte. Essa estrada
tem vrios quilmetros. uma estrada subterrnea que vai sair l em Paranagu, em Monte Cristo. De Paranagu vai
pra Itanham, em So Paulo. E de l de Itanham, tem outra que vai para o Esprito Santo, Vitria, onde tem runa
tambm. Em Anchieta, ali tambm tem estrada. Dali tem outra estrada que vai l pra Porto Seguro, na Bahia. E tem
tambm outra estrada debaixo da terra l no Peru. Assim que ns sabemos.
Antigamente, o que fizeram primeiramente por baixo da terra? Quais foram os bichos que fizeram a estrada?
Que tipo de bichos fizeram essas estradas para os Nhanderu Mirim? No foram pessoas que as fizeram. Mas quem
trabalhava pra eles, para os Nhanderu Mirim? Na entrada da estrada subterrnea, as pessoas fizeram uma escada,
pra ver, pra entrar. De onde vieram pra fazer a estrada? Com quem que Nhanderu Mirim falou pra vir fazer a estrada
por baixo da terra? Por meio da pedra, dentro da pedra fazer quilmetros e quilmetros, quantos mil quilmetros
fizeram? Disseram que foram os escravos que fizeram. Nada. Eu estou sabendo, mas nem Guarani est sabendo.
Vrios so caciques, vrios so pajs, mas no sabem. Quem fez? So os Nhanderu Mirim que fazem. Claro, foi pra
eles que fizeram a estrada. A estrada por dentro da terra uma espiral, que vai por onde tem rio, passa por baixo. Vai
passando. No faz falta nem ponte: passa por baixo da gua. Vai pra longe. At agora ainda tem, em alguma parte tem.
Mas muito difcil passar. Ento, foram uns bichos muito grandes que fizeram. Se eles viessem por baixo, descendo
mais ou menos uns 15 metros de fundura, eles iam estragar tudo por cima. Tinham que ir mais fundo: uns 20 metros,
30 metros de fundura. A, iam fazendo. Foram os Nhanderu Mirim que pediram para fazer essa estrada para eles. Eles
fizeram, e as pessoas iam seguindo. Assim eram os Nhanderu Mirim, inteligentes. Eles eram pessoas, nossos parentes,
mas eles rezavam tanto que acompanhavam Nhanderu, falavam com Nhanderu, falavam com qualquer bicho. Eles
entendiam qualquer palavra, do branco, de qualquer nao. Os bichos tambm falam; os passarinhos falam, e eles
entendem. Por isso que ns os chamamos Nhanderu Mirim. Eles que fizeram as Tava, as runas (Misses Jesuticas
e outras construes de pedra). Eles que fizeram. [Os brancos] pensam que mataram a todos, mas os Nhanderu
Mirim tm muita responsabilidade, e nunca morrem. Os brancos fizeram guerras, mas eles entravam nessas estradas
por baixo da terra e saam em outro lugar. Os soldados vo matando, vo fazendo guerra. Mas os Nhanderu Mirim
nunca morrem, sempre seguem. Eles no so como ns. A gente olha pra eles e v que na mo deles j est tudo
esclarecido, iluminado; as pernas deles j esto totalmente esclarecidas, a eles vo. Se no estiver, no vo.
L em So Miguel das Misses, os brancos diziam que mataram todos, mas no. Eles entraram na estrada que vai
l pra Itanham, e saram l. Por ali foram 150 pessoas, 150 Guarani que escaparam l de So Miguel das Misses.
Os brancos pensam que mataram todos, mas no. A maioria, aqueles que rezam muito, que no tem mais tekoaxy,
escapou. Foram 150 pessoas. O resto morreu tudo; eles rezavam menos, no tinham condies de ir, por isso, os
brancos mataram todos. Mas aquelas 150 pessoas foram dali. A gente entende a palavra deles, por onde eles iam
passar, contaram tudo. Mas os brancos no entendiam. Escaparam dali mesmo, ali das Misses.
Xerami Timoteo Oliveira Karai Tataendy
(Tekoa Itanhaen, Biguau/SC)
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pra escapar mesmo que eles faziam aquelas estradas por baixo
da terra, porque Nhanderu j estava sabendo que ia chegar algum
pra brigar. Ento, eles iam entrando ali. Ningum ia saber. Pra onde
foram? Ningum ia saber?
Essa estrada, quem vai seguir, so os Nhanderu Mirim. As
pessoas como ns, no conseguimos seguir essa estrada, enxergar
essa estrada. Ningum vai naquela estrada, ningum vai saber. S
aqueles que rezam igual aos Nhanderu Mirim vo caminhar de novo
por aquela estrada. Os outros no vo mesmo; no pra (qualquer)
pessoal assim. pra Nhanderu Mirim que aquela estrada feita.
Ningum (mais) vai seguir por ela.
Xerami Joo Silva Vera Mirim
(Tekoa Xapukai/Brakui, Angra dos Reis/RJ)
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Bom, hoje em dia, ns jovens lideranas que estamos aqui hoje, ns aprendemos a trabalhar
com os mais velhos. Ns, jovens lderes, sempre escutamos os mais velhos, aprendemos com
eles como nos comportar com postura de liderana mesmo. Claro que fazemos perguntas
a eles, ns procuramos saber atravs deles. Por isso que hoje ns temos um pouco de
sabedoria para falar para vocs agora. Ns perguntamos tambm sobre as caminhadas e por
isso ns sabemos por que nossos antepassados no se fixavam em apenas um local, mas
estavam em constante movimento. E, realmente, eles no caminhavam por caminhar, mas,
sim, faziam caminhadas sagradas em busca mesmo de Yvy Mar ey. E, realmente, isso j
acontecia muito antes dos europeus entrarem aqui, j acontecia muito antes da entrada dos
europeus. Nas caminhadas no havia s um nico caminho. E, isso, os avs contavam. Alguns
procuravam terra boa para plantar, e outros eram guiados por Nhanderu mesmo. Os objetivos
mudavam em alguns aspectos: por exemplo, alguns vo pela iluminao de Nhanderu,
procura de Nhanderu mesmo, em outra dimenso. Agora, havia alguns que procuravam terra
boa. Porque, normalmente, quando est para acontecer algo ruim em algumas aldeias, o
xerami que est ali j vai saber muito antes. Por isso, o xerami decide partir antes tambm,
e Nhanderu j ilumina para ele qual caminho ele deve tomar depois que sair daquele lugar.
Depois chegaram os jurua kuery a quem tambm chamamos de yvypo kuery. Eles vieram
justamente para nos prejudicar. Por tudo isso os nossos avs antigos no paravam mesmo
em uma regio apenas, sempre caminhavam. Naquela poca, existiam aldeias grandes, havia
muitas pessoas em uma comunidade. Sempre Nhanderu que est iluminando a caminhada.
Nhanderu mostra quantos dias vai levar para chegar e o lugar onde eles vo parar e se fixar
por um tempo. Ento, h toda essa questo de parar em determinados lugares que hoje
to questionada pelos jurua; a questo da mobilidade. Mas no somente uma questo de
apenas caminhar ou se locomover constantemente. Tem tambm a questo dos plantios, da
organizao interna, das funes ao amanhecer, dos afazeres naquela aldeia, das pessoas
que iriam cuidar especificamente da caa (...) e tudo isso entra na questo da mobilizao, e
sempre eles, os xerami j tinham essas questes. So essas coisas que eu tenho para contar,
coisas que nossos avs tambm contavam para mim.
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No comeo, ns vivamos tranquilos l, em yy tavai, Yvy Mbyte (centro da Terra), o lugar onde chegaram os Guarani.
Mas, at hoje, ns ainda sabemos que esta uma terra s: Nhanderu Yvyrupa! No tem outros nomes. Depois de
muito tempo, vieram Pedro lvares Cabral e os seus homens os conhecemos em Porto Seguro e, depois, vieram.
Naquela poca, j tinha tape (caminho). A estrada Peabiru, como a chamam os brancos, mas que para ns tape. Os
Guarani fizeram esse tape desde Yvy Mbyte (o centro do mundo), passando por aqui (SC) e tambm por Porto Seguro
(BA), at Peru. Mas onde est agora esse caminho? No aparece mais. Por qu? Quem destruiu aquela estrada? Ainda
se pode ver algum pedacinho, pode chegar aqui em Monte Cristo, em Garopaba, em Mbituba tm pedacinhos ainda.
Mas eles esto no meio das fazendas, das cidades e no aparecem mais.
Durante mais de 1500 anos vivemos aqui s os Guarani. Desde as Misses at aqui em Santa Catarina; assim
vivemos primeiramente. Ento, pra ns, uma terra s. Mas, depois da chegada dos jurua (brancos), e depois de terem
matado muitos ndios, os brancos comearam a brigar entre si. Eles brigaram, pois cada nao queria tomar tudo pra
si. Os portugueses queriam todo o territrio para eles, os espanhis e os holandeses tambm. Ento, eles brigaram
entre si. Depois, negociaram e se entenderam sobre como fazer as divises. E foram dividindo: no Uruguai [Paraguai,
Argentina] ficaram os espanhis, e tinha tambm os portugueses, que ficaram aqui no Brasil. Eles tambm no eram
brasileiros, eram estrangeiros. Ns que somos brasileiros. S que, at agora, os brancos ainda no conhecem a
gente. Eles dizem: ah, vocs vieram l de sia. Assim! E eles no vo saber nunca, porque h muito pouco tempo que
os brancos nos conheceram. H mais de 1500 anos ns Guarani, nossos avs antigos, j estvamos aqui; j estvamos
nessa terra quando eles chegaram. Como que os brancos vo saber como comeou esta terra, como surgiram os
Guarani, de onde vieram? Eles no vo saber nunca. Por isso que muito difcil. Eles no vo acreditar, porque at
agora no foi colocado na escrita.
Nhanderu, que nos ilumina, fez uma s Terra pra ns vivermos todos juntos,
era pra estarmos todos juntos sem diviso. O jurua veio e fez a terra ficar sofrida, dividiu as trs: Brasil, Paraguai, Argentina. No foi Nhanderu que fez essas
divises. Os jurua, por se acharem mais do que a gente, fizeram essas divisas:
essa uma terra, essa outra terra. E, assim, foram colocando as divises.
Paraguai ficou no meio do mundo, foi ali onde tudo comeou. por isso que
agora estamos assim, indo pra l e pra c. J no temos mais lugar. Depois que
os jurua nos separaram, uns ficaram l, e falam como ns. verdade, eles so
nossos parentes. Foi o jurua mesmo que dividiu tudo, no foi Nhanderu.
Pedro lvares Cabral chegou primeiro em Porto Seguro. Mas o Nhanderu Mirim era muito inteligente. Ele estava
dentro da Opy (casa de rezas). O Guarani nunca saia; s em alguma poca. Mas ele entendia todas as outras lnguas.
Aqueles que estavam chegando, pensaram que eram os Guarani os que estavam subindo nas rvores, olhando para
os barcos. Mas no eram Guarani. Na poca em que chegaram os jurua, a maioria dos que estavam l, olhando assim,
era ndio bravo. E o Guarani sempre escondido. Os soldados deles que estavam sempre saindo. Dali j comeou,
j complicou. Desde aquela poca em que chegou Pedro lvares Cabral, os brancos j comearam a incomodar. Eles
conheceram cada lugar onde tinha aldeia. Porque tinha uma estrada, e eles seguiam aquela estrada, chegavam nas
aldeias e j comeavam a incomodar. Desde aquela poca.
Xerami Timoteo Oliveira Karai Tataendy
(Tekoa Itanhaen, Biguau/SC)
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[...] Os Jesutas ficaram 150 anos, e queriam lograr a todos os Guarani, com a reza deles e a lngua deles. S que no
conseguiam. Queriam integrar a todos e no conseguiram; tentaram durante 150 anos. Vieram outros tipos de padres,
padres alemes e disseram: agora ns queremos que vocs obedeam. Ns queremos que vocs rezem igual a ns.
Porque a nossa reza que vale. A reza do Guarani no vale porque no pra Nhanderu que se reza. Mas os Guarani
falaram: no, ns no vamos entregar o orereko (nosso sistema). Ns no vamos entregar. Vamos continuar com a
nossa cultura, com a nossa reza, com a nossa lngua. Dali comeou a briga.
Comearam em Catarata das Misses e vieram at So Miguel das Misses. Chamaram todos para ajudar, eram
muito ricos. Os Nhanderu Mirim tambm tinham muitas riquezas naquela poca. Miguel era o mais rico de todos.
Aqueles que vieram conheciam os espanhis, que disseram: ns vamos ajudar, vamos trazer ferro l de Buenos
Aires. E eles trouxeram um ferro muito grande l de Buenos Aires. Mandaram trazer de l, os espanhis, para ajudar
os Guarani aqui a construir a casa. Miguel falou: pode trazer. Se quer trazer, traz. E colocaram todo o ferro que
trouxeram l de Buenos Aires para ajudar a levantar a casa. Eles queriam lograr os Guarani, ficar com toda a riqueza.
Mas o interesse de Miguel no era ficar ali; ele estava fazendo a Tava s pra mostrar. Os espanhis queriam ajudar e
diziam: ns vamos ajudar. E Miguel respondia: tudo bem, trabalha a. Os franceses trabalhavam, os portugueses
trabalhavam, os espanhis trabalhavam, mas s por interesse, porque queriam lograr e matar a todos. Ento, no
que os Guarani aprenderam a trabalhar junto com os espanhis, os franceses e os portugueses nas Tava. Eles vieram
dizendo que queriam ajudar, e o Guarani deixou, no proibiu pra eles.
Miguel tinha muitos que o ajudavam. Antes de chegarem os brancos, apareceu um dia um rapazinho. Acho que
foram os Nhanderu mesmo que mandaram aquele rapaz, que tinha uns dez ou doze anos. Aquele era Sepe Tiaraju.
J veio para ajudar mesmo, apareceu de repente. Ele era o lder dos ndios bravos. Ele que mandava, era o xondaro
ruvixa tipo um tenente. Ele mandava naquelas pessoas. Ele trabalhava atravs da palavra de Miguel. Sepe Tiaraju era
o responsvel pelos ndios bravos. Miguel era um Nhanderu Mirim, ele no ia ficar, ele ia atravessar para o outro lado
do mar. Agora ele est l.
A maioria daqueles que estavam em So Miguel das Misses era Nhanderu Mirim. Saram 150 pessoas de l. Saram
l em Itanham e, dali, foram l para Porto Seguro. 150 pessoas. Eram Guarani, Nhanderu Mirim mesmo. At aceitaram
os brancos quando chegaram ali. Aceitaram a ajuda at dos espanhis e tambm dos franceses. Nhanderu Mirim no
estava proibindo: podem carregar, podem levar pedra. Eles estavam construindo as Tava. [Os brancos] Trabalham
por interesse de riqueza, os Nhanderu Mirim esto sabendo. Mas pra eles no vale, porque eles vo embora, no pra
morar sempre. s para os brancos verem, depois de muito tempo, como o trabalho. E tambm onde que viveram
os Guarani primeiramente, antes de chegarem os brancos. Ento, eles deixaram marcas para conhecer onde era o
lugar em que viveu o Guarani antigamente. Era s pra isso a marcao que eles deixaram. Mas os brancos no estavam
sabendo porque que eles fizeram em todos os lugares, em todos os Estados. Em Curitiba (Paran), onde agora
a cidade, tinha muitas casas Guarani quando os brancos chegaram. Em Paranagu (Paran), Itanham (So Paulo),
na cidade de So Paulo, capital, tinha muitos Guarani. Em Vitria, Anchieta (Esprito Santo), fizeram um restaurante
enorme pra que no se saiba de nada, pra cortar todos os direitos dos Guarani. L em Minas Gerais, tambm tinha
muitas Tava Mirim, e l em Porto Seguro. E tambm no Peru tinha muitas Tava feitas pelos Nhanderu Mirim. S que l
j eram outros ndios, mas foram os Guarani que orientaram as outras naes fazer essas Tava.
L tinha muitos cavalos, tinha muito gado. Umas 13 mil cabeas de gado. Tinha somente umas 1600 pessoas, entre
Guarani e outros ndios. Mataram muitos. Uns 150 saram de l. O resto mataram todos. E ficaram com o gado. Por
isso que agora tem muito fazendeiro l. No comeo aquele gado era do Guarani mesmo, eles que criaram. Foi assim
que aconteceu primeiramente.
[...] Em Catarata Misiones, l na Argentina, tinha muitas casas, vrias aldeias. De l, eles visitavam sempre as
Tava de So Miguel. Os xondaro iam, pra l e pra c. Eles se visitam sempre, e se ajudavam, levavam plantao pra
plantar aipim, banana, cana, essas coisas. Faziam plantao e trocavam, levavam o que os outros no tinham e traziam
outros tipos pra plantar. Tambm, naquela poca, tinha outra aldeia em [Caiguate], no Rio Grande do Sul. Em So
Nicolau tinha outra aldeia; em So Loureno do Sul tinha outra aldeia; em Pelotas tinha outra aldeia; na capital [Porto
Alegre], tambm tinha outra aldeia; Bag tinha outra aldeia; Livramento tinha outra aldeia. Eles sempre estavam em
comunicao; no tinham telefone, mas eles avisavam que estavam indo visitar, que estavam sabendo que precisavam
ir l. Naquela poca era assim: os pajs estavam em contato entre eles: vamos l. Eles esto precisando. Assim que
vai continuando.
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Naquela poca, em Paranagu tinha outra aldeia. Os Kaiowa tinham outra aldeia. Tinha muitas aldeias l em So
Paulo e s vezes eles vinham l de So Paulo. Mas, naquela poca, no como agora. Eles tinham o apyka (veculo dos
Nhanderu) pra caminhar. Nhanderu ajudava eles, ento, no demoravam nem dez minutos para chegar aqui desde So
Paulo. Vai e, na mesma hora, chega; igual que Nhanderu. Dessa forma, eles caminhavam naquela poca. Ento, vamos
dizer que assim: Nhanderu faz Tape Mirim, assim, uma fumacinha, como o brilho do Sol, a, na hora que ele pisa ali,
ele vai. De l, de Porto Seguro, pra visitar ali, em So Miguel das Misses, no leva nem meia hora pra chegar. De l,
de So Miguel das Misses, vai l pra Porto Seguro, e no leva nem uma hora pra chegar l. Era assim antigamente,
porque tudo isso eram os Nhanderu que faziam pra eles. Mas agora j no assim; agora ns sofremos, no como
antigamente.
[...] Eu estudo. Cada dia, de noite, eu falo sobre essas coisas com Nhanderu. Em que lugar tinha Guarani antigamente?
Onde viviam outros ndios? Ali, na beira do Rio Tijucas, viviam outras naes. Em um primeiro momento, na Tijuca
tambm havia Guarani. Mas pra l havia tambm aqueles que ns chamvamos de jekupe, aqueles ava (homens) mais
bravos. Mas isso antigo, no de agora. Ali, em Itapema, tambm havia outros ndios, no eram Guarani. Camboriu
j era lugar do Guarani tambm. Imbituba? Lugar de Guarani, tambm. Garopaba? Lugar de Guarani tambm. Praia
do Sonho? Lugar de Guarani; Pinheira tambm. Enseada do Brito? Lugar de Guarani; antigamente, j era lugar de
Guarani. Universidade Federal? Lugar de Guarani. Primeiramente, fizeram a casinha l os Guarani. Por isso, antes
de 1300 j moravam ali os Guarani. Depois, chegaram os brancos, puseram na escrita, fizeram muitos erros. Mas
onde enterraram aqueles que fizeram balaios e outras coisas, arco e flecha, embiras, todas as coisas que sobravam e
colocavam dentro da terra em vrias partes? Pode ser que tenham tirado alguma parte, mas tem ainda pra tirar. Os
brancos no deixam, tiram tudo pra ver, colocam tudo dentro de suas casas, de seus Museus.
