Um Olhar Além

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Dani Fonseca

narrativas de pinguins

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Trabalho de conclusão de curso (TCC), apresentado ao Colegiado de
Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade
Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título
de Bacharel em Artes Visuais.

Habilitação:
Artes Gráficas

Orientadora Prof.:
Fernanda Goulart

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Agradecimentos
Antes de tudo, gratidão à minha família, principalmente aos meus pais e meu
padrinho pelo constante e imenso apoio. Gratidão à companhia de meu par-
ceiro, também artista e melhor amigo, nos bons e maus momentos sempre. Ao
carinho e suporte de todos amigos que conheci em Belo Horizonte, em espe-
cial a turma do nosso coletivo “Chips com Chocolate” com os quais caminhei
durante a maior parte desse período.

Agradeço aos professores de Artes Gráficas, em particular Fernanda Goulart


e Marcelo Drummond que muito ajudaram na trajetória da minha produção, e
na criação de Pérgola e Bianca. Aos professores também do curso FIQ Jovem
2018 pelo suporte técnico e teórico, por compartilharem suas experiências no
ramo dos quadrinhos e ilustração, pela colaboração na história do Oswaldo e
pelos incentivos de cada dia. Em especial aos professores Gabriel Nascimento
e Carol Rosetti pela disposição, conselhos e revisões mesmo já após a con-
clusão do curso.

A presença de cada um de vocês foi muito importante. Obrigada.

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a descoberta da arte e da miopia

Foi deixando de ver as coisas com nitidez que aprendi a enxergá-las


melhor. A miopia veio aos poucos, mas faz tanto tempo que a considero
inata. Talvez isso se dê pela idade com a qual foi identificada, quando,
de modo concomitante, tomava consciência do que era ser “eu”. Cresci
junto com ela e algumas descobertas delicadamente foram se revelando
para mim. À medida que o tempo passava, o desfoque provocado pelo
distúrbio era cada vez maior. E assim como fazemos para enfrentar
adversidades, fui aprendendo a lidar com essa “limitação”. Foi provavel-
mente em alguma viagem, olhando a estrada pela janela do carro que
percebi, sem meus óculos, enxergar um mundo totalmente diferente do
que conhecia até então.

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Eu podia ver a iluminação noturna e os faróis dos carros como gotas
singulares de luz sobre o véu negro da noite. Na copa das árvores, um
céu estrelado, gerado ironicamente pela luz de uma só grande estrela. No
inverno, a brasa da fogueira, que a cada sopro de vento, se exibe cintilan-
te em memória às tardes melódicas que passamos com os amigos. Nos
dias frios e chuvosos, pinturas melancólicas feitas em telas de vidro que
choravam por dentro e por fora. Na manhã seguinte, o nevoeiro se fazendo
presente na ausência das montanhas, por meio de uma atmosfera branca
versada em magia. No olhar aproximado, onde eu poderia desenhar com
o dançar dos olhos, as veias das folhas e a textura da pele. E, mesmo que
brevemente, admirar com intensidade e dar a devida importância àquilo
que presenciava.

Ainda no início do ensino médio, quando a arte existia em minha vida


apenas de forma muito natural e espontânea, tive um encontro próspero
com a obra de Walter Carvalho e João Jardim, se tornando ela extremamente

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importante para que pudesse ter consciência daquilo que já existia em mim,
em uma potência muito maior do que eu antes suspeitava. “Janela da
Alma” é um documentário que retrata dezenove pessoas com algum grau
de deficiência visual, desde a miopia até a cegueira total, que compar-
tilham suas reflexões acerca de como veem o mundo, os outros e eles
mesmos. Assistindo o documentário considerei todas as vezes que não
fui capaz de verbalizar o meu entusiasmo com a prática de ver além de
um modo único, e a cada relato que ouvi, fui cativada e instigada a explo-
rar mais de mim.

Logo no início o filme traz um contraste produzido por uma simultanei-


dade do fogo como imagem, e a água como som, brincando com nossa
percepção. Ao decorrer da obra existem várias outras sobreposições
desses elementos imagéticos e sonoros, construindo pequenos intervalos
entre as narrações. Estradas e vegetações, paisagens urbanas desfocadas,
com cantos e ruídos de outros ambientes. Constatei que todos esses inter-

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valos eram como vastos campos de sensações que traziam consigo uma
atmosfera de algo grande e por vir. Ainda no documentário, o diretor de
cinema Wim Wenders, entrevistado, fala sobre o processo de ler as entre-
linhas, relembrando seus livros de infância e a construção das histórias,
não só com o texto, mas também com a imaginação que nós, como crian-
ças, nelas adicionamos. A produção do filme faz jus a esse pensamento,
promovendo essas aberturas tão, e cada vez mais, necessárias em nosso
tempo.

Apesar do longa metragem ser do ano 2001, seu tema é cada vez mais
atual. Ainda mais se considerarmos que as distâncias estão cada vez
menores, e que quase instantaneamente já sabemos o que está acon-
tecendo do outro lado do mundo. A Internet e as redes sociais são por
exemplo, grandes fatores que interferem no modo como nos relaciona-
mos com as imagens atualmente. Estamos conectados num lugar onde
as informações, imagens, vídeos não param de circular nenhum segundo

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sequer. Basta reparar que, uma vez atualizada a página do Facebook,
provavelmente você nunca mais verá a publicação que estava na sua frente
a meio segundo atrás. Imagem e o texto possuem uma enorme potência,
mas nem sempre são utilizadas desta forma.

