Olho Desarmado
Olho Desarmado
Olho Desarmado
Minha pesquisa, como artista e professora, tem sido conduzida pelo desejo
de compreender processos criativos e gerar novo ciclo de obras, partindo
da leitura de temas e imagens de poemas articulada com obras visuais. Ao
tempo em que o objeto potico configurado, so tambm configuradas
as vrias fases da criao acompanhadas por uma clave de autores que
inspiram uma abordagem para esse movimento criador. Por isso este livro
encontra-se dividido em duas partes: o objeto potico e este ensaio sobre
um trajeto criativo e sua abordagem.
Como um corpus gerador situa-se aqui a gnese do percurso recorrente
nele como conjunto de poemas e um modo de leitura em imagens e
repercusses. Essa leitura inicial, inspirada no mtodo da psicocrtica
de Charles Mauron, definidora para todas as configuraes e formatos
posteriores; nela, tomada como instrumento para a identificao e
articulaes o que se convencionou chamar de "apario", termo que
engloba a prpria imagem, sua aluso, fragmento ou citao. Seu corpus
trajeto constitui os desdobramentos dessa leitura e configura aqui a prpria
concepo para Olho Desarmado, tanto para o livro quanto para outros objetos
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' Sobre relaes vida e obra em BACHELARD, ver A Potica do Devaneio, 1988: 9-10 e A Potica do
Espao, 1989: 17.
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Algumas operaes relacionadas a esse "teatro interior" e a essa "geografia encantada" podem ser
lidas no livro CasaTempo, RANGEL, 2005: 14.
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Imagens e Repercusses
De todo modo, a psicocrtica se quer parcial, ela no pretende
substituir outras disciplinas crticas, fnas j u n t a r - s e a elas.
(MAURON, 1964: 141)3
Do ponto de vista esttico ela se inscreve n u m a viso de
conjunto, fazendo depender a criao de trs fatores principais:
fantasia imaginativa inconsciente, contedos da conscincia
e uma linguagem melhor harmonizada.
A obra de arte aparece, nesta perspectiva, como um ser de
linguagem, objeto de c o m u n h o entre o eu e o no eu,
compensando a solido pessoal. (MAURON, 1964: 143)
Todas as citaes de Mauron contidas neste texto so de traduo da prpria pesquisadora tendo
como referncia a edio de 1964 de Psychocritique du Genre Comique, Paris: Jos Corti. Sobre o
mtodo da psicocrtica de Mauron, uma exposio e uma crtica se encontram em GENETTE, Gerard.
Figuras. Trad. Ivone Floripes Mantoanelli. So Paulo: Perspectiva, 1992, p. 131-36.
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Visibilidades
Difcil definir a forma do trabalho que se constitui objeto desta pesquisa.
J o pensei de muitas maneiras. Talvez a mais adequada seja identific-lo
como uma reflexo sobre um percurso, um "ensaio", em todas as acepes
que a palavra pode incluir, abrangendo as nuances das vrias configuraes
que materializei. 0 ensaio no quer dizer ausncia de rigor, pelo contrrio,
somam-se nele exaustivas tentativas de se configurar s vezes o
inconfigurvel. 0 rigor do ensaio est na sua matria mole. Maleabilidade
para a direo da busca poder incluir o que encontrar de mais significativo
nas tentativas e nas bordas, nas surpresas e encontros do caminho. Para
saber o que incluir, trabalho em territrios fronteirios, buscando uma
suposta unidade que se constri como utopia.
Ensaio tambm uma palavra aconchegante que habita a intimidade do
espetculo nas artes cnicas. Gosto dela especialmente por causa dessa
memria. Em muitas encenaes das quais participei, como atuante ou
como espectadora, nos ensaios se situava para mim a melhor parte e
no no produto acabado. Estou buscando "nos ensaios" um sentido de
permanncia. Em cada ciclo do meu processo criativo uma sensao de
inconcluso e incompleto dirige a demanda para outro ciclo. a incerteza
que me faz produzir a exatido. Exatido, do mesmo modo que unidade, se
configura como utopia. Calvino fala sobre ela em suas Seis Propostas para
o Prximo Milnio:
De u m lado, a reduo dos acontecimentos contingentes a
esquemas abstratos que permitissem o clculo e a demonstrao
dos teoremas, do outro, o esforo das palavras para dar conta,
com a maior preciso possvel, do aspecto sensvel das coisas.