Quantas mil pessoas estavam morando l na Ilha de Florianpolis? Em 1845 chegou Floriano Peixoto. Ele matava
todos. Naquela poca, os mais bravos eram os Carijs. Brigaram at o fim e no se entregavam. No entregavam, e
morriam. Nossos antepassados Guarani morreram sem entregar a terra. Eles no tinham armas como os brancos,
mas eles no entregavam a terra. Por isso que hoje em dia ns temos direito de lutar, porque os nossos parentes
antigos no entregaram a terra aos brancos. Eles no entregaram, os brancos tomaram deles porque tinham armas
de fogo e matavam a todos. Mas eles no entregavam essa terra. [...] Mesmo assim, os brancos desmataram tudo.
Por isso, ns temos direito de lutar, porque ns no entregamos a terra para os brancos. Se os Guarani tivessem
entregado diretamente, agora no tinham mais direito, nem existiria mais Guarani, somente portugus. Mas ns,
Guarani, estamos at agora, porque ns no entregamos mesmo. assim que ns estamos sabendo; eu no estou
mentindo. Mataram quatro mil pessoas na ilha de Florianpolis. Ser que os Guarani no existiam primeiramente
[antes da chegada dos brancos]? Como falou naquela poca o Governador do Estado, ele estava comandando e disse:
mas aqui, antigamente, nunca existiram os Guarani; aqui no lugar do Guarani. Mas ele no sabe, porque ele
governo e no sabe nada de como era antigamente. Ser que morreram quatro mil na Ilha de Florianpolis e no
anotaram nada? Ser que no existiram, primeiramente, os Guarani?
Agora, eu vou contar um pouco de como e quando chegaram os jurua aqui. E o que foi feito pelos nossos
antepassados? Hoje, ns temos uma FUNAI, mas, antes disso, havia o SPI e quem mandava mesmo eram s os
militares. Quando existiam somente os militares no existia governo e quem sofria no ramos apenas ns, mas
todo mundo. Um jurua nos viu sofrendo na mo dos militares e, nesse caso, ele no gostou e fez uma denncia para
outras pessoas. Talvez agora eu no v lembrar do nome dessa pessoa que nos ajudou, mas s me lembro que na
Histria contado que era um polons. Ele fez uma denncia para outras pessoas de longe tomarem as providncias.
Foi atravs disso que eles criaram o tal de SPI (Servio de Proteo ao ndio), que veio para trabalhar com os povos
indgenas. Acredito que aconteceu em 1910 e, a partir disso, eles inventaram as Reservas para ns. Depois disso,
eles nos colocaram todos numa s Reserva, eles pegaram nossos xerami (avs), todo mundo. At com os Kaingang
ns tnhamos que conviver. Nos misturaram bastante, como se fosse todo mundo igual. Eles pegavam os xerami
e as xejaryi (avs) e levavam de caminho para o local onde seria a Reserva. Isso, para que vivssemos em um s
local sem atrapalharmos eles. Queriam que vivssemos em um nico local. Entretanto, os xerami e as xejaryi no
queriam se misturar com outros povos, havia muitos que no aceitavam isso, j naquela poca. Justamente por isso,
quando eles percebiam que vinham pessoas para peg-los, eles j se escondiam ou iam embora, se afastavam dali,
j comeavam a se espalhar novamente. Nesses casos, eles saiam refugiados, ento, no iam todos juntos para um
mesmo local, eles se espalhavam, mesmo cada famlia, se dividiam bastante. E, no meio disso, havia xerami que era
forte em espiritualidade e conversava com Nhanderu. E, assim, ele acabou conseguindo fugir realmente, at mesmo
dos jurua. Ento... Graas a essas pessoas que fugiram que ns no vivemos num lugar denominado Reserva hoje.
S depois de muito tempo eles voltaram, e j haviam mudado o nome para FUNAI. Mesmo depois do momento em
que surgiu a FUNAI, as lideranas trabalharam muito ainda para conquistar os territrios, os territrios mesmo, no
a Reserva. A, j existia demarcao de terra dos nossos parentes. Da sim, eles comearam a perceber tambm que
nem todos somos iguais entre os ndios, eles perceberam isso s depois. isso que estou falando para vocs, jovens.
Futuramente, vocs vo estar na frente, como lideranas. A partir disso, comearam uma luta para conseguir as coisas
[seus direitos]. Ento, atravs de muita luta, muitas coisas aconteceram e at mesmo os jurua fizeram um acordo, uma
lei que se chama hoje Constituio Federal de 1988. A partir da, ns temos esse direito, o reconhecimento de que
cada grupo tem sua prpria maneira de viver, que existem diferentes lnguas. Existem Kaingang que no se pode mais
colocar num s local junto com Guarani. Mas isso acontece at hoje. Ns sempre brigamos, a luta continua. Acredito
que foi Nhanderu que iluminou tudo para vivermos melhor, para que plantemos, para conseguirmos territrio, uma
terra mais apropriada, mais tranquila. Caso algo esteja para acontecer, ou se est prestes a vir um jurua para entrar na
aldeia, Nhanderu j vai fazer com que percebamos na hora. Por isso, at hoje ns conseguimos manter pelo menos a
nossa forma de vida.
Adriano Morinico Karai Jekupe
(Tekoa Yvya Yvate, So Francisco do Sul/SC)
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Por que ns temos muito medo? Porque desde o comeo, em Porto Seguro, j comearam
a guerra e mataram os ndios. Ns considervamos assim. At agora. S agora que eu no
sinto medo. Na poca em que era criana, ns tnhamos mais medo dos brancos, porque ns
sabamos o que eles faziam. Por que ns tnhamos medo? Porque eles eram matadores de
guaranizinhos. Ns sabemos que onde chegavam matavam os nossos avs antigos. Mataram
todos. Ento, onde ns morvamos, quando chegavam os brancos j ficvamos com medo de
que matassem a todos. Por isso que os Guarani, onde tinha aldeia, ficavam bem; mas quando
chegavam os brancos, por que Guarani saia de l? Por causa do medo. E ele ia para mais longe.
Ns no ramos como os outros ndios. Ns no brigvamos. Se os brancos chegassem
em uma aldeia e se instalassem ali perto, a os Guarani j tinham medo: esses da vo matar
todos ns, vo matar todo mundo, vamos embora. Eles saiam sempre, nunca brigaram. At
1960, 1970 ainda era assim. Nunca brigavam. Por isso, ns no temos aldeia antiga, como
os Xokleng ou os Kaingang. Nunca brigamos... Deixamos os brancos morar. Por fim, ns no
tnhamos mais terra. Por isso, de to bonzinhos, de tanto medo, nunca brigamos, entregamos
aquelas aldeias para os brancos. Assim que ns continuamos vivos, at agora. Agora eu
no vou entregar mais para os brancos. Se entregar de novo, o que eu vou fazer? No vou
conseguir viver. por isso que temos que lutar um pouco mais, hoje em dia. Por isso que,
agora, comeamos a ficar nos lugares, morando em um lugar s. No podemos mais, como
antigamente, escolher onde vamos morar. Ento, por isso. Antigamente, ns entregamos
tranquilamente para os brancos as nossas aldeias. Nunca brigamos. Por que agora os Kaingang
e os Xokleng tm aldeias antigas? Porque eles brigam. Quantos que j morreram desde o
comeo? Quantos que j morreram at agora? Brigam, brigam, brigam... Querem tirar a
aldeia deles? Querem entrar na aldeia indgena? Matam. Se chegam, matam, no querem
nem saber. Os ndios vo morrer e os brancos tambm vo morrer. Ali, em Ibirama, quantos
ndios morreram? Quantos brancos morreram? Um monte. Por isso, eles tm aldeia grande,
com mato, mas quantas pessoas morreram ali? Mas ns no, por isso, no temos terra como
os outros ndios, porque nunca brigamos, no queremos brigar: esto chegando os brancos
aqui, vamos embora, e amos para outra aldeia. Antigamente, ns vivamos tranquilamente,
porque tinha muito mato. Ns fazamos outra aldeia. Depois de cinco ou seis anos chegavam
os brancos de novo, ento, ns amos para mais longe. Mas e agora? Ns no podemos mais,
como antigamente, seguir do mesmo jeito. Agora ns temos que ficar... por isso que ns no
temos aldeias grandes como os outros ndios. S por isso, de tanto que somos bons, de tanto
medo tambm. No queremos brigar... Dizem que Guarani nunca param, mas no queremos
sair. Ns temos medo dos brancos, por isso.
[...] Antes, os Guarani vinham, mas eles nunca incomodaram os brancos. Os brancos
ofereciam muita coisa aos Guarani. Por volta do ano 1945, os Guarani chegavam na cidade,
e os brancos ofereciam comida, sal, charque, bebida. O Guarani no conhecia que tipos
de alimentos eram aqueles. Qualquer um oferecia para tomar e ele tomava. A, eles j no
conseguiram mais caminhar como antigamente (atravessar o mar). Antigamente, quando no
havia brancos, eles conseguiam. Eles passavam, atravessavam ao outro lado e chegavam em
Yvy Mar ey. Eles conseguiam. Mas, depois que os brancos chegaram, no conseguiram mais.
Mataram muitos Guarani tambm com a bebida. Desde aquela poca j era assim, os brancos
oferecendo sal, vinho, cachaa e comidas de todo tipo. E os Guarani no souberam [recusar].
Por isso, desde que chegaram os brancos no conseguimos mais atravessar. H muitos anos j.
Aqueles caminhos se mostraram a ns por meio dos rastros, dos sinais. Ns seguimos,
mas no alcanamos igual que os nhaneramoi (nosso avs) antigos. Mas, mesmo assim, ns
seguimos esses caminhos deles. A gente no alcana mais como antigamente. Mesmo assim,
ns caminhamos ainda, ns seguimos os rastros. Conseguimos. No do mesmo jeito que
antigamente, mas ns conseguimos [...] Ns no alcanamos mais como nhanerami (nossos
avs) com o pensamento, o corao, tudo. Mas ns continuamos pedindo a Nhanderu,
primeiramente, pois ele que ilumina. At agora ns fazemos isso. Os nhaneramoi antigos
no nos esquecem... Eles pedem para todos, onde tem aldeia, eles pedem aos nhee para
proteger. Atravs disso, eles conseguiam que Nhanderu iluminasse, abrisse o caminho para
eles.
Xerami Joo Silva Vera Mirim
(Tekoa Xapukai/Brakui, Angra dos Reis/RJ)
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Yvy Mbytere, no centro do mundo, os Mbya cantam para Nhanderu. Quem acredita mesmo
em Nhanderu ouve a voz dele e, se ele disser: esse o caminho que vocs vo seguir, eles
precisam seguir o caminho. Assim, eles continuam a caminhada, assim os nossos avs vieram
pra c. Quem ouve a voz de Nhanderu e segue o que ele diz, isso que guata por, o belo
caminhar.
Nhanderu guiava eles para eles fazerem a caminhada e mostrava o caminho, e por onde
deviam seguir. Assim, eles vieram de Santa Maria e de outros lugares e seguiram juntos. Eles
caminhavam a p. Tinha muita gente a quem Nhanderu ia mostrando o caminho para chegar
no litoral. Eles passaram pela Argentina, Santa Maria, Paranagu. Eles ficavam um ms ou
dois meses em algum lugar, e depois seguiam. Assim eles caminhavam. Eu no sei ao certo
como contar porque eu ainda no tinha nascido naquele tempo. S os meus pais e meus avs.
Eles ficaram em So Paulo, formaram uma aldeia, ficaram um ms, dois meses. Assim eles
caminhavam, faziam aldeias pelo caminho, porque Nhanderu no os queria no mesmo lugar.
Nas aldeias antigas eles no podiam ficar porque eles no poderiam criar as crianas nesse
lugar e, assim, eles continuavam a caminhada e seguiam o que Nhanderu dizia.
Nossos avs antigos, nossos parentes antigos, no viviam como agora. Naquela
poca, era tudo mato. Desde o comeo eles j comearam a caminhar. Mas no
era como agora. Nossos avs antigos rezavam muito e, ento, Nhanderu j mostrava o caminho para o filho. Dizia: agora vai. Kuaray, no nascer do Sol, sempre
iluminava para ele. Vrias pessoas, antigamente, vieram, mas no era para ficar por
aqui. Vieram para atravessar, atravessar o mar, chegar em Yvy Mar ey. Sempre vinham. Muitos. Vinham, vinham, vinham. Mas, depois que comearam as cidades e
os pases Paraguai, Argentina, Brasil , a j no conseguiam mais, pois j no era
mais como antigamente. As cidades com suas cercas impediam a caminhada deles.
No comeo do mundo, a gente j existia aqui. Nhanderu criou o nosso povo e outros povos,
por isso estamos aqui. Nhanderu nos criou antes dos jurua (no indgenas), por isso, ns temos os
nossos direitos, mas eles tambm tm os direitos deles. Eles precisam nos valorizar. Eles pensam
que sabem mais do que ns. Nhanderu deixou a terra para ns vivermos aqui, mas os jurua kuery
pensam que so mais inteligentes do que a gente e, por isso, eles mataram muitos ndios, mataram
muitos ndios por causa da terra. Nhanderu diz: os nossos filhos esto sofrendo nas mos dos
jurua kuery. Eles esto acabando com os nossos filhos. Vamos destruir a terra aos poucos, assim
melhor. E se Nhanderu destruir a terra, o que os jurua kuery vo fazer? No foram eles que
fizeram a Terra, mas dizem que so os donos da terra, fazem os ndios sofrerem, alguns no gostam
do ndio, matam os caciques para conseguirem tirar o povo da sua prpria terra.
Xejaryi Tereza Djatxuka
(Tekoa Mboapy Pindo, Aracruz/ES)
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Os nossos avs, nossos antepassados, nossos primeiros avs, aqueles que rezavam (oporai
vae), que escutavam a palavra de Nhanderu (Nhanderu ayvu), sabiam onde ele ia nos levar,
nos guiar. Ele veio pela aldeia dos Tupi, de outros ndios, o nosso xerami. Mas ele errou
pra Nhanderu kuery e, por isso, ele ficou na Terra (no foi com o corpo inteiro Yvy Mar
ey), faleceu. Eu usei a palavra morreu (omano), porque vocs so jovens, para vocs
entenderem. Minha me era filha dele e nos disse: o seu av nos deixou. Agora, com muita
dor, nos lembramos dessa terra, na beira do mar de gua salgada, e vamos prosseguir juntos,
meus netos, minhas netas. Por isso que ns viemos e chegamos at Cantagalo (RS). Ficamos
ali, plantamos milho, batata doce, mandioca, etc.. Era com esses alimentos que sobrevivamos.
No tnhamos a comida do branco, s comamos o nosso alimento. Vivamos s plantando e
cantando. No tnhamos sofrimento. A gente no vivia sem Opy e, dessa forma, vivamos
melhor, sem tanto sofrimento. Na mata tinha muita caa para nos alimentar: tinha tatu, koxi
(porco do mato), anta... E peixe tambm. E tinha frutas: guavira, guaviju, jarakaxia... E era
dessa forma que ns vivamos e nos alimentvamos. Era por isso que ns no pegvamos as
doenas dos jurua. Continuo at hoje sem comer muita comida de jurua, mas, quando no
encontro os alimentos de antes, sou obrigada a comer a comida do jurua. Ainda no sinto
nada de mal no corpo e, por isso, no me disseram que eu tinha doena no rim ou no pulmo.
por isso que eu vivo bem, meus netos. Essa a verdade: eu sou bem forte.
por vocs que eu estou forte e estou falando com vocs. O que ns plantvamos acabou, por
isso que vivemos na Opy cantando, sem esquecer de Nhanderu. Ns nos fortalecemos lembrando.
Eu e o seu tio estamos fortes ainda, lembrando.
Xejaryi Maria Guimares Para Rete
(Tekoa Marangatu, Imaru/SC)
Antes de haver a cidade, os meus avs fizeram uma aldeia prxima a So Miguel das Misses, em Santo ngelo (Rio
Grande do Sul). A aldeia se chamava Tekoa Kaarandy, naquela poca. Hoje em dia, j ningum conhece essa aldeia onde
eu nasci. Desde essa poca j andvamos muito. De l, j comearam as expulses; fomos expulsos de l, na poca do
SPI. Fomos levados para a aldeia Guarita, onde vivemos junto com os Kaingang. Lembro at agora daquela poca.
Naquele tempo, o cacique principal Kaingang, Geraldino Deofordino, conversou com o meu pai e conseguimos
fazer uma aldeia guarani do outro lado do rio Guarita. L tem at agora uma aldeia que chama Cerro Cor, onde ainda
moram alguns Guarani. Minha me faleceu naquela aldeia. Fomos ento para Chapec. L eu perdi meu pai tambm.
Naquela poca no havia diviso do territrio, era uma nica reserva onde morvamos junto com os Kaingang (hoje
em dia as Terras Indgenas esto separadas). Eu era o ruvixa (cacique principal) dos Guarani, mas havia um problema
de liderana, pois havia um cacique Guarani e outro Kaingang. E Isso no dava certo. O cacique dos Kaingang estava se
fortalecendo, cada vez queria mandar mais, e ns decidimos sair de l. Decidi falar com a FUNAI e lhes expliquei que
no queria brigar pela terra com os Kaingang. Pedi FUNAI que nos ajudasse a conseguir os meios de ir para outro
lugar. De l, de Chapec, fomos, ento, at Paranagu.
De l de Paranagu, no fomos ns que decidimos vir aqui para Brakui (Angra dos Reis/RJ). Foram os nhe que
iluminaram para ns onde que ns deveramos fazer a nossa aldeia. Nhe esclarece onde que deve ser feita a aldeia,
por onde e pra onde tem que ir. Tudo isso eles esclarecem. Atravs dos nhe eu estava sabendo onde ia fazer a aldeia.
Aexa rau, he rire ma aju; ojapura (nos sonhos, os nhe me contaram onde deveria ir). De l de Paranagu, vim
at aqui, em Brakui, pra ver. Na hora que cheguei de volta a Paranagu, meus filhos e parentes prximos j estavam
querendo vir at Brakui tambm. Os meus parentes, filhos e netos queriam vir naquela mesma hora, mas eu disse que
no, que devamos esperar mais um pouco. Os prprios nhe que me disseram que devia esperar mais um pouco.
Tnhamos que esperar que os xondaro de Nhanderu clareassem mais toda aquela regio, o que que tem l, quais os
espritos ruins das montanhas, da gua. Os xondaro de Nhanderu vo l para conversar primeiro, para explicar que ali
os Guarani iam fazer uma aldeia: vo vir os meus parentes, dizem [aos espritos]. E eles pediram para esperarmos
mais um pouco. Eu mesmo pedi a Nhanderu Tup para fazer isso antes de nos mudarmos para Brakui desde Paranagu.
Ento, chegada a hora, eles me avisaram que eu podia levar os meus filhos e netos para l. Fui falar com o pessoal
da FUNAI para me ajudar. Chamei tambm as pessoas que tinham ficado em Chapec. Somente Domingos morava
ainda em Ibirama. At agora os jurua me perguntam por que ns viemos at aqui, por que samos de Chapec, de
Paranagu, para fazer aldeia aqui. Eles quiseram saber desde o comeo.
