A. E. Van Vogt As Casas de Armas

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A. E.

VAN VOGT
AS CASAS DE ARMAS DE ISHER
Título original: The Weapon Shops of Isher
COLEÇÃO ASTERÓIDE - 1
Tradução de GABRIELLE LEIB e JOSÉ SANZ
Copyright by A. E. van Vogt, 1951, por acordo com Forrest J.
Ackerman.
AS CASAS DE ARMAS
No ano DE 4.784 o universo era inteiramente dominado pelo Império de
Isher, governado com poderes absolutos pela bela e jovem Imperatriz
Innelda. Mergulhada em jogos e prazeres, a ditadura de Innelda levou Isher à
beira de um desastre cósmico. Para evitar a destruição de bilhões de seres
humanos espalhados pelas colônias existentes nos outros planetas e luas,
surgiram aparentemente do nada cadeias de inquietantes e misteriosas lojas
de armas, que traziam na fachada um estranho lema: "O direito de comprar
armas é o direito de ser livre". Essas lojas protegidas por uma enorme força
energética, absolutamente intransponível, faziam parte de uma sociedade
secreta de oposição à ditadura, que vendia suas armas aos cidadãos
ameaçados.
SOBRE O AUTOR
A. E. Van Vogt nasceu no dia 26 de abril de 1912 em Winnipeg,
Canadá. Começou a escrever, aos vinte anos, literatura do gênero "True
Confessions". Sua primeira obra de ficção científica foi o conto Black
Destroyer, publicada na revista especializada Astounding Science Fiction, em
1939. Mudou-se em 1944 para os Estados Unidos, indo viver em Los
Angeles.
Black Destroyer tornou Van Vogt famoso do dia para a noite. O título
referia-se a um animal surgido no espaço, uma espécie de supergato,
possuidor de inteligência excepcional e da singular faculdade de modificar a
frequência vibratória do metal.
Seus contos seguintes foram, de certa forma, a repetição desse trabalho
até que, em setembro de 1940, iria publicar o grande romance consagrador:
"Slan". Não mais bichos fantásticos em luta com naves espaciais, mas o
homem e seus problemas, principalmente o da mutação, e todas as
implicações decorrentes de uma transformação, sobretudo mental, dos seres
humanos. Esses problemas passariam a ser uma constante em sua obra,
bastante volumosa. Em 1969, durante a realização, no Rio de Janeiro, do I
Simpósio de Literatura de Ficção Científica e Cinema, Van Vogt desenvolveu
suas teorias numa admirável conferência, intitulada "Problems of Mutants of
the Human Race".
PRÓLOGO
MÁGICO ACREDITA TER HIPNOTIZADO A MULTIDÃO
I
Junho 11 - A polícia e a imprensa de Middle City foram avisadas da
próxima chegada de um mágico e estão dispostas a fazer-lhe uma entusiástica
acolhida se ele consentir em revelar-lhes como levou centenas de pessoas a
acreditarem ter visto uma construção estranha, aparentemente uma espécie de
loja de vender armas.
O edifício pareceu surgir no espaço ocupado antigamente e ainda agora
pela Aunt Sal y’s Lunch e pela alfaiataria Patterson. Havia somente
empregados nas citadas lojas e nenhum notou nada. Uma enorme e brilhante
tabuleta encimava a loja, tão miraculosamente saída do nada; e essa tabuleta
indicava claramente que tudo não passava de uma habilíssima cena de
ilusionismo. De qualquer lado que se olhasse, lia-se claramente as palavras:
ARMAS DE QUALIDADE
O DIREITO DE COMPRAR ARMAS É
O DIREITO DE SER LIVRE
A vitrine estava arrumada com uma quantidade de armas curiosas, fuzis
e revólveres, e um letreiro luminoso dizia:
AS MELHORES ARMAS ENERGÉTICAS DO UNIVERSO
CONHECIDO
O Inspetor Clayton, do Departamento de Investigações, tentou entrar na
loja mas a porta parecia estar fechada. Alguns momentos depois, C. J. (Chris)
McAl ister, repórter do Gazette-Bul etin, empurrou a porta e, encontrando-a
aberta, entrou.
O Inspetor Clayton tentou segui-lo mas verificou que a porta estava
fechada outra vez. Parece que McAl ister saiu pelos fundos, como vários
espectadores afirmaram.
Imediatamente após sua reaparição, o estranho edifício esfumou-se tão
abruptamente quanto tinha aparecido.
A Polícia declarou não saber explicar como o mágico conseguiu criar
uma ilusão com tantos detalhes e por tão longo tempo diante de tanta gente.
Eles estão dispostos a recomendar a exibição do mágico calorosamente.
(NOTA DO AUTOR: A notícia acima não diz que a polícia, descontente
com, o caso, procurou contatar McAl ister para um interrogatório, mas não
conseguiu localizá-lo.
Passaram-se semanas; até agora ele não foi achado.
Que terá acontecido a McAl ister desde o momento em que encontrou
aberta a porta da loja de armas?)
Havia algo de estranho na porta da loja de armas. Bastara-lhe encostar a
mão nela para que se abrisse. E quando a empurrou, parecia não ter peso. Era
isso o que mais o espantava.
Ficou paralisado pela estupefação. Pouco antes, quando Clayton a
sacudira, aquela porta estava trancada. Aquilo parecia uma advertência...
- Deixe comigo, McAl ister - gritou o policial, atrás dele.
O interior da loja estava escuro e McAl ister não conseguia enxergar
além das trevas que reinavam na parte de dentro. Seu instinto profissional foi
mais forte: deu um passo para dentro da escuridão. Com, o rabo do olho, via
a mão do inspetor avançando para a maçaneta que ele acabara de largar. Se
dependesse de Clayton, tinha certeza, nenhum jornalista entraria naquela loja.
Sem perder o policial de vista, ia penetrar na escuridão da loja de armas
quando aconteceu uma coisa incrível: a maçaneta esquivou-se da mão do
inspetor.
Deformou-se curiosamente e desfez-se como se fosse, não de matéria,
mas de energia. E a porta chocou-se com, o calcanhar de McAl ister, num
contato quase imaterial. Antes que pudesse refletir ou reagir, levado por seu
próprio impulso, havia entrado. Assim que respirou na escuridão, teve a
agoniante impressão de que seus nervos arrebentavam. A porta fechou-se. O
mal-estar dissipou-se. À sua frente aparecia a decoração brilhantemente
iluminada da loja. Atrás, coisas incríveis!
Incapaz de pensar, ficou imóvel, o corpo paralisado numa atitude
desajeitada.
Embora só tivesse uma vaga idéia do que o cercava, tinha, em
compensação, uma exata consciência do instante em que se produziria a
rutura: numa fração de segundo, no momento em que franqueara a soleira da
porta, fora como que seccionado, isolado, do mundo exterior.
Não havia mais trevas impenetráveis, nem Inspetor Clayton. Ou a
multidão embasbacada e barulhenta. Também haviam desaparecido as
fachadas em mal estado das lojas existentes na rua. Na verdade, não havia
mesmo mais a rim, mas um aprazível parque e, por trás dele, no luminoso sol
do entardecer, o perfil de uma imensa cidade. Nas suas costas, uma voz cheia
e musical de mulher disse:
- Vai querer uma arma?
McAl ister virou-se. Seu movimento foi a reação automática a um som.
E porque tudo ainda lhe parecia um sonho, a visão da cidade dissolveu-se
quase instantaneamente; a sua mente focalizou-se na moça que vinha
lentamente do fundo da loja. Por alguns instantes, não conseguiu pensar
claramente. A convicção de que deveria dizer alguma coisa misturava-se com
a primeira impressão causada pela aparência da moça. O corpo era esguio e
bem feito e ela sorria agradavelmente. Os olhos eram castanhos e o cabelo
ondulado também. Seu vestido e as sandálias simples pareciam tão normais à
primeira vista, que ele não lhes deu maior atenção.
Conseguiu dizer:
- O que eu não posso compreender é por que o policial que tentou me
seguir não conseguiu entrar. E onde está ele agora?
Para surpresa sua, o sorriso da moça tomou um ar de desculpa:
- Sabemos que as pessoas acham ridículo nós ainda insistirmos neste
feudo antigo.
Sua voz tornou-se mais firme.
- Sabemos até o quanto é inteligente a propaganda que sublinha a tolice
da nossa posição. Enquanto isso, nunca permitimos a entrada de um dos
homens dela aqui, Continuamos a levar nossos princípios muito a sério.
Fez uma pausa, como se esperasse compreensão de sua parte. Mas McAl
ister percebeu pela, expressão do rosto dela que sua aparência devia ser tão
estupefata quanto os seus pensamentos. Os homens dela! A moça tinha
pronunciado aquelas palavras como se se referisse a um personagem e em
resposta direta à sua menção do policial. Isto significava que os homens dela,
quem quer que ela fosse, eram policiais; e não era permitida a sua entrada
nesta loja. Assim a porta era hostil e não os deixava penetrar. Fez-se um
vazio na mente de McAl ister, semelhante ao vazio que estava sentindo na
boca do estômago, a sensação de uma profundidade insondável, a primeira
convicção estonteante de que não estava tudo como deveria ser. A moça
passou a falar com um tom mais duro:
- O senhor quer dizer que não sabe nada disto, que não sabe que durante
gerações, nesta época de energias devastadoras, existiu a liga dos Fabricantes
de Armas, como única proteção contra a escravidão? O direito de comprar
armas -
parou, observando-o, depois continuou: - Pensando bem, há algo de
muito peculiar no senhor. Essas roupas estranhas, o senhor não é um
granjeiro das planícies agrícolas do Norte?
Ele sacudiu u cabeça silenciosamente e, a cada minuto que passava,
ficava mais irritado com suas reações. A moça continuou mais vivamente:
- E pensando bem, é espantoso que o policial tivesse tentado abrir a
porta sem que tenha havido alarma.
Sua mão moveu-se. Metal brilhou dentro dela, como alumínio na intensa
luz do sol. Não havia mais um tom de desculpa na sua voz, quando disse:
- Fique exatamente onde está, senhor, até que eu chame meu pai. No
nosso negócio, com as nossas responsabilidades, não podemos nos arriscar.
Existe algo de muito errado nisto tudo.
Curiosamente, nesse momento, a mente de McAl ister começou a
funcionar com clareza. Seus pensamentos chegavam paralelos aos dela.
Como havia penetrado naquele mundo fantástico? Existia realmente algo de
errado naquilo tudo.
Era a arma que prendia sua atenção. Tratava-se de um objeto pequeno,
com o formato de uma pistola. Mas uma pistola em miniatura, cuja culatra
ligeiramente bulbosa estava ornada com três cubos alinhados em semicírculo.
Ele começou a se sentir abalado, olhando a arma, porque aquele pequeno
instrumento perigoso brilhando na sua mão morena era tão real quanto ela
mesma. - Pelo amor de Deus -
murmurou. - Que diabo de arma é esta? Abaixe essa coisa e vamos
tentar esclarecer a situação.
Ela parecia não estar ouvindo. McAl ister percebeu que ela estava
fixando um ponto na parede, um pouco à sua esquerda. Seguindo seu olhar,
chegou a ver acenderem-se sete pequenas luzes. Luzes estranhas. Ficou
fascinado pelo jogo de luz e sombra, o aumento e diminuição da luz de um
globo minúsculo para o outro, um movimento ondulado de variação de
intensidade infinitesimal, um efeito incrivelmente delicado de reação a um
barômetro super sensível. As luzes estabilizaram-se; voltou a olhar a moça.
Para surpresa sua, estava guardando a arma. Ela devia ter notado sua
expressão.
- Está bem - disse calmamente. - Os automáticos o estão vigiando. Se
estivermos enganados a seu respeito, pediremos desculpas. Enquanto isso, se
ainda está interessado em comprar uma arma, terei muito prazer em
demonstrá-la.
Então os automáticos o estavam vigiando, pensou McAl ister. Esta
informação não lhe trouxe nenhum alívio. De qualquer maneira, aqueles
automáticos não estariam do seu lado. O fato de a moça guardar a arma,
apesar do seu tom de suspeita, dizia muito da eficiência dos novos cães de
guarda.
- Sim, por favor, gostaria de ver. - Acrescentou: - Não duvido de que seu
pai esteja aqui perto, fazendo uma espécie de estudo da minha pessoa.
A jovem não fez menção de mostrar armas. Em vez disso, olhava-o
perplexa.
- Talvez o senhor não esteja percebendo - disse lentamente - mas já
abalou toda a nossa instituição. As luzes dos automáticos deveriam ter-se
acendido no momento em que meu pai pressionou os botões, como fez
quando eu o chamei. E isto não aconteceu! Não é natural e no entanto -
franziu as sobrancelhas - se o senhor é um deles, como conseguiu passar por
aquela porta? É possível que os cientistas dela tenham descoberto seres
humanos que não afetem as energias sensitivas? E que o senhor é apenas um
de muitos, enviado para ver se é possível entrar ou não? Mas isto também não
faz sentido. Se tivessem a menor esperança de sucesso não jogariam fora a
possibilidade de uma surpresa esmagadora. Neste caso, o senhor seria a
cunha que permitiria um ataque em grande escala. Ela é implacável, brilhante
e tem um poder absoluto sobre pobres ingênuos como o senhor, que só
pensam em adorar o esplendor de sua Corte Imperial.
Havia uma cadeira no canto. McAl ister queria sentar-se. Sua mente
estava mais calma.
- Olhe - começou - não sei de que está falando. Nem sei como entrei
nesta loja.
Concordo que tudo isto pede uma explicação, diferente da que eu possa
dar.
Sua voz foi diminuindo. Estava sentando-se, mas em vez de se deixar
cair na cadeira, levantou-se, lentamente, como uma pessoa muito idosa. Seus
olhos fixaram-se num letreiro luminoso, situado em cima do mostruário de
armas, atrás dela. Sua voz estava rouca:
- Isto é... um calendário?
Ela acompanhou seu olhar intrigada:
- Sim, é 3 de junho. Vejo errado?
- Não é isso, é... - teve que fazer um esforço - são os números em cima,
é... que ano é este?
A moça parecia surpresa. Ia dizer alguma coisa, mas parou. Finalmente
disse:
- Não tem nada errado, é o ano 4.784 da Casa Imperial de Isher.
II
McAl ister sentou-sese muito lentamente, enquanto o espanto se
concretizava. Os acontecimentos começaram a adquirir uma forma distorcida.
A fachada do edifício superposta às das duas lojas; a maneira da porta agir. O
grande anúncio luminoso exterior, estabelecendo uma estranha conexão entre
a liberdade e o direito de comprar armas. As armas expostas na vitrine, as
melhores armas energéticas do universo conhecido!... Percebeu que a moça
estava falando com um senhor alto e grisalho que tinha entrado pela mesma
porta por onde ela entrara anteriormente.
Havia algo de muito tenso na sua conversa. As palavras, ditas em tom
baixo, lhe chegavam indistintas, um som estranho e inquietante. McAl ister
não podia captar o seu sentido até que a moça perguntou:
- Como é o seu nome?
McAl ister disse-lhe.
A moça hesitou e depois falou:
- Senhor McAl ister, meu pai deseja saber de que ano o senhor é!
O senhor grisalho aproximou-se.
- Sinto muito, mas não há tempo para explicar. Aconteceu o que nós, os
Fabricantes de Armas, tememos há muitas gerações: que mais uma vez
alguém viria, cobiçando um poder ilimitado e que, para alcançá-lo, teria
necessariamente que nos destruir primeiro. A sua presença aqui é a
manifestação da força energética que ela desencadeou contra nós - algo tão
novo que nós nem suspeitávamos que estivesse sendo usado. Mas não tenho
tempo a perder. Consiga todas as informações possíveis, Lystra, e previna-o
do perigo pessoal que corre.
O homem se retirou e a porta fechou-se atrás dele silenciosamente.
McAl ister perguntou:
- Que quis ele dizer com - perigo pessoal?
- É difícil explicar - começou ela constrangida. - Antes de mais nada
chegue até a janela e eu vou tentar esclarecer tudo. Imagino que tudo isto
deve ser muito confuso para o senhor.
McAl ister respirou fundo.
- Agora estamos fazendo algum progresso.
Não estava mais alarmado. O homem grisalho parecia saber do que
estava falando. Isso significava que não devia haver problemas para a sua
volta. Quanto ao perigo para a liga dos Fabricantes de Armas, isso era
problema deles e não seu.
Andou em direção à moça. Para seu espanto ela recuou como se a
estivesse ameaçando. Quando ele a encarou, ela respondeu com um sorriso
triste; finalmente disse:
- Não pense que estou sendo tola; não fique ofendido... mas pelo amor
que tem à sua vida não toque em nenhum corpo humano.
McAl ister sentiu um calafrio. Depois, repentinamente, sentiu uma onda
de impaciência invadi-lo, diante do medo estampado na face da jovem.
- Olhe - disse - quero esclarecer este negócio. Podemos conversar aqui,
sem perigo, contanto que eu não a toque ou chegue perto de você. Está certo
?
Ela fez que sim com a cabeça.
- O chão, as paredes, cada peça do mobiliário, a loja toda é feita de
material não condutor.
McAl ister tinha a sensação de estar se equilibrando numa corda em
cima de um abismo sem fim.
- Vamos começar pelo começo - disse. - Como foi que seu pai e você
souberam que eu não era... - fez uma pausa antes de terminar a estranha frase
- deste tempo ?
- Meu pai o fotografou - disse a jovem. - Fotografou o conteúdo dos seus
bolsos.
Foi aí que descobriu o que estava errado. Veja, as energias sensitivas se
tornam condutoras das energias com as quais o senhor está carregado. Era
isto que estava errado. Foi por isso que os automáticos não o focalizaram, e...
- Energia... carregado? - perguntou McAl ister. A moça olhou espantada.
- Não está compreendendo? - perguntou ofegante. - O senhor atravessou
um pe-ríodo de sete mil anos no tempo. E de todas as energias do mundo, o
tempo é a mais potente. Se der um passo fora desta loja, o senhor fará
explodir a Cidade Imperial e mais de uma centena de quilômetros de terras
em volta. O senhor - sua voz tornou-se hesitante - o senhor poderia,
provavelmente, destruir a Terra!
III
Não havia notado o espelho antes. Engraçado, também, porque era
bastante grande, com mais de dois metros de altura e bem na sua frente, na
parede que um minuto antes (poderia jurar) era de metal sólido.
- Olhe-se - disse a moça para tranquilizá-lo - nada acalma mais do que a
nossa própria imagem. Para dizer a verdade, o seu corpo está suportando
muito bem o choque mental.
Ele olhou fixamente a própria imagem. Seu rosto estava muito pálido.
Mas o corpo não estava tremendo como sugerira o redemoinho em sua mente.
Teve consciência novamente da presença da moça. Estava mexendo em
diversos interruptores na parede.
- Muito obrigado - disse ele - eu estava mesmo precisando disto.
A jovem sorriu para lhe dar mais coragem. Agora ele estava em
condições de ver o quanto era contraditória a personalidade dela. Por um
lado, sua, incapacidade de mostrar o perigo, sua dificuldade de encontrar
palavras para explicar a situação. No entanto, o detalhe do espelho
demonstrava um profundo conhecimento da psicologia humana. Disse:
- O problema agora, do seu ponto de vista, é lograr essa mulher de Isher
e conseguir me enviar de volta antes que eu faça explodir a Terra do ano...
seja que ano for.
A moça aquiesceu.
- Meu pai diz que o senhor pode ser enviado de volta mas, quanto ao
resto, veja!
Não teve tempo para sentir o alívio por saber que poderia voltar ao seu
tempo. Ela apertou outro botão. O espelho desapareceu na parede metálica.
Mais um botão e a parede desapareceu. À sua frente, estendia-se um parque
igual ao que tinha visto através da porta de entrada, obviamente uma
continuação da mesma paisagem.
O horizonte era dominado por um enorme edifício, tão alto quanto largo.
Estava a meio quilômetro de distância e, inacreditavelmente, parecia ter essa
mesma altura e comprimento. Em toda parte, havia evidência de trabalho
dinâmico mas não se via ninguém nem havia o menor movimento. Mesmo as
árvores estavam imóveis.
- Veja! - disse a moça em tom mais baixo. Desta vez não houve nenhum
som. Ela ajustou um dos botões e a visão não era mais tão nítida. Não era a
intensidade da luz solar que tinha diminuído. Ou que houvesse um vidro
visível onde antes não havia nada. Não havia nenhuma substância aparente
entre eles e o maravilhoso parque. Mas este não estava mais deserto.
Havia uma. multidão de homens e máquinas. McAl ister olhava
assombrado. A sensação de ilusão se diluiu mostrando a real ameaça que
representavam estes homens e a sua emoção se transformou em temor.
Finalmente disse:
- Mas estes homens são soldados, e as máquinas são...
- Armas energéticas - disse ela. - Este sempre foi o problema deles:
como conseguir aproximar suas armas de nossas lojas, para nos destruir. Não
que suas armas não sejam potentes e de longo alcance. Mesmo os nossos
rifles podem matar seres vivos sem proteção especial a quilômetros de
distância. Mas as nossas lojas estão tão protegidas que, para nos destruir, têm
que usar as armas mais potentes à queima roupa. No passado isto nunca foi
possível porque o parque em volta da loja nos pertence e o sistema de alarme
era perfeito... até agora. Esta nova energia que estão usando não afeta
nenhum dos nossos instrumentos protetores; e, o que é infinitamente pior,
propicia-lhes um perfeito escudo contra nossas armas.
Naturalmente que se conhece a invisibilidade há muito tempo, mas se o
senhor não tivesse vindo, nós teríamos sido destruídos sem nem saber o que
estava acontecendo.
-Mas - exclamou McAl ister - o que é que vocês vão fazer? Eles ainda
estão lá fora, trabalhando... Os olhos dela tinham um brilho intenso.
- Meu pai preveniu a liga. E diversos membros descobriram que as
mesmas armas invisíveis estavam sendo montadas por soldados invisíveis em
volta de suas lojas. O
conselho se reunirá em breve para discutir as possibilidades de defesa.
McAl ister observou em silêncio os soldados ligando o que deveriam ser
cabos invisíveis e que vinham do imenso edifício. Cabos com mais de trinta
centímetros de espessura atestando o poder titânico que deveria ser
desencadeado contra a pequena loja de armas. Não havia nada a dizer. A
realidade do que estava acontecendo lá fora dispensava palavras. De todos,
ele era o mais desnecessário, a sua opinião a menos importante. Ele deve ter
dito alto o que estava pensando, mas só percebeu quando a voz familiar do
pai da moça soou ao seu lado.
- O senhor está muito enganado, Sr. McAl ister. De todos aqui, o senhor
é o mais importante. Foi por seu intermédio que descobrimos que Isher estava
nos atacando.
Além disso, nossos inimigos não sabem de sua existência e
consequentemente ainda não sabem do efeito real produzido pela nova
energia que estão empregando. O
senhor, portanto, constitui o fator desconhecido. Devemos fazer uso
imediato do senhor.
McAl ister achou que o pai da moça subitamente lhe parecia mais velho.
Havia profundas rugas em seu rosto e sua voz, quando se dirigiu à filha, era
cortante:
- Lystra, n. ° 7l
Enquanto a moça apertava o sétimo botão, seu pai explicou rapidamente
a McAl ister:
- O Conselho supremo da liga está realizando agora uma sessão de
emergência.
Precisamos escolher o método mais conveniente para atacar o problema
e nos concentrar, individual e coletivamente, nesse método... Debates
regionais estão sendo efetuados mas, até agora, apenas uma idéia foi
sugerida... ah! Senhores!
McAl ister virou-se assustado. Homens estavam passando pela parede
sólida como se estivessem entrando por uma porta. Um, dois, três... trinta.
Eram homens austeros e todos, menos um que olhou para McAl ister,
passaram direto e então pararam sorrindo levemente.
- Não fique tão assustado. Como acha que poderíamos sobreviver
durante todos estes anos se não fôssemos capazes de transmitir objetos
materiais através do espaço? A polícia de Isher está sempre ansiosa por
bloquear nossas fontes de abastecimento. O meu nome é Cadron... Peter
Cadron!
McAl ister respondeu mecanicamente com a cabeça. Não estava mais
verdadeiramente impressionado pelas novas máquinas. Elas eram o resultado
da era das máquinas; a ciência e a invenção estavam tão avançadas que o
homem mal podia dar um passo que não afetasse ou não fosse afetado por
uma máquina. Um homem ao seu lado disse:
- Estamos reunidos aqui porque é óbvio que a fonte desta nova energia é
o edifício grande bem ao lado desta loja...
Fez um gesto em direção à parede, onde antes havia o espelho, e depois
a janela pela qual McAl ister havia visto a monstruosa estrutura em questão.
O homem continuou:
- Nós sabíamos, desde que terminaram a construção, há uns cinco anos,
que era um edifício poderoso e dirigido contra nós. E agora emana dele uma
nova energia para subjugar o mundo todo, uma energia tão imensamente
potente que conseguiu quebrar a própria tensão do tempo, felizmente porém,
só aqui nesta loja de armas mais próxima. Aparentemente, ela enfraquece
quando transmitida mais longe.
- Escute Dresley - interrompeu um homem pequeno e muito magro -
para que todo este preâmbulo? Você já esteve examinando os diversos planos
sugeridos pelos grupos regionais. Existe ou não um plano decente entre eles?
Dresley hesitou. Para surpresa de McAl ister, os olhos do homem
pousaram, indecisos, nele; depois de uma pausa, disse com voz dura:
- Sim, existe um método, mas implica em convencer este nosso amigo
do passado a enfrentar um grande risco. Todos sabem a que estou me
referindo. Nos faria ganhar o tempo de que necessitamos.
- Hein! - disse McAl ister e ficou parado sentindo todos os olhares
voltados para ele.
IV
McAl ister descobriu, espantado, que necessitava do espelho novamente
para ver como seu corpo estava reagindo, se estava dando uma boa
impressão. Observou os rostos dos homens. Os Fabricantes de Armas davam
uma estranha impressão pela maneira como estavam sentados ou de pé,
encostados nas vitrines de armas; parecia haver menos pessoas do que havia
contado previamente. Um, dois... vinte e oito, incluindo a moça. Ele poderia
jurar que havia contado trinta e dois. Seus olhos se moveram mesmo a tempo
de ver a porta dos fundos fechar. Quatro dos homens tinham saído por aquela
porta.
McAl ister balançou a cabeça, intrigado. E depois, conscientemente,
prestando atenção, começou a estudar os rostos dos homens que tinha à sua
frente. Disse:
- Não entendo como algum dos senhores pode falar em convencer. De
acordo com o que disseram, estou carregado de energia. Posso estar
enganado, mas se qualquer um dos senhores tentar me enviar de volta no
espaço, ou mesmo apenas tocar em minha pessoa, esta energia que existe no
meu corpo provocaria uma devastação incalculável...
- O senhor tem toda razão - concordou um dos mais jovens, e depois,
dirigindo-se a Dresley com irritação: - Como o senhor cometeu um tão
grande erro psicológico? O
senhor sabe muito bem que McAl ister fará o que nós pedirmos para
salvar a própria pele; e vai ter que fazê-lo depressa!
Dresley resmungou.
- Que diabo - disse - a verdade é que não temos tempo a perder com
explicações e eu estava pensando que ele fosse ficar logo amedrontado. Mas
vejo agora que estamos lidando com um homem inteligente.
McAl ister encarou o grupo. Parecia um embuste. Disse com rispidez:
- Não me venham com esta história de que sou inteligente. Os senhores
estão suando sangue. Seriam capazes de matar a própria avó e usariam
qualquer artifício para me obrigar a agir porque acham que o mundo que
consideram o tal, está em perigo. Qual é este plano no qual os senhores
querem me convencer a participar?
Foi o mais jovem quem respondeu:
- O senhor vestirá uma combinação isolante e o enviaremos de volta no
seu tempo...
Fez uma pausa. McAl ister disse:
- Até agora tudo bem. Mas qual é o galho?
- Nenhum!
McAl ister olhou para o homem.
- Escute - começou - não me venha com esta conversa. Se é tudo tão
simples, como é que eu estarei ajudando os senhores contra a energia de
Isher?
O jovem disse zangado a Dresley:
- O senhor está vendo? Ele ficou desconfiado com essa história de
convencer.
Virando-se para McAl ister:
- O que nós temos em mente é uma aplicação do principio de um ponto
de apoio e de uma espécie de alavanca de energia. O senhor seria o peso na
extremidade de uma espécie de alavanca de energia que levantaria um peso
bem maior na extremidade mais curta. O senhor regressará no tempo cinco
mil anos; a máquina no edifício grande com a qual o seu corpo está afinado e
que está nos causando todos estes problemas adiantar-se-á vários meses no
tempo.
- Desta forma - interrompeu um dos outros, antes que McAl ister
pudesse dizer uma palavra - nós teríamos tempo de encontrar uma outra
solução. Tem que haver uma solução, porque senão os nossos inimigos não
teriam agido tão secretamente.
Bem, o que ê que o senhor pensa?
McAl ister dirigiu-se lentamente para a cadeira que havia ocupado antes.
Sua mente estava girando furiosamente, mas sabia, por um pressentimento
sombrio, que não tinha conhecimento técnico suficiente para se proteger.
Disse lentamente:
- Pelo que eu entendo, isto deve funcionar como uma alavanca. O
princípio da alavanca, a velha idéia de que tendo uma alavanca longa
bastante, e um ponto de apoio conveniente, poder-se-ia deslocar a Terra de
sua órbita.
- Exatamente! - disse Dresley. - Só que desta vez trabalha com o tempo.
O senhor viaja cinco mil anos e o prédio...
Interrompeu-se ao ver a expressão do rosto de McAl ister.
- Olhe! - disse este - não há nada mais deprimente do que ver um grupo
de homens honestos cometendo um ato desonesto. Os senhores são homens
corajosos, do tipo intelectual, e levaram a vida toda impondo uma concepção
idealista. Sempre acharam que se chegasse a ocasião não hesitariam em fazer
sacrifícios drásticos.
Mas não estão enganando a ninguém. O que é que há por trás disto tudo?
Subitamente, atiraram-lhe a combinação. Tinha notado os homens
surgindo do fundo da sala; e sentiu um choque ao perceber que tinham ido
preparar a roupa isolante antes de poder saber se ele a queria usar. McAl ister
encarou Peter Cadron com um ar sombrio, enquanto este lhe estendia a
combinação cinzenta e disforme, dizendo tensamente:
- Vista isto, depressa! Agora é uma questão de minutos, homem!
Quando esses canhões aí fora começarem a disparar energia, o senhor não
estará vivo para discutir a nossa honestidade.
Ele ainda hesitou. 0 suor escorria-lhe pela face e sentia-se mal com a
dúvida. No fundo da sala alguém dizia:
- Nossa primeira preocupação tem que ser ganhar tempo, por isso temos
que instalar novas lojas em comunidades em que os ataques deles sejam mais
difíceis.
Simultaneamente, temos que entrar em contato com todos os imperiais,
aliados em potencial, que possam nos ajudar direta ou indiretamente, e
finalmente temos que...
A voz continuou, mas McAl ister não estava escutando mais.
Desvairado, o seu olhar encontrou a moça parada perto da porta de entrada,
silenciosa e apagada.
Andou em sua direção; seu olhar ou a sua presença eram assustadores
porque ela empalideceu e encolheu-se.
- Olhe! - disse ele. - Estou metido nisto até a raiz dos cabelos. Qual é o
risco?
Tenho que saber quais são as minhas oportunidades. Diga-me
exatamente: qual é o galho?
- É o atrito - murmurou finalmente. - Talvez não consiga fazer todo o
percurso de volta no tempo. Veja, o senhor será uma espécie de "peso" e...
McAl ister afastou-se dela violentamente. Vestiu a combinação, macia e
muito fina, colocando-a, como um macacão, em cima de sua roupa.
- Envolve a cabeça também, não é? - perguntou.
- Sim - era o pai de Lystra que estava respondendo. - Assim que o
senhor puxar o fecho, a combinação se tornará completamente invisível. Para
os outros, parecerá que está com as suas roupas normais. A combinação é
totalmente equipada. Com ela o senhor poderia viver na Lua.
- 0 que eu não estou compreendendo - queixou-se McAl ister - é por que
tenho de usar este traje. Cheguei aqui muito bem sem ele.
Franziu a testa. Tinha dito aquelas palavras automaticamente mas,
abruptamente, teve um pensamento.
- Um momento - disse - o que vai acontecer à energia de que estou
carregado, agora que estou dentro deste traje isolante?
Pela expressão dos presentes percebeu que tinha tocado num ponto
crítico.
- Então é isso! - exclamou. - O isolamento é para impedir que eu perca
qualquer parcela dessa energia. É isto que constitui o "peso". Não tenho mais
dúvidas de que existe uma conexão entre este traje e aquela máquina. Bom,
ainda não é tarde demais.
Com um movimento desesperado tentou fugir às mãos dos quatro
homens que o agarravam. Mas eles o seguraram firmemente, de forma que
ele não podia escapar.
Peter Cadron Druion puxou o fecho e disse:
- Sinto muito mas, quando saímos daqui, também vestimos trajes
isolantes. É por isso que o senhor não pode nos fazer mal. E lembre-se disto:
não existe certeza de que o senhor esteja sendo sacrificado. O fato de não
existir uma cratera em nossa Terra prova que o senhor não explodiu no
passado, e que o problema foi resolvido de alguma maneira. Agora, alguém
abra a porta, rápido!
Sem poder oferecer resistência, foi empurrado para fora. E então...
- Esperem!
Era a moça. Seus olhos faiscavam e na sua mão estava a pequena arma
brilhante que anteriormente tinha apontado contra McAl ister. O pequeno
grupo que segurava McAl ister parou imediatamente. Ele mal percebia. Para
ele, existia apenas a moça e a maneira pela qual os músculos de seus lábios
estavam trabalhando e como a sua voz surgiu de repente:
- Isto é o cúmulo do ultraje. Somos tão covardes... é possível que o
espírito da liberdade só possa sobreviver por meio de um ato infame de
assassinato e um grosseiro desafio aos direitos do indivíduo? Eu digo que
não! O Sr. McAl ister tem que ter a proteção do tratamento hipnótico;
certamente uma tão pequena demora não será fatal.
- Lystra!
Era o pai e McAl ister percebeu pelos seus movimentos rápidos que ele
tinha apreendido todos os aspectos da situação. Adiantou-se e tirou a arma da
mão de sua filha - era a única pessoa na sala, pensou McAl ister, que podia
ousar aproximar-se dela com a certeza de que ela não dispararia a arma.
Percebeu que Peter Cadron largara seu braço, afastando-se.
Seus olhos estavam calmos, a cabeça orgulhosamente erguida. Disse:
- Sua filha tem razão. Devemos nos colocar acima de nossas apreensões
e dizermos a este infeliz rapaz: tenha coragem. Nunca será esquecido. Não
podemos garantir nada, nem mesmo lhe dizer exatamente o que vai
acontecer. Mas podemos dizer que, se depender de nós, tudo será feito para
ajudá-lo! E agora, precisamos protegê-lo das pressões psicológicas
devastadoras que de outra forma o destruiriam, simples mas efetivamente.
Tarde demais, McAl ister percebeu que os outros tinham se desviado
daquela parede fantástica, aquela que já tinha demonstrado a mais estranha
versatilidade.
Nem chegou a ver quem apertou os botões para o que devia se passar
depois.
Primeiro, viu uma luz ofuscante; por um momento teve a impressão de
que sua mente estava sendo dissecada e nesta sensação ouviu a voz de Peter
Cadron, penetrante:
- Manter o seu autocontrole e a sua sanidade, esta é a nossa esperança;
conseguiremos apesar de tudo! E, para sua própria segurança, só fale de sua
experiência a cientistas ou àqueles investidos de autoridade em que possa
confiar e que possam compreender e ajudar! Felicidades!
O efeito da luz ainda era tão intenso que mal percebeu que o
empurravam para fora.
Sentiu que estava caindo.
CAPÍTULO PRIMEIRO
De noite, a aldeia tinha um ar curiosamente fora do tempo. Fara
passeava satisfeito ao lado de sua mulher. O ar parecia vinho; estava
pensando vagamente no artista que tinha vindo da Cidade Imperial, e tinha
feito o que os telestates chamaram - ele se lembrava nitidamente - "uma
pintura simbólica reminiscente de uma cena da idade elétrica de sete mil anos
atrás. "
Enquanto andavam pela rua, Fara observou sua mulher de lado. À luz
fraca do poste de iluminação mais próximo, o rosto ainda jovem e bondoso
de sua mulher estava quase na sombra. Falou em voz baixa, em harmonia
com os tons pastéis da noite:
- Ela disse, nossa Imperatriz disse, que a nossa aldeia de Glay parecia ter
a integridade e a bondade que constituem as melhores qualidades do seu
povo. Não é um pensamento maravilhoso, Creel? Ela deve ser uma mulher
maravilhosamente compreensiva.
Chegaram a uma rua lateral, e o que ele viu uns cinquenta metros
adiante o fez parar.
- Olhe! - disse com voz rouca.
Mostrou a tabuleta luminosa que brilhava dentro da noite, uma tabuleta
que trazia os seguintes dizeres:
ARMAS DE QUALIDADE
O DIREITO DE COMPRAR ARMAS É
O DIREITO DE SER LIVRE
Fara sentiu um estranho vazio dentro dele, enquanto olhava os dizeres
luminosos.
viu que outros habitantes da cidade estavam se aproximando. Disse
bruscamente:
- Já ouvi falar destas lojas. São lugares infames, contra os quais o
governo da Imperatriz agirá um destes dias. São construídas em fábricas
secretas e depois transportadas inteiras para cidades como a nossa e
instaladas, desafiando grosseiramente os direitos de propriedade. Esta não
estava aí uma hora atrás.
Seu rosto tornou-se duro, e sua voz tinha um tom áspero quando disse:
- Creel, vá para casa.
Ficou surpreendido porque Creel não se afastou imediatamente. Durante
toda sua vida de casados, ela tivera o agradável hábito de obedecer e, por isto,
a vida era maravilhosa. Viu que ela o olhava espantada e que era o medo o
que a mantinha ali.
- Vá para casa! - o medo dela trouxe à tona toda a determinação de sua
natureza.
- Não deixaremos esta coisa monstruosa profanar nossa cidade. Pense
nisto - sua voz tremia só de imaginar o que poderia acontecer - esta
comunidade maravilhosa, tradicional, que nós resolvemos manter exatamente
como a Imperatriz a tem em sua galeria de quadros, depravada, arruinada por
esta... esta coisa. Mas nós não o toleraremos!
A voz de Creel soou suave, agora sem medo:
- Não faça nada apressadamente, Fara. Lembre-se de que não é o
primeiro prédio novo na cidade desde que foi pintado o quadro.
Fara não disse nada. Esta era uma faceta de sua mulher que não
aprovava, lembrá-lo desnecessariamente de fatos desagradáveis. Ele sabia
exatamente a que ela estava se referindo. A gigantesca, tentacular, corporação
Oficinas Automáticas de Manutenção de Motores Atômicos S. A., montada
pelo Estado num edifício suntuoso contra a vontade do conselho da aldeia e
que tinha já tirado metade do trabalho de sua própria oficina.
- É diferente! - disse finalmente. - Em primeiro lugar, descobrirão logo
que estas oficinas automáticas novas não fazem um bom trabalho. Em
segundo lugar, é competição franca. Mas esta loja de armas é um desafio a
todas as qualidades que tornam a vida sob a Casa de Isher tão boa. Olhe só os
dizeres da tabuleta: "O direito comprar armas... Aaaah!
