Antero e o Futuro Da Música (Mário de Carvalho) PDF
Antero e o Futuro Da Música (Mário de Carvalho) PDF
Antero e o Futuro Da Música (Mário de Carvalho) PDF
por
Mrio Santiago de Carvalho
(Universidade de Coimbra)
Quem de entre o pblico que em 24 de Fevereiro de 1979 escutava
pela primeira vez a verso integral da segunda pera de Alban Berg,
Lulu, julgaria estar perante a ltima pera, isto , o fim da pera enquanto tal?1 Significativamente, dirigida ento por Pierre Boulez, incompleta (1929-35), a obra conhecera vrias apresentaes (1937 em Zurique,
1963 em Santa Fe) e com a soprano Teresa Stratas no papel principal, o sucesso imenso (recordemos o Prmio Gramophone em 1979) de
to atribulada restituio composicional inscrevia-se na crise da tonalidade Schoenberg foi um dos compositores que pensou poder terminar a orquestrao , inscrevia-se, portanto, no tema do esgotamento
da msica. Eis-nos perante um tpico recorrente e relevante em quase todos os gneros musicais, indiciando sobremaneira a dificuldade da
analtica do presente e a constncia do motivo da criatividade. Atentese, a este respeito, no filme de Stephen S. Taylor, The End of New Music (2007) que acompanha de forma propositadamente intimista trs jovens compositores (Judd Greenstein, David T. Little, e Missy Mazzoli) e
dois agrupamentos (Newspeak e Now Ensemble). Todos estes intrpretes
se mostram apostados na redefinio do que a msica deve ser, e j agora tambm onde deve acontecer, sobretudo num tempo em que a produo musical, na sua ltima deriva, a da vazo para a rua (aps ter sado,
primeiro, da cidade, e depois, paulatinamente, da igreja, do palcio e da
sala de concertos), tambm dominada pela tcnica (electrnica em particular), aporta finalmente ao terreno ainda no cartografado, da utopia e
da ucronia2, isto no obstante podermos j reconhecer na desvinculao
1
Cf. J.-J. Nattiez, Tonal/Atonal, in Enciclopdia Einaudi 3, trad., Lisboa 1984, p. 354. Poder-se- ler a apreciao assaz elogiosa de Th. W. Adorno sobre a pera Lulu, in The Philosophy
of Modern Music, trad., London 1987, p. 108.
2
Para uma crtica mais geral utopia, vd. o nosso Transparncia e Utopia. Para uma Arqueologia crtica da Utopia (na esteira de Agostinho de Hipona): E, na minha carne, verei Deus, in
M de F. Silva (coord.), Utopias e Distopias, Coimbra 2009, pp. 173-183.
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da tradio, na reproduo e na massificao tcnicas trs das mais sensveis escalas de um tal territrio.
Como sabe qualquer leitor pelo menos curioso de Hegel, um tpico
afim no deixou de ser relevante em muitos outros domnios, sendo talvez o mais premente porque prximo, ou pelo menos mais vulgarizado,
o do fim da histria. Nos anos 90 Francis Fukuyama via no capitalismo e
na democracia burguesa o coroamento da histria da humanidade. Uma
vez cados o fascismo e o socialismo continuava o polmico autor a
humanidade atingira o ponto culminante da sua evoluo, o que o triunfo da democracia liberal ocidental, como modelo ou soluo final do governo dos povos, poderia, enfim, atestar3. Tal como no caso da msica o
prognstico no seria confirmado.
Num mbito mais vasto, e sem dvida alguma mais fundamental ou
radical, agregado ao tema da morte da metafsica, G. Vattimo falava da
morte ou ocaso da arte4. O tpico havia apenas comparecido primeiramente em Kant5 e em Nietzsche, este abordando o crepsculo da arte
e a realizao trgica da impotncia crescente de o Homem poder responder s suas verdadeiras questes. Porque no avanou com nenhuma explicao especulativa pensada a partir da metafsica (como dir
mais tarde Heidegger, um to seu atento leitor), Nietzsche inscreveu esse
problema na temtica da derrelico da vontade6. Combinando em si a
rara qualidade de filsofo porque msico7, o autor de A Origem da Tragdia (1872), de O Caso Wagner (1888) e de Nietzsche contra Wagner
(1888/89, mas publicado apenas em 1895), no deixou porm de encarnar um programa de alegria musical preciso mediterranizar a msica anunciava nO Caso Wagner sua maneira profetizando o futuro
3
Cf. F. Fukuyama, The End of History and the Last Man, London 1992; veja-se em contraste, J.-F. Lyotard, A condio ps-moderna, trad., Lisboa 2003; G. Vattimo, O fim da modernidade. Niilismo e hermenutica na cultura ps-moderna, trad., So Paulo 1996.
