Ensaios Filosoficos Volume I
Ensaios Filosoficos Volume I
Ensaios Filosoficos Volume I
ISSN 2177-4994
Editora Chefe :
Elena Moraes Garcia
Endereo :
Ensaios Filosficos Revista de Filosofia
Campus Francisco Negro de Lima
Pavilo Joo Lyra Filho
R. So Francisco Xavier, 524, 9 andar, Sala 9007
Maracan Rio de Janeiro Rj Cep 20550-900
www.ensaiosfilosoficos.com.br
efrevista@gmail.com
ndice :
Editorial por Elena Moraes Garcia....................................................................................pg. 04
Por qu Habermas no e no pode ser contratualista por Andr Berten..................pg. 06
Pela inocncia do pr-individual: pensando com Simondon por Fernando Maia Freire
Ribeiro...............................................................................................................................pg. 19
Filosofia Hoje por Izabela Aquino Bocayuva...............................................................pg. 33
Teorias do Juzo e Voluntarismo Doxstico no Debate Epistemolgico Contemporneo por
Marcelo de Arajo............................................................................................................pg. 42
De crculos e quadrados: triangulando Ceclia Meireles, Carlos Drummond de Andrade e
Manuel Bandeira por Osmar Soares da Silva Filho........................................................pg. 55
Editorial:
A Revista on-line Ensaios Filosficos, com o apoio do Laboratrio de licenciatura e
pesquisa sobre o Ensino de filosofia da UERJ, em seu primeiro nmero editado em rede
eletronicamente, fruto da iniciativa livre, empreendedora, ousada, louvvel e digna de
sinceros elogios e dos esforos de um grupo de alunos do curso de graduao em filosofia do
departamento de filosofia do instituto de filosofia e cincias humanas (IFCH) da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Este grupo de alunos no pensou de forma irrefletida na concepo da revista. Ao
contrrio disto, buscou antes de tudo estabelecer os passos necessrios e adequados para
concretizar a elaborao e a editorao de uma revista on-line, com o intuito de possibilitar e
viabilizar o dilogo contnuo e visvel das pesquisas, dos estudos realizados pelos professores
e alunos da graduao e da pos-graduao em filosofia da UERJ. Esta iniciativa, empenho e
entusiasmo do grupo de alunos - membros do conselho editorial discente e com o aval do
conselho editorial docente contagiaram alguns professores e alunos de pos-graduao que,
logo, se prontificaram a ceder suas reflexes para compor o primeiro nmero da revista.
Este nmero consta de cinco artigos e de uma entrevista que em seu conjunto, se
revelaram mltiplos na proposio, na discusso e na problematizao de temas filosficos
contemporneos. Apesar da multiplicidade, possvel traar linhas de aproximao entre as
questes trabalhadas neste nmero. Estas linhas de aproximao e, muitas vezes de oposio,
suscitam a necessidade de repensar conceitos, temas e, mesmo de tratamento de uma questo,
de um autor e porque no da filosofia? Em suma, uma busca de novos caminhos para o pensar
a Filosofia.
Exemplo disto a aproximao entre filosofia e literatura, mediante a poesia de
Ceclia Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, vista luz de Heidegger e
de Hannah Arendt, apresentando uma nova leitura e uma nova abordagem da poesia, face a
questo da relao tradicionalmente problemtica entre o homem e a natureza.
Outro exemplo diz respeito valorizao do pensamento em G. Simondon na
considerao e na oposio do conceito do pr-individual ao conceito de individuao. Tratase, neste exemplo, de pensar com Simondon, mas sobre tudo de question-lo. Em outras
palavras, busca-se ao colocar em cheque os procedimentos e os conceitos de um autor, tornar
vivo o seu pensamento, entregando-se assim aventura das idias. Mas esta aventura no
pode eliminar a necessidade de pensar a filosofia hoje de maneira atenta, ativa, vigilante e
imersa na retomada das questes filosficas, o que pressupe toda uma disposio a! Neste
Andr Berten1
Que Habermas no seja contratualista parece evidente. Porm, uma recusa estrita do
contratualismo implicaria tambm, a meu modo de ver, uma renncia ao modelo da "situao
ideal de fala", pelo menos na medida em que poder-se-ia ver nela um equivalente da "posio
originria" na Teoria da justia de John Rawls, que , esta, explicitamente, um modelo de
contrato social. Ora, desistir da situao ideal de fala acarreta dificuldades na justificao
normativa da democracia deliberativa. Em Verdade e justificao, revisando as teses
estabelecendo uma analogia forte entre as pretenses verdade e as pretenses correo
normativa, o problema da fundao das normas prticas se tornou mais complicado2. Com
efeito, se no pode-se mais fundamentar as normas morais sobre o consenso racional, qual
outro fundamenbto sobra?
Eu gostaria, em primeiro lugar, lembrar os motivos evidentes que levam Habermas a
recusar os modelos contratualistas (I). Depois, analisarei os argumentos que defendem no
entanto um uso do modelo da situao ideal de fala, mostrando que se trata de uma
historicizao do modelo contratualista (II). Enfim, vou sugerir que essa estratgia tem um
custo muito alto porque se apoia sobre uma filosofia da histria que, embora no hegeliana,
fica contudo metafsica (certamente, no sentido rawlsiano de "abrangente") (III)
E ainda:
Essa autocrtica de Habermas diz respeito ao idealismo moral de suas origens, a essa idia
de um interesse pela emancipao que seria um interesse transcendental. Em Conhecimento e
interesse, Habermas escrevia que "a emancipao da coero da natureza interna tem xito na
medida em que as instituies que detm a autoridade so substitudas por uma organizao
dos intercmbios sociais ligados unicamente a uma comunicao sem dominao"5
Agora ele escreve:
HABERMAS Jrgen (2003), "Trente ans plus tard : remarques sur Connaissance et intrt", in RENAULT
Emmanuel & SINTOMER Yves (dir.) (2003), O en est la thorie critique?, Paris, La dcouverte, pp. 93-94.
4
Ib.
5
HABERMAS, Jrgen, Connaissance et intrt, tr. G. Clmenon, Paris, Gallimard, 1976, p. 86 (Erkenntnis
und Interesse. Mit einem neuen Nachwort, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1973)
"entender o que significa de uma maneira geral uma relao social repousando sobre
o princpio de reciprocidade. Os sujeitos de direito privado que existem apenas
10
RAWLS John (1971), A Theory of Justice, Oxford, Oxford University Press, ch. 1, 3. Muita coisa poderia
ser dita sobre a excluso de Hobbes nas referncias rawlsianas. Em nota, Rawls acrescenta que "apesar de sua
importncia, o Leviathan de Hobbes coloca problemas particulares" (chap. 1, nota 4). Na verdade, a Theory of
Justice d uma definio da racionalidade das partes na posio original que muita mais prxima de Hobbes
que de Rousseau e Kant. Essa posio ser corrigida ulteriormente, entre outros a idia que "A teoria da justia
uma parte, talvez at a mais importante, da teoria do escolha racional." ( 3)
11
HABERMAS Jrgen & RAWLS John (1998), Debate sobre el liberalismo poltico, Introduccin de Fernando
Vallespn, tr. de G.V. Roca, Barcelona, Ediciones Paids, I.C.E. de la Universidad Autnoma de Barcelona, p.
52.
12
HABERMAS, O.c., p. 47.
13
Ib.
HABERMAS Jrgen (2003), Direito e democracia entre facticidade e validade, tr. F. B. Siebeneichler, Rio de
Janeiro, Tempo Brasileiro, vol.I, p. 109 (Faktizitt und Geltung: Beitrge zur Diskurstheorie des Rechts und des
demokratischen Rechtstaates, Frankfurt/Main, Suhrkamp Verlag, 1992).
15
Essa crtica a Kant deveria ser matizada, pois, na Rechtslehre, Kant escreve: "se, no estado de natureza, no
houvesse tambm, a ttulo provisrio, um meu e um teu exteriores, tampouco existiria deveres de direito a
respeito disto, e por conseguinte, no haveria nenhum mandamento [Gebot ] impondo de sair de este estado."
(KANT Immanuel, Metaphysik der Sitten, Rechtslehre, Hamburg, Felix Meiner Verlag, 1959, 44, p.134)
16
Cf. HABERMAS, Debate sobre el liberalismo poltico, o.c., pp. 47-48.
17
Cf. ib., p. 48.
18
Ib.
19
Ib.
cf. essa descrio bem conhecida, o.c. pp. 48-49. A oposio normas/valores parallela quela entre as
normas morais e as normas ticas (Cf. HABERMAS Jrgen (1991), Erluterungen zur Diskursethik, Frankfurt
am Main, Suhrkamp Verlag.)
20
menos se entendemos esse ltimo conceito como mais o menos equivalente quele de
"comunidade ideal de comunicao" utilizado por Apel. Em outras palavras, no suficiente
de introduzir uma perspectiva discursiva ou comunicativa para escapar ao modelo
contratualista.
Sem dvida, Habermas pode recusar a idia que o indivduo preexiste sociedade. Do
ponto de vista da teoria da ao comunicativa, devemos aceitar que o indivduo formado
pela comunicao, pelo debate, pela discusso. Alis a novidade do conceito de democracia
deliberativa vem precisamente do fato que o espao pblico no deve ser concebido como o
espao de expresso das opinies dos cidados mas como o espao de formao dessa opinio
a travs do debate pblico e argumentado21.
Poder-se-ia, porm, considerar essa inverso do conceito de opinio pblica e de vontade
geral apenas como uma reformulao do tema do contrato social, na medida em que os
indivduos cuja vontade e opinio se formam na discusso devem ser considerados j como
racionais para poder participar do debate pblico e aprender desse debate a selecionar os
argumentos aceitveis e as solues justas. Ser que a comunidade ideal de comunicao e a
situao ideal de fala so apenas os novos modelos contratualistas, modelos que integram essa
inverso?
A posio de Habermas a respeito do conceito de comunidace ideal de comunicao de
Apel nos ajudar a entender o problema.
Segundo Apel,
"Quem argumenta pressupe duas coisas desde o incio: primeiro, uma comunidade
comunicacional
21
Cf. MANIN Bernard (1985), "Volont gnrale ou dlibration? Esquisse d'une thorie de la dlibration
politique", Le Dbat, n33, janvier 1985, p. 72-93; (1987), "On Legitimacy and Political Deliberation", Political
Theory, p. 338-368. Habermas reconheceu sua dvida a essas idias de Manin.
22
APEL Karl Otto (2000), Transformao da Filosofia, vol. II, O a priori da comunidade de comunicao, tr. P.
A. Soethe, So Paulo, Edies Loyola, p. 485.
O prprio conceito equivalente de situao ideal de fala poderia levar idia errnea
que existe um sistema de pretenses validade pertencendo como tal base de validade do
discurso, quer dizer universalmente, transcendentalmente. E que seria possvel concretizar
esse sistema na realidade das discusses em geral. Pois verdade que os pressupostos dos
quais os participantes da argumentao partem necessariamente podem superar a
particularidade dos contextos espao-temporais ao ter pretenses de validade transcendentes.
Como conciliar a recusa de um modelo universal e contraftico de situao ideal de fala com
as pretenses de validade transcendentes? Ou como articular essas pretensoes com a
contingncia de sua concretizao?
Contra toda espera, Habermas afirma que " legtimo utilizar tal projeo para uma
experincia conceitual" ou "como uma fico metdica" que tornar visvel "o substrato da
inevitvel complexidade social".
Como interpretar essa fico metdica ou experincia conceitual sem ver nela um
equivalente do contrato social? Claro que podemos sempre avanar o argumento que esse
modelo ideal no um modelo "intencional" ou modelo que apoia-se sobre a vontade ou a
deciso (racional) dos indivduos, mas sobre a lgica do discurso.
Na verdade, esse argumento no seria suficiente se a idia de "lgica do discurso" no
implicasse o conceito fundamental de "lgica do desenvolvimento". Com efeito, no podemos
dissociar as idealizaes de suas condies de possibilidade. A maneira de pensar as
23
24
condies de possibilidade diferena de Apel no transcendental, mas "quasetranscendental", isto dependendo do estado de desenvolvimento ao qual chegou a
humanidade. O modelo de "situao ideal de fala" deve portanto ser interpretado como
"histrico", na medida em que s pode ser pensado em sociedades modernas. O
transcendental o mundo da vida25, e o mundo da vida um mundo histrico. por isso que
Habermas continua escrevendo:
25
Cf. por exemplo, HABERMAS Jrgen (1999), Wahrheit und Rechtfertigung, o.c.
HABERMAS, Direito e democracia, o.c., vol. II, p. 51-52.
27
Cf. O.c., pp. 52sq.
26
Cf. por exemplo, SCANLON Thomas (1998), What We Owe to Each Other, Cambridge (MA), Harvard
University Press.
29
Da as crticas igualmente radicais, por exemplo feministas (PATEMAN Carole (1988), The Sexual Contract.
Stanford, Stanford University Press) ou culturalistas (MILLS Charles (1997), The Racial Contract. Ithaca, New
York,Cornell University Press).
Um tal texto poderia sugerir que o modelo que vem substituindo o do contrato social
aquele da "comunidade de comunicao" cuja base "um entendimento obtido atravs do
discurso". Mas isso ainda no significa que essa nova formulao pudesse escapar ao
relativismo histrico. As teorias de inspirao marxista sustentaram as vezes que a sociedade
de comunicao dita psmoderna a superestrutura ideolgica do capitalismo tardio31. A
democracia deliberativa poderia ser apenas o modelo poltico exigido por uma sociedade da
comunicao ou, antes, "da economia das comunicaes".
