BORGES, Jorge Luis - A Flor de Coleridge

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Paulo Brabo, 30 de dezembro de 2011

A flor de Coleridge
Estocado em Traduzindo Borges

Em 1938, Paul Valry escreveu: a histria da literatura no deveria ser a histria dos autores e dos
acidentes da sua carreira ou da carreira de suas obras, mas a histria do Esprito como produtor ou
consumidor de literatura. No era a primeira vez que o Esprito formulava essa observao; em 1844, na
aldeia de Concord, outro de seus amanuenses havia anotado: Dir-se-ia que uma nica pessoa redigiu
todos os livros que h no mundo; tamanha unidade central h entre eles que inegvel que sejam obra de
um s cavalheiro onisciente (Emerson: Essays, 2, VIII). Vinte anos antes, Shelley sentenciou que todos
os poemas do passado, do presente e do porvir, so episdios ou fragmentos de um nico poema infinito,
erigido por todos os poetas do orbe (A Defence of Poetry, 1821).
Essas consideraes (implcitas, naturalmente, no pantesmo) permitiriam um inacabvel debate; eu,
agora, as invoco para executar um modesto propsito: a histria da evoluo de uma ideia, atravs dos
textos heterogneos de trs autores. O primeiro texto uma nota de Coleridge; ignoro se este a escreveu
ao final do sculo XVIII ou a princpios de XIX. Diz, literalmente:
Se um homem atravessasse o Paraso num sonho, e lhe dessem uma flor como prova de que havia estado
ali, e se ao despertar ele encontrasse essa flor na sua mo e ento?
No sei o que pensar o leitor desta imaginao; eu a julgo perfeita. Us-la como base para outras
invenes felizes parece de antemo impossvel; ela tem a integridade e a unidade de um terminus ad
quem, de uma meta alcanada. Est claro que assim; na ordem da literatura, como nas outras, no h ato
que no seja coroao de uma infinita srie de causas e manancial de uma infinita srie de efeitos. Por trs
da inveno de Coleridge est a geral e antiga inveno das geraes de amantes que pedem como prenda
uma flor.
O segundo texto que apresentarei uma novela que Wells esboou em 1887 e reescreveu sete anos
depois, no vero de 1894. A primeira verso intitulou-se The Chronic Argonauts (neste ttulo abolido,

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chronic tem o valor etimolgico de temporal); a definitiva, The Time Machine. Wells, nessa novela, d
continuidade e reforma uma antiqussima tradio literria: a previso de fatos futuros. Isaas v a
desolao da Babilnia e a restaurao de Israel; Enias, o destino militar de sua posteridade, os romanos;
a profetisa da Edda Saemundi, a volta dos deuses que, depois da cclica batalha em que nossa terra
perecer, descobriro, jogadas no pasto de uma nova pradaria, as peas de xadrez com que anteriormente
haviam jogado. O protagonista de Wells, diferena desses espectadores profticos, viaja fisicamente ao
porvir. Volta cansado, empoeirado e machucado; volta de uma remota humanidade que se bifurcou em
espcies que se odeiam (os ociosos eloi, que habitam em palcios dilapidados e em ruinosos jardins. os
subterrneos e nictalopes morlocks, que se alimentam dos primeiros); volta com as tmporas grisalhas e
traz do porvir uma flor murcha. Esta a segunda verso da imagem de Coleridge. Mais incrvel do que
uma flor celestial ou que a flor de um sonho a flor futura, a contraditria flor cujos tomos agora outros
lugares e ainda no se combinaram.
A terceira verso que comentarei, a mais trabalhada, inveno de um escritor fartamente mais complexo
do que Wells, embora menos dotado dessas agradveis virtudes que costume chamar de clssicas.
Refiro-me ao autor de A humilhao dos Northmore, o triste e labirntico Henry James. Este, ao morrer,
deixou inconclusa uma novela de carter fantstico, The Sense of the Past, que uma variao ou
elaborao de The Time Machine1. O protagonista de Wells viaja ao porvir num inconcebvel veculo que
avana ou retrocede no tempo como os outros veculos no espao; o de James regressa ao passado, ao
sculo XVIII, fora de compenetrar-se nesta poca (os dois procedimentos so impossveis, porm o
menos arbitrrio o de James). Em The Sense of the Past, o nexo entre o real e o imaginativo (entre a
atualidade e o passado) no uma flor, como nas fices anteriores; um retrato que data do sculo
XVIII e que misteriosamente representa o protagonista. Este, fascinado por essa tela, consegue
trasladar-se data em que a executaram. Entre as pessoas que encontra figura, necessariamente, o pintor;
este o pinta com temor e com averso, pois intui algo incomum e anmalo nessas feies futuras James
cria, assim, um incomparvel regressus in infinitum, j que seu heri, Ralph Pendrel, se traslada ao sculo
XVIII. A causa posterior ao efeito, o motivo da viagem uma das consequncias da viagem.
Wells, verossimilmente, desconhecia o texto de Coleridge; Henry James conhecia e admirava o texto de
Wells. Claro est que se vlida a doutrina de que todos os autores so um autor2, tais fatos so
insignificantes. Rigorosamente falando, no indispensvel ir to longe; o pantesta que declara que a
pluralidade dos autores ilusria encontra inesperado apoio no classicista, segundo o qual essa
pluralidade importa muito pouco. Para as mentes clssicas, a literatura o essencial, no os indivduos.
George Moore e James Joyce incorporaram em suas obras pginas e sentenas alheias; Oscar Wilde
costumava presentear enredos para que outros executassem; ambas as condutas, embora superficialmente
contrrias, podem evidenciar um mesmo sentido da arte. Um sentido ecumnico, impessoal Outro
testemunho da unidade profunda do Verbo, outro negador dos limites do sujeito, foi o insigne Ben Jonson,
que empenhado na tarefa de formular seu testamento literrio e os ditames propcios ou adversos que
mereciam seus contemporneos, limitou-se a combinar fragmentos de Sneca, de Quintiliano, de Justo
Lipsio, de Vives, de Erasmo, de Maquiavel, de Bacon e dos escalgeros.
Uma observao, ltima. Aqueles que minuciosamente copiam um escritor o fazem impessoalmente, o
fazem porque confundem esse escritor com a literatura, o fazem porque suspeitam que apartar-se dele
num ponto apartar-se da razo e da ortodoxia. Durante muitos anos, cri que a quase infinita literatura
estava num nico homem. Esse homem foi Carlyle, foi Johannes Becher, foi Whitman, foi Rafael
Cansinos-Assns, foi De Quincey3.
Jorge Luis Borges, Otras Inquisiciones (1957)

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de ideias condenadas reformulao eterna.
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NOTAS
1. No li The Sense of the Past, mas conheo a suficiente anlise de Stephen Spender, em sua obra
The Destructive Element (pginas 105-110). James foi amigo de Wells; para sua relao se pode
consultar o vasto Experiment in Autobiography deste. [ ]
2. Em meados do sculo XVII o epigramista do pantesmo Angelus Silesius disse que todos os
bem-aventurados so um (Cherubinischer Wandersmann, V. 7), e que todo cristo deve ser Cristo
(op. cit., V, 9). [ ]
3. Esse homem, naturalmente, nunca vai deixar de ser Borges. (Nota do tradutor) [ ]
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O futuro e os sonhos
Pela tela, pela janela

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