Ento, isso que difcil. Os brancos no alcanam o entendimento dessas coisas, porque os Guarani perguntam a
Nhanderu, porque ele o dono da Terra. Os Guarani mais antigos primeiramente rezavam, perguntavam, querendo saber
onde havia lugar, mato, para morar. Era isso que eu estava querendo saber. Ento, Nhanderu me esclareceu onde que
poderia ter aldeia. Atravs de tudo isso, eu vou indo, at agora. Isso os brancos no vo acreditar: ser que ele fala com
Nhanderu?. No vo acreditar que os Guarani conseguem falar com Nhanderu, at agora. o nhe que fala para ns. o
nhe que vai contar onde que tem lugar no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, So Paulo, Rio de Janeiro; onde que tem
mato, onde que tem nascente boa, onde que tem lugar para os Guarani morarem. Eles, os nhe, que vo passar para os
Guarani, para nhanerami (nossos avs). At agora assim, e vai continuar assim mesmo. Ns no vamos mudar isso. Ns
vamos continuar. Mesmo que os brancos no gostem. Por que eles no gostam? Porque eles no sabem por que fazemos
isso, esse trabalho. A nossa cultura isso. Nhanderu oferece o lugar para ns e conta onde est, por onde devemos ir, onde
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NHANERAMI KUERY OGUATA YVYRUPA RUPI| Nossos avs caminharam ao redor da Terra
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vamos morar, onde vamos fazer aldeia. Ento, ns vamos chegar l. A, vo chegar os brancos e perguntar: por que vocs
vieram aqui? Quem mandou?. assim que os brancos sempre falam. Por que vocs vieram aqui? Quem mandou vocs
virem aqui pra fazer aldeia?. Eles sempre falam. Mas quem fez o mundo foi Nhanderu. Ele o dono. No o Governo,
no o presidente que o dono das terras. Somos ns os primeiros que vivemos aqui. Os Nhanderu fizeram o mundo e
fizeram ns, Guarani. No somos os donos, apenas somos os primeiros habitantes desta Terra. Nhanderu fez esta Terra para
que ns a usssemos. Ento, no vou dizer que eu sou dono do mundo. No isso. Mas os Nhanderu o fizeram para ns
usarmos. Para ns, Guarani. Por isso que ns temos direito. Sempre falo estas coisas. No estamos falando nem brincadeiras
nem mentiras. Temos certeza absoluta. Absolutamente, Nhanderu vai dizer: est falando certo, meu filho, est falando
certo. Nunca vai dizer que estamos errados, porque acreditamos em Nhanderu e ele que vai dizer que no mentira. Est
certinho o que meu filho est falando. Vai dizer isso. Ele mesmo. assim que ns, Guarani, sabemos.
Ento, assim temos que contar para os brancos, a vo acreditar. Se no, no vo acreditar. Os nhee mostraram pra
mim o lugar. Atravs disso, eu fiquei pensando que, para os nossos avs antigos, os nossos parentes antigos, tambm era
assim que acontecia. Antes de acontecer, j sabiam. Esse exemplo Nhanderu colocou no meu corao, para eu entender
que era desse jeito que os meus avs antigos encontravam os lugares pra morar. Ns somos assim, se lembrarmos mesmo
de Nhanderu, ele tem condies de nos ajudar. Pra isso que ele nos enviou ao mundo. Mas, hoje em dia, nunca lembramos
certo. Pedimos a Nhanderu, mas nos esquecemos de Nhanderu, ento, difcil de conseguir qualquer coisa. Confiar em
Nhanderu supe dizer: Nhanderu que fez o mundo, ento, ele que vai saber. Aqueles que vieram de Yvy Mbyte, Nhanderu
iluminou o caminho pra eles atravessarem o mar. Quantas pessoas que vieram de Yvy Mbyte passaram para o outro lado?
Quando alguns vieram de Yvy Mbyte, j tinha muitos brancos. E eles deram dinheiro, muita roupa, e aqueles que vinham
caminhando agradeceram muito, mas, depois, eles jogavam tudo fora, e nunca guardavam o dinheiro.
Xerami Joo Silva Vera Mirim
(Tekoa Xapukai/Brakui, Angra dos Reis/RJ)
Eu nasci no Paran, em Palmeirinha. Tem Palmeirinha e Mangueirinha. Palmeirinha lugar dos Guarani e
Mangueirinha lugar dos Kaingang. Me lembrei: eu tinha mais ou menos sete anos. Morvamos l, porque era um
lugar que foi deixado para os Guarani e os Kaingang. Um tempo depois, o finado meu pai e meus tios queriam morar
em outro lugar, que chamado Dois Vizinhos, no Paran tambm. Ns nos mudamos pra l. Ali tinha um lugar onde
tinha bastante terra, naquela poca. Tinha muita terra que no tinha sido vendida. O Governo que vendia a terra.
Ento, nos deixaram s um pedacinho pequeno de terra. Foi ento que se lembraram da Argentina, porque diziam que
l tinha terra que no tinha dono. Fomos pra l, em direo Argentina. Passamos por Barraco, que divisa de Paran
e Santa Catarina. Em Santa Catarina So Dionsio Siqueira e do lado do Paran Barraco. Ficamos um tempo morando
ali, mas depois eu me casei e o meu sogro e minha sogra queriam vir pra c, porque diziam que tinham parentes por
aqui, l no Rio Grande, no rio Camaqu. Eles tinham uns parentes morando l e se lembraram deles. Ento, ns viemos,
mesmo eu no querendo vir. Eu tinha dois filhos e no queria deixar os filhos. Fiquei com muita pena, e vim.
De l samos, porque era um lugar muito pequeno, aquele que tinha sido dado aos Guarani. Ento, samos e viemos
para um lugar chamado Osrio. Moramos l quatro ou cinco anos. Minha sogra faleceu e, trs messes depois, meu
sogro faleceu tambm. Ficamos sozinhos. Eu tinha ganhado aquela terra no Municpio do Viamo, onde hoje a aldeia
Cantagalo. Tinha gente que vinha de longe, da Argentina ou do Brasil mesmo, mas nunca pensaram em fazer aldeia.
Eles paravam, fazendo artesanato pra sobreviver, em qualquer lugar. Muita gente deixava que eles trabalhassem por a.
Mas, depois que eu cheguei l e vi que a terra no era ocupada e que parecia que no tinha dono (proprietrio), fizemos
uma roa. Ento, apareceram os donos da terra. Se queixaram e me levaram para a cidade para conversar. Perguntaram
por que ns estvamos l, e eu disse: ah, eu pensei que a terra no tinha dono, ningum plantava ali, no tinha casa
nenhuma. Ento, ns chegamos e plantamos, porque temos que roar, temos que plantar. S pedindo pra vocs por a na
cidade no d. Temos que plantar pra poder alimentar os nossos filhos. Fui indo por a e, no fim, eu ganhei aquela terra;
porque o cara que comprou aquela terra, fazia 30 anos que comprou, mas no fez melhoria nenhuma: no plantava,
no construiu casa, s deixou como estava. Ento, fizeram a conta para ver como estava a situao. Durante 30 anos no
plantou, no construiu e no pagou o imposto. Fizeram a conta e viram que, somente com aquele imposto, j dava para
comprar outra terra do mesmo tamanho. Por a, eu ganhei aquela terra. Fui eu que ganhei aquela terra. Naquela poca,
no tinha aldeia, somente algumas famlias morando que depois saam, e vinham outros. Ali, era um paradeiro s. Mas
a populao aumentou bastante e a minha esposa falou: agora poderamos buscar outro lugar para a gente morar.
Ficamos na BR, l na Terra Fraca, do lado de Palhoa. Muita gente foi nos conhecendo. [...] Com a ajuda deles,
fomos indo devagar at que me conseguiram aquele pedacinho l no rio Maciambu. Aquele lugarzinho estava na mo
do juiz e, depois, o juiz deu pra ns morarmos. Naquela poca ramos poucos, somente quatro famlias, mas a terra
l era pequena tambm: 04 hectares e meio. Mesmo assim, a gente plantava um pouquinho, no meio das pedras,
mas plantvamos. Ento, muita gente dizia: ah, ele planta, ele gosta de trabalhar na roa. E foi indo, foi indo... E foi
ento que passou o gasoduto que vinha da Bolvia e ia at Porto Alegre. Esse gasoduto muito perigoso porque, s
vezes, o cano poderia se soltar, ou estourar, e iria queimar. Poderia matar todo mundo e atingiria os ndios. Ento, ns
ganhamos uma compensao pela obra do gasoduto. [...] Esta terra foi comprada, no foi nenhum governo que deu.
Por isso, no vou deixar mais. Talvez podemos aumentar. Dizem que esta terra muito pequena pra demarcar.
Xerami Augusto da Silva Karai Tataendy
(Tekoa Marangatu, Imaru/SC)
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NHANERAMI KUERY OGUATA YVYRUPA RUPI| Nossos avs caminharam ao redor da Terra
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Essa aldeia, esse local, na verdade, j faz parte do litoral e h pessoas que j viveram
muito aqui, fazendo caminhadas e passando por aqui: Piraquara, Antonina, Graciosa, para
alcanarem a praia. Nossos antepassados vieram da Argentina, do Paraguai e passaram por
aqui em busca de Yvy Mar ey, da Terra sem Males. No era simplesmente uma caminhada,
mas uma caminhada sagrada e quando passaram por aqui, deixaram a Tava que o museu
agora l de Paranagu. Diz-se que h mais um local pelo qual passaram que seria Tava e
que fica ao lado de Guaraqueaba, mas no cheguei a conhecer ainda. Eu nunca vivi por
aqui, nunca vim antes, no vim nem passear aqui anteriormente. Eu nunca soube que existia
Piraquara, mas eu tinha um sogro que era um xerami e, quando ele ainda estava vivo, ele
disse: vocs poderiam procurar um local para ns fazermos uma nova aldeia. Mesmo quando
eu no souber mais, eu queria que vocs morassem longe daqui. Logo depois que ele disse
isso, ele faleceu e, por isso, vim para c. Nhanderu iluminou mesmo, mostrou, em forma de
sonho. Ele mostrou tudo. Mostrou, realmente mostrou que essa seria uma aldeia, que ns
iramos parar aqui por um tempo. Ele mostrava tambm um outro local que ser uma aldeia.
No caso da outra aldeia, ele mostrou mais para a beira da praia mesmo de Guaraqueaba. No
sou capaz de explicar como possvel isso, porque nunca vivi aqui, nunca vim aqui e no meu
sonho j se mostrou tudo isso. Por isso que viemos e paramos aqui. Eu acredito que ns no
viemos simplesmente fazer uma caminhada, mas viemos sim atravs da viso de Nhanderu.
Por isso, quem vem aqui, difcil de se acostumar, parar aqui e viver na simplicidade. Outras
pessoas j tentaram morar aqui, mas no se acostumaram. H pessoas que vm e no ficam
porque aqui no permitido bebidas alcolicas e o acesso longe, ento, difcil para eles.
Ns fazemos apenas festas tradicionais para sermos felizes.
Xerami Marcolino da Silva Karai Tataendy Marangatu
(Tekoa Araai, Piraquara/PR)
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verdade! Sobre isso que vocs esto precisando saber, vou falar um pouquinho. verdade o que antigamente os
nossos avs falaram, o que nhandejaryi (nossa av) Tatax falou. Ela contou pra ns, por onde eles andaram olhando,
o que eles escutaram, o que eles viram... Eles foram pesquisando as futuras aldeias desde o comeo da Terra, foram
iluminando o caminho, desde a beira das grande guas, comearam a caminhar. A nossa av sempre nos falou para
escutar bem a voz de Nhanderu, aquele que fez o cu e a terra, nosso Nhamandu, ele sabe por que ns estamos
caminhando. Ficamos um ou dois anos em um lugar e depois Nhanderu mostra de novo outro lugar. E os brancos
sempre nos perseguindo. Ento, Nhanderu fala pra ns: sai um pouquinho daqui, que os brancos vo incomodar
vocs. Porque ns estamos andando sempre em cima daquilo que de Nhanderu, no dos brancos. Mas eles
sempre esto nos incomodando, nos prejudicando. Por que ele est nos mostrando, iluminando o caminho? Ele est
falando: vocs no percam esse sistema, esse reko. Nossos avs que nos fazem caminhar por esse caminho. Por isso
que nossa av chegou no meio de ns, para nos guiar. Os mais velhos e as pessoas novas, todos caminhando juntos. E
sempre Nhanderu kuery mostrando o lugar onde a gente faz o fogo (as nossas aldeias). E ns, sempre em direo da
beira da gua, para caminhar em direo ao Kuaray, onde o Sol sai, seguindo a estrada do Sol. isso que Nhanderu
sempre mostra, ilumina para ns. Agora, os tekoa na beira do mar, nossos avs fundaram, porque eles caminharam
pela beira do mar. E, assim, muitos anos, foram andando e, depois, foram voltando para trs, de novo. Falavam:
vamos ficar mais um pouco aqui, para ns ficarmos sabendo onde tem mato, onde ns vamos fazer os nossos fogos.
Quando estavam vindo de volta para trs, eles ficavam mais tempo, paravam mais nos lugares.
Eu mesmo no perguntei tudo pra xejaryi (minha av), ento, no sei por onde eles andaram. Eu mesmo nasci
no Tekoa (aldeia) de Parati Mirim, depois de crescido que eu vim nesse tekoa (no Espirito Santo). Quando a gente
chegou, era s jurua que tinha. E uma senhora falou: essa aqui a minha casa, essa aqui a minha terra no de
vocs. Ento, levantamos a Opy e a mulher disse que ia fazer uma estrebaria de vaca ali. A, estvamos procurando
o lugar de fazer aldeia e foram Nhanderu kuery que mostraram pra ns o lugarzinho. Ento, os brancos no puderam
com ns, com Nhanderu, em Parati Mirim. E assim. Depois, o meu irmo mais velho, Vera, contou que ns e a tatax
caminhamos at Ubatuba. Tinha o Karai Tataendy, que chamavam de Capito Pedro. O nome verdadeiro dele era
Karai Tataendy. Ele tambm contou, os mais velhos contaram. Minha av falou: vamos, vamos l onde Nhanderu
kuery mostraram, iluminaram pra ns. E os jurua kuery no querem que ns ocupemos, mas eram Nhanderu kuery
que estavam passando a palavra pra ns e, assim, ns chegamos l (aldeia Boa esperana ES). A FUNAI e a empresa
Aracruz Celulose e o Governo do Estado no queriam que a minha av fizesse o tekoa (aldeia) ali naquele lugar. Ento,
nos levaram na Fazenda Guarani, em 1972. Mas, para l, o meu irmo do meio no queria ir. A, nos levaram para a
Fazenda Guarani. Eles falaram que l existia vaca, cavalo, terra para ser plantada, trator: tudo vai ficar para vocs.
A, nos levaram. Quando chegamos l, de tudo quanto lado, vinham outros tipos de Guarani. Foram juntando outros
tipos de Guarani. Por isso que o meu irmo, que tem o nome de Vera Mirim, Vera Guyra, no queria ir. Depois que ns
estvamos l, ele no ficou bem no mato. Ele no queria ir, no queria. Depois que chegamos, a nossa av comeou a
cantar para Nhanderu, trs dias passou cantando para Nhanderu. A, falou: no vo ao mato, no olhem para o mato,
vamos olhar primeiro tudo o que tem aqui. Deixa que Nhanderu mande relmpago e faa trovejar em cima do mato
primeiro. A, ela cantou: ns viemos aqui para ocupar essa terra. O meu irmo no ficou bem. L, ns ficamos trs,
quatro, cinco anos; l na Fazenda Guarani.
NHANERAMI KUERY OGUATA YVYRUPA RUPI| Nossos avs caminharam ao redor da Terra
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Ento, nossa av falou: agora que ns j vimos, vamos voltar. Vamos l onde Nhanderu
mostrou o lugar de nosso fogo (ES). Naquele tempo era puro mato. Tinha tudo quanto
animal: porco do mato, katetu, anta; tinha de tudo naquele mato.
Depois, os jurua plantaram s eucalipto. A, no tem mais nada de caa do mato. Antes
era puro mato e agora no tem mais. A minha av falou assim mesmo. Em 1979, a nossa
av falou para ns: agora eu vou entrar onde Nhanderu mostrou, iluminou antes. Eu tinha
doze anos. Ns fomos, entramos na antiga terra. A, chegaram dois carros de polcia. Falaram:
saiam daqui. Aqui no a terra de vocs. Por que vocs vieram fazer aldeia aqui?. E a minha
av falou: no foram vocs que fizeram a Terra. Por que vocs esto nos incomodando por
causa da terra? Aqui Nhanderu mostrou primeiro para ns, e daqui vocs j nos tiraram uma
vez. Eu no saio mais daqui. S se Nhanderu disser pra mim: Sai daqui, vai embora. Mas
vocs no vo me mandar sair daqui. Se fossem vocs que tivessem feito a Terra, a vocs
poderiam dizer para ns sair daqui. Se vocs querem que a gente saia daqui, ento, matem
a todos de uma vez. Daqui ns no samos. Os jurua se cansaram de nos incomodar. Depois
daquilo, os meus avs conseguiram, tiveram o poder de fazer a aldeia ali. Agora ns estamos
aqui, os moos, as moas, ns temos a nossa prpria aldeia, ns temos os nossos foguinhos
at agora. s vezes, as crianas ficam brincando. Tudo isso ns temos pra contar. Sempre
estamos contando. Onde nossos avs caminharam, ns estamos andando tambm. s vezes,
no por preguia que a gente no quer contar; os nossos netos que no se esforam para
escutar as nossas conversas, para pegar os nossos conselhos. Por tudo isso, ns estamos
sendo atacados. Porque, antigamente, os nossos avs contavam histrias, falavam pra ns por
onde que ns andvamos, para onde que ns caminhvamos. Tudo isso eu estou contando
pra vocs.
Xerami Antonio Carvalho Vera Kuaray
(Tekoa Mboapy Pindo, Aracruz/ES)
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NHANERAMI KUERY OGUATA YVYRUPA RUPI| Nossos avs caminharam ao redor da Terra
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Na verdade, hoje em dia esto falando que ns viemos do Paraguai [Yvy Mbyte, o meio da Terra], e verdade sim.
Mas no agora, h pouco tempo. Antes que Pedro lvares Cabral descobrisse essa terra, ns j estvamos por aqui [no
litoral]. O governador do Estado de Santa Catarina diz que ns, Guarani, temos que descobrir onde esto os cemitrios
antigos, porque se mostrarmos onde tem e sabendo onde , podemos ganhar a terra.
Bem antes de tudo isto estar acontecendo, os Guarani j vinham do lugar onde, hoje, o Paraguai. Para ns, a
Terra uma s. Naquela poca, no tinha ningum, no tinha brancos por aqui, ento, foram vindo e foram morrendo,
enquanto outros passaram, seguiram mais e chegaram at l em Porto Seguro. Ento, por aqui, na beira do mar,
est cheio de cemitrios guarani. Isso eles no sabem. Mas eu ouvi falar, porque os nossos avs, bisavs, tataravs
contavam. Ento, foi passando para ns nos lembrarmos e acreditarmos.
Xerami Augusto da Silva Karai Tataendy
(Tekoa Marangatu, Imaru/SC)
Hoje em dia, por que ns no caminhamos mais? Porque proibiram tudo. Por isso, ns no andamos mais como
antigamente, caminhando entre as aldeias, 50, 100 pessoas, visitando outras aldeias. No tem como, est tudo
proibido. Por isso que no continua a mesma coisa como antigamente. Isso me preocupa muito.
Eu nasci e cresci em Porto Alegre e depois eu vim para Santa Catarina com meus
pais. Moramos em Itajai durante cinco anos (em aldeias). Foi ali que tive dois filhos.
Ento, ns viemos aqui em Pira. Naquela poca, ns no tivemos problema para
entrar. Ns, Mbya, no temos mais terra para viver. Os jurua kuery levaram toda a
riqueza da natureza, eles destruram as matas, mas, mesmo assim, ns vivemos. Os
brancos no querem dar mais terra pra ns. Eles falam: por que os ndios querem
terra?. Ns queremos para plantar. Mas como a gente vai plantar se eles no querem dar terra boa para poder manter a nossa famlia? Jurua tem como nos ajudar,
mas no ajuda. Eles tiraram a terra de ns. s vezes, eu penso no passado, que ns
tnhamos de tudo: mato, roa e as plantas medicinais.