Essa historicizao relativista a idia que o modelo do contrato social corresponde a
uma filosofia do sujeito enquanto o modelo da situao ideal de fala resultaria da guinada
lingstico-pragmtica acarreta um cetiscismo sobre as pretenses a uma fundao
normativa slida. Foi esse ceticismo, reconhece Habermas, que o levou "a tomar como tema a
tenso entre facticidade e validade"32 para discutir da legitimao das formas deliberativas de
democracia. Em Verdade e justificao,
varias formas, inclusive formas "inacabadas" quando suas modalidades ficam apenas
semnticas. Com efeito, a interrogao sobre as pressuposies dos atos de fala no pode
contentar-se de notar "a primazia do a priori de sentido respeito constatao dos fatos"33.
a crtica que Habermas faz simultaneamente ao idealismo de Heidegger e ao contextualismo
de Wittgenstein. Pois, "o a priori de sentido que supoem as vises do mundo fundadas sobre
uma lingua deve inevitavelmente apresentar-se ao plural, perdendo com isto a validade
universal que carateriza um a priori transcendental."34
Embora recusasse um "transcendentalismo forte", preferindo um quase transcendental, ou
30
"Essa concepo, diz Habermas, repousa sobre uma s hiptese metaterica, aquela
segunda a qual "nossos" processos de aprendizagem tornados possveis pelas
formas de vida socioculturais de uma certa maneira apenas prolongam processos
de aprendizagem evolucionrios prvios que, a sua vez, engendraram as estruturas
de nossas formas de vida."37
Vamos admitir que se trata aqui somente de uma idia regulativa, uma hiptese destinada a
orientar as pesquisas. No impede que seja uma hiptese forte. Mesmo sem ser uma
35
Cf. HABERMAS Jrgen (2002), Agir comunicativo e razo destranscendentalizada, Rio de Janeiro, Edies
Tempo Brasileiro (trad. et apresentao de Lucia Arago de Kommunikatives Handeln und
detranszendentalisierte Vernunft, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 2001)
36
Vrit et justification, o.c., p. 283. Habermas cita tambm como universal, quer dizer "a qual no h soluo
de substituio em nenhuma forma de vida conhecida", a ao teleolgica.
37
O.c., p. 290-291.
"reduo" do cultural ao natural nem implicar uma ontologia monista, essa hiptese de
continuidade entre uma histria natural e uma histria cultural, no deixa de ter uma
abragncia totalista. O limite absoluto a uma ambiciosa perspectiva hegeliana que se deve
manter uma dualidade de pontos de vista entre a reconstruo racional das estruturas do
mundo vivido, "reconstruo hermenutica de um ponto de vista de participante" e a anlise
causal, objetiva da "gnese de essas estruturas no quadro da histria da natureza"38.
Mas essa dualidade de pontos de vistas no simtrica nem reversvel. Como Habermas o
notou, o problema lgico da autoreferncia o fato que sempre podemos colocar a questo
das condies de possibilidade do questionamento epistemolgico ou do prprio
questionamento transcendental introduz uma dissimetria que nos faz interpretar, em ltima
instncia, os processos naturais, entre outros os processos evolucionrios, do ponto de vista
dos "resultados" para ns, isto , dos comportamentos racionais e inteligentes que no
somente nos permitem de referirnos ao mundo, mas tambm de maneira reflexiva, de
perguntarnos por qu e como podemos ou devemos situarnos diante do mundo e dos outros.
38
O.c., p. 291.
pr-individual,
ontognese,
J faz algum tempo que a filosofia parece ter entrado num looping, que sua voz repete
uma soporfera e infinita ladainha em que ouvimos, quase hipnotizados pelo cansao e falta
de interesse, reaparecerem, como se fossem as expresses definitivas do pensamento, a
reflexo, a conscincia crtica, a cidadania, a linguagem e todo vasto arsenal de lugares
comuns do bem pensar. Mas, apesar de abafada, outra voz insiste em no se calar e alguns
ouvidos podem ouvi-la dizer: antes ser torturada do que perder sua inocncia. Inocncia que
num primeiro momento podemos definir como sendo o pensamento aberto a todas as suas
impossibilidades exigindo ser instaurado plenamente num campo livre de qualquer
superstio, de qualquer valor seja ele Deus, Homem, Razo, Sujeito, Conscincia...
Inocncia que a Arte (aqui utilizamos maisculas para diferenciar o trabalho dos artistas do
daqueles que fazem algo parecido, mas que muito mais um esforo inteligente do que uma
aventura do pensamento) nos apresenta sem rodeios: o desver da poesia de Manoel de
Barros, so os mapas csmicos intensivos das Cartas celestes de Almeida Prado. Inocncia
que, apesar de ser a condio da filosofia, pode, no entanto, ser por ela refutada, amarrada no
fundo do oceano, afogada pelos universais e seus valores. Mas, no foram poucos os que
Mestrado em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil (2005). Doutorando em filosofia
UERJ.
ousaram (sim uma ousadia ser inocente, resistir tentao de criar e de se apresentar diante
de algum tribunal) manter aberto o campo de experimentaes, que entenderam os conceitos
como sendo criaes a envolverem o risco da liberdade contra toda tentativa de
apaziguamento e de captura nas armadilhas das discusses inteligentes e bem conduzidas e
que, por isso, estabeleceram como tarefa da filosofia justamente a mais inocente de todas as
destruies, a do platonismo (Deleuze, 2000: 271).
Em nossa tentativa de prolongar essa reverso, encontramos a filosofia de Gilbert
Simondon, filosofia que ao renovar o problema da individuao rejeitando a categoria de
substncia e o papel a ela subordinado que a relao apresenta, parece abrir o pensamento
para novas aventuras. Simondon comea seu L'individuation criticando tanto o atomismo
quanto o hylemorfismo os quais, mesmo apontando diferentes concepes de constituio do
indivduo, guardam em comum o fato de pressuporem um princpio de individuao que nada
mais do que um espelhamento dos indivduos estabelecidos, isso porque a partir do
indivduo constitudo e dado, nos esforamos para remontar s condies de sua existncia
sendo que o indivduo enquanto indivduo que a realidade interessante, a realidade a ser
explicada. (Simondon, 2005: 23). Tudo isso faz com que o processo, a operao de
individuao no tenha importncia, sendo suficiente estabelecer uma sucesso temporal que
comea em um princpio (que nada mais do que um fundamento fundado sobre seu
resultado), passa por uma operao e, finalmente, atinge a nica realidade interessante, qual
seja: o indivduo. O processo pode ser negligenciado, uma vez que nada dele sobra no
indivduo substancial, verdadeiro suporte de relaes que finaliza inteiramente a operao,
estamos diante do privilgio ontolgico do individuado.
Para que a individuao se torne efetivamente problemtica preciso no entender o
processo pelo seu resultado numa gnese a reboque, mas compreender o indivduo como
realidade relativa, parcial, inseparvel do processo de sua produo e no sendo o nico efeito
desta. O que guia Simondon uma inverso: em vez de compreender a individuao a partir
do ser individuado, preciso compreender o ser individuado a partir da individuao, e a
individuao, a partir do ser pr-individual, repartido segundo muitas ordens de grandeza
(Simondon, 2005: 31-32), necessrio, ento, recolocar o processo: pensar a relao como
produtora dos termos e no como efeito de indivduos estabilizados que j so uma realidade
esfriada, um caso de resoluo em vias de esgotamento de possibilidades, afinal a
substncia um caso extremo da relao, o da inconsistncia da relao (Simondon, 2005:
321). Alm disso, mesmo esses indivduos no seriam absolutamente separados do campo
Todo cuidado deve, portanto, ser tomado para no confundirmos as singularidades com
indivduos, aquelas correspondem relao diferencial aos gradientes s vizinhanas
2
Este termo tomado de emprstimo teoria psico-fisiolgica da percepo. H disparao quando
dois conjuntos semelhantes, no totalmente superponveis, tais como a imagem retineana esquerda e a direita so
apreendidas como um sistema, permitindo a formao de um conjunto nico de grau superior que integra todos
os elementos graas a uma dimenso nova (por exemplo, no caso da viso, a disposio dos planos em
profundidade (Simondon,2005: 205)
mesmo sob uma temperatura abaixo do ponto de congelamento, nesse caso a menor
impureza tendo uma estrutura isomorfa do gelo faz o papel de um germe de cristalizao e
suficiente para fazer a gua virar gelo (Combes, 1999: 11). Este exemplo se utiliza de
elementos j formados (e por a notamos que o indivduo no se separa das singularidades
pr-individuais que se efetuaram para sua produo, isto , como ele no o produto
exclusivo e acabado do processo de individuao, mas elemento precrio aberto a novas
possibilidades a serem criadas), mas Simondon remete a metaestabilidade condio do prindividual e suas singularidades, de modo que compreendemos porque possvel defini-lo
como mais que unidade e mais que identidade sem por isso ser dividido em partes: o ser
original no estvel, metaestvel; ele no um, capaz de expanso a partir de si mesmo
[] ele contido, tensionado, superposto a si mesmo. O ser no se reduz ao que ele ;
acumulado em si mesmo, potencializado (Simondon , 2005: 284). O devir, portanto, no
um quadro no qual o ser entra, mas o prprio ser devir.
A expanso do ser pr-individual a partir de si mesmo se d quando as realidades
disparatadas, singularidades discretas entram em ressonncia, em comunicao interativa,
esse momento significa a apario de dimenses e estruturas no sistema metaestvel, o ser
pr-individual sem fases se torna polifsico. nesse momento que o processo de individuao
comea e que Simondon entende como sendo uma operao de transduo j que a
transduo apario correlativa de dimenses e de estruturas em um ser em estado de tenso
pr-individual (Simondon, 2005: 33). O modelo para entendermos a operao o da
individuao do cristal, se propagando a partir do encontro entre um germe estruturante capaz
de informar e um meio amorfo energeticamente favorvel (rico em energia e pobre em
estrutura), encontro que propaga suas resolues sempre pelas bordas estruturadas, tornadas
capazes de semear as diferentes dimenses que cercam o centro estruturante3.
importante, entretanto, ressaltar, que os termos finais da operao so efeitos das
condies do encontro e que esse encontro no determinvel pela sua possibilidade de
reproduo, no um simples processo de realizao de uma generalidade, a compatibilidade
germe-meio no se d como encaixe de peas de um quebra-cabea, mas a condio
especial, concreta, a praesenti, de um evento cristal. O indivduo fsico, por exemplo, um
modo de resoluo particular de uma problemtica pr-fsica, sendo que esta se mantm viva
e atuante (meio associado inseparvel do indivduo), incompatibilizando o indivduo consigo
3
Conforme bem observa Didier Debaise: o germe, modo de individuao estrutural, a singularidade, a
estrutura o sistema em equilbrio metaestvel (2002)
mesmo e exigindo novos processos de resoluo, por isso que o indivduo no se define
como identidade, mas como um regime de ressonncia interna aberto a novas informaes.
So todos esses elementos que nos levam a concluir que a transduo o prprio ser se
fazendo e que o ser esse se fazer, a relao , portanto constitutiva da existncia e deve ser
objeto de uma ontologia especfica, de uma ontognese.
Assim, a distino dos diferentes indivduos deve abandonar os quadros classificatrios
baseados em gneros e espcies para se voltar para a apreenso do tipo de transduo que
produz um modo de ser. Isto quer dizer que Simondon generaliza a operao de transduo a
todos os regimes de individuao: fsico, biolgico, psquico e coletivo. Cada um desses
domnios apresenta um nvel prprio de complexidade conforme as sucessivas defasagens do
pr-individual, por exemplo: uma individuao rpida e iterativa produz uma realidade
fsica; uma individuao lenta, progressivamente organizada produz o vivo (Simondon,
2005: 324). Ou seja, um indivduo fsico (modo de individuao mais simples e, por isso,
paradigmtico) seria uma resoluo brusca e unidirecional da carga pr-individual, j o vivo
se definiria como teatro de individuaes, resoluo constante entre diferentes ordens de
grandeza capaz de manter um regime energtico metaestvel (que sua prpria condio de
vida) nessa operao de mediao. J a individuao psquica ocorre quando o indivduo
biolgico mergulha em uma nova problemtica da realidade pr-individual, um novo retardo
se opera, o vivo preenchido por incompatibilidades, por dualidades internas, perceptivoativas e afetivo-emocionais que no se manifestavam num modo de individuao biolgica,
h, portanto, necessidade de uma nova operao, especificamente psquica4. Mas essa
problemtica psquica no se resolve intra-individualmente (essa tentativa de resoluo intra
individual abrir as portas ao tema da angstia em Simondon) ela transindividual e exige
resoluo coletiva. Nesse sentido, a coletividade baseada numa dimenso transindividual
difere da simples interindividualidade do social puro baseado nas diferentes estruturas e
funcionalidades dos indivduos, a individuao coletiva aponta para novas individuaes dos
indivduos, para uma efetiva possibilidade de desindividuao no catastrfica que passa pelo
transindividual comum.