Interrompeu a frase para dizer:
- Vá para casa, Creel. Vamos providenciar para que eles não vendam
armas nesta cidade.
Ficou observando a delgada silhueta da mulher desaparecer nas sombras
da noite.
Ela já tinha atravessado a rua quando a chamou: - E se encontrar nosso
filho pelo caminho, leve-o para casa. Ele tem que aprender a não ficar fora de
casa a estas horas da noite.
A mulher não se virou. Fara ainda ficou observando-a por algum tempo
e depois se dirigiu com decisão para a loja. A multidão estava aumentando a
cada minuto e a noite vibrava com o som de suas vozes excitadas.
O letreiro luminoso da loja pareceu-lhe um caso simples de ilusionismo.
De qualquer posição que se olhasse parecia estar sempre de frente. Quando
parou diante da vitrine, viu que o letreiro estava novamente bem em cima da
loja e lhe dava a impressão de o estar olhando sem piscar. Voltou sua atenção
para um letreiro dentro da vitrine. Este dizia:
AS MELHORES ARMAS ENERGÉTICAS
DO UNIVERSO CONHECIDO
Acendeu-se a fagulha do interesse dentro de Fara. Olhava, fascinado, as
armas expostas na vitrine; fascinado contra sua própria vontade. Havia armas
de todos os tamanhos, desde pequenas pistolas de gatilho até rifles
automáticos. Fara sentiu um calafrio ao ver a quantidade de armas mortíferas
em exposição. Tantas armas para a pequena cidade de Glay, onde só duas
pessoas, ao que ele sabia, tinham armas, e estas somente para caçar.
Alguém atrás dele disse:
- Está bem no terreno de Lan Harris. Uma boa lição para o velho
tratante. Ele vai armar um barulho!
Vários homens riram. Fara viu que o homem tinha falado a verdade. A
loja de armas tinha doze metros de frente. Ocupava o centro do lote
ajardinado do velho pão-duro Harris. Fara franziu a testa. Inteligentes, estes
donos das lojas de armas, escolhendo a propriedade da pessoa mais detestada
da cidade, divertindo assim os outros. Mas o importante era não deixar o
truque ser bem sucedido. Foi nesse momento que notou a presença gorda do
Prefeito Mel Dale. Fara conseguiu chegar perto dele e, tocando
respeitosamente o chapéu, perguntou:
- Onde está Jor?
- Estou aqui - o chefe de polícia aproximou-se, atravessando a pequena
multidão.
- Algum plano? - perguntou.
Os dois homens se olharam e depois olharam para o chão. Foi o grande
policial que respondeu logo:
- A porta está trancada. E ninguém atende. Estava sugerindo justamente
deixar as coisas como estão até amanhã de manhã.
- Não concordo! - Fara ficou impaciente. - Apanhe um machado e
derrubaremos a porta. A demora só irá encorajar esta corja a resistir.
Todos os que estavam perto concordaram imediatamente. Talvez
depressa demais. Fara olhou em volta intrigado e todos baixaram a cabeça
diante do seu olhar decidido. "Eles estão com medo e não querem fazer
nada!", pensou. Antes que pudesse dizer alguma coisa, o policial Jor replicou:
- Parece que você ainda não ouviu falar a respeito destas lojas. Pelo que
se sabe, não podem ser arrombadas.
Fara percebeu com súbita angústia que era ele quem tinha de agir. Disse:
- Vou apanhar meu maçarico atômico na oficina. Ele dará um jeito na
porta. Tenho sua autorização, senhor prefeito?
Iluminado pelo reflexo das luzes da vitrine, via-se que o prefeito estava
suando.
Disse:
- Talvez fosse melhor telefonar para o comandante da guarnição de Ferd
e chamá-
los.
- Não! - Fara percebeu a indecisão. - Devemos agir nós mesmos. As
outras comunidades deixaram esta gente se estabelecer porque nenhuma ação
decisiva foi tomada contra eles. Precisamos resistir ao máximo. A partir deste
momento. Que é que vocês acham?
O "Sim!" do prefeito foi pouco mais que um suspiro. Mas era tudo o que
Fara necessitava. Transmitiu em voz alta as suas intenções e, ao atravessar a
multidão, avistou o filho, com alguns outros rapazes, examinando o que
estava na vitrine. Fara chamou o filho:
- Cayle, venha ajudar-me com o maçarico.
Cayle não se moveu, nem se virou. Fara parou um instante, apressando-
se em seguida, aborrecido mas evitando discutir.
A energia não tinha som e fluía, suavemente, sem faíscas e sem espocar.
Brilhava com uma luz branca pura, quase acariciando o painel metálico da
porta. Contudo, após um minuto, o metal não tinha sido afetado. Fara
recusava-se a aceitar o fato e aplicava com insistência aquela energia potente
e ilimitada à porta resistente.
Quando, finalmente, desligou a máquina, estava suando por todos os
poros.
- Não entendo - arquejava. - Mas como? Afinal, nenhum metal pode
resistir a um fluxo constante de força atômica.
- Como Jor lhe disse, estas casas de armas são... poderosas. Estão se
espalhando por todo o império, e não reconhecem a Imperatriz - disse o
prefeito.
Fara ficou perturbado. Não estava gostando daquela conversa. Antes que
pudesse falar, um homem na multidão disse:
- Ouvi dizer que a porta só se abrirá àqueles que não possam prejudicar
os de dentro.
Fara impacientava-se. Disse com voz cortante:
- Isto é ridículo! Se existissem portas como esta, nós todos as teríamos.
Nós...
O que fez com que parasse foi a súbita percepção de que não tinha visto
ninguém tentar abrir a porta; com toda aquela agitação à sua volta, era bem
possível que ninguém o tivesse feito. Adiantando-se, segurou a maçaneta e
empurrou a porta.
Esta abriu-se, com uma ausência de peso pouco natural, dando-lhe a
impressão de que a maçaneta teria se soltado na sua mão. Firmemente, Fara
empurrou a porta, que se abriu completamente.
- Jor, entre! - gritou Fara.
O policial fez um movimento indeciso, talvez por precaução, mas logo
percebeu que não podia hesitar diante de todos. Constrangido, pulou em
direção ã porta, mas esta fechou-se na sua cara.
Estupefato, Fara olhou a mão ainda agarrada à maçaneta. Sentiu um
calafrio. A maçaneta se contraía, torcendo-se e fugia, viscosa, de sua
empunhadura. Sentiu sobre ele o peso da atenção da multidão, que o
observava silenciosamente. Tentou, outra vez, agarrar a maçaneta e torcê-la;
desta vez, ela não cedeu. Este obstáculo despertou sua teimosia. Fez um gesto
ao policial.
- Recue, Jor, enquanto eu abro.
O homem afastou-se mas não adiantou nada. Apesar de todo o esforço a
porta não se abriu. Da multidão, alguém disse sombriamente:
- A porta decidiu deixar que você entrasse e depois mudou de idéia.
- Que tolice você está dizendo! Uma porta não tem vontade. Imagine,
mudar de idéia! - disse ele, violentamente.
Fara olhou a loja, tristemente desanimado. O edifício, claro como o dia,
erguia-se sob o céu noturno, alheio e ameaçador e não mais facilmente
conquistável.
Indagava-se o que fariam os soldados da Imperatriz se fossem chamados
a agir. E, subitamente, compreendeu que mesmo os soldados seriam
incapazes de fazer alguma coisa.
- A porta abriu para mim uma vez; abrirá novamente - disse, com raiva.
E abriu. Suavemente, sem resistência, com, a mesma sensação de
ausência de peso, a estranha e sensível porta obedeceu à pressão de seus
dedos. Lá dentro, um recinto grande e semi-escuro. Às suas costas o prefeito
dizia:
- Fara, não seja louco. O que vai fazer aí dentro? Fara, admirado,
percebeu que tinha entrado. Virou-se, encarando a massa de rostos
indistintos:
- Ora... - começou indeciso.
Depois exclamou, excitado: - Vou comprar uma arma, claro!
CAPÍTULO SEGUNDO
Dentro, havi a um silêncio anormal. Nenhum som vinha da noite de
onde chegara.
Fara avançou cautelosamente, o chão atapetado abafando seus passos.
Os olhos acostumaram-se à iluminação suave que parecia emanar das paredes
e do teto. A familiar iluminação atômica foi como um tônico para seus
nervos. Sentindo-se mais seguro, começou a olhar à sua volta. O lugar
parecia bastante normal. Era uma loja e estava mobiliada escassamente.
Havia vitrines nas paredes e no chão, muito bonitas mas nada de muito
especial - e não eram muitas, uma dúzia talvez. Ao fundo, uma porta dupla
que dava para uma outra sala.
Tentou ficar de olho naquela porta enquanto examinava as vitrines, cada
uma contendo três ou quatro armas montadas ou expostas em caixas ou nos
coldres.
Fara pensava na possibilidade de agarrar uma destas armas e quando
alguém viesse, obrigá-lo a sair para que Jor pudesse prendê-lo. Atrás dele, um
homem perguntou calmamente:
- O senhor deseja comprar uma arma?
Fara virou-se de um salto. Uma súbita fúria apossou-se dele, pois a
chegada do empregado da loja fizera fracassar seu plano. A raiva cedeu ao
verificar que o empregado era um senhor de boa aparência, grisalho, mais
velho do que ele mesmo.
Isso era desconcertante. Fara tinha um respeito imenso e quase
automático por pessoas mais velhas. Finalmente respondeu, desajeitado:
- Sim, sim, uma arma.
- Para que finalidade? - perguntou o homem com sua voz calma.
Fara sentiu-se incapaz de outra coisa, a não ser olhá-lo. Gostaria de dizer
o que pensava deles. Mas a idade avançada do seu interlocutor travava-lhe a
língua. Só com grande força de vontade conseguiu dizer:
- Para caçar - estas palavras plausíveis deram-lhe maior força. Sim,
exatamente, para caçar. Há um lago mais ao norte daqui - continuou - e...
Parou de falar, aborrecido; não estava preparado para este ato de
desonestidade.
Disse secamente:
- Para caçar.
Fara recuperara o autodomínio. Odiou o homem por tê-lo colocado
numa situação tão desvantajosa. Ficou observando-o abrir uma das vitrines e
retirar uma arma verde reluzente. Quando o homem se virou para ele, com a
arma na mão, Fara estava pensando: "Muito espertos, usar o velho como
fachada". Esta mesma esperteza os havia feito escolher o terreno do Sr.
Harris. Estendeu a mão para pegar a arma, mas o homem não a entregou.
- Antes que eu possa deixá-lo experimentar esta arma, vejo-me obrigado
a informá-lo, de acordo com os regulamentos das Casas de Armas, das
condições sob as quais lhe é permitido adquiri-la. Nós, os Fabricantes de
Armas, aperfeiçoamos um tipo de revólver que pode, dentro da sua
especialidade, destruir qualquer máquina ou objeto feito do que se chama
matéria. Desta maneira, quem quer que seja que possua uma de nossas armas
é mais do que um páreo para qualquer soldado da Imperatriz. Digo mais, cada
arma é centro de um campo de energia que age como um painel protetor
contra forças destrutivas imateriais. Este painel não oferece resistência a
clavas, lanças ou balas, ou outra substância material qualquer, no entanto
seria necessária a potência de um pequeno canhão atômico para poder
destruir a poderosa barreira levantada em torno do seu possuidor.
Continuando, disse:
- O senhor compreenderá logo que tal arma não poderia cair em mãos
irresponsáveis sem ser modificada. Assim sendo, nenhuma arma comprada
em nossas lojas pode ser usada para agressão ou assassinato. No caso de um
rifle de caça, apenas poderão ser abatidos os animais que constarem das listas
que expomos regularmente em nossas vitrines. Finalmente, nenhuma arma
poderá ser revendida sem a nossa aprovação. Está claro?
Fara aquiesceu. Quer dizer que a arma não pode ser usada para
assassinato ou assalto. Só certos animais podem ser caçados. E quanto a
revender, suponhamos...
suponhamos que ele comprasse esta arma, viajasse com ela uns dois mil
quilômetros e a oferecesse por dois créditos a um estrangeiro rico qualquer.
Quem jamais viria a saber? Percebeu que a arma estava sendo estendida em
sua direção. Ele a pegou e teve que combater o impulso de apontar a arma
para o velho.
- Como funciona? - perguntou.
- É só mirar e puxar o gatilho. Talvez o senhor gostasse de experimentá-
la em nosso alvo?
Fara apontou a arma.
- Sim - disse triunfante - e o senhor é o alvo. Dirija-se à porta da frente e
saia.
Levantou a voz:
- E se alguém pensar em entrar por aquela porta dos fundos, ela também
está sendo vigiada.
Empurrou o vendedor em direção à porta:
- Saia já! Mova-se, senão atiro! Juro que atiro! O homem conservava-se
calmo:
- Não tenho dúvida de que o senhor o faria. Quando decidimos permitir
que a por-rta se abrisse para o senhor entrar, apesar de sua hostilidade,
levamos em conta sua disposição para o homicídio. No entanto, o senhor está
em nosso território. Seria melhor ajustar-se a esta realidade e olhar para trás.
Fez-se silêncio. Dedo no gatilho, Fara permanecia sem se mover.
Pensamentos confusos vieram-lhe à mente. Boatos que ouvira sobre essas
lojas de armas; que tinham representantes secretos em cada distrito; que
tinham um governo oculto impiedoso e, uma vez em suas garras, a única
possibilidade de escapar era a morte.
Porém o que lhe veio mais nitidamente foi o quadro mental dele mesmo,
Fara Clark, pai de família, súdito leal da Imperatriz, ali de pé na loja mal
iluminada, tentando, deliberada-mente, combater uma organização tão vasta e
ameaçadora. Forçando-se a reagir disse:
- Não pense que eu acredito que haja alguém atrás de mim. Vamos, saia!
O olhar do velho o atravessava. O homem disse calmamente:
- Então Rad, você tem as informações?
- Suficientes para uma preliminar - disse uma voz jovem atrás de Fara. -
Tipo A-7
conservador. Inteligência média comum, mas com desenvolvimento
monárico típico das pequenas cidades. Visão parcial exagerada da realidade,
criada por freqentar as escolas do Império. Extremamente honesto.
Raciocinar seria inútil. Emocionalmente necessitaria de um prolongado
tratamento. Não vejo por que nos incomodar.
Deixemos que viva a sua vida como lhe convém. Com voz trêmula Fara
disse:
- Se o senhor pensa que este truque da voz me fará virar, está louco. Eu
sei que não há ninguém aí, é apenas a parede esquerda da loja.
- Concordo Rad - disse o velho. - Mas acontece que ele foi o principal
agitador da multidão lá fora. Acho que deve ser desencorajado a tomar tais
atitudes.
- Faremos com que saibam de sua presença - disse Rad. Ele passará o
resto de seus dias negando a acusação.
A confiança de Fara na arma desaparecera de tal forma que, escutando
intrigado a conversa incompreensível, acabou por esquecer mesmo o
revólver.
O velho insistia:
- Acho que uma pequena emoção poderá ter um efeito bastante
duradouro.
Mostre-lhe o palácio.
A palavra palácio tirou Fara de sua paralisia. Começou:
- Veja como o senhor mentiu, este revólver nem está carregado...
Não havia mais revólver na sua mão.
- Então... - articulou vivamente e, de novo, calou-se.
Tentava combater a sensação de vertigem e, finalmente, tremendo,
concluiu que alguém devia ter tirado a arma de sua mão; logo, alguém estava
realmente às suas costas. A voz não era nada mecânica. Tentou virar-se e não
conseguiu. Tentou lutar contra seus músculos paralisados. O recinto escurecia
curiosamente mais e mais. Já mal enxergava o velho. Teria gritado, se
pudesse. A loja desaparecera!
Fara flutuava no céu, sobre uma imensa cidade. Sua respiração estava
solidamente bloqueada em seus pulmões. Sua sanidade mental retornou
quando percebeu, gradativamente, que de fato estava pisando solo firme e
que a cidade deveria ser uma imagem projetada de alguma maneira
diretamente dentro de seus olhos.
Fara reconheceu imediatamente a metrópole em baixo. Era a cidade dos
sonhos, a Cidade Imperial, capital da gloriosa Imperatriz de Isher. Daquela
vertiginosa altura, via os jardins prateados do palácio, a própria residência
Imperial. Os últimos tentáculos do medo que sentira já o soltavam, cedendo
lugar a um misto de admiração e fascínio. O medo cedeu por completo
quando Fara percebeu que o palácio se aproximava com uma velocidade
incrível. "Mostre-lhe o palácio", tinham dito. O teto brilhante reverberou
diretamente em seu rosto. Sua sólida estrutura metálica passou através dele.
Fara pressentiu logo a iminência de um processo de dissecação mental, à
medida em que a imagem estacionou num enorme recinto onde um grupo de
homens sentava-se à volta de uma mesa, à cabeceira da qual estava uma
mulher jovem. As enormes e poderosas câmaras, indesculpáveis e sacrílegas,
fotografavam a cena, focalizavam o rosto da mulher.
Era um rosto bonito, mas agora estava contorcido por fortes emoções,
enquanto se inclinava para a frente; sua voz, que Fara ouvira tantas vezes, em
tom calmo, nos telestates, estava distorcida. Distorcida pelo ódio e pela plena
consciência do poder:
- Quero este traidor morto, ouviram? Não me importa como, mas
amanhã ã noite quero ouvir a notícia de que ele está morto.
Aquela voz que cortava o silêncio do recinto era uma caricatura da voz
amada.
Fara a escutara tão nitidamente que era como se ele estivesse dentro da
sala.
A imagem desfez-se e, instantaneamente, Fara viu-se de volta à loja de
armas.
Por um momento, lutou para reacostumar os olhos à semi-obscuridade.
Sua primeira reação foi um desprezo pela simplicidade do truque que lhe fora
imposto.
Um filme! Que tolo pensavam que ele era para engolir algo tão irreal?
- Corja! Vocês arrumaram alguém para representar o papel da
Imperatriz, pretendendo...
- Basta! - disse a voz de Rad.
Fara estremeceu quando viu um rapaz enorme surgir à sua frente.
Alarmado, pensou que gente que era capaz de insultar tão vilmente Sua
Majestade Imperial, não hesitaria por um momento em ferir a ele, Fara Clark.
O jovem continuava falando em tom cortante:
- Não estamos pretendendo que o que viu esteja acontecendo neste
preciso momento no palácio. De fato, isso se passou há dois dias. A mulher
era a Imperatriz.
O homem que ela condenou à morte tinha sido um seu conselheiro que
ela considerava um fraco. Ele foi encontrado morto em seu apartamento na
noite passada. Seu nome, se você se der ao trabalho de verificar nas mais
recentes notícias, era Banton Vickers. Bem, acabemos logo com isto, pois já
terminamos com o senhor.
- Mas eu não terminei - disse Fara, violentamente. - Nunca escutei ou vi
tanta infâmia na minha vida. Se vocês pensam que a cidade vai permitir que
isto fique assim, estão muito enganados. Colocaremos neste local um guarda
dia e noite e ninguém entrará ou sairá.
- Agora chega. O teste foi muito interessante. Como homem honesto, se
algum dia estiver em dificuldades, pode apelar para nós. Saia pela porta
lateral.
Era o velho grisalho que estava falando.
Forças impalpáveis empurraram Fara em direção a uma porta que
aparecera miraculosamente na parede onde segundos antes estava o palácio.
Encontrou-se de pé num canteiro de flores e, à sua direita, havia uma
multidão. Reconheceu seus conterrâneos e sabia que tinha escapado.
Terminara o pesadelo. Quando chegou em casa, meia hora mais tarde,
Creel perguntou-lhe:
- Onde está a arma?
- A arma? - Fara olhou a mulher, espantado.
- Disseram há alguns minutos no telestate, que você foi o primeiro
freguês da nova loja de armas.
Fara lembrou-se de que o rapaz havia dito: "Faremos com que saibam de
sua presença". Angustiado, pensou em sua reputação. Não que tivesse um
grande nome mas acreditava, e se orgulhava disto, que a oficina de Fara
Clark era conhecida e respeitada na aldeia e nos arredores.
Correu para o telestate e chamou o prefeito. Suas esperança caíram por
terra quando ouviu o gordo prefeito dizer:
- Sinto muito, Fara. Mas não vejo como você pode conseguir tempo de
graça no telestate. Vai ter que pagar. Eles o fizeram.
- Eles pagaram?
Fara se indagava se a sua voz soava tão vazia como se sentia.
- Eles também pagaram ao velho Lan Harris pelo terreno. Ele exigiu um
preço muito alto e eles pagaram. Ele me telefonou para transferir o título.
- Oh! - o mundo de Fara estava se desmoronando. - Você quer dizer que
ninguém vai fazer nada? E a guarnição imperial em Ferd?
Vagamente, escutou o prefeito murmurar qualquer coisa a respeito de os
soldados da Imperatriz terem se recusado a interferir em assuntos civis.
Fara explodiu:
- Assuntos civis! Você quer dizer que será permitido a essa gente entrar
e sair quando bem lhes aprouver, ainda que não queiramos, forçando
ilegalmente a venda de terrenos porque tomaram posse deles?
Um pensamento o fulminou, deixando-o quase sem fôlego:
- Olhe, você não mudou de idéia a respeito do Jor ficar de guarda diante
da loja, mudou?
O prefeito estava ficando impaciente:
- Escute, Fara, deixe que as autoridades constituídas tomem conta deste
caso.
- Mas você vai deixar o Jor de guarda, não vai? O prefeito, cada vez
mais impaciente disse:
- Prometi, não foi? Pois assim será. Agora, você ainda quer comprar
tempo no telestate? São 15 créditos por minuto. Como seu amigo, acho que
está jogando dinheiro fora. Nunca foram apanhados com uma declaração
falsa até hoje.
Fara respondeu aborrecido:
- Ponha dois anúncios, um pela manhã e outro à noite.
- Está bem. Desmentiremos tudo. Boa-noite. Apagou-se a imagem do
telestate.
Fara continuou sentado. Um novo pensamento endurecia-lhe o rosto.
"Esse nosso filho... vamos ter que pôr as cartas na mesa. Ou ele vai trabalhar
comigo na oficina ou não recebe mais mesada." Creel disse:
- Você está tratando o rapaz errado. Ele está com 23 anos e você o trata
como se fosse uma criança. Lembre-se, com 23 anos você era um homem
casado.
- Foi diferente - disse Fara. - Eu tinha senso de responsabilidade. Sabe o
que ele fez esta noite?
Ele não entendeu muito bem a resposta. Por um momento, teve a
impressão de que ela dissera:
- Não; de que maneira você o humilhou primeiro? Fara apressou-se a
responder:
- Ele se recusou, em frente a toda gente da cidade, a me ajudar. Ele é
mau, muito mau.
- Sim, é verdade - disse ela com amargura - ele é mau. Tenho certeza de
que você não percebe o quanto ele o é. É frio como o aço, mas sem ter a sua
resistência ou a sua integridade. Custou muito, mas agora está até odiando a
mim, por ter ficado do seu lado mesmo quando sabia que você não tinha
razão.
- O quê? - perguntou Fara espantado; depois disse: - Vamos, vamos,
minha querida; estamos os dois perturbados. Vamos dormir.
Dormiu mal naquela noite.
CAPÍTULO TERCEIRO
Houve dias em que a convicção de que aquela era uma luta pessoal entre
ele e a casa de armas, pesava fortemente sobre Fara. Ainda que estivesse fora
de seu caminho, estabeleceu um trajeto, na ida e na volta do trabalho, que
passava em frente à casa de armas, parando sempre para falar com o policial
Jor. No quarto dia o policial não estava lá.
A princípio, Fara esperou pacientemente. Depois, começou a zangar-se.
Finalmente, foi à sua loja e ligou para a casa de Jor. Jor não estava.
Segundo a mulher dele, Jor estava montando guarda à casa de armas. Fara
hesitou. Sua própria loja estava entulhada de serviço e ele teve um sentimento
de culpa por ter negligenciado os seus clientes pela primeira vez na vida.
Já na rua, viu uma grande multidão aglomerando-se em frente à loja de
armas.
Fara apressou-se. Um conhecido falou-lhe, excitado:
- Jor foi assassinado, Fara!
- Assassinado!
Fara estacou, imóvel, e pela primeira vez deixou de ter plena
consciência do pensamento que lhe percorria a mente: satisfação. Agora,
mesmo os soldados terão que agir. Falou, vagarosamente:
- O corpo. Onde está?
- Lá dentro.
- Quer dizer que essa corja o matou e levou o corpo para dentro?
- Ninguém viu o assassinato - disse outro homem - mas ele desapareceu
e ninguém o vê há três horas. O prefeito comunicou-se com a loja pelo
telestate, mas eles afirmam que não sabem nada a respeito. Bem, eles não vão
sair dessa tão facilmente. O prefeito foi telefonar para os soldados de Ferd,
para que eles tragam alguns canhões bem grandes.
- Canhões? Sim, essa será a solução e os soldados terão que vir, é claro -
disse Fara.
Fara balançou afirmativamente a cabeça em sua imensa certeza de que
agora os soldados imperiais teriam que agir, pois não havia mais desculpa.
Começou a dizer algo a respeito do que faria a Imperatriz quando soubesse
que um homem perdeu a vida porque os soldados fugiram ao seu dever, mas
suas palavras foram afogadas por um grito:
- Aí vem o prefeito. Ei, Sr. Prefeito, quando é que os canhões atômicos
entrarão em ação?
Outros gritos da mesma natureza fizeram-se ouvir, enquanto o autoplano
do prefeito aterrissava suavemente. Algumas das perguntas deviam ter
chegado aos ouvidos de sua excelência, pois ele postou-se de pé em sua
viatura aberta e levantou a mão, pedindo silêncio. Para espanto de Fara, o
homem o fixou acusadoramente.
Fara balançou a cabeça, perplexo ante aquele olhar, recuando
involuntariamente, quando o prefeito apontou-lhe o dedo e disse numa voz
trêmula:
- Aí está o homem, o responsável pelas encrencas que se abateram sobre
nós. Dê um passo à frente, Fara Clark, mostre-se. Você custou a esta cidade
setecentos créditos, que mal podemos despender.
Fara não podia mexer-se ou falar para salvar a vida. O prefeito
continuou, com um tom de autocomiseração na voz:
- Todos nós sabíamos que não seria benéfico intrometermo-nos com a
loja de armas. Se o próprio Governo Imperial os deixa em paz, que direito
temos nós de vigiá-los ou agir contra eles? Foi isso o que pensei desde o
começo... Mas este homem... este... este Fara Clark, ficou nos atiçando, nos
forçando a agir contra a vontade, e agora temos uma conta de setecentos
créditos para saldar e...
Terminou dizendo:
- Em resumo, eis o que houve: quando chamei a guarnição, o
comandante riu e disse que Jor iria entrar em contato. Mal desliguei, houve
uma chamada a cobrar de Jor. Ele está em Marte. - Esperou que amainassem
os gritos de espanto, e concluiu:
- Levará quatro semanas para voltar de espaçonave, e nós teremos que
pagar por isso. E Fara Clark é o responsável.
O choque havia passado. Fara ficou frio, com a mente inflexível. Disse,
afinal, com desprezo:
- Então você pretende entregar os pontos e culpar a mim, tudo ao mesmo
tempo.
Vocês estão todos doidos.
Ao afastar-se, ouviu o Prefeito Dale dizer que ainda não estava tudo
perdido, que ele tinha ouvido dizer que a loja de armas se estabeleceu em
Glay porque a cidadezinha era equidistante de quatro cidades maiores e que
ela pretendia negociar com aquelas cidades. Aquilo traria turistas, além de
aumentar as vendas paralelas dos comerciantes locais.
Fara não ouviu mais nada. Com a cabeça erguida, voltou para sua loja.
Houve alguns gritos de provocação por parte da multidão, mas ele os
ignorou. O pior de tudo, à medida que passavam os dias, era a consciência de
que o pessoal da loja de armas não estava interessado nele. Pareciam
distantes, superiores, invencíveis.
Fara não foi à estação do expresso para ver a chegada de Jor. Ele ouviu
dizer que o conselho havia decidido multar Jor com a metade das despesas da
viagem, sob a ameaça de perder o emprego, se não estivesse de acordo. Na
segunda noite, após a volta de Jor, Fara esgueirou-se até a casa dele e
entregou ao oficial cento e setenta e cinco créditos. Após o que, voltou para
casa com a alma mais leve.
No terceiro dia depois desse fato, a porta de sua loja abriu com estrondo
e um homem entrou. Fara franziu o sobrolho ao ver quem era: um joão-
ninguém da cidade, Castler. O homem macaqueava um sorriso.
- Pensei que lhe interessasse, Fara. Alguém saiu da loja de armas, hoje.
Fara concentrou-se deliberadamente no pino de conexão da dura chapa
do motor atômico que estava concertando. Imaginou com uma crescente
sensação desagradável que o sujeito não lhe iria fornecer mais informações
espontaneamente.
Uma curiosidade progressiva o fez perguntar, por fim, grunhindo entre
dentes:
- Espero que o delegado o tenha apanhado, não?
Ele não esperava coisa alguma, mas era uma forma de começar.
- Não era um homem. Era uma moça.
Fara franziu o cenho. Não lhe agradou a idéia de criar problemas para
uma mulher. Aqueles salafrários! Usarem uma garota como antes usaram um
velho. Mas era um truque destinado ao fracasso; provavelmente, era alguma
boba que precisava de uma boa surra. Fara disse, asperamente:
- Então, o que aconteceu?
- Ela ainda está lá fora, insolente como o quê. E bem bonitinha, também.
- Fizeram alguma coisa?
- Nada. O delegado soube, mas disse que não tem vontade de ficar longe
da famí-
lia por mais um mês, e ainda por cima pagando as despesas.
Fara refletiu uns instantes sobre aquilo. Sua voz tremia quando disse,
reprimindo a fúria:
- Quer dizer que eles os estão deixando sair da toca. Está tudo tão claro
quanto o inferno. Não podem entender que não se deve ceder nem uma
polegada ante esses... esses transgressores? É como dar proteção ao pecado.
Sentiu, com o canto dos olhos, que o rosto do outro abria-se num cínico
sorriso.
De repente, Fara foi atingido pela idéia de que o outro se divertia com
sua raiva. E
havia algo mais naquele sorriso - uma secreta sabedoria. Encarou o
vagabundo.
- Naturalmente essa questão de pecado não o deve preocupar muito.
- Oh! - disse o homem sem se abalar - os duros golpes da vida nos fazem
mais tolerantes. Por exemplo, depois que você conhecer melhor essa moça,
você mesmo vai achar, provavelmente, que há um lado bom em qualquer um
de nós.
Não foram tanto as palavras, quanto o tom de eu sei de que estou
falando, que fez com que Fara vociferasse:
- Quer dizer - depois que eu a conhecer melhor! Eu nem sequer falaria
com essa descarada.
- Nem sempre se pode escolher - disse o outro com enorme naturalidade
-
suponha que ele a leve para casa.
- Quem vai trazer quem para casa? - perguntou Fara, irritado. - Escute,
Castler...
Estacou de repente. O peso morto do terror abateu-se sobre seu
estômago, e todo seu ser vacilou.
- Você quer dizer que... - balbuciou ele.
- O que eu quero dizer - replicou Castler com um triunfante olhar de
esguelha - é que a moçada não costuma deixar uma beleza dessas sozinha. E,
naturalmente, seu filho foi o primeiro a falar com ela. E concluiu:
- Eles estão passeando juntos, agora, na Segunda Avenida e vêm nesta
direção.
- Fora daqui - rugiu Fara - e fique longe de mim, seu abutre! Fora!
Rígido, Fara deixou-se ficar ali, por um momento. Então saiu para a rua.
Havia chegado o momento de pôr um fim àquilo tudo. Não lhe ocorria
nenhum plano definido, simplesmente a determinação de acabar com a
impossível situação o empurrava para diante. Sua raiva contra Cayle
constituía um sentimento totalmente confuso. Como pôde ele ter um filho tão
indigno, ele que pagava suas dívidas e trabalhava arduamente, tentando ser
decente e viver dentro dos mais altos padrões da Imperatriz ?
E agora, Cayle e essa moça da loja de armas, que se deixou apanhar
propositadamente - ele os avistou ao dobrar a esquina e sair na Segunda
Avenida.
Caminhavam em direção contrária à dele. Assim que os alcançou, ouviu
a moça dizendo:
- Você tem uma idéia errada a nosso respeito. Uma pessoa como você
não poderia conseguir trabalho em nossa organização. Você pertence ao
Serviço Imperial, onde existem oportunidades para um jovem de boa
aparência e ambição.
Fara estava absorvido demais por suas palavras, para poder pensar em
alguma coisa.
- Cayle - disse ele, asperamente.
O casal voltou-se; Cayle, com a estudada ausência de pressa de um
rapaz que lutou muito para obter nervos de aço; a garota foi mais rápida, mas
ainda assim conservou a dignidade.
Fara teve a sensação de que sua fúria era autodestruidora, porém a
violência de suas emoções afugentou aquele pensamento antes mesmo que
ele se tornasse plenamente consciente. E disse, com voz rouca:
- Cayle, vá já para casa.
Percebera o olhar que a garota lançara sobre ele, estudando-o
curiosamente com seus estranhos olhos cinza-verdes. Nem sinal de vergonha,
pensou, e sua raiva aumentou ainda mais, fazendo-o esquecer-se do sinal de
alarme proveniente do rubor que se alastrava pelas faces de Cayle.
O rubor transformou-se numa raiva crescente e cerrou os lábios quando
ouviu Cayle dizendo à jovem:
- Este é o velho bobalhão com o qual tenho que estar sempre brigando.
Felizmente, vemo-nos muito raramente. Nem sequer nos encontramos
nas horas de refeição. Que acha dele?
A jovem sorriu impessoalmente:
- Oh! Nós conhecemos Fara Clark muito bem. Ele é o paladino da
Imperatriz em Glay.
- É isto mesmo - zombou o rapaz. - Você devia ouví-lo. Ele pensa que
vivemos num paraíso e que a Imperatriz é o poder divino. O pior de tudo é
que não há a menor possibilidade de que ele consiga jamais se desfazer desse
ar de paspalhão.
Eles se foram, e Fara quedou-se ali. A extensão do que acontecera, fê-lo
sentir uma raiva intensa, como nunca sentira antes. Tinha a impressão de ter
cometido um engano. Mas não pôde compreender especificamente qual. Já
havia muito tempo, desde que Cayle se recusara, a ajudá-lo na oficina, que
ele sentia a aproximação deste clímax.
Por todo o resto do dia, em sua loja, Fara expulsava de sua mente os
pensamentos, mas eles voltavam sempre à tona: era possível que perdurasse
esta situação, como antes, com Cayle e ele vivendo na mesma casa, sem
sequer olharem um para o outro quando seus caminhos cruzavam indo dormir
em horas diferentes e acordando em horas diferentes, ele, Fara, às seis e meia
e Cayle ao meio-dia? Era possível que isto continuasse, por todos os dias e
todos os anos do futuro?
Creel estava esperando por ele quando voltou para casa. Disse-lhe:
- Fara, ele quer que você lhe empreste quinhentos créditos para que
possa ir à Cidade Imperial.
Fara anuiu em silêncio. No dia seguinte de manhã trouxe o dinheiro para
casa e o deu a Creel, que o levou para o quarto do rapaz.
Ela voltou um minuto depois.
- Ele pediu para lhe dizer adeus.
Quando Fara voltou para casa, naquela noite, Cayle já havia partido.
CAPÍTULO QUARTO
Cayle não pensou em sua partida de Glay como no resultado de uma
decisão. Há tanto tempo desejava ir embora que aquele propósito lhe parecia
parte de suas necessidades corporais, tais como beber ou comer. Mas o
impulso foi crescendo, obscura e indistintamente. Frustrado por seu pai, tinha
uma atitude hostil para tudo que fizesse parte da aldeia. E o seu desafio
obstinado esbarrava a cada momento nas características indestrutíveis de sua
prisão - isto até agora.
Não sabia exatamente por que se havia aberto sua prisão. Havia a garota
da loja de armas, é claro. Esbelta, com olhos cinza-verdes inteligentes, rosto
bem talhado, sua aura de pessoa que já tomou muitas decisões certas - havia
dito, ele recordava as palavras como se ela as estivesse proferindo naquele
momento: "Sim, mas claro, sou da Cidade Imperial. E voltarei para lá na
terça de tarde. "
Nesta terça-feira ela estaria indo para a grande cidade, enquanto ele
tinha que ficar em Glay. Não podia suportar esta idéia. Foi isso, mais do que
sua desinteligência com o pai, que o fez pressionar a mãe no sentido de
conseguir o dinheiro. Agora, estava sentado no aerônibus para Ferd, e estava
apavorado por não encontrar a moça a bordo.
No Aeroporto Central de Ferd, esperando o transporte para a Cidade
Imperial, procurara intensamente por Lucy Ral . Mas a multidão compacta
que se concentrava em direção à constante torrente de aviões interestaduais
tornou vãos os esforços de seus olhos atentos. E, logo, seu próprio transporte
aéreo imenso surgiu, preparando-se para pousar.
Cayle foi tomado de uma tremenda excitação. A lembrança da jovem se
apagou.
Subiu a bordo febrilmente. Não pensou mais em Lucy até que o avião já
estava planando sobre as terras verdes lá embaixo. Recostou-se então em sua
confortável poltrona e pôs-se a tecer conjecturas: que tipo de pessoa era ela,
essa garota da loja de armas. Onde viveria. Que tipo de vivência adquirira
como membro dessa organização quase rebelde?... Havia um homem sentado
uns três metros à sua frente. Cayle reprimiu um impulso de fazer-lhe todas as
perguntas que ferviam dentro dele. Outras pessoas talvez não se
apercebessem tão bem quanto ele de que, apesar de ter vivido toda a sua vida
em Glay, não era um matuto. Era melhor portanto, não arriscar uma mancada.
Um homem riu. Uma mulher disse:
- Mas meu querido, você tem certeza de que teremos recursos para um
passeio pelos planetas?
Os dois passaram ao longo do corredor e Cayle reparou na grande
naturalidade com que encaravam a viagem.
Sentiu-se muito autoconsciente a princípio mas também, gradualmente,
foi se sentindo mais espontâneo. Viu as notícias no estate que encontrou em
sua poltrona.
Depois, preguiçosamente, estudou a paisagem que corria.
vertiginosamente lá embaixo, ajustando a lente de aproximação de seu visor.
Quando os três homens se sentaram à sua frente e começaram a jogar cartas,
ele já estava se sentindo bem à vontade.
Era um jogo pequeno, de apostas baixas. E durante todo o jogo dois dos
participantes nunca foram chamados pelo nome. O terceiro chamava-se Seal.
Cayle achou o nome muito pouco comum. E o homem era tão pouco comum
quanto o nome. Parecia ter trinta anos. Tinha os olhos amarelos como os de
um gato. Seu cabelo era ondulado e estava displicentemente despenteado. O
rosto era pálido, ainda que não parecesse doentio. Vários anéis dardejavam
fogos coloridos de seus dedos. Quando falava, ele o fazia com tranqila
segurança. E foi ele quem finalmente se dirigiu a Cayle, dizendo:
- Vejo que está nos observando. Quer jogar conosco ?
Cayle havia estado atento, percebendo automaticamente em Seal o
jogador profissional, mas ainda não se havia decidido quanto aos outros dois.
O problema era saber qual deles era o "pato".
- O jogo ficaria mais interessante - acrescentou Seal.
Cayle empalideceu repentinamente. Compreendeu, agora, que os três
formavam uma equipe. E que ele havia sido escolhido como vítima.