Cf. C. Joo Correia, Hegel e o problema da fim da arte. Reflexes sobre a Modernidade
e a Condio Ps-Moderna, in AA.VV., Razo e Liberdade. Homenagem a Manuel Jos do Carmo Ferreira, Lisboa 2010, p. 1243.
4
5
Cf. K. Axelos, A questo do fim da arte e a poeticidade do mundo, Caderno de Filosofias
2 (1980), p. 99.
647
Cf. P. Griffiths, Histria Concisa de msica ocidental, trad., Lisboa, 2007, p. 201.
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13
Cf. C. J. Correia, Hegel, p. 1243; I. Murcia Serrano, La muerte del arte. Una propuesta alternativa a la de Arthur C. Danto Estudios Filosficos 59 (2010) pp. 315-334; vd. A.C. Danto, Aps o fim da arte. A Arte contempornea e os limites da Histria, trad., So Paulo 2006; em
portugus poder ver-se ainda Hlder Gomes, Relativismo axiolgico e arte contempornea.
Marcel Duchamp, Arthur C. Danto Critrios de recepo crtica das obras de arte, Porto 2004.
14
M. Heidegger, Caminhos de Floresta, p. 87.
15
L. R. dos Santos, Antero e a Arte, Revista de Histria das Ideias 13 (1991) pp. 145-48,
aqui especialmente p. 153, p. 154: A morte da arte diz a morte do absoluto, na ltima figura da
sua incarnao, diz a experincia do deserto, diz a eroso do sentido da existncia.
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Numa verso mais modesta da inspirao heideggeriana insistiram alguns intrpretes da esttica anteriana, como Antnio Pedro Pita16 ou Leonel Ribeiro dos Santos. Segundo eles, O futuro da msica, conglobava
o tema do esgotamento da expressividade esttica com o da historicidade da experincia esttica e da obra de arte17, devendo-se, em consequncia, ultrapassar os juzos menos positivos de Joaquim de Carvalho18
e de SantAnna Dionsio19. Falava-se, portanto, em nome da filosofia, e
tambm da filosofia de Antero obviamente, razo pela qual Joel Serro,
depois de considerar o artigo em causa como o mais bem elaborado e o
mais ambicioso dos escritos de ndole filosfica que Antero, no perodo
auroral de 1865-1866, deu a lume, interpretou o artigo do Instituto como
a raiz metodolgica ou a forma mentis de escritos posteriores do poeta20. Concretizando mais, Leonel dos Santos viu na Filosofia do Futuro
uma intuio juvenil a ser desenvolvida nas Tendncias Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Sculo XIX21.
No valer a pena, pois, repisar o que j se sabe ou foi certeiramente observado, mas gostaramos de reler o texto sob o prisma mais da filosofia da msica, aspecto, como dissemos, desprezado, salvo erro, pela
maioria dos intrpretes. Uma excepo, evidentemente, poderamos encontrar, por exemplo, na sntese sobre a nossa histria da msica que
Rui Vieira Nery e Paulo Ferreira de Castro escreveram, mas a o texto de Antero que reproduzimos em nota, confina-se ilustrao de uma
das primeiras tentativas de uma aproximao terica, no sistemtica, msica absoluta, lida nos termos de uma transio entre os lti16
Cf. A. P. Pita, A filosofia da Arte de Antero Revista de Histria das Ideias 13 (1991) pp.
121-23.
17
Cf. sobretudo, A. P. Pita, A filosofia da Arte de Antero Revista de Histria das Ideias 13
(1991) p. 123, que escreve tambm: O futuro da msica no , porm, o seu fim: o esgotamento da sua expressividade; ibidem p. 120; tambm L. R. dos Santos, Antero e a Arte passim.
18
J. de Carvalho, Estudos sobre a Cultura Portuguesa do Sculo XIX I (Antheriana), Coimbra 1955, p. 85.
19
J. A. S. Dionsio, Contra o pensamento de Antero sobre a origem e o fim da msica, Seara
Nova 539 (1937) pp. 247-49 (in Tendncias, Lisboa 1934, pp. 281-290).
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26
Cf. F. Gil & M.V. de Carvalho, A Quatro Mos. Schumann, Eichendorff e outras notas, Lisboa 2005, p. 77.
27
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29
Cf. Vieira de Almeida, Disperso no pensamento filosfico portugus, in Id., Obra Filosfica II, Lisboa 1987, p. 473.
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31
Como na pintura abstracta, na msica o modernismo transferiu a ateno do produto para
o processo, para o como e porqu da composio. E o que mais importante, ao reduzir ou remover a tendncia da harmonia tonal de forar a direco, as tcnicas modernistas permitiram aos
compositores criar msica na qual o tempo pode ser percepcionado de maneiras muito diferentes,
frequentemente de vrias maneiras em simultneo: o tempo estacionrio da harmonia imvel, o
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no seu estudo coimbro, Antero de Quental ter podido qui escutar boa
msica -lhe reconhecida a predileco, que alis partilharia com H.