Guarani nunca para, vai assim, de um lugar a outro, mas Guarani nunca faz nada. Os brancos no. Vai um grupo ou
uma pessoa, procura um lugar, olha, faz usina, fbrica, barragem. Pra isso que os brancos caminham. Vo chegar em
uma cachoeira bonita, vo fazer hotel; vo encontrar um rio bom, vo tirar a gua, vo botar um cano bem grande pra
levar pra cidade, vo fazer aude. Pra isso que os brancos caminham desde antigamente. O Guarani no; ele caminha,
mas no pra fazer nada. A gente vai pra todo lugar, mas nunca aparece. No vamos quebrar nada, no vai explodir
nenhuma pedra, no vamos fazer nada. No vamos fazer serraria, no vamos cortar toda a madeira pra fazer tbua.
No vamos fazer nada, no vai aparecer nada [no deixamos marcas]. Mas os brancos no. Eles vo pra qualquer
lugar e pensam: ah, aqui bom pra fazer tal coisa, ali vamos fazer tal outra, aqui tem que fazer cidade. Ento, isso.
Mas Guarani no isso. Desde o comeo caminhava! Os brancos reclamam, mas os Guarani nunca estragaram aquilo
que Nhanderu fez, nunca, at agora. Os brancos querem que ns esqueamos. O que ns fizemos pra eles? Nada.
Apenas no paramos. E, agora, nos perguntamos: o que nos fizemos de errado para os brancos? Ser que porque
pedimos a terra? Ser que estamos errados? No. Estamos no caminho. Eles fizeram tantas coisas erradas e ns
nunca reclamamos. Quem ser que tem mais direito? Ser que fomos ns os que erramos tanto? No, no erramos,
nada. Ns no fizemos nada de mal para os brancos.
Xerami Joo Silva Vera Mirim
(Tekoa Xapukai/Brakui, Angra dos Reis/RJ)
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Para os mais velhos, na nossa viso, quando no ramos obrigados a aprender na escola,
aprender a escrever, quando para ns ainda no existiam questes burocrticas, era muito melhor.
Nossos xerami e nossos ancies s ficavam na casa de reza, assim nosso aprendizado era na casa
de reza. Naquela poca, tnhamos plantaes de vrias coisas e isso nos deixava felizes. No comeo
do vero, que para ns quando comeam os tempos novos, fazamos batismos de alimentos que
seriam das frutas; gros, etc.. Por isso, nossa existncia era muito mais divertida e feliz antes de
existir qualquer interferncia burocrtica. Quando eu era criana, ns morvamos no mato, no
muito distante da cidade, mas tambm no muito perto. Ns ficvamos isolados l, ento, no
chegavam interferncias, at mesmo as doenas no chegavam. Nas comunidades das aldeias no
aparecia sarampo, doenas febris, ningum adquiria essas doenas na aldeia. Mas no vivamos
ali isolados simplesmente para no pegarmos doenas, os xerami pediam a Nhanderu todas as
tardes, sempre, para que, eternamente, enquanto existir um povo ali, para que no acontecessem
doenas nem nada com ns. Simplesmente, ns pedamos todos os dias, todas as noites. Os
xerami pediam que nada de ruim chegasse para seus netos e pediam a deus que protegesse a
todos da comunidade. Sempre os xerami pediam a deus. Hoje em dia j mudou, hoje muito
diferente dos tempos passados. Hoje, estamos praticamente misturados com a cidade, por isso
muito fcil adquirirmos uma doena, hoje qualquer doena entra nas comunidades.
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Agora, so os professores que ensinam a ler, escrever, a falar. A gente tem que ensinar a
ler e escrever, ensinar a nossa cultura, e no pra aprender as coisas do jurua, o conhecimento
do jurua. Eu falo pro meu filho pra fazer isso, e no ensinar criana as coisas dos jurua, as
palavras dos jurua. Eles tm que aprender a colocar no papel, e tambm a fazer na prtica,
fazer as coisas na aldeia. Na escola, eles tm que aprender a fazer armadilha, porque existem
armadilhas para cada tipo de animal. Na escola, as crianas aprendem a desenhar a armadilha,
mas, na prtica, ningum sabe fazer, ningum sabe por que assim, pra que Nhanderu deixou
essas comidas pra gente comer. Antigamente, ns comamos essas comidas, e por isso que
somos fortes. Antigamente, s bebamos aroka, suco tirado do mel. O mbojape (po feito de
milho) era para as crianas. Se eu comesse esse tipo de comida antes, eu estaria mais forte.
Por isso que a gente fala que a gente passa fome, porque no comemos mais as comidas dos
Guarani, comemos mais as comidas dos brancos. A falta tudo, trigo, leo.
Antigamente, no tinha escola, s tinha Opy. O jovem ia para a Opy e aprendia muitas
coisas, no como hoje em dia, que os jovens vo pra escola e no aprendem nada.
Xerami Felix Karai Brizola Karai Mirim
(Tekoa Ara Ovy, Maric/RJ)
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Meus avs, principalmente minha v, falava sobre a questo dos jurua (no indgenas), falava desse jeito: h
vrios jurua que gostam de ndios e h vrios tambm que no gostam, a maioria no gosta. Ento, ns Guarani,
Guarani mesmo, no podemos se misturar muito com jurua, porque eles ainda so parentes das pessoas que
exterminaram nossos parentes. Muitos de nossos antepassados foram exterminados por eles, por isso, no podemos
conviver com eles, ns precisamos nos afastar um pouco deles. Mas, hoje, no d muito certo nos negarmos a
conhec-los, at porque eles so muitos, demais. J no d mais para viver em paz, ns Guarani, em vrias aldeias.
Eles aumentaram tanto que, querendo ou no, j estamos convivendo com eles. J no d nem para plantar mais. Eles
esto nos espremendo, h apenas algumas aldeias onde d para plantar bem ainda, no resto das aldeias, dificilmente.
Por exemplo, aqui mesmo difcil de plantar. H coisas que tenho que admitir. H coisas que conseguimos atravs
deles, como fumo e erva industrializados. Mas h uma coisa que ainda no perdemos, a nossa lngua. Todas as aldeias
ainda falam fluentemente a nossa lngua. Mesmo morando praticamente no meio deles, ns temos que permanecer
falando a nossa lngua tradicional. H algo ruim acontecendo porque no deveramos perder nhandereko. Por que
vocs acham que a coisa est cada vez mais difcil para ns, na viso de vocs? Na maioria das aldeias, ns utilizamos
vrias coisas feitas pelos povos no indgenas. Hoje em dia mesmo, todo mundo tem celular, muito mais vocs jovens.
Ns temos televiso e o pior de tudo a televiso, isso estraga muito a nossa comunidade, porque na televiso mostra
tudo. A escola, se formos analisar e utilizar para o bem, com certeza boa, mas o problema que, hoje em dia, as
crianas aprendem para um lado negativo, a sabedoria para outra coisa. J querem aprender tudo, tudo, tudo mesmo.
Mesmo que seja ou no seja importante, eles, querendo ou no, aprendem tudo. Por isso, importante, mas, por
outro lado, prejudica tambm. Mas, se ns banirmos totalmente e no entrarmos na escola, tambm no d, porque
hoje em dia o jurua j est nos oprimindo e vai continuar nos perseguindo ainda. Alm do mais, por exemplo, a cada
quatro anos eles mudam de governo, mudam de presidente e eles vo criando mais leis. Cada governo vai criando
suas leis. Por isso, querendo ou no, ns temos que aprender nas escolas para ns irmos junto com eles, para ns nos
defendermos mesmo. Por isso, a escola boa e tambm no , mas, de qualquer forma, ns precisamos valorizar a
escola tambm. Na minha viso isso. Mas o que realmente nos derruba mesmo a televiso.
Xerami Marcolino da Silva Karai Tataendy Marangatu
(Tekoa Araai, Piraquara/PR)
A Opy a nossa escola. Entramos na Opy para saber como vamos viver, como vamos fazer, por que ficamos bravos,
por que o casal ciumento, por que temos preguia, por que temos cime das coisas. Cada um de vocs vai ouvir.
Lembrem-se quando voltarem para as suas casas. Eu falo aos meus netos que, quando chega a tarde, no quero mais
ouvir barulho, no quero mais que a televiso fique ligada. Eu peo pra Nhanderu pra ele queimar as placas solares e
os aparelhos que tem dentro das casas, com o raio.
Xerami Augustinho da Silva Karai Tataendy Oka
(Tekoa Guyrai tapu, Parati/RJ)
Ento, at agora, esta aqui, para ns, uma terra s. At agora. Como Nhanderu. Ele no vai dizer que aqui
Mxico, aqui Peru, aqui Uruguai. Para ele, s uma terra e foram eles que fizeram. Ento, hoje em dia, os brancos
querem nos considerar como populao branca. Se eu vou Argentina, eles vo me perguntar: por que vocs vieram
do Brasil?. Se vierem da Argentina, vo dizer que vieram de outro Estado, outro pas, outra nao. Mas, para ns,
no isso. Eles queriam nos considerar igual a eles, como populao branca. Mas Nhanderu no faz isso para ns,
ele no fala essas coisas para ns. Ento, para ns, uma Terra s. Se os brancos nos conhecessem como somos, se
valorizassem a nossa cultura, o nosso sistema, no poderiam acontecer essas coisas. Se conhecesse de verdade, no
poderiam proibir queles que vm da Argentina que passassem para Brasil.
E tambm agora dizem que os ndios nunca param, que caminham muito. Ns vamos ser assim mesmo, mas agora
no como antigamente. Ns vamos a outras aldeias e voltamos depois. Antigamente, ns caminhvamos muito
para conhecer outras aldeias, visitar os nossos parentes, fazer Nhemongarai. A cada ano, a gente ia a uma aldeia. Na
estao velha, em uma aldeia, na estao nova, em outra... Assim! Isso o nosso costume. Mas, agora, hoje em dia,
por que que paramos? No conseguimos mais fazer isso. Hoje em dia, tudo fechado, tudo impedido de passar.
Para o branco melhor, tem estrada por toda parte, vai de ponta a ponta. Mas, para ns, esses caminhos so fechados.
Antigamente no era assim. A gente caminhava, porque tudo era nosso. S Nhanderu que nos protege. A, ns
andvamos vontade, pescando, caando, tirando mel, cortando palmito para comer. Tudo era nosso. Mas, agora,
tudo tem dono. No s a terra. A terra em cada Estado, para o Governo do Estado, dele. Todas as nascentes,
todas as rvores, todos os passarinhos, todos os bichinhos, tudo tem dono agora. No mais nosso. At pra ns nos
proibiram, caar ou pescar em alguns rios. Ns queremos caar, pescar, mas sempre encontramos algum que nos
expulsa: aqui minha terra, aqui o meu terreno. Aqui no pode caar, no pode pescar, dizem. Tem todo tipo de
pragas tambm. Assim, ns no temos mais caminhos, nem para caar, nem para visitar os nossos parentes. Estamos
cercados, tudo ao nosso redor est cercado. Por onde vamos passar? Onde vamos pescar? Onde vamos tirar mel?
Temos sentido e sofrido muito; s que ns temos f em Nhanderu, acreditamos e tambm sempre pedimos para nos
acalmar, sempre para pensar bem, por nossas criancinhas. por isso que ns nos mantemos assim. Mas sofremos,
porque perdemos toda a nossa riqueza. No temos mais a nossa riqueza. Havia todo tipo de passarinhos, agora parece
que s tem 140 ou 160 tipos de passarinhos aqui em Santa Catarina. Antes, havia mais de 1600 tipos de pssaros.
assim! Ento, aquilo que era nosso, ns perdemos tudo.
Eu estou olhando: onde que tem aquela mata que Nhanderu deixou? Ser que no pra ns? Do meu ponto
de vista, pra mim: aquela a minha terra. Isso os brancos tm que entender daqui pra frente, porque essa terra,
aquele pedacinho, Guarani estava morando e vai morar mais. E vai continuar do jeito que est, no vai acabar, no vai
levar tudo, no vai matar a nascente de gua, no vai tirar terra pra vender, no vai tirar pedra pra vender, no vai tirar
madeira pra vender, no vai tirar bichinhos pra vender, no vai tirar a gua pra vender. O Guarani no pensa nessas
coisas; ns queremos preservar o lugar em que estamos. Ns amamos o que nativo, no s as pessoas que ns
amamos. Ns cuidamos da nossa Me Terra. Porque atravs da Me Terra que as populaes se levantam.
Os brancos falam pra mim: agora melhor pra vocs, est tudo tranquilo com a ajuda do governo, fizeram a escola,
o posto de sade. Mas pra mim pior ainda. Ns estamos sofrendo mais ainda. Por qu? Se estivessem ajudando os
Guarani, eles perguntariam o que que ns precisamos para cuidar da nossa sade. Mas difcil. Nunca vai acontecer
na nossa aldeia do jeito que precisamos para a nossa sade. Porque j no temos mais os remdios antigos e porque
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as doenas j no so como antigamente. As doenas dos brancos so diferentes, elas chegam por outros meios,
como atravs da comida. A doena tambm alcana muitos, porque no como antigamente. Antigamente, as aldeias
eram diferentes em termos de energia: a energia da mata nativa, dos espritos, dos seres do mato, todos ficavam bem.
Agora, a energia tambm diferente. A doena chega de todos os lados. Se h uma fbrica ali, com a fumaa saindo
todos os dias, sem parar, ano aps ano. Do outro lado, tem outro tipo; do outro, outro. Quantos so os navios por dia
que saem? Quantos os carros que usam gasolina, lcool? Ento, tudo isso j est fechando a atmosfera, no como
antigamente. Por isso que as pessoas, as crianas ficam doentes. Ento, temos que dar os remdios dos brancos. E os
brancos tm que nos ajudar, porque foi a populao deles que acabou com as nossas riquezas. Um pouco, pelo menos,
deveriam ajudar.
Antigamente, ramos ricos, havia muitas frutas nativas; tudo o que tirvamos para viver vinha da mata. Os bichinhos
que Nhanderu deixou para nos alimentarmos. E, hoje, nem podemos chegar perto da praia porque est cheia dos
heta vae kuery (aqueles que so muitos, os brancos), e ns somos pouquinhos e no temos mais terras. Os brancos
acabaram com tudo. L no Rio Grande do Sul pior ainda porque no tem mata; l tudo campo mesmo. Ento,
agora, quem est vivendo por l no meio do campo. Fizeram as casinhas l e esto sofrendo. At a gua difcil por
l. Muitas vezes, o rio longe. s gua encanada e pouca, s vezes falta. Quem mora no Rio Grande do Sul sofre.
s vezes, os brancos perguntam: o que vocs comem?. E ns temos que contar que comemos aquilo que o
branco tambm come. Mas por qu? Onde a gente vai achar a comida Guarani, se no temos mais mato, se no
temos mais terra para plantar? Existem terras, mas so propriedades dos outros e os fazendeiros no querem que
entremos, no querem que cortemos nem um palitinho. Ento, temos que pedir aos brancos a comida. Agora, o
branco pergunta: por que ser que o Timoteo queria mais casinha, material de construo, brasilite, aude. Por que,
se no a cultura dos Guarani? Isso que o Timoteo quer no cultura dos Guarani. Mas no por isso. Se as coisas
estivessem como antigamente, eu no ia pedir pra ningum: no vou pedir carne, no vou pedir comida, no vou pedir
aude, porque ns temos peixe vontade, em qualquer lugar vamos pescar, ningum vai proibir. Mas, agora, onde
ns vamos pescar? Se ns vamos l embaixo, ningum vai querer ver. Vo dizer: o que esto fazendo os ndios por
a? Eles entraram sem ordem. Manda sair, manda ir embora de novo. Aquilo meu. Aqui no pode chegar, no pode
pescar, est proibido. Aqui no pode vir. S isso que o branco faz. E, agora, onde que ns andamos livremente igual
que antigamente? Ns no temos mais nada. Ento, agora, pra no incomodar os brancos a cada hora, ns temos que
pedir pro Estado, pro Municpio, pro Governo Federal pra construir, pelo menos, dois ou trs audes pra ns pescar,
pras crianas irem pescando ali. Porque ns no conseguimos igual que os brancos. No temos estudos. Onde que
ns vamos conseguir dinheiro a cada vez pra comprar peixe? Onde? No nosso, no a nossa fbrica. Nossa fbrica
so os balaios, as flechas, essas coisinhas s. Apenas leva, vende, troca por dinheirinho pra comprar alguma coisa.
Ento, agora, por isso que ns temos que pedir para as instituies dos brancos. No temos mais casas, no temos
mais materiais pra fazer casas como antigamente. O nosso prego era cip, cip imb pra amarrar. No usvamos nem
prego, nem brasilite, nem tbuas antigamente. Mas, agora, como que ns vamos conseguir como antigamente? Por
que ns no conseguimos mais, por que pra ns muito difcil? Quem culpado disso? Ser que Guarani mesmo
que tem culpa por incomodar os brancos? No . Ns temos direito, porque assim que ns somos. Eu tenho a minha
sabedoria e passo para os brancos. A nica palavra que eu tenho pra passar pro branco essa, porque o meu direito.
Xerami Timoteo Oliveira Karai Tataendy
(Tekoa Itanhaen, Biguau/SC)
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Em nossas reunies, em nossas conversas, no colocamos divises entre a nossa cultura e a natureza. Ns
no falamos: tal hora falaremos s sobre nossa cultura e deixaremos separada a natureza, o rio e a rvore. No
combinaremos de falar em algum momento especfico apenas sobre o rio, no h como falarmos sobre o rio e no
falar do ndio. J o no indgena vem e divide tudo, especificam tudo, separam tudo e, para ns, no assim.
Eles no pensam no futuro, no que vai acontecer. Eles no pensam, eles no sabem que algum dia pode acabar a
rvore, o rio ou at mesmo a natureza, eles no pensam em nada, se daqui a quarenta anos vai acabar ou no. Porque
aqui na Terra, tudo e todos tm esprito, todas as coisas, a rvore, o rio, todos eles tm um esprito e um dono. Ns
sabemos tudo isso, que as coisas que fazemos se voltam contra ns mesmos. por isso que um ndio sabe onde pode
fazer suas necessidades. Ele no vai deixar fezes em um rio pelo simples fato de ter entrado nele, ele escolhe um local
apropriado, especfico. Quando as crianas nadam no rio, elas no urinam no rio, para urinar eles saem e vo longe.
H tambm um exemplo sobre o rio, eles esto acabando com o rio e agora eles no sabem por que ele est
secando. Agora, eles esto pegando guas poludas para tratar, sendo que a natureza faria isso automaticamente, no
fosse a grande destruio do rio. Mas, hoje em dia, no, eles tm fossas caindo no rio, tudo, poluio e esgoto e agora
eles tm que tratar. A mesma gua que eles poluem, eles tm que tratar para tomar. Agora, eles tratam e vendem
para eles mesmos, isso nos confunde muito. Hoje, eles no valorizam mais nada. Quando ns, Guarani, falamos que
a natureza importante, eles no nos do a mnima importncia. S no chegaram a nos desrespeitar totalmente
porque ns falamos nossa prpria lngua. Ento, h todas essas coisas sobre as quais importante refletir, mesmo no
sendo importantes para os jurua, para ns . Ento, o mnimo que podemos fazer por ns mesmos. Todas as coisas
que so importantes para ns, ns sabemos, mas nas nossas cabeas, no esto no livro ou no papel. Mas, se ns
analisarmos na teoria dos jurua, j existe tudo, j h muitos livros de sobra, s que aquilo que eles falaram, no o
que ns falamos. Eles acreditam que l h algo que importante, mas eles colocam o que eles querem que achemos
que importante. Ento, vocs jovens devem questionar mesmo. Questionar e buscar saber, ter curiosidade porque,
querendo ou no, ns teremos que abordar esse assunto, no h como escapar.