Instintivamente, olhou em torno para ver se alguém havia notado sua reação.
Para seu alívio, ninguém estava olhando. Não viu mais o homem que antes
estava sentado a uns três metros de distância e uma mulher corpulenta e bem
vestida que parará na entrada da seção virou-se e foi embora. Gradualmente,
as cores voltaram ao rosto de Cayle. Então eles estão pensando que
encontraram uma presa fácil, não é? Levantou-se sorrindo.
- Não se importam se eu entrar? - perguntou. Sentou-se na cadeira vazia
em frente ao homem de olhos amarelos. Coube a ele dar as primeiras cartas.
Em rápida sucessão, e honestamente, deu a si próprio um rei fechado e dois
abertos. Jogou com aquela mão até o fim, e ainda que as apostas fossem
baixas, eventualmente acabou empilhando quatro créditos, em moedas.
Das próximas oito rodadas, Cayle ganhou três, o que estava abaixo de
sua média.
Ele era um calistênico, embora nunca tivesse ouvido aquela palavra,
com temporária habilidade com as cartas. Certa vez, há uns cinco anos, ele
tinha, naquela época, dezessete anos, jogando com um grupo de quatro
rapazes à base de vinte partidas por crédito, ele ganhara dezenove das vinte.
Depois disso, sua sorte no jogo, que poderia ter-lhe dado os meios para sair
de Glay, foi tão grande que ninguém mais da cidade queria jogar com ele.
A despeito de sua série de êxitos agora, não sentiu qualquer sensação de
superioridade. Seal dominava o jogo. Havia um ar de comando que emanava
dele, uma impressão de força incomum, não física. Cayle começou a ficar
fascinado.
- Espero não ofendê-lo - disse finalmente - mas o senhor é um tipo de
pessoa que me interessa.
Os olhos amarelos do homem o observavam atentamente, mas não disse
nada.
- Deve ter rodado um bocado por aí, suponho - disse Cayle.
Sentiu-se pouco satisfeito com a pergunta. Não era assim que ele a
queria. Tinha soado pouco madura. Seal, ainda que fosse um mero jogador,
encarou com altivez uma abertura de diálogo tão primária. Mas desta vez
respondeu.
- Um pouco - disse.
Seus companheiros pareciam achar aquilo muito divertido. Ambos
caíram na gargalhada. Cayle corou, mas tinha um desejo muito grande de
saber as coisas.
- Esteve em algum planeta? - perguntou. Nenhuma resposta. Seal
estudou cuidadosamente as cartas descobertas, e apostou um quarto de
crédito. Cayle lutou contra a sensação de estar-se fazendo de idiota. Então
disse:
- Nós todos ouvimos muita coisa, e às vezes é difícil saber-se o que é
verdade e o que não é. Vale a pena ir até algum dos planetas?
Os olhos amarelos o perscrutaram, agora divertidos.
- Ouça rapazinho - disse Seal de modo taxativo - não chegue perto deles.
A Terra é o paraíso deste sistema, e se alguém lhe disser que Vênus está se
tornando uma maravilha, mande-o para o inferno... que fica em Vênus. O
inferno, estou lhe dizendo. Tempestades de areia sem fim. Um dia, quando eu
estava em Venusburgo, a temperatura chegou a oitenta e quatro graus
centígrados.. . - e concluiu: - Nada disso aparece nos anúncios, hein?
Cayle concordou a contragosto. A resposta o desiludiu. Pareceu-lhe
muito volúvel, e um tanto jactanciosa. O homem parecia-lhe repentinamente
menos interessante.
Tinha ainda uma pergunta a fazer:
- O senhor é casado? Seal riu.
- Casado! Ouça meu amigo. Eu me caso em cada lugar aonde vou. Não
legalmente é claro - riu novamente, de modo significativo. - Acho que vou
acabar por influenciá-
lo com estas idéias.
- Ora, são idéias que qualquer um pode ter sozinho - respondeu Cayle.
Sua resposta fora automática. Não esperava uma revelação assim de seu
caráter.
Sem dúvida alguma, Seal era um homem de coragem. Mas o encanto
havia se quebrado. Cayle reconheceu que estava sendo inspirado pela moral
de sua pequena cidade, pela ética de sua mãe.
Seal estava falando de novo, animadamente:
- Este rapaz vai ser alguém na sempre gloriosa Isher, hein, amigos? -
interrompeu-se e depois disse:
- Como todas essas cartas boas?
Cayle ganhara novamente. Tinha ganho um monte de dinheiro e
hesitara. Havia ganho quarenta e cinco créditos, e achou melhor parar, para
não causar animosidade.
- Sinto ter que deixá-los - disse - mas ainda tenho algumas coisas que
gostaria de fazer. Foi um pra...
A última sílaba morreu-lhe na garganta. Um revólver, minúsculo e
brilhante, o espreitava por sobre a borda da mesa. O homem de olhos
amarelos falou, com uma expressão monótona:
- Então você acha melhor parar, hein?
Sem voltar a cabeça, dirigiu-se aos companheiros:
- Ele pensa que já é hora de se despedir, rapazes. Vamos deixá-lo ir?
A pergunta deve ter sido feita por mera questão de retórica, pois os seus
asseclas limitaram-se a fazer uma careta.
- Pessoalmente - continuou o líder - sou completamente a favor de que
ele se vá.
Mas deixem-me ver - rosnou. - Pelo meu aparelho de transparência, vejo
que sua carteira de notas está no bolso superior direito e há algumas notas de
cinqenta créditos pregadas com alfinete no bolso da camisa. E ainda há, é
claro, o dinheiro que ele ganhou de nós, no bolso da calça.
Ele inclinou-se para a frente, seus estranhos olhos irônicos e
escancarados.
- E então você pensou que nós éramos jogadores e que estávamos
pretendendo limpá-lo, não foi? Não meu amigo, não é assim que
trabalhamos. Nosso sistema é muito mais simples. Se você tivesse recusado
colaborar, ou se tentasse atrair a atenção de alguém, eu dispararia esta pistola
energética direta ao seu coração. Ela produz um feixe tão estreito que
ninguém jamais perceberia o pequeno furo em sua roupa. E você continuaria
a ficar sentado aí, parecendo um pouco sonolento, talvez, mas quem iria se
incomodar com isto, nesta grande nave, com todos os passageiros atarefados
e ensimesmados?
Sua voz tornou-se mais forte.
- Passe o dinheiro! E depressa! Que não estou brincando! Dou-lhe dez
segundos!
A entrega do dinheiro levou mais de dez segundos mas, aparentemente,
o que importava era a continuidade da obediência. Foi-lhe permitido
recolocar a carteira vazia no bolso e várias moedas foram ignoradas.
- Você vai ter que comer algo antes de chegarmos. - disse Seal,
generosamente.
O revólver desapareceu por baixo da mesa e Seal recostou-se novamente
na poltrona, relaxando os músculos.
- Apenas no caso de você resolver se queixar ao comandante, deixe-me
avisá-lo de que nós o mataríamos imediatamente, sem nos preocupar com as
conseqências.
Nossa história é bem simples. Diremos que você bancou o idiota e
perdeu todo seu dinheiro no jogo.
Riu e depois, levantando-se da poltrona, novamente misterioso e
imperturbável, disse:
- Até a vista, companheiro. Desejo-lhe mais sorte da próxima vez.
Os outros homens já estavam se levantando. Os três caminharam
lentamente em direção à saída e Cayle os viu entrar no bar que havia em
frente. Cayle permaneceu sentado em seu lugar, inteiramente arrasado.
Procurou o relógio com os olhos - 15 de julho de 4784 da era de Isher,
duas horas e quinze minutos após a partida de Ferd e ainda faltava uma hora
para chegar à Cidade Imperial.
Com os olhos fechados, Cayle imaginou-se chegando à velha cidade, ao
anoitecer.
Sua primeira noite ali, que deveria ter sido tão excitante, ele ia ter que
passá-la na rua.
CAPÍTULO QUINTO
Não conseguiu ficar sentado. Por três vezes, ao perambular pela nave,
parou em frente aos grandes espelhos energéticos. Os seus olhos injetados de
sangue, que naqueles espelhos pareciam ter vida independente, devolveram-
lhe o olhar feroz. E
acima da desesperada preocupação quanto ao que fazer agora, pairava a
dúvida: Por que me escolheram eles para vítima? O que é que havia com ele
que fez com que a quadrilha se lhe dirigisse direta e inequivocamente?
Ao virar as costas ao terceiro espelho, viu a garota da loja de armas. Seu
olhar deteve-se nele, sem reconhecê-lo. Sem esperanças, Cayle moveu-se
para fora de sua linha de visão e afundou numa poltrona.
Seu olhar desatento foi atraído por um movimento. Um homem, do
outro lado do corredor, deixou-se cair sobre uma cadeira. Envergava um
uniforme de coronel do Exército de Sua Majestade Imperial, e estava tão
bêbado que mal conseguira sentar-se à mesa, e o mistério de como havia
conseguido chegar até aquela cadeira devia ter as suas origens nas mais
profundas leis do equilíbrio.
Virou a cabeça e seus olhos torvos esbarraram em Cayle:
- Você está me espionando, hein? - sua voz diminuiu de tom mas
aumentou em intensidade. - Garçom!
Um garçom aproximou-se solícito.
- Sim senhor.
- O melhor vinho para mim e minha sombra. Assim que o garçom se foi,
ele ace-nou para Cayle.
- Não quer sentar-se aqui? Poderíamos viajar juntos, não é mesmo? - sua
voz adquiriu um tom confidencial. - Sou um pau-d'água, eu sei. Há muitos
anos estou escondendo isto da Imperatriz. Ela não gosta - balançou a cabeça,
denotando tristeza. - Ela não gosta disso nem um pouco. Mas então, o que
está esperando?
Venha cá!
Cayle aproximou-se, maldizendo aquele bêbado idiota. Mas também
havia uma esperança. Ele havia esquecido, mas agora lembrava que a jovem
da casa de armas lhe havia sugerido entrar para o Exército Imperial. Se ele
conseguisse obter daquele alcoólatra as informações que precisava para ser
rapidamente admitido, a perda do dinheiro já não seria mais tão importante.
Sorvia seu vinho atentamente. Estava muito mais tenso do que gostaria
de aparentar. Ficou observando seu companheiro mais velho com olhares
rápidos e disfarçados. O passado do homem começou a emergir por entre
uma multidão de confidencias incoerentes. Chamava-se Laurel Medlon.
Coronel Laurel Medlon, disse a Cayle, confidente da Imperatriz, íntimo da
corte, e chefe de um distrito de arrecadação de impostos.
- Diabo, hic, e um bom distrito - disse com uma satisfação que deu às
palavras um valor maior do que tinham por si.
Olhando sardonicamente para Cayle, disse-lhe:
- Então quer entrar nisto também, hein? - um soluço cortou-lhe a frase. -
Bem, venha ao meu escritório, amanhã...
Sua voz tornou-se arrastada. Começou a murmurar para si mesmo, e
quando Cayle perguntou-lhe algo, resmungou ininteligivelmente sobre a sua
chegada à Cidade Imperial.
-... quando eu tinha a sua idade. Rapaz, como eu era inocente! - um
espasmo de bêbada indignação o sacudiu: - Eu sei, esses malditos
monopólios de tecidos têm diferentes padrões de fazenda que mandam para
todo o país. Você vê logo quem vem do interior. Eu fui manjado logo...
Então era isso: suas roupas!
A injustiça desta história toda deixou-o alquebrado. Seu pai nunca lhe
permitira comprar os ternos nem mesmo na cidade vizinha de Ferd. Fara
havia protestado:
"Como posso esperar que os comerciantes daqui entreguem a mim o que
têm para consertar se a minha família não negocia com eles?" E tendo
formulado esta pergunta irrespondível o velho considerava o assunto
encerrado, não aceitando mais nenhum argumento.
"E aqui estou eu", pensou Cayle, "limpo por causa daquele velho". A
raiva fútil cedeu. Porque cidades maiores, como Ferd, provavelmente tinham
padrões especiais também, tão facilmente identificáveis como os de Glay. A
injustiça disso, viu com clareza, não dependia só da estupidez teimosa de um
homem.
Mas era uma coisa útil de se saber, se bem que um pouco tardia.
O coronel estava se animando. E, mais uma vez, Cayle perguntou:
- Mas como o senhor entrou para o exército? Como conseguiu se tornar
oficial?
O bêbado disse alguma coisa sobre a Imperatriz estar sempre se
queixando a respeito do recolhimento de taxas. Depois falou dos problemas
decorrentes dos ataques feitos às lojas de armas. Mas falava desconexa-
mente. Finalmente veio uma resposta à sua pergunta.
- Eu paguei cinco mil créditos pela minha patente - maldito crime... -
continuou depois. - A Imperatriz agora insiste em dar as patentes de graça.
Isto não vai funcionar. Todo homem tem seu preço.
Acrescentou com indignação:
- Eu paguei tanto!
- O senhor quer dizer - insistia Cayle - que agora se pode conseguir
patentes sem ter que pagar?
Na sua ansiedade tinha segurado a manga do paletó do homem.
Os olhos do coronel se abriram subitamente. Olhou Cayle com suspeita.
- Quem é você? - perguntou secamente. - Vá embora.
Sua voz se tornou dura, quase sóbria.
- Por Deus - disse - não se pode mais viajar hoje em dia sem encontrar
um parasita. Estou até pensando em prendê-lo.
Cayle levantou-se, pálido. Sentia-se à beira do pânico. Estava sendo
atingido demais e com muita freqência em pouco tempo.
A sua mente tornou-se clara novamente. Viu que estava parado à porta
do bar dianteiro. Seal e os seus companheiros ainda estavam lá. Empertigou-
se, agora sabia por que tinha voltado para olhá-los.
Virou-se e dirigiu-se diretamente ao local onde estava a moça da loja de
armas.
Estava sentada num canto, lendo um livro, uma moça esbelta e bonita,
de aproximadamente vinte anos. Estudava seu rosto, enquanto ele lhe narrava
o episódio do jogo, como havia perdido todo o seu dinheiro. Cayle havia
terminado.
- O que eu queria saber é se devo ir falar com o comandante. Que acha?
Ela balançou a cabeça.
- Não - disse - eu não faria isso. O comandante e a tripulação recebem
uma comissão de quarenta por cento nestas viagens. Eles apenas ajudariam a
esconder o seu corpo.
Cayle afundou-se na poltrona. Sentia-se sem forças. Esta viagem, a
primeira além de Ferd, estava roubando todas as suas energias.
Perguntou, sem circunlóquios:
- Por que não escolheram você? Está bem, eu sei que você não está
usando roupas do interior, mas como é que eles escolhem?
- Estes homens nos sondam com aparelhos de transparência. A primeira
coisa que descobrem é se você tem uma arma da loja de armas. Neste caso,
eles o deixam em paz.
- Você pode emprestar-me a sua? - o rosto de Cayle estava sombrio. -
Quero dar-lhes uma lição.
A jovem encolheu os ombros.
- As armas das casas de armas são reguladas individualmente. A minha
não funcionaria em suas mãos, E além disso, elas só podem ser usadas em
defesa própria e agora já é tarde para você se defender.
Cayle olhava tristemente a paisagem. A beleza das maravilhosas cidades
que apareciam cada momento apenas aumentava mais sua depressão.
Lentamente, o desespero voltou:
- O que é que as lojas de armas sabem fazer, além de vender armas?
A jovem hesitou.
- Temos um centro de informações - disse finalmente.
- Informações, como? Que tipo de informações?
- Oh, de tudo. Onde as pessoas nasceram. Quanto dinheiro têm. Os
crimes que cometeram ou estão cometendo. Claro, não interferimos.
Cayle escutava ao mesmo tempo pouco satisfeito e fascinado. Não tinha
a intenção de se deixar distrair mas, por outro lado, há muito tinha em sua
mente dúvidas a respeito dessas lojas de armas.
E agora estava falando com alguém bem informado.
- Mas o que fazem? - perguntou com insistência. - Se têm todas essas
armas maravilhosas, por que não derrubam o governo?
Lucy Ral sorriu sacudindo a cabeça.
- Você não compreende. As Casas de Armas foram fundadas há mais de
dois mil anos por um homem que decidiu que a luta incessante pelo poder,
travada por grupos diferentes era insana e que as guerras, civis ou outras,
tinham que acabar para sempre. Foi numa época em que o mundo emergia de
uma guerra na qual mais de um bilhão de pessoas tinha perecido e ele
encontrou milhares de pessoas que concordaram em segui-lo. Sua idéia
básica era nada menos que a seguinte: nenhum governo, qualquer que fosse,
deveria ser derrubado. Mas deveria haver uma organização com uma
finalidade primordial: impedir que o governo tivesse poder absoluto sobre o
povo. O homem que se sentisse injustiçado deveria poder comprar uma arma
defensiva. Você não pode imaginar o progresso que isto significou.
Naquela época de governos tirânicos, era muitas vezes crime capital a
simples posse de arma.
Sua voz estava adquirindo uma intensidade emocional. Via-se que
acreditava no que estava dizendo. Continuou, com seriedade:
- O que deu ao fundador a idéia, foi a invenção de um sistema de
controle atômico e eletrônico que permitia a construção de lojas de armas
indestrutíveis e permitia também a fabricação de armas que só podiam ser
usadas para defesa. Isto evitava que as nossas armas pudessem ser usadas por
assaltantes ou outros criminosos e justificava moralmente o empreendimento.
Para fins defensivos, as armas dessas casas são superiores às armas comuns
do governo. Funcionam por controle mental e pulam para a mão quando é
necessário. Proporcionam proteção contra armas explosivas mas não contra
balas, mas são tão mais rápidas, que isso não é importante. "
Ela olhou para Cayle e seu rosto se tornou menos tenso.
- Era isso o que você queria saber? - perguntou.
- Suponhamos que armem uma emboscada - sugeriu Cayle.
Ela encolheu os ombros.
- Não há defesa para isso - balançou a cabeça, sorrindo de leve. - Você
realmente não está compreendendo. Nós não nos preocupamos com
indivíduos. O que conta é que milhões de pessoas sabem que podem ir a uma
loja de armas se precisarem de proteção para si ou para suas famílias. E, o
que é mais importante ainda, as forças que, normalmente, gostariam de
escravizá-los, são desencorajados pela convicção de que é perigoso explorar
o indivíduo.
Cayle estava desapontado.
- Quer dizer que a pessoa é quem tem de se salvar? Mesmo adquirindo a
arma a pessoa terá que reagir, ou melhor, resistir sozinha? Ninguém vai
ajudar?
Percebeu, subitamente, que ela lhe contara tudo aquilo para explicar
porque não podia ajudá-lo. Lucy falou de novo:
- Vejo que está desapontado com o que lhe contei. Mas é assim. E você
compreenderá que tem de ser assim. Quando uma pessoa perde a coragem de
resistir a uma usurpação de seus direitos, também não pode ser salva por
alguém de fora. Acreditamos que o povo tem o governo que deseja e que os
indivíduos têm que enfrentar os riscos que a liberdade apresenta, mesmo ao
preço de sua própria vida.
O rosto de Cayle estava tenso, refletindo seus sentimentos. Ela
interrompeu-o.
- Olhe - disse - deixe-me sozinha por algum tempo. Quero pensar sobre
o que você me contou, mas não estou prometendo nada. Darei minha resposta
antes de chegarmos ao nosso destino. Está certo?
Ele pensou que era uma forma simpática de se livrar dele. Levantou-se
sorrindo e foi sentar-se na sala ao lado. Quando virou-se, Lucy não estava
mais lá. Novamente muito tenso, levantou-se e dirigiu-se ao bar.
Atacou Seal por trás, com um violento golpe no lado da cabeça. O
homem caiu do tamborete e rolou no chão. Os dois companheiros
levantaram-se imediatamente.
Cayle golpeou o mais próximo sem piedade. O homem gemeu
segurando o estômago.
Ignorando-o Cayle mergulhou em direção do terceiro que estava
sacando a arma.
Caiu sobre o homem com todo o peso do corpo e deste momento em
diante a vantagem era sua. Era ele quem tinha a arma.
Cayle virou-se mesmo a tempo de ver Seal levantar-se. O homem estava
esfregando o queixo com a mão e os dois se encararam.
- Devolva meu dinheiro - disse Cayle. - Vocês escolheram o homem
errado.
Seal começou a gritar:
- Prendam este homem, estou sendo roubado! É o maior deslavado...
Parou. Devia ter percebido que não se tratava de ser inteligente e
raciocinar.
Levantou rápido as mãos e disse:
- Não atire, não seja louco! Nós também não atiramos.
Cayle, dedo no gatilho, conteve-se.
- Meu dinheiro?
Houve uma interrupção. Uma voz alta disse:
- O que está acontecendo aqui? Levante as mãos, você aí com a arma.
Cayle virou-se, ficando de costas para uma parede. Havia três oficiais do
avião, com explosores portáteis, parados na porta, cobrindo-o.
Resumiu o caso e recusou-se a entregar a arma.
- Tenho minhas razões para crer - disse - que os oficiais de aviões onde
ocorrem tais acidentes não estão fora de suspeita. Agora, depressa, Seal, meu
dinheiro.
Não houve resposta.
O jogador desaparecera. Ele e os dois comparsas.
- Olhe - disse o oficial que parecia estar no comando - guarde essa arma
e esqueceremos o assunto.
Cayle disse:
- Eu vou passar por essa porta, depois guardo a arma.
Os homens concordaram e Cayle não perdeu tempo, Procurou por todo o
avião mas não encontrou sinal de Seal e seus homens. Furioso, procurou o
Comandante.
- Seu bandido - disse friamente - deixou que partissem.
O oficial o encarou:
- Meu rapaz - disse finalmente com ironia - você está descobrindo que
os anúncios não mentem. Viajar é altamente educativo. Como resultado desta
sua viagem, você já está bem mais esperto. Descobriu dentro de si uma
coragem insuspeitada. No espaço de poucas horas, você amadureceu mais um
pouco. Em termos de luta pela sobrevivência, isto é de um valor incalculável.
E em termos de dinheiro, até que pagou pouco. Cayle disse:
- Vou denunciá-lo à sua firma.
O oficial encolheu os ombros.
- Formulários para reclamações estão à sua disposição na recepção. O
julgamento será em Ferd e as despesas a seu cargo.
- Já estou vendo - disse Cayle, amargamente. - Tudo a seu favor, não é?
- Não fiz as regras - foi a resposta. - Só vivo de acordo com elas.
Agitado, Cayle voltou ao salão onde tinha deixado a jovem da casa de
armas mas não a encontrou. Começou a se preparar para a aterrissagem.
Faltava menos de meia hora.
Poucos minutos depois de Cayle a ter deixado, a jovem tinha fechado o
livro e se dirigido sem pressa para uma cabine individual de telestate.
Tirou um dos anéis do dedo e o manipulou de forma a completar uma
ligação com o estate fora do controle governamental. O rosto de uma mulher
apareceu na tela dizendo:
- Centro de Informações.
- Quero falar com Robert Hedrock.
- Um momento, por favor.
O rosto do homem apareceu quase que imediatamente na tela. Os traços
eram ásperos mas mesmo assim era um homem bonito, sensível e forte ao
mesmo tempo, ressumando orgulho e vitalidade em cada gesto. Sua
personalidade fluía de sua imagem como uma corrente magnética. Sua voz
soava calma, mas sonora:
- Departamento de Coordenação.
- Aqui fala Lucy Ral , vigia do imperial em potencial, Cayle Clark.
Continuou descrevendo resumidamente o que acontecera a Cayle.
- As análises o qualificam como um prodígio calistênico e o estamos
vigiando na esperança de que sua ascensão seja rápida e que possamos usá-lo
em nossa luta para impedir que a Imperatriz destrua as Casas de Armas com
sua nova arma. Isto está sendo feito de acordo com a diretiva de que não deve
ser deixada de lado possibilidade alguma, contanto que haja alguém para
executar a tarefa. Acho que ele precisa receber algum dinheiro.
- Sei - o rosto viril do homem estava pensativo. - Qual é o índice da sua
aldeia?
- Médio. No começo, ele vai ter alguns problemas na cidade. Mas deve
conseguir livrar-se das atitudes provincianas bem depressa. Esta enrascada
em que está envolvido agora já o está endurecendo. Mas precisa de ajuda.
Havia decisão estampada no rosto de Hedrock.
- Em casos como este, quanto menos dinheiro se der, maior será a
gratidão mais tarde - sorriu - esperemos. Dê-lhe quinze créditos como se
fosse um empréstimo pessoal seu. Não providencie qualquer outro tipo de
proteção. Deixe-o por sua própria conta. Mais alguma coisa?
- Nada.
- Então até logo.
CAPÍTULO SEXTO
A primeira noite de Cayle Clark na Cidade Imperial foi horrível. Depois
de uma refeição dispendiosa num restaurante automático, tinha voltado ao
quarto que alugara. Estava pouco à vontade e dormiu muito mal, acordando
no dia seguinte sentindo-se cansado e infeliz.
Saiu e ficou andando sem rumo pela cidade. Quando se viu defronte do
Palácio dos Tostões, um estabelecimento de jogo famoso, na conhecida
Avenida da Sorte, viu uma possibilidade de diminuir sua depressão e,
cedendo à tentação, entrou.
De acordo com um guia da cidade, dedicado unicamente a esta avenida e
às suas salas de jogo, os proprietários do Palácio dos Tostões colocaram
"letreiros luminosos que modestamente declaravam que era possível qualquer
um entrar com um tostão no bolso e sair com um milhão, de créditos,
naturalmente". Se isto realmente já tinha acontecido, os letreiros não diziam.
O artigo terminava generosamente: "O Palácio dos Tostões se distingue
por ter mais máquinas com uma oportunidade de cinqenta por cento, que
qualquer outro estabelecimento na Avenida da Sorte. "
Isto interessava a Cayle, isto e o fato de as apostas serem baixas. Os seus
planos imediatos não incluem o propósito de sair com um milhão de créditos.
Queria uns quinhentos créditos para começar. Depois... bem, depois talvez
pensasse em alargar seus horizontes.
Fez a sua primeira aposta numa máquina que jogava as palavras par e
ímpar num receptáculo iluminado profusamente. Depois de jogar dez de cada
uma das palavras dentro do líquido, ou o que parecia ser uma substância
líquida, aquele sofria uma transformação química, depois da qual apenas uma
palavra ficava na superfície. As outras dezenove desapareciam por uma tela,
depois de afundar.
As palavras vencedoras boiavam facilmente na superfície e de certa
forma acionavam o mecanismo que pagava aos ganhadores,
automaticamente. Cayle ouviu o clique da derrota.
Dobrou a aposta e desta vez ganhou. Separou a aposta inicial e
continuou jogando só com o lucro. As luzes intrincadas dançaram, o líquido
brincava com as palavras e depois só uma permanecia na superfície, par. O
som agradável de dinheiro rolando em sua direção acariciava os ouvidos de
Cayle. Ele iria ouvir aquele som muitas vezes na próxima hora e meia; apesar
do fato de jogar cuidadosamente e somente com tostões, ganhou mais de
cinco créditos.
Finalmente, cansado, dirigiu-se ao restaurante anexo. Quando retornou à
sala de jogo, notou um jogo no qual o jogador tinha maior participação
pessoal.
Colocava-se o dinheiro numa abertura e então aparecia uma alavanca.
Quando esta era acionada, começava um jogo de luzes. Essa seqência era
muito rápida e finalmente se decidia entre o vermelho ou preto. No fundo era
apenas uma variação do par e ímpar do jogo anterior e tinha as mesmas
probabilidades de ganhar.
Cayle colocou meio crédito na abertura, acionou a alavanca e perdeu.
Sua segunda aposta falhou igualmente e a terceira também. Na quarta vez,
finalmente, sua cor venceu. As dez jogadas seguintes foram todas a seu favor,
depois perdeu quatro. Na série seguinte, de dez ganhou sete. Em duas horas,
jogando cuidadosamente, controlando-se muito mais do que forçando a sorte,
ganhara setenta e oito créditos.
Procurou um dos bares próximos e ficou refletindo quanto ao que devia
fazer agora. Havia tanta coisa para resolver - comprar uma roupa nova,
guardar o dinheiro ganho, preparar-se para mais uma noite no Palácio dos
Tostões e devolver o dinheiro que Lucy Ral lhe havia emprestado.
Ele agora estava se sentindo bem, seguro de si mesmo. Um momento
mais tarde estava chamando Lucy Ral pelo telestate.
Ganhar dinheiro podia esperar, por ora.
Ela respondeu quase que imediatamente.
- Estou na rua agora. - Cayle fez um gesto de compreensão. O rosto dela
ocupava quase toda a tela. As pessoas usavam isso na rua, mantendo-o ligado
com o estate de casa. Uma pessoa que conhecia em Glay tinha um aparelho
desses.
Antes que Cayle pudesse dizer alguma coisa, a moça falou:
- Estou a caminho do meu apartamento. Gostaria de ir encontrar-se
comigo lá?
Que pergunta!
O apartamento tinha quatro peças e todas as facilidades eletrodomésticas
imagináveis. Bastou um olhar para Cayle perceber que Lucy Ral não fazia
trabalhos caseiros. O que o intrigou foi o fato de não ver nenhuma proteção
especial. A jovem voltou do quarto vestida para sair. Deu de ombros quando
ouviu seu comentário:
- Nós, das Casas de Armas - disse ela - vivemos como todos os outros.
Geralmente em bairros melhores; apenas as nossas lojas e - hesitou um
momento - algumas fábricas e, naturalmente, o Centro de Informações, são
protegidos de interferências.
Ela mudou de assunto.
- Você disse qualquer coisa a respeito de comprar uma roupa nova. Se
quiser, posso ajudá-lo a escolher. Mas só tenho duas horas.
Cayle abriu a porta para ela, radiante. O convite a seu apartamento tinha
que ter um significado pessoal. Quaisquer que fossem suas tarefas nas lojas
de armas, elas não podiam incluir um convite ao obscuro Cayle Clark para
visitar o apartamento, mesmo que só por alguns momentos. Deduziu que ela
estava interessada nele como pessoa.
Tomaram uma condução que Lucy chamou apertando um botão. A
máquina desceu e os apanhou.
- Aonde vamos? - perguntou Cayle. A jovem sorriu e balançou a cabeça.
- Você vai ver - disse.
Um pouco mais tarde ela apontou:
- Olhe.
Viu uma enorme nuvem artificial que mudava de cor várias vezes e
depois se formaram as letras: Paraíso Haberdashery.
Cayle disse:
- Ontem eu vi um anúncio deles.
Tinha esquecido mas agora lembrava-se. Os feixes luminosos que
tinham varrido o céu quando voltava ao automático para o quarto que
alugara. Um anúncio prometendo o paraíso. Avisando a homens de qualquer
idade que ali era o lugar certo para comprar, que podiam fornecer qualquer
peça do vestuário masculino, a qualquer hora do dia ou da noite, em qualquer
lugar da Terra, Marte ou Vênus e, com um pequeno custo extra, em qualquer
lugar habitado do Sistema Solar.
Este anúncio era um de muitos e, por isso, apesar de estar precisando de
roupas, o nome não se gravara bem em sua memória.
- Vale a pena visitar esta loja - disse Lucy. Cayle teve a impressão de
que ela estava se divertindo com a sua alegria. Isto fez com que se sentisse
um pouco ingênuo - mas não demais. O importante é que ela estava indo com
ele. Aventurou:
- É muito simpático de sua parte acompanhar-me.
O Paraíso Haberdashery ainda era mais impressionante que seu anúncio.
O edifício ocupava a largura de três quadras e tinha oitenta andares. Foi Lucy
quem deu estas informações.
- Vamos olhar as seções principais, depois escolheremos sua roupa.
A entrada da loja tinha a altura de trinta andares e quase cem metros de
largura.
Uma tela energética isolava o interior da loja do clima externo mas, fora
disso, não havia nenhuma barreira. Era fácil passar a barreira energética. O
Paraíso não só vendia roupa de banho como tinha uma praia de meio
quilômetro com as ondas vindo de um horizonte nevoento para se quebrar
numa praia maravilhosa onde não faltavam nem as conchas nem o cheiro
característico do mar. O Paraíso não só vendia roupas para esporte de inverno
como tinha montanhas cobertas de neve e uma pista de meio quilômetro,
perfeita.
"O PARAÍSO É UMA LOJA COMPLETA", dizia um letreiro luminoso
para o qual Lucy chamou sua atenção. "Se precisar de alguma coisa que
estiver dentro do nosso slogan TUDO PARA O HOMEM, peça-nos. Nós o
temos."
- Isto inclui mulheres - Lucy disse calmamente. - Cobram, da mesma
forma que cobram os seus ternos, de cinco a cinqenta mil créditos. Você
ficaria surpreso de ver quantas mulheres de boa família vêm se registrar aqui
quando precisam de dinheiro.
Naturalmente é tudo muito discreto. "
Cayle percebeu que ela olhava pensativa, esperando que ele fizesse
algum comentário. Um tanto chocado com a nova informação, apressou-se a
dizer:
- Nunca pagarei por uma mulher.
Isso pareceu satisfazê-la. Dali foram comprar o terno. Havia trinta
andares de ternos, cada qual com seu preço. Lucy o levou ao andar de vinte a
trinta créditos e mostrou-lhe a diferença entre o padrão de tecido dos ternos
da "cidade" e o do seu próprio.
- Não creio - disse ela com seu espírito prático - que você deva comprar
algo mais caro, por enquanto.
Ela recusou seu oferecimento de devolução dos créditos que lhe devia.
- Você poderá me pagar mais tarde. Acho preferível que você o deposite
em um banco para ter algum dinheiro de reserva.
Aquilo significava que a veria novamente. Significava também que ela
queria vê-lo novamente.
- É melhor mudar logo de roupa - disse ela. - Eu esperarei.
Foi isso que o fez decidir-se a beijá-la antes que se separassem. Mas
quando voltou, as primeiras palavras da moça o dissuadiram.
- Nem tinha reparado o quanto já é tarde - disse ela. - São três horas.
Ela parou para olhá-lo e sorriu.
- Você é alto e forte. Um belo homem, sabia? Bem, apressemo-nos.
Despediram-se na imensa entrada e Lucy correu para o ponto do
aerônibus, fazendo-o sentir-se vazio depois que ela se foi. A sensação
demorou a desaparecer e ele pôs-se a andar com passos rápidos.
Quando chegou ao lugar onde o Quinto Banco Interplanetário erguia-se
pesadamente em seus alicerces, lançando para o alto etéreas torres que
atingiam a altura de sessenta e quatro andares, a ambição voltou a surgir em
sua mente. Era um grande banco, grande demais para depositar a minúscula
soma de quinze créditos, mas o dinheiro foi aceito sem comentários, sem bem
que tivesse de registrar suas impressões digitais.
Cayle deixou o banco mais tranqilo que em qualquer outro momento
desde que fora assaltado. Tinha agora uma conta no banco. Estava
razoavelmente vestido.
Restava ainda uma coisa a fazer, antes de começar a terceira fase de sua
carreira de jogador.
De um dos aerônibus ele tinha avistado o anúncio multidirecional de
uma loja de armas, instalada em seu parque particular, perto do banco.
Caminhou animadamente pela alameda florida e já estava muito próximo da
entrada quando percebeu um aviso que nunca tinha visto antes numa loja de
armas: TODAS AS CASAS DE ARMAS METROPOLITANAS
ESTÃO TEMPORARIAMENTE FECHADAS
AS DA ZONA RURAL, ANTIGAS OU NOVAS,
CONTINUAM FUNCIONANDO NORMALMENTE
Cayle recuou contrariado. Era uma possibilidade que ele não havia
levado em conta, essa da fabulosa loja de armas estar fechada. Voltou-se,
pensativo. Não havia, porém, nenhuma indicação sobre quando a loja
reabriria, nenhuma data, nada a não ser aquele único aviso simples. Parou
mal-humorado, com uma sensação de perda e incomodado pelo silêncio.
Achou, entretanto, que esse último não deveria aborrecê-lo, uma vez que em
Glay sempre havia aquele silêncio em volta da loja de armas.
A sensação de haver perdido alguma coisa e a confusão quanto ao que
fazer depois cresciam dentro dele. Num impulso, experimentou a porta,
porém esta permaneceu sólida e imóvel. Bateu em retirada pela segunda vez e
atravessou a rua.
Parou num refúgio para pedestres, indeciso quanto ao botão que devia
apertar agora. Pensou novamente nas duas horas e meia que passara com
Lucy e elas pareceram-lhe um período curioso naquele espaço de tempo.
Empalideceu ao lembrar-se quão pouco interessante ele havia conseguido ser.
Mas, mesmo ela, a não ser por seu estilo um tanto direto e por seu espírito
bastante prático, não lhe deixara recordações muito deslumbrantes.
"É isso", pensou, "quando uma garota consegue suportar um sujeito
maçante por uma tarde inteira, é por que está sentindo alguma coisa. "
As pressões em seu interior cresceram ainda mais, a vontade de ação
delineando seus planos e ele sentiu-se compelido a agir rapidamente. Pensara
em visitar, durante o período de uma semana, a loja de armas, o salão de jogo
novamente, e o Quartel General do Distrito Militar, comandado pelo Coronel
Medlon. A loja de armas vinha em primeiro lugar, porque aos agentes
imperiais era proibido entrar nelas, mesmo que fossem soldados ou simples
empregados do Governo.
Mas ele não podia esperar por isso agora, e apertou o botão de chamada
para o primeiro aerônibus que o levasse ao Distrito Número 19.
CAPITULO SÉTIMO
O Quartel-General do Distrito Número 19 era um edifício no estilo
antigo, desenhado em forma de cascata. O modelo era exagerado, renovando-
se a cada instante. Torrentes de mármore sucediam-se jorrando para frente a
partir de aberturas ocultas, e terminando por fundir-se umas às outras.
Não era um grande edifício, mas era suficientemente imponente para
fazer com que Cayle estacasse. Seus quinze andares e seus grandes
escritórios, cheios de máquinas e de funcionários eram impressionantes. Não
havia imaginado que o homem bêbado que encontrou na nave tivesse uma tão
vasta autoridade. Um quadro, com uma lista de nomes na entrada do edifício,
assinalava tanto as funções civis quanto as militares. Cayle presumiu que
encontraria o Coronel Medlon em algum lugar indicado pela inscrição: Salas
do Estado-Maior – Terraço.
Uma nota no fim do quadro de avisos dizia: Passes de segurança para o
elevador para o terraço no balcão de recepção do 15. ° andar.
O departamento de recepção anotou seu nome, mas foi necessário fazer
uma consulta antes que o homem acoplasse a ficha a um transmissor a fim de
submetê-la ao exame de uma autoridade. Por fim, veio um homem de meia
idade, em uniforme de capitão. Ao divisar Cayle fez uma carranca e disse:
- O Coronel não gosta de rapazes. Quem é você? O tom de sua pergunta
não soava nada promissor.
Mas Cayle sentiu a teimosia crescer dentro de si. A longa experiência
que tinha em desafiar seu pai deu-lhe forças para dizer com voz firme:
- Conheci o Coronel Medlon na viagem para a Cidade Imperial, ontem,
e ele insistiu para que eu viesse vê-lo. Se o senhor fizer o favor de informá-lo
de que estou aqui...
O Capitão o olhou durante meio minuto. Então, sem dizer uma palavra,
tornou a entrar no escritório particular. Voltou a aparecer, balançando a
cabeça, mas agora já com um ar mais amistoso.
- O Coronel disse que não se lembra de você, mas lhe concederá um
minuto.
O homem baixou o tom de voz e perguntou:
- Ele estava, hum, alto?