Ao tratar, assim, duas questes clssicas em filosofia, a individuao e a relao, de
uma forma original, estabelecendo uma conexo intrnseca entre elas, afirmando que o ser
4
Como faz questo de ressaltar Muriel Combes, no se trata da produo de um indivduo psquico, mas
do desdobramento, no vivo, de um novo domnio problemtico que no poderia dar luz um novo indivduo,
mas sim a um novo domnio do ser (1999: 50)
relao,
quebrando,
enfim,
as
dicotomias
substncia-relao,
sujeito-objeto5
que
noo de progresso que alimenta mais um humanismo, agora sem o homem, mas com o
transindividual (um novo flego para o lamentvel intercultural?). Vejamos como Stengers
apresenta essas questes, tendo em vista que a motivao das crticas no a de elaborar um
comentrio inteligente, tipicamente acadmico, sobre a obra Simondon, mas de apontar os
limites que impedem a fecundidade de determinados conceitos e resistir s bnos que a se
produzem.
Vimos que a individuao do cristal se dava por uma compatibilizao entre um germe
estruturante e um meio amorfo metaestvel capaz de receber a informao do germe, posto
que rico em energia e pobre em estrutura. Essa compreenso, fundada num energetismo
tributrio da termodinmica, obrigada, a fim de poder generalizar o processo, a colocar a
funo da energia potencial como fruto de uma intuio cientfica, deixando na sombra todos
os impasses, toda co-inveno entre descrio e objeto descrito, todo construtivismo prprio
s cincias experimentais que procuram dar conta dos casos por meio de artifcios prprios
desses casos (No sabemos o que um eltron, s podemos descrev-lo do ponto de vista de
suas respostas aos dispositivos que o convocam) (Stengers, 2004). O caso em questo, o da
forma de energia potencial, vlido quando esto em jogo situaes especficas de equilbrio.
Assim, o que escapou a Simondon que o conjunto dos conceitos articulados no processo de
cristalizao se refere a uma situao verdadeiramente muito particular do ponto de vista de
uma filosofia da natureza (Stengers, 2002). Stengers repara ainda que o desenvolvimento do
germe, inseparvel do meio associado coloca, no entanto, um nico problema para o meio:
compatvel ou no compatvel. (2002).
preciso reduzir ao silencio tudo que esteja fora da perspectiva da efetuao da
cristalizao que apresenta, ento, como nico vetor interessante, o ser em formao, o centro
ativo a se propagar (voltamos, pela contramo, ao privilgio ontolgico do individuado?).
Conforme nota Debaise, o meio se torna simples espao de propagao, suscetvel de fazer
crescer ou de impedir a individuao, mas, em nenhum caso um lugar de encontro que pode
redefinir profundamente a individuao em curso. (2002). O incmodo destas condies se
deve ao fato que a individuao se torna adeso, assimilao, compatibilidade, nunca
inovao fruto de estratgias, negociaes, apostas, riscos, evoluo a-paralela, npcias
contra-natureza6.
6
Os devires no so fenmenos de imitao, nem de assimilao, mas de dupla captura, de evoluo
no paralela, npcias entre dois reinos. As npcias so sempre contra a natureza (Deleuze e Parnet, 1998: 10).
Stengers faz esse movimento interessante de mobilizar a resistncia a Simondon por meio de conceitos vindos
daquele que talvez tenha propiciado a curiosidade sobre a obra deste, mas que, pela voz do professor Challenger,
rejeitou a generalizao do conceito de transduo para todos os domnios.
reconquistar alguma inocncia e alimentar a arte de viver como criao de novos possveis e
no como reproduo dos possveis demasiados humanos a alimentar meios (so terrveis as
bnos que isso apresenta).
Num primeiro modo o pr-individual completamente relacional e leva em conta a
possibilidade somente quando ela surge por conta de agenciamentos inesperados colocando
em questo toda e qualquer identidade prvia7 a unificar dispositivos, toda e qualquer gnese
a pensar em termos de progresso; exigindo que se trace um mapa de cada caso, pois
individuar no consiste, ento, em estabelecer compatibilidades, mas em forar passagem,
apostar, traduzir, capturar, em hesitar. A generalizao bloqueada de sada, cada situao,
um problema (dupla singularizao: este problema, esta ferramenta conceitual), pois no h
independncia da relao a respeito do caminho que ela toma8. Aqui toda definio do
'indivduo' relativa estabilidade do agenciamento processual que lhe corresponde; o prindividual rizosfera9.
Num outro modo o pr-individual funciona como reservatrio de possveis
(estratificado?), como fundo latente, matriz qual retornamos a fim de, a partir dela,
desenharmos as configuraes que regem as relaes (fala-se de pr-individual em si!). O
caminho para ajustar os encontros conform-los a uma possibilidade determinada de
individuao est, mesmo que levando em conta processos, estabelecido. Excessivamente
preso aos estratos, mas erigido como princpio abstrato (quando, justamente, sua abstrao
insuficiente) nenhum passo falta para se tornar generalizvel, enquadrando desvios,
interiorizando a relao, transformando a potncia em possibilidade10.
Essas diferentes concepes nos parecem prximas da especificidade dos modos de
jogar que Deleuze e Guattari reparam quando comparam o xadrez com o go. No xadrez temos
um plano relacional recortado por possibilidades que correspondem aos cdigos inerentes s
7
Por mais que Simondon tenha afirmado a autonomia da relao o fato que generalizando o processo
de cristalizao o indivduo leva consigo seus modos relacionais, num prolongamento, numa individuao em
que o essencial est no centro ativo, no germe que se desdobra e nas lgicas que permitem esse desdobrar
(Debaise, 2002). O contrrio de um agenciamento que sempre heterogneo e irredutvel figura da gua-me
de um cristal semeando um meio: h um devir-vespa da orqudea, um devir-orqudea da vespa, uma dupla
captura [...] Como diz Rmy Chauvin, uma evoluo a-paralela de dois seres que no tm absolutamente nada a
ver um com o outro (Deleuze e Parnet, 1998: 10)
8
Novamente convocamos o professor Challenger de Mil plats quando j desarticulado, mergulhado nos
lquidos que corroem os estratos e sua composio biunvoca., sussurra: por debandada que as coisas
progridem e os signos proliferam. O pnico a criao (Deleuze e Guattari, 1995: 91).
9
Remetemos ao conceito de rizoma que ocupa a introduo de Mil plats, levando especialmente em
conta a noo de que O rizoma uma anti-genealogia (Deleuze e Guattari, 1995: 20).
10
No sintomtica a utilizao do potencial na explicao da desindividuao psico-social? Nesta
desindividuao, o potencial no individuado contido em cada um deles (indivduos) se libera, se revelando
disponvel para uma individuao posterior (Combes, 1999: 66).
peas, cada uma com sua identidade e movimentos caractersticos, a, portanto, a relao
fruto de funes estruturais e so as codificaes e descodificaes que determinam o
progresso das conquistas. No go no h natureza das peas, estas so algo que s se
constitui em situao, no tm, portanto, funes estruturantes, so contagiantes, sua posio
no territrio propicia a aventura de uma desterritorializao: (desterritorializar o inimigo
atravs da ruptura interna do territrio dele, desterritorializar-se renunciando, indo a outra
parte...). Uma outra justia, um outro movimento, um outro espao-tempo (Deleuze e
Guattari, 1997: 14).
Um pr-individual, o segundo, marcado por possibilidades (reconhecimento,
comunicao), pelo progresso (compatibilizao) e pela inveno (semeando a carncia do
meio), tendo como destino a ontognese. Enquanto no outro, a marca a potncia
(estranhamento, traduo11), a aventura (coadaptao) e a inovao (criao), nele pululam
agenciamentos, capturas, npcias contra a natureza.
Nosso incmodo com a ontognese e a compreenso do pr-individual que ela
necessariamente postula , portanto, inerente prpria noo de gnese, pois toda gnese a
reboque, ou seja, no suficientemente abstrata (no desv), coloca um princpio, por mais
tnue que possa parecer, ao que aventura inocente, impe uma moral compatibilizadora ao
que experimentao, ao que Debaise chamou de pragmatismo das potncias12. Entendemos,
ento, como pode ser assustadora e reativadora de universais a ideia de transindividual
quando ela se aproxima de uma concepo demasiado humana (alimento de possveis, de
esperanas no mesmo).
Podemos multiplicar as justificativas, falar de um humanismo construdo sobre a runa
da antropologia e sobre a renncia ideia de uma natureza ou essncia humana (Combes,
1999: 84), podemos assinalar um progresso indivduo por indivduo e deslocar de um sentido
essencialista a referncia a uma humanidade ainda no acabada, nosso lema continuar a
abenoar o possvel, o progresso e o reconhecido: Quanto potencial tem um homem para ir
mais longe? Ou ainda, o que pode um homem desde que ele no est s (Combes, 1999: 85).
Um universal, mesmo desnaturado e reavivado por um potencial, continua a ser fator de
11
Num texto pleno de m vontade Brian Massumi (ver bibliografia) aponta as estratgias e a gagueira que
insistem na traduo. nesse sentido que usamos esse termo aqui.
12
Em seu texto intitulado Un pragmatisme des puissances, Debaise nota a necessidade de
experimentarmos o agenciameno em vez de interpretarmos as possibilidades de compatibilizao: o postulado
inicial sendo que ns no sabemos o que pode surgir do encontro de duas potncias, podemos somente
experimentar, nos engajando no interior das linhas produzidas por estes encontros (Debaise, 2005). Grande
risco a conjugar inocncia com liberdade.
13
algum
sintoma
de
piedade
humanista
o
fato
da
verso
http://www.youtube.com/watch?v=bJcqk3PcOlg, ter invertido o sentido da ltima fala do vdeo?
espanhola,
Bibliografia
DEBAISE, Didier. Les conditions dune pense de la relation. In: P. Chabot (ed.)
Simondon.
Paris:
Vrin,
2002.
Disponvel
em:
http://www.geco.site.ulb.ac.be/Voir-
DELEUZE, Gilles. Lgica do sentido. Trad. Luis Roberto Salinas Fortes. So Paulo:
Perspectiva, 2000.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI. Mil plats. Trad. Ana Lucia de Oliveira (coord.). Rio de
Janeiro: Ed 34, 1995 (v.1), 1997 (v.5).
DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Dilogos. Trad. Elosa Arajo Ribeiro. So Paulo:
Escuta, 1998.
GODARD,
Jean-Luc.
Je
vous
salue
Sarajevo.
Vdeo
disponvel
em:
MASSUMI, Brian. Sur le droit la non-communication des differences. In: Ethnopsy, les
mondes
contemporaines
de
la
gurison
de
abril
de
2002.
Disponvel
em:
http://www.brianmassumi.com/textes/Droit%20a%20la%20non-communication.pdf. ltimo
acesso em 22 de fevereiro de 2010.
STENGERS, Isabelle. Pour une mise laventure de la transduction. In: P. Chabot (ed.)
Simondon. Paris: Vrin, 2002. Disponvel em: http://www.geco.site.ulb.ac.be/Voir-details/51Pour-une-mise-a-l-aventure-de-la-transduction.html. ltimo acesso em 22 de fevereiro de
2010.
http://multitudes.samizdat.net/Resister-a-
Filosofia Hoje
Izabela Aquino Bocayuva1
Resumo: A experincia filosfica do pensamento sui generis. No til para o mero
viver prtico, mas conduz o homem para a sua possibilidade de realizao mais prpria e
elevada. Para a grande maioria isso que aqui denominamos "possibilidade de realizao
humana mais prpria" absolutamente inessencial, entretanto, o julgamento da grande
maioria estar sempre margem da filosofia que sempre foi, e ser uma atividade rara e
difcil.
Palavras-chave: a questo da origem, felicidade, angstia
Doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil(1999). Professor Adjunto da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro , Brasil
Filosofia Hoje
outro. que sua produo no do tipo que possa servir para resolver os problemas prticos
que possam se apresentar, e como normalmente apenas se d valor para o que vemos ter e
proporcionar solues concretas, a figura do filsofo fica descartada como a de algum intil.
Esse julgamento no sem razo. Realmente a filosofia no serve nem para bater um prego,
como diz o filsofo brasileiro Emmanuel Carneiro Leo. Entretanto, no termina a toda a
possibilidade de julgamentos acerca da filosofia. que pode haver e h mais do que a
existncia pragmtica: a existncia voltada exclusivamente para as coisas concretas e suas
caractersticas.
Outra situao que contribui para o menosprezo quanto atitude filosfica est em
que uma pessoa no precisa da filosofia para viver. Quero dizer que algum pode muito bem
nascer, crescer e morrer sem nunca se fazer realmente um questionamento filosfico e nem
por isso viver mal. Alis, pode viver at mesmo bem confortavelmente assim e nada
imediatamente mais sedutor do que o conforto. Na grande maioria das vezes isso que
acontece, tanto hoje, quanto ontem, e sempre. O homem tem a tendncia de se acomodar
numa vida meramente pragmtica onde ele j encontra respostas para seus problemas ou as
procura objetivamente, vivendo uma vida sem mistrios, sem surpresas. Mas, se por um lado
pode-se viver sem filosofar, por outro lado, algum que seja tocado pela filosofia sofre
necessariamente uma alterao radical em sua existncia, o que o conduz a uma experincia
de sabedoria que o homem meramente pragmtico jamais ter (e que ele nem quer ter mesmo,
sobretudo por causa de medo).
No que consistiria uma tal sabedoria filosfica? Isso o procuraremos deixar claro a
partir de agora. Primeiro, comparemos as duas atitudes, a filosfica (que tambm vive uma
existncia pragmtica) e a exclusivamente pragmtica diante de uma questo fundamental e
exemplar para a filosofia: o problema da origem. importante assinalar que o modo como
trataremos essa questo neste momento ser meramente figurativo, ilustrativo, j que a
filosofia sempre a considera de um modo abrangente e no restrito e pessoal como o
faremos agora por convenincia.