JURUA KUERY OJOKO NHANDERAPE | Os jurua dificultam nossos caminhos
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Na verdade, eles vo acabar com o planeta, eles vo causar tanta destruio que as consequncias vo chegar neles
mesmos. Eles vo sofrer com isso. Ento, isso que eu falo para vocs jovens j comearem a refletir, em todas essas
questes das consequncias graves que surgiro no s para eles, mas para todo mundo. Tudo isso uma diferena
entre ns e eles, no h quase nenhuma comparao. Por que vocs acham que ns somos mais felizes? Mesmo sem
dinheiro, sem roupas como as deles ns estamos bem de sade, estamos sempre bem enquanto que eles vivem na
depresso. Essa filosofia de todos, de todos os xerami em todas as aldeias. Nhanderu muito sbio, nos colocou
no mato para ns vivermos com aquilo. Muitas vezes, nas cidades, acontecem matanas, sequestros e eles ainda se
questionam sobre o porqu de estar acontecendo isso! O que algo quase bvio, mas eles no querem enxergar.
Ento, tudo isso para ser refletido por vocs, jovens, e por todo mundo, para se adquirir mais conhecimento. No
apenas a minha fala que vai construir vocs, mas refletir e questionar, isso o que vai trazer sabedoria para vocs.
[] Eu gostaria de falar um pouco sobre a questo da cultura, a ideia de cultura no conhecimento dos jurua. At dentro da
sociedade jurua, a cultura s existe entre os mais ricos, aqueles que tm mais poder financeiro, aquele que se veste melhor,
que come do bom e do melhor. Para eles, s eles tm cultura, mesmo se for jurua, mas, se for pobre, ele j no tem aquela
cultura. No meu entender, essa a ideia que eles tm. A cultura para eles aquela pessoa que conversa bem, que fala bem,
essa a cultura para eles; mesmo a maneira de se vestir, de cumprimentar, o modo de se comportar, essa a cultura para eles.
At mesmo na questo dos lderes governamentais, dos ricos, dos que tm dinheiro, so eles que tm a cultura, segundo os
jurua. H uma diviso em classes sociais tambm, h aquelas pessoas que so muito mais ricas, vivem s em camarotes, que
desfrutam s das melhores coisas e h pessoas menos ricas. Nessa questo da ideia de cultura, para os jurua, ela est ligada
riqueza mesmo, riqueza financeira, no como ns. Mas ns temos uma riqueza, eles acham que no, mas ns temos uma
riqueza que uma outra riqueza, no financeira, a comunidade, a questo de um ajudar o outro.
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Os jurua estudam bastante, para ser advogado, para fazer as leis, e depois isso no serve nem pra ele mesmo.
Pensa que sabe de tudo e, na verdade, nem sabe. Ele mesmo faz um tipo de lei e, depois, est sofrendo bastante. Jurua
no sabe o que vai acontecer daqui pra frente. Depois que acontecer, j vai ser inevitvel. A, ele vai pensar: poxa, no
devia fazer isso. Mas Guarani no. Guarani sabe o que vai acontecer se fizer isso, daqui a uns tempos. Xerami (av)
j comeou a falar tudo isso antes de acontecer. E vai acontecer. Antes de acontecer, pelo menos, cada pessoa podia
ficar preparada. Se acontecer isso, por onde ele vai caminhar? Pra esquerda, pra direita, pelo meio. Tudo isso j tem
que estar planejado. Assim que a gente aprende, com a xejaryi (av), com os mais velhos.
Nhanderu criou o mundo pra gente viver, pra gente plantar. Tem o rio, tem o peixe. S que difcil descobrir. Que
nem agora, em So Paulo, est faltando gua, por qu? Depois o pessoal reclama que est faltando gua. Os prprios
que mandam, at destruram as nascentes de gua. Como que vai aguentar? Se um dia o esprito no gostar mais,
lgico que ele vai mudar pra outro lugar. Isso que acontece. Mas jurua no quer pensar nisso, no quer chegar a, no
quer ver essa parte. Muitas vezes sabe, e muita gente pensa que no sabe de nada. Claro que ele sabe, mas ele no
quer aceitar o problema que foi feito. Sempre quer ter algo melhor que os outros. assim que a gente aprende com
os xerami (avs).
verdade, eu concordo com as coisas que foram ditas, so muito interessantes. Por isso eu falo: eles acham
que tm conhecimento, mas eles no tm. Quem tem conhecimento de verdade somos ns. Na verdade, ns
conhecemos de verdade a questo do mundo, ns sabemos como ele foi feito, ento, ns sabemos como cuidar e
eles no tm a mnima ideia sobre isso, se ns formos pensar no conjunto. verdade, importante ns pensarmos
e ns devemos pensar. Muitas vezes, ns falamos sobre o mundo, sobre o territrio. Ao mesmo tempo, eles nunca
nos compreenderam, eles no sabem como ns pensamos. Imagine, no fosse o firmamento, o que seria deles?! Isso
ns temos! Vocs acham que eles construiriam algo sobre a gua do mar, no fosse a terra firme? Construir eles at
poderiam construir, mas cada balano da gua ou pequeno vento destruiria tudo. Eles no conseguiriam se fixar ali.
Essa uma questo que eu estou apenas lembrando vocs para vocs poderem pensar e refletir sobre isso. O que
vocs tm em mente, que ideia vem para vocs atravs dessa questo que eu apenas estou lembrando?
Ns temos muito conhecimento, s parece que ns no temos. Eu duvido um pouco das autoridades maiores
que esto a. [] Vocs acham que vo ter um pouco de conhecimento sobre ns, ali, entre quatro paredes? S na
escrita vo ficar olhando. Eles no sabem se comportar quando vm dentro da nossa comunidade. Eles no sabem
dizer: por favor, ns temos que fazer aquilo. Ns no, ns somos diferentes quando vamos na cidade. Vocs acham
que eles permitiriam que ns nos comportssemos como eles? Que ns destruamos o mundo ou faamos algo sem
que eles saibam? Mas eles so diferentes, eles vm e fazem coisas por trs, sem respeito nenhum. Essa tambm
uma diferena, ns os respeitamos e eles no nos respeitam. Mesmo sabendo que, em alguns casos, o territrio
pertence aos nossos antepassados, e pertence a ns, eles o vendem sem que nenhuma liderana saiba. Quando ns
ficamos sabendo, j foi vendido, j no mais nosso. Isso acontece muito. Na verdade, eles pensam que podem tudo
s porque eles pertencem sociedade majoritria, eles no tm respeito nenhum. Eles confiam muito nas coisas que
eles vo fazer e no acreditam em nada. Ns somos diferentes. A sociedade no indgena totalmente diferente da
nossa sociedade, o sistema deles diferente. No entanto, eu acredito que ns temos mais conhecimento do que eles,
conhecimentos verdadeiros. Ns somos inteligentes, deus nos colocou para sermos inteligentes. Nhanderu nos colocou
para vivermos no mato, ns simplesmente somos do mato e somos conhecedores da natureza. Quando Nhanderu nos
enviou ao mundo, ele no nos enviou para destruirmos aquilo que ele construiu, mas para simplesmente vivermos
harmonicamente.
Realmente, eles s pensam na questo do bem material, para eles, o mais importante o dinheiro, a prata, joias,
aqueles colares, brilhantes, isso para eles o mais importante. Ento, acredito eu que ns somos praticamente o
oposto deles, porque tudo o que para eles importante, para ns no . Por exemplo, a prata e o dinheiro... Para ns
importante a casa de reza, viver em um ambiente com a natureza. At os nossos nomes, ns j viemos com nome
pronto. Nhanderu j nos enviou com um nome pronto que o nosso nome verdadeiro, essa uma questo mais
importante para ns. Isso algo que infinito: quando ns morremos, o nosso nome continuar sempre vivo com
nosso esprito. Tudo isso para ns no tem preo; nem existe para ns a questo de vender o cho que pisamos. Para
eles, j diferente, tudo tem um preo, a terra; em tudo eles colocam preo.
Por isso que hoje eu falo: at hoje nenhuma autoridade fez um documento ou uma carta verdadeira com aquilo
que ns queremos, com aquilo que certo. Eles no fazem questo de mostrar o nosso verdadeiro querer, embora o
conheam. Quanto mais o esconderem, melhor para eles. L em So Paulo mesmo, eles esto praticamente tomando
a gua que eles trataram do esgoto. Todas essas questes, quanto mais eles as esconderem, ser melhor para eles.
Assim, eles no esto mostrando a realidade de que eles esto tomando gua tratada do esgoto, eles no mostram,
ns no vemos na televiso. Eles s mostram a parte do sistema deles que melhorzinho, o que eles fizeram, entre
aspas, de positivo. Algo negativo jamais eles mostraro, mesmo que acontea, eles escondem a questo. Tudo isso
eles acham que ns no sabemos, mas ns sabemos sim o que est acontecendo. Eles sabem o problema, mas eles
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no fazem questo de mostrar. claro que no so todos, h pessoas bem intencionadas, mas, infelizmente, so
minoria e a maioria dos poderosos no se importa. Por que vocs acham que no h um documento, uma carta oficial
atestando que, quando eles, os portugueses, os europeus chegaram aqui, ns j estvamos aqui? No h nenhuma
marca ou um mapa que mostre que os Guarani e outros povos indgenas j estavam aqui, no h, no existe. Porque
eles sabem que, se eles fizerem isso, no ser bom para eles. Eles sabem disso e ns temos todo o direito, por isso,
eles no querem fazer esses mapas e documentos. Eles no mostram que, quando chegaram, eles mataram nossos
xerami, nossos ancies, mulheres grvidas sem compaixo. Eles no fazem questo que a sociedade saiba dessas
coisas, que eles nos massacraram quando chegaram aqui. Quando eles chegaram aqui, eles mataram todo mundo,
no perdoaram nem bebezinhos que estavam no colo mamando. Eles chegaram e no quiseram nem saber, mataram,
simplesmente assassinaram. E isso ns no sabemos, por isso, quando chega o dia 19 [de abril] queremos fazer festa.
Ns no sabemos que nossos antepassados foram assassinados naquele perodo do ano. O dia 19 uma comemorao
criada por eles, no foi por ns. Eles inventaram que aquele dia tinha que ser o Dia do ndio. E esses nomes diferentes
tais como Guarani, Xavante e outros nomes de outros povos? Quem os denominou? Foram os jurua. No fomos ns.
Se ns perguntarmos aos Xavante como eles se autodenominam, provavelmente, ele dir outro nome. Assim, eles
nos chamaram de Guarani e ns no sabemos nem porque Guarani. Ento, sobre tudo isso, ns temos que refletir,
ns precisamos refletir, vocs, jovens, e ns, todo mundo. Esse nosso grupo, todos ns que estamos presentes hoje.
Ento, essas questes... No nem para discutir em como o jurua, para discutirmos entre ns lideranas e povos
indgenas: por que temos que comemorar o Dia do ndio? Isso algo que devemos questionar, ns devemos discutir
entre ns mesmos, no tem nada a ver com jurua. Hoje em dia, o pessoal que est conhecendo esse novo mundo
no sabe mais questionar, se perguntar o porqu do Dia do ndio. J no sabe mais por que acontece isso. Acredito
eu, que para eles colocarem essa questo, porque na poca eles nos mataram e ficaram felizes, ento, eles criaram
isso como forma de eles mesmos ficarem felizes e ns nos enganarmos. Em minha humilde opinio, isso no fica bom.
A nossa forma de viver o mais simples possvel, no h nenhuma complexidade como os jurua criam. Complexidade
s existe porque se cria, mas, no nosso caso, diferente. Vivemos simplesmente, plantamos, louvamos a deus, temos
uma forma de viver... isso, no h segredo. Hoje em dia, j diferente, at ns povos indgenas j conhecemos o
natal, queremos pular carnaval e essas coisas que no fazem parte do nosso viver. Todas essas coisas existem, mas
foram criadas por eles, no foi deus que colocou como uma forma de crena. Por isso, por mais que no queiramos
mostrar nossos costumes, nossas crenas e nossa cultura, ns temos que mostrar, pois algo verdadeiro, no foi
simplesmente inventado.
Ronaldo Costa Karai Tukumbo
(Tekoa Pira, Araquari/SC)
Eu s queria ressaltar uma questo, uma pequena palavra que eu entendi que ele falou e com a qual eu fico muito
feliz. Ns j estamos sabendo o que est acontecendo, principalmente nas grandes cidades, muito importante ressaltar
essa parte. Por que vocs acham que s onde h sociedades no indgenas que acontecem terremotos? Terremotos
j esto acabando com vrias pessoas no indgenas, mas entre ns, que somos minoria, no acontece nada. Ns
sofremos muito nas mos da sociedade no indgena, e essa questo ns no vamos revelar com a matana como eles
faziam. Ns vamos simplesmente contar para o nosso Pai que Nhanderu. Quantas vezes eles j nos ultrajaram em
vrios sentidos, em vrios aspectos? Assim, aos poucos... As consequncias do trmino da sociedade deles por causa
disso, porque eles fizeram sofrer muito os nossos antepassados e o fazem at hoje, com o nosso pessoal. Eles esto
simplesmente recebendo o castigo, s isso. No h outra explicao. E no vo acabar s eles, vai acabar tudo! No vo
acabar simplesmente as pessoas, vai acabar a gua, a terra, as rvores, tudo, tudo o que voc pode imaginar vai acabar!
Tudo isso que est acontecendo no vai durar muito, j o comeo do fim do mundo, o comeo. Ento, o terremoto no
simplesmente o terremoto, h lava ali dentro, ou seja, com fogo que tudo vai se acabar. o comeo do fim do mundo,
a nica explicao. Tudo isso um castigo mesmo, castigo e tudo vai acabar de novo. Ah, no vai acabar!. Vai acabar
sim! No h outro caminho. a mais pura verdade, ns estamos vendo acontecer isso. Ns no vimos simplesmente
algum contar um boato, ns estamos vendo nas televises, em todos os lugares, o que est acontecendo e ns seremos
hipcritas de negar isso ainda?! O que vocs acham? Destruram tudo! Destruram a mata, a terra, destruram! Eles no
construram, eles destruram. J venderam terra, milhes de milhes. Falando em gua, a gua tambm est acabando.
Existem lugares onde no h mais gua, lugares onde havia, mas j est acabando... H um lugar que vi na televiso onde
no h gua e eles fizeram um poo artesiano. Hoje, at os poos esto secando, no h mais gua, no h mais de onde
vir a gua. Como eles fizeram muitos poos, as terras esto caindo, porque debaixo da terra que eles tiram a gua,
ento, esto caindo! Simplesmente, a terra est acabando junto com a gua. Mesmo eles fazendo de tudo para no faltar
gua e tentar reverter isso, no haver soluo e vai acabar a gua. E por que ns ainda estamos bem? Ns, Guarani, que
no procuramos ter riqueza financeira, no por ns que est acabando, mas por causa deles. Ele, Nhanderu, est dando
suporte para ns porque ns no destrumos, ns no brincamos com a natureza. Ns no destrumos aquilo que eles, os
deuses, construram. Porque, na verdade, a construo do jurua uma destruio que est estragando a construo de
Nhanderu. Mesmo faltando tudo para eles, ns s vamos sentir falta em ltimo caso, quando no houver mais ningum
com gua, a sim, vai faltar para ns tambm. Mas, antes disso, no vai faltar para ns. Hoje, inclusive, nas grandes
cidades j est faltando gua, inclusive em So Paulo. Vocs podem acompanhar tudo isso. Isso j uma consequncia
de tudo o que o homem jurua est destruindo. Isso o castigo que acontecer para sempre, at acabar tudo. E eles no
se questionam do porqu de estar acontecendo tudo isso. O projeto que est na cabea deles ainda de como eles vo
ganhar dinheiro. um projeto que no pensa na gua ou no bem-estar geral do ser humano, mas em dinheiro. O ser
humano foi colocado em segundo plano. Eles esto at projetando criar um trem muito rpido cujas rodas no vo nem
encostar nos trilhos de ferro. Eles j vo construir algo bem mais avanado, eles no pensam nas consequncias. Ento,
eles no sabem nada, no sabem at quando vai existir a Terra. O projeto deles no se preocupa com a Terra, s isso.
H vrias coisas sobre as quais devemos refletir e ainda h vrias coisas para falarmos, mas, como o tempo curto,
ns estamos falando sobre as questes mais visveis e iminentes que estamos vivendo nos tempos atuais. Acho que
isso que eu gostaria de ter falado, isso.
Xerami Augusto da Silva Karai Tataendy
(Tekoa Marangatu, Imaru/SC)
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E, por isso, agora, o erro nunca vai acabar. Cada vez o ser humano estraga mais o mundo: tira mais terra, destri
mais pedras. Aqui na nossa frente, fizeram tanto trabalho: tiraram pedra, pedra, pedra, fizeram brita e essas coisas. Por
isso, cada pedacinho dinheiro para os brancos. Dinheiro no vai acabar. Onde tem morro, terra, quantos milhes que
vai valer s aquele pedao de pedra que tem ali? Quantos milhes que vai alcanar quando tirar tudo aquilo? Como
que vai ficar o dono da empresa? Cada vez vai se aumentando e vai aumentar mais dinheiro de onde a nossa terra.
Essa a era a nossa terra, primeiramente... No era nossa, mas, primeiramente, fizeram essa terra pra ns usarmos.
Somos nativssimos. Ns somos nativos pra usar essa terra. No nossa, mas pra ns usarmos que os Nhanderu
a fizeram. Pra usar. O dono no o dono. O dono o nosso deus. Eles fizeram o mundo, e aqueles so donos. Em
Portugal dizem que so donos: sim, os Nhanderu fizeram pra eles usarem, mas eles no so donos. At agora,
Nhanderu que o dono. Na Espanha, tambm fizeram aquele pedao, e os espanhis vo dizer: ah, meu. Tudo o
que est aqui na Espanha meu, eu mando. Pensa que ele manda, pensa que ele o dono, mas foi apenas pra eles
usarem que eles [os Nhanderu] fizeram. para os espanhis usarem, mas a hora que ele quiser destruir, a hora que
ele quiser fazer alguma coisa, Nhanderu faz, porque dele. No mundo ningum manda, nem presidente manda. Aqui
no Brasil a mesma coisa. Na Argentina, o presidente da Argentina vai dizer que toda a Argentina dele, que ningum
manda mais, que ningum vai passar por cima dele. Mas, quem que vai passar em cima dele? O dono, quem fez!
O prprio dono no entrega tudo pra fazer o que quiser. Fazem, mas s aqui por cima, na superfcie. O prprio dono,
de todos os pases, Nhanderu. E aqui em nossa terra tambm. Apenas os Guarani so aqueles verdadeiros para os
quais os Nhanderu fizeram esta terra, para ns usarmos. para ns que fizeram essa ilha toda, para usar. No somos
donos da terra. Eu tenho vergonha de dizer que ns Guarani somos os donos da terra. apenas para usar, e ns temos
mais direito que outras pessoas, porque ns somos naturais daqui. Os Nhanderu fizeram e deixaram aqui pra usar essa
terra. Mas pra usar; no somos donos. assim que a minha sabedoria.
Por que ns Guarani, desde 1970, estamos sem terra? Ns estamos vivendo embaixo da ponte, na beira da
estrada; em todas as partes. Ns vivemos igual que ciganos. Mas antigamente, em 1970, 1975, havia mais direito
ainda. Em qualquer lugar que chegvamos o prefeito dizia: deixa, ali tem lugarzinho pro Guarani ficar, deixa ficar.