Heine, por Meyerbeer (compositor judeu desprezado por Robert Schumann, Berlioz, mas sobretudo por Wagner, alis injustamente32) e o apreo, perfeitamente compreensvel, acrescentaria, pelo quarteto de cordas
opus 131 em d sustenido maior de Beethoven, entre outras criaes33
no ser muito difcil alvitrar-se que o seu conhecimento da arte dos sons
no deveria ser profundo, independentemente de ser mais do que lcito
afirmar-se que afora a poesia, a arte dilecta de Antero era a msica34.
Que tipo de audies lhe poderia dar o ambiente, ainda que invulgarmente musical, da sua ilha, e o sempre reservado clima coimbro? Mesmo assim, num cultor da harmonia como Meyerbeer desaguavam ideais
romnticos conflituantes, tendo Heine visto no compositor a capacidade para transformar o singularismo em universalismo, ou o individualismo no social. Sobretudo no esqueamos que Antero contemporneo
de Eduard Hanslick (1825-1904), cuja impressionante obra esttica musical s pde ter nascido no to vigoroso ambiente de Viena, assaz distante da modorra de Coimbra35. De relao com a poesia sim, e inquestionatempo repetido do ostinato, a precipitao confusa das progresses de acordes que no fazem
grande sentido em termos tradicionais, o tempo invertido dos eventos que se repetem em sentido
contrrio, o tempo duplo das velhas formas e gneros inesperadamente reinterpretados. Neste aspecto, o modernismo compatvel no s com a abstraco, mas com outro progresso desse perodo: a revelao por Einstein, em 1905, de que o tempo no uma constante universal, podendo variar com a posio e movimento do ponto de vista de que o tempo no um, mas muitos.
(P. Griffiths, Histria p. 211).
32
Cf. Th. W. Adorno, The Philosophy p. 173 considerando Wagner como herdeiro de Meyerbeer.
33
Cf. Ruy Galvo de Carvalho, Antero de Quental e a msica, Horta 1989, pp. 44-45, p. 54,
pp. 46-47, p. 60, p. 71 e passim. Vd. tambm Alberto Rego, Antero e Beethoven Estudos 206
(1942), pp. 159-69. Recordemos que o opus 131 foi s apresentado pela primeira vez em 1828,
por Schubert precisamente.
34
R.G. de Carvalho, Antero p. 47; Lcio Craveiro da Silva, Antero de Quental. Evoluo
do seu pensamento filosfico, Braga 1959, pp. 137-38.
35
Ao mestre de Capela e professor de msica na Universidade, Jos Maurcio (1752-1815),
autor do Mtodo de Msica, para uso na Universidade (1806), atribui-se a organizao de concertos de msica de cmara de obras de Haydn e de Mozart (vd. R. V. Nery & P. F. de Castro, Histoire de la Musique, p. 132), mas, em vista do apreo anteriano por Meyerbeer, deve citar-se seguramente a aco do conde de Farrobo, frente do Teatro de So Carlos, onde, alm daquele
compositor, tambm fez representar Mozart e Donizetti (ibidem p. 136); cabe no entanto indicar
que cerca de dezasseis anos antes de Antero ter escrito o artigo que ora nos interessa (contemporneo alis da audio do Fausto de Gounod em Lisboa), a grande pera de Meyerbeer, O Profe-
654
L.R. dos Santos, Antero e a Arte p. 145. Este autor v aqui uma interessante modulao
do tema hegeliano da consicincia infeliz (p. 146).
38
39
F. de Figueiredo, Msica e Pensamento (Quatro Ensaios marginais e um Prlogo), Lisboa
1954, p. 63.
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sica e sociedade (pensemos de novo em Meyerbeer diletantemente interpretado por Heine), Antero escreve ( maneira romntica, temos de o repetir40) que a histria da msica () seria a mais completa histria do
esprito humano nos ltimos trs sculos41. Sublinhe-se depois a descoberta quase em tempo real (como agora si dizer-se) da obra de Taine
a marcar este texto de 1866 e a fidelidade de Antero a esse autor quando
ainda em 1872, nas Consideraes sobre a filosofia da histria literria
portuguesa, faz seus ipsis verbis os trs elementos em torno dos quais deve
gravitar a interpretao cientfica da literatura: race (raa), milieu
(meio social) e moment (momento histrico)42. Em Taine predomina a
histria, mas talvez mais a de Herder do que a de Hegel, sendo precisamente nesta distinta perspectiva histrica que deve ser lida a Philosophie
de lArt, i.e., como um exerccio de descrio naturalista do Homem43.