Imaginemos que estamos vivendo nossas vidas normalmente e somos interrogados de
repente ou por algum ou por ns mesmos sobre a nossa origem. ou no verdade que a
resposta que parece de imediato satisfatria a qualquer um para esta pergunta inclui tanto seus
prprios pais, conhecidos ou no, quanto o dia, o lugar e at a hora de seu nascimento? Mas,
se esta resposta mostra-se satisfatria na maioria das vezes, no assim que acontece para
aquele que tem esprito filosfico. Para ele, esse tipo de resposta no responde questo, que
continua ressoando: qual a minha origem? Que meu pai seja quem e minha me quem ,
isso no faz de mim quem eu sou. Quem sou? Donde vem que eu seja quem sou? E ele acaba
se rendendo a uma resposta que no esgota a questo e que a seguinte: No sei, no tenho
como saber qual a minha origem (assim como no sei para onde vou). O desconhecimento
de minha origem vai alm de qualquer data de nascimento. Na verdade, no sei nunca como
venho a ser quem sou...
Se qualquer um se colocar essa questo nesse nvel, chegar a esse mesmo ponto: no
sei... Existe um filsofo chamado Sartre que diz que isso se d porque a origem de todo e
qualquer ser humano o nada. Da no podermos determinar nosso comeo, que no nada
de determinado. Ou seja, esse nada no algo negativo, embora inicialmente estejamos
acostumados a compreender a expresso nada negativamente. Que ns venhamos do nada
significa que no somos essencialmente fixos como o so as coisas. Ao contrrio, nossa
essncia est em nossa existncia extremamente diferenciada. Somos inteiramente diferentes
uns dos outros e quanto a cada um de ns, diferenciamo-nos sempre de ns mesmos,
mudamos, nos transformamos fisica- e intelectualmente. vivncia desta situao chama o
pr-socrtico Herclito, em seu fragmento 119, de vivncia do extraordinrio, pois: A
morada do homem o extraordinrio. Ou seja, ali onde o homem vem realmente a ser ele
mesmo para alm do ordinrio. Todo ser humano assim, embora, na maioria das vezes
atue exclusivamente na dimenso tangvel do cotidiano imediato. Quer dizer que todos
podemos acordar para o extraordinrio, ainda que raramente isso acontea.
A situao original (extraordinria) de todos ns costuma ser rejeitada pelo homem
comum, o homem exclusivamente pragmtico. Deparar-se algum de frente com ela algo
que angustia. Costuma-se por isso, fugir freqentemente dessa angstia medida que nos
ocupamos de diversas formas: seja como estudantes, como professores, como engenheiros,
como pais, como filhos, como namorados, como bancrios. Em nossas ocupaes cotidianas,
aparentemente sabemos muito bem, sem dvida alguma, o que somos e porque somos isso
que somos. Sobre esse tipo de atitude frente realidade nos fala novamente Herclito, agora
em seu fragmento 34 que diz: Sem compreenso: ouvindo parecem surdos, o dito lhes atesta:
presentes, esto ausentes. O homem exclusivamente pragmtico algum que pode sempre a
qualquer momento acordar desta situao: ele escuta continuamente a msica do
extraordinrio, ainda que permanea surdo a ela. Ele quem est sempre presente
experincia do extraordinrio, embora esteja como que dormindo para ela.
Filosofia Hoje
O filsofo , entretanto, um tipo, fora do comum, que encara de frente aquela angstia
original, extraindo dela o que ela tem de positivo: por sermos propriamente nada que
podemos ser criativos e livres. O filsofo se mantm junto quela angstia sobretudo por ter
compreendido de um modo todo especial a relao do homem com a felicidade. Esse modo
especial faz dele o nico que pode ser chamado feliz e exatamente porque descobriu,
paradoxalmente, que o homem nunca pode chegar a ser feliz. Parece uma imensa
contradio. Mostraremos que no o .
O homem, em sua experincia ocidental, se v como incompleto: um ser que tem
conscincia de que incessantemente gerir sua existncia. Isso faz dele um ser insatisfeito que
em todos os tempos sempre criou a fantasia da satisfao, qual costumou chamar
felicidade. Hoje, os veculos de consumo propagandeiam e prometem essa felicidade das
mais diversas formas e fazem acreditar que chegar um momento to absolutamente pleno
que, na posse de algo ou de alguma situao como por exemplo a aposentadoria, ou um carro,
ou uma fortuna, haver o inteiro xtase, sem mais haver a necessidade de que se faa coisa
alguma. O interessante, que esse momento pleno apenas uma fantasia. Nunca que pode
chegar esse tipo de plenitude total para o homem, pois, cada um tem de sempre estar
construindo cada momento de sua existncia at o fim, isto , at sua prpria morte fsica.
Como o homem comum acredita que a felicidade implica em total plenitude que
significaria no ter de fazer mais nada, e isso , na verdade, s uma fantasia, ele sempre se
frustra ao atingir alguma meta que novamente o lana na gira. Insistindo na mesma
perspectiva, s lhe resta torna-se um constante infeliz. Sua insatisfao infeliz. Ora, mas
haveria uma insatisfao feliz? Vejamos.
S como exemplo, tomemos um escultor. Cada escultura sua um fim que ele
alcana, mas no o fim. Ele escultor justamente por no se satisfazer com uma s
escultura, mas por estar no exerccio da realizao de interminvel obra. Cada passo desta sua
obra uma alegria, ao mesmo tempo que afirmao da situao irremedivel de sua
insatisfao, pois para ele nunca cessa a necessidade de fazer mais uma outra escultura. Ser
artista exemplifica o filosofar. O filsofo tem plena conscincia da incompletude do homem,
o que lhe angustia, mas ele tem tambm plena conscincia de que isso mesmo que faz dele
um ser criativo e livre. assim, que o filsofo pode alcanar a felicidade, a alegria de cada
passo que d como sendo um passo de sua passagem construda por ele e a saborosa
circunstncia que lhe chega. Ele no est aguardando por um momento de descanso e por isso
no acredita naquele tipo de crena vulgar na felicidade. Deveramos dizer que,
Filosofia Hoje
Real muito mais que isso. Sim, ele emerge do que no alcanamos imediatamente e que
talvez no alcancemos nunca, ao mesmo tempo que, paradoxalmente, ele j sempre nos
alcanou, deixando que se concretize tudo o que vivemos, em cada todo ato e gesto. Isto
significa que sua marca, alm da intangibilidade a inesgotabilidade, acompanhada da
surpresa a qual preciso aprender a perceber no pelos sentidos, mas apenas pelo
pensamento. Segundo aquela primeira percepo de realidade, porm, acontea o que
acontecer de agradvel ou desagradvel, ela s faz entender esse acontecimento luz de
atitudes j registradas no mundo que j conhece, para assim permanecer acomodadasatisfeita s opinies que to s reproduz sobre as coisas do mundo e pronto, sem surpresas.
Dessa forma, no precisa pensar nada: no precisa decidir sobre nada, no precisa agir, correr
riscos.
Pode, entretanto, acontecer de algum incomodar-se por no se satisfazer mais com as
opinies ou repostas prontas j disponveis, no se satisfazer mais com suas atitudes. Uma tal
insatisfao o que pode ir preparando aquela ruptura capaz de libertar das correntes do
pescoo e das pernas. Diz a Alegoria que subitamente, sem explicao prvia, que um
prisioneiro, sendo tocado, d ateno ao toque e rompendo suas amarras, vira-se e olha para o
que ocorre atrs de suas costas. A luz do fogo que provocava as sombras no fundo da caverna
lhe ofusca e faz seus olhos doerem fortemente. Nesse momento ele tenta esquivar-se da
situao em que se encontra, tenta voltar atrs, pois o acontecimento por demais
desconfortvel, mas j no mais possvel, pois, no pode evitar o fato to forte de ter visto a
luz. quando o desconforto na existncia nos alcanou como um raio fulminante. Trata-se de
um desconforto, uma angstia, altamente positivos, porm, pois acordam, quem passa por
isso, para a criao (o parente mais prximo da surpresa), nica fonte da qual podemos colher
alegria sobre essa Terra que habitamos.
No poder mais aceitar meramente as opinies ou atitudes correntes vem de, de
repente, j se estar vendo ou vivendo de outro modo ainda que este modo no seja de fcil
acolhimento no incio da metamorfose, pois muito difcil deixarmos o confortvel hbito
aparentemente feliz para nos lanarmos na vida, sem medo da no ventura. Exige coragem
aceitar-se a mudana como algo bem mais do que uma mera palavra vazia. Com efeito, o
processo de acolhimento da transformao, mais longo ou mais curto,
acontecer
inevitavelmente, medida que tudo o que, desse modo, se viver e sentir, o for a partir dessa
nova experincia de mudana. Na Alegoria isso significa: ver com mais nitidez, e tal maior
clareza far com que esse homem em questo goste mais de sua nova experincia com o
mundo e a considere melhor do que aquela que ele lembra-se de ter vivido anteriormente
quando estava preso. Alis, s agora ele pode saber que esteve preso. S agora ele pde fazer
a experincia de priso, a qual nunca mais lhe abandonar: ele sabe agora o quanto para
sempre preso, preso sua prpria liberdade de ver, de avaliar mesmo que seja em relao a
algo que no se tem escolha. J os prisioneiros da caverna se enganam medida que se
acreditam absolutamente livres na sua suficincia. Acham que ter liberdade poder escolher
entre coisas ou mesmo entre ruas a seguir. Da a fantasia to comum de que o dinheiro, por si,
traz a felicidade, pois ele amplia o leque das escolhas.
Na Alegoria, aquele que v com mais nitidez e que vem se tornando cada vez mais
sagaz, vai se aproximando da sada da caverna at que ele finalmente sai da, no sem antes
cumprir um ritual de adaptao olhando primeiro para a luz da lua refletida na gua, depois
para a luz da lua, depois para a luz do sol refletida na gua, depois para o prprio sol. Esse
seria o ponto mximo de sabedoria a atingir por aquele que antes, alegoricamente, mesmo
tendo viso, enxergava mal no interior de uma caverna, ou seja, que mesmo tendo condies
de aprender a aprender o mundo em sua dinmica inesgotvel tal como o sol abunda em
iluminar tudo , e com todas as suas surpresas, apenas aprendia a reproduzir o que lhe era
passado como sendo o mundo.
A metfora do sol est no lugar da compreenso da idia do Bem, possvel apenas para
os filsofos, da qual nos falara Scrates na prpria Repblica num captulo anterior ao da
Alegoria. Nossa interpretao da comparao entre o Sol e o Bem a seguinte: para o mundo
natural, o sol a sua condio de possibilidade, mas de tal modo que ele mesmo no arbitra
sobre nada daquilo que ele possibilita. Cada coisa nasce e morre sem que o sol tenha
escolhido isso. O sol acolhe a existncia de tudo o que ele possibilita. Da mesma forma o
Bem, mas em relao ao mundo inteligvel, ao mundo do pensamento. Ele possibilita toda e
qualquer idia que h ou possa haver, mas no arbitra sobre nenhuma delas. O Bem acolhe
tudo o que acontecer. a disposio, a hxis desde a qual tudo pode acontecer. O filsofo,
como algum que compreende a idia do Bem, acolhe amistosamente toda a realidade, assim
como a vista alcana tudo o que est visvel luz do sol. muito difcil realizar algo assim,
pois normalmente ns estamos sempre fazendo juzos de valor sobre as coisas, gostando
particularmente de uma coisa e no gostando de outra. Para o filsofo, quando ele pensa a
realidade, no vale o seu gosto particular, mas a questo em jogo, a qual sempre a questo.
Na Alegoria ainda dito que aquele que trilha esse caminho de maior esclarecimento
retorna caverna para alertar para a possibilidade de um tal percurso, e fica, assim, sujeito a
sofrer, por parte dos que esto prisioneiros, as maiores agresses, a ponto de quererem peg-
Filosofia Hoje
lo e mat-lo (clara aluso ao que de fato aconteceu a Scrates, condenado a tomar cicuta pelos
cidados de Atenas). Seu medo da morte imenso! Pois para nascerem para o mundo da
criao preciso morrerem, ainda que simbolicamente, para o mundo que eles mesmos
reconhecem como mundo. O dito retorno caverna, porm, preciso ainda esclarecer, no
pode ser tomado literalmente. O processo de educao daquele que se solta das correntes, no
se realizou como que num deserto, donde ele voltaria s no fim de sua educao. A questo
que aquele que passa pela grande transformao do filosofar realiza realmente um processo
paralelo ao do comum dos homens, ao fim do qual ele chega incomodando aqueles que se
encontram prisioneiros da crena em seu prprio saber absoluto sobre a realidade concreta e
imediata. Falar em retorno caverna quer aludir ao caminho paralelo do filosofar que no
nenhuma loucura, mas incomoda porque mesmo falando de coisas aparentemente estranhas,
partilhado, ainda que por poucos.
Filosofar aprender a morrer simbolicamente, aprender a mergulhar no desconhecido,
na surpresa, suportar no saber, pois s quem no sabe pode aprender ainda. Em todas as
atividades humanas podemos encontrar filosofantes e no filosofantes, ou seja, podemos
encontrar essa atitude propriamente. Filosofar sobretudo realmente agir. Lembramos, com
isso, do fragmento de Herclito: No para se falar e agir dormindo. Mas, quem fala isso
um filsofo. Ele fala a partir se sua experincia, aquela que vem incomodar a quem pode
perfeitamente recusar-se a se dispor a experiment-la.