A tratava, dava uma comidinha. Mas, da pra frente, depois dos anos 80, a j era diferente. No podamos ficar mais
na estrada, dentro da cidade, do municpio. Tudo era proibido. A, ns j sofremos. Antigamente, no. Podamos
chegar em qualquer cidade e nos tratavam bem, nos ajudavam. Se tem lugarzinho, podamos ficar l. O prefeito
mesmo era assim. , eles tm direito, so Guarani. Tinha mais terra, ento, dava pra ficar l. Podamos ficar trs ou
quatro meses e, se quisermos, at mais. Davam uma comidinha... Antigamente, os brancos mesmo tinham o corao
limpo ainda. Agora, eles estudam mais e, quando eles tiveram mais estudo, piorou pra ns. Eles no queriam saber
mais, no queriam conversar mais com os Guarani. Pensavam: ah, esses Guarani no valem nada, esses Guarani,
no pode falar com eles; Guarani nunca para mesmo, fica caminhando pra l e pra c, no podemos aceitar eles,
etc. Agora est difcil, no podemos mais andar como antigamente. Se eu quero ir daqui at Mbiguau, no d mais
porque a estrada tem muito trnsito; como que vamos caminhar? E onde vamos dormir? Na beira da estrada? No
dormimos igual que antigamente. Ns sofremos. Os brancos dizem: ah, agora os Guarani esto bem, no como
antigamente, que estavam sofrendo. Agora os Governos os tratam bem, mas piorou, pra mim muito pior que
antigamente. Antigamente, ns estvamos muito bem. No tem perigo de nada, podamos caminhar por todo lugar.
Onde tinha morador, podia dormir de lado e ningum se incomodava. Mas agora ningum pode andar a p, dormir
na beira da estrada; tem muito perigo. Muitos perigos. Os brancos, as pessoas so perigosas e tambm a estrada. So
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perigosos os carros tambm, se saem um pouquinho j podem atropelar algum. E as pessoas tm armas, revlveres,
metralhadoras, espingardas. Isso a eu no quero ver. No vou querer comprar carro, no vou pagar caro s pra matar
pessoas, no. O meu carro mesmo vai me matar. S pra isso que eu vou comprar carro? Falaram antigamente que
Guarani foi deixado pra ser pobre. S o mato pra ns, o bichinho pra ns, a natureza pra ns, s isso que a
nossa riqueza. gua a nossa riqueza. Isso a nossa riqueza. Mas, agora, ns perdemos, no temos riqueza mais; ns
perdemos tudo. Agora ns somos pobres. No temos mais nada. Agora, onde ns vamos conseguir riqueza de novo?
Onde? Os brancos, de onde tiram riqueza? De dentro da terra, nas minas, pra fazer ferro, fazer alumnio, todas as
coisas, cimento... Fazer telhas, fazer brasilite, fazer tinta. Tiram. Cada ano fazem carros, o Brasil est cheio de carros,
de onde tiraram tudo? Eles que fizeram? No, natural, tiraram da terra. Limpam os terrenos para achar gasolina, leo
diesel, e essas coisas. Tiram da natureza. Nhanderu deixou tudo, dentro da gua. a nossa terra que deu lucro para
as naes brancas, para fazer cidades mais altas ainda, pra fazer a estrada mais bonita ainda. E pra esclarecer mais, de
onde sai? Os brancos que fizeram? De onde conseguiram fazer? A gua natural. Onde os Nhanderu fizeram a gua
pra esclarecer todo o Brasil cada noite, o dia todo, pra trabalhar as geladeiras, os computadores, todas as coisas.
de nossa terra que tiraram tudo isso. O dinheiro no vai acabar, cada vez tem mais dinheiro. Mas nunca, ns Guarani,
fizemos isso. Eu no vendo nem um pedacinho de pedra, nem um quilo de terra para os brancos. Ns no vamos ter
interesse em tirar ouro. Isso ns j prometemos pra Nhanderu, que disse que no pra fazer isso. Ns cumprimos essa
promessa. Ns Guarani estamos proibidos de mexer com ouro, procurar ouro por a. Pode estar por a, ns sabemos,
mas ns no vamos tirar, no vamos mexer. No pra mexer. No pra ns mesmo que Nhanderu fez isso a. Ns
sabemos, ento, no temos inteno de trabalhar com essas coisas. Nem mexer com outras pedras, pedras azuis,
brancas, vermelhas... Ns vemos, mas no podemos tirar nem pra vender. Todo mundo sabe. Todo mundo repete a
regra que ns temos. Nhanderu determinou pra ns pra no fazer essas coisas e ns temos que cumprir isso. At o fim
do mundo, ns vamos cumprir. assim que a nossa cultura. Todas as coisas, no podemos vender.
No a lei dos brancos que ns vamos fazer, a lei de Nhanderu que ns vamos cumprir. Assim que a nossa
cultura. Os brancos no: a lei dos brasileiros, federal, estadual, pra eles fazerem. O pai da sociedade branca o
Governo, o Presidente, ele que manda tudo, ele que vai fazer as leis. Mas ns, Guarani, no; a lei quem d Nhanderu.
Nhanderu que vai dar a lei pra ns. Ele que diz o que ns no vamos fazer na terra. Eles j fizeram isso antes que
chegassem os brancos aqui. Isso ns j temos tudo. Isso ele j coloca pra ns, pra nossos avs antigos ele deixou, e
ns continuamos.
[...]Ns estamos muito bem. Ns no vamos roubar. Porque temos o corao limpo. Pensamos muito bem. Um dia
que ficar muito apertado, ns vamos chegar l no Prefeito e vamos dizer: ns precisamos de alguma coisinha. Ento,
tem que entender tambm. No vai dizer: ah, mas vocs so preguiosos, vocs no trabalham, no podem falar
essas coisas; tm que conseguir alguma coisinha. Se aprender a nossa cultura, tem que saber respeitar, porque ns
respeitamos. Ns chegamos, vamos pedir alguma coisinha pra comunidade. Poderia fazer, com vontade. Mas vrias
pessoas no entendem essas coisas. Assim que somos ns Guarani.
muito difcil entender a nossa cultura, nossa religio, nossa reza. Tudo isso difcil de entender. muito difcil
mesmo, porque a maioria no vai acreditar. Os padres, at agora... H muitos padres, at em Roma, mas eles no vo
alcanar a nossa [sabedoria]... Aqui, padres do Brasil, da Argentina, vai ser muito difcil, nem governo, nem deputados,
nem cientistas... Nada. difcil. Mas, mesmo assim, ns vamos continuando, no vai terminar nossa reza, nossa cultura,
JURUA KUERY OJOKO NHANDERAPE | Os jurua dificultam nossos caminhos
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nossa lngua. Difcil... No vo conseguir. Mesmo milhes de pessoas lutando, querendo acabar com a nossa lngua,
nossa cultura, nossa reza, no conseguiram. Isso no vai terminar, porque, apesar de sermos pouquinhas pessoas
guarani, nunca vo conseguir. Nunca. Um dia Nhanderu vai resolver terminar este mundo, mas, antes disso, no vo
conseguir terminar com a nossa sabedoria, nunca. Se Nhanderu faz outro mundo de novo, outros Guarani, outros
brancos, vai ser outro, vai ser diferente. Mas este agora que Nhanderu colocou pra ns, ningum vai tirar. Quer tirar
todo o nosso direito? No vai tirar. Quer tirar toda a nossa lngua? No vai tirar. Quer tirar toda a nossa reza? No vai
conseguir tirar, no vai sair. Concretamente, Nhanderu deixou pra ns e no vo conseguir. Eu falei certinho, porque
no vo conseguir, absolutamente. Eu mesmo vou falar com Deputado Federal, com padre de Roma. Podem vir falar
comigo, no vo conseguir nunca.
A gente faz o trabalho pra ele, lembrando dele, mostrando a lgrima pra ele, pedindo pra ele fora. O trabalho que
ele quer isso a. Unicamente ns, pessoas pobres, fizemos isso. importante. Atravs disso, a gente ganha nossa
vida, a sade. Ele que vai dar a sade pra ns. No dinheiro, no capital que d a sade pra ns. Nhanderu que d
a sade pra ns. Por isso, Nhanderu que manda. Essa terra dele, nascente, mar, praia, tudo dele. A hora que quiser,
vai fazer alguma coisa. Porque ningum paga: Governo no paga, o Presidente no paga, Naes, centos de naes
no mundo, no pagam nem um tosto pra Nhanderu. Quem fez o mundo? Ele que fez. Ibama no faz nenhum p de
rvore; nada. Quais bichinhos que eles fizeram? No fizeram nada. Que pssaros que o Ibama e a Fatma fizeram?
Nenhum! Aonde que fizeram nascente? Em lugar nenhum! Onde que fizeram nascentes os empresrios mais ricos do
mundo? Ningum faz. A que t. No mundo, h milhes de naes, de outros pases... No so os americanos que fazem
o mundo pra morar. No foram os alemes que fizeram o mundo, que fizeram a Alemanha. No foram os japoneses
que fizeram o mundo; eles tm muito dinheiro, mas eles no conseguem fazer o mundo, no fazem nem um pinguinho
de gua. De onde sai o dinheiro? Sai da terra. De onde que conseguem o necessrio pra viver? O que d para os povos,
naes, para todo mundo, para viver, para comer, para beber gua? De onde que saem as plantas? Da terra, atravs
dos Nhanderu que botaram a terra para levantar as plantaes, para comer carne, para fazer tantas fazendas. Ser que
so os ricos que fazem essas coisas? Se Nhanderu no tivesse criado o mundo, de onde iam conseguir pra criar gado?
Se no tivessem feito o mundo, como que iam andar os carros? No iam andar. Se Nhanderu no tivesse deixado
petrleo e essas coisas, ser que os carros iam andar? De onde conseguimos? Ser que os brancos que conseguiram,
que fizeram essas coisas? Pra fazer gasolina e todas essas coisas, Nhanderu que deixou. Por que o avio subiu voando?
Nhanderu que deixou pra carregar, pra andar. Ele tem amor por todas as naes, mas as naes que no tm [amor],
as naes que no estavam sabendo. Os mais pobres - coitados dos Guarani no so enxergados. Ficam jogados
como bichos, desde o comeo at agora. No so considerados como gente. Por isso, desde 1500, quando chegaram,
os brancos os tratavam como bichos, os mataram e, at agora, nos tratam como crianas, a ns Guarani, como se no
tivssemos sabedoria. Porque no est na escrita e, a, no vo saber nunca.
Xerami Timoteo Oliveira Karai Tataendy
(Tekoa Itanhaen, Biguau/SC)
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MBYA REKO
O modo de ser Guarani Mbya
No mundo Guarani s tem trs tipos de lei, so trs tipos de coisas que tm que ser
mantidas, que temos que continuar levando pra frente. A palavra certa seria orereko,
nhandereko (nosso sistema, nosso costumes). Na verdade, essas trs j so muitas. [...]
Primeiro vem Yvy (a Terra) junto com kaaguy (a mata). Depois vem o xerami (liderana
espiritual). A terceira o xondaro (guardies). Xondaro kuery cuidam do que est em volta. O
xondaro vai se concentrar para ajudar o xerami, para ter fora.
A primeira coisa que vem no estudo, o mais importante de tudo, a Terra. Se no tiver
a Terra, onde que vamos morar? E o jurua (no indgena), onde que vai morar? A Terra
sagrada, no pode ser estragada. E nem a mata. Porque quando o Sol vem muito quente, o
aquecimento, como que fica a Terra? Toda rachada, os rios secos. Pra no acontecer, tem
que segurar a mata em cima da Terra. Mas jurua no sabe disso. Qual o sangue da Terra?
Ningum sabe disso. Porque na Terra tem quatro (Nhanderu) que trabalham juntos. Por isso
que a Terra fica firme. uma coisa bem sria. Por isso que eu briguei semana passada com
os jurua tambm. Disse a eles: se a terra no estivesse aqui no mundo, voc ia morar onde?
Na gua? At pode fazer isso, construir uma casa de tbua em cima da gua. Mas, onde
que vai arrumar tbua para fazer a casa? Com pedra no vai fazer uma casa em cima da gua.
E mesmo com uma casa construda em cima da gua, vem um vento e a derruba. No tem
segurana.
O que os xerami esto falando aqui, uma histria contada muito tempo atrs.
Ronaldo Costa Karai Tukumbo
(Tekoa Pira, Araquari/SC)
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azuis, vermelhas, todas com a roupa bem bonitinha. Mas a gente no v. Cada
fruta, cada pezinho tem esprito que est olhando sempre e, por isso, que est
crescendo e florescendo, sempre com sade. Essas arvorezinhas pequenas so
a mesma coisa. Todas tm esprito. Sem ordem, sem permisso, no poderia
chegar, cortar, tirar a folha, tirar a raiz, tirar a casca. Tudo isso a gente machuca,
elas sentem igual que ns. Por isso que ns respeitamos muito a natureza,
qualquer pedrinha, em qualquer lugar, pode ser pequenininha, mas quantos
anos ficou ali? Pode ser 3.000, 4.000 anos. Neste mundo, o lugar daquela
pedrinha ali, no se pode tirar, deixa ela ali. Se tirar ela, tira a casa, o seu
lugar prprio, ns vamos jog-la em um lugar que ela no gosta, a erra para o
esprito. Todas essas coisinhas ns temos que saber. A nossa cultura isso. No
pode tirar, no pode brincar, no pode matar peixinho pequenininho, no pra
comer. Ento, deixa. Deixa viver com alegria, no pode tirar. Para que matar?
Deixa viver tranquilo ali, porque aquele o lugar dele, a casa dele, o espao dele.
Tudo isso a gente sabe. E tambm onde o passarinho tem ninho, a cada ano ele
usa, no podemos tir-lo dali. Pra que ns vamos tir-lo de onde ele se criou
a cada ano? Ele no vai abandonar o ninho, ele no esquece, porque aquele
j o lugar pra criar, tipo uma casinha dele. Ento, pra respeitar todas essas
coisas. E tambm: pra que matar o passarinho? No vale pra comer, no d
pra fazer almoo, ento, no adianta. Deixa viver com tranquilidade. E tambm
ns no podemos prender passarinho. Pra que prender passarinho? Quem vai
gostar assim? Ns vivemos com tranquilidade, ficamos contentes andando por
toda parte. O passarinho tambm vai andar por toda parte, vai dar uma volta,
vai encontrar a comidinha, a cada dia. E ns vamos coloc-lo na gaiola trs ou
quatro anos? O que que vai pensar o esprito? Tem que comparar conosco.
Se ficarmos presos, ser que vamos gostar, que vamos ficar contentes? Ento, o
passarinho tambm sente igual que ns, sofre muito. Por isso que Guarani no
tem inteno de pegar pssaros e enfiar em gaiolas pra colocar por qualquer
parte. No vai aparecer assim na nossa aldeia. Mas eu vejo em todo canto na
cidade, vejo todo tipo de animais: javali, anta, quati, paca, cutia, dentro da
gaiola, num espao onde colocam comida pra eles. Antigamente, ns (Guarani)
no comamos nem sal, mas, agora, at paca, cutia comem po, banana, ma,
alface, comida cozida. Hoje tudo diferente, igual acontece com ns.
Xerami Timoteo Oliveira Karai Tataendy
(Tekoa Itanhaen, Biguau/SC)
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Eu vou contar algo sobre uma pintura corporal, seria importante vocs conseguirem
colocar essa parte no trabalho. Isto eu vou contar, tudo que est ligado a essa pintura
importante. Quem conhece e sabe explicar melhor essa questo so os xerami, aqueles que
so conhecedores mesmo. De todo modo, h uma fase da adolescncia na qual nossas vozes
comeam a ficar mais grossas. Nessa fase, os espritos maus ficam atentos em ns, ento,
devemos tomar cuidado e no cometer erros. Nessa fase, fcil para um adolescente contrair
coisas ruins. Nesses casos que eles utilizavam a tintura chamada de yxy, que passava nos
pulsos e na cara para se prevenir dessas coisas. O yxy extrado do mel. Quando tiramos
mel, h uma parte que yxy. H uma parte do mel que devemos misturar com cip milongo.
S assim vocs vo entender, quando falo cip milongo, mas ns falamos karuguapo. Essa
tintura serve tanto para meninos quanto para meninas, como se fosse um remdio mesmo.
Isso sempre deve ser utilizado. algo nosso mesmo. No se trata simplesmente de pintar por
pintar, h uma explicao. Os povos de antigamente utilizavam muito isso (pinturas corporais),
mas de formas diferentes tambm. Outros povos indgenas se identificavam s pela pintura.
Atravs dessas tintas, eles identificavam se a pessoa era parente ou no. So as meninas
que fazem as pinturas nos meninos. O karugua sempre passado nas articulaes, no lugar
onde se sente dor onde as meninas passam esse remdio. Isso utilizado tambm contra
a preguia.
Antigamente, as aldeias eram longe da cidade. Quando tinha uma perto, levvamos quatro
horas para chegar colnia. Estando no mato, ns no precisvamos sair a cada dois ou trs
dias para ir cidade. Tinha sempre um Karai, que era o cacique. Cada dia, de manh cedo,
tnhamos que visitar ele. Se ele dissesse que aquele no era dia de sair, avisava gurizada que
tinha que ficar por ali. Por qu? Porque ele sabia que alguma coisa poderia acontecer. Ento,
ningum saia para ir caar, pescar, para ir no mato ou na cidade. E tambm a doena nunca
chegava. Por causa do paj que estava rezando forte, de verdade. Por isso que as crianas, os
velhos e os adultos, mulheres e homens, no ficavam doentes. S pegavam alguma gripe de
vez em quando.
Xerami Augusto da Silva Karai Tataendy
(Tekoa Marangatu, Imaru/SC)
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Eu ainda uso o tambe (veste tradicional dos Mbya). Mas, como disse a minha mulher,
nunca vou mostrar, s vou usar quando quiser, e no pra filmar, ou fazer fotos. Igual o tukumbo.
Em outras aldeias tambm tem, s que difcil a gente ver. Eu no vou mostrar, porque se
for mostrar e usar aqui neste momento, em que vocs esto presentes com o gravador e a
cmera, isso pode estragar tudo, porque muito sagrado. Ns temos que valorizar muito
o tukumbo. No para usar em qualquer lugar, ou s pra brincadeira. Antigamente, os
Nhanderu usavam pra bater nos espritos do mal [nhee vai].
Antigamente era assim. Eles acreditavam em Nhanderu dessa forma. No falavam s por
falar, acreditavam mesmo. Ele deu servio pra ns. Para dar fora, para saber como descobrir
os nomes. Antes de receber o nome, quando as crianas ficam doentes, o onhemboery vae
(aquele que revela o nome) d o nome e, com esse nome, as crianas ficam felizes e, ento,
saram das doenas. [...] Como tem que cuidar da sade? Isso eles sabiam antigamente.
Hoje, leva na cidade, busca remdio, mas devia levar primeiro no opitai vae [aquele que
fuma, rezador]. Hoje acontece isso porque estamos mais perto da cidade. Antigamente, eles
acreditavam primeiro em Nhanderu. Quando tem Opy, vo l ver o que est acontecendo,
o que tem que ser feito. Nhanderu vai escolher quem vai ser o Karai, o onhemboery vae.
Nhanderu mesmo que vai contar, passando a informao para o onhemboery vae. Se
Nhanderu no fala, ele no vai saber. [...]
Ns estamos apenas aprendendo ainda. O xondaro tambm para cuidar da aldeia, mas
nem todos podem ser xondaro, porque, quando o Nhanderu envia algum para esta Terra, j
manda com a sua funo, por isso no qualquer um que veio para ser xondaro mesmo.
atravs do Karai que vo saber quem vai ser o xondaro.
Xerami Aristides da Silva Karai
(Tekoa Tarum Mirim, Araquari/SC)
Quando as crianas esto inquietas porque tem alguma coisa de errado ou sentem
alguma coisa. Para sabermos o que est acontecendo, a gente precisa levar a criana na Opy
para o xerami e xejaryi espalharem a fumaa por cima dela. Sempre que as crianas esto
assim precisa levar na Opy e, assim, o xerami e xejaryi falam para os pais o que a criana
sente, porque quando vem o nhee por alguns pais dizem que no filho deles. O nhee da
criana sabe e, quando cresce, essa palavra deixa ele triste, porque ele no quer ouvir essas
palavras. Sobre tudo isso falam na Opy. Quando a mulher est grvida, no podemos falar
essas coisas e, assim, quando a criana nascer vai ficar feliz e, quando cresce, vai viver feliz.
Porque a criana sabe que tudo est certo e, por isso, vive bem.
Mesmo antes de nascer, ns no podemos falar mal, dizer no meu filho, ficar brigando,
separar. Tudo isso deixa a criana triste, porque a criana vem da terra de Nhanderu e, por
isso, devemos cuidar bem. As minhas avs falavam: quando vocs estiverem grvidas no
podem ter maldade, assim, a criana vai ficar alegre e feliz e, se vocs fizerem coisas erradas,
no fica bem para a criana, ela no vai crescer. A gente precisa ficar alegre, pedir para
Nhanderu com todo o amor por essas crianas que esto brincando. Elas esto felizes porque
os pais pediram para Nhanderu com todo o amor para ele cuidar dos filhos.
Mesmo quando as crianas esto maiores, e j comeam a andar, no podemos fazer
coisas erradas, pois elas sabem de tudo. Se agente acorda e j comea a brigar e a fazer coisas
erradas, as crianas ficam tristes e sem vontade de brincar. E quando eles crescem e tm uns
9 ou 10 anos, ainda sentem a tristeza e falecem. Fomos ns, os pais, que erramos. Mas tem
algumas crianas que crescem e ficam adultos, que aguentam e tm fora para seguir, porque
eles dizem pra si mesmos: ainda que os meus pais estejam fazendo coisas erradas, eu vou
viver, vou viver a minha vida. Assim, eles ficam adultos, ficam velhinhos. Tem tudo isso pra
gente conversar.
As crianas que nhanemombaraete, que nos fortalecem. pelas as crianas que o mundo
ainda no acabou. Nhanderu vai acabar com a Terra, mas, para isso acontecer, Nhanderu no
vai mais mandar as crianas para a Terra. Enquanto isso no acontecer, Nhanderu continua
mandando as crianas. So as crianas que nos do fora.
Xejaryi Tereza Djatxuka
(Tekoa Mboapy Pindo, Aracruz/ES)
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OPYI RE
Na Casa de Rezas
O nosso pai e nossa me, l de cima, nunca morrero e por isso que ns temos que
sempre nos lembrar deles. A nossa me olha l de cima o nosso corpo, olha tudo bem certo,
no tem onde ela no enxerga. Olha tudo pra ver se est certinho. Eu no posso olhar, saber o
que tem no seu corpo, mas o que eu puder fazer pra ajudar a curar, eu vou fazer. [...] Quando
estiver danando e vier aquele calor que alcana o nosso corpo, isso porque Nhanderu est
olhando. Mas se voc no sente calor, se no sente nada, ento, Nhanderu no est olhando
pra voc, no est cuidando de voc.
Xerami Augustinho da Silva Karai Tataendy Oka
(Tekoa Guyrai tapu, Parati/RJ)
Antigamente era assim. Antes de chegar o pessoal, quem estava na aldeia j estava
sabendo que iam chegar. Hoje mesmo j estava sabendo que vocs iam chegar. Eu fiquei sem
dormir. Por qu? Fico muito feliz porque uma pessoa vai chegar pra conversar comigo. Ento,
amanh vou esperar. Sem dormir eu fiquei pedindo; no senti sono. Mas, agora, estou muito
bem. Eu sou assim, posso ficar sem dormir uma semana. Por qu? Nhanderu deu fora pra
mim. Fico sem dormir e fico muito feliz mesmo. Uma hora da madrugada eu peguei o petgua
(cachimbo), e fiquei muito feliz porque os espritos esto todos junto comigo, estamos muito
bem e isso que eu preciso, sempre. Atravs dos espritos do a fora pra mim. A minha
parentada, de longe, sempre cuida de mim. Todos esto olhando para mim. A, eu no tenho
sono e todas as coisas estou sabendo. Estou alegre mesmo, porque Nhanderu sempre fica
alegre mesmo. Nunca chega mal pra ele, e ns temos que ser assim tambm. Eu fico muito
feliz.
Toike mbaraete mbya guaxu nhandere | Deixe a fora e a coragem entrar dentro de ns
Ojapukai oreru mirim, orexy mirim, Opy i re. Na Opy, clamamos para nossos
pais Mirim e nossas mes Mirim. Quando entramos na Opy, pedimos aos Nhanderu Mirim que iluminem pra ns o caminho certo. Nhanderu Mirim kuery do
esse conhecimento pra aqueles que vo na Opy oporandu (perguntar), oporai
(cantar), oendu (ouvir).
Assim Nhanderu. Por isso, agradeo a Nhanderu. Nhanderu confia em ns e ele sempre
vai proteger cada lugar que tem aldeia guarani. Onde tem gente que confia nele, Nhanderu vai
proteger. Mas onde no confiam Nhanderu no vai proteger. Eu confio em Nhanderu, sempre
pedi pra Nhanderu, falei com Nhanderu. Sempre. Por isso mesmo eu no saio daqui. s vezes
eu queria sair, mas Nhanderu diz: no, continua a, no deixa os teus parentes. A, eu vou
continuar. Atravs de Nhanderu que eu continuo morando aqui.
Xerami Timoteo Oliveira Karai Tataendy
(Tekoa Itanhaen, Biguau/SC)
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No jurua exatamente no d para fazer trabalho. Em alguns casos, h alguns xerami que
abrem uma exceo, mas esses xerami so aprendizes de Nhanderu Jekupe e vo realizando
leves trabalhos. Realmente, eles podem fazer leves trabalhos, mas no vo fazer aquele
trabalho pesado de materializar a doena e tirar da pessoa, mas sim um trabalho de equilbrio,
de descer a fumaa ali e deixar a pessoa tranquila. Isso eu acredito que eles podem fazer sim,
s os xerami que so estudados por Jekupe. Nhanderu Tenonde, o primeiro de todos, ele
tambm pode pegar algum para ensinar, mas esse no vai curar aquele que errou, mesmo
entre os Guarani. o mais rgido. Ele o que fica mais distante de ns. J o Nhanderu Tup e
Nhanderu Karai, os xerami que estudam com eles fazem trabalho com a pessoa ainda que
seja pecadora, mas que seja guarani. Nos mestios, acredito que alguns abrem exceo, para
equilibrar a energia, mas no fazem trabalho de cura mesmo de tirar a doena, s jogam a
fumaa de longe. J o Jekupe totalmente diferente, j aceita mais, ele faz trabalho, nem que
seja pesado, com pessoa mestia. Ele no escolhe, somente aos jurua de verdade ele se nega.
Porque Jekupe, ao mesmo tempo em que um deus, um guerreiro. Ele trabalha em volta da
casa de Nhanderu mesmo. Ele praticamente um lder guerreiro.
Pra Nhanderu cuidar bem, cada um tem que cuidar de seu corpo.
verdade, vocs tambm fazem assim. Os nhee cuidam muito
daquele para quem d o nome. Cada tarde, eles se juntam na Opy,
cuidando da Opy e daquele que descobriu o nome deles. Quando
tem um doente, ele levado na Opy. Os nhee, mesmo de outros
lugares, vm dar fora pra levantar ele de novo. Tem algumas vezes
que o Karai (paj, liderana espiritual) parece estar fraco, sem fora,
sem coragem. Isso porque os nhee que esto com ele vo pra outro
lugar, porque esto precisando deles l, porque tem um doente.
Nhanderu manda os nhee que esto na Terra pra aquele que est
doente, precisando, so os nossos nhee que cuidam de um doente.
Quando a pessoa precisa, quando sente uma dor, ele vai ver o
Karai que tira do corpo dessa pessoa aquilo que o est incomodando,
como pequenas pedrinhas. Ele tira com o petgua (cachimbo). Mas
o doente tem que respeitar esse Karai, assim como o Karai tem que
respeitar o doente, no pode escolher. O Karai no pode cuidar mais
de um porque mais bonito ou bonita, porque gosta mais. Ele tem
que cuidar de todos, igual. Eu ouvi isso dos antigos, dos xerami de
antigamente.
Os instrumentos da Opy
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Popyguai (instrumento formado por duas varetinhas de madeira) nosso mesmo, do Guarani Mbya, desde quando
Nhanderu nos gerou. Eles que nos passaram isso, para ns utilizarmos mesmo. Os xerami, os nossos antepassados,
falam que, quando ns utilizamos esse popyguai dentro da casa de reza, afastam-se os maus espritos. Esse instrumento
sempre acompanha o petgua (cachimbo). Antigamente, ns tambm fazamos flechas, muitas, e levvamos na Opy
tambm para espantar espritos do mal que estivessem rodeando a Opy. O tukumbo tambm servia da mesma forma.
Xerami Marcolino da Silva - Karai Tataendy Marangatu
(Tekoa Araai, Piraquara/PR)
Quando ns vamos pra Opy e olhamos o takuapu (instrumento musical de bambu), o popygua, o mbaraka (violo),
a raveka (violino), sabemos que cada um deles significa alguma coisa. Tm muito significado. O takuapu acompanha
o nhee das mulheres. O popygua dos homens. Quando os Tup kuery pegam o popygua, a gente ouve os troves.
Xerami Felix Karai Brizola Karai Mirim
(Tekoa Ara Ovy, Maric/RJ)
[...] Eu ouvi o meu pai, eu ouvi o meu av e por isso que, at hoje, eu me levanto com o mbaraka (violo), por
isso que tenho fora. Eu acreditei, levantei e pedi para Nhanderu me dar um canto. Porque Nhanderu que escuta os
nossos pedidos e nos entrega os cantos. Se eles no nos ensinassem, ningum ia saber cantar na Opy. So os Nhanderu
que contam pra ns. Nhanderu que nos ensina. No na Bblia que ns aprendemos. Ns nunca perdemos o nosso
conhecimento, o nosso saber, que fica nas nossas cabeas. Ns temos a nossa Bblia na cabea, nos ouvidos.
A Opy no como a farmcia dos brancos. O nosso remdio verdadeiro o nosso petgua, takuapu remdio,
mbaraka mirim (chocalho) remdio, popyguai ajuda a curar. O avaxi ete (milho) que ns temos aqui sagrado
mesmo. Sem Nhanderu no poderamos ter este milho, s aquele outro [o dos no indgenas]. Por isso que ele tem
que ser respeitado, tem que usar bem, no deixar estragar, porque sagrado, porque Nhanderu que deu pra ns.
Xerami Augustinho da Silva Karai Tataendy Oka
(Tekoa Guyrai tapu, Parati/RJ)
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Quando algum fala na Opy, temos que ouvir, pois a pessoa est falando a verdade porque
Nhanderu iluminou pra ela falar.
Ns temos que ajudar as pessoas. Se vemos que o xerami est trabalhando, temos que
chegar e oferecer a nossa ajuda. Se fizermos isso, nhanenhee kuery (os nossos nhee) ficam
felizes. Se voc no ajuda as pessoas, os nhee kuery vo demorar mais pra te ajudar.
Em todo lugar tem lei. Aqui, dentro da Opy, as mulheres tm o seu lugar prprio, e os
homens tambm. Quando esto dentro da Opy, j no podem conversar, rir, brincar. Essa
no uma lei ruim. A gente no pode passar perfume, creme no cabelo, no corpo, conversar,
fazer cafun no outro. A gente no pode usar essas coisas por respeito a Nhanderu, porque
ele no usa. Se a gente quer sade, a gente no deve usar. Todos xerami ou xejaryi (avs)
orientam, explicam por que a gente no pode usar. Os jovens podem pensar: ah, eu no vou
mais na Opy, porque tem essa regra. Mas no foram eles que escolheram, Nhanderu que
quer assim.
Quando eu entro na Opy, cumprimento. Pra entrar na Opy tem que cumprimentar. Fora da
Opy, a gente no pode fazer muito barulho, baguna. Quem quiser ficar fora pode ficar, mas
tem que ficar quieto. Mesmo quem fica em sua casa, fica concentrado, como se estivesse na
Opy. Nhanderu v todo mundo; ningum se esconde de Nhanderu. Se quem est na Opy reza,
e a gente faz alguma coisa errada, Nhanderu est vendo. Quando os mais velhos entram na
Opy, se quiserem fechar a porta, podem fechar, porque isso j da regra, em todo lugar. [...]
Quando o xerami est se levantando pra rezar, a porta tem que ficar fechada, no pode abrir
mais. [...]Na Opy, a gente guarda o corpo pra no acontecer alguma coisa ruim fora da Opy.
Por isso que temos que respeitar a hora da Opy. Quando os mais velhos falam isso, porque
esto cuidando de todo mundo, de cada um. Os mais jovens tm que fazer os trabalhos dos
xondaro: pegar lenha e as outras coisas, porque os mais velhos tm que ficar descansados,
pra fazer a reza. Assim, as xejaryi (avs) no podem ficar na cozinha, socar milho no pilo.
pra isso que tm as netas e as filhas, pra cuidar das xejaryi e das mes. Os meninos ajudam os
avs. Antigamente, os mais velhos nunca lavavam a roupa; quando a neta via a av indo lavar
roupa ela j pegava pra lavar. O costume do Guarani assim: o mais jovem tem que ajudar o
mais velho. O jovem tem que fazer o fogo de manh, porque o velho j no pode mais fazer
isso. No por preguia da pessoa mais velha, porque ela no pode mais ir na cozinha,
cozinhar. Pra isso que Nhanderu mandou a filha, a neta, aqui na Terra, pra cuidar da me e da
av. Por isso estou falando.
Xerami Timoteo Oliveira Karai Tataendy
(Tekoa Itanhaen, Biguau/SC)
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Minhas netas, que esto aqui na Opy: vou falar agora pra vocs. Eu sempre falo pra vocs do Nhemongarai,
lembrem-se disso: no sou s eu que falo, todos falam do Nhemongarai. Agora sabemos como e por que ns estamos
vendo o que os nossos xerami falam na Opy: porque eles se lembram de como os seus prprios xerami e xejaryi
falavam. Todos vimos, todos escutamos e agora vocs tambm vo lembrar. Ns sempre falamos, pra vocs se
lembrarem. [...] Agora vocs esto vendo, agora vocs vo acreditar. Lembrem-se, coloquem na cabea, coloquem
no corao. Este Nhemongarai bom, dura muito, no como uma festa. o caminho comprido (infinito), tape puku.
Enquanto a gente cresce, j vai sabendo alguma coisa. Isso acontece, ento, desde criana. s vezes, a pessoa
sonha bonito. O que voc vai fazer? O que est vendo? Ento, essa coisa para guardar, a pessoa no pode esquecer.
Nhanderu que mostra. Desde que somos pequenos sonhamos. [...] Todos os nhee se fortalecem juntos. Ns, Guarani,
fazemos isso, em todas as aldeias, atravs disso obtemos a coragem para fazer qualquer coisa: o trabalho, a fala, etc.
Isto assim para todas as populaes Guarani, no Paraguai, na Argentina, no Brasil, em todos os lugares. Kovae ma
nhaiktev i! Desse modo, nos ajudamos!
Quando a gente anda pelo tape puku, a gente no cai, no cansa. No tem nada ruim no tape puku, no tem sujeira
(kya), porque o caminho de Nhanderu. Quando o pessoal fica no tape japuai, vai jogar bola, vai pra festa, a gente
pensa que eles no vo morrer, porque eles so jovens, mas eles podem morrer sim. Vrios j morreram pelo tape
japuai. Era pra ele continuar, mas no continuou porque andou pelo tape japuai. Tape puku esse aqui: Nhanerami
ropy, nhanejaryi rataypyi, a Opy de nossos avs, os fogos de nossas avs.
Ns, Guarani, de manh e noite, para cada detalhe de nossas vidas, pedimos coragem aos nossos nhe. Em
todas as aldeias estamos pedindo aos nossos nhe. Atravs disso vamos obter a coragem (pya guaxu). No vamos
desistir por qualquer motivo porque temos coragem e firmeza. E isso depende de Nhanderu, pois atravs dele
que obtemos a firmeza.
Tenonder futuro. Se vocs continuarem indo na Opy, vocs vo ter um futuro muito, muito longo. Nhanderu
rape, o caminho de Nhanderu muito longo e bem estreito. [...] Olhem para os mais velhos, vejam como os xerami
e as xejaryi vo viver mais o que a gente vai fazer pra eles viverem mais, pra eles aguentarem as coisas? Pra viverem
mais, eles tm que ir pra Opy. Ser que vocs querem viver por muitos anos? Assim que eu falo aos jovens.
Cantem, minhas netas! Depois do coral, algum vai rezar. Amanh todos ns vamos voltar para as nossas aldeias.
S nosso corpo vai viajar. Os nossos espritos vo continuar todos juntos. Nhee kuery no escolhem a quem cuidar;
cuidam de todos ns. Pra vocs saberem mesmo o que ns, mais velhos, falamos, difcil. A gente usa algumas
palavras que vocs no entendem mais, no conhecem. Eu uso a palavra de antigamente. Agora estou usando palavras
mais novas, pra vocs entenderem, mas quando estou com os mais velhos, eu uso a fala de antigamente. Ayvu mar
ey napendukuaai (vocs no conhecem mais a palavra eterna). Eu falo ayvu mar ey atravs da minha reza. Eu dou
orientao porque Nhanderu Tup iluminou. Quando falo dessa forma, aipo ekomombeu, falo sobre mim mesmo,
conto pra Nhanderu do nhee de todo mundo. Quero saber por que aconteceu isso, o que vai acontecer com a pessoa.
Eu conto tudo pra Nhanderu para, atravs da reza dele, passar informao. [...] Quando falo com Nhanderu, ayvu mar
ey, diferente da linguagem aqui da Terra.
Xerami Felix Karai Brizola Karai Mirim
(Tekoa Ara Ovy, Maric/RJ)
Tomo por i! Coloca! Por todas as aldeias, Nhanderu vai colocando no pensamento de quem precisa, de quem no
esquece, a sabedoria que lhe necessria. Ns fortalecemos muito Nhanderu, e nos fortalecemos tambm, e, assim, os
tamo (mais velhos, avs) nos agradecem. Esse o modo de ser do Guarani. Pode morar unicamente uma pessoa em uma
aldeia, mas ele vai pedir fora para todas as aldeias, para os nhe que esto no cu, para os nhe dos parentes e, assim, vai
se fortalecer. Essa a nossa cultura mesmo. Somos todos assim. Cada um fortalece a si mesmo, pedindo sabedoria.
Nhanderu kovae hoanga rakae nhandevype! Nhanderu mesmo predestinou para a gente. Nhanderu mesmo
colocou tudo pra ns. Os nossos cnticos (tarova, jepapa mirim) no somos ns que criamos, atravs da escrita.
Nhanderu manda do cu. Aquele que reza bem ouve os cantos, que chegam ao corao dele. Ento, ele canta. Nhanderu
d pra ele poder rezar. Atravs disso a gente obtm a fora e, mesmo que tenhamos que enfrentar muitas dificuldades,
nos mantemos firmes. pra isso que Nhanderu faz algum yvyraija (liderana espiritual), alguma kunha karai (liderana
espiritual feminina) ouvir o canto. E eles agradecem muito por isso. Aguyjevete, dizem. para agradecer que eles
pronunciam essas palavras.
isso que ns queremos. Os tarova (cnticos) fortalecem todos. A pessoa que reza para Nhanderu, quando ela se
levanta e faz soar o mbaraka (violo), ela olha para cima, e presta ateno, se concentrando (ojapixaka) para poder
ouvir. Nosso ouvido tem que se dirigir ao alto e o nosso corao tambm. Eu tambm vou rezar para Nhanderu, diz
o tamo.
Rezamos para Nhanderu. Nhanderu quem nos manda aqui na Terra. Ento, quando a gente se levanta pra cantar,
ele que est vendo. Dentro da Opy ou em qualquer lugar. pra isso que ns cantamos. No podemos nos envergonhar.
Se uma pessoa vai a outra aldeia e entra na Opy, ele pode ouvir um canto que ainda no conhece, que no sabe cantar.
Mas, se ele confiar e se fortalecer mesmo, vai acompanhar qualquer canto em qualquer aldeia. O canto foi Nhanderu
que deu, para todas as aldeias.
[...] Todas as pessoas, em cada aldeia, que entram na Opy rezam pedindo para todas as aldeias que se espalham
pela Yvyrupa. necessrio lembrar e pedir, pois atravs disso que ns, Guarani, temos fora.
Na Opy, a mulher que pode dar mais fora para os homens. Nhanderu mandou as mulheres na Terra e, para elas,
mais fcil rezar para Nhanderu. Sendo mulher, Nhanderu mesmo vai ensinar mais.
Xerami Joo Silva Vera Mirim
(Tekoa Xapukai/Brakui, Angra dos Reis/RJ)
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Tape Por, o belo caminho, pra levar pra ns. Vamos dizer que o Tape a estrada. Pra ns, Guarani, tem Tape por
e Tape poi, que o caminho grande, largo. O tape poi grande e ruim. Tape por um caminho estreito. Pra levar a
vida bem, isso tape por. Para no misturar o pensamento bom com o pensamento ruim. Por isso que a palavra
muito diferente tape por e tape poi. Nhande jaiko tape por rupi, jaa tape por meme. Ns temos um belo caminho,
vamos pelo belo caminho. Tape por uma vida pra levar.
Tenonde por pensar pra frente, o que mais importante pra ns fazermos. Pensar pra frente, antes de acontecer,
ns vamos encontrar, saber. O que mais importante, o que ns vamos fazer, o que ns no vamos falar, o que ns
vamos falar, o que mais importante pra ns. pra levar pra frente. Pra levar Tenonde por, o bom futuro, ento,
no pode misturar com outras coisas, o pensamento. Tenonde Por pra chegar bem, pra levar a vida bem, a vida
boa, no caminho certo. Tenonde Por pra isso, pra achar o que o mais importante. Porque, pra frente, o que
que vai acontecer? Se voc pensar muito mal, o que vai cair pra voc? Se voc pensa muito bem o que voc quer ver
pra frente, coisas importantes pra voc, voc vai encontrar resultado, vai ver. Se no, voc vai encontrar coisas ruins.
Ento, isso que muito importante saber: antes de acontecer, tem que pensar o que ns vamos levar pra frente.
Tenonde por pra pensar, achar o que mais importante, pra seguir no caminho bom. Tenonde por isso. pra
conseguir, pra ns colocarmos o corao no caminho certo.
assim que continua. Pras pessoas, pra levar o caminho, vai levar at pra sempre, tem que aguentar todas as
coisas. [...] Ento, deixa bem claro sempre. No seu corao, deixa a luz sempre, no deixa apagar. Na nossa cabea
tambm no pode apagar a luz que tinha aqui. Se voc apagar essa luz, j vai pensar outro tipo de coisa, aquela que
no presta. Se no deixa apagar essa luz que tem aqui, voc pensa sempre, no vai esquecer, no vai fazer nenhuma
coisa que no vale. No seu corao tambm tem, no meio dele, luz. Pra pensar. Se apagar, j era. O que voc vai saber?
No vai saber nunca mais. Ento, isso no pode acontecer. assim que a sabedoria do Guarani. Isso a muito
importante, deixar entrar no corao.
Xerami Timoteo Oliveira Karai Tataendy
(Tekoa Itanhaen, Biguau/SC)
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Os caminhos da pesquisa
Ns, pesquisadores do projeto realizado em parceria com a Comisso Guarani Yvyrupa (CGY), o Instituto de
Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN) e o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), caminhamos belamente,
guiados por Nhanderu! A nossa pesquisa foi gerada atravs da nossa prpria caminhada e a nossa caminhada foi
motivada pela pesquisa. Era preciso percorrer as distncias por entre as vrias aldeias onde vivem nhanerami, para
que cada um dos passos que nos trouxe aqui, a estas palavras finais, pudesse acontecer. Durante o ano que durou este
projeto, nosso grupo de pesquisadores era de doze jovens que moravam em aldeias diferentes, ento, para participar
no projeto, era sempre necessrio algum deslocamento.
Decidimos o tema de nossa pesquisa em setembro de 2014 em reunio realizada no Tekoa Marangatu (Imaru/
SC), junto com as lideranas e representantes das comunidades de Santa Catarina e do litoral do Paran envolvidas
no Projeto. Em outubro, no Tekoa Itaty (Palhoa/SC), participamos de um encontro entre jovens e ancies; foi quando
escolhemos as perguntas a serem feitas nas entrevistas para clarear as nossas dvidas e conhecer melhor nossa
histria. Depois disso, conversamos com os xerami e xejaryi em nossas prprias aldeias.
Em dezembro, nosso grupo se reuniu no Tekoa Araai (Piraquara/PR) e selecionamos os assuntos que,
repetidamente, apareciam nas falas e discursos. Em janeiro de 2015, fizemos uma viagem at o Rio de Janeiro, onde
pudemos conversar com os xerami de vrias aldeias da regio. Depois destes movimentos, nos encontramos no
Tekoa Yvya Yvate (So Francisco do Sul/SC) em maro de 2015, onde pudemos desenhar o mapa de nossa caminhada/
pesquisa com o intuito de nos servir de guia para o livro. Depois disto, nos reunimos, em grupos, para traduzir as
falas dos entrevistados, pois todas (com exceo de algumas falas de Timteo e de Augusto) foram gravadas em
Guarani. Por fim, montamos o quebra-cabeas que tomou a forma deste livro, no Tekoa Mymba Roka (Biguau/SC),
no comeo de setembro deste ano. Durante a pesquisa, tambm estivemos aldeias guarani em So Paulo, Esprito
Santo, Rio Grande do Sul, no Paraguai e na Argentina. Foi nestas visitas que filmamos a maior parte das entrevistas que
aparecem no documentrio que acompanha este livro.
Em cada lugar, os mais velhos, com brilho nos olhos, coragem na palavra e aperto no corao, iam desvelando os
sentidos de uma histria muito antiga, que fala de um pacto ancestral com a Terra que nos acolhe, Yvyrupa, fundamentado
no que os Nhanderu, que a criaram e nos colocaram nela, determinaram para cada um de ns. E, no entanto, os brancos,
com seu permanente esquecimento e sua incansvel voracidade de progresso, levantam muros sobre ela e sepultam
caminhos to antigos como a prpria Yvyrupa, os caminhos daqueles que alcanaram, verdadeiramente, Yvy Mar ey.
Com a plena certeza de que a nossa memria e a nossa sabedoria resistem, como persistiu o nosso povo, como
permanecem as suas histrias, viemos contar, a cada um de vocs, um pedacinho de nosso legado, na esperana de
que os seus coraes se abram e possam alcanar o entendimento para, assim, nos respeitarem como merecemos.
Por isso, nos esforamos para traduzir, na linguagem escrita, as fortes palavras dos nossos xerami e xejaryi, mesmo
sabendo que elas so incomensurveis e, muitas vezes, intraduzveis. Assim, tambm tivemos que nos esforar para
aprender a lngua do jurua e encontrar palavras para dizer, e escrever, dentro dela, o que sabemos e o que guardamos
em nossos coraes.
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Osmar de Castro
Norberto Martines Kuaray Pa-Pa
Jos Benites
Xerami Timoteo Oliveira Karai Tataendy
Xerami Augusto Da Silva Karai Tataendy
Vincius
94
Ana
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Em mais uma parceria com o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), temos a satisfao de apresentar esta nova
publicao do Programa de Valorizao do Universo Cultural Guarani.
Esses inventrios so produzidos pelo projeto Pesquisadores Guarani no Processo de Transmisso de Saberes e
Preservao do Patrimnio Cultural Guarani, no qual, jovens guarani, em parceria com os xerami (os mais velhos em
sua sabedoria) so os pesquisadores protagonistas do reconhecimento de suas prprias referncias culturais.
Nesse processo de construo coletiva com os Guarani, ressaltamos duas importantes conquistas em 2014: a
inscrio da Lngua Guarani Mbya no Inventrio Nacional da Diversidade lingustica/INDL, reconhecida como Referncia
Cultural do Brasil e o Registro da Tava: Lugar de Referncia do Povo Guarani, Patrimnio Cultural Imaterial do Brasil,
registrado no Livro dos Lugares.
Avanamos na inscrio de polticas participativas do projeto Salvaguarda dos Patrimnios Culturais Imateriais das
Comunidades da Nao Guarani no mbito do Centro Regional para a Salvaguarda do Patrimnio Cultural Imaterial para
Amrica Latina (Crespial/Unesco). A partir do compartilhamento de experincias de salvaguarda e metodologias de
identificao e reconhecimento do Patrimnio Cultural Guarani, desenvolvidas no Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai
e Bolvia, est em curso uma proposta do Iphan, tambm em parceria com o CTI, na qual ser criada a plataforma
Yvyrupa: Cartografia Cultural Guarani Mbya.
A plataforma pretende atender demanda de salvaguarda do modo de viver guarani, intimamente relacionado
ao territrio este, entendido, como territrio livre Yvyrupa. Ela permitir reunir informaes de diferentes fontes e
naturezas em um nico lugar e, assim, servir tanto para a autogesto do patrimnio cultural - pelos prprios Guarani quanto subsidiar aes educativas e de promoo e valorizao de sua cultura em todo o continente.
O Iphan reafirma seu compromisso de continuar essa aliana junto ao povo guarani Guarani no trabalho de
salvaguarda de um Patrimnio Cultural de enorme riqueza e significado, alm das divisas e fronteiras pelo esprito
fraterno da solidria convivncia entre naes e diferenas componentes da nossa extraordinria diversidade.
O Iphan, atravs do Departamento de Patrimnio Imaterial, iniciou a identificao do Patrimnio Cultural Guarani,
em 2004, com o Inventrio Nacional das Referncias Culturais (INRC) da Comunidade Mbya-Guarani no Rio Grande
do Sul. Entre os anos 2009 e 2011, em parceria com a Agncia Espanhola de Cooperao Internacional para o
Desenvolvimento (AECID), o CTI e a Comisso Guarani Yvyrupa (CGY), foi elaborado o INRC do povo Guarani Mbya nas
regies Sul e Sudeste, envolvendo aldeias situadas nos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paran, So Paulo,
Rio de Janeiro e Esprito Santo.
Entre os muitos aspectos que GUATA POR / Belo Caminhar suscita, cabe ressaltar aqueles relacionados sua
concepo: o registro de uma histria que vem sendo perenemente resguardada, vivida e anunciada, entre os Guarani,
com a fora da expresso verbal de seus prprios detentores e avaliadores, os xerami e xejary (ancies e ancis); e o
empenho dos pesquisadores guarani na transcrio e na traduo da riqussima variedade de expresses contidas nos
enunciados, de modo a incluir os jurua (no indgenas) entre os seus leitores.
A busca de palavras em portugus que dessem sentido a conceitos e expresses, muitas vezes intraduzveis, foi
parte relevante da pesquisa. Nos textos eleitos para compor o livro, com todas as ressignificaes possveis, foram
mantidas a cadncia e as maneiras de contar e aconselhar (nhemongueta) dos mestres guarani.
A escolha do Guata Por, como referncia cultural a ser pesquisada, revela a conscincia dos jovens guarani de
que as condies de vida, bem como os contextos atuais de insero dos Tekoa espao onde vivemos de acordo
com o nhandereko (nosso sistema) , esto intimamente vinculados aos acontecimentos relacionados s antigas
caminhadas, principalmente depois da chegada dos jurua.
Percebe-se que os pesquisadores no prescindiram do uso das prprias formas guarani de difuso de conhecimentos.
Ao entrevistar os xerami, as respostas s perguntas por que caminhavam os nossos avs antigos? Por que caminhamos?
Onde paramos? constituram aprendizados e motivaram a criao de caminhos de comunicao com a sociedade no
indgena, para que esta possa compreender e assimilar, nos termos do universo do pensamento e da cincia guarani,
como este povo construiu, passo a passo, sua territorialidade.
GUATA POR / Belo Caminhar se situa no mbito do Programa Nacional do Patrimnio Imaterial (PNPI), criado para
viabilizar aes de identificao, salvaguarda e promoo do Patrimnio Cultural Imaterial (PCI). Seguindo o mesmo
princpio, a Conveno para a salvaguarda do Patrimnio Cultural Imaterial, instituda em 2003 pela Organizao das
Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO), da qual o Brasil signatrio, define como medidas de
salvaguarda aquelas que assegurem a participao das comunidades nas pesquisas, nos processos de revitalizao, nas
formas de transmisso dos saberes, no acesso terra e s espcies naturais.
Nesse sentido, o Guata Por no qual os preceitos do modo de vida guarani e do uso do territrio (Yvyrupa), em
sentido amplo, so preconizados pelos xerami em seus relatos e vivncias fundamenta e constitui a territorialidade
guarani enquanto Patrimnio Cultural que deve ser reconhecido tanto no mbito das aes de salvaguarda, quanto na
esfera das polticas pblicas.
T.T. Catalo
Diretor do Departamento de Patrimnio Imaterial
Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN)
Ministrio da
Cultura
Diante de tantos escritos que foram produzidos sobre a histria da colonizao incidente no territrio guarani,
GUATA POR / Belo Caminhar surge como um contraponto s verses propagadas correntemente. Nas entrelinhas
deste livro, em que experincias e tempos se entrecruzam, ns, jurua, embora presentes, permanecemos calados. As
belas palavras, aqui reunidas, no so s para serem ouvidas, so para fazer pensar.
Em mais uma parceria com o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), temos a satisfao de apresentar esta nova
publicao do Programa de Valorizao do Universo Cultural Guarani.
Esses inventrios so produzidos pelo projeto Pesquisadores Guarani no Processo de Transmisso de Saberes e
Preservao do Patrimnio Cultural Guarani, no qual, jovens guarani, em parceria com os xerami (os mais velhos em
sua sabedoria) so os pesquisadores protagonistas do reconhecimento de suas prprias referncias culturais.
Nesse processo de construo coletiva com os Guarani, ressaltamos duas importantes conquistas em 2014: a
inscrio da Lngua Guarani Mbya no Inventrio Nacional da Diversidade lingustica/INDL, reconhecida como Referncia
Cultural do Brasil e o Registro da Tava: Lugar de Referncia do Povo Guarani, Patrimnio Cultural Imaterial do Brasil,
registrado no Livro dos Lugares.
Avanamos na inscrio de polticas participativas do projeto Salvaguarda dos Patrimnios Culturais Imateriais das
Comunidades da Nao Guarani no mbito do Centro Regional para a Salvaguarda do Patrimnio Cultural Imaterial para
Amrica Latina (Crespial/Unesco). A partir do compartilhamento de experincias de salvaguarda e metodologias de
identificao e reconhecimento do Patrimnio Cultural Guarani, desenvolvidas no Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai
e Bolvia, est em curso uma proposta do Iphan, tambm em parceria com o CTI, na qual ser criada a plataforma
Yvyrupa: Cartografia Cultural Guarani Mbya.
A plataforma pretende atender demanda de salvaguarda do modo de viver guarani, intimamente relacionado
ao territrio este, entendido, como territrio livre Yvyrupa. Ela permitir reunir informaes de diferentes fontes e
naturezas em um nico lugar e, assim, servir tanto para a autogesto do patrimnio cultural - pelos prprios Guarani quanto subsidiar aes educativas e de promoo e valorizao de sua cultura em todo o continente.
O Iphan reafirma seu compromisso de continuar essa aliana junto ao povo guarani Guarani no trabalho de
salvaguarda de um Patrimnio Cultural de enorme riqueza e significado, alm das divisas e fronteiras pelo esprito
fraterno da solidria convivncia entre naes e diferenas componentes da nossa extraordinria diversidade.
O Iphan, atravs do Departamento de Patrimnio Imaterial, iniciou a identificao do Patrimnio Cultural Guarani,
em 2004, com o Inventrio Nacional das Referncias Culturais (INRC) da Comunidade Mbya-Guarani no Rio Grande
do Sul. Entre os anos 2009 e 2011, em parceria com a Agncia Espanhola de Cooperao Internacional para o
Desenvolvimento (AECID), o CTI e a Comisso Guarani Yvyrupa (CGY), foi elaborado o INRC do povo Guarani Mbya nas
regies Sul e Sudeste, envolvendo aldeias situadas nos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paran, So Paulo,
Rio de Janeiro e Esprito Santo.
Entre os muitos aspectos que GUATA POR / Belo Caminhar suscita, cabe ressaltar aqueles relacionados sua
concepo: o registro de uma histria que vem sendo perenemente resguardada, vivida e anunciada, entre os Guarani,
com a fora da expresso verbal de seus prprios detentores e avaliadores, os xerami e xejary (ancies e ancis); e o
empenho dos pesquisadores guarani na transcrio e na traduo da riqussima variedade de expresses contidas nos
enunciados, de modo a incluir os jurua (no indgenas) entre os seus leitores.
A busca de palavras em portugus que dessem sentido a conceitos e expresses, muitas vezes intraduzveis, foi
parte relevante da pesquisa. Nos textos eleitos para compor o livro, com todas as ressignificaes possveis, foram
mantidas a cadncia e as maneiras de contar e aconselhar (nhemongueta) dos mestres guarani.
A escolha do Guata Por, como referncia cultural a ser pesquisada, revela a conscincia dos jovens guarani de
que as condies de vida, bem como os contextos atuais de insero dos Tekoa espao onde vivemos de acordo
com o nhandereko (nosso sistema) , esto intimamente vinculados aos acontecimentos relacionados s antigas
caminhadas, principalmente depois da chegada dos jurua.
Percebe-se que os pesquisadores no prescindiram do uso das prprias formas guarani de difuso de conhecimentos.
Ao entrevistar os xerami, as respostas s perguntas por que caminhavam os nossos avs antigos? Por que caminhamos?
Onde paramos? constituram aprendizados e motivaram a criao de caminhos de comunicao com a sociedade no
indgena, para que esta possa compreender e assimilar, nos termos do universo do pensamento e da cincia guarani,
como este povo construiu, passo a passo, sua territorialidade.
GUATA POR / Belo Caminhar se situa no mbito do Programa Nacional do Patrimnio Imaterial (PNPI), criado para
viabilizar aes de identificao, salvaguarda e promoo do Patrimnio Cultural Imaterial (PCI). Seguindo o mesmo
princpio, a Conveno para a salvaguarda do Patrimnio Cultural Imaterial, instituda em 2003 pela Organizao das
Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO), da qual o Brasil signatrio, define como medidas de
salvaguarda aquelas que assegurem a participao das comunidades nas pesquisas, nos processos de revitalizao, nas
formas de transmisso dos saberes, no acesso terra e s espcies naturais.
Nesse sentido, o Guata Por no qual os preceitos do modo de vida guarani e do uso do territrio (Yvyrupa), em
sentido amplo, so preconizados pelos xerami em seus relatos e vivncias fundamenta e constitui a territorialidade
guarani enquanto Patrimnio Cultural que deve ser reconhecido tanto no mbito das aes de salvaguarda, quanto na
esfera das polticas pblicas.
T.T. Catalo
Diretor do Departamento de Patrimnio Imaterial
Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN)
Ministrio da
Cultura
Diante de tantos escritos que foram produzidos sobre a histria da colonizao incidente no territrio guarani,
GUATA POR / Belo Caminhar surge como um contraponto s verses propagadas correntemente. Nas entrelinhas
deste livro, em que experincias e tempos se entrecruzam, ns, jurua, embora presentes, permanecemos calados. As
belas palavras, aqui reunidas, no so s para serem ouvidas, so para fazer pensar.