(CALVINO, 1999: 88)
A palavra associa o trao visvel coisa invisvel, coisa
ausente, coisa desejada ou temida, como umkfrgil passarela
improvisada sobre o abismo. (CALVINO, 1999: 90)
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JogoCriao
Quando, no entanto, irrompe o j a t o de um componente
emocional, surge u m a torrente libidinal de interesse e n o v a s
constelaes e novos contedos psquicos so postos em
movimento. (NEUMANN, 1995: 266)
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das suas idias sobre o jogo. Em 1933, reitor da Universidade de Leyde, ele
define como tema do seu solene discurso "Os Limites do Jogo e do Srio
na Cultura", tema que um pouco mais tarde, em 1938, aprofundado por
ele na publicao do livro que at hoje continua sendo referncia para
o estudo do jogo.
Segundo este autor, em sua evoluo, o jogo se processa dentro de certos
limites temporais e espaciais, segundo uma determinada ordem e um dado
nmero de regras livremente aceitas e fora da esfera da necessidade ou
da utilidade material. 0 ambiente em que o jogo se desenvolve, porm,
de arrebatamento e entusiasmo, e torna-se sagrado ou festivo de acordo
com a circunstncia. No jogo a ao acompanhada por um sentimento
de exaltao e tenso, e seguida por um estado de alegria e distenso.
0 jogo tambm, segundo ele, uma atividade que se contrape ao cotidiano.
(HUIZINGA, 1993: 147)
Uma segunda referncia sobre o jogo tomada como inspirao para este
trabalho foi encontrada em Roger Caillois, especificamente no seu livro Les
jeux et les hommes4. Mesmo reconhecendo a importncia e o pioneirismo
do trabalho de Huizinga, Caillois aponta nele lacunas e equvocos e prope
uma estrutura nova, mais abrangente e complexa para a definio e o
estudo do jogo, considerando: I o , as caractersticas fundamentais (atividade
livre, separada, incerta, improdutiva, regulamentada e fictcia); 2o, as
tendncias propulsoras (paidia - livre improvisao, ludus - habilidade e
regras) e 3o, as atitudes que comandam os jogos (agn - competio, alea sorte, mimiery - simulao, ilinx - vertigem).
Caillois reconhece que Huizinga analisa as caractersticas fundamentais do
jogo e demonstra o seu papel no desenvolvimento da civilizao. Tambm
Todas as citaes de Caillois aqui includas so de traduo da pesquisadora, tendo como referncia
a edio de 1967 de Les Jeux et les Hommes. Paris: Gallimard, pour 1'edition revue et augmente.
enfatiza que ele descobre o jogo em lugares onde ningum antes havia
reconhecido a sua presena ou influncia, relacionando o seu estudo s
principais manifestaes da cultura, tanto nas artes, como na filosofia,
na poesia e nas instituies jurdicas. Mas Huizinga negligencia aspectos
importantes na descrio e classificao do jogo, como se os fatos se
encaixassem por si mesmos e respondessem s mesmas necessidades,
traduzindo sempre uma igual atitude psicolgica em todos os tipos de
jogos. Neste sentido, resume Caillois, sua obra no trata de um estudo dos
jogos, mas de uma pesquisa sobre a fertilidade do esprito do jogo no que
se refere cultura e do esprito que preside um certo tipo de jogos: os jogos
de competio regulamentada.
A mais contundente crtica ao trabalho de Huizinga, entre outras, feita por
Caillois, justamente ele ter deixado de lado, pelos seus pressupostos na
definio inicial de jogo, os jogos de azar, tais como os cassinos, as roletas,
as corridas de cavalo, as loterias, que so os jogos que envolvem a sorte e o
dinheiro, e que esto fora do sagrado e do festivo. Esse^tipos de jogos no
encontram lugar na classificao de Huizinga.
Ao d e f i n i r o q u e e s s e n c i a l n o j o g o , i n d e p e n d e n t e m e n t e d a s u a v a r i e d a d e
de f o r m a s , Caillois o d e f i n e e n t o c o m o u m a a t i v i d a d e c o m as s e g u i n t e s
c a r a c t e r s t i c a s f o r m a i s e f u n d a m e n t a i s : I a - livre - n a q u a l o j o g a d o r n o
poderia ser obrigado sem que o j o g o perdesse, no m e s m o instante, sua
n a t u r e z a de d i v e r t i m e n t o a t r a e n t e e alegre. 2a - s e p a r a d a - circunscrita
d e n t r o d e l i m i t e s de e s p a o e d e t e m p o p r e c i s o s e f i x a d o s a n t e c i p a d a m e n t e .