No cabe colocar a filosofia como uma vantagem em si ou muito menos como uma
obrigao para os homens. Ela apenas uma possibilidade e que, com todo direito, pode se
pensar como uma muitssimo nobre possibilidade de realizao humana, que sempre tem sido
importante para o andamento do mundo, mesmo que isso no seja visvel para olhos no
filosficos.
Bibliografia
Aristteles. tica a Nicmaco. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. So Paulo: Abril
Cultural, 1979.
Heidegger. Ser e Tempo. Trad. Mrcia S Cavalcante Schuback. Petrpolis: Vozes, 2006.
2 ed.
Plato. A Repblica. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Calouste Gulbenkian,
1983.
Sartre J-P. O Ser e o Nada. Trad. Paulo Perdigo. Petrpolis: Vozes, 2002.
Este artigo resulta de um projeto de pesquisa desenvolvido com bolsa do CNPq em 2002-2003.
Doutorado em Filosofia pelo Universitt Konstanz, Alemanha(2002). Professor Adjunto da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro , Brasil.
1
Cf. FLEW (1979): The term proposition with its more impersonal and logical flavour has completely
replaced the older less impersonal and more psychological judgement.
Entretanto, mais especificamente por uma terceira razo, que acredito no ter sido
ainda suficientemente examinada, que teorias do juzo praticamente desapareceram do debate
epistemolgico contemporneo. Essa razo diz respeito crtica ao voluntarismo doxstico.
Voluntarismo doxstico designa a tese segundo a qual seramos livres para deliberarmos
quanto escolha de crenas da mesma forma como deliberarmos quanto escolha pela
realizao de determinadas aes. O voluntarismo doxstico foi muito criticado nas ltimas
dcadas, sobretudo no contexto de um debate normalmente denominado como tica da
crena. O que est em questo nesse debate o problema sobre se, e em que medida,
teramos um controle voluntrio sobre nossas crenas. Nesse debate, autores como, por
exemplo, Ren Descartes, Blaise Pascal, William James, e William Clifford figuram entre os
principais defensores do voluntarismo doxstico. Descartes, por exemplo, sustenta que somos
livres para suspendermos o juzo em situaes nas quais no temos evidncias cogentes em
favor de uma dada proposio. Suponhamos, por exemplo, que, aps examinar detidamente
um problema, uma pessoa chegue concluso de que h tantas evidncias em favor de p
quanto em favor de no-p. Segundo Descartes, nessas circunstncias, deveramos suspender o
juzo de modo a evitar possibilidade do erro. O problema, no entanto, que, contra essa tese,
vrios autores alegam que em situaes de equilbrio epistmico (quando temos tantas
razes para p quanto para no-p) a suspenso do juzo no decorre de um processo de
deliberao e tomada de deciso. No porque devemos suspender o juzo que, de fato,
suspendemos o juzo, mas porque, nessas circunstncias, no temos nenhuma outra escolha
a no ser suspender o juzo.3 Na verdade, a prpria palavra escolha poderia parecer pouco
apropriada aqui, pois a suspenso do juzo parece simplesmente nos ocorrer. Em situaes de
equilbrio epistmico parece que o juzo suspenso independentemente de consideraes
sobre o que devemos ou no devemos fazer. S faria sentido falarmos em suspenso
voluntria do juzo se assumssemos que o juzo apenas um ato lingstico, i.e. a simples
afirmao de que algo o caso. Posso, por exemplo, afirmar Berlin capital do Brasil sem
me comprometer com a verdade dessa proposio. Mas quando filsofos como Descartes
falam em suspenso do juzo como condio para evitarmos o erro, claro que eles assumem
que a formulao de um juzo envolve tambm um comprometimento com a suposio de que
aquilo que afirmado no juzo de fato verdadeiro, i.e. que o juzo acompanhado de uma
crena.4
Outro autor que claramente assumiu a validade do voluntarismo doxstico foi Blaise
Pascal. Pascal oferece um argumento para acreditarmos na existncia de Deus que no
propriamente uma prova de que Deus existe, mas uma espcie de anlise dos riscos
envolvidos na crena de que Deus no existe. (Da este problema ser normalmente referido
em ingls como Pascals wager).5 O argumento de Pascal basicamente o seguinte: se
Deus existe, e se acreditamos que ele existe, ento temos uma crena verdadeira. Como
resultado de termos essa crena, podemos ento esperar algum tipo de recompensa divina. Se
Deus no existe, mas acreditamos que Deus existe, ento temos simplesmente uma crena
falsa. Por outro lado, se Deus existe, mas no acreditamos que Deus existe, i.e. se temos a
crena de que Deus no existe, ento no apenas temos uma crena falsa, mas como resultado
desta crena (a crena de que Deus no existe) corremos tambm o risco de sofrer algum tipo
punio divina. Por essa razo, Pascal sustenta que melhor acreditarmos em Deus do que
no acreditarmos, pois temos muito mais a perder acreditando que Deus no existe do que
acreditando que Deus de fato existe. A dificuldade, no entanto, que parece problemtico
recorrermos a uma teoria da deciso racional quando o que est em questo no a pergunta
sobre quais aes devemos realizar tendo-se em vista tais e tais riscos, mas sim quais crenas
devemos adotar em vista tais e tais conseqncias indesejveis.
Ainda assim, a despeito dos problemas que o a posio defendida por Pascal envolve,
o voluntarismo doxstico foi retomado e discutido no final do sculo XIX graas a influncia
de dois trabalhos bastante conhecidos: um artigo de William James (Will to believe, 1897);
e um artigo William Clifford (The ethics of belief, 1877). O ttulo do texto de Clifford
terminou, inclusive, por designar de modo genrico todo o debate contemporneo sobre se faz
ou no sentido sustentarmos que temos algum tipo de poder de escolha sobre nossas crenas.
As questes colocadas por James e por Clifford foram retomadas e criticadas cerca de
um sculo mais tarde, nas dcadas de setenta e oitenta, por diversos autores, sobretudo em
funo de um artigo bastante influente de Bernard Williams, publicado em 1973. Vrios
autores procuraram mostrar, em consonncia com Bernard Williams, que no podemos
escolher as nossas crenas da mesma forma como podemos deliberar com relao a aes.
Para esses autores, portanto, o voluntarismo doxstico uma posio insustentvel. O
CARTER (2000); WEIDEMANN (1999); DAVIS (1991); RESCHER (1985); BROWN (1984).
Mas, se isso assim, poderamos ento nos perguntar por que adotamos algumas
estratgias epistmicas em detrimentos de outras estratgias na construo do nosso
conhecimento. Com efeito, ainda que assumamos que temos um poder indireto de deliberao
sobre nossas crenas, na medida em que somos livres para adotar essa ou aquela estratgia
epistmica, nossa escolha, nesse caso, supondo-se que se trata de uma escolha racional, deve
se apoiar em crenas que no poderiam ser elas prprias o resultado de uma deciso.
CLARKE (1986).
SOSA (1991, p. 225) define epistemic virtue nos seguintes termos: a quality bound to help maximize ones
surplus of truth over error.
8
ZAGZEBSKI (2000, p. 173): A justified belief, the counterpart of a right act, is what an intellectually
virtuous person might believe in like circumstances.
Minha hiptese que, para evitarmos esse tipo de problema, sem, no entanto,
abrirmos mo da concepo de conhecimento como algo pelo qual somos responsveis,
deveramos examinar o conceito de virtudes epistmicas em consonncia com uma
investigao sobre o que est realmente em questo no processo de formao de nossas
crenas. Um modo de fazermos isso, a meu ver, consistiria em retomarmos o exame do
problema do juzo. Alguns autores, mesmo sem terem diretamente em mente o exame de
questes epistemolgicas, tm procurado mostrar que por fora de nossa faculdade de
julgar que podemos ser considerados responsveis pelas crenas que temos. John McDowell,
por exemplo, afirma o seguinte:
And judging, making up our minds what to think, is something for
which we are, in principle, responsible something we freely do, as
opposed to something that merely happens in our lives. Of course, a
belief is not always, or even typically, a result of our exercising this
freedom to decide what to think. But even when a belief is not freely
adopted, it is an actualization of the capacities of a kind, the
conceptual, whose paradigmatic mode of actualization is in the
exercise of freedom that judging is. (MCDOWELL, 1998, p. 434).9
Ver tambm MCDOWELL (2000, p. 11): Judging is making up ones mind about how things are, as forming
an intention is making up ones mind about what to do. Judging is like forming an intention in being an exercise
of responsible freedom.
por Descartes ou Pascal. O proferimento de juzos cognitivos, assim, poderia ser considerado
um tipo de atividade que realizamos por influncia de certas disposies a que poderamos
nos referir como virtudes intelectuais.
Bibliografia
ALSTON, W. P.: Virtue and knowledge. In: Philosophy and Phenomenological
Research, vol. 60, 2000, p. 185-189.
AMMERMAN, Robert R.: Ethics and belief. In: The Aristotelian Society Proceedings,
vol. 65, 1964/1965, p. 257-266.
AUDI, R.: Doxastic voluntarism and the ethics of belief. In: Facta Philosophica, vol. 1,
1999, p. 87-109.
AXTELL, Guy (org.): Knowledge, Belief, and Character: Readings in Virtue
Epistemology, Londres, Rowman & Littlefield, 2000.
BELL, David: Freges Theory of Judgement, Clarendon Press, Oxford, 1979.
BENNET, J.: Why is belief involuntary?. In: Analysis, vol. 50, 1990, p. 87-107.
BERNSTEIN, Mark: Moral and epistemic saints. In: Metaphilosophy, vol. 17, 1986, p. 102-8.
CARTER, Alan: On Pascals wager, or why all bets are off. In: The Philosophical
Quarterly, vol. 50, 2000, p. 22-27.
CLARKE, M.: Doxastic voluntarism and forced belief. In: Philosophical Studies, vol.
50, 1986, p. 39-51.
CLASSEN, H.: Will, belief and knowledge. In: Dialogue, vol. 18, 1979, p. 64-72.
CLIFFORD, W.: The ethics of belief [1877]. In: Lectures and Essays, Obscure
Press, 2006, p. 163-205
CODE, L.: Fathers and sons: a case study in epistemic responsibility. In: The Monist,
vol. 66, 1983, 268-82.
CODE, L.: Epistemic Responsibility, Hanover, University Press of New England, 1987.
CODE, L.: Toward a responsibilist epistemology.
Phenomenological Research, vol. 55, 1984, p. 29-50.
In:
Philosophy
and
CURLEY, E. M.: Descartes, Spinoza and the ethics of belief. In: M. Mandelbaum / E.
Freeman (org.), Spinoza: Essays in Interpretation, Illnois, Open Court, 1975, p. 159-189.
DAVIS, Stephen: Pascal on self-caused belief. In: Religious Studies, vol. 27, 1991, p.
27-37.
FELDMAN, Richard: Subjective and objective justification in ethics and epistemology.
In: The Monist, vol. 68, 1985, p. 407-19.
FLEW, A.: Proposition. In: A Dictionary of Philosophy, Londres, Pan Books, 1984.
GALE, Richard: William James and the ethics of belief. In: American Philosophical
Quarterly, vol. 17, 1980, 1-24.
GEACH, P. T.: Mental Acts: Their Content and Their Objects, Londres, Routledge Kegan
Paul, 1967.
GETTIER, E.: Is justified true belief knowledge?. In: Analysis, vol. 23, 1963, p. 121-23.
GRECO, J.: Internalism and epistemically responsible belief. In: Synthese, vol. 85,
1990, p. 245-77.
GRECO, J.: Virtue epistemology. In: J. Dancy / E. Sosa (org.) A Companion to
Epistemology, Oxford, Blackwell, 1992.
GRECO, J.: Virtues and vices of virtue epistemology. In: Canadian Journal of
Philosophy, vol. 23 , 1993, p. 413-32.
GRECO, J. Two kinds of intellectual virtues. In: Philosophy and Phenomenological
Research, vol. 60, 2000, p. 179-184.
GRECO, J.: Virtue epistemology and the relevant sense of relevant possibility. In:
Southern Journal of Philosophy, vol. 32, 1994, p. 61-77.
HEIL, J.: Believing what one ought. In: The Journal of Philosophy, vol. 80, 1983, p.
752-765.
HEIL, J.: Doxastic agency. In: Philosophical Studies, vol. 43, 1983, p. 355-364.
HOOKWAY, C.: Conscious belief and deliberation. In: The Aristotelian Society,
Supplement, vol. 55, 1981, p. 75-107.
HOOKWAY, Christopher: Mimicking foundationalism: on sentiment and self-control.
In: European Journal of Philosophy, 1993, vol. 1, p. 156-174.
evaluations.
In:
HOYLER, R.: Belief and will revisited. In: Dialogue, vol. 22, 1983, p. 273-290.
JAMES, William: Will to believe [1897]. In: Pragmatism and Other Essays, Nova
York, Washington Square Press, 1963, p. 193-213.
KORNBLITH, H.: Ever since Descartes. In: The Monist, vol. 68, 1985, p. 264-76.
KORNBLITH, H.: Justified belief and epistemically responsible action. In: The
Philosophical Review, vol. 98, 1983, p. 33-49.
KORNBLITH, H.: The epistemology of science and the epistemology of everyday life.
In: Facta Philosophica, vol. 1, 1999, p. 21-37.
KVANVIG, J.: The Intellectual Virtues and the Life of the Mind, Lanham, Rowman &
Littlefield, 1992.
LYCAN, William G.: Why we should care whether our beliefs are true. in Philosophy
and Phenomenological Research, vol. 51, 1991, p. 201-205.