Cayle fez que sim com a cabeça. Não se sentiu seguro para fazê-lo com
palavras.
O Capitão disse em voz baixa, denotando urgência:
- Entre e faça-o pagar, ele merece. Uma pessoa muito importante
procurou-o duas vezes hoje e ele não a recebeu. Agora você o deixou
nervoso. Ele está com medo do que possa ter dito quando estava sob a
influência do álcool. Você sabe, ele não ousa tocar numa gota quando está na
cidade.
Cayle seguiu o desleal capitão, possuindo agora uma imagem a mais do
mundo de Isher. Ali estava um oficial inferior aparentemente manobrando
para conseguir o cargo de seu superior.
Mas esta idéia desapareceu no momento em que ele saiu do elevador.
Em seu lugar, surgiu a preocupação quanto à sua capacidade de lidar com
uma situação como esta. Veio-lhe a desagradável sensação de que ela não
seria suficiente. Bastou-lhe, porém, olhar o homem sentado atrás da grande
escrivaninha, num dos cantos do grande salão, para que se evaporasse o
receio de ser jogado fisicamente para fora do 19. ° Distrito.
Era o mesmo homem da nave porém, de algum modo, mais magro. Seu
rosto, que parecera inchado enquanto estava bêbado, agora parecia menor.
Seus olhos eram pensativos e ele tamborilava nervosamente sobre o tampo da
mesa.
Disse para o capitão, com voz baixa e autoritária:
- Pode deixar-nos a sós, capitão.
O Capitão retirou-se com um olhar fixo em seu rosto. Cayle sentou-se.
O coronel disse:
- Creio que me lembro agora de sua fisionomia. Sinto muito; acho que
andei bebendo um pouco. Medlon sorriu, constrangido.
Cayle pensou que o que o outro havia dito a respeito da Imperatriz devia
ser extremamente perigoso para alguém em sua posição. Em voz alta disse:
- Não percebi nada de anormal, senhor. Hesitou um instante.
- Ainda que, pensando a respeito, creio que o senhor foi bastante liberal
em suas confidencias.
Cayle parou por um instante. Depois continuou:
- Acredito que tenha sido a sua posição que lhe tenha permitido falar de
modo tão franco e livre.
Houve um silêncio. Cayle teve tempo para, cautelosamente, congratular-
se por suas próprias palavras, mas não se deixou iludir. Aquele homem não
tinha chegado à sua atual posição por falta de inteligência ou de coragem.
O Coronel Medlon disse finalmente:
- Bem. O que foi que... eh... combinamos? Cayle respondeu:
- Entre outras coisas, coronel, o senhor me disse que o Governo estava
precisando de oficiais e me ofereceu uma patente.
O Coronel falou com voz dura:
- Não me recordo dessa oferta. De qualquer modo, se eu consegui ficar
tão inconsciente a ponto de fazê-la, tenho, infelizmente, que informá-lo de
que não tenho autoridade para fazer de você um oficial. Existe um
procedimento legal a ser observado com respeito à obtenção de patentes, que
se encontra totalmente fora de minhas mãos. E uma vez que há uma tão
grande estima pela carreira militar, há muito que o governo a encara como
uma fonte de renda. Por exemplo, o posto de tenente lhe custaria cinco mil
créditos, mesmo com o apoio de minha influência. O
de capitão o faria despender a enormidade de quinze mil créditos, o que
é uma fortuna para um rapaz de sua idade e...
Cayle estivera ouvindo com um crescente desconforto. Revendo suas
próprias palavras, pareceu-lhe ter feito o possível com o material à sua
disposição. Ele simplesmente não estava em condições de tirar partido das
indiscrições de Medlon.
Sorrindo forçadamente perguntou:
- E quanto custa a de Coronel?
O oficial deu uma gargalhada. Depois disse muito jovialmente:
- Meu rapaz. Esta não se paga com dinheiro, e sim com a própria alma:
uma mancha negra de cada vez.
Interrompeu-se, sério. Depois disse:
- Veja bem, sinto muito se ontem fui um tanto liberal com as patentes de
Sua Majestade, mas você deve compreender como são essas coisas. E para
provar-lhe que não sou um homem sem palavra, mesmo quando estou fora de
controle, eu lhe direi o que fazer. Traga-me cinco mil créditos no prazo de,
digamos, duas semanas, se lhe for conveniente, e eu praticamente lhe garanto
a patente. Que lhe parece?
Para um homem que possuía menos de quarenta créditos, esta
perspectiva de solução era bem impraticável. Se a Imperatriz havia ordenado
que não se vendessem maia as patentes no futuro, esta ordem estava sendo
totalmente ignorada por subalternos corruptos. Cayle teve assim o seu
segundo vislumbre sobre a situação em que se encontrava o reinado da
Imperatriz Innelda.
Ela e seus conselheiros não eram todo-poderosos. Ele sempre pensara
que apenas as Casas de Armas restringiam o seu poder. Mas a rede que a
havia envolvido era muito menos tangível. A grande massa de pessoas que a
serviam tinha os seus próprios esquemas, seus próprios desígnios, que
perseguiam com mais ardor do que o que dedicavam à mulher a quem haviam
jurado fidelidade.
O coronel mexia nos papéis em cima da mesa. Estava terminada a
entrevista.
Cayle se preparava para dizer algumas palavras finais quando o telestate
na parede atrás de Medlon se iluminou. O rosto de uma mulher jovem
apareceu na tela. Ela disse sem rodeios:
- Coronel, com todos os diabos, onde tem estado?
O coronel retesou-se e voltou-se lentamente para a tela. Mas Cayle não
precisou da reação intranqila do coronel para saber quem era aquela mulher.
Ele estava vendo a Imperatriz de Isher.
CAPÍTULO OITAVO
Cayle que estivera sentado, levantou-se rapidamente. Foi um movimento
automático, motivado pela sensação de ser intruso. Já estava a meio caminho
da porta quando percebeu que o olhar da mulher o seguia.
Cayle gaguejou:
- Coronel, obrigado pelo privilégio...
Sua voz pareceu-lhe extremamente desagradável e ele parou
envergonhado.
Então sentiu uma onda de dúvida, de descrença, a assaltá-lo sobre a
possibilidade de que tal coisa estivesse ocorrendo com ele. Lançou um olhar
que, momentaneamente, pôs em dúvida a identidade da mulher. Naquele
momento, Medlon falou:
- É tudo por enquanto, Sr. Clark. A voz do coronel soava alto demais.
Agora não tinha mais dúvidas quanto à identidade dela. Aos vinte e
cinco anos, a Imperatriz Innelda não era certamente a mais bela mulher do
mundo. Mas não havia como deixar de reconhecer seu rosto longo e
característico e seus olhos verdes. Era o semblante típico da dinastia de Isher.
Sua voz, quando falou novamente, era a mesma que ouvira no telestate,
familiar a qualquer um que alguma vez tivesse assistido a sua saudação de
aniversário, mas como soava diferente, agora, ouvindo-a dirigida diretamente
a ele:
- Qual é o seu nome?
Foi Medlon quem respondeu, apressadamente, com voz tensa porém
calma:
- É um conhecido meu, Majestade. Depois, voltando-se para Cayle
disse:
- Adeus, Sr. Clark. Foi um prazer conversar com o senhor.
Ela ignorou a interrupção.
- Eu perguntei qual é o seu nome.
A pergunta foi feita de modo tão direto que Cayle se encolheu. Mas
disse seu nome.
- E porque está no escritório de Medlon?
Cayle percebeu o olhar de Medlon. Um olhar tenso, esforçando-se por
captar sua atenção. Uma remota parte de seu cérebro havia admirado a
habilidade das respostas anteriores do Coronel. A admiração desapareceu. O
homem estava em pânico. Cayle sentiu surgir uma esperança, bem dentro de
si, lá no fundo. Disse então:
- Estava perguntando sobre a possibilidade de obter um posto no
Exército de Vossa Majestade.
- Foi o que pensei.
A Imperatriz falou num tom calmo. Interrompeu-se, olhou
pensativamente de Cayle para Medlon e voltou a olhar para Cayle. Sua pele
era macia, ligeiramente corada. Mantinha a cabeça ereta orgulhosamente.
Parecia jovem, viva e gloriosamente confiante. Algo de sua experiência de
lidar com os homens transparecia então. Ao invés de dirigir a próxima
pergunta a Cayle, ela deu a Medlon a possibilidade de uma saída.
- E posso saber qual foi sua resposta, coronel?
O oficial estava rígido, transpirando. Mas a despeito disso, sua voz
estava calma e havia mesmo nela uma ponta de jovialidade quando
respondeu:
- Eu informei, Majestade, que sua patente iria requerer
aproximadamente duas semanas para ser concedida. Como sabe Vossa
Majestade, há um certo acúmulo de papelada burocrática.
Cayle sentiu-se cavalgando a crista da onda, levando-o cada vez mais
para o alto.
Esta situação só poderia trazer-lhe vantagens.
Sentiu uma extraordinária admiração pela Imperatriz. Ela era tão
diferente do que ele havia imaginado! O fato de ser ela capaz de refrear-se a
fim de não embaraçar um de seus oficiais, virtualmente apanhado em
flagrante, surpreendeu-o profundamente.
Entretanto, sua voz não deixou de soar um pouco sarcástica quando
disse:
- Sei, coronel. Sei disso muito bem. Estou por demais familiarizada com
toda essa burocracia.
Quando continuou, o sarcasmo foi substituído pela paixão:
- De um modo ou de outro, os rapazes que normalmente procuram o
ingresso no Exército, ouviram que há alguma coisa e por isso permanecem de
fora, aos bandos.
Estou começando a suspeitar de que existe uma conspiração favorável às
Casas de Armas, no sentido de desencorajar os poucos bons candidatos que
aparecem.
Seus olhos estavam faiscando. Era evidente que ela estava com raiva e
que o seu autocontrole havia desaparecido. Dirigiu-se a Cayle, destacando
bem as palavras:
- Cayle Clark, quanto lhe pediram pela patente? Cayle hesitou. O olhar
de Medlon era agora algo de terrível, de tão sombrio. Sua cabeça,
semivoltada para Cayle, parecia pouco natural. A mensagem contida no olhar
tornava quaisquer palavras mais que dispensáveis. O coronel sentia remorsos
por tudo o que havia contado àquele pretendente ao posto de tenente no
Exército de Sua Majestade.
O apelo era tão gritante que Cayle se sentiu enojado. Nunca,
anteriormente, tivera a experiência de ter um homem completamente à sua
mercê.
A sensação o fez retrair-se. De repente, não lhe deu mais vontade de
olhar. Disse:
- Majestade, conheci o Coronel Medlon no Interestadual, ontem, e ele
ofereceu-me um posto sem qualquer condição prévia.
Sentiu-se melhor com estas palavras. Pôde ver que o oficial estava
acalmando e que a mulher sorria satisfeita. Ela disse:
- Muito bem, coronel. Estou contente de ouvir isto.
E, uma vez que isso responde de modo satisfatório ao assunto que
pretendia perguntar-lhe, dou-lhe minhas felicitações. É tudo.
A tela deu um estalo e apagou-se. O Coronel Medlon afundou
lentamente na cadeira. Cayle deu um passo à frente, sorrindo. O Coronel
então disse com uma voz despida de toda emoção:
- Foi um prazer conhecê-lo, meu rapaz. Mas agora estou muito ocupado.
Espero realmente ter notícias suas nas próximas duas semanas, com os cinco
mil. Até logo.
Cayle não se moveu imediatamente, mas o gosto amargo da derrota já o
envolvia completamente. Da escuridão de sua mente lhe veio o pensamento
de que tivera uma oportunidade sem igual. E que ele a tinha desperdiçado por
ser fraco. Percebeu que o coronel o olhava divertido.
Depois disse, encolhendo os ombros:
- A Imperatriz não compreende as dificuldades que existem para liquidar
o sistema de venda de patentes. Eu não tenho nada a ver com isso. Tentar
mudar o estado de coisas ou cortar a minha garganta, produzirá o mesmo
efeito. Quem se intrometer nesse assunto é um homem morto.
Hesitou, depois continuou, com um sorriso irônico:
- Espero que isto lhe sirva de lição sobre as leis econômicas do
progresso pessoal.
Bem. Bom-dia.
Cayle decidiu-se contra a idéia de uma agressão física ao homem.
Aquele era um edifício militar, e ele não tinha a intenção de ser preso por
agressão num lugar onde não podia defender-se convenientemente. Anotou o
coronel na mente, a fim de cuidar dele com a devida atenção numa outra
oportunidade.
A noite já havia descido sobre a cidade de Isher quando finalmente saiu
do Quartel-General do 19. ° Distrito. Olhou as frias estrelas entre os anúncios
luminosos e sentiu-se muito mais ambientado do que na noite anterior. Estava
começando a achar o caminho nos labirintos deste novo mundo. E mesmo lhe
parecia que estava indo bastante bem se se levasse em conta sua ignorância.
Aos poucos, enquanto caminhava, foi adquirindo nova confiança. Tinha feito
bem em atacar Seal sem pensar nas conseqências e também tinha acertado em
recuar no caso de Medlon.
Seal era um indivíduo que agia sozinho como ele e, basicamente,
ninguém se importaria com o que lhe acontecesse. Mas o Coronel era
protegido pelo poder da lei de Isher.
Em princípio, não tivera a intenção de ir à Avenida da Sorte aquela
noite, mas agora mudou de idéia. Se conseguisse ganhar os cinco mil créditos
e comprar a patente, os tesouros de Isher começariam a vir em sua direção. E
Lucy Ral .. . não podia esquecer Lucy.
Mesmo um só dia era tempo demais para esperar.
CAPÍTULO NONO
Cayle teve que forçar seu caminho através da multidão para conseguir
entrar no Palácio dos Tostões. O tamanho da multidão o encorajava. Ele
podia passar despercebido naquela massa de humanidade sedenta de dinheiro.
Cayle não hesitou. Havia examinado, antes, todos os jogos, por isso se
dirigiu diretamente ao que ele queria para obter fortuna. O importante,
pensou, é conquistar o lugar para jogar e mantê-lo.
Este novo jogo tinha possibilidade de até cem para um, sendo que a mais
baixa era de cinco para um. Funcionava de uma forma relativamente simples,
se bem que Cayle, que sabia um pouco sobre energia, tendo se distraído
desde os quinze anos na oficina do pai, percebeu que havia um sistema
complicado escondido atrás da aparência de simplicidade do esquema. O alvo
era uma bola de energia. Tinha aproximadamente uma polegada de diâmetro
e rolava dentro de uma esfera de plástico. Rolava cada vez mais depressa até
que sua velocidade transcendia a resistência da matéria. Nesse momento,
sendo energia pura, quebrava as barreiras de sua prisão. Mergulhava através
do plástico como se não fosse nada, como se fosse um raio de luz prisioneiro
por uma lei física antinatural numa prisão quase invisível.
No entanto, no momento em que se via livre, parecia ter medo. Mudava
de cor, sutilmente, e diminuía a velocidade. E, apesar de sua imensa
velocidade no momento da liberação, o medo era tão grande que poucos
segundos depois diminuía tanto que começava a cair.
Enquanto caía, dava a ilusão de estar em toda parte. Uma ilusão que se
formava na mente dos jogadores, produto da enorme velocidade e de
alucinação mental.
Cada jogador tinha a convicção que a bola voava em sua direção, que
cairia no canal que ele atirava com um número. Inevitavelmente, ficavam
decepcionados quando a bola, missão cumprida, caía num dos canais,
acionando o mecanismo.
O primeiro jogo deu a Cayle um lucro de trinta e sete créditos. Queria
aparentar calma mas o choque da vitória inundou seus nervos com espasmos
de excitação.
Colocou um crédito em quadro canais, perdeu e, depois, jogando os
mesmos números de novo, ganhou noventa créditos. Durante a hora seguinte,
ganhou numa média de um em cada cinco jogos. Tinha que reconhecer que
era uma sorte fenomenal, até para ele e, mesmo antes de terminar aquela
hora, já estava arriscando dez créditos em cada canal que escolhia.
Não chegou a contar o lucro. De vez em quando, jogava um monte de
moedas numa trocadora automática e recebia notas grandes que guardava no
bolso. Nem uma vez teve que jogar com a reserva. Depois de um certo
tempo, sentiu um pânico estranho. "Devo ter uns três ou quatro mil créditos.
É hora de parar. Não preciso ganhar o dinheiro todo numa só noite. Posso
voltar amanhã e depois de amanhã e assim por diante. "
O que o confundia era a velocidade do jogo. Cada vez que o impulso de
parar chegava, o jogo recomeçava e ele, apressadamente, fazia as apostas.
Quando perdia, sentia-se irritado e surgia dentro dele a determinação avara de
não deixar para trás nem um tostão de seu lucro.
Se ganhava, achava ridículo interromper no momento em que a sorte o
favorecia tanto. Espere, dizia-se, espere até perder dez vezes seguidas... dez
vezes seguidas...
Teve a impressão vaga de quarenta ou cinqenta mil créditos num bolso.
E havia dinheiro nos outros bolsos também. Sem se dar conta,
conscientemente, começou a jogar com notas de valor elevado. Não tinha
importância, a máquina pagava os ganhos com toda honestidade.
Já estava cambaleando como um homem bêbado. O corpo parecia estar
flutuando.
Continuava jogando, como que envolvido numa névoa emocional, sem
perceber os outros. Não reparou que muitos estavam acompanhando suas
jogadas, ganhando com ele. Mas isto não era importante para ele. Só
despertou de seu torpor quando a bola caiu, como uma coisa morta, no fundo
de sua prisão. Ele ficou parado, esperando o jogo recomeçar, sem a menor
consciência de que aquela parada tinha algo que ver com ele, até que um
homem gordo, moreno, caminhou em sua direção.
O estranho falou, com um sorriso oleoso:
- Parabéns, rapaz. Agradecemos a preferência e estamos muito felizes
com sua sorte. Mas para os outros jogadores temos más notícias. As regras
desta casa, que estão afixadas na entrada de nosso magnífico estabelecimento,
não permitem que se acompanhe a sorte evidente de outro jogador. É fora de
dúvida que este afortunado rapaz está jogando de mãos dadas com a sorte,
por isso todas as outras apostas devem ser feitas antes da sua. A máquina foi
regulada nesse sentido e pedimos não nos obrigar a desapontá-los se fizerem
apostas de última hora. Não dará certo. E
agora, boa sorte senhores e senhoras, e sobretudo a você, meu rapaz.
Afastou-se sorrindo. Um momento depois a bola estava dançando
novamente.
Foi durante a terceira jogada que Cayle percebeu: "Mas eu sou o centro
de atenção". Ficou espantado. Tinha saído de sua letargia semiconsciente,
mantida para poder continuar seguro de si no jogo. Pensou: "É melhor eu sair
daqui e sem despertar atenção".
Quando tentou afastar-se, uma garota bonita abraçou-o e deu-lhe um
beijo.
A garota dizia:
- Oh, por favor, deixe eu ter um pouco da sua sorte. Por favor, por favor,
sim?
Conseguiu soltar-se, mas esqueceu sua intenção. Continuou jogando
enquanto tentava lembrar-se: "Mas eu ia fazer alguma coisa". Percebia que
cada vez chegava mais gente querendo jogar na mesma mesa, empurrando-se
uns aos outros e mesmo brigando por um lugar. Ao escutar as discussões,
novamente sentiu como que um aviso, a sua mesa era o centro de atenção de
mil olhos ávidos.
Mas não conseguia lembrar-se do que queria fazer. Tinha a sensação de
estar virtualmente cercado de mulheres que o tocavam, beijavam-lhe o rosto
quando virava a cabeça, e sentia o excesso de perfume.
Não podia mover as mãos sem esbarrar com elas em braços nus, costas
nuas e vestidos tão decotados que a sua cabeça mergulhava num mar de seios
macios e perfumados. Quando, naturalmente, inclinava a cabeça um pouco,
as mãos sempre presentes o puxavam o resto do caminho.
E ainda não tinha terminado sua noite de sorte. Sentia que era prazer
demais, aplauso demais a cada nova vitória. E também quando perdia, era
excessivo o consolo oferecido pelas mulheres que o abraçavam e beijavam.
Até a música de fundo era animada demais. Quando havia ganho incontáveis
milhares de créditos, fecharam-se as portas do Palácio dos Tostões e o
mesmo homem gordo aproximou-se e disse secamente:
- Muito bem. Agora chega. Os clientes já saíram, podem acabar com
esta idiotice.
Cayle olhava o homem espantado. Sentiu o alarme de perigo pulsando
em seu corpo. Disse:
- Acho que vou para casa.
Alguém golpeou-o no rosto, com violência.
- De novo, ele ainda não voltou a si.
O segundo golpe foi ainda mais violento. Cayle finalmente percebeu
claramente que estava em perigo. Gaguejou:
- Mas o que está acontecendo?
Seus olhos apelavam para aqueles que, minutos antes, estavam tão
entusiasmados com ele... Impossível que algo de ruim pudesse lhe acontecer
enquanto eles estivessem ali.
Virou-se para atacar o homem gordo. Mas foi imobilizado por mãos
fortes que o seguravam, que esvaziavam os seus bolsos, tirando tudo o que
tinha ganho. Como de muito longe, ouviu o homem falar novamente:
- Não seja ingênuo. Não há nada especial acontecendo. Os clientes
foram empurrados para fora, não só os daqui de sua mesa como também os
do salão de jogo. Os que estão aqui agora são contratados para estas ocasiões
e nos custam dez créditos cada. Isto nos custará só dez mil, enquanto que
você ganhou de cinqenta a cem vezes esta cifra.
Encolheu os ombros e continuou:
- As pessoas não entendem o mecanismo econômico destas coisas. Na
próxima vez não seja tão ambicioso. Se houver uma próxima vez.
Cayle recuperou a fala:
- E o que vão fazer?
- Você verá. Muito bem, levem-no para o caminhão aéreo e podemos
reabrir o estabelecimento!
Cayle sentiu que o arrastavam através de um corredor escuro.
Desesperado, pensava que, mais uma vez, estava numa situação em que os
outros decidiam o seu destino.
INTERLÚDIO
McAl ister percebeu que estava deitado numa calçada. Via um grupo de
pessoas à sua volta olhando com curiosidade. Pôs-se de pé. Não via mais a
cidade mágica, nem o parque do futuro. Em vez disso, uma fileira de casas de
um andar, feias, de cada lado da rua.
Percebeu uma voz, no meio do murmúrio geral, dizendo:
- Tenho certeza de que é o repórter que entrou naquela loja de armas.
Então havia voltado ao seu próprio tempo. Talvez até ao mesmo dia.
Enquanto se afastava lentamente ouviu a mesma voz dizendo:
- Parece doente. Gostaria de saber...
Não escutou mais nada. Mas estava pensando: "Doente!" Eles nunca
saberiam o quanto estava. Mas em algum lugar do mundo devia haver um
cientista que pudesse ajudá-lo. O importante era que não tinha explodido.
Agora estava andando mais depressa, longe da multidão. Olhando para
trás viu o grupo dispersar como faz uma multidão quando perde o centro de
interesse.
McAl ister virou uma esquina e os esqueceu.
- Tenho que me decidir.
As palavras soaram altas, muito perto. Precisou de um momento até
perceber que as tinha dito.
Decidir? Não tinha pensado que sua situação requeria uma decisão. Ele
tinha voltado. Agora, achar um cientista... Se isto era uma decisão, já estava
tomada. A pergunta era, quem? Lembrou-se de seu velho professor de física.
Automaticamente, procurou uma cabine telestática e pegou numa moeda.
Então lembrou-se, com um profunda mal-estar, que estava vestido com a
roupa invisível, e que o dinheiro estava dentro. Recuou, abalado. O que
estava acontecendo?
Era de noite, numa cidade iluminada. Estava numa avenida larga, que se
perdia na distância. O asfalto da avenida brilhava suavemente - uma estrada
de luz, como um rio fluindo em direção de um sol invisível, um rio reto e
suave.
Caminhou sem compreender, por alguns minutos, lutando para conter
uma esperança vã. Finalmente, um pensamento forçou o caminho através de
sua mente: Estaria novamente na época de Isher e dos fabricantes de armas?
Podia ser. Pelo menos era o que parecia. E significaria que eles o trouxeram
de volta. Apesar de tudo, não eram maus e o salvariam se fosse possível. Pelo
que podia perceber já haviam passado semanas do tempo deles.
Começou a correr. Tinha que achar uma loja de armas. Passou por um
homem e o chamou. O homem parou, curioso, depois prosseguiu seu
caminho. McAl ister teve a breve visão de olhos intensos, escuros e a
visualização de alguém a caminho de um maravilhoso lar do futuro. Foi isto
que suprimiu o seu impulso de correr atrás do homem.
Mais tarde achou que devia tê-lo feito. Foi a última pessoa que viu em
todas estas ruas quietas e desertas. Era talvez a hora do amanhecer, quando
ninguém está na rua. O que estranhou mais do que não encontrar ninguém na
rua, foi a ausência de lojas de armas.
Apesar disso, a esperança não o abandonava. Breve seria de manhã.
Homens sairiam dessas casas estranhas e luminosas. Grandes cientistas,
sábios de outras eras, o examinariam, não às pressas e com medo, mas
calmamente, em superlaboratórios.
O pensamento terminou. Sentiu a mudança.
Agora estava no centro de uma tempestade de neve. Cambaleou,
golpeado pela violência do vento. Lutava por manter a calma física e mental.
A cidade maravilhosa havia desaparecido. Também desaparecera a
avenida luminosa. Tudo transformado naquele mundo selvagem e mortal. Era
de dia. Através da nevasca, podia distinguir algumas árvores a uma pequena
distância.
Instintivamente, procurou caminhar na direção delas, em busca de
abrigo. Pensava:
"Um minuto no futuro distante; o próximo - onde?"
Não havia nenhuma cidade. Só árvores, uma floresta hostil e o rigoroso
inverno.
Não sabia quanto tempo ficara ali enquanto rugia a tempestade. Teve
tempo para alguns pensamentos; por exemplo, que a roupa invisível o
protegia do frio, que não estava sentindo o frio; e depois...
Desaparecera a tempestade. E as árvores. Estava numa praia, de pé na
areia e à sua frente via o mar azul iluminado de sol, encrespando-se entre
edifícios brancos, destruídos. Por toda parte, dentro do mar, na praia, nas
encostas das colinas, estavam, as ruínas de uma cidade enorme. Sobre tudo
isso estendia-se uma aura de idade incrível, e o silêncio milenar só era
quebrado pelo marulhar das ondas.
De novo a transposição instantânea. Mais preparado desta vez, mesmo
assim afundou duas vezes nas águas do caudaloso rio que o carregava. Era
difícil nadar, mas a roupa invisível estava cheia do ar que fabricava, a cada
minuto que passava.
Depois de um momento, resolveu nadar em direção da margem à sua
direita.
Ocorreu-lhe um pensamento e parou de nadar. "Para quê?" A verdade
era tão simples quanto terrível. Ele estava sendo jogado do passado para o
futuro. Ele era o
"peso" na extremidade mais longa de uma alavanca energética; e de
certa forma estava sendo arremessado cada vez mais longe no tempo. Só isso
podia explicar as catastróficas mudanças que já havia presenciado. Dentro de
uma hora haveria outra mudança.
E veio. Estava deitado num gramado verde. Quando olhou em volta, viu
meia dúzia de casas baixas no horizonte. Pareciam estranhas, pouco humanas.
Uma pergunta o consumia: Gostaria de saber quanto tempo ficaria em cada
uma dessas épocas.
Passou a controlar no relógio. A demora era de duas horas e quarenta
minutos.
Parou de se perguntar. Período após período, a gangorra o fazia dançar
no tempo, porém ele mantinha uma só posição, na água ou em terra firme,
era-lhe indiferente.
Não lutava mais. Não andava, corria, nadava ou mesmo se sentava...
Passado -
futuro - passado - futuro...
Sua mente estava voltada para dentro. Tinha a sensação vaga de que
devia fazer alguma coisa, dentro de si, não fora. Como uma decisão que
devesse tomar.
Estranho, não conseguia lembrar qual era.
Sem dúvida, os Fabricantes de Armas conseguiram a prorrogação de que
necessitavam. Porque na outra extremidade desta alavanca, estava a máquina
usada pelos soldados de Isher como força ativadora. Também ela dançava no
passado, no futuro, nesta gangorra infernal.
Mas havia a decisão. Tinha que tentar, tinha que se lembrar...
CAPÍTULO DÉCIMO
16 de julho de 4784. Era de Isher, 23h50m - Hotel Royal Ganeel.
Robert Hedrock saiu do Departamento de Coordenação e andou pelo
corredor feericamente iluminado que se estendia a perder de vista. Seu andar
tinha a leveza vigilante do de um felino mas, na realidade, seus pensamentos
estavam bem longe do hotel onde estava instalado o quartel-general da liga
dos Armeiros.
Há mais de um ano, ele pedira para ficar ali, argumentando que
acreditava num iminente conflito com o governo e queria ficar ao lado dos
Fabricantes de Armas quando a crise explodisse. Seus documentos estavam
em ordem, o índice mental, físico e moral que a máquina Pp lhe atribuiu era
tão elevado que seu dossiê foi imediatamente enviado à comissão executiva,
que lhe confiou sem vacilar uma missão excepcional.
Hedrock não ignorava que muitos membros do conselho e inúmeras
personalidades altamente colocadas, achavam que a rapidez de sua ascensão
era contrária aos interesses superiores da organização. Alguns o achavam
mesmo um tanto misterioso. Todavia, essas reservas não eram maldosas.
Ninguém, na verdade, pensava em discutir o veredito da máquina Pp, o que
fazia Hedrock ficar às vezes espantado. Um dia ele examinaria mais
cuidadosamente a máquina para saber por que indivíduos normalmente
desconfiados aceitavam suas decisões sem reclamar.
Enganar o mecanismo com uma história cuidadosamente elaborada,
revelou-se de uma simplicidade infantil. Claro, ele possuía capacidade de
controle psíquico fora do comum e seu conhecimento das reações das
máquinas de processo biológico era excepcional. Além disso, as relações de
amizade que ele mantinha com os Armeiros tinham desempenhado um papel
preponderante na sua promoção. A máquina Pp, concluiu, era equipada com
os mesmos circuitos de sensibilidade que permitiam às portas das lojas de
armas perceber a hostilidade oculta. Além disso, ela dividia com as
superarmas a faculdade de decisão, contida na sua estrutura: elas só matavam
em legítima defesa; seus sentidos eletrônicos, incrivelmente afinados,
estavam aptos a detectar as diferenças de reação mais tênues, manifestadas
pelas pessoas submetidas ao seu exame. Esse aperfeiçoamento ainda não
existia na época em que Hedrock juntou-se à liga, há uma centena de anos.
Na medida em que a segurança dos Armeiros dependia exclusivamente da
máquina, era indispensável que o coordenador, o único humano dotado do
privilégio da imortalidade, tivesse a certeza de que a confiança dos
Fabricantes de Armas, seus amigos, era justificada.
Mas cuidaria disso mais tarde. No momento, problemas mais urgentes o
assaltavam. Precisaria determinar uma linha de ação num futuro ainda
impreciso, sem dúvida, embora próximo - próximo demais para seu gosto.
A primeira ofensiva em grande estilo lançada pela Imperatriz obrigara a
organização a fechar suas lojas nas grandes cidades. Mas isso não passava de
coisa secundária em relação ao problema do "pêndulo" temporal. E Robert
Hedrock era o único indivíduo qualificado para tomar uma decisão a esse
respeito. Ora, por enquanto não tinha a menor idéia da maneira pela qual
abordaria o assunto.
Parou diante de uma porta onde havia uma tabuleta: "PARTICULAR –
ENTRADA RESERVADA AOS DIRETORES". Bateu, esperou alguns
segundos e, sem mais formalidades, entrou numa sala estranha. Não muito
grande, segundo as normas isherianas, mas notavelmente ampla e cuja porta
era o elemento mais insólito, pois achava-se exatamente a trinta metros do
chão e a trinta metros do teto. A soleira era uma espécie de plataforma,
prolongada por um campo de energia. Bastava colocar os pés em dois
isoladores, o que Hedrock não deixou de fazer, para ser imediatamente
"carregado" pelo campo luminoso, que depositava o visitante no centro da
curiosa sala.
Os sete conselheiros presentes, que rodeavam uma máquina engastada
num estojo de plástico transparente, apenas o cumprimentaram, sem desviar a
atenção.
Hedrock olhou-os um instante. Pareciam anormalmente deprimidos.
- A próxima oscilação não vai demorar - murmurou Peter Cadron.
Hedrock fixou os olhos no estranho objeto que flutuava na sua bolha de
vazio.
Era um cronograma, estriado por um montão de linhas misturadas, tão
finas que pareciam vibrar como ondas calóricas no ar tórrido de verão.
Teoricamente, as estrias, que emergiam de um ponto comum,
expandiam-se até o infinito no passado e no futuro, com a ressalva de que, no
espaço geométrico utilizado, o infinito tinha um valor vizinho a zero. Mas
quando se tratava de muitos milhares de bilhões de anos, a imagem se toldava
e ficava difícil de observar. Nesse oceano de tempo, distinguiam-se duas
sombras confusas, uma relativamente volumosa perto do centro e outra, não
maior que a ponta de um alfinete. Esta última, sabia Hedrock, era uma
imagem incrivelmente aumentada de um objeto real.
0 amplificador que revelava cada pulsação da mancha era ligado a
separadores sensitivos de energia que se ajustavam automaticamente a cada
novo observador.
Penalizado, Hedrock acompanhou aquelas palpitações, aqueles
estremecimentos estranhos que não tinham paralelo no espaço macrocósmico.
Embora o movimento não fosse especialmente rápido, as duas manchas
desapareceram. Para onde?
Mesmo os cientistas que estavam a serviço da liga não o sabiam.
Desapareceram, pois, e pouco a pouco voltaram a se materializar. Mas, desta
vez, haviam mudado de posição uma em relação a outra e a distância que as
separava aumentou. A maior das duas tremia no ponto menos trinta e quatro
dias do centro, no passado, e a outra achava-se a um mês, três dias e algumas
horas no futuro. A pontinha de alfinete, depois de ter estado a 97 bilhões de
anos no futuro, estava agora a cerca de 106 bilhões de anos no passado.
Aqueles números eram tão fantásticos, que Hedrock teve um
estremecimento.
- Calcularam o potencial de energia?
Cadron, a quem fizera a pergunta, sacudiu a cabeça, com ar fatigado.
- Tem bastante para fazer explodir o planeta. Onde pois, vamos libertá-
la?
Hedrock não estava entre os que haviam falado com McAl ister, o
homem do século XX. Suas informações sobre aquela entrevista eram
fragmentárias e era, aliás, para saber mais que ele fora encontrar a comissão
na sala da Temporal. Chamou Cadron para o lado e o interrogou
copiosamente. O jovem conselheiro encarou-o com um pálido sorriso.
- Quer saber a verdade? Ei-la: todos nós temos vergonha da maneira
pela qual agimos.
- Se não me engano, os senhores acham que McAl ister não devia ser
sacrificado.
- Não é isso o que quero dizer. Acho melhor contar-lhe a história toda.
Nosso agente em Greenway viu entrar na loja um tipo estranho, com uma
roupa esquisita.
Resumindo, tratava-se de um jornalista vindo do século XX. Uma loja,
afirmou ele, materializou-se na cidadezinha onde morava. Entrou nela
facilmente. Evidentemente, não pertencia à polícia nem ao governo. No
momento em que atravessou a porta, declarou, sentiu uma espécie de choque.
Havia, na realidade, naquele instante, absorvido uma dose de energia
temporal equivalente a mais ou menos sete mil anos.
Imediatamente posto ao corrente, o agente fez os exames habituais e
constatou que a Casa de Armas estava submetida a tensões energéticas
colossais, cuja fonte localizou imediatamente: um edifício governamental
instalado defronte da oficina.
Convocou imediatamente o conselho. Era preciso tomar uma decisão
urgente.
McAl ister estava recheado de energia. O bastante para explodir a cidade
se saísse da loja sem estar isolado. Por outro lado, a geradora continuava a
energizar a loja que, de um momento para outro, poderia ser projetada no
espaço-tempo. Tínhamos igualmente boas razões para acreditar que outras
lojas estavam sob a ameaça de um ataque iminente. Quem poderia prever o
caminho que as coisas iam tomar? Em suma, o primeiro objetivo devia ser
ganhar tempo. Para isso, era necessário concentrar sobre McAl ister as ondas
de energia derramadas pela geradora e devolvê-lo a sua época de origem.
Fechamo-lo numa combinação isolada, que o impediria provisoriamente de
explodir. Posteriormente, acertaríamos um sistema, para libertar aquela
energia de maneira inofensiva. Sabíamos que, até lá, ele oscilaria para a
frente e para trás no tempo, levando a geradora a reboque.
Prosseguiu, sacudindo a cabeça com ar sombrio:
- Mesmo agora não vejo o que poderíamos ter feito de melhor. Era
preciso agir sem demora e num terreno onde nossos conhecimentos são
poucos. Na verdade, pulamos da frigideira para a panela! Pessoalmente, não
estou muito orgulhoso de mim mesmo.
- Acha que ele ainda está vivo?
- Está. Sua combinação é uma das mais perfeitas de que dispomos: auto-
alimentação integrada, sintetizador de água, etc. Tudo automático - sorriu
tristemente - achamos que ele próprio conseguirá se salvar.
Hedrock sentia-se deprimido. Tudo acontecera antes que ele fosse
avisado do perigo. O jornalista era um apocalipse ambulante. Aquela energia
que, a cada oscilação, acumulava-se nele... Nunca tinha havido nada igual no
Universo. Se ele explodisse, o choque abalaria a própria textura do espaço. O
eco ressoaria em todos os tempos e os tensores energéticos que criavam a
ilusão da matéria, corriam o risco de serem pulverizados pelo choque.
- E a geradora?
O rosto de Cadron iluminou-se.
- Ela ainda está nos limites da zona crítica. É preciso tomar uma decisão
antes que o ponto perigoso seja atingido.
"É", pensou Hedrock amargamente. "Mas que decisão?"
- Em que pé estão os trabalhos sobre o amortecimento das oscilações, a
fim de trazer o pêndulo de volta?
Desta vez, um outro conselheiro respondeu.
- As pesquisas foram abandonadas. A ciência do ano 4.784 não tem
resposta para isso. Ainda temos sorte de poder fazer uma de nossas lojas de
eixo. Estamos em condições de provocar a explosão a qualquer momento do
passado ou do futuro.
Mas qual escolher?
No mapa do tempo, as duas manchas estavam absolutamente imóveis.
CAPÍTULO DÉCIMO PRIMEIRO
Os homens afastaram-se da Temporal conversando baixinho. Alguém
notou que agora ou nunca era a ocasião de se documentarem sobre as
possibilidades de exploração do tempo. A isso o conselheiro Kendlon
retorquiu que, a se julgar por aquela acumulação de energia no corpo do
viajante, a viagem no tempo tinha pouca possibilidade de se tornar popular.
- Senhores - disse finalmente Dresley, com sua voz nítida e precisa -
senhores, o conselho nos deu a incumbência de tomar conhecimento do
relatório do Sr. Hedrock sobre a ofensiva das forças imperiais. O Sr. Hedrock
colocou-nos a par, numa comunicação datada de há algumas semanas, de um
certo número de detalhes de ordem técnica e administrativa. Se bem me
lembro, consideramos seu plano de organização de uma perfeita eficácia. Se
seu autor quiser nos informar agora sobre o estado atual da situação...
Hedrock olhou-os um a um. O auditório estava atento e isso o estimulou.