3 a - i n c e r t a - n a q u a l o d e s e n r o l a r n o p u d e s s e ser d e t e r m i n a d o , o
r e s u l t a d o f i n a l n o p u d e s s e ser a d q u i r i d o a n t e s e, n a q u a l , u m a c e r t a
l i b e r d a d e d e agir, d e v i d o n e c e s s i d a d e de i m p r o v i s a r , o b r i g a t o r i a m e n t e
d e i x a d a p o r c o n t a d o j o g a d o r . 4 a - i m p r o d u t i v a - q u e n o cria b e n s , n e m
r i q u e z a s , n e m q u a l q u e r e l e m e n t o n o v o , e que, a p e n a s c o m o d e s l o c a m e n t o
das propriedades presentes no crculo de jogadores, nos remete a u m a
s i t u a o i d n t i c a do incio d a p a r t i d a . 5 a - r e g u l a m e n t a d a - s u b m i s s a
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ImagemSmbolo
0 mito, a arte, a religio e a linguagem so expresses
simblicas do esprito criador do h o m e m ; neles, esse esprito
criador se torna "objeto" que pode ser percebido e obtm
auto-conscincia por meio da conscincia h u m a n a .
(NEUMANN, 1995: 264)
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imediato e que no pode ser fornecido nem antes nem fora do seu processo
e lugar - o que o transforma num objeto vivo, de natureza transcendente,
essencialmente humana, instaurando um componente que sempre escapar
compreenso total, ou da que se quer apenas lgica.
Voltando ao texto de Calvino, citado na outra parte, texto que belamente
reivindica o direito e o poder de se pensar por imagens, guardei tambm
como lio da sua preciosa pedagogia: " claro que se trata de uma
pedagogia que s podemos aplicar a ns mesmos, seguindo mtodos
a serem inventados a cada instante e com resultados imprevisveis."
(CALVINO, 1999: 108)
Mas se esta "pedagogia" s pode ser individual, como sinaliza Calvino,
ela traz no seu resultado uma das caractersticas mais contundentes da
funo simblica, que a funo de "co-mover". Ao contrrio do signo e
da alegoria associados a significados fixos e determinados pelo contedo,
o smbolo afeta todos os aspectos da psique e no s a conscincia, o
que nos ensina Erich Neumann, um dos autores que compem a vertente
chamada ps-junguiana: "Ao ser cativado-comovido pelos arqutipos,
o indivduo religado humanidade, imerge na torrente do inconsciente
coletivo e se regenera pela animao das suas prprias profundezas
coletivas." (NEUMANN, 1995: 264)
Esta funo "cativar-comover" impregna o mundo da criao na arte/hos
seus processos de produo e fruio. Pela liberdade que a no comprovao
outorga e pela via do sensvel, sero s vezes esses mesmos objetos
inseparveis da cultura e da histria, os objetos de arte, que sero capazes de
antecipar, indicar pistas, decifrar mistrios ou at materializar formalmente
equaes, dando conta de questes humanas que atravessam todos os tempos.
Existe um ltimo complicador nestas questes para a especificidade do
sculo XX e do XXI. 0 exerccio da nossa humanidade se torna cada dia
mais trgico. Os discursos de Darwin, Freud, Einstein revelaram teorias at
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Clave de Operadores
a partir da IMAGEM, ento, como um operador metodolgico dominante,
que utilizo uma clave de autores capazes de produzir no meu processo
criativo sonncias, ressonncias e tambm dissonncias. No percurso geral,
inicialmente trabalho com alguns princpios do mtodo da Psicocrtica de
Mauron, que faz surgir uma cartografia de imagens, um mapeamento de
recorrncias no universo da minha produo lrica, por considerar ser a o
topos (Bachelard) onde a potica se inicia, um embrio permanentemente
conectado aos outros formatos e vias de expresso.
Essa cartografia de imagens, com seus temas subjacentes, revelados e
elaborados no processo da pesquisa, tem sido a referncia para uma
produo artstica em tcnicas, meios e formas variadas a partir das
IMAGENS mais recorrentes, o que transforma a IMAGEM no seu mesocosmo, um operador dominante que medeia todo o percurso.
Este estudo prtico-terico vem sendo compreendido, realizado e
aperfeioado h mais de dez anos em produtos artsticos e publicaes,
revelando reflexes sobre o modo de operar meu prprio processo criativo
e de orientar alunos de graduao e ps-graduao.
Pela via de compreender e estudar o percurso das obras artsticas como
gerador de novas obras, deixando que o processo criativo indique caminhos
para a sua teorizao e, nesse meso-cosmo, a metodologia com a imagem
permita avanar na inter-trans-disciplinaridade de componentes, o jogo
aparece como tema e estrutura de muitas obras, o objeto de arte como
objeto de fronteira entre arte-vida, objeto de provocao de leituras
e comportamentos que extrapolam tambm formas designadas como
literrias, visuais ou cnicas.