MCARTHY, G. (org.): The Ethics of Belief Debate, Atlanta, Scholar Press, 1986.
MCDOWELL, J.: Having the world in view: Sellars, Kant, and intentionality. In: The
Journal of Philosophy, vol. 95, 1998, p. 431-492.
MCDOWELL, J.: Experiencing the world. In: John McDowell: Reason and Nature
(Lecture and Colloquium in Mnster 1999), Marcus Willaschek (org.), Mnster, Transaction
Publishers, 2000.
MEILAND, J.: What ought we to believe? Or the ethics of belief revisited. In: American
Philosophical Quarterly, vol. 17, 1980, p. 15-25.
MILL, J. S.: A System of Logic, Nova York, Harper & Brother, 1869.
MONTMARQUET, J.A.: Justification: ethical and epistemic. In: Metaphilosophy, vol.
18, 1987, p. 187-99.
MONTMARQUET, J.A.: Epistemic Virtue and Doxastic Responsibility, Lanham,
Rowman & Littlefield, 1993.
NATHAN, N.: On the ethics of belief. In: Ratio, vol. 5, 1999, p. 147-159.
NAYLOR, M.: Voluntary belief. In: Philosophy and Phenomenological Research, vol.
45, 1985, p. 427-437.
OWENS, David: Reason without Freedom: The Problem of Epistemic Normativity,
Routledge, Londres, 2000.
PETTIT, Philip / SMITH, Michael: Freedom in belief and desire. In: Journal of
Philosophy, vol. 93, 1996, p. 429-449.
PRICE, H. H.: The freedom of assent in Descartes and Hume. In: Belief, Londres,
George Allen & Unwin, 1969, p. 221-239.
RAZ, J.: When we are ourselves: the active and the passive. In: The Aristotelian Society,
1997, vol. 71, p. 211-27.
RESCHER, Nicholas: Pascals Wager: A Study of Practical Reasoning in Philosophical
Theology, Notre Dame, University of Notre Dame Press, 1985.
SOSA, E.: Intellectual virtue in perspective. In: Knowledge in Perspective: Selected Essays in
Epistemology, Cambridge, Cambridge University Press, 1991, p. 225-244.
SOSA, E.: The raft and the pyramid: coherence versus foundations in the theory of
knowledge. In: Studies in Epistemology, Midwest Studies in Philosophy, Notre Dame,
University of Notre Dame Press, vol. 5, 1980, p. 3-25.
SOSA, E.: The coherence of virtue and the virtue of coherence: justification in
epistemology. In: Synthese, vol. 64, 1985, p. 3-28.
SOSA, E.: Proper functionalism and virtue epistemology. In: Nus, vol. 27, 1993, p. 5165.
STEVENSON, J. T.: On doxastic responsibility, (org.) Keith Lehrer, Analysis and
Metaphysics, Dordrecht, Reidel, 1975, p. 229-52.
WILLIAMS, B.: Deciding to believe. In: The Problems of the Self, Cambridge,
Cambridge University Press, 1973, p. 136-151.
ZAGZEBSKI, L.: Virtues of the Mind: An Inquiry into the Nature of Virtue and the
Ethical Foundations of Knowledge, Cambridge, Cambridge University Press, 1996.
ZAGZEBSKI, L. What is knowledge?. In: GRECO, J. / SOSA, E. (org.), The Blackwell
Guide to Epistemology, Oxford, Blackwell, 1999, p. 92-116.
ZAGZEBSKI, L.: Virtue in ethics and epistemology. In: American Catholic
Philosophical Quarterly, vol. 71 1997, p. 1-17.
I. A Quadratura do Crculo
De crculos e quadrados: triangulando Ceclia Meireles, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira
Quadrado, pela sua forma, se d na construo do efmero: cada lado um valor finito e
previsvel pela medida, lados que no do as voltas interminveis do crculo, pois lados de um
Quadrado sempre terminam...
Hipcrates de Quios (sculo V a. C.) tentava quadrar linhas curvas, mas no teria
alcanado a to requerida composio da quadratura do crculo. Sua tentativa se configurou
somente como uma aproximao entre Crculo e Quadrado, mas no como uma equivalncia,
e, assim, no decorrer da histria da matemtica, tentou-se vrias vezes a faanha que acabou
provando-se impossvel.
Pretendemos neste ensaio refletir como de diferentes formas essa questo aparece em
peas literrias de trs de nossos maiores poetas: Ceclia Meireles, Carlos Drummond de
Andrade e Manuel Bandeira. Nossa inteno mostrar como a obra literria capaz de incitar
o pensamento filosfico e, para tanto, vamos recorrer s reflexes de Martin Heidegger e
Hannah Arendt. Este ensaio procurar refletir sobre o embate entre Crculo e o Quadrado.
Comecemos ento por Ceclia Meireles (1901-1964) com o poema Amm:
Hoje acabou-se-me a palavra
e nenhuma lgrima vem.
Ai, se a vida se me acabara
tambm!
Dentre algumas questes colocadas pela poeta poderamos elencar temas como: o
problema da linguagem, que aparece na 1 estrofe; o problema ambiental da profuso do
mundo imensa, mostrado na 2 estrofe; o problema metafsico dado pelo desentendimento
entre os seres humanos e os deuses, na 3 estrofe; o giro dos planetas como representantes de
uma natureza harmnica, apresentado na 4 estrofe. ]
A distncia um espaamento, a criao de um lugar, a distncia uma alterao nas
relaes entre os seres, que, variao posicional e no des-locar-se no espao, vo-se
modulando; distncia, vo se transformando; vo sendo, distncia. distncia calculada,
os entes vo sendo encontrados e desencontrados, somem-se na infinitude de possibilidades
posicionais, esvaem-se no desperdcio dos eixos, na paridade, na disparidade, na curvatura
cncava, na entrega do convexo, nos meridianos e paralelos... A distncia de um ser para o
outro a medida da sua existncia no desenho da profuso do mundo. O poema nos aponta
a dinmica da distncia, nos mostra as variaes imprecisas que se do sempre entre ns e os
outros, na verdade ns mesmos, como convenho expor. Esclareamos essa relao.
De crculos e quadrados: triangulando Ceclia Meireles, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira
Em primeira instncia, ns nos constitumos por uma queixa, representada pela voz
lrica no primeiro verso: Hoje acabou-se-me a palavra, isto , no hoje, num tempo
determinado pela repetio dos dias sempre hoje se d o esgotamento do discurso; hoje
se est dando o esgotamento do ser e de seu vigor no desperdcio da linguagem. Martin
Heidegger mostra que no esgotamento do discurso, isto , na dissoluo da linguagem, que
de modo inclume o ser se esgota, esvai-se:
Ora, se pelo esgotamento da palavra esgota-se tambm o vigor do ser, entendemos que
o problema apontado pela voz potica em Amm to instigante quanto o da tentativa de
conciliao entre o Crculo e o Quadrado.
Na impossibilidade de o Quadrado ser
Hannah Arendt, no prlogo de seu livro A condio humana, reflete sobre a curiosa
declarao de um reprter que cobria o lanamento do satlite Sputnik. Ele dizia que
finalmente estaramos livres, com aquele avano tecnolgico, para sempre de nossa priso na
terra.
Assim,tirado da Terra em 1957, o objeto marcou o primeiro episdio da corrida
espacial que culminaria na ida do homem lua em 1969. O satlite, feito de ferros e certos
De crculos e quadrados: triangulando Ceclia Meireles, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira
materiais fundidos pela fabricao, imitava agora o movimento de outros corpos celestes,
como a Lua, o Sol e as estrelas. Arendt diz que esse feito pode ser considerado uma das
maiores descobertas humanas, que ultrapassaria inclusive a desintegrao do tomo, uma vez
que a angustiada alegria do lanamento sinalizava que finalmente tnhamos logrado imitar a
natureza e os movimentos circulares dos planetas que se interpem a ns j h bilhes de
anos. Com isso, concretizvamos o desejo de no mais permanecer presos pra sempre aqui
No fim de 2009, todos vimos a concluso a que chegou a Nasa ao dizer que h muita
gua na lua, alm disso, todos sabemos sobre intenes mais avanadas do homem de enviar
tripulaes ao satlite e quem sabe futuras populaes. A lua, por essas pretenses, nos daria,
alm de poesia para namorados e mars para os mares, uma quantidade de produtos que
podem ser desenvolvidos na Terra a partir da tecnologia espacial: o teflon, o velcro, os
aparelhos de ginstica das academias, entre outras centenas de mercadorias vendidas em lojas
e supermercados (ISTO, 2007:82) Alm disso, China e Rssia, dos maiores responsveis
pelo fenmeno alarmante do aquecimento global dado pelo consumo excessivo de
combustveis fsseis e emisses de gases txicos na atmosfera, estariam dispostos a explorar
o solo lunar para dele extrair o hlio-3, elemento qumico que poderia produzir energia limpa
e livre de lixo radioativo.
H muito tempo estamos angustiados em sair da Terra. Vnus ento considerado
nosso planeta-gmeo, j foi cogitado como um lugar habitvel, por exemplo.
Diante de tanta aventura humana, para alm da curvatura da Terra, Hannah Arendt
pergunta-se:
De crculos e quadrados: triangulando Ceclia Meireles, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira
coloniza a Lua
civiliza a Lua
humaniza a Lua.
s para tever?
No-v que ele inventa
roupa insidervel de viver no Sol.
Pe o p e:
mas que chato o Sol, falso touro
espanhol domado.
(DRUMMOND,
De crculos e quadrados: triangulando Ceclia Meireles, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira
incongruncia entre o homem e os seus locais de habitao, todos, alis, circulares (so
planetas). Carlos Drummond de Andrade denuncia o af humano de novidade, de busca pelo
conhecimento. Poderamos dizer conhecimento descompromissado com o pensamento tal
como na perspectiva heideggeriana.
Os diferentes modos de habitar aliados ao pensamento e construo, to caros
s antigas sociedades ditas sustentveis, para quem a natureza era somente um mistrio, as
estrelas furos no firmamento, o Sol e a Lua, deuses, encontram-se perdidos na descrio feita
pelo poeta. A dita evoluo do homem ter-lhe-ia furtado o respeito por esses entes naturais?
O que podemos ver claramente o divrcio entre o pensamento e o conhecimento, j que as
viagens so como que condicionantes da existncia humana, como um empreendimento no
s datado das descobertas espaciais, mas extenso a todo o perodo de permanncia do homem
na terra .
. J que estamos falando, neste ensaio, sobre quadrados e crculos, percebemos em
muitas metforas do poema a presena das duas figuras geomtricas to incongruentes. Para
Drummond, o homem, assinalado como um ser natural, bicho da terra to pequeno, evadese de sua humanidade2, pois chateia-se na Terra.
Parece extremamente pondervel voltar os olhos para o sentido de chatear-se, que
no s se prende s noes de enfado a que a palavra faz aluso, como a um sentido locativo,
espacial, pois chatear tambm tornar chato, plano, reto, sem contornos e relevos.
Assim, o homem encontra-se chateado na Terra, lugar que, na viso de Drummond, se
tornou extremamente plano, pois de muita misria e pouca diverso. Aqui, poderamos
entender diverso como a dinmica da criatividade, da fora de criao que h na natureza,
a qual diverte, diversifica os seres vivos, tornando-os mltiplos, coloridos,
complementares, dspares. Drummond une, atravs da anttese, a muita misria da terra
pouca diverso, contrapondo muito a pouco, como podemos ver no poema de Ceclia:
A profuso do mundo, imensa,
tem tudo, tudo e nada tem.
De crculos e quadrados: triangulando Ceclia Meireles, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira
consigo e com Deus e ningum entende/ o que se est contando / e a quem. Esse
equipamento dever ser capaz de permitir ao homem pisar o prprio corao, j que, diz a
sabedoria popular, corao terra em que ningum pisa.
Para tanto, Drummond recomenda que o homem colonize, experimente, humanize o
prprio homem descobrindo em suas prprias inexploradas entranhas / a perene,
insuspeitada alegria/ de con-viver. Que ecolgica seria essa alegria de con-viver, pois
conviver o conluio ntimo com o outro, dado pela responsabilidade de os diferentes, os
diversos compartilharem os mesmos espaos, as mesmas distncias. E nessas distncias que
se d a dinmica do ser.
Continuemos pensando agora alguns versos do poema Amm nesta questo da
relao do homem consigo e com o outro, com a terra em que pisa, e com o cu sob o qual
anda. Que relao se paramenta quando, de fato, fugindo sua condio humana, sua forma
de aparecer no conjunto de tudo, o homem se esquece de que homem e cala o sentido das
palavras? Ora, no sabe expressar-se o homem, por isso, vai-se-lhe a vida, e indo-se a vida,
leva consigo a vida de tudo que est em funo dele mesmo.
A noo dualista do real, enganada pela aparncia, paramenta uma relao em que
fica de um lado o homem e do outro a Natureza, separados. Como entender essa separao?
o melhor caminho pensar o homem sem pensar sua referncia a tudo que o rodeia? Sendo o
homem um ser relacional, no se pode separar homem e natureza, bem como cu e terra,
linguagem e vigor da linguagem. Assim, depreendemos que o esgotamento do deixar-ser
isto da linguagem o esgotamento primeiro do ser. Da advm este problema insolvel a
Quadratura do Crculo emblema, aqui, de nosso estranhamento no mundo. Retornando ao
poema de Ceclia Meireles, lemos
A profuso do mundo, imensa,
tem tudo, tudo e nada tem.