O
problema estava claro: tomar uma decisão no que se referia às
oscilações. Depois, tirar todas as conseqências sem levar em conta a opinião
de seus supostos superiores. Isso seria difícil.
- Assim que fui devidamente instruído - começou - procedemos à
implantação de mil duzentas e quarenta e sete novas casas de armas,
principalmente nas pequenas aglomerações, e três mil oitocentos e nove
contatos foram estabelecidos com membros da administração imperial, tanto
militar como civil. Contatos em certos casos muito sólidos.
Expôs sucintamente seu sistema de classificação: cada contato era
destinado a uma categoria, em função da vocação do indivíduo, de sua
importância hierárquica e de seu entusiasmo pela aventura na qual a
Imperatriz atirava seus partidários.
- Graças aos cientistas que consideram as lojas de armas como um
elemento inerente à civilização de Isher, recolhemos no espaço de dez dias
todos os segredos concernentes à domesticação da energia temporal do
conhecimento do governo.
Descobrimos que, dos quatro generais encarregados de dirigir as
operações, dois eram, desde o começo, francamente hostis à campanha. Um
terceiro foi convencido quando viu a loja de armas desaparecer. O último,
todavia, Doocar, que infelizmente é o comandante supremo, só desistirá se a
Imperatriz lhe der ordem expressa. Seu senso de lealdade é mais forte que
seus sentimentos pessoais ou suas opiniões.
Hedrock fez uma pausa, aguardando um comentário que não veio, o que
era a melhor resposta.
- Milhares de oficiais desertaram - continuou - mas apenas um membro
do Conselho Imperial opôs-se abertamente à ofensiva após a execução de
Banton Vickers que, como sabem, havia criticado aquele plano de combate.
Foi o Príncipe Del Curtin que, para manifestar sua desaprovação, deixou o
palácio. O que nos leva novamente à Imperatriz.
Hedrock esboçou o retrato psicológico da soberana. Órfã aos onze anos,
coroada aos dezoito. Está hoje com vinte e cinco.
- A idade crítica - acentuou amargamente - a idade onde se passa do
animal ao humano.
A exposição de todos esses fatos do seu conhecimento espantava os
conselheiros.
Mas não estava nos planos de Hedrock abrir o jogo. Tinha seu ponto de
vista sobre a maneira de vencer a Imperatriz e só queria torná-lo público no
momento e na forma que julgasse mais adequados para servir seus desígnios.
- Innelda é uma emotiva, uma instável. Brilhante e implacável, suporta
mal que alguém se levante contra sua vontade. No fundo, não gostaria de se
ter tornado adulta. Depois de ter examinado milhares de relatórios, cheguei à
conclusão de que o melhor método é deixar-lhe um porta, a fim de permitir-
lhe uma saída honrosa no instante crítico.
Examinou seu auditório com ar interrogativo. Com aqueles homens não
era prudente revelar seus pensamentos.
- Sou de opinião que o Conselho não deve levar a mal a tática que
recomendo. Ela foi feita baseada num conjunto de circunstâncias que nos
dará vantagem e bloqueará a máquina de guerra. Segundo penso, uma vez
esta emperrada, a Imperatriz se ocupará de outra coisa e se apressará a
esquecer as razões pelas quais o conflito começou.
Após um silêncio destinado a reforçar essas palavras, continuou:
- Meu serviço está à espreita dessa ocasião favorável. Eu os colocarei a
par de qualquer fato novo. Agora, se querem fazer perguntas, estou à
disposição.
A primeira foi sem importância. Depois, alguém levantou a mão:
- Tem alguma idéia sobre a forma de que se revestirá a ocasião a que
acabou de se referir?
- É difícil examinar aqui todos os caminhos que exploramos - respondeu
Hedrock, circunspectamente. - A jovem pessoa em causa é vulnerável por
muitos lados. O
recrutamento do corpo de oficiais causa-lhe sérias preocupações. Ela se
debate no meio de uma rede de intrigas urdida pelos velhos que a rodeiam, os
quais lhe escondem sistematicamente as informações que possuem Sem
recursos, está presa na armadilha. Uma armadilha tão velha quanto a
humanidade. Ela está separada do mundo real. Nossa tarefa é tirar partido
desses pontos fracos.
- Isso é apenas uma fórmula!
- Tem razão. Mas uma fórmula que se apóia na análise, a que
pessoalmente me dediquei, do caráter da Imperatriz.
- Não acha que seria preferível confiar essa espécie de estudos aos
técnicos da máquina Pp e aos.. .
- Examinei minuciosamente a pasta Innelda antes de fazer esta proposta,
falo da pasta que a própria liga organizou.
- Cuidado! Compete ao Conselho tomar decisões nesse terreno.
- Só fiz apresentar sugestões. Não tomei decisões. O outro não replicou.
Hedrock tinha o sentimento de que o conselho havia descoberto sua
verdadeira face. Uma assembléia de indivíduos humanos, tão humanos! Tão
ciumentos de suas prerrogativas. Custariam a avaliar as decisões que o
coordenador seria finalmente levado a tomar para resolver o problema do
"pêndulo".
O auditório se agitava. Involuntariamente, todos os olhos estavam
atraídos pela Temporal. Cada um consultava a hora com inquietação.
Hedrock não demorou mais.
As oscilações daquele pêndulo pouco comum agiam como uma droga.
Vigiar um aparelho registrando o movimento espasmódico de corpos reais no
tempo, criava uma tensão perigosa para o equilíbrio mental. Bastava a
Hedrock saber que o homem e o edifício oscilavam com um movimento
regular no continuum.
Voltou ao seu escritório na hora exata de ouvir o relatório que Lucy lhe
enviava pelo telestate.
"... Apesar de todos os meus esforços, fui expulsa do Palácio dos
Tostões. Quando eles tornaram a fechar as portas, percebi o que ia acontecer.
Temo que o tenham enviado a uma Casa de Ilusões. E o senhor sabe o que
isso quer dizer!"
Hedrock sacudiu lentamente a cabeça. A moça parecia emocionada:
- As energias de ilusão têm, entre outros, efeitos nefastos sobre as
faculdades calistênicas. Não se pode saber previamente a natureza da
modificação, mas é lícito pensar que ele nunca mais terá oportunidade nos
jogos de azar.
- É uma pena que esse Clark se tenha deixado prender com tanta
facilidade nas ciladas da cidade - disse ele examinando com atenção a
expressão de sua interlocutora. - Enfim... nós nunca o consideramos mais que
um trunfo eventual. Não há portanto razão para sentimentos muito intensos.
Aliás - e nunca é demais insistir neste ponto - a mais ínfima interferência de
nossa parte no curso de sua existência arriscará fazer nascer mais tarde
suspeitas que anularão todos os benefícios que poderíamos esperar de sua
ação. Em conseqência, você pode se considerar isenta de toda a
responsabilidade a respeito dele. Oportunamente, dar-lhe-emos novas
instruções.
Esperou um pouco, antes de continuar:
- Então, Lucy, que está acontecendo? Uma fixação emocional?
Bastou olhá-la para não ter dúvida.
- Quando percebeu? - perguntou com fleugma.
Todas as resistências, todos os temores que ela poderia ter tido ao
descobrir essa reação psicológica, desapareceram.
- Quando as outras mulheres o beijaram. Não que isso me tenha
perturbado -
apressou-se a acentuar. - Isso vai acontecer-lhe ainda muitas vezes antes
que ele recupere o equilíbrio.
Hedrock olhou-a gravemente.
- Não tenho certeza. De acordo com minha experiência da vida e dos
homens, posso assegurar-lhe que uma boa porcentagem dos que passaram
pela Casas de Ilusões são tão duros como o aço, mas muito desligados das
alegrias deste mundo.
Falara bastante. As atividades futuras de Lucy estavam, dai por diante,
fixadas em suas linhas gerais. Bastava deixar os acontecimentos seguirem seu
curso. Exibiu um sorriso cordial.
- Agora, Lucy, você está livre. Não se deixe abater. A tela tornou-se
outra vez leitosa.
Na hora seguinte, Robert Hedrock, fechado em sua sala, atirou vários
olhares impacientes para o outro lado da porta. Os corredores, a princípio
fervilhantes de idas e vindas, voltaram pouco a pouco a ser calmos e depois
tornaram-se desertos.
Chegara o momento de agir. O coordenador abriu o cofre embutido na
parede e apanhou planos microfilmados da Temporal. O Centro de
Informações, quando ele pedira esses documentos, não fizera nenhuma
objeção, o que era, aliás, muito normal: responsável pelo Departamento de
Coordenação, Hedrock tinha acesso a todos os arquivos da organização.
Aliás, ele tinha uma explicação na ponta da língua para o caso de lhe fazerem
perguntas. Não lhe era preciso estudar esses planos para achar uma solução
para o problema do pêndulo? Quanto ao verdadeiro motivo de sua
solicitação, isso não interessava a ninguém.
Meteu os microfilmes no bolso, caminhou para o primeiro lance de
escadas, desceu cinco andares e entrou na parte do hotel ocupada só pelas
Casas de Armas.
Lá chegando, entrou num apartamento, fechando cuidadosamente a
porta.
Encontrava-se numa suíte importante, exatamente o que convinha a um
membro do estado-maior da liga: cinco peças e uma biblioteca enorme para
onde se dirigiu sem hesitar e a qual inspecionou minuciosamente. Não. Não
havia nenhum microfone clandestino, o que em nada o espantou: que
soubesse, ninguém alimentava suspeitas a seu respeito. Mas Hedrock não era
homem de deixar coisas ao acaso.
Com um gesto vivo, inseriu um de seus anéis num instrumento que
poderia ser confundido com uma vulgar tomada elétrica. Surgiu um aro de
metal, no qual enfiou o dedo. Puxou. Instantaneamente, o transmissor de
matéria atirou-o a uns dois mil quilômetros de distância, num de seus
inúmeros laboratórios particulares. O
acontecimento, em si, nada tinha de extraordinário: o transmissor fazia
parte do equipamento padronizado das Casas de Armas. Apesar disso - e isso
sim era insólito
- o conselho ignorava a existência da instalação de Hedrock. O
laboratório fazia parte dos retiros arqui-secretos que ele preparara para seu
uso pessoal.
Podia passar ali uma hora sem temer por sua segurança em perigo. Mas
a única coisa que importava era reproduzir os planos. Para montar uma
Temporal, precisava fazer outras visitas semelhantes. De fato, teve tempo de
fazer uma cópia das plantas, que acondicionou num classificador blindado,
junto com diagramas e desenhos que reunira por milhares de anos afora.
Quando findou a hora que se concedera, Hedrock, o único imortal que
havia na Terra, o criador das Casas de Armas, o guardião de segredos
ignorados pelos outros humanos, voltou à biblioteca do apartamento que lhe
estava reservado no Hotel Royal Ganeel.
Alguns minutos mais tarde, entrava novamente na sua sala do quinto
andar.
CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDO
Lucy Ral deixou rapidamente a cabine do telestate e parou subitamente
diante de um espelho de energia que captava sua imagem. As luzes
palpitavam, as calçadas luminosas pareciam desafiar a escuridão. Mas Lucy
só via sua imagem desfeita, seus olhos queimando de febre. "Foi este o
espetáculo que dei ao Senhor Hedrock!"
Deu alguns passos vacilantes. A Avenida da Sorte nada perdera do seu
brilho.
Grupos iam e vinham, como enxames de borboletas, na luz mágica das
ruas. Mas à medida em que o céu clareasse, a multidão pouco a pouco se
dissolveria. Estava na hora de ir para casa. Lucy, apesar disso, não conseguia
se decidir, embora sabendo que nada podia fazer. Nada. O conflito que a
dilacerava era esgotador. Duas vezes, no espaço de uma hora, ela havia
interrompido seu passeio para engolir um copo de energia.
Um sentimento penoso de derrota pessoal unia-se nela às preocupações
que a atormentavam. Sempre tivera como certo que, um dia, acabaria por
casar com um membro da liga. Na escola, na universidade, na época em que a
sua candidatura já fora devidamente aprovada, os outros, as pessoas comuns,
eram a seus olhos estrangeiros. "Foi no avião que aconteceu", pensou, num
lampejo de compreensão.
"E fiquei consternada. "
Clark estava naquela hora numa situação infinitamente mais grave que
antes. Se conseguisse localizar o lugar para onde ele fora levado, ela... A
idéia que jorrara em seu espírito tinha uma força tal que ela ficou arquejante.
Era ridículo! Mesmo supondo que ela entrasse numa dessas casas, era preciso
vencer uma ilusão, não apenas física mas também mental.
O simples fato de encarar uma coisa semelhante fazia com que corresse
o risco de ser expulsa da organização, pensou, pouco à vontade. No entanto,
pensando bem, o documento que havia assinado não continha nenhuma
interdição formal. Na verdade, o parágrafo em letras miúdas do qual se
lembrava, era bastante espantoso, à luz da situação atual:
".. -os membros da liga podem casar à vontade... participar, em caráter
pessoal, de todos os deboches, conhecer todos os prazeres de Isher-... A
Organização permite a seus membros ocupar seu tempo livre como bem
entenderem... "
"A liga considera como evidente que nenhum, de seus colaboradores
poderá se entregar a atividades de natureza a desvalorizar sua
desclassificação Pp. Os membros da Organização ficam advertidos de que
sua filiação pode ser cancelada a qualquer momento se os exames Pp, aos
quais são periodicamente submetidos, revelarem uma incompatibilidade com
o fato de pertencerem à Organização. Se for descoberto que um filiado não
mais satisfaz às exigências requeridas, a Organização apagará em sua
memória todas as informações cuja posse por uma pessoa não responsável
sejam de molde a prejudicar a liga.
"A experiência mostrou que entregar-se com excessivo ardor aos vícios
e deboches cuja lista se segue, é o primeiro passo para a exclusão da liga... "
As mulheres, em particular, eram avisadas com relação às Casas de
Ilusões. Uma chamada ao pé da página precisava que o perigo não residia no
prazer em si, mas no fato de saber que os comparsas masculinos que eram
encontrados nesses estabelecimentos estavam lá contra a vontade, na maioria
das vezes. O que, no começo, nãc passava da procura de uma experiência
sensual relativamente normal, acabava por exigir a participação do ego
inteiro.
Lucy saiu do seu devaneio tomando bruscamente consciência de que se
dirigia apressadamente para o anúncio piscante de uma estação de telestate.
Assim que meteu-se na cabine, ligou para o Centro de Informações. Alguns
minutos mais tarde, tinha na bolsa a cópia da lista de endereços de duas mil e
dezoito Casas de Ilusões da cidade. "Agora", murmurou, "para o Palácio dos
Tostões. "
Cayle, na sua inocência, não pôde ver o que lhe saltava aos olhos
quando entrou no antro de jogatina, que retomara um aspecto quase normal:
os aliciadores manejavam ostensivamente os aparelhos, prontos a se eclipsar
discretamente assim que conseguiam juntar em torno deles um número
suficiente de apostadores eventuais. Lucy caminhou para o fundo do vasto
hal , parando freqentemente, fingindo se interessar pelas diversas partidas em
curso. Tinha um anulador na bolsa: por isso pôde se introduzir na sala do
diretor sem desencadear os sinais de alarme que impediam a entrada. Seu
anel indicador a avisaria da aproximação de quem quer que fosse. Antes de
iniciar uma busca sistemática, ligou a automáquina. Mas por mais que
apertasse o botão ilusão e depois o casa, a tela continuava branca.
Insucesso idêntico com o catálogo do telestate. O homem a quem
pertencia a sala
- um certo Martin, a julgar pelos documentos que havia examinado -
tinha ligação apenas com algumas daquelas casas, das quais conhecia os
endereços de cor? Era muito possível. E nesse caso, a tarefa de Lucy não ia
ser muito facilitada.
Mas a moça não tinha a intenção de capitular tão depressa. Depois de ter
dado uma olhada rápida no conteúdo da mesa, que só tinha coisas comuns,
instalou-se confortavelmente numa poltrona e esperou.
Não por muito tempo. Seu anel de alerta não tardou picar-lhe o dedo.
Ela o orientou sucessivamente para cada um das duas portas que davam
acesso à sala. O
detector indicou aquela por onde entrara um quarto de hora antes.
O personagem obeso que apareceu cantarolando não viu imediatamente
sua visitante. Assim que a percebeu, seus olhos de um azul-claro piscaram
quando pousaram na arma que brilhava entre as mãos de Lucy. Calmamente,
examinou a desconhecida com curiosidade. Aquele homem há muito tempo
havia esquecido o que era medo.
- Encantadora - murmurou.
Lucy esperou a continuação.
- Que deseja?
Havia um traço de impaciência na sua voz.
- Meu marido.
Era, afinal de contas, a melhor maneira de se apresentar. A existência de
uma Senhora Cayle Clark nada tinha de absurdo.
- Seu marido? Seu espanto não parecia fingido.
- Ele estava jogando e ganhando. Eu esperava, olhando para ele. Aí a
multidão me separou dele. Fui parar lá fora. As portas se fecharam. Quando
consegui voltar, ele tinha desaparecido. Como sei que dois e dois são quatro,
vim aqui ver o senhor.
O discurso, feito num tom monótono, era um pouco longo, mas Lucy
dera vida a um personagem de esposa amorosa e sofredora, mas decidida, e
que era bastante convincente. A menos que Martin desconfiasse de que as
Casas de Armas se interessavam por Cayle Clark. E ela percebeu que a
dúvida surgiu na cabeça do homenzinho de cara porcina.
- Sei de que está falando!
Teve um riso rápido, mas seu olhar vigilante continuava pregado ao de
Lucy.
- Lamento muito, cara senhora. Apenas avisei um serviço aéreo de
transporte com o qual tenho negócios. O que eles fazem das pessoas de quem
se encarregam, ignoro completamente.
- Se entendi bem, o senhor não conhece o lugar para onde levaram meu
marido, mas sabe de que tipo de lugar se trata?
Ele a olhou com ar pensativo, como se estivesse formando uma opinião
a seu respeito. Depois, sacudiu os ombros e deixou cair:
- As Casas de Ilusões.
A resposta, embora só fizesse confirmar a conclusão a que Lucy
chegara, era interessante. Todavia, a aparente franqueza de Martin não
significava que ele estivesse dizendo a verdade.
- Quer aproximar o Lambeth?
Ele obedeceu sem protestar, contentando-se em fazer notar:
- Repare que eu não resisto.
Sem comentário, ela apontou o instrumento sobre seu interlocutor.
- Seu nome?
- Harj Martin.
O Lambeth não oscilou. Era o nome dele.
- Eu lhe darei todas as informações que desejar - disse o homem, com
um sacudir de ombros, antes que Lucy pudesse dizer uma palavra. - Que
importância tem para mim? Nós somos protegidos. Se a senhora conseguir
achar a casa para onde levaram seu marido, muito bem... vá até lá. Mas esses
estabelecimentos têm métodos seguros para se livrar de seus pensionistas
quando há uma batida da polícia.
Imagino que sabe disso?
Seu nervosismo atraiu a atenção de Lucy.
- Tenho a impressão de que o senhor vai tentar modificar nossas
posições respectivas. Dou-lhe um conselho: não tente. Não hesitarei em
atirar.
- É uma arma das lojas - cuspiu ele, sarcástico.
- Exatamente. Ela só disparará se o senhor me atacar.
Não era estritamente verdadeiro. As armas pessoais dos agentes da liga
não estavam sujeitas às limitações das dos simples clientes.
- Perfeito - suspirou Martin. - Temos negócio. com a Sociedade de
Transportes Aéreos.
O Lambeth confirmou a veracidade da informação.
- Não sei se o senhor percebe, mas está se saindo bem! - disse Lucy,
enquanto, recuando, preparava a saída.
O gorducho passou a língua nos lábios secos. A última imagem que
ficou no espírito da pseudo-senhora Cayle foi a de dois olhos atentos e
intensos. Como se o homem não tivesse perdido a esperança de pegá-la de
surpresa.
Trinta segundos mais tarde, a agente Lucy Ral estava na rua,
inteiramente salva.
Anton Lowery, um gigante louro, levantou a cabeça do travesseiro ainda
meio adormecido e olhou Lucy com ar perplexo, sem mesmo se dar ao
trabalho de levantar.
- Não sei para onde o levaram - falou finalmente. - Nós apenas nos
encarregamos do negócio, manjou?
O chofer liga para as tascas, ao acaso, uma após outra, até encontrar uma
que se ocupe do cliente. Não queremos encrenca.
Parecia vagamente indignado. Como um honesto comerciante que, pela
primeira vez, visse sua probidade profissional posta em dúvida. Era inútil
para Lucy perder tempo discutindo.
- Onde posso encontrar esse chofer?
Segundo Lowery, o chofer tinha acabado de trabalhar às duas horas da
madrugada e tinha direito a sessenta e seis horas de descanso.
- Foi o sindicato quem decidiu assim. Período de trabalho reduzido,
salário alto e muito tempo livre.
O tom do homem deixara de ser indignado. Estava triunfante.
Contentíssimo de dar esses esclarecimentos...
- Onde ele mora?
O gigante, que não tinha a menor idéia, sugeriu-lhe dirigir-se ao
sindicato. Apenas ele não se lembrava, mas não se lembrava mesmo, do
nome do sindicato em que seu empregado estava inscrito. O Lambeth, que
Lucy tivera a precaução de tomar emprestado de Martin, confirmou a
ignorância do seu interlocutor. Ela teve um momento de pânico. Dentro de
três dias Cayle seria iniciado na vida sórdida das Casas de Ilusões.
- Imbecil! Assim que seu chofer vier trabalhar, você lhe pedirá o
endereço do estabelecimento. Dez minutos depois, entrarei em contato com
você. E olhe, é do seu máximo interesse ter a informação!
Seu tom e atitudes deveriam ter sido convincentes, pois Lowery
apressou-se a garantir-lhe que teria a informação, que iria se ocupar
pessoalmente, que...
Ele ainda engrolava suas promessas quando ela saiu do quarto.
No primeiro distribuidor, bebeu um copo de energia. A ração era
insuficiente. Eram mais de cinco horas da manhã. Estava exausta, impunha-se
um pouco de repouso.
Voltou para casa sem incidentes, despiu-se lentamente e deslizou entre
os lençóis.
"Três dias. " pensou ela antes de adormecer. "Três dias. Para quem o
tempo passa mais lentamente? Para o homem submetido às solicitações
ininterruptas do prazer, ou para ela, ela que sabia que o prazer a jato contínuo
é a mais dilacerante das torturas?"
Foi seu último pensamento consciente. Mergulhou no sono como uma
criança esgotada.
CAPÍTULO DÉCIMO TERCEIRO
Assim que ficou de posse do endereço, entrou em contato com Hedrock,
que escutou seu relatório em silêncio.
- Trabalho excelente - disse ele, quando ela acabou - excelente. Vamos
protegê-la.
Um cruzador patrulhará o local, a grande altitude. Espero - continuou
depois de uma hesitação - espero que compreenda que só há uma forma de
justificar tal medida: Clark não deve duvidar um instante sequer de que só
motivos pessoais a animam.
Sente-se capaz de ir até o fim?
Pergunta inútil: bastava olhar a expressão desvairada de Lucy para
conhecer seus sentimentos. Ela estava emocionalmente a zero. Hedrock
sentiu o aguilhoar do remorso. Apesar disso, não era responsável pelos
sentimentos de Lucy. Seu papel se limitara a tirar partido do conhecimento
dos meandros psicológicos do ser humano.
Cayle Clark podia ter importância para Isher; poderia infletir o curso da
guerra existente entre o governo imperial e as Casas de Armas. Uma vez as
faculdades calistênicas de Cayle orientadas no bom sentido, elas se
ampliariam numa progressão geométrica. Que aconteceria então? Nenhum
espírito humano era capaz de adivinhar.
Se somente se conseguisse prever sob que forma se revestiria sua ação?
Hedrock reprimiu esses pensamentos. Não era homem de se abandonar a
especulações. Seu papel era observar os fatos e os gestos de Clark, com a
esperança de que chegariam a descobrir o instante crítico da mutação.
- Seu encontro é a que horas?
- Esta noite, às vinte e trinta. - Teve um sorriso sem alegria. - A
recepcionista me recomendou chegar na hora. Eles parecem estar lotados!
- Imaginemos que ele não esteja... disponível naquela hora? Que fará?
- Imagino que haverá, nesse caso, ruptura de ilusão e que há então o
direito de escolher seu par. Mas supondo que ele não esteja disponível, bem,
eu também não estarei. Bancarei a esperta.
- Ele a reconhecerá?
Ela não compreendeu o que ele queria dizer.
- As ilusões deixam imagens alucinatórias residuais que alteram a
percepção visual.
- Darei um jeito para que me reconheça, fique tranqilo. - E ela
empenhou-se em expor-lhe os diversos métodos que havia imaginado.
- Vê-se bem que você não tem o hábito de freqentar esses
estabelecimentos! Vai ter que enfrentar grandes dificuldades. Gente que está
vigilante vinte e quatro horas por dia. Enquanto não estiver verdadeiramente
em estado de ilusão, haverá poucas oportunidades para que uma só de suas
palavras lhes escape. Eles só se desinteressam das coisas e gestos dos clientes
a partir do momento em que estes estão sob a influência de
neuroestimulantes. Você precisa lembrar sempre disto.
Lucy se reanimou. Lembrando-se da tarde que passara em companhia de
Cayle, sentiu-se confiante.
- Ele me reconhecerá - disse, com voz firme.
Hedrock não insistiu mais. Quis apenas que os dados do problema que
Lucy deveria resolver ficassem claramente expostos. Três dias e três noites de
ilusões, era muito. Mesmo abstraindo as imagens residuais, sequelas do
tratamento, sai-se com o espírito perturbado; a energia vital atinge seu ponto
mais baixo e não se tem mais o apoio necessário para reagir.
Agora queria me preparar, Senhor Hedrock.
- Desejo-lhe toda a sorte possível, minha menina. Mas só peça ajuda em
caso de necessidade absoluta.
Hedrock não saiu da central depois desta conversa. Em período de crise,
ele transportava suas coisas para um apartamento ao lado do seu escritório.
Seu trabalho era sua vida e ele passava praticamente todas as horas de folga
no escritório. Chamou imediatamente o estado-maior da frota das Casas de
Armas, para pedir que preparassem um protetor para Lucy. Mas esta medida
era bastante insuficiente. Com as sobrancelhas contraídas, procurou avaliar as
oportunidades teóricas da moça e pediu aos arquivos secretos que lhe
enviassem sua pasta. Ainda não haviam passado dois minutos quando a pasta
pousou na sua mesa.
Compreensão: 110. Horizonte: 118. Pletora: 105. Domínio: 151. Ego:
120.
Coeficiente emocional: 150.
Em outras palavras, uma moça inteligente, com uma emotividade
superior à normal. Fora precisamente aquela qualidade que decidira os
responsáveis a confiar a missão a Lucy. Quando, em conseqência de uma
sondagem de rotina à qual normalmente são submetidos os basbaques que se
amontoam em frente às lojas recentemente abertas, identificaram em Cayle
Clark um gigante calistênico, fora decidido estabelecer contato com ele
através de uma mulher solteira, possuidora de forte índice afetivo. O conselho
havia previsto que Lucy sofreria uma fixação emocional. Outros elementos,
aliás, haviam desempenhado um papel na seleção -
entre eles as defesas e o equilíbrio possuídos por Lucy - e que seriam
indispensáveis, pois ela seria submetida a tensões pouco habituais. Era
desejável, no interesse do próprio agente Ral , que a atração fosse mútua,
pelo menos no começo. Num mundo em movimento, não seria possível, é
claro, garantir a permanência...
Hedrock examinou, um a um, cada fator suscetível de modificar a
situação. Deu um suspiro de resignação. Tinha pena de Lucy. Em princípio, a
Organização nunca se metia na vida particular dos seus membros nem na de
ninguém. Mas o caráter excepcional da situação atual, dessa crise sem
precedentes, autorizava alterar a regra, justificava o fato de utilizar um ser
humano como um pião. Hedrock devolveu a pasta ao Centro de Informações
e começou a manipular seu telestate com uma atenção deliberada. Após ter
eliminado inúmeras imagens, conseguiu o que procurava: a Temporal. A
maior das duas manchas achava-se a seis semanas e um dia do futuro, mas a
pequena foi mais difícil de localizar. Finalmente achou-a, ínfima pontuação
perdida em alguma parte no meio do oceano do tempo. Estava
aproximadamente a um bilhão de anos no passado. Hedrock fechou os olhos,
tentando imaginar o que aquilo representava, mas a energia da qual McAl
ister era atualmente portador ultrapassava a imaginação.
Cortou o contato do aparelho. Sentiu-se invadido por súbito cansaço.
Não tinha ainda a menor idéia da maneira pela qual seria possível resolver o
problema da explosão, remediar a ameaça mortal que pesava sobre o sistema
solar inteiro.
Consagrou a hora seguinte a examinar os relatórios do dia. Os agentes
que não tinham o raro privilégio dado a Lucy de se comunicar diretamente
com o coordenador a qualquer hora do dia ou da noite - os privilegiados eram
apenas um punhado e ignoravam o favor a eles feito - ditavam seus relatórios
a máquinas registradoras ou aos colaboradores de Hedrock, que se revezavam
de oito em oito horas. De tempos em tempos, Hedrock encontrava um
relatório sucinto que exigia uma pesquisa mais acurada. Trabalhava sem
mau-humor, sem pressa, consagrando a cada relatório o tempo que
considerava necessário.
Às dez horas e meia chamou o cruzador que vigiava no céu
verticalmente sobre a Casa onde Lucy já devia ter entrado. Durante um
instante, contemplou a imagem telescópica que lhe enviava seu interlocutor:
uma casinha de boneca perdida na verdura.
E voltou a seu trabalho.
CAPÍTULO DÉCIMO QUARTO
Uma onda de calor envolveu Lucy quando ela empurrou a grade e,
surpresa, a moça parou.
Sabia, é claro, que aquela sensação fora provocada artificialmente: era o
primeiro passo no caminho que levava aos estranhos cumes da alegria sensual
que a Casa de Ilusões oferecia. A partir de agora, até o momento de deixar
aqueles lugares, seu sistema nervoso ia ser submetido de maneira quase
permanente a manipulações insidiosas.
A hesitação que ela deixou transparecer servia a suas intenções.
Recomeçou a andar a passos lentos. O parque, situado na frente da casa, fora
admiravelmente concebido. Flores, moitas, surgiam cá e lá, rompendo a
monotonia do lajedo. Uma cortina de fetos arborescentes encobria quase
inteiramente a entrada da Casa. Lucy penetrou na abóbada vegetal. Havia,
primeiro, uma clausura cuja folhagem, elevando-se progressivamente,
acabava por formar um longo corredor de verdura brilhante, com teto em
arcada.
Por duas vezes, num movimento mais forte que ela, Lucy parou. A
primeira vez, quando alguma coisa suavemente acariciou sua face, como uma
mão imantada, de dedos afetuosos. A segunda vez, foi mais surpreendente.
Com a respiração cortada, o rosto vermelho, sentiu o corpo inteiro incendiar-
se. Sentia-se ao mesmo tempo contrariada e feliz, intimidada e febril. Era isso
o que sentia uma noiva na noite de núpcias?
Essas delicadezas eram a especialidade das Casas de Ilusões, onde os
blasés dos dois sexos podiam recuperar as emoções perdidas, que seus corpos
usados haviam há muito esquecido.
O corredor de verdura desembocava num caramanchão de espelhos.
Seriam portas? Hesitante, temendo escolher a pior, Lucy esperou que uma
delas se abrisse.
Mas como, ao fim de alguns minutos, nada acontecesse, tentou empurrar
os espelhos. Os seis primeiros continuaram imóveis, mas o sétimo cedeu. Era
uma porta de vaivém dando para uma passagem tão estreita que mal deixava
lugar para o seu corpo. Suas costas roçavam as paredes e ela tinha a penosa
impressão de estar sufocando. Não era apenas um mal-estar físico: seu
espírito associava esse desconforto aos terrores do confinamento, ao temor da
ameaça desconhecida que surgia subitamente, quando não se podia avançar
ou recuar.
Viria essa angústia de uma espécie de consciência culpada? Do fato de
que os motivos de sua visita eram inteiramente estranhos aos negócios
normais do estabelecimento? Ela era contra as Casas de Ilusões e procurava
entravar seu andamento. Essa angústia, no fundo, podia perfeitamente ter
como origem o terror de ser desmascarada antes de ter levado seu trabalho a
bom termo.
Indubitavelmente, a inconfortável passagem não devia inquietar os
clientes habituais, que sabiam onde ela terminava.
Seus temores desapareceram tão prontamente quanto surgiram:
bruscamente, ela foi envolvida por uma alegria sem limite ao pensar no que a
esperava. Arquejante, empurrou a porta da parede que fechava a passagem e
encontrou-se, aliviada, numa pequena peça agradavelmente decorada.
- Sente-se, por favor - disse a mulher sentada atrás da escrivaninha - é
natural que queiramos ter uma entrevista com os novos clientes.
Lucy sentou-se, calada. Sua interlocutora, já não mais uma jovem, tinha
um rosto amável, prejudicado, no entanto, pelos olhos estreitos e inquiridores
e pela finura dos lábios.
- Tudo o que me disser fica entre nós. Esboçou uma sombra de sorriso e
suas mãos de unhas manicuradas bateram na testa.
- Nada sairá daqui. Mas previno-a de que tenho uma excelente memória.
Jamais esqueço um rosto ou uma voz.
Lucy, que conhecera muitas pessoas dotadas de uma memória fantástica,
não pôs um só instante suas palavras em dúvida. Até onde ela podia saber,
jamais foram encontradas listas de freqentadores nas Casas de Ilusões. Os
arquivos eram aparentemente registrados na memória de pessoas capazes de
os conservar.
- Nós não fiamos, evidentemente. A quanto monta sua renda anual?
- A cinco mil créditos.
- Onde a senhora trabalha?
Lucy citou uma sociedade conhecida. Tudo estava previsto há muito
tempo. Cada membro da Organização constava dos registros do pessoal de
uma firma que pertencia secretamente à liga ou cujo proprietário era
partidário dos Fabricantes de Armas.
- Quanto é seu aluguel?
- Cem créditos, por mês.
- Quanto gasta em alimentação?
- Entre cinqenta e sessenta créditos, mais ou menos.
- Transporte, dez créditos. Roupa, vinte e cinco. Diversos, dez. Sobram
dois mil e quinhentos. Se a senhora vier uma vez por semana, a sessão lhe
sairá por cinqenta créditos. Faremos, no entanto, um abatimento desta vez.
Trinta e cinco créditos, por favor.
Lucy contou o dinheiro. A crueza desse cálculo espantou-a. Na verdade,
ela tinha outras despesas; quando mais não fossem, seus impostos: mil
créditos. E ela gastava muito mais de vinte e cinco créditos para se vestir. No
entanto, se fosse preciso, se o desejo do prazer apertasse a ponto de esquecer
toda a prudência, ela poderia frear suas despesas. Era evidente que as Casas
de Ilusões partiam do princípio de que, uma vez engajados, os clientes viriam
mais de uma vez por semana. Se Lucy devia enveredar por esse caminho, ela
se mudaria para se instalar num bairro menos elegante, usaria roupas menos
luxuosas, comeria menos. Havia mil maneiras de fazer economia. Meios tão
velhos quanto o próprio vício.
A recepcionista colocou o dinheiro numa gaveta e levantou-se.
- Obrigada. Espero que nossas relações sejam duradouras e satisfatórias.
Por aqui, por favor.
A saída dissimulada dava para um vasto corredor que desembocava
numa suntuosa alcova. Desconfiada, Lucy parou antes de passar a soleira.
"Lembra-te que estás numa Casa de Ilusões", falou consigo mesma. O que
parecia real poderia não passar de um engano. Pondo em prática o conselho
que Hedrock lhe dera para identificar os fantasmas de origem mecânica,
esforçou-se, sem virar a cabeça, para olhar só com o rabo do olho e constatou
que a cena estava curiosamente deformada no limite do seu campo de visão.
Pareceu-lhe que a peça era maior do que aparentava.
Com um sorriso, caminhou ousadamente, atravessou a parede do fundo
e encontrou-se numa espécie de salão imenso, com paredes de espelhos. Uma
mulher correu ao seu encontro.
- Queira desculpar-nos, senhorita. Como era sua primeira visita,
precisávamos nos certificar de que não conhecia nenhum dos nossos
pequenos truques. Alguém falou-lhe desta ilusão ou a senhora já freqentou
outras Casas?
Lucy julgou melhor contornar a pergunta.
- Um amigo me falou - explicou descuidadamente, e era a pura verdade.
A resposta pareceu satisfazer à jovem e loura criatura.
- Se quiser mudar de roupa...
Abriu uma porta camuflada e Lucy penetrou num pequeno toucador. Um
elegante vestido branco estava pendurado num cabide. No chão, havia um par
de sandálias. E
nada mais.
Lucy despiu-se lentamente. Caira na engrenagem e lhe seria muito
difícil sair. Se não conseguisse entrar em contato com Cayle a tempo,
precisaria, quisesse ou não, experimentar o prazer artificial.
O vestido era de uma suavidade maravilhosa. O deslisar do tecido sobre
sua pele nua provocou-lhe um arrepio voluptuoso. Era um tecido especial
cujo contato estimulava diretamente os centros nervosos do prazer.
Abandonou-se, feliz, à carícia envolvente que descia ao longo do corpo
como se fosse uma onda. Uma espécie de vertigem deliciosa fê-la vacilar.
"Azar! Aconteça o que acontecer esta noite, vou mesmo é me divertir!"
Calçou as sandálias, abriu a porta às apalpadelas e bateu as pálpebras à
vista da sala. De um lado, havia uma fileira de homens, alguns sentados em
mesinhas.
Defronte, em mesinhas semelhantes, uma fileira de mulheres,
simetricamente dispostas em relação aos homens. Ornamentos policrômicos
alegravam as paredes.
À sua frente, um enorme bar ocupava todo o comprimento da peça. A
decoração era autêntica ou se tratava ainda de ilusão? Desistiu de verificar.
Que importância tinha?
O essencial era que ela estivesse lá, na sala de encontros. Com um pouco
de sorte, breve encontraria Cayle. E se não o encontrasse, azar. Haveria
outras noites, pensava num sonho enevoado.
Suas pernas tremiam um pouco, quando começou a andar. Olhou com
desprezo as mulheres sentadas diante de bebidas servidas em copos
minúsculos. A maioria era composta de velhas, muito mais velhas que ela.
Desgostosa, voltou os olhos para os homens e então notou que havia duas
salas. Uma tela transparente se interpunha entre o grupo de homens e o de
mulheres. Quem sabe se aquela separação também era ilusória? Quem sabe se
se dissolveria no momento da conjunção?
Porque a conjunção deveria acontecer, como Lucy não duvidava.
Parando de se interrogar, passou os homens em revista. Eram jovens, na
maior parte. E reconheceu Cayle. Mais exatamente, teve consciência de
reconhecê-lo alguns segundos depois que seu olhar pousou nele Sentiu um
choque, mas o reflexo de prudência impôs-se.
Dominando sua emoção, caminhou com desenvoltura para uma
mesinha, na qual sentou-se.
Acabara-se a agradável embriaguez de há pouco. Sentia-se infeliz,
agora, ao recordar a fisionomia entrevista. Um Cayle de rosto desfeito.
Esgaseado, esgotado, teria reparado nela? Duvidava. "Vou olhá-lo outra vez",
pensou, "e desta vez procurarei chamar-lhe a atenção".
Olhou discretamente o relógio. Antes de mais nada, agir com calma.