E eis-nos assim frente ao que literalmente deve explicar na evoluo
espiritual de Antero, a Aufhebung que representa a passagem da msica cincia. Ela particulariza-se histrico-filosoficamente pelo alargamento do legado positivista comteano prpria metafsica, segundo o
esprito do hegelianismo. O prprio Antero sobre isso claro ao escrever textualmente o seguinte, embora em nota, que vale a pena reproduzir,
e tem-no sido repetidamente:
No creio que o positivismo um tanto estreito de A. Comte, Littr e da ltima escola francesa, nos d completa a filosofia do futuro. Mas se o alargarmos, segundo o esprito do hegelianismo, a ponto de caber nele a meta40
41
656
L.R. dos Santos, Antero e a Arte p. 159: Antero percebeu, desde 1866, que a filosofia
do futuro poderia bem ser a sntese dessas duas matrizes de pensamento, e esta intuio juvenil
que vai desenvolver ainda nas Tendncias. A concepo anteriana da arte nesta fase dominada
pela conscincia do seu carcter epocal e finito, e pelo reconhecimento de que o mundo futuro no
pode ser organizado pela arte, mas pela cincia. A morte da arte, reconhecida como um destino
histrico, vivida pelo poeta com um cada vez mais indisfarvel sentimento de melancolia. (o
sublinhado do autor).
46
L.R. dos Santos, Antero e a Arte p. 159, pp. 158-160 em geral.
45
47
Cf. em portugus, breve apresentao de Taine in R. Bayer, Histria da Esttica, trad., Lisboa 1979, pp. 271-76; mas acessvel uma obra in http://books.google.pt/books (acedido em Fevereiro de 2010).
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A. de Quental, O futuro da msica p. 59. Retenhamos antes os doze valores do romantismo musical, enumerados por Lewis Rowell (Introduccin a la filosofia de la msica. Antecedentes histricos y problemas estticos, trad., Barcelona 2005, pp. 118-20): o desordenado, o intenso, o dinmico, o ntimo, a emoo, o contnuo, a cor, o extico, o ambguo ou ambivalente, o
nico, o primitivo e o orgnico.
49
A. de Quental, O futuro da msica p. 63: O vago das notas, dos compassos, sem tipo na
natureza, e por outro lado o grito, o gemido, fazem da msica a ltima forma com que se exprimia um estado de crenas definidas, sentimentos precisos e conscientssimos, contentamento e repouso. a arte romntica por excelncia; a voz eterna do lirismo e da fantasia dolorosa. Com os
fantsticos ideais e para eles nasceu; com eles tem de morrer. Companheira fiel do esprito tumultuoso da transformao social, ser o seu ltimo gemido o extremo ai exalado pela moribunda
alma antiga. O seu excesso de hoje uma crise: agita-se para morrer. A ltima msica ser um gemido sobre a campa de uma idade finda. O futuro precisa duma voz mais enrgica e menos quebrada pelos soluos para revelar o grave e forte pensamento que nutrir a sua alma de heri.
50
A. de Quental, O futuro da msica p. 60. O sublinhado nosso.
48
51
Falamos acima de uma procura do absoluto significando a exigncia de uma arte completamente liberta do homem (H. Sedlmayr, A revoluo da arte moderna, trad., Lisboa, s.d., p.
71) ou liberta do material musical numa emancipao do compositor e dos seus sons (Th. W.
Adorno, The Philosophy p. 52). No fora este movimento ele que ainda no se esgotou, posto que no aprendemos todos ns ainda que a tonalidade no mais do que um caso particular
de organizao do discurso musical e estaramos hoje impossibilitados de falar de msica
cientfica, num Iannis Xenakis ou num Pierre Barbaud, precisamente enquanto oportunidade
para se fazer da msica uma disciplina passvel de poder contar com os modelos matemticos, tal
como, do discurso musical, uma organizao baseada numa teoria logicamente fundamentada.
No menos ligada ao mito cientfico a palavra de Stockhausen, lembrada por E. Fubini (La esttica 493), falando da sua relao msica recorrendo analogia com o trabalho do bilogo.
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55
A. de Quental, O futuro da msica p. 63: a arte romntica por excelncia; a voz eterna do lirismo e da fantasia dolorosa. Com os fantsticos ideais e para eles nasceu; com eles tem
de morrer. () O seu excesso de hoje uma crise: agita-se para morrer. A ltima msica ser um
gemido sobre a campa de uma idade finda.
57
Cf. A. de Quental, O futuro da msica pp. 62-63.
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A. de Quental, O futuro da msica p. 62: fora tambm que haja uma arte especialmente prpria.
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