Onde repousar a cabea?
No alm?
De crculos e quadrados: triangulando Ceclia Meireles, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira
e o mito so dobra de uma mesma instncia da realidade. E outro o Ocidente que Quadra o
Crculo, no qual a Retrica, a Sofstica, a Gramtica e at mesmo muito da Filosofia
fazem a constante e repetitiva afirmao da diferena, valendo-se da duplicao dicotomizada
de um esquema de crculos (medidos e quadratizados) e quadrados.
O que quero propor radical: o Quadrado uma iluso! No h. Foi construdo, mas
no se sustenta. A physis, ou Natureza, com rarssimas excees, preferiria o reto. Antes, todo
o tempo prope e faz nascer o redondo, o circular, o curvo, o espiralar e o oval como lies
para a alma humana (que tambm, a despeito do homem, assumiria sempre essas formas
ensinadas).
Os poetas conhecem a Natureza, ou seja, participam de sua obra, pois sabem que so
tambm natureza. Participam da vigncia da physis. Por isso, toda a vigncia de sua potica
est em retornar, circularmente, natureza, physis que os criou. Em A onda, Manuel
Bandeira mostra parte de seu convvio com o crculo:
A ONDA
a onda anda
aonde anda
a onda?
a onda ainda
ainda onda
ainda anda
aonde?
aonde?
a onda a onda.
o poeta procura anda e anda aonde, isto , se direciona, requerendo para si mesma
constante movimentao. Tal movimentao se d no tempo (ainda) e no espao (aonde)
cujos endereo e hora no podem ser encontrados nem medidos, pois dom da onda andar.
Est claro para ns que o poeta percebe isso, pois se pe somente disposto experincia de
escuta da onda. Percebe-se a onda tanto no seu som quanto no seu Crculo o poema
comeado por a onda e terminado (terminado?) por a onda. H tambm nessa revigorada
circularidade de onda, a repetio constante dos curvos oo e dos aa, alternados por toda a
pea de Manuel Bandeira. Estamos diante da escuta do giro natural, que no se pode medir
nem calcular. Sobre o giro, Bandeira recomenda uma questo: aonde?
Em A questo da tcnica, Heidegger coloca que a tcnica no igual essncia da
tcnica. Tal reflexo nos guiar na caminhada deste pensamento que privilegia o Crculo em
detrimento do Quadrado porque devemos nos perguntar o que a tcnica to perquerida pelo
homem de transformar o Crculo para ns sinnimo de inefvel e infinitamente proposto
em Quadrado.
Heidegger diz neste ensaio que a corrente concepo de tcnica a considera um meio
e uma atividade humana, a determinao instrumental, pois a ela pertence a produo e o
uso de ferramentas, aparelhos e mquinas, bem como pertencem estes produtos e utenslios
em si mesmos e as necessidades a que eles servem. (HEIDEGGER, M: 2002: 12).
Tal concepo, para o Autor, chega inclusive a tocar a tcnica moderna, cujo cerne
ainda atende noo de instrumento, de a tcnica ser um meio para um fim. E dessa noo
que, para o pensador alemo, cresce a necessidade cada vez mais urgente de domin-la. A
tcnica como meio. A tcnica visa um fim. Para o grego, o meio era o compasso, a rgua, o
esquadro. Mas para o Crculo houve um fim?
Questionando se a noo de tcnica est correta como sendo um meio para um fim,
o autor de Ser e Tempo admite que a concepo instrumental da tcnica tem tentado
colocar o homem num relacionamento direito com a tcnica, dando-lhe energia para
manusear os instrumentos como um meio. Chega, portanto, o pensador a se perguntar o que
seja o instrumental em si mesmo, a que pertence os domnios do meio e do fim, j que o meio
induz a um fim, e a causa a uma conseqncia. Pe-se ento, como factual a relao entre a
instrumentalidade que se diz ter a tcnica e a causalidade que a filosofia vem nos ensinando,
desde Aristteles como quatro causas dividas em:
Causa Material
De crculos e quadrados: triangulando Ceclia Meireles, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira
Causa Formal
Causa Final
Causa Eficiente
Nas quais, impera e mora a nossa viso das coisas.
Para Heidegger, a determinao da eficincia das coisas segundo as quatro causas,
mesmo que ensinada h sculos, permanece obscura. preciso question-la. E, no texto, se
questiona por que sobre a chamada Causa Eficiente cai toda a responsabilidade da
causalidade a ponto de a Causa Final ter sido esquecida na histria do Ocidente que Quadra o
Crculo. A prevalncia da Eficincia sobre a Finalidade denota, demonstra que a tcnica
moderna, em sua instrumentalidade, decide que a eficcia de algo seja o critrio para a
presena desse algo, de um isto qualquer. H, porm, um fosso abismal entre a noo
aristotlica de causalidade e a dico da posteridade sobre o assunto. Os gregos viram na
causa, aition, um modo de responder e dever. Uma participao. Para explicar essa vigncia
da causalidade, Heidegger expe agora um aclaramento dessa questo. Diz que no clice de
prata reside a prata que o determina, responde por ele. Ao passo que o clice deve prata sua
constituio. Como utenslio sacrifical, o clice no deve somente prata, mas tambm ao
perfil, eidos, que por sua vez responde ao utenslio de sacrifcio (HEIDEGGER, M. 2002:
14). A responsabilidade pelo utenslio do sacrifcio reside num terceiro modo que Heidegger
define como sendo o que determina, de maneira prvia e antecipada, a alocao do clice na
esfera do sagrado. Tal ato finaliza o utenslio, mas no se configura como seu fim, antes dlhe chance de ser aps terminado como pronto. neste momento que o clice alcana seu
telos, isto , sua plenitude como resposta, na matria e no perfil responde ao utenslio
sacrifical. (HEIDEGGER, M. 2002:14).
O quarto modo conferido pelo Autor a integrao do utenslio pronto: o ourives. O
ourives reflete e recolhe os trs modos mencionados de responder e dever. Ao refletir o
ourives, os trs modos anteriores de responder se do, fazendo aparecer o modo e o fato de
produo do clice sacrifical. O ourives preserva o clice em seu pensamento, em sua
reflexo, dele parte a integrao dos trs modos de dever e responder que Heidegger nos
apresenta. (HEIDEGGER, M. 2002:15) . Assim, o filsofo alemo se pergunta ainda o que
faz as quatro causas se integrarem coerentemente nos modos de responder e dever. Para que o
caminho dessa questo continue aberto, o pensador prope que as quatro causas se entendam,
se pensem de maneira grega.
De crculos e quadrados: triangulando Ceclia Meireles, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira
justamente lhe d possibilidade de infinita criao numrica. Seu arco uma completa entrega
ao nmero seguinte que no se sabe qual ser, suas voltas interminveis escondem o que seja
incio e o que seja fim, pois o que se pensa ser incio logo em seguida pode ser fim e, por ser
fim e incio, entendemos que seja pro-duo infinita de termos. Ao tentar quadrar o Crculo, o
homem procurou reduzi-lo a quatro lados. Quatro causas? Ao rejeitar o mythos, o Ocidente
que Quadra o Crculo, elegeu a razo como nica-verso de nossa existncia na terra e
reduzimos tudo a aparncias e muita vigncia potica foi esquecida.
Por que quereramos tanto quadrar o Crculo? O que isso revela? Como no sabemos
ou no queremos lidar com o Crculo, instrumentalizar o seu acesso tornando-o quadrado
significa nos permitir facilidade do entendimento. Ledo engano que fundamenta toda nossa
crena nos quatro lados das quatro causas como sendo nicas-verses das coisas. Este o
trao fundamental da tcnica, como coloca Heidegger: a instrumentalidade. Tornar o inefvel
o menos prximo possvel de pi, pois calar a dinmica de encobrimento e desencobrimento
que esse nmero misterioso provoca um meio para se chegar a um eficiente resultado. Em
pi est oculto o mistrio do incoercvel. No mythos, faz sentido a integrao com o no-bvio.
Pois quanto mistrio h em dizer que Zeus se tornou em touro branco ou cisne para seduzir as
mais diversas ninfas?
A tcnica no , portanto, um simples meio. A tcnica uma forma de
desencobrimento. A tcnica desencobre as possibilidades de a prata ser clice ou moeda.
ela a responsvel por integrar o homem sua vontade. Nela, descobrimos a verdade, que os
gregos traduziram por aletheia, isto , des-ocultao, des-esquecimento, memria, desencobrimento. Tcnica e verdade no tm sido palavras muito aproximadas ultimamente,
principalmente quando pensamos nos avanos da tcnicas modernas. Sempre me pergunto
se h algum avano em sair todos os meses um celular novo com mais e mais botes e
funes, ao passo que os ditos obsoletos vo todos para a Baa de Guanabara. Muitas vezes,
num celular antigo reside a mesma finalidade, utensilidade que nos novos: permitir que
duas pessoas distncia se comuniquem. Porm, tudo fica muito velho muito rapidamente, de
sorte que no temos mais lembrana do ltimo aparelho comprado. Importa-nos carregar
menos peso, facilitar a vida, atender s exigncias do mercado, carregar dados, msicas, tirar
fotos, acumular dados, dados e mais dados.
A tcnica um desencobrimento. Esta sua essncia. No h desencobrimento ou
deixar-viger algum em acrescer s nossas vidas mais e mais aparelhos celulares que vo virar
lixo muito em breve. Do que estamos falando ento? Heidegger coloca que a palavra
responsvel por tcnica vem do grego techn, cujo sentido reside no somente na noo de
habilidade manual, artesanal, mas tambm no fazer da grande arte e das belas artes. Para
haver tcnica, necessrio haver poisis, isto , pro-duo. Quando trocamos de celular todos
os meses no estamos pro-duzindo nada a no ser acmulo de detrito, ou seja, passamos a
atribuir inutilidade ao que antes parecia to indispensvel. No h pro-duo nisso, mas reproduo, pois nosso procedimento mais comum observar nos aparelhos somente seu
carter de eficincia.
Nossa reflexo retorna ao circulo que Ceclia Meireles desenha na segunda estrofe de
Amm, ao dizer: A profuso do mundo, imensa/ tem tudo, tudo e nada tem.
Para profuso, o Dicionrio Eletrnico da Lngua Portuguesa Houaiss coloca, dentre
outras acepes, a palavra prodigalidade, isto , fartura, abundncia, grande quantidade de
algo. O Crculo desenhado no poema pela disposio nas frases dos termos tudo e nada
nos coloca mais uma vez diante da questo da tcnica. Aqui, o caminho se bifurca. Por uma
das vias da bifurcao, caminham os que creem na profuso infinita de um mundo em que
tudo pode ser transformado em instrumento, e os limites da reproduo desses instrumentos
parecem infinitos. Neste caminho, impera o descartvel e a instrumentalidade. Pela outra via,
caminham os que se perguntam, com cinismo: Onde repousar a cabea? No alm?. So
aqueles que veem a tcnica como questo cujo toque um toque no mbito da poisis, da
produo. Rejeitam a infinitude da vida, pois sabem que o cu que alguns criaram para
repousar a cabea no existe como o nico responsvel por ns. Os que participam da
potica, caminham num caminho em que veem crculos. Os da primeira via, calculam tudo
para que tudo se transforme em o que queiram transformar.
No se trata de maniquesmo tal reflexo, mas de pensar se o silenciamento do Crculo
treinado pelo Ocidente que Quadra o Crculo um caminho vlido de pensamento.
A tcnica uma forma de aletheiuien, diz Heidegger (2002: 17), pois a tcnica
deixa viger o que no pode viger por si mesmo, o que no se produz a si mesmo e ainda no
se d ou prope. Com a tcnica, ocorre a criao e visita ao que ainda no se mostrou desde o
oculto. Com a tcnica, Bandeira nos permitiu ver o que a onda ocultava: seu dom circular
de ir e vir sem se sabermos aonde. Isso porque a tcnica pro-duz. A verdadeira tcnica no
cai no perigo da re-produo, pois como desencobrir o que j se sabe o que ser? Que
vantagem h em serem feitos milhares de celulares igualmente dispostos ao uso e ao desuso
de uma hora para a outra. Todos iguais e repetitivos. A tcnica descobre novos caminhos. Na
De crculos e quadrados: triangulando Ceclia Meireles, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira
verdade, caminhos que estavam escondidos antes e, por serem desvelados, acabam por revelar outros, isto , pondo um novo vu nos caminhos ainda no desencobertos.
Ora, como o giro de tal maneira bem cantado pelo Poema nos instrui neste
problema? Estamos devotados incongruncia. O mundo, insatisfeito, tem desperdiado o ser
que, na simulao requerida pelo dualismo, perigosamente estabelece relaes de controle da
natureza e dos outros seres humanos, separa a natureza do homem e cai, por fim no
desentendimento total.
A profuso em que tudo vai se equivalendo a nada bem mostrada por Heidegger, em
Introduo metafsica, como sendo a impossibilidade, dada pela misso humana, de
deixar-ser o mundo, como uma violncia vigncia especial de cada coisa. Nada vige quando
tudo que h deixa de ser e deixando de ser no permite que as outras coisas sejam tambm.