Passou-se um minuto. O ponteiro começou um novo circuito, os segundos
continuaram a se suceder. Um... dois... três... quatro... cinco... Um
homenzinho esguio levantou a mão. Lucy levantou a cabeça: Cayle devorava-
a com os olhos e ela teve um choque.
- Tirem a barreira, rapazes - disse o magrela, alegremente - chegou o
momento das apresentações.
Houve uma certa agitação no grupo das mulheres, algumas das quais
correram para o lado oposto da sala. Vendo Cayle aproximar-se Lucy não se
mexeu. Ele sentou-se na mesa dela.
- A senhorita é encantadora - disse, com voz afetada.
Demasiadamente agitada para emitir um som, ela só pôde responder de
cabeça.
Uma recepcionista inclinou-se sobre seu ombro.
- A senhorita está contente? - perguntou, em voz baixa.
Lucy sacudiu o queixo de novo.
- Se quiser me seguir... Por aqui.
Lucy levantou-se. "Assim que estivermos sós, ele e eu, poderemos
começar a preparar um plano de fuga", pensou ela.
Uma porta abriu-se com estrondo. A mulher que recebera Lucy na sua
chegada apareceu e murmurou algumas palavras no ouvido do homenzinho.
Uma campainha tocou. Lucy quis virar-se, mas uma estranha vertigem fê-la
vacilar e ela sentiu-se mergulhar num poço sombrio.
A campainha do telestate soou. Eram onze e cinco. Hedrock ligou o
aparelho e o rosto embotado de Lucy apareceu na tela.
- Não sei o que aconteceu - disse ela. - Tudo parecia estar andando
direito. Ele me reconheceu. íamos ser levados a um canto sossegado.
Depois... só escuridão.
Quando voltei a mim, estava em casa.
- Não desligue, voltarei já a falar-lhe.
O coordenador chamou o cruzador e foi o comandante em pessoa quem
respondeu.
- Ia ligar para o senhor. Houve uma batida, mas eles devem ter sido
avisados em cima da hora. Carregaram as mulheres em autoplanos, doze por
aparelho, e as levaram para as casas delas.
- E os homens?
Hedrock tinha a garganta seca ao fazer esta pergunta. Era sabido que as
Casas de Ilusões tinham meios radicais para garantir sua proteção.
- Foi exatamente por isso que eu não o chamei antes. Eles foram
amontoados num transporte que levantou vôo imediatamente. Tentei segui-
los mas me tapearam lindamente.
Hedrock esfregou os olhos. O caso Clark ia mal. Nada mais havia a
fazer. Nada, senão esperar.
- Obrigado, capitão. O senhor trabalhou bem! Contou a Lucy o que
houve.
- Foi assim - concluiu. - É desolador, mas isso elimina Cayle
definitivamente. Não podemos correr o risco de intervir.
- Que devo fazer?
- Nada. Esperar.
CAPÍTULO DÉCIMO QUINTO
Fara trabalhava. Nada mais havia a fazer. E seria assim até a morte,
pensava freqentemente. Como um imbecil, continuava a esperar que, um dia,
Cayle aparecesse no ateliê. "Aprendi a lição, papai, diria. Se me perdoares, se
me ensinares o trabalho, poderás te aposentar e descansar. Tu o mereceste. "
Naquele dia - 26 de agosto - no fim do almoço, a voz mecânica de um
telestate cantarolou de repente:
"Dívida a pagar... Dívida a pagar... "
O casal se entreolhou. O rosto de Creel endureceu.
- Patife - rosnou Fara.
Mas ele se sentia curiosamente aliviado. Cayle finalmente percebeu que
os pais têm, às vezes, certa utilidade. Ligou a imagem.
Apareceu na tela a figura enrugada de um personagem bochechudo.
- Falando o caixa do Banco Número Cinco, sucursal de Ferd. Temos
aqui um título de dez mil créditos emitido contra o senhor. Com as despesas,
sua dívida se eleva a doze mil e cem créditos. Quando vai liquidá-la? Agora
ou esta tarde?
- Mas... mas... quem?
Pelas explicações do estranho, ele compreendeu vagamente que os dez
mil créditos tinham sido entregues naquela manhã a Cayle Clark.
Ele explodiu:
- O banco não tem o direito de debitar minha conta sem minha expressa
autorização.
- Se o senhor quiser, avisaremos nossa sede de que se trata de uma
falsificação.
Nesse caso, é claro, uma ordem de prisão será emitida contra seu filho.
- Espere... espere...
Creel sacudiu a testa negativamente. Estava trêmula.
- Não te preocupes, Fara - murmurou com voz quebrada. - Devemos ser
tão impiedosos quanto ele deixa correr.
Fara tinha a impressão de estar vivendo um sonho absurdo.
- Eu... eu não... Posso liquidar... mais tarde?
- O senhor tem, naturalmente, a possibilidade de pedir um empréstimo.
Ficaremos felizes em atendê-lo. Quando o título chegou, consideramos essa
possibilidade e estamos dispostos a emprestar-lhe onze mil créditos a longo
prazo, com a garantia de seus bens. Os documentos estão prontos. Se o
senhor quiser, podemos registrá-
los imediatamente e o senhor poderá assiná-los agora mesmo.
- Não, Fara! Não!
- Quanto aos mil e cem créditos restantes, o senhor os pagará em
dinheiro. Está de acordo?
- Sim, claro. Tenho dois mil e quinhentos créditos... De acordo -
reafirmou rapidamente. - De acordo.
Acertado o assunto, ele virou-se para Creel.
- Que querias dizer me pedindo para não pagar? - disse, com violência. -
Quantas vezes me repetiste que sou responsável por ele ser como é? Aliás,
sabes por que ele precisa de dinheiro?
- No espaço de uma hora ele liquidou as nossas economias. Friamente.
Porque sabia que nós não podíamos fazer outra coisa, grandes imbecis que
somos.
- Só sei de uma coisa: a honra do nosso nome está salva.
Seu sentimento de ter agido de acordo com seu dever durou até o meio
da tarde.
Exatamente até o momento em que um oficial de justiça da Ferd
apresentou-se no ateliê para interditá-lo.
- A Sociedade de Reparação e Manutenção de Motores Atômicos pagou
ao banco o seu empréstimo e ficou com seus títulos. Por ordem dela, suas
instalações ficam sob seqestro.
- O quê? Mas é a vigarice mais deslavada! Vou imediatamente me
queixar! Ah! Se a Imperatriz souber... ela... ela...
Perdido nos cinzentos corredores do Palácio da Justiça, Fara sentia-se
enregelado até os ossos. Tinha preferido não chamar um homem da lei. Essa
decisão, quando a tomara na aldeia, lhe havia parecido a mais prudente. Mas
agora, perdido no meio daquelas salas colossais, tinha a impressão de ter
agido como o último dos imbecis.
Todavia, fez o que pôde para explicar seu caso à corte, denunciando o
complô criminoso do banco e a ligação deste com seu principal concorrente.
- Estou convencido de que a Imperatriz desaprovaria essas manobras
contra cidadãos honestos - disse, encerrando sua exposição.
- Como se atreve a cobrir a defesa de seus sórdidos interesses com o
nome de Sua Graciosa Majestade? - exclamou uma voz seca e fustigante.
Fara estremeceu. Havia em Isher milhares de tribunais impessoais,
semelhantes àquele, milhões de patifes, milhões de homens sem entranhas,
postados entre a Imperatriz e seu bom povo. Se ela soubesse o que se
passava, se ela fosse avisada da injustiça de que ele, Fara, era vítima, ela...
ela...
Bom, que faria mesmo ela?
Desembaraçou-se da horrível dúvida que assolou seu espírito e
estremeceu quando o escrivão pronunciou o veredicto:
- A queixa foi recusada e o queixoso condenado a pagar as custas. Não
poderá deixar o recinto antes de pagar sua dívida para com a justiça, ou seja,
quinhentos créditos para a corte e duzentos para o advogado da parte
contrária. Caso seguinte.
Na manhã seguinte, Fara foi ao Restaurante do Granjeiro, de
propriedade de sua sogra.
A sala já estava meio cheia, embora ainda não fosse meio-dia. Um bom
negócio...
A mãe de Creel estava na despensa, vigiando a pesagem dos sacos de
trigo. Em silêncio, ouviu o genro.
- Não posso, Fara - disse secamente. - Eu mesmo tenho ido ao banco
freqentemente pedir dinheiro e, se ajudar vocês, breve terei a Sociedade de
Manutenção nas minhas costas. Aliás, era preciso ser muito inocente para
emprestar dinheiro a um homem que se deixou enganar pelo próprio filho!
Isso prova que você não sabe defender seus interesses. E não lhe darei
trabalho: tenho por princípio não empregar parentes. Gostaria muito que
Creel viesse morar aqui. Mas nem penso em sustentar um homem.
Ao deixar a despensa, virou-se bruscamente:
- Por que não vai à loja de armas? Você nada tem a perder e não pode
continuar como está.
Fara saiu. Estava um pouco tonto. Comprar uma arma e se suicidar? Era
uma sugestão absurda, mas doía-lhe ser a sogra a fazê-la. Matar-se? Ridículo.
Aos cinqenta anos ainda se é jovem. Com um pouco de sorte, podia ainda
ganhar corretamente a vida nesse mundo onde o automatismo era rei. Havia
sempre um lugar ao sol para um homem consciencioso, com uma boa
profissão, a qual conhece a fundo. Fara baseara toda a sua existência nesse
credo.
Creel empacotava as coisas.
- A solução mais prudente é alugar a casa e viver num apartamento
mobiliado -
murmurou.
Ele contou-lhe o oferecimento da sogra. Ela sacudiu os ombros:
- Eu já tinha recusado ontem. Nem sei mesmo porque ela te falou nisso.
Fara aproximou-se da sacada e olhou o jardim, tentando imaginar Creel
longe das suas moitas, do seu tanque, das pedras, arrancada do ambiente que
ela amava, banida do seu lar. Creel num apartamento mobiliado. Agora ele
compreendia o que a sogra queria dizer. Ficava-lhe um última esperança.
Assim que Creel subiu, ele chamou Mel Dale. O rosto do prefeito teve
uma expressão de enfado quando viu quem o chamava, mas nem por isso
deixou de ouvir com ar solene o pedido de Fara.
- Lamento, mas o conselho municipal não empresta dinheiro. E devo
dizer-lhe uma coisa, Clark, embora, note bem, eu não tenha nada com isso,
não lhe será dada licença para montar um novo negócio.
- Como?
- Lamento. Quer um conselho? Vá à loja de armas. Esses
estabelecimentos têm, às vezes, sua utilidade.
Houve um clique e a tela ficou branca. Fara continuou a olhar
fixamente. Não havia solução. Só lhe restava morrer.
CAPÍTULO DÉCIMO SEXTO
Fara e Creel transportaram suas coisas para uma única peça mobiliada.
Fara levou dois meses a tomar essa decisão.
Naquele dia, quando as ruas ficaram desertas, ele foi à Casa de Armas,
arrastando-se contra as paredes. Atravessou a avenida, percorreu um jardim
florido e parou diante da porta da loja. Por um instante teve medo de que ela
não se abrisse, mas sua apreensão durou pouco:
Ela abriu-se ao primeiro empurrão. O velho de cabeleira prateada,
sentado numa poltrona, lia à luz de uma lâmpada velada. Ao ver Fara, pousou
o livro e levantou-se.
- Mas é o Senhor Clark, não é verdade? Em que lhe podemos ser úteis?
As faces de Fara enrubesceram. Tinha a esperança de não ser
reconhecido, que aquela humilhação lhe seria, pelo menos, poupada. Mas
agora que aquela esperança se desfizera, sentia crescer nele a vontade teimosa
de ir até o fim. Se ele se matasse, o enterro nada custaria a Creel. Agora só
isso o interessava. Mas nem o punhal nem o veneno seriam usados.
- Quero uma arma capaz de desintegrar um objeto de seis pés de
diâmetro. O
senhor a tem?
O velho abriu uma vitrine e apanhou um revólver de cano curto, de
reflexos dourados vibrantes. De plástico Ordin, evidentemente.
- Eis um artigo perfeito para ser usado num coldre sob o casaco - disse o
vendedor, com uma voz precisa. - É extremamente rápido: corretamente
sintonizado, pula diretamente para a mão do atirador. Olhe. Vou pô-lo no
coldre. Neste instante ele está sintonizando comigo. Observe com cuidado...
Foi fantástico. O homem fez um gesto com os dedos e a arma, que
estava a um metro dele, pulou para a sua mão. Fara não percebeu nenhum
deslocamento.
Exatamente como quando a porta havia sumido na sua mão e batera no
nariz de Jor.
Havia sido instantâneo!
Ele vira e manejara armas, vulgares armas de metal ou de plástico como
as que os soldados usam. Jamais vira uma que fosse capaz de obedecer assim
à ordem de seu proprietário.
Teve que fazer um esforço para voltar ao assunto.
- É bastante interessante. Mas e o feixe?
- Da espessura de um lápis, perfura não importa que corpo, salvo certas
ligas de chumbo, num raio de quinhentos metros. O senhor poderá
desintegrar um objeto de seis pés a menos de cinqenta metros. O ejetor é
regulado por esta molinha. Vira-se para a esquerda, para disparar o feixe e
para a direita, para travá-lo.
- Quanto é?
O vendedor fez uma pausa.
- Já lhe expliquei nossas regras, Senhor Clark. Suponho que ainda se
lembra.
- Hein? Quer dizer que elas são mesmo aplicáveis? Mas não são... O que
eu preciso é de uma arma de defesa, mas que eu possa também virar contra
mim, em caso de necessidade - ou se eu desejar.
O rosto do velho iluminou-se.
- Ah! É para um suicídio? Caro senhor, se o senhor deseja se suprimir,
isso não nos diz respeito de modo algum. Destruir-se é um dos raros
privilégios de que um indivíduo pode ainda se gabar num mundo onde os
direitos são cada vez mais restritos. Quanto ao preço, quatro créditos.
- Só?
Era uma soma irrisória e Fara estava assombrado. Ordin, nem mais nem
menos...
E a arma era fina, artisticamente cinzelada. Fara teria achado barato
vinte e cinco créditos.
O mistério das Casas de Armas pareceu-lhe de repente ter também uma
importância igual à sua própria sorte.
- Se quiser tirar o casaco para fixar o coldre... Fara obedeceu. Dentro de
alguns segundos, quando deixasse a loja, não teria mais problemas. Nada
impediria sua morte. Sentiu-se curiosamente decepcionado. Contrariamente
ao esperado, um débil luzir de esperança, que bruxuleava em algum lugar
dentro dele, vinha de se apagar.
A esperança de que os Fabricantes de Armas pudessem... pudessem...
- É preferível que saia pelos fundos, onde o risco é menor de se fazer
notar.
Fara não resistiu quando o negociante o empurrou suavemente pelo
cotovelo para o fundo da loja. Houve um clique e a porta se materializou.
Atrás, havia flores. Fara caminhou como um autômato.
CAPITULO DÉCIMO SÉTIMO
Fara imobilizou-se no meio da aléia cuidadosamente traçada. Havia
chegado o momento decisivo. Estava tentando se concentrar nessa idéia mas
não conseguia disciplinar seus pensamentos. Qualquer coisa estava errada.
Continuou a andar, para contornar a loja e, progressivamente, o vago mal-
estar que o envolvia transformou-se num sentimento de estupefação. A
evidência o dominou, cortando-lhe a respiração: não estava mais em Glay. A
loja não estava mais em seu lugar.
Alguns homens passaram-lhe à frente, tomando lugar numa fila de
espera, mas Fara não reparou, fascinado que estava pela máquina que se
erguia no lugar onde deveria se encontrar a loja. Em seu lugar, um imenso
bloco de metal destacava-se contra o azul-mediterrâneo de um céu sem
nuvens. Cinco terraços, de cerca de trinta metros cada um, subiam, em
direção ao céu, terminando por uma ogiva de luz, por uma flecha audaciosa
cujo brilho rivalizava com o do sol.
E não era um edifício, era uma máquina. Todo o andar inferior palpitava
de luzes cambiantes. Verdes, na maioria, mas que, às vezes, tornavam-se
vermelhas, azuis ou amarelas.
O segundo terraço só comportava dois fogos: branco e vermelho; o
terceiro: azul e amarelo; quanto ao quarto, liam-se as palavras:
BRANCO
Nascimentos
VERMELHO
Mortes
VERDE
População ativa
AZUL
Imigração
AMARELO
Emigração
No último terraço, outras palavras ainda. E números: POPULAÇÃO
SISTEMA SOLAR.. . 11. 474. 463. 747
TERRA.. .. .. .. .. 11. 193. 247. 361
MARTE.. .. .. .. .. .. .. 97. 298. 604
VÊNUS.. .. .. .. .. .. .. 141. 053. 811
LUAS.. .. .. .. .. .. .. 42. 863. 971
Os números mudavam incessantemente. Pessoas morriam, nasciam,
trocavam Marte por Vênus, as Luas por Júpiter ou pela Lua da Terra; outras
tornavam a pousar em dezenas e dezenas de espaçodromos. A imagem que
Fara tinha sob os olhos era o reflexo da imensa pulsação da vida.
- Será melhor o senhor entrar na sua vez - disse, perto dele, uma voz
cheia de cordialidade. - Os casos individuais são difíceis de regularizar.
Fara encarou o homem que acabava de falar. Não percebeu o que ele
quis dizer.
- Minha vez?
Não conseguiu falar mais. Um soluço contraiu-lhe dolorosamente a
garganta.
Afastou-se do desconhecido, apavorado pela idéia vertiginosa que
acabara de assaltar-lhe o espírito: fora daquela maneira que Jor, o guarda
campestre, tinha sido transportado para Marte. Um caso individual, dissera o
outro.
O rapaz o observava com curiosidade.
- O senhor deve saber por que está aqui. O senhor tem um problema que
os tribunais dos Armeiros devem resolver pelo senhor. Não há outro motivo
para vir ao Centro de Informações.
Fara incorporou-se à fila que serpenteava inexoravelmente em volta da
máquina.
Avançava rapidamente e ele era, pouco a pouco, empurrado para uma
porta.
Era portanto, um edifício e não apenas uma máquina.
Um problema? Evidentemente, ele tinha um problema. Um problema
insolúvel, um problema sem esperança, um problema cujas raízes
mergulhavam na própria estrutura da civilização isheriana. Para resolvê-lo,
seria necessário derrubar as próprias fundações do império.
Finalmente, chegou diante da entrada. Com a boca seca, pensou que, em
alguns segundos, seria presa de uma inexorável engrenagem. Mas ignorava
qual.
CAPÍTULO DÉCIMO OITAVO
Fara e seu companheiro seguiam por um vasto corredor de paredes
cintilantes.
- Há um corredor lateral praticamente vazio - notou seu companheiro.
Fara tremia ao entrar nele. No fim da passagem, uma dezena de moças
sentadas diante de uma longa mesa, recebiam os visitantes. Vista de perto, a
moça diante da qual parou não parecia tão jovem. Dirigiu-lhe um sorriso
impessoal.
- Seu nome, por favor.
Fara declinou sua identidade, acrescentando com uma voz insegura que
era originário de Glay.
- Obrigado. Vou pedir-lhe que espere um momento, o tempo de apanhar
sua pasta. Apenas alguns minutos. Sente-se.
Deixou-se cair numa poltrona sem sequer reparar, com o coração
batendo desabaladamente, a respiração faltando, os nervos esticados como
cordas de violino; não conseguia concatenar dois pensamentos coerentes.
Constatou, através da sua vertigem, que a recepcionista lhe falava e esforçou-
se em concentrar a atenção, mas apenas palavras esparsas conseguiam
perfurar aquela espécie de tela perturbadora que o envolvia.
- O Centro de Informações... serviço de estatística... Todos os
nascimentos...
registrados... nível de educação, mudança de endereço... profissão...
momentos cruciais da existência. A organização... para entrega de... ligação
oficiosa e discreta...
Câmara imperial da Estatística... por intermédio de agentes... cada
comunidade...
Fara tinha a desconfiança de que as informações principais lhe haviam
escapado, que lhe era preciso disciplinar os pensamentos... Mas seus nervos
não obedeciam mais ao seu controle. Quis interromper a moça, mas antes que
uma palavra saísse de seus lábios exangues, um objeto chato e preto caiu
sobre a mesa da recepcionista com um ruído seco. Depois de estudá-lo com
ar impassível, levantou os olhos.
- Talvez lhe interesse saber que seu filho Cayle está em Marte?
- O quê?
Fara soergueu-se, mas sua interlocutora prosseguiu com voz firme:
- Devo informá-lo de que a liga tem por norma nunca intervir em
conflitos particulares. Seu único objetivo é promover uma reforma da moral.
Cabe às pessoas, às massas, agir nesse sentido, sem solicitações exteriores.
Assim, peço-lhe agora que nos exponha brevemente seu problema.
Fara, que transpirava abundantemente, enterrou-se mais ainda na
poltrona. Antes de mais nada, queria freneticamente ter notícias de Cayle.
Mas, controlando-se, contou com voz trêmula o que lhe tinha acontecido.
- O senhor irá imediatamente para a Câmara de Identidade - disse a
moça, quando ele terminou. - Assim que vir aparecer seu nome, dirija-se à
sala 474. Não esqueça: 474. O seguinte, por favor.
Fara levantou-se quase sem ter consciência disso. Quando voltou-se, um
homem idoso tomara seu lugar na poltrona.
Andou pelo longo corredor que lhe foi indicado. Um ruído confuso, que
lhe chegava a intervalos, aumentava à medida em que ele progredia. O
corredor terminava numa porta. Quando a empurrou, o barulho assaltou-o
brutalmente, como um soco em pleno rosto. Um barulho monstruoso,
titânico, que o pregou na soleira.
E o espetáculo oferecido ao seu olhar era também tão incrível, tão
surpreendente quanto aquele maelström.
Era um anfiteatro colossal, onde formigavam milhares de homens,
amontoados em bancos, de pé, andando de um lado para outro, com uma
febril impaciência. E todos pregavam o olhar no quadro dividido em casas
que ocupava todo o fundo do auditório. Cada casa levava uma letra do
alfabeto. Fara sentou-se depois de ter achado a casa dos C. Tinha a impressão
de se ter metido num jogo de pôquer sem limite. Era vertiginoso, fascinante,
esgotante. Era terrível.
As casas se iluminavam, uma a uma, compondo nomes. Pessoas
berravam, outras se sentiam mal. O berreiro fazia tremer as paredes
incessantemente, sem descanso, indescritivelmente. De minuto a minuto, um
aviso brilhava em letras de fogo: VIGIE
SUAS INICIAIS.
Fara não tirava os olhos do painel. Não agentaria muito tempo. A cada
segundo era mais intolerável. Tinha vontade de gritar pedindo silêncio,
levantar, caminhar como um urso na jaula, ele também. Mas os que cediam a
esse impulso eram atacados por insultos histéricos.
Bruscamente, aquela loucura o apavorou. "Não vou bancar o idiota, eu...
"
Clark, Fara... Clark, Fara.
Seu nome. Era seu nome, o nome dele que piscava no painel.
- Sou eu - urrou. Mas ninguém se virou. Ninguém prestou-lhe a menor
atenção.
Envergonhado, atravessou o anfiteatro furtivamente para atingir um
novo corredor, onde incorporou-se a uma interminável fila de pessoas. Ali,
tudo era silêncio. Um silêncio quase tão insuportável quanto o sabá de há
pouco.
474. Era difícil concentrar a atenção em um número! 474. Iria enfrentar
o quê, quando empurrasse a porta do número 474?
Era um escritório exíguo, sumariamente mobiliado com um par de
cadeiras e uma mesa sobre a qual folhas de papel estavam regularmente
dispostas em pilhas e no meio da qual imperava um globo feito de uma
substância opalina e luminosa.
Uma voz ergueu-se.
"Fara Clark?"
- Sou eu.
"Antes de ser dado o veredito, queira apanhar uma folha azul. "
Era apenas a lista de todas as sociedades dependentes do Banco
Interplanetário n° 5. Cerca de quinhentos nomes, colocados por ordem
alfabética, sem um comentário. Fara colocou a folha no bolso.
"Todas as explicações lhe serão dadas em tempo útil", continuou a voz.
"Foi constatado que o Banco Interplanetário n.° 5 cometeu uma patifaria
indiscutível com o senhor. Além disso, é culpado de fraude, de violência, de
chantagem e, paralelamente, de conspiração criminosa. Um agente do banco,
cujo papel é entrar em contato com rapazes e moças de boas famílias em
dificuldades financeiras, travou conhecimento com seu filho. O cúmplice
recebe 8 por cento do empréstimo concedido e a comissão é paga pelo
solicitante. O banco declarou que seu filho recebeu dez mil créditos, quando
lhe entregou apenas mil, e isso depois que o senhor assinou o reconhecimento
de dívida. Disseram-lhe que seu filho corria o risco de ser preso por ter
fraudulentamente pedido um empréstimo em seu nome e a ameaça foi feita
antes que o dinheiro tenha mudado de mão. A transferência do seu crédito ao
seu concorrente constitui, enfim, um delito de conspiração. Em conseqência,
o banco foi condenado a uma multa igual ao triplo da soma extorquida, ou
seja, 36.300 créditos. Não nos interessa dizer-lhe que meios usamos para
obrigá-
lo a pagar. Basta-lhe que saiba que a multa foi paga. A liga fica com a
metade...
quanto à outra... " Um maço de notas caiu sobre a mesa com um ruído
surdo... "É
sua". Com mãos trêmulas, Fara pegou o dinheiro. Foi com dificuldade
que entendeu o resto do discurso.
"Suas dificuldades não terminaram ainda. Vai precisar de muita
perseverança e coragem para refazer seu negócio. Seja discreto, bravo,
resoluto e conseguirá. Não hesite em usar o revólver que adquiriu para
defender seus direitos. Chegado o momento, lhe explicaremos nosso plano.
Pode ir. Saia pela porta à sua frente. "
Fara precisou de um grande esforço de vontade para abri-la e sair.
Sem transição, estava outra vez no local familiar da Casa de Armas. O
velho de cabelos de prata levantou-se da poltrona para ir ao seu encontro,
com um sorriso cheio de gravidade nos lábios.
A inimaginável aventura tinha findado. Fara estava de volta a Glay.
CAPÍTULO DÉCIMO NONO
Ele não conseguia eliminar sua perturbação. Aquela vasta, fascinante
organização, implantada no próprio coração da impiedosa sociedade que, no
espaço de algumas semanas, havia despojado a ele, Fara, de tudo o que
possuía...
- O... juiz - acabou por dizer, dominando sua febre (e por falta de uma
palavra mais apropriada) - o juiz me disse que para recuperar minha situação,
preciso...
- Antes de abordarmos esse problema, gostaria que o senhor examinasse
a lista que lhe foi entregue.
- A lista?
Precisou de um momento para entender o que o velho queria. Havia
esquecido completamente a folha azul. Depois de tê-la tirado do bolso,
examinou-a com cuidado. A Sociedade de Manutenção figurava nela em
lugar de destaque.
- Não entendo - murmurou espantado. - São as sociedades contra as
quais os senhores lutam?
Seu interlocutor sacudiu a cabeça.
- Essas firmas só representam uma fração das oito milhões de empresas
cujas atividades vigiamos sem parar. - Sorriu sem alegria. - Eles sabem
perfeitamente que é por nossa causa que seus lucros teóricos não têm
nenhuma relação com suas receitas, mas ignoram quanto a margem
representa. Preferimos deixá-los nessa ignorância. Nossa finalidade é
promover uma melhoria da moral comercial, e não encorajar o excesso em
matéria de fraude.
Fez uma pausa, antes de continuar, fixando em Fara um olhar
escrutador:
- As companhias que figuram nessa lista têm um ponto em comum:
todas pertencem à Imperatriz. Considerando tudo em que o senhor acredita,
não espero que me creia.
Fara não se mexeu. E apesar disso, contrariando toda a expectativa, ele
acreditava nas palavras do velho. Totalmente. Sem restrições. O espantoso, o
imperdoável, era que durante toda sua vida vira homens levados à ruína, que
soçobravam na miséria e no esquecimento e era neles que ele punha a culpa!
- Como eu fui insensato! Dizendo amem a tudo o que a Imperatriz e seus
funcionários faziam... Eu recusava ter relações com quem não pensasse como
eu.
Suponho que, se começo a criticar a Imperatriz, não tardarei a ser
despachado.
- O senhor não deve de maneira alguma falar mal de Sua Majestade. A
liga opõe-se formalmente a tal atitude e deixa de dar seu apoio aos que
praticam esse gênero de imprudência. A responsabilidade da Imperatriz na
realidade, é atenuada. Da mesma maneira que o senhor, ela é, numa certa
medida, levada pela corrente da civilização isheriana. Mas este não é o
momento de dar-lhe um curso minucioso sobre a política dos Fabricantes de
Armas. O período mais crítico das nossas relações com o poder situa-se há
quarenta anos. Naquela época, todos os que estavam convencidos de que
nossa ajuda era um benefício eram assassinados. Vou dizer-lhe uma coisa que
o espantará: seu sogro foi uma das vítimas da repressão.
- O pai de Creel! Mas... Eu sempre pensei que ele havia fugido com
outra mulher!
- Cada vez que um era liquidado, faziam correr boatos desse tipo. Para
pôr um fim a essa situação, nós mesmos executamos os três notáveis
responsáveis pela hecatombe. Mas não queremos mais saber de novos banhos
de sangue. Acusam-nos de aliança com os maus: isso nos deixa insensíveis.
Recusamo-nos a criar obstáculos à evolução profunda da existência: é isso
que precisam compreender. Nós reparamos as injustiças, agimos como um
pára-choque entre os povos e seus cruéis exploradores. Em regra geral, só
damos nossa ajuda às pessoas honestas, o que não quer dizer que recusemos
sistematicamente nossa assistência aos que são menos escrupulosos. No
entanto, nunca chegamos ao ponto de vender armas aos últimos.
Ora, nossas armas são extremamente preciosas e é em parte por causa
delas que o governo é obrigado a se reduzir a espertezas de ordem econômica
para estabelecer sua ditadura. Há quatro mil anos, um brilhante gênio, Walter
S. de Lany, inventou o processo vibratório que tornou possíveis as Casas de
Armas e estabeleceu os princípios básicos de nossa filosofia política. E há
quatro mil anos vemos o regime oscilar entre uma monarquia democratizada
e a tirania absoluta. E compreendemos uma coisa: os povos têm
invariavelmente o tipo de regime que desejam. Quando querem mudar, cabe-
lhes meter a mão na massa. Nós somos um núcleo incorruptível
(incorruptível no sentido literal: dispomos de uma máquina para a qual o
caráter de um homem não tem segredos), um núcleo incorruptível de
idealismo, tendo por tarefa atenuar os males que o governo inevitavelmente
engendra, qualquer que seja a forma de que se reveste. Mas estamos nos
afastando do seu problema pessoal. Ele é de uma extrema simplicidade: o
senhor deve se bater como, milenarmente, os homens resolutos se bateram
para defender o que há de valor aos seus olhos, para salvaguardar seus
legítimos direitos. O truste Manutenção de Motores mudou sua oficina na
hora em que houve o embargo e o material foi recolhido a um armazém
longínquo. Nós o recuperamos e o colocamos no devido lugar. O senhor vai,
portanto, retomar posse de suas coisas e...
Fara, com os dentes cerrados, ouviu atentamente as instruções.
Finalmente concordou.
- Conte comigo - disse. - Sempre fui cabeçudo. Já não tenho as mesmas
opiniões de antes mas continuo sempre obstinado.
CAPÍTULO VIGÉSIMO
A maioria das Casas de Ilusões estava fichada na polícia. Mas uma lei
não escrita estava em vigor: cada vez que uma batida era dada, o proprietário
era avisado.
Todavia, o nome dos que tinham sido seqestrados devia ser facilmente
encontrado na gaveta de qualquer mesa. Nas semanas seguintes, as listas de
emigrantes, inclusive os indigentes e os criminosos enviados para Marte,
Vênus e as Luas, estavam controladas. Os empreiteiros do governo tinham
sempre necessidade de mão-de-obra para os planetas. E as Casas, freqentadas
por mulheres abastadas, que não se podiam permitir escândalos, forneciam
um contingente regular de trabalhadores.
O argumento de que somente os mortos não falam não era, porém,
aceito pela polícia. Os proprietários que infringiam essa regra inexorável,
eram impiedosamente perseguidos. Há milhares de anos o sistema provara
sua eficácia: o vício podia ter curso livre desde que suas vítimas
sobrevivessem à sinistra experiência.
Cayle fez instintivamente alto junto da passarela. O chão estava duro
como pedra.
O frio que se insinuava pelas solas penetrava-lhe até os ossos. Então isso
é que era Marte? Olhou o triste aspecto da cidade e estremeceu. Não de frio:
de raiva. Uma raiva em estado bruto, tão violenta que teve a impressão de
estar habitado por uma vontade de aço.
- Tu, caminha um pouco - resmungou um dos guardas que vigiavam o
desembarque. E sua voz era cava no ar rarefeito.
A ponta de um bastão cutucou o ombro de Cayle, que nem se virou,
desprezando a ofensa. Acompanhou a lúgubre fila que se estendia
interminavelmente. A cada passo, o frio invadia mais um pouco seu corpo.
Agora ele o sentia até o fundo dos pulmões. Homens começaram a correr na
frente dele. Outros o ultrapassaram, com a respiração rouca, os olhos fora das
órbitas, gesticulando canhestramente; a débil gravidade à qual não estavam
habituados, fazia-os tropeçar. Vários caíram gemendo, com o corpos
dilacerados pelas pontas dos chuços. O chão gelado, o chão de ferro de
Marte, estava tinto pelo sangue dos homens.
Cayle obrigou-se a conservar um ar normal. Sentia um enorme desprezo
pelos que perdiam o sangue frio. Tinham sido avisados! E a vasta cúpula de
plástico só estava a quatrocentos ou quinhentos metros dali. Por mais penosa
que fosse a temperatura, era possível suportá-la durante o percurso de tão
pequena distância. Quando chegou à cerca, seus pés estavam dormentes e
todo seu corpo formigava. Mas sob a cúpula estava morno. Lentamente, o
rapaz caminhou para a parte do edifício que dava para a cidade.
Shardl era uma cidade de mineiros, erguida no meio de uma planície
pontilhada cá e lá de massas verdes: os jardins atômicos, densos, luxuriantes,
cujo espetáculo in-congruente só fazia acentuar a desolação da paisagem.
Um grupo se amontoara diante de um painel de informações. Ele
aproximou-se e conseguiu ler o título do cartaz:
NÃO DEIXE PASSAR A OCASIÃO
Intrigado, abriu caminho através da pequena multidão, leu o texto e
afastou-se, com um sorriso. Faziam recrutamento para as fazendas marcianas!
"Aceite um contrato de quinze anos e Sua Graciosa Majestade, Innelda
de Isher, lhe fornecerá uma fazenda inteiramente equipada com um
termogerador atômico.
Nenhum pagamento a vista. Reembolso em quarenta anos.
E o apelo acabava com este conselho insidioso: "Apresente sua
candidatura, agora no serviço de divisão de terras - e não terá que trabalhar
nas minas nem um minuto".
A tentadora proposta deixou Cayle insensível. Ele ouvira falar do
sistema engendrado para colonizar o planeta frio e o planeta quente, Marte e
Vênus. Cada hectare seria um dia loteado e ocupado e os planetas
conheceriam, então, os benefícios da energia atômica. À medida em que os
milênios fossem passando, os homens conseguiriam degelar todos os mundos
glaciais do Sistema solar, esfriar os tórridos desertos de Vênus e de Mercúrio.
Homens se esfalfando até o fim de seus dias, acabariam por criar cópias
aceitáveis da Terra longínqua, do verde planeta de onde tinham vindo.
Era a doutrina. Quando ele estava na escola, ao evocarem diante dele o
problema da colonização, nunca viera à idéia de Cayle que ele estaria, um
dia, mergulhado na penumbra de Marte, vítima de uma implacável
maquinação contra a qual a educação que recebera não o imunizara. Deixara
de detestar o pai. Seu ódio ficara lá embaixo, nas brumas do passado, naquele
mundo de nada onde se tinham dissolvido suas ilusões. Um pobre imbecil, só
isso! No fundo, talvez fosse melhor que houvesse gente como ele, incapaz de
compreender as realidades do império.
Seu problema pessoal seria, daí por diante, resolvido de maneira tão
simples quanto eficaz. Antigamente tivera medo; seu medo estava morto. Por
estranho que fosse, tinha sido honesto; sua honestidade estava morta.
Embora, num certo sentido, ainda fosse honesto. Tudo dependia da maneira
de encarar a vida: deveria adotar a teoria que afirmava que um ser humano
devia ser bastante forte para enfrentar as exigências do momento?
Cayle estava disposto a enfrentá-las. O homem que ele havia sido não
amoleceria em Marte! Em primeiro lugar, nada assinar que pudesse entravar
seus movimentos.
Precisaria ser prudente, mas saber apanhar instantaneamente todas as
oportunidades que se apresentassem - e então se empregar a fundo, apostar
tudo sem hesitação.
Uma voz cautelosa tirou-o do devaneio.
- É de fato a Cayle Clark, da aldeia de Glay, a quem estou me dirigindo?
Cayle não esperava que a ocasião se apresentasse com tanta rapidez.
Voltou-se lentamente e viu-se frente a frente com um homem de pequena
estatura, metido num sobretudo de suntuosa elegância. A despeito de seu
rosto insignificante e sua pele endurecida, via-se que não era o gênero de
pessoa a ter feito parte de um transporte de deportados.
- Represento o Banco Interplanetário n.°5. Talvez estejamos em
condições de ajudá-lo a sair desta situação... insólita.
Com seu rosto descarnado e seu colarinho folgado, parecia um sapo.
Seus olhos inquiridores luziam com um brilho sombrio como duas pérolas
negras.
Cayle não pôde reprimir um estremecimento de nojo. Quando era
garotinho, uma mulher ia muito à casa dele. Vivia coberta de jóias e peles.
Tinha os mesmos traços, os mesmos olhos. Palmadas de nada adiantaram: ele
não queria saber dela.
- Isso pode interessá-lo?
Cayle ia recusar a oferta quando uma palavra, na qual não prestara
atenção, aflorou sua consciência.
- Qual é o banco, mesmo?
A caricatura sorriu com um sorriso confiante de quem se sabe portador
de um dom precioso.
- O Banco Interplanetário n.°5. O senhor abriu uma conta na nossa sede
há um mês. No decorrer da investigação que fazemos obrigatoriamente sobre
os novos clientes, soubemos que o senhor havia partido para Marte em
condições desagradáveis. Então tomamos a iniciativa de pôr à sua disposição
nosso serviço de empréstimos.
- Estou vendo.
Cayle examinou com atenção seu interlocutor mas esse novo exame não
lhe permitiu achar o menor detalhe capaz de lhe inspirar confiança. No
entanto, a conversa devia prosseguir.
- O que é, exatamente, que o banco pode fazer por mim?
O outro pigarreou.
- O senhor é mesmo filho de Fara e Creel Clark? - perguntou,
destacando as palavras.
Cayle hesitou um momento antes de aquiescer.
- Quer voltar para a Terra? Desta vez não hesitou.
- O preço básico da viagem é 600 créditos, quando a distância Marte-
Terra permite realizá-la em vinte e quatro dias. Se a distância é maior, há um
acréscimo de dez créditos por dia suplementar. Suponho que sabe disso.