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Segundo Pareyson:
Tentativa e organizao no so portanto incompatveis e
dissociveis, pois at o prprio conceito de um resultado que
seja critrio para si mesmo as evoca ao mesmo tempo, ntima
e inseparavelmente unidas, de sorte que se, por um lado, o
bom resultado s se obtm como o fruto feliz de tentativas, por
outro, n o pode ser critrio de si mesma a no ser orientando,
urgindo, organizando as tentativas de onde h de resultar.
(PAREYSON, 1993: 91)
Perguntas-Passaporte
Ao debruar-me sobre os poemas e os desenhos, ao incio da pesquisa,
pelos prprios indcios que essas obras ofereciam, muitas perguntas me
serviram de guia. Como aparece o jogo, e por que ele importante? Como
aparece a imagem, e por que ela importante? E como aparece a memria
e por que ela importante? Essas perguntas me induziram a encontrar
noes de jogo, de imagem e de memria que, ao mesmo tempo, por se
aproximarem do meu modo de operar a criao, potencializaram-no. No
so perguntas apenas para serem respondidas. So perguntas-passaporte
que me levam a sondar os pensamentos da imagem e as imagens do
pensamento em novas obras.
Trs grandes ciclos de obras surgiram desde que esta pesquisa foi iniciada:
Circumnavigare (1995) CasaTempo (2005) e Olho Desarmado (2009). A data
sinaliza o ano da edio do livro de arte que constela e ordena o fluxo
de cada ciclo. Para dar conexo e visibilidade, desvelando como o corpus
terico impulsiona, dialoga com a obra, e gera seu conjunto, este texto
refere-se a esses trs ciclos, pois os trs se expressam em livros, exposies
e atuaes em performances, e foram aquisies advindas deste modo de
pesquisar e operar o processo de criao.
Circumnavigare, CasaTempo e Olho Desarmado podem representar
aspectos da prpria elaborao da conscincia humana em seus vrios
estgios. Nessa tarefa, o sonho aparece como grande mediador para o
enfrentamento com o Tempo, com o Amor e com a Morte. Sonho no sentido
bachelardiano, como devaneio, lugar onde o sujeito pode ser ativo. Est
ligado ao pensamento imaginativo, como produtor de conhecimento, como
o conceitua Gilbert Durand. Existe uma fabulao espontnea no sonho
noturno que importa para a terapia pessoal e a equilibrao da energia
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errado. Essa vida secreta no deve ser anulada, sob pena de empobrecer-nos.
Precisamos aceitar esse "algo" em ns que uma espcie de regio inumana
que escapa a qualquer exerccio do direito, mas sem esse "algo" no teremos
o que compartilhaF^como obra criadora. "Mas existe nesse si mesmo um
outro, aquele ou aquilo com que ele se encontra ou procura encontrar-se
durante as horas secretas." (LYOTARD, 1996: 114)
Quanto mais consigo preservar e entrar nessa cartografia da minha no
man's land mais encontro elementos que me conduzem ao reencontro
com o outro e com o mundo atravs da obra. Essa foi uma funo das
perguntas-passaporte. Elas levam tambm meu trabalho a se abrir como
agora nessa performance de mo dupla, com a sua dupla e momentnea
fronteira de concluso.
Referncias
BACHELARD, Gaston. A Potica do Devaneio. Trad. Antnio de Padua Danesi.
So Paulo: Martins Fontes, 1988.
BACHELARD, Gaston. A Potica do Espao. Trad. Antnio de Padua Danesi,
So Paulo: Martins Fontes, 1989.
BARBA, Eugnio. Alm das Ilhas Flutuantes. Trad. Luiz Otvio Burnier.
Campinas: Hucitec, 1991.
BARTHES, Roland. A Cmara Clara. Trad. Jlio Castanon Guimares.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
BARTHES, Roland. O bvio e o Obtuso. Trad. La Novaes. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1990.
CAILLOIS, Roger. Les Jeux et les Hommes. Paris: Gallimard, pour 1'edition revue
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CALVINO, talo. Seis Propostas para o Prximo Milnio. Trad. Ivo Barroso.
So Paulo: Companhia das Letras, 1999.
CHARBONNIER, Georges. Arte Linguagem, Etnologia - Entrevista com Claude
Lvi-Strauss. Trad. Ncia Adan Bonati. So Paulo: Papirus, 1989.
Poemas e Ilustraes.
RILKE, Rainer Maria; et al. In Poesia Alem Traduzidd^no Brasil. Trad. Guilherme
de Almeida. Geir Campos org. Rio de Janeiro: Ministrio da Educao e Cultura Departamento de Imprensa Nacional, 1960.
WINNICOTT, D. W. O Brincar & a Realidade. Trad. Jos Octvio de Aguiar Abreu
e Vanede Nobre. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
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