Quando se d esse esgotamento, as coisas vo perdendo seu rumo, se dissociando uma das
outras, sem assumir, saborear o seu bocado na conjuntura da physis ou pelo menos sem ter
conscincia da physis. Isso ocorre quando o combate, que projeta e desenvolve a doao do
vazio, a doao do in-audito, deixa de se dar; em outras palavras, quando (h profuso) o que
poderia ter se manifestado no se manifesta:
o mundo se retrai. O ente j no se afirma (i.. no se conserva, como
tal). A o ente apenas o achado. (...) o objetivamente dado, onde j
no se instaura nenhum mundo. (...) O ente se converte em objeto, seja
para a contemplao (aspecto e imagem) seja para a ao produtiva,
como produto e clculo. O que instaura mundo originariamente, a physis,
decai e degrada-se em modelo de imitao e cpia. A natureza se
transforma em esfera especial, distinta da arte e de tudo o que se pode
produzir e planificar. (HEIDEGGER, M. 1987:90)
Nas poucas linhas acima, tivemos a descrio da catica profuso, imensa, em que o
ser foi retirado do ente, a essncia se perdendo. Ser que aqui j ns chamamos por linguagem
ou condio humana, to distantes da con-fuso reinventada pela arte: a con-fuso que
ciente das alocaes, dos lugares; que no pe a natureza sob uma redoma; que se entende
como uma forma espontnea e salvfica de manter-se o homem na vida e com ele, confusamente, manter tudo o que h; que no se vale de uma posio empafiosa e soberba ante o
fenmeno de apario dos entes no estar-a, mas que , estando-a.
Como promover a con-fuso sem estancar a profuso? Uma con-fuso se faz precisa,
isto , preciso que se reorganize, ecologicamente, o espao, os distanciamentos, as lugares
De crculos e quadrados: triangulando Ceclia Meireles, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira
dos entes, que os entes entendam o que so e o que podem dizer uns aos outros, resgatando a
sua essncia e entendendo que a sua essncia um distanciamento dependente e movente
dos outros entes. Ao que nos parece, Ceclia, Drummond e Bandeira nos recomendam a revoluo dos corpos, assim como terra, sol, lua e estrelas tm girado, para na didtica do giro,
na volta sobre ns mesmos, sobre o nosso pensamento e sobre a natureza, que somos ns,
cheguemos transformao do Quadrado em Crculo e no do Crculo em Quadrado.
O dualismo recomendou e provou, respaldado pela matemtica, a impossibilidade
dessa equivalncia. Mas a poisis, em sua essncia, abre os caminhos para a transformao, a
recriao desse problema em arte. Talvez seja apenas pelo pensamento, transformado em ao
e pela linguagem transformada em arte que cheguemos curvar, amaneirar, arrendondar
relaes retas, opressoras, sem possibilidade de diversificao entre os entes.
no Quadrado que moram as hierarquias, as divises de trabalho, as desigualdades
sociais, a opresso da natureza, enfim, o desentendimento harmnico de que tanto estamos
falando. Mas no Crculo e em tudo que ele prope que habita todo o nosso potencial de
harmonizao de problemas humanos, e o Crculo no segue a racionalidade cartesiana, antes
habita as regies do irracional, do infinito, que tanto pertubou os pitagricos. Nele h um
ideal de perfeio pensada, nele h uma re-voluo preparada pelos poetas para a linguagem.
Como no aprender com a circularidade da natureza? Terra, sol, lua e estrelas giram
de tal maneria bem. Como separar o homem do que ele mesmo: a natureza, em disperso
imensa? Questionando o esgotamento da linguagem acharemos a ptria perdida da
humanidade mecanizada e alheiada do mundo? Como re-unir o homem a tudo?
Roguemos pois aos poetas, vigias de Babel, homens como ns, mas mais entendidos
sobre o dizer, que instaurem de novo uma con-fuso, uma fuso quente e vitalizante de tudo a
tudo, que no se separem mais, nunca mais crculos e quadrados, curvas e retas, retngulos e
losangos, nmeros e letras, homens e mulheres, animais e deuses, para que a nossa alma
desanime de queixas. Amm!
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
Entrevista
quantas vezes, ns professores de filosofia ramos convidados na dcada de oitenta por reas
como a medicina, a biologia, a psicologia para discutir essa questo. O aprofundamento
necessrio dos campos especficos do saber no deveria significar o esquecimento do geral
(que no se confunde com generalidades) e da superfcie ( que no deve se confundir com
superficialidade). Mas, mesmo sem querermos generalizar, pois isto seria um paradoxo com
relao ao prprio destino e sentido da investigao filosfica, parece que a filosofia, por
esta capacidade que temos de abstrair do real , vem demorando mais que algumas outras reas
na direo do resgate do contexto mais completo do conhecimento. Ento, desde a revoluo
cientfica que a filosofia acompanha aquilo que j virou regra a partir dos sculos XVII
/XVIII , a especializao crescente que esquece ou mesmo desconhece esse contexto mais
completo. Torno a insistir que conhecer bem o contexto mais geral no deve significar saber
falar um pouco de tudo e nem descuidar de nossas pesquisas em sua especificidade. A
filosofia capaz, inclusive em virtude da formao de seus profissionais , e pelas razes j
bastante conhecidas de todos ns , de fazer intervenes especialssimas e isto muitas vezes
pode significar o esquecimento do contexto, das relaes com as outras reas de saber e
dependendo do caso, da capacidade que ela deveria ter de dialogar internamente com as
outras reas da prpria filosofia. Muitos professores universitrios de filosofia, por estas e
outras razes, acabam por se fechar em suas pesquisas, financiadas com verbas pblicas, na
maioria dos casos e isto muitas vezes sem o menor compromisso de socializ-las, o que
preocupante num pas como o nosso. E penso que a viso liberal sobre o mundo, possibilita
em grande parte isto. Agora, a situao que vocs querem discutir, aquela de uma perspectiva
logocntrica. O logocentrismo, termo cunhado para apontar o predomnio do logos nas
sociedades ocidentais (razo, palavra falada e sua conseqente apreenso pela escrita, lei da
racionalidade de um modo geral), no correto dizer que podemos elimin-lo do terreno
terico ou do concreto, simplesmente atravs do discurso. Somos logocntricos, na medida
em que nossa sociedade, nossas produes so logocntricas e possuem sentido justamente
por serem logocntricas . O problema no est em reconhecer isto, mas o que apontado por
pensadores da filosofia francesa contempornea e mais especificamente neste caso, pelo
pensador Jacques Derrida, o fato de ainda hoje s se reconhecer como filosofia, a filosofia
logocntrica. E ele mostra, ento, em todo o seu discurso, que a partir de uma fala de
Heidegger sobre a metafsica ocidental e que Derrida denominou metafsica da presena, no
mais possvel aceitar s isto. Derrida chama a ateno para o fato de que existem , sempre
existiram alis, outros modos de apreender a realidade e que no so logocntricos e em sua
crtica metafsica tradicional ocidental, ele passa a demonstrar exausto isto. bom
lembrar tambm que quando ele fala em desconstruo do pensamento ocidental, no ser um
trabalho metodolgico intencional que minar as bases do logocentrismo, mas sim algo que
efetivamente acontece em nvel real, histrico, poltico-social, tico -poltico e que denuncia
a desconstruo desse logocentrismo. E lembremos, desconstruo no destruio. Penso
ainda que um nmero um pouco maior de professores ligados a departamentos de filosofia
discute o pensamento francs contemporneo, hoje. verdade que ele j era discutido pelos
institutos de letras, educao, arquitetura, de artes em geral, psicologia e psicanlise, at
antes dos departamentos de filosofia. Mas em nvel de Brasil isto j est acontecendo na
filosofia mais frequentemente hoje. S no Rio temos professores na PUC, UFRJ , e mesmo
na UERJ que discutem o pensamento francs contemporneo. Na UERJ, o Gerd j fazia isto.
Fazia isto antes na UFRJ, a Marly tambm , s para lembrar alguns. Outra coisa o
pensamento liberal. verdade que o pensamento liberal logocntrico, no poderia deixar de
s-lo, mas o marxista tambm , o pensamento socialista tambm etc. A questo no por a.
Associar liberalismo ao logocentrismo e a todo logocentrismo ruim porque so feitas srias
restries ao pensamento liberal. Creio que o problema de se ter em alguns departamentos de
filosofia uma predominncia de professores diretamente associados ao liberalismo, isto um
problema particular ,individual. Ou ento o ensino s de pensamento dito liberal em filosofia.
Isto depende dos interesses individuais que ligam os pensadores a determinadas pesquisas. O
problema que eu vejo quando isto feito sem a crtica necessria que a filosofia deve
sempre empreender. Mas isto deve ocorrer com qualquer teoria filosfica, politico-social,
epistemolgica ou o que seja . E no se pode rotular um professor simplesmente por ele estar
tentando discutir um autor
Epistemologia, disciplina que era comum em nossa rea anteriormente, eu dava aula sobre
Positivismo. E saa delas com a impresso de que eram muitas vezes minhas melhores aulas.
E os alunos diziam isto tambm. Mas todos conheciam minha posio sobre as questes do
positivismo , neo positivismo etc e nunca fui chamada de positivista por causa disto. No
entanto, sem dvida, temos que nos perguntar por qu , dos anos oitenta para c, parece que
as pesquisas em filosofia tomaram predominantemente um rumo nico e os alunos se
deparam mais com o pensamento chamado liberal . Se isto for realmente verdade , no
difcil de entender, por vrias razes j apontadas e tantas outras em escala mundial.
Entrevista
estabelecido que sempre melhor. O fato dele, Foucault e outros no serem considerados
como
hierarquizao dos pares binrios metafsicos presentes na viso logocntrica, para poder
discutir com ele. E desde o comeo de seu trabalho ( mais de 50 obras ele produziu a
respeito), Derrida discute com pensadores de muitas reas,
da rea da lingstica,
da
trabalhado ou por um enfoque inusitado retirado deste autores e que em geral denota algum
processo de inverso ou deslocamento do discurso, do texto,
Lembro
aqui o Foucault de
Modificaes (H da
Entrevista
a ( tratamento da
diferena que no remete mais identidade, mas ao jogo de diferenas), isto objeto da
desconstruo mais que nunca hoje. Entretanto, a espectralidade, aquilo que assombra, no
desapareceu nem do ponto de vista poltico- social, nem do ponto de vista do Estado, nem
com relao aos textos de toda a ordem e em especial, aos textos filosficos. Est tudo a e
creio que inclusive estas preocupaes que vocs me colocam nesta entrevista, vm de
encontro a isso.
filosfico de fora vindo dos pases que sempre foram hostilizados pelo velho mundo?
possvel um deslocamento e um espao para uma filosofia a partir do Oriente - mdio,
da frica e da America do Sul?
Prof Dirce Solis: Novamente aqui eu vou me referir ao Derrida. Mas agora ao Derrida de
Do Direito Filosofia, ou Do Direito Filosofia de um ponto de vista cosmopolita e
repito o que j disse em ocasies anteriores: Pensar uma poltica da filosofia estender o
direito filosofia para todos os seres humanos. E isto est de acordo com o que pensa Derrida
a respeito. Entretanto, no significa que todos queiram, possam ou devam ser filsofos de
profisso, nem tampouco que todos os seres humanos sero necessariamente pensadores
crticos e criativos, mas em termos de possibilidade, Derrida ir defender que ,
independentemente da idade, classe social, gnero, raa, cultura, todos os humanos devem ter
direito filosofia ( Do Direto Filosofia). Dito de outro modo, todos podem desejar possuir,
de modo mais ou menos sistematizado, experincias de pensamento filosfico consideradas
legtimas. A filosofia para Derrida , ento, um dos nossos mais fundamentais direitos. No
entanto, h uma sensvel distncia entre esta afirmao e a conotao kantiana de filosofia
como um tribunal crtico ou uma juiza dos juzes, que marca os limites da experincia
possvel e as fronteiras dos mais distintos domnios do saber. Filosofia o direito de colocar
toda e qualquer questo,
especialmente aquelas
enquanto tal. O direito filosofia o direito ao mesmo tempo de ensinar e estudar filosofia,
de ler e escrever sobre ela, de discutir e publicar filosofia e este um direito de todos os
povos e de todos os seres humanos , segundo Derrida . No apenas privilgio de grupos
fechados e especialistas em filosofia. A identidade da filosofia e a comunidade dos filsofos
Entrevista
apareceriam, ento, sob esta perspectiva, como realidades desconstrudas. No que Derrida
negue filosofia o seu lugar como saber detentor de uma especialidade tcnica e disciplinar.
Ele tambm sempre debateu contra a dissoluo da filosofia em departamentos de literatura
ou mais genericamente ainda de humanidades. A filosofia deve ter seu lugar especfico num
departamento de filosofia, mas isto no significa que ela estar sendo desenvolvida apenas em
seu interior. A filosofia deve ser ex-posta, des-locada, ex-propriada e ex-patriada, o que quer
dizer que ela no deve estar inteiramente confinada aos limites de uma especializao
disciplinar . E toda a discusso da filosofia deve estar associada discusso de uma
democracia por vir. Assim todos os povos tem direito filosofia e a produzir contextos e
contedos filosficos especficos. Certamente isto est ligado questo da diferena, do
advir, do porvir no sentido derridiano . Se ela um direito de todos, os pases que sempre
foram marginalizados em sua produo tambm podem e devem se engajar na produo
filosfica. Lembremos que desde a Grcia clssica, a filosofia surgiu no por diletantismo de
seus autores , mas como forma de responder aos anseios da polis, de traduzir em nvel de
abstrao e generalizao,
cidados. E neste sentido ela vem junto com a discusso da cidadania, at quando
consideramos os no- cidados. Ento ontem como hoje, a filosofia poltica e busca
responder s inquietaes colocadas no mais apenas pelos grupos que foram hegemnicos e
dominantes, como
os da
comunidade europia,