Na verdade, Cayle ignorava esse regulamento, mas duvidava que o
salário semanal de vinte e cinco créditos dado aos mineiros lhe deixasse
alguma esperança de um repatriamento rápido. Um homem sem recursos
estava de pés e mãos amarrados. Redobrou a atenção, adivinhando o que se
seguiria.
- O banco - continuou o outro com grandiloqência - o banco está em
condições de lhe adiantar mil créditos se seu pai aceitar ser seu avalista e se o
senhor assinar um reconhecimento de dívida de dez mil créditos.
Cayle sentou-se pesadamente. A esperança esfumou-se mais cedo ainda
do que previra.
- Jamais ele avalisará um título de dez mil créditos - disse com desgosto.
- Nós lhe pediremos avalisar apenas até mil créditos. O senhor pagará o
saldo com seus lucros futuros.
Cayle examinou o representante entrefechando os olhos.
- Sob que modalidade essa quantia me será entregue?
O outro sorriu.
- O senhor assina. Nós lhe damos a importância líquida. Quanto ao seu
pai, não se preocupe. É o departamento de psicologia quem se incumbe de
obter a assinatura dos avalistas e dos emitentes dos títulos. Para uns, usamos
maneiras fortes, para outros...
Mas Cayle interrompeu:
- Quero o dinheiro antes de assinar qualquer coisa. O homem de cara de
sapo deu uma risada e sacudiu os ombros.
- O senhor é duro nos negócios, estou vendo. Mas será feito como quer.
Acompanhe-me até a sala do diretor.
Cayle, pensativo, seguiu-o. Tudo parecia fácil demais. Desconfiado,
tinha a impressão de uma encenação muito bem arranjada. Diminuindo o
passo, deu uma olhada ao redor. Havia uma completa série de salas onde
homens bem vestidos conversavam com deportados.
Começou a compreender. Primeiro, o cartaz. Se não desse certo, se
ninguém quisesse se tornar fazendeiro, o agenciador do banco entrava em
cena. Se alguém assinasse, de duas uma: não recebia um tostão ou a
importância entregue lhe seria imediatamente roubada. Então, com todos os
recursos esgotados, presentes e futuros, uma pessoa era condenada a ficar em
Marte pelo resto da vida.
"A pequena transação é feita diante de testemunhas", pensou. "Dois
gorilas com suas armas, para garantir que ninguém fuja com a gaita. "
Bom meio de colonizar um planeta inóspito! O único, talvez, pois os
terrenos não sentiam a menor vocação para pioneiros.
De fato, os dois homens estavam no escritório. Dois homens com roupas
elegantes. Sorridentes. Verdadeiramente cordiais. O sapo apresentou-os a
Clark como o diretor da mina e o empregado do banco, respectivamente.
Quantos
"diretores" estavam sendo apresentados nos escritórios vizinhos a outros
ingênuos?
Ter a possibilidade de conversar em particular com tão alto personagem,
verificar que, apesar de tudo, também era um ser humano, devia ser
extremamente impressionante.
Cayle apertou as mãos que se estendiam, refletindo sobre a situação. Em
primeiro lugar, obter o dinheiro de maneira legal. Isto é, assinar um
documento e ficar com uma cópia. Talvez isso, em si, não tivesse uma grande
importância mas, apesar de tudo, era preciso não subestimar o valor da
legalidade. O que era preciso evitar, a qualquer preço, era não pegar num
tostão e se ver diante de um tribunal em presença de testemunhas que
negariam friamente sua história.
O escritório, pequeno mas mobiliado agradavelmente, poderia
perfeitamente ser de um diretor. Tinha duas portas, a por onde Cayle entrara e
uma segunda em frente dela. Por onde, sem dúvida, desapareceria a vítima,
depois de depenada, para que não pudesse contar sua aventura aos
companheiros. Clark foi abri-la. Dava para uma esplanada. Viu dezenas e
dezenas de barracas e, espalhados, grupos de soldados. Espetáculo que fazia
pensar: supondo que conseguisse embolsar aquele dinheiro, nada de sair por
ali.
Fechou a porta e voltou para o centro da sala.
- Brrr! Faz frio, lá fora! Quero voltar logo para a Terra!
Os três compadres responderam-lhe com um sorriso compreensivo e o
personagem reptiliano estendeu-lhe um documento ao qual estava apenso um
maço de notas de cem créditos que Cayle enfiou no bolso, não sem ter tido
antes o cuidado de contar. Após, dedicou-se a ler o contrato que, muito claro,
era feito aparentemente para infundir confiança nos espíritos que se
perturbavam com a solenidade complicada de peças desse gênero. Havia três
cópias: uma destinada à Terra, outra à agência marciana do banco e a terceira
para ele. Todas estavam devidamente assinadas. Faltava só a sua assinatura.
Cayle separou a cópia que lhe pertencia e os dois exemplares restantes foram
inseridos no circuito de registro. Fez na primeira uma assinatura cheia de
ornamentos, recuou um passo... e atirou a caneta, de ponta para a frente, na
cara do "diretor", que deu um grito, levando a mão à face machucada.
Clark não esperou. Com um salto, aterrissou perto do sapo, agarrou-o
pelo pescoço e apertou com toda a força. Com a boca aberta, o infeliz sacudia
debilmente os braços no ar.
Por um breve momento, Cayle perguntou-se com angústia se seu plano
iria ter sucesso. Ele partira, na verdade, da hipótese de que sua vítima tinha
uma arma e que ele iria tentar pegá-la. Tudo dependia disso.
A mão de dedos finos penetrou no volumoso casacão e logo saiu
apertando um pequeno explosor que foi logo empunhado pelo rapaz.
O "empregado" havia, também, sacado sua arma e girava para achar um
meio de atirar sem ferir seu cúmplice. Clark atirou a queima-roupa, visando o
pé do seu adversário. Um fino e cegante raio de energia jorrou do explosor.
Um cheiro de couro carbonizado invadiu a sala, ao mesmo tempo em que
volutas de fumaça azul espalhavam-se preguiçosamente no ar. O tipo berrou,
largou a arma e caiu, torcido de dor. A uma ordem de Clark, o "diretor",
completamente confuso, ergueu os braços. Cayle tirou-lhe o explosor,
apanhou o do colega dele e caminhou, de costas, para a porta. Explicou
rapidamente ao sapo o que esperava dele: ele o acompanharia, seria seu
refém. Os dois iriam para a base mais próxima e voariam na direção de Mare
Cimmerium, onde Cayle passaria para o primeiro navio de partida para a
Terra.
- E se alguma coisa pifar - concluiu - haverá pelo menos um pilantra que
morrerá antes de mim!
Nada pifou.
Isto aconteceu no dia 26 de agosto de 4784, era de Isher, dois meses e
vinte e três dias depois que Innelda lançou sua ofensiva contra as Casas de
Armas.
CAPÍTULO VIGÉSIMO PRIMEIRO
Cayle refletia e fazia planos. Os dias se sucediam regularmente enquanto
o foguete dirigia-se para a Terra. A hora marcada pelos relógios de bordo se
aproximava pouco a pouco da hora de Isher. Mas, lá fora, o espaço
continuava imutável: de um lado, a ardente claridade do sol; do outro, a
escuridão vibrante de estrelas. Ele dormia, comia, sonhava, ia e vinha. Vivia.
Seu pensamento se tornava mais claro, sua vontade mais aguçada. Não tinha
mais dúvidas dentro dele: o homem que vencera o medo da morte não podia
fracassar.
O brilho do sol aumentava. Sua espiral de fogo salpicava as vigias.
Marte não era mais que um ponto vermelho no oceano da noite, difícil de
distinguir entre os diamantes faiscantes que juncavam o céu. A Terra
aumentava. Primeiro, foi uma esfera de luz; depois, uma incrível, uma
monstruosa massa vaporosa que ocupava a metade do espaço. Os continentes
tomaram forma e quando a nave contornou a Lua, as cidades brilharam no
hemisfério noturno, rivalizando de brilho com os céus.
Cayle só olhava o planeta de vez em quando. A cinco dias da chegada,
descobrira um jogo clandestino num dos porões. Perdeu a maioria das
partidas, mas ganhos ocasionais lhe permitiam recuperar alguns créditos. No
terceiro dia, cheio de inquietação, parou, voltou para a cabine e contou o que
lhe restava: oitenta e um créditos. Tinha dado ao representante do banco os
oito por cento do famoso empréstimo. Comprara com o resto um revólver,
pagara sua passagem... e perdera no pôquer.
"O principal", pensou, "é que vou logo estar na Cidade Imperial com,
apesar de tudo, mais dinheiro no bolso do que quando cheguei pela primeira
vez".
Deitou-se. Seu azar no jogo não o afetava em nada. Não tinha a intenção
de se refazer no Palácio dos Tostões. Agora via as coisas sob um outro
ângulo. Não hesitaria em correr riscos, é claro. Mas... num alto nível. Não lhe
seria fácil tornar a se apossar dos cinco mil créditos que lhe tinham tirado.
Mas conseguiria. Sentia-se possuidor de tesouros de paciência, sentia-se
preparado para todas as eventualidades. Assim que tivesse o dinheiro, iria
procurar Medlon para obter sua comissão. Talvez devesse pagar, talvez não.
Tudo dependeria do momento. Não tinha nenhuma idéia de vingança. Era-lhe
indiferente a sorte de criaturas venais como o coronel ou o sujeito dos jogos.
Aqueles indivíduos não passavam, para ele, de degraus, de ferramentas para
realizar o plano mais ambicioso jamais urdido no império. Um plano tendo
por pedra angular uma realidade que parecia haver escapado a todos os que
tinham conseguido chegar ao cume da hierarquia isheriana.
Innelda queria o bem-estar do país. No decorrer do único contato que
tivera com a soberana, havia compreendido que ela era um ser ferido, que
sofria com a corrupção que a rodeava. Dissessem o que dissessem, a
Imperatriz era honesta. De uma honestidade maquiavélica. Clark não
duvidava de que ela fosse capaz de mandar executar um adversário. Mas isso
era parte do seu ofício de governante. Ela, também, devia se curvar às
necessidades impostas por sua situação. Como ele.
Sim, ela era honesta. Daria boa acolhida a um homem que, certo de sua
autoridade, empreendesse a limpeza da casa. Há dois anos e meio que Clark
refletia a respeito das palavras que a ouvira pronunciar no escritório de
Medlon. Fizera francamente alusão ao fato de que oficiais não chegavam a
fazer carreira porque souberam que certas coisas se tramavam na sombra. E
ela havia acusado - ela havia abertamente falado de uma conspiração pró-
Casas de Armas, ligada ao inexplicável fechamento das lojas. Sim, alguma
coisa estava sendo preparada. E para um rapaz como Cayle, que entrara
diretamente em contato com a Imperatriz, era uma oportunidade enorme.
Mas antes de passar à aplicação sistemática do seu plano, tinha que
executar um outro: encontrar Lucy Ral . Pedir-lhe que fosse sua mulher.
Isso não podia esperar. Sua impaciência era demasiadamente grande.
Ainda não era meio-dia quando a astronave pousou no seu berço, mas
havia as formalidades e Clark só saiu para o ar livre pelas 14 horas. O tempo
estava soberbo; nem uma nuvem maculava o azul. Uma ligeira brisa
acariciava as faces do rapaz enquanto ele olhava a cidade que cintilava ao
longe. Um espetáculo de tirar a respiração. Mas Cayle não tinha tempo a
perder. Mergulhou na primeira cabine que encontrou e compôs o número de
Lucy. Mas foi o rosto de um homem que apareceu na tela.
- Sou o marido de Lucy. Minha mulher acabou de sair. Mas o senhor
não tem nenhuma vontade de falar com ela! Olhe-me bem e verá que tenho
razão.
Clark, embasbacado, piscou os olhos. Os traços do seu interlocutor lhe
eram vagamente familiares.
- Ande - repetiu o outro. - Olhe-me bem.
- Não acho que...
Calou-se bruscamente, consciente do significado naquelas palavras
incompreensíveis e recuou como se tivesse recebido uma bofetada. Sentiu o
sangue fugir-lhe das faces e, vacilante, colocou a mão sobre os olhos, como
se tivesse sido cegado por uma visão fulgurante.
- Sossegue - tornou a dizer a voz - e ouça. Encontro-o amanhã na praia
do Paraíso Haberdashery. Olhe-me outra vez para que não haja dúvida. E
chegue na hora.
Clark não tinha necessidade de olhar outra vez seu interlocutor mas seu
olhar fixou-se instintivamente na tela. Não, não havia dúvida possível.
Aquele rosto era seu próprio rosto.
Clark Cayle olhava para Clark Cayle.
Era o dia 4 de outubro de 4.784 da era de Isher. Eram quatorze horas e
dez minutos.
CAPÍTULO VIGÉSIMO SEGUNDO
Seis de outubro. Uma lembrança aflora a memória da Imperatriz,
enquanto ela se vira no leito: decidira na véspera, tomar uma decisão ao
acordar. Mas ao sair do sono, percebeu que continuava na mesma indecisão.
Abriu os olhos, sentou-se e procurou compor o rosto para esconder o mau-
humor à meia dúzia de camareiras que, de plantão atrás de um biombo contra
ruídos, apressaram-se a atender sua patroa. Innelda pegou a taça de energia
que lhe foi estendida; os projetores acenderam-se, inundando a vasta câmara
com sua onda de luz. Uma nova manhã começava. Em seguida, a massagem,
a ducha; a maquiladora apossou-se dela. Logo depois, a penteadora
substituiu-a... A rotina diária.
"É preciso agir", pensou ela, abandonando seu corpo às camareiras, "é
preciso agir. Senão, a ofensiva vai abortar e como suportar a humilhação de
um fracasso?
Depois de quatro meses, eles não vão certamente demorar".
Assim que se vestiu, começaram as audiências. Primeiro, teve que
receber Gerritt, o mordomo sempre assoberbado por um mundo de
problemas. Problemas quase sempre de uma mediocridade impressionante.
No fundo, era um pouco culpa de Innelda. Ela sempre exigira que todas as
queixas referentes ao pessoal do palácio lhe fossem submetidas e que nenhum
castigo fosse efetuado sem seu acordo. A insolência é hoje a falta de que são
mais freqentemente culpados os servidores.
Desafiavam seus superiores e resistiam ao trabalho. Isso se tornara
verdadeiramente um hábito.
- Mas se não agentam o peso do trabalho, por que não se demitem? -
exclamou a Imperatriz, com irritação. - Bons empregados não custam a achar
trabalho, quando mais não seja porque supõem-se que conheçam minha vida
privada...
- Por que Vossa Majestade não me deixa acertar essas coisas?
O eterno estribilho de Gerritt! Com o tempo, ela o sabia, o mordomo
acabaria por ter razão nessa insistência. Mas certamente não no sentido em
que ele pensava.
Jamais um desses velhos conservadores teimosos dirigiria o incontável
pessoal do palácio! Seriam eles e seus iguais, esses vestígios da regência, que
teriam um dia que deixar seus lugares.
Innelda suspirou e dispensou o mordomo. Novamente o grande
problema voltou a ocupar seu espírito. Que fazer? Dar ordem de atacar,
sempre que fosse possível? Ou aguardar, na esperança de que um fato novo
modificasse a situação? Mas esperava já há tanto tempo!
Um homem de elevada estatura, de olhos cinzentos, entrou e
cumprimentou com cerimônia. Era o General Doocar.
- O edifício reapareceu na noite passada durante duas horas e quarenta
minutos, senhora. Só houve um minuto de diferença para o tempo calculado.
Innelda sacudiu a cabeça. Agora não havia mais nenhuma surpresa a
esperar daquele lado. O ritmo das materializações fora estabelecido na
semana seguinte à primeira aparição. No entanto, a Imperatriz queria ser
mantida ao corrente das flutuações do edifício, sem que soubesse, aliás, bem
por que. "Estou me conduzindo como uma criança incapaz que quer se meter
em tudo. " Novamente de mau-humor, fez alguns comentários pouco amáveis
sobre a competência dos cientistas militares e voltou ao problema que a
interessava, o da ofensiva.
- Não se deve nem pensar em lançar um ataque imediato, senhora -
declarou firmemente o general. - Em cada uma das grandes cidades do
planeta onde existe uma Casa de Armas, os geradores estão nos seus lugares,
apontados para o objetivo. Mas onze mil oficiais desertaram em dois meses e
meio e os guardas ignoram o funcionamento da arma.
- E os hipnotizadores? Em uma hora podem fazer com que aprendam.
- Podem, Majestade - disse o oficial, cujos lábios tornaram-se mais finos
ainda, embora seu timbre não tenha mudado. - Compete a Vossa Majestade
decidir se convém tornar pública essa informação. Basta ordenar. Será
obedecida.
Innelda mordeu os lábios. Doocar levara vantagem.
- Os chamados simples soldados são aparentemente mais leais que meus
oficiais.
E mais bravos.
Ele sacudiu os ombros.
- A senhora deu aos recrutadores o privilégio de vender patentes. Com
esse método, não se pode esperar que haja muitas pessoas instruídas. Além
disso, um capitão que pagou dez mil créditos por seu galões não se arriscará.
Não tem nenhuma vontade de se fazer matar.
Sempre aquele velho argumento! Quantas vezes não o ouvira repetir
com palavras diferentes! No entanto, só há poucas semanas aludiam
abertamente àquele problema. Não podia haver assunto mais desagradável!
Uma lembrança quase esquecida veio-lhe à memória.
- Na última vez em que falamos desse assunto, pedi-lhe que investigasse
junto ao Coronel Medlon sobre o que aconteceu a um rapaz que estava a
ponto de obter uma patente. É raro que eu entre em contato direto com
subalternos.
A cólera inflamou-a bruscamente.
- Já estou cheia dessa horda de velhotes incapazes de treinar uma tropa.
Dominou-se e continuou, mais calma:
- Então? E esse rapaz?
- O coronel me informou de que o candidato em questão não
compareceu ao encontro marcado. Para Medlon, ele desconfiou de alguma
coisa e mudou de idéia.
A explicação não pareceu convincente à Imperatriz.
Aquela atitude não combinava com o rapaz! Innelda conhecia todo o
valor dos contatos pessoais. Seus encantos e a espécie de aura sobrenatural
que envolvia o trono que ela personificava, agiam infalivelmente sobre todos
os que ela encontrava.
Era preciso mais que a palavra de um Medlon, indivíduo dúbio, suspeito
de embriagues, para abalar tal certeza.
- General, queira informar o coronel de que se ele não me apresenta,
hoje mesmo, aquele rapaz, enfrentará um Lambeth amanhã de manhã.
Doocar inclinou-se, mas um sorriso cínico encrespou seus lábios:
- Se Vossa Majestade pretende lutar contra a corrupção eliminando os
desonestos, uns após outros, sua vida inteira não chegará para levar a cabo
essa tarefa.
Essa linguagem, que não media palavras, feriu-a profundamente.
- É preciso começar de alguma forma, general - replicou ela num tom ao
mesmo tempo ameaçador e triste. - Não compreendo mais nada. Antigamente
o senhor também pensava que era preciso tomar medidas.
- Não lhe cabe tomá-las, Majestade. A família imperial deve encorajar a
limpeza, mas não deve dirigi-la diretamente. E depois... e depois, acabei por
admitir mais ou menos o princípio dos Fabricantes de Armas. Quando se
impede os instintos aventureiros de se exprimir normalmente, os homens
caem na corrupção.
Os olhos verdes de Innelda lançaram faíscas.
- A filosofia dos Fabricantes de Armas não me interessa em nada.
Estava estupefata de ouvir tais coisas na boca de um velho oficial. Mas
suas reclamações não o comoveram.
- No dia em que eu chegar a me desinteressar da ideologia de um poder
que existe há já três mil e setecentos anos, a senhora poderá pedir minha
demissão, Majestade.
Para onde se virasse, a Imperatriz encontrava o mesmo respeito
inconfesso pelos Armeiros. Quase um culto. Pior ainda: consideravam que
sua organização era intrínseca à civilização de Isher, da qual era
legitimamente um aspecto. "É preciso que eu me livre de todos esses velhos",
pensou ela pela centésima vez. "Eles sempre me trataram e sempre me
tratarão como menininha".
- Não me preocupo com a ética de um grupo responsável pela
imoralidade que reina em todo o sistema solar, general - disse ela,
glacialmente. - Na era em que vivemos, a produtividade é tal que ninguém
mais passa fome. O homicídio, na medida em que é ditado pela necessidade,
cessou de existir. Quanto ao crime psiquiátrico, é um problema fácil de
resolver, com um tratamento apropriado. Mas que constatamos? O neurótico
está em poder de uma superarma! E o proprietário da Casa de Ilusões tem
uma, também ele. É verdade que neste último caso há um acordo com a
polícia, que permite às forças da ordem fazer buscas. Mas se o possuidor de
uma superarma decide resistir, é preciso um canhão de trinta mil ciclos para
levá-lo ao arrependimento. É ridículo. E criminoso! Impossível por termo à
perversidade de milhões de indivíduos que desprezam a lei sob o pretexto de
que têm uma superarma nas mãos. Ah! Se a liga ao menos só vendesse suas
armas a pessoas respeitáveis, seria diferente! Mas quando não importa que
patife pode...
- São armas puramente defensivas.
- Precisamente: assassina-se o próximo... e depois nos defendemos da
justiça!
Não sei por que estou discutindo, general! Estamos em condições de
destruir essas Casas de Armas, de uma vez por todas. Não se trata de
aniquilar os membros da liga, mas de acabar com as lojas. Quando o senhor
estará preparado para o ataque?
Em três dias? Numa semana?
- Dê-me até o ano próximo, senhora. A atual onda de deserções
atrapalhou tudo.
Era verdade.
- Capturou os desertores?
- Alguns.
- Quero interrogar um já.
O general concordou em silêncio. Innelda continuou:
- Estou esperando que a polícia militar pegue os outros. Assim que
tivermos saído desse cipoal, instalarei tribunais especiais e os traidores
aprenderão à própria custa o valor do juramento de fidelidade à Imperatriz.
- E se eles possuírem superarmas?
Innelda conseguiu controlar a fúria que a objeção fez ferver nela:
- Quando a disciplina militar é pulverizada por uma organização
clandestina, os próprios generais deveriam compreender que é mais do que
tempo de jugular a subversão, meu caro. - Fez um gesto pleno de autoridade.
- Esta tarde irei visitar as instalações do Olympia Field para saber
pessoalmente em que estado estão as pesquisas. Quero saber se os
laboratórios descobriram como os Fabricantes de Armas fizeram para
esconder a geradora. Torno a lembrar-lhe que o Coronel Medlon deve
apresentar-me, amanhã de manhã o mais tardar, o rapaz sobre quem falamos.
Se não for capaz, cairá mais uma cabeça de traidor. Talvez o senhor
ache que meu interesse por um indivíduo é pueril. Já lhe disse, general: é
preciso partir de alguma coisa e conheço esse rapaz, sei que posso controlá-
lo. E agora o senhor, o admirador dos Armeiros, suma antes que eu faça
alguma coisa terrível.
- Sou leal com a casa de Isher - retorquiu suavemente Doocar.
- Fico feliz ao ouvi-lo dizer isso.
E com essas palavras sarcásticas, Innelda saiu da sala sem um olhar para
trás.
CAPÍTULO VIGÉSIMO TERCEIRO
Um discreto suspiro de alívio saudou a entrada da Imperatriz, que sorriu
com ar ausente. O repasto só começava quando Innelda partia o pão ou
mandava avisar que não compareceria. Não era indispensável fazer ato de
presença, mas os que tinham o privilégio de se sentar à mesa da soberana não
abririam mão, por nada deste mundo, desse costume.
Depois de um rápido bom-dia, Innelda sentou-se à cabeceira da mesa e
bebeu um copo dágua. Era o sinal pelo qual os servidores aguardavam.
A maioria dos convivas, homens e mulheres, tinha a cabeça
embranquecida. Nem bem uma meia-dúzia de secretários jovens misturava-se
a esses parasitas da regência. Quando o Príncipe Del Curtin exilou-se
voluntariamente, houve uma verdadeira debandada entre os cortesãos.
Depois de uma palavra de amável indiferença da Imperatriz, um silêncio
tenso voltou a reinar na sala de jantar. Faltava alguma coisa aos seus
familiares.
Frivolidade, talvez? Mas até que ponto? Ela se lembrava ainda que, há
um ano, um rapazinho lhe perguntara se era virgem. E como ela era, a
lembrança do incidente ainda a perturbava.
A licenciosidade fora banida da corte. Instintivamente, Innelda sentia
que deixar a porta entreaberta à imoralidade mancharia imediatamente a
reputação da família imperial. Certo, e então? Que desejava ela exatamente?,
pensava roendo uma torrada distraidamente. Pessoas que acreditassem em
princípios mas que também soubessem ver a vida sob um ângulo de humor.
Gente igual a ela. Positivos. A educação que recebera, severa e austera, lhe
tinha dado espírito positivo, o que tinha importância capital. Mas isso não era
razão para exibir uma solenidade afetada a todo instante. "É preciso que eu
me livre desses santarrões e desmancha-prazeres.
Apiedando-se da própria sorte, dirigiu uma fervente prece aos seus
deuses particulares: "Concedam-me uma boa piada por dia! Concedam-me
um homem capaz de dirigir os negócios de Estado e que saiba também se
divertir. Ah! Se ao menos Del estivesse aqui!"
Franziu as sobrancelhas. Seus pensamentos começavam a ficar
desagradáveis. O
Príncipe Del Curtin, seu primo, era contra a ofensiva anti-Casas de
Armas. Que choque ela sofrerá quando descobriu! E que mortificação quando
os partidários do rapaz acompanharam o chefe no seu retiro, para frisar sua
recusa a participar da aventura! Innelda, que mandara executar Banton
Vickers quando este ameaçara revelar seus planos aos Fabricantes de Armas
(traição que arruinaria seu prestígio, se ela não tivesse reagido), não podia
subestimar a força da oposição. Lembrava-se da última conversa que tivera
com o príncipe. Ele, gelado, protocolar, belíssimo em sua cólera; ela, ao
mesmo tempo vacilante e determinada.
- Quando estiver calma, pode me chamar, Innelda. Mas não antes.
Ele a provocava para que ela lhe respondesse: "Pode ficar esperando!"
Mas não teve coragem de pronunciar essas palavras.
Ela se portara como uma mulher, pensava amargamente, uma mulher
ferida que se contém de medo que o marido aja ao pé da letra. Claro, não
haveria mais possibilidade para ela de casar com o primo depois de
semelhante desabafo. Mas seria bem agradável, se ele voltasse! Mais tarde.
Quando as Casas de Armas tivessem sido destruídas.
Empurrou o prato, olhou o relógio e estremeceu. Nove e meia. O dia mal
estava começando.
Às dez e trinta, tendo liquidado a correspondência urgente, mandou
entrar o desertor. O dossiê informava que ele se chamava Gile Sanders, tinha
quarenta e cinco anos, era de origem camponesa e tinha o posto de major.
Apesar de seu sorriso um nada cínico, o homem parecia desmoralizado.
Innelda examinou-o com ar sombrio. A ficha indicava ainda que ele
sustentava três amantes e havia juntado uma fortuna traficando com os
fornecedores do exército.
De certa maneira, um caso típico. Que um personagem tão corrupto
tivesse sacrificado tudo, ultrapassava sua compreensão.
Foi o que Innelda fê-lo notar, sem circunlóquios inúteis:
- E não procure me fazer crer que o conflito determinou uma crise de
consciência no senhor. Eu considerarei como um insulto que o senhor me
atribua a ingenuidade de aceitar essa explicação. Diga-me simplesmente por
que renunciou à situação que o senhor mesmo havia escolhido. No melhor
dos casos, o senhor se arrisca a ser deportado, por toda a vida, para Marte ou
Vênus. O senhor é um imbecil? Um covarde? Ou os dois ao mesmo tempo?
- Provavelmente um imbecil - disse ele, sacudindo os ombros.
Seu olhar não deixou o da Imperatriz, mas a resposta deixou-a
insatisfeita. Depois de dez minutos de interrogatório, não conseguira
arrancar-lhe uma explicação plausível para sua conduta. Talvez a noção de
lucro ou de perda não tenha influenciado? Innelda tentou um outro caminho.
- Li no seu dossiê que o senhor recebeu ordem de se apresentar no
edifício 800 A.
Lá lhe informaram, por causa do seu posto, que fora estabelecida uma
tática para destruir as lojas de armas. Uma hora mais tarde, depois de ter
queimado seus documentos pessoais, o senhor saiu de seu escritório para se
refugiar num chalé da costa, que o senhor comprara secretamente - pelo
menos o senhor pensava assim -
cinco anos antes. No fim de uma semana, quando ficou claro que o
senhor havia abandonado o posto, o senhor foi preso e posto incomunicável.
Está de acordo com esta versão da situação?
O desertor concordou em silêncio.
- Posso fazê-lo castigar à minha vontade - continuou Innelda com voz
suave. - A morte, a deportação... Posso também comutar sua pena... e até
anistiá-lo.
Sanders suspirou profundamente.
- Eu sei.
- Não compreendo! Se o senhor percebesse tudo o que significava a sua
decisão...
era pura loucura.
- Tive de repente - principiou o outro, com voz monótona, como se não
tivesse reparado na interrupção - tive de repente a visão do mundo em que
vivia. Um mundo onde um ser, e não obrigatoriamente a Imperatriz, deteria
esse poder absoluto. Um mundo no qual não haveria onde alguém se agarrar.
Um mundo sem consolo, um mundo sem esperança. Era então esse o motivo?
- Jamais ouvi dizer asneira igual - exclamou Innelda, estupefata. -
Lamento pelo senhor, major. A história da família imperial deveria convencê-
lo de que não é possível fazer mau uso do poder. O universo é grande demais
para isso. A fração da raça humana sobre a qual estende-se a jurisdição do
meu governo é tão insignificante que chega a ser ridículo. Cada decreto que
promulgo desaparece como fumaça. Perde-se literalmente numa floresta de
interpretações contraditórias à medida em que vai chegando às camadas
executivas. Somente eu posso saber como a autoridade se deforma quando
chega ao estado de aplicação, quando se tem onze bilhões de súditos para
administrar.
Mas Sanders não parecia tocado por esta confissão. Ofendida, Innelda
levantou-se. Era claro: o homem não passava de um imbecil. E um imbecil
empedernido.
Refreou a ira com dificuldade.
- Ouça, major; destruídas as lojas, nós teremos tempo para estabelecer
leis sensatas, das quais ninguém poderá zombar. A justiça será mais
uniformemente distribuída; as pessoas serão levadas a aceitar o veredito dos
tribunais, pois seu único recurso será apelar para uma jurisdição superior.
- Exatamente!
O tom em que pronunciara essa palavra provava amplamente que o
rebelde não se rendia aos argumentos da Imperatriz. Ela olhou durante uns
segundos, sem nenhuma simpatia.
- Se o senhor é um tão caloroso partidário dos Armeiros, porque não
lhes pediu uma arma protetora?
- Eu pedi. Ela hesitou.
- E então? Faltou-lhe coragem no momento da sua prisão?
Ela não deveria ter dito aquilo. Era como dar a Sanders um chicote para
espancá-
la.
- Não, Majestade. Agi como os outros... desertores. Tirei meu uniforme.
Fui a uma loja de armas. Mas a porta não se abriu. Acontece que eu sou
desses oficiais que acreditam que a família de Isher é, dos dois elementos da
nossa sociedade, o que mais importância tem para a civilização de Isher.
Seus olhos, que brilharam à medida em que falava, voltaram a embaciar.
- Estou na situação em que a senhora quer que todos estejam. Não há
saída. Devo curvar-me à sua lei, aceitar a guerra não declarada contra uma
instituição tão legítima quanto a própria Casa de Isher, aceitar a morte se isso
lhe agrada, sem poder arriscar honestamente minha vida em combate. Eu a
respeito, senhora, e admiro-a. Os oficiais que desertaram não são canalhas.
Apenas tiveram que fazer uma escolha e escolheram não participar de uma
aventura que põe em discussão o estado de coisas atual. Creio ser impossível
falar mais francamente.
Era também a opinião de Innelda. O homem que estava diante dela
jamais compreenderia o realismo indispensável de sua política.
Quando mandou-o embora, anotou em sua agenda: "Tomar
conhecimento do veredito da corte marcial".
Isso fê-la pensar no rapaz que Medlon devia apresentar-lhe dentro de 24
horas.
Folheou a agenda: "Cayle Clark", leu em voz alta, depois de ter virado
algumas páginas. "Cayle Clark, é esse mesmo. "
Estava na hora de ir ao Ministério da Fazenda para ouvir desfilar todos
os motivos pelos quais era impossível um aumento de despesa. Sorriu com ar
cansado, antes de entrar no elevador.
CAPÍTULO VIGÉSIMO QUARTO
Relatório de Lucy ao Departamento de Coordenação.
"Casamos pouco antes do meio-dia, no mesmo dia da volta dele de
Marte, sexta-feira. Sei que uma verificação ulterior revelou que ele só pisou o
chão da Terra às 14
horas. Não sei como o fato pode ser explicado. Não comuniquei a ele
essa informação e nem o farei, a menos que me seja dada ordem expressa.
"Entretanto, não tenho qualquer dúvida. O homem com quem casei é
efetivamente Cayle Clark. A hipótese de um sósia que me tenha mistificado é
inteiramente insustentável. Cayle acaba de me telestatar, como costuma fazer
diariamente, mas não sabe que estou começando a redigir um relatório sobre
ele e começo a pensar se não deveria recusar. No entanto, as coisas sendo
como são, vou tratar de me lembrar de todos os detalhes dos acontecimentos,
como me pediram. Como este relatório do momento em que recebi seu
primeiro chamado.
"Eram quase dez e trinta da manhã. Nossa conversa foi brevíssima:
depois de um rápido bom-dia, pediu-me para casar com ele. O chefe do
Departamento de Coordenação conhece meus sentimentos com relação a
Cayle, por isso o Sr. Hedrock não ficará surpreso ao saber que eu
imediatamente aceitei a proposta. Assinamos os papéis e os registramos
alguns minutos antes do meio-dia daquele mesmo dia.
"Em seguida, fomos para minha casa; só saímos na manhã seguinte.
Todavia, ausentei-me às treze e quarenta e cinco a pedido de Cayle, que
queria utilizar meu telestate. Embora nada me tenha dito a respeito, notei ao
voltar que não tinha sido ele quem chamara: o telestatômetro indicava uma
chamada de origem externa.
"Não lamento tê-lo obedecido: estava no meu estado normal. Ele nada
me disse sobre esse chamado mas contou-me detalhadamente tudo o que lhe
aconteceu desde nosso último encontro na Casa de Ilusões. Sua exposição,
reconheço-o, era bastante confusa e mais de uma vez tive a impressão de que
ele lembrava acontecimentos muito antigos.
"Na manhã seguinte, ele acordou cedo. Tinha muito o que fazer, disse-
me, e como eu tinha pressa de falar com o Sr. Hedrock, não fiz nenhuma
objeção. A declaração do nosso agente, que afirma tê-lo visto entrar num
luxuoso autoplano estacionado nas proximidades, espantou-me.
Sinceramente, não compreendo.
"Depois disso, Cayle não voltou mais para minha casa. Comunica-se
comigo todas as manhãs. Não pode ainda falar-me de suas atividades, diz-me,
mas garante que me ama da mesma maneira. E creio nele até prova em
contrário. Não tenho o menor conhecimento de que ele seria, há um mês,
capitão do exército de Sua Majestade.
Ignoro como possa ter obtido esse posto. Se é verdade, como afirmam,
que ele já está adido ao estado maior da Imperatriz, nada mais posso fazer
além de exprimir minha surpresa.
"Concluindo, declaro que tenho confiança em Cayle. É-me impossível
explicar seus atos, mas creio que seus resultados estarão de acordo com o seu
senso de honra.
(a) LUCY RALL CLARK
14 de novembro de 4.784"
CAPÍTULO VIGÉSIMO QUINTO
Chegara a hora decisiva. Hedrock havia contemporizado durante um
mês, esperando fatos novos. Depois de ter lido o relatório de Lucy, tinha
finalmente certeza de uma coisa. Como previa, a situação tomara um aspecto
inesperado. Mas ele não conseguia pegar o significado dos acontecimentos. A
angústia o torturava; temia que elementos de importância vital lhe
escapassem. Mas não tinha mais dúvida.
Releu o documento. Lucy parecia ter adotado uma atitude reservada em
relação às Casas de Armas. Ela não havia, é verdade, agido contra os
interesses delas, mas sentia-se, nas entrelinhas, que ela temia que sua atitude
fosse mal interpretada e colocava-se na defensiva. O que, em si, era nefasto.
A ascendência que a liga exercia sobre seus membros era de natureza
psicológica. Em geral, quando um deles queria sair, apagavam-se certas
lembranças de sua memória, dava-se-lhe um prêmio calculado sobre seu
tempo de serviço e a porta lhe era escancarada. Mas Lucy desempenhara um
papel determinante no decorrer de uma crise capital. Era preciso evitar que o
conflito entre seu dever e sua vida particular se tornasse muito grave.
Hedrock discou o número da moça.
- Acabo de ler seu relatório, Lucy, e quero agradecer sua colaboração.
Temos absoluta consciência da situação em que está metida. Encarregaram-
me (era muito deliberadamente que ele empregava aquela fórmula, deixando
supor que uma Comissão Diretora lhe havia ditado aquelas palavras),
encarregaram-me de pedir-lhe que continue em ação, dia e noite, até o fim
deste período. Em troca, a liga fará tudo o que estiver a seu alcance para
proteger seu marido das conseqências que puderem advir de sua atuação
presente.
Não era uma promessa vã. Ele já havia alertado a brigada de proteção e,
na medida em que um homem, gravitando na órbita da corte, era suscetível de
ser protegido, a missão seria cumprida. Examinou discretamente a fisionomia
de Lucy.
Não obstante ser uma moça inteligente, jamais ela compreenderia
totalmente a guerra entre as Casas de Armas e o poder. Era uma guerra
secreta. Os canhões não haviam dado um só tiro. Ninguém fora morto.
Supondo que as lojas de armas fossem destruídas, Lucy não perceberia
imediatamente. Sua vida poderia não ser afetada e o próprio Hedrock, o
imortal, era incapaz de prever o curso que a história tomaria, uma vez
eliminada uma das forças constitutivas da cultura isheriana.
Suas garantias não tinham, visivelmente, satisfeito a moça.
- Senhora Clark, no dia do seu casamento, a senhora tomou as medidas
calistênicas do seu marido e no-las transmitiu. Nunca lhe demos o resultado
integral para não perturbá-la. Todavia, creio que ele é mais de natureza a
interessá-la que a alarmá-la.
- São particulares?
- Particulares? As faculdades calistênicas de Cayle Clark eram naquele
momento superiores a tudo o que o Centro de Informações registrara desde
sua criação.
Ignoramos que forma tomará o seu poder, mas de uma coisa ninguém
pode duvidar: o universo inteiro de Isher vai ser afetado.
Lia-se a confusão nos olhos de Lucy. O que era terrível é que Cayle não
fazia nada. Uma nuvem de espiões vigiava seus menores movimentos -
enfim, quase todos. Por duas vezes ele havia ludibriado a vigilância dos seus
anjos da guarda. Mas isso era coisa sem importância. O grande
acontecimento, fosse ele qual fosse, estava a caminho. E ninguém, mesmo
entre os homens da liga, era capaz de prever como evoluiria.
- Garante não ter esquecido nada, Lucy? Creia-me, é uma questão de
vida ou de morte. E é sobretudo pensando nele que digo isto.
Ela disse não com a cabeça. Nada havia mudado em seu olhar, a não ser
seus olhos, que haviam aumentado. A boca não tremera. Era bom sinal.