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olhar superficial versus enxergar no escuro

Num passado não muito distante, ao considerar nossa relação com as


fotografias analógicas, podemos nos questionar se existia uma ligação
emocional mais sincera e forte do que atualmente. Hoje temos mais de mil
imagens em apenas uma pasta do nosso celular e nem sabemos quais
são elas. Não sabemos lidar com o excesso de tudo o que nos é ofere-
cido, nos expõem imagens com um único intuito de serem sugestivas o
suficiente para que compremos determinados produtos, ou convincentes
o bastante para acreditarmos em vidas simuladas. E assim “engolimos”
as imagens com uma espécie de olhar vazado, que as atravessa, mas
que não retém nenhum significado. São falsos olhos, moldados como
olhos de vidro.

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“Mas vocês não são videntes clássicos, vocês são cegos, porque, atualmente, vive-
mos em um mundo que perdeu a visão. A televisão nos propõe imagens, imagens
prontas. Não sabemos mais vê-las, não vemos mais nada, porque perdemos o olhar
interior, perdemos o distanciamento. Em outras palavras, vivemos em uma espécie
de cegueira generalizada.”

Eis o relato de um dos entrevistados do filme Janela da Alma, Evgen


Bavkar, fotógrafo que ficou cego em consequência de dois acidentes em
sua infância. Foi durante a adolescência que tirou sua primeira fotografia,
e percebeu que apesar de não conseguir ver diretamente as imagens, era
capaz de imaginá-las e produzi-las. A partir de uma ideia prévia, junta-
mente com seu tato e a ajuda do olhar do outro, Bavkar opera sua câmera
e conduz a luz a seu favor. Antes de considerar determinada fotografia
como trabalho, faz testes pedindo a outras pessoas para que descrevam
verbalmente o que elas veem na imagem revelada, e com isso decide
quais das imagens estão prontas e quais necessitam uma atenção espe-
cial para serem refeitas, ou retrabalhadas.

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Bavkar manuseia a luz dada ou requerida e usa a escuridão como quadro
negro, sendo, como se autodeclara, amante da noite. Utiliza sua lanterna
para fazer desenhos e riscos como intervenções em suas fotografias. Faz
suas imagens, dessa forma, emergirem do vazio. Como pode um cego
produzir e apreciar imagens, e nós, com olhos saudáveis, as vezes nem
sequer darmos conta de sua existência?

A cegueira generalizada que Bavkar comenta, é também, ao meu ver,


uma espécie de delírio, aparentemente incessante, de ansiedade, de
estar fora de si, no sentido do tempo e espaço. Antes o problema esta-
va na televisão, agora nas redes sociais, em como lidamos com elas.
Como podemos usar esse meio propagador de imagens de uma forma
mais sensível, já que somos naturalmente produtores e consumidores de
imagens? Acredito ser preciso viver um momento de cada vez, com a
qualidade que a inquietação do mundo não tem permitido. Precisamos
repensar para onde olhamos e com qual olhar o fazemos.

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É quase inevitável que essa abundância de imagens se faça presente
em nossa vida de alguma forma. Ainda assim, é estar consciente desse
período de abundâncias no qual vivemos, que nos permite encará-lo de
um ponto de vista diferente. É necessário estar consciente do que se vê,
e também do que se produz. Mesmo que o processo de criação seja
baseado em intuição e espontaneidade, vale analisar o que se tem e o
que se espera dessa produção, mesmo que não se espere muito.

Como alternativa a essa cegueira da alma, podemos seguir os passos de


Denilson Lopes que sugere uma nova forma de encarar o mundo a partir
da delicadeza, para que saibamos perceber a beleza em meio ao tumulto.
Delicadeza essa que deve morar em nossos olhos para que eles possam
cumprir sua missão com excelência. “O sublime no banal estabelece mais
um jogo de tensões entre a contemplação e o olhar distraído, a rapidez e
a lentidão e prefere apostar mais na sutileza, na leveza[...]” (LOPES, 2007,
pg.43). Para longe dos excessos selecionamos conscientes, porém leves.

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Leveza essa que é liistada como a primeira das “seis propostas para o
próximo milênio”, de Italo Calvino, é a leveza, que, na esteira dessa refle-
xão, investe na ideia de mudar nossa perspectiva sobre as coisas. Leveza
não para se enganar ou distrair-se do mundo, mas trazer a presença e a
poesia, em contraponto ao excesso e caos. Se não podemos mudar o
que está a nossa volta, ainda podemos mudar nossa atitude perante
elas. Leveza que não deve ser como pluma, e sim como um pássaro,
preciso e determinado (CALVINO, 1990, pg. 28). A Leveza do pássaro se
faz no momento que ele sabe que pode voar. A graça está no saber que
existem vários caminhos, que somos livres para escolher por onde ir,
mas principalmente elo fato de chegaremos lá a partir do voo.

Às vezes, de modo habitual, ficamos presos a sensação de estarmos


de olhos abertos, quando na verdade não vemos nada que acontece.
O engraçado do não ver com olhos abertos, é que podemos inverter
os fatores