Claro, as reações físicas são enganadoras. Mas Lucy Ral não aprendera as
técnicas de dissimulação.
Robert Hedrock podia mentir sem que qualquer reação nervosa o traísse.
- Lucy ignorava como se controlam os músculos para reprimir os sinais
inconscientes que eles exteriorizam.
- Sr. Hedrock, o senhor sabe que pode contar inteiramente comigo.
Era uma vitória. Não obstante, Hedrock estava descontente. Descontente
com ele mesmo. Alguma coisa lhe escapava, seu espírito não tinha a sutileza
necessária para penetrar fundo na realidade. Como no problema do pêndulo,
um dado que devia ser ostensivo desafiava sua perspicácia. Não era mais a
hora de remoer os fatos e os números na solidão da sua sala. Era a hora de
lutar com o real. No campo de batalha.
CAPÍTULO VIGÉSIMO SEXTO
Hedrock subia a avenida da sorte, calmamente, saboreando a novidade
do espetáculo. Não se lembrava mais de quando passeara pela última vez na
famosa artéria. Há muito tempo, sem dúvida. Muitíssimo tempo. A
proliferação dos salões de jogo, principalmente, o espantava. Quanto à
estrutura dos edifícios, obrigada a se sujeitar a normas arquitetônicas muito
estritas, pouco variara em um século e o plano de urbanismo da Cidade
Imperial em nada evoluíra no seu conjunto. Só a decoração se havia
modernizado. Para onde quer que olhasse, o coordenador só via fachadas
brilhantes, concebidas para chamar a atenção.
Quando entrou no Palácio dos Tostões, não tinha ainda um programa de
ação definido. Subitamente, quando ia entrar na Câmara do Tesouro, sentiu o
picar de seu anel avisador: um aparelho de transparência ia sondá-lo.
Continuou tranquilamente seu caminho e só se voltou depois de alguns
metros para observar os dois homens pelos quais passara. Eram empregados
do estabelecimento ou... independentes?
Hedrock tinha uns cinqenta mil créditos. Sorriu ligeiramente.
- Olhem, rapazes, acho melhor vocês desistirem do que estão
planejando.
Um dos personagens sacudiu os ombros e mergulhou a mão no bolso.
- O senhor não tem uma superarma. Nem mesmo uma clássica.
Hedrock olhou-o no fundo dos olhos.
- Se quiser experimentar, estou às ordens. Foi o outro quem desviou o
olhar.
- Vamos cair fora, Jay. Não é o trabalho que eu imaginava.
Mas Hedrock parou-os antes que se fossem.
- Trabalham aqui?
- Não... se o senhor for contra.
A sinceridade da resposta arrancou um sorriso do coordenador.
- Quero ver o patrão de vocês.
- Era o que eu imaginava. Enfim, foi um trabalho bacana enquanto
durou.
Desta vez, Hedrock deixou os bandidos irem embora. A reação deles
não o surpreendia. A autoconfiança era o segredo do poder. Nunca um ser
humano dispusera de defesas mentais, físicas, emocionais, nervosas e
moleculares como as que possuía Hedrock e fora suficiente a Jay mergulhar
seu olhar no dele, seguro e tranqilo, para se convencer disso.
Sem hesitar, o homem da liga, que tinha na memória a descrição dos
interiores feita por Lucy, dirigiu-se para o corredor que começava por trás da
sala das máquinas de apostar. Mas no momento em que fechava a porta, uma
rede caiu sobre ele, que sentiu-se bruscamente elevado nos ares.
Nada fez para se libertar. Na penumbra, via o assoalho a cinco pés
abaixo dele, mas a indignidade de sua posição não o afetava em absoluto.
Harj Martin tornara-se prudente e desconfiava das visitas inesperadas!
Indicação interessante! Logo, ouviram-se passos. Uma porta abriu-se e
Martin apareceu. Acendeu a luz e, com ar gozador contemplou seu
prisioneiro.
- Então, quem é a presa do dia?
Mas quando enfrentou o olhar do cativo, sua alegria desapareceu.
- Quem é o senhor? Hedrock ignorou a pergunta.
- Na noite do dia 5 de outubro o senhor recebeu a visita de um rapaz
chamado Cayle Clark. Que aconteceu?
- Quem faz as perguntas sou eu! Repito! Quem é o senhor?
Com um gesto, Hedrock fez girar um dos anéis que ornavam seus dedos:
a rede fendeu-se, abriu-se sob ele com a facilidade de uma janela e o
coordenador voltou a estar no chão.
- Trate de responder logo, meu caro, estou com pressa.
Ignorando a pistola que Martin empunhava, ele soube encontrar as
palavras apropriadas, que levaram o proprietário do antro de jogo a capitular.
- Se são só informações o que quer, está bem. É verdade. Esse Clark
veio cá no dia 5 de outubro pela meia-noite. Estava com o gêmeo dele.
Hedrock não deu atenção ao fim da frase. Não estava lá para discutir.
- Era uma dupla gozada, sabe? Um dos dois devia ter sido do exército:
ele se empertigava... enfim, o senhor conhece a postura hipnótica que
ensinam a eles. O
cabeça era ele. Um cara duro, garanto-lhe! Eu quis protestar mas ele
bateu-me com o explosor nas patas. Quando abri o cofre pra dar-lhe a gaita,
fiz um gesto inesperado e o resultado é que ele me escalpou pela metade.
Com o dedo, Martin mostrou a linha clara no meio dos cabelos. Um
atirador de primeira, sem dúvida. E o tiro fora dado por uma arma clássica,
uma arma do exército.
- Ah! - gemeu Martin - a vida torna-se muito difícil. Se eu imaginasse
que as defesas normais pudessem ser tão facilmente neutralizadas!
Hedrock já sabia o bastante. Deixou o barrigudo e saiu do
estabelecimento. A existência de dois Cayle estava agora demonstrada. E no
dia 5 de outubro, na manhã seguinte da volta do que estivera em Marte, o
outro havia estado há bastante tempo no exército para ter recebido mais que
uma formação preliminar. Ora, os relatórios assinalavam que Clark só pusera
o uniforme no dia 6 e que possuía quinhentos mil créditos.
Uma quantia bastante interessante para uma rapaz que começa. Mas isso
não bastava para explicar os acontecimentos. Levando em conta o capital
calistênico de Clark, quinhentos mil créditos só representam um poder
irrisório.
Hedrock interrompeu suas reflexões sem ter chegado a resolver esse
problema.
Seu autoplano chegou. Tinha que ver ainda alguém: o Coronel Medlon.
CAPÍTULO VIGÉSIMO SÉTIMO
Robert Hedrock voltou para o Hotel Royal pouco depois do meio-dia.
Após ter examinado os relatórios que se tinham acumulado sobre a mesa, na
sua ausência, teve, durante duas horas, uma conversa telestática secreta com
um especialista em finanças do Centro de Informações da liga. Terminada a
longa conversa, entrou em contato com o Conselho dos Armeiros.
Dez minutos mais, tarde, Dresley abria a reunião plenária do Conselho,
solicitada com urgência pelo coordenador:
- Tenho a impressão, senhores, de que Robert Hedrock levantou uma
pista muito recente. Não estou enganado, não é?
Hedrock sorriu. Quando da precedente reunião, dois problemas o
afligiam: o do pêndulo temporal e o da Imperatriz. O primeiro ainda não
estava resolvido e cada hora que passava a situação se agravava. Mas desta
vez tinha uma solução.
- Senhores - começou, sem preliminares inúteis - em 27 de novembro,
quer dizer, daqui a 12 dias, mandaremos um ultimato à Imperatriz de Isher,
para intimá-la a acabar com a guerra. Os fatos e os números que lhe
apresentaremos vão convencê-
la de que não tem outra escolha.
Essas palavras provocaram a emoção com que ele contava. Os
conselheiros sabiam que o coordenador não era homem de fazer brilharem
falsas esperanças.
- Não nos mate de ansiedade! - exclamou Peter Cadron,
impetuosamente. - Que foi que descobriu?
- Vou recapitular os acontecimentos, se me permitem. Na manhã de 3 de
junho de 4.784, era de Isher, um homem vindo de 1973, segundo o calendário
cristão, surgiu na nossa loja de Greenway. Sua chegada nos permitiu saber
que a Imperatriz estava de posse de uma arma energética desconhecida e
acabava de lançar uma ofensiva contra as Casas de Armas. A geradora fora
instalada num edifício recentemente terminado na Avenida Capital. O efeito
sobre a loja de Greenway foi particular.
Teoricamente, todo o elemento material da loja deveria ter sido
instantaneamente destruído. Apenas nossos adversários ignoravam uma
coisa: as Casas de Armas não são edificadas a partir do que se chama
comumente matéria. Por isso as forças gigantescas que haviam sido
libertadas, localizaram-se não no espaço mas no tempo. Foi assim que um
homem pôde ser literalmente aspirado e atravessou um abismo de sete mil
anos.
Depois de ter exposto em expressões puramente matemáticas as leis do
movimento pendular ao qual o homem e a geradora estavam sujeitos desde
que os Armeiros haviam projetado McAl ister fora do presente, Hedrock
continuou nestes termos:
- Há ainda pessoas que não conseguem entender essa pulsação temporal.
No entanto, temos um exemplo desse fenômeno em escala macrocósmica:
estou me referindo ao sistema solar. Os planetas se deslocam no espaço-
tempo a mais de vinte quilômetros por segundo; ao mesmo tempo, cada um
tem movimento orbital próprio. Por isso, a lógica nos diz que se somos
atirados no passado ou no futuro, nos encontraremos num ponto do espaço
afastado da Terra. É difícil de conceber que o espaço não passa de ficção, um
resíduo da energia temporal fundamental e que uma tensão material, um
planeta por exemplo, em vez de influir nos fenômenos ligados ao escoar do
tempo, obedece às leis da energia temporal. Por que o período de pulsação é
de duas horas e quarenta minutos? Não sabemos. Alguns emitiram a hipótese
de que a natureza procura obrigatoriamente a instauração de um estado de
equilíbrio. Quando a geradora desliza no passado, ocupa o mesmo "espaço"
que no seu tempo normal, mas não há repercussões pelo fato de a
similaridade ser uma função do tempo e não o produto de uma tensão. Na
origem, McAl ister era deslocado sete mil anos e a geradora, dois segundos.
Hoje McAl ister acha-se a vários quatrilhões de anos e o edifício a pouco
menos de três meses. Com o eixo se deslocando positivamente em relação a
nós, a geradora não pode retrogradar além de 3 de junho. Peço-lhes que
conservem esses dados presentes no espírito enquanto expuser-lhes um outro
aspecto deste assunto que, a despeito de sua complexidade aparente, é
fundamentalmente simples.
Os homens ali reunidos eram pessoas de espírito atilado. No entanto,
tudo em suas fisionomias, voltadas para Hedrock, refletia o desejo impaciente
de conhecer a palavra-chave do enigma. E agora, que conhecia a verdade, o
coordenador espantava-se de que eles ainda não a tivessem percebido.
- O Departamento de Coordenação detectou, há alguns meses, numa
aldeia chamada Glay, um prodígio calistênico. Demos um jeito para que
viesse à Cidade Imperial. Não houve maiores dificuldades, uma vez
desencadeados nele certos impulsos profundos. Achávamos que ele poderia
influenciar os acontecimentos de maneira apreciável, mas esquecemos de
levar em conta um fator neutralizante: sua ignorância das realidades do
mundo de Isher. Não entrarei em detalhes. Basta que saibam que ele foi
deportado para Marte, condenado a trabalhos forçados. Mas ele pôde voltar
para a Terra muito rapidamente.
Continuando sua exposição, Hedrock informou aos conselheiros que
Lucy Ral havia casado com Cayle Clark poucas horas antes que este
aterrissasse; explicou-lhes como os dois Clark tinham abocanhado a quantia
de quinhentos mil créditos, como um deles visitara o Coronel Medlon, o que
fora uma vantagem para este, uma vez que a Imperatriz lhe exigira
exatamente a presença do rapaz por quem se interessara, sob pena de morte.
Clark obteve na hora os galões de capitão e foi imediatamente submetido ao
treino hipnótico reservado aos oficiais. Na manhã seguinte, ele foi
apresentado à Imperatriz.
- Ela o colocou no seu estado-maior pessoal pensando ter obedecido a
um simples impulso: na realidade, Clark usou sua capacidade calistênica para
criar aquele impulso. Depois de ter sido nomeado, sua influência não cessou
de crescer; ele se atribuiu o encargo de lutar sem cessar contra a corrupção
que envergonha o regime, iniciativa que Innelda recebeu de maneira
favorável. Mesmo se Clark não tivesse outros trunfos, estava desde o começo
destinado a um brilhante futuro no serviço da Imperatriz. Na verdade -
acrescentou Hedrock, sorrindo - na verdade, não é esse Cayle Clark que
devemos vigiar, mas o outro, o que se esconde na cidade, pois é o segundo
Clark que age na sombra desde 7 de agosto. E creiam, senhores conselheiros,
o que ele fez é verdadeiramente incrível. Os senhores julgarão.
Depois que Hedrock descreveu minuciosamente a atividade do
misterioso Clark, os conselheiros não se continham mais, de tal forma
estavam excitados.
- Mas por que ele casou com Lucy Ral ? - perguntou um deles.
- Em parte porque a amava, em parte... Hesitou, pensando em certa
pergunta franca que fizera a Lucy.
- Ele tornou-se extremamente prudente e começou a pensar no futuro.
Suas tendências profundas vieram à tona. Suponha que aconteça alguma
coisa ao homem que realizou essa façanha milagrosa no espaço de algumas
semanas? Ele queria um herdeiro. E Lucy era a única moça direita que ele
conhecia. Sua união era definitiva?
Não posso saber. A despeito de ser um revoltado contra a própria
família, Clark é um rapaz de princípios e, seja como for, não creio que Lucy
vá sofrer com isso. Ela terá um filho e a maternidade é uma experiência
indispensável para uma mulher. Além disso, como esposa, é sua herdeira
universal.
Peter Cadron levantou-se.
- Senhores, proponho que votemos uma moção de agradecimentos a
Robert Hedrock pelos serviços prestados à liga. Proponho, ainda -
acrescentou, quando os aplausos diminuíram - que ele tenha os mesmos
direitos que nós na organização.
Ninguém opôs-se. Era mais que uma honra o que estavam dando ao
coordenador.
A partir desse instante, só a máquina Pp seria autorizada a examiná-lo.
Não teria jamais que dar conta dos seus atos e gestos, teria o direito de
utilizar todos os recursos das Casas de Armas como bens pessoais. É verdade
que ele sempre os utilizara, mas agora não precisava temer que suspeitassem.
- Agora - continuou Cadron - peço respeitosamente ao Sr. Hedrock que
tenha a bondade de se retirar. O Conselho vai discutir o problema do pêndulo
temporal.
Hedrock saiu da sala. Estava carrancudo: esquecera momentaneamente
que o perigo maior não tinha sido conjurado.
CAPÍTULO VIGÉSIMO OITAVO
Era o dia 26 de novembro. Véspera do dia escolhido pelos Fabricantes
de Armas para advertir a Imperatriz de que ela havia perdido a guerra. Mas
Innelda não tivera qualquer premonição. Preparava-se para ir ao terreno de
pesquisas... talvez para agir no sentido que lhe fora sugerido pelo Capitão
Clark. Apesar disso, hesitava em tomar aquela decisão. Não por medo, mas
simplesmente porque suas responsabilidades lhe exigiam não se lançar
estupidamente em aventuras insensatas.
Saiu rapidamente do autoplano. À sua frente, elevava-se uma cortina de
neblina agitada por remoinhos preguiçosos: o nevoeiro artificial que, há
vários meses, isolava o bairro da curiosidade dos basbaques. Ela andou
lentamente para a tela impalpável, atenta à paisagem. Clark foi ao seu
encontro e cumprimentou-a.
- Quando o edifício deve aparecer?
- Daqui a sete minutos, Majestade.
- Está tudo pronto?
Fora decidido que sete grupos de cientistas penetrassem no imóvel e
Clark havia pessoalmente verificado a forma pela qual fora equipado cada
grupo. Innelda sorriu:
- O senhor é um homem precioso, capitão.
Clark não respondeu. O cumprimento deixou-o insensível. Aquela moça,
que era quase literalmente a dona do universo, acharia mesmo que alguns
elogios e um salário comprariam a fidelidade incondicional das pessoas
inteligentes? Nenhum remorso antecipado o estorvava. Aliás, o que ele estava
projetando não prejudicaria Innelda. Era regra em Isher fazer o que fosse
necessário. E, para Clark, não se tratava de recuar. O mecanismo que montara
já estava em funcionamento.
A Imperatriz examinou atentamente os arredores. À sua direita, havia a
escavação que determinava o local do edifício. À sua esquerda, a Casa de
Armas de Greenway, no meio de seu cinturão de verdura. Era a primeira loja
que ela via apagada. O
espetáculo reconfortou-a. A loja parecia estranhamente abandonada, à
sombra das árvores. Cerrou os punhos. "Se todas as Casas de Armas do
sistema solar fossem subitamente eliminadas, poderíamos fazer o que
quiséssemos com esses inúmeros parques. E no espaço de uma geração, os
Fabricantes de Armas seriam esquecidos.
Seu reinado não passaria de uma fábula para contar às crianças. "
- Por todos os deuses do espaço - disse, alto, com um fervor apaixonado
- é isso o que vai acontecer!
O ar subitamente fremiu e, no lugar onde só havia uma profunda
cavidade, surgiu de repente um edifício
- No minuto exato - murmurou Clark com satisfação.
Innelda estremeceu. Ela já vira o fenômeno no telestate mas, na
realidade, não era a mesma coisa. Para começar, a dimensão do edifício era
verdadeiramente imponente: quatrocentos metros de altura e outro tanto de
largura. Era uma imensa massa de plástico e aço. Era indispensável que fosse
vasto: as diversas células de energia estavam rodeadas de imensas câmaras de
vácuo. Era precisa quase uma hora para visitar todos os níveis.
- Parece que as experiências não estragaram nada - notou Innelda, com
satisfação. - E os ratos?
Havia posto ratos no edifício, quando de uma materialização precedente.
Eles em nada pareciam afetados com a "viagem", mas era sensato confirmar
o fato por método científicos. A Imperatriz esperou o resultado do
laboratório, não sem olhar freqentemente o relógio.
Constatou com aborrecimento que estava nervosa. No silêncio total que
a envolvia, compreendeu claramente até que ponto era absurdo esse projeto
de partir com os cientistas. Os homens que haviam aceitado acompanhá-la,
no caso de ela se decidir a dar o passo, estavam fechados num mutismo
anormal. De costas para a soberana, olhavam sombriamente a parede
transparente do local.
Finalmente, Clark reapareceu, com um rato na mão. Sorria.
- Olhe, senhora. Salta como um peixinho! Quanta alegria nos olhos do
oficial!
Innelda olhou o animal com ar pensativo e, com um gesto incontrolável,
agarrou-o e comprimiu o pequeno corpo contra a face.
- Que seria de nós sem vocês, maravilhosos ratinhos? - murmurou.
Depois, encarou Clark.
- A ciência confirmou?
- Fisiológica, emocional e psicologicamente, cada um deles esta cem por
cento normal. Todos os testes são positivos.
Ela sacudiu a cabeça. O resultado só fazia confirmar uma quase certeza.
Quando, no dia da ofensiva, o edifício desaparecera, reinara a maior confusão
entre o pessoal que estava no interior. Todos os técnicos foram
imediatamente isolados. Os exames a que foram submetidos revelaram que
estavam todos em perfeitas condições.
Innelda teve uma última hesitação. Recusar participar agora da
"viagem", daria má impressão. Mas outros fatores entravam em consideração.
Se lhe acontecesse alguma coisa, talvez significasse o desabamento do
regime. Ela não tinha herdeiro direto. Sua sucessão iria para o Príncipe Del
Curtin, que era popular mas que todos sabiam estar em desgraça. A situação
era ridícula. Innelda tinha a impressão de estar num impasse.
- Capitão, o senhor se apresentou como voluntário para fazer a... a
viagem, quer eu o acompanhe ou não. Decidi não acompanhá-lo. Saiba que
lamento não poder segui-lo. Mas razões de estado me impedem de tentar a
aventura. Desejo-lhe sucesso.
Uma hora mais tarde, o edifício dissolvia-se no nada. No autoplano, a
Imperatriz tomou a refeição que lhe trouxeram e leu numerosos estatogramas.
Fez-se noite pouco a pouco. Breve o edifício iria retornar.
Materializou-se na hora marcada. Os cientistas saíram. Um deles
apresentou-se a Innelda:
- A viagem desenrolou-se de acordo com as previsões, Majestade -
anunciou -
entretanto, houve um fato lamentável. O Capitão Clark devia fazer uma
exploração externa. Recebemos dele uma mensagem estatográfica, na qual
informava que estávamos no dia 7 de agosto. Depois, não deu mais sinal de
vida. Não voltou ao edifício. Com certeza aconteceu-lhe alguma coisa.
- Mas... Mas isso quer dizer que de 7 de agosto a 26 de novembro houve
dois Cayle Clark... o verdadeiro e o que retrogradou no tempo?
Indecisa, calou-se por uns segundos. "O velho paradoxo temporal",
pensou. "Um homem pode voltar ao passado e trocar um aperto de mão com
ele mesmo?"
- Que aconteceu ao segundo Clark? - perguntou em voz alta.
CAPÍTULO VIGÉSIMO NONO
Sete de agosto.
O céu estava de um azul-suave, banhado de sol. Uma ligeira brisa
passava pelo rosto de Cayle, que se afastava a passos largos do edifício que o
havia conduzido ao seu próprio passado. Ninguém o incomodou. A insígnia
vermelha indicando que ele pertencia à casa da Imperatriz, brilhava em seu
uniforme. As sentinelas apresentavam armas à sua passagem.
Tomou um autoplano público que ia para o centro. Tinha mais de dois
meses e meio para viver, antes de se achar no seu ponto de partida mas,
considerando seus projetos, não era muito.
A despeito da hora já tardia, conseguiu alugar um escritório de quatro
salas e contatou uma agência a fim de que lhe fornecessem, para as nove
horas do dia seguinte, um grupo completo de estenógrafos e contabilistas.
Passou a noite num leito de campanha que instalou no escritório, refletindo e
dando um último retoque nos seus planos. Na manhã seguinte, cedinho, foi ao
escritório de um corretor muito conhecido na cidade, levando no bolso
grande parte dos quinhentos mil créditos que o "segundo" Cayle Clark lhe
enviara.
No fim do dia, seu capital era de 3.700.000 créditos. Seu pessoal estava
estourado e teve que contratar uma pessoa com a missão de completar os
efetivos da contabilidade e do secretariado.
Esgotado mas alegre, roído de impaciência, Cayle passou a noite a
organizar as atividades do dia seguinte, preparando suas ordens de compra e
de venda, baseando-se nos jornais da bolsa de dois meses e meio no futuro,
de que se munira antes de mergulhar no passado.
No decorrer do mês de agosto, ganhou noventa bilhões de créditos,
obteve o controle de uma cadeia de estabelecimentos bancários, de quatro
complexos industriais representando um capital fixo de quatro bilhões de
créditos e tornou-se acionista majoritário de trinta e quatro outras sociedades.
Em setembro, sua conta atingia 330 bilhões de créditos; absorveu o
colossal primeiro banco imperial, três estabelecimentos mineiros
interplanetários e participou de duzentos e noventa companhias. No fim desse
mês, era proprietário de uma loja de cem andares em pleno bairro comercial
onde mais de sete mil pessoas trabalhavam para ele.
Em outubro, empregou todas as suas disponibilidades na compra de
hotéis e edifícios residenciais. Seus investimentos representavam mais de três
trilhões de créditos. Casou com Lucy Ral e encontrou-se com ele mesmo. Os
dois Clark obrigaram Harj Martin a devolver-lhes as importâncias que o
Cayle número um havia perdido no Palácio dos Tostões. Essa importância,
agora, não passava de uma ninharia para o filho de Fara, mas sua recuperação
era uma questão de princípios.
Todos os que tentaram atrapalhar a vida do homem que estava a se
tornar o dono de Isher, deviam pagar. Resolvido o caso Martin, só faltava a
Clark visitar Medlon, receber seus galões de capitão... e preparar sua viagem
para o passado.
Foi esta a exposição que Robert Hedrock fizera aos membros do
Conselho Supremo da liga. Tal fora o formidável acontecimento que obrigava
a Imperatriz a pôr fim às hostilidades, pelo temor de que Clark tivesse
imitadores. Se isso acontecesse, significaria o desabamento da estrutura
econômica do sistema solar inteiro.
CAPÍTULO TRIGÉSIMO
Tudo era silêncio na adormecida aldeia de Glay. Silêncio, calma e paz.
No entanto, pensava Fara, esta aldeia é feia. Feia a não poder mais.
Estar armado é ser livre... Sua garganta contraiu-se e vieram-lhe
lágrimas aos olhos. Enxugou-as com as costas da mão. Não tinha vergonha
de chorar. Quando se está com raiva, as lágrimas fazem bem.
O pesado cadeado não resistiu ao fino feixe de energia que jorrou,
cegante, da sua pistola. Num relâmpago, o metal evaporou-se e Fara
empurrou a porta da oficina. Seu primeiro gesto foi o de ligar o comando de
invisibilidade das janelas. Só depois de tê-lo fixado nas "vibrações negras",
acendeu a luz. Com a garganta contraída pela emoção, examinou o precioso
material que o meirinho havia apreendido. Tudo estava ali, em ordem, pronto
a funcionar.
Então, com passos vacilantes, foi até o telestate e ligou para Creel.
Passou bastante tempo antes que a imagem de sua mulher aparecesse na tela.
Creel acabara de amarrar o peignoir. Ao vê-lo, empalideceu.
- Fara... Oh! Fara! Pensei... Ele a interrompeu.
- Estive nos Fabricantes de Armas, Creel. Ouve. Vai ver tua mãe
imediatamente.
Estou na oficina e não sairei daqui. Mais tarde darei um pulo em casa
para comer alguma coisa e mudar de roupa. Não quero que estejas lá nessa
hora. Entendeste?
Creel voltara a si.
- Não precisas te incomodar, Fara. Eu me encarregarei. Vou pôr tudo
que precisares, até mesmo um leito de campanha, num autoplano. Nós nos
instalaremos na oficina, na sala dos fundos.
Pelas dez da manhã, uma sombra projetou-se na soleira da porta
escancarada e Jor, o guarda campestre, entrou na oficina. Não se sentia à
vontade.
- Fara, foi expedido um mandado de prisão contra você.
- Diga aos que o enviaram que estou disposto a resistir. Tenho o que
preciso para isso.
A arma surgiu com tal rapidez entre seus dedos que Jor estremeceu.
Contemplou o objeto brilhante, o engenho mágico apontado para ele.
- Olhe... Devo entregar-lhe uma citação para comparecer ao Tribunal de
Ferd esta tarde. Você a recebe?
- Claro.
- Você virá?
- Meu advogado irá. Ponha a citação no chão e diga-lhes que a recebi.
O homem da Casa de Armas lhe dissera: "Não zombe da autoridade
imperial se uma ação legal for intentada contra o senhor. Contente-se em
desobedecer. "
Jor tinha um ar satisfeito quando foi embora.
Uma hora mais tarde, o prefeito também se manifestou, sempre afetado.
- Preste atenção, Fara Clark! - gritou com voz tonitruante. - Está errado
se pensa que pode sair facilmente, enganando a lei impunemente.
Fara ficou calado e o prefeito entrou. Curioso que aquele homem, que
cuidava tão delicadamente de sua rotunda pessoa, ousasse se arriscar daquela
maneira!
- Bem representado, Fara - disse ele, baixando o tom. - Somos dezenas a
apoiá-lo.
Saiba disso. Agora, não desista. Desculpe a comédia que fui forçado a
representar: lá fora há uma verdadeira multidão. Você me prestaria um bom
serviço se me xingasse em voz alta e clara. Mas antes devo avisá-lo de que o
diretor do truste de Manutenção está a caminho para visitá-lo. Está
acompanhado por dois guarda-costas.
Aproximava-se o instante crítico. Fara contraiu o maxilar. "Ora, que
venha", pensou, esforçando-se por dominar seu tremor, "que venham... "
Tudo aconteceu mais facilmente do que ele esperava: quando os intrusos
perceberam sua arma, empalideceram. Depois de uma rajada de invectivas
homéricas, baixaram o tom.
- Temos um reconhecimento de dívida de doze mil e cem créditos.
Afinal, o senhor não vai desmentir sua palavra.
- Pago-lhes mil créditos e nem mais um níquel - respondeu Fara sem se
impressionar. - Foi essa a quantia que realmente emprestaram a meu filho.
O homem de focinho grosso encarou-o durante bastante tempo.
- De acordo - terminou por dizer.
- Queiram assinar um recibo de quitação total.
O primeiro cliente foi Lan Harris e, à vista do ancião, Fara compreendeu
num instante porque os Armeiros tinham escolhido o terreno do velho para
instalar a loja.
A seguir, chegou a sogra.
- Então, conseguiu, não? - exclamou, depois de ter fechado a porta. -
Bom trabalho! Lamento ter sido tão dura com você no outro dia. Mas os
partidários dos Fabricantes de Armas não têm o direito de correr riscos.
Enfim, não falemos do passado! Vim aqui para levar Creel para casa. O
importante agora é que tudo volte ao normal o mais rápido possível.
Estava acabado. Incrível, mas verdade. Quando, de noite, Fara voltou
para casa, ia pensando se tudo aquilo não passara de um sonho. O ar estava
capitoso como vinho. Glay voltara a ser um paraíso circundado de verdura,
um ancoradouro de paz, um asilo fora do tempo.
CAPÍTULO TRIGÉSIMO PRIMEIRO
- De Senhor De Lany?
Hedrock inclinou-se. Havia modificado ligeiramente sua aparência e
ressuscitado uma de suas antigas identidades a fim de não ser, mais tarde,
reconhecido pela soberana.
- O senhor solicitou audiência?
- Como vê, Majestade.
Ela brincava com o cartão de visita. A brancura de seu vestido
imaculado acentuava o moreno de sua pele. A sala lembrava um atol dos
mares do Sul. Por todos os lados, palmeiras e bosquezinhos verdejantes,
cercados por uma praia lambida por um mar tão verdadeiro quanto os
naturais, um mar eternamente ondulado por uma brisa suave.
Ela olhou seu visitante com atenção. Um homem de fisionomia grave,
com ar autoritário. Mas eram os olhos do desconhecido que a cativavam. Lia-
se neles a força, a bondade, a bravura - uma bravura sem limites. Ela não
esperara que aquele misterioso Sr. De Lany tivesse tal personalidade. Teve a
sensação de que aquela entrevista tinha uma enorme importância. Tornou a
olhar o cartão.
- Walter de Lany - repetiu, pensativa. Parecia se embalar com a
sonoridade daquele nome. Como se ele tivesse um sentido oculto.
Finalmente, ergue a cabeça.
- Como chegou até aqui?
Hedrock não respondeu. Como muitos imperiais, o mordomo não fizera
treinamento psicodefensivo. E a Imperatriz, embora tivesse feito, ignorava
que a liga dispunha de métodos seguros para arrancar um consentimento
imediato dos que não tinham o espírito protegido.
- É muito estranho.
- Descanse, senhora. Vim aqui apenas para solicitar-lhe que tenha a
bondade de pôr fim aos sofrimentos de um infeliz.
Innelda levantou as sobrancelhas. A muito custo enfrentava o olhar
intenso do interlocutor.
- A senhora pode, Majestade, realizar um ato de caridade sem igual em
benefício de um homem perdido há cinco milhões de anos daqui, um homem
que oscila entre o passado e o futuro, e que as forças libertadas pela sua
geradora fazem derivar sempre mais longe no tempo.
Fora preciso que Robert Hedrock pronunciasse essas palavras. Mas só os
íntimos da soberana e seus inimigos conheciam certos detalhes relativos ao
edifício evanescente da Avenida Capital. Como previra, Innelda,
instantaneamente, apreendeu todas as implicações de suas palavras. Viu-a
empalidecer.
- O senhor é um agente dos Armeiros, não é? Levantou-se.
- Saia daqui! Saia imediatamente.
- Mantenha o sangue-frio, senhora. A senhora não corre o menor perigo.
Ele bem sabia que esta advertência agiria como uma chicotada. Depois
de alguns segundos de imobilidade, a Imperatriz, com um movimento rápido,
sacou o pequeno explosor branco escondido no corpete.
- Se não sair imediatamente, atiro.
- Um explosor comum contra um homem portador de uma superarma 7.
Ora, minha senhora!... Se quiser me ouvir um momento...
- Não quero ter nenhum contato com os Fabricantes de Armas.
O coordenador começou a achar a situação exasperante; todavia, foi com
voz calma que continuou:
- Fico espantado com uma declaração tão pouco realista, Majestade. Não
só a senhora está em contato com as Casas de Armas há dias, mas também
inclinou-se diante da liga. A senhora deveria ter posto fim à guerra e
destruído sua máquina de energia temporal. A senhora aceitou abandonar as
perseguições contra os oficiais desertores e se contentar com a demissão dos
insubmissos. E concedeu, finalmente, imunidade a Cayle Clark.
Esses argumentos deixaram Innelda insensível.
- O senhor deve ter uma razão imperiosa para me falar nesse tom - disse
ela, com o rosto petrificado. Pareceu galvanizada pelas próprias palavras.
Caminhou para a poltrona, conservando a pistola na mão crispada.
- Basta que eu aperte este botão, para chamar a guarda.
Hedrock suspirou. Pior! Ele esperara não precisar dar uma demonstração
de seu poderio.
- Muito bem, aperte... Era preciso que ela tivesse consciência da
realidade das coisas.
- Pensa que não tenho coragem? E, com um gesto firme, apertou o
botão.
Só o encrespar das ondas e o suspiro abafado da brisa perturbavam o
silêncio.
Passaram-se dois minutos e Innelda, ignorando Hedrock, caminhou para
uma árvore, sacudindo um ramo. Devia se tratar de um outro sinal: depois de
uma breve espera, a Imperatriz atirou-se para a moita que dissimulava o
elevador. Mas foi em vão que apertou o botão. Então, a soberana voltou a
sentar-se na poltrona, em frente a Hedrock, que não se movera.
- O senhor tem a intenção de me assassinar? - perguntou, com calma.
Hedrock contentou-se em sacudir a cabeça. Lamentava profundamente
ter sido obrigado a provar-lhe a que ponto ela era importante. Tanto mais que
essa demonstração a incitaria a aperfeiçoar os meios de defesa, na certeza,
aliás sem fundamento, de que assim se protegeria contra uma ciência
superior. Ele entrara no palácio, no decorrer da tarde, para preparar tudo.
Claro, seu poder não chegava a obrigar Innelda a agir como ele quisesse. Mas
cada um de seus dedos estava carregado de anéis que eram outras tantas
armas, umas defensivas, outras ofensivas. Ele vestira sua "farda de
campanha" e os próprios cientistas da liga ficariam espantados com a
diversidade de recursos de sua panóplia. Nenhum sinal de alarme podia tocar,
nenhuma arma podia disparar na vizinhança. Naquele dia, o mais importante
de toda a história do sistema solar. Hedrock nada deixara ao acaso.
Innelda olhava-o com ar sombrio.
- Que quer? E de que homem fala?
Ele contou-lhe a verdade sobre McAl ister.
- É uma loucura! - murmurou, quando ele terminou. - Por que está ele
tão longe, se a geradora só está a três meses de distância?
- É a massa do corpo que constitui o fator principal.
- Oh!... Que quer que eu faça?
- Esse homem merece caridade, senhora. Pense que ele está num vazio
jamais visto por olhos humanos antes dele. Viu o nascimento da Terra e do
Sol e viu sua agonia. Atualmente, nada mais se pode fazer por ele a não ser
dar-lhe uma morte misericordiosa.
Innelda tentou imaginar as trevas onde McAl ister errava, mas colocava
o acontecimento numa perspectiva mais vasta.
- Que máquina é essa que o senhor trouxe?
- Uma reprodução da Temporal - respondeu, sem explicar que ele
mesmo a havia montado inteiramente num dos seus laboratórios secretos. -
Falta-lhe apenas o mapa cronográfico, que é demasiadamente complexo para
ser construído rapidamente.
- Estou vendo...
Não era uma resposta, mas um automatismo verbal.
- Qual é o nosso lugar, meu e seu, lá dentro? Hedrock não estava
preparado para esta pergunta.
Ele fora ver a Imperatriz porque ela tinha sido derrotada e porque, diante
disso, era preciso que ela não ficasse muito amargurada com o fracasso. Essa
era uma espécie de detalhe em que é preciso pensar quando se é imortal e
quando nos metemos nos negócios dos mortais.
- Não há tempo a perder, senhora. A geradora deve reaparecer dentro de
uma hora.
- Mas por que não deixar a decisão ao Conselho da liga?
- Porque ele poderia tomar uma decisão errada.
- Então qual é a boa?
- Olhe, vou dizer-lhe...
Cayle Clark bloqueou os comandos do autoplano para que o veículo
descrevesse um amplo círculo em torno da casa.
- Nossa Senhora! - gritou Lucy. - Uma casa de nuvens!
Com os olhos arregalados, ela olhava a mansão, os jardins suspensos, a
morada que flutuava entre o céu e a terra.
- Cayle, garantes que não é uma miragem? Ele sorriu.
- É a décima vez que me perguntas isso!
- Não estou pensando no dinheiro. Garantes que a Imperatriz não vai te
arranjar encrencas?
- Mr. Hedrock deu-me uma superarma. Aliás, prestei grandes serviços a
Sua Majestade. Serviços que ela apreciou. Em todo caso, foi o que ela me
disse hoje no telestate. E não creio que ela tenha escondido alguma coisa.
Aceitei continuar a trabalhar para ela.
- Mesmo?
- Não te preocupes! Tu mesmo me disseste: a liga é partidária de um
governo único. Mais honesto esse governo, melhor para o universo. E podes
confiar em mim -
concluiu, com os traços subitamente tensos - as experiências pelas quais
passei bastam para me dar vontade de purificar o regime.
O autoplano posou no terraço. Ambos desceram e ele levou-a para
visitar o ninho onde viveriam para sempre.
Quando se tem vinte e dois anos, crê-se inevitavelmente que é para
sempre.
EPÍLOGO
McAl ister esquecera que devia tomar uma decisão. Era muito difícil
pensar naquelas trevas. Quando abriu os olhos, só viu a escuridão do espaço
onde estava mergulhado. Não havia chão sob seus pés. Os planetas ainda não
existiam e a noite parecia esperar algum acontecimento colossal.
Parecia esperá-lo, a ele, McAl ister.
Então, num relâmpago de compreensão, soube o que ia acontecer. E
ficou maravilhado. Soube, também, qual a decisão que precisaria tomar:
aceitar a morte.
E essa decisão, tomou-a com estranha facilidade. Estava tremendamente
fatigado.
Veio-lhe a lembrança agridoce daquele dia, perdido num espaço-tempo
abolido, onde, deixado semi-morto num campo de batalha do século XX,
resignou-se a morrer. Pensou então que era justo perecer para que outros
pudessem viver. E eis que sentia a mesma coisa. Mais intensa, porém. Mais
grandiosa.
Como morreria? Não tinha idéia. A oscilação do pêndulo, amortecendo
definitivamente num passado sem limites, liberaria então a prodigiosa energia
temporal que se tinha acumulado em cada uma daquelas pulsações
monstruosas.
Ele não seria testemunha do nascimento dos planetas. Mas contribuiria
para a sua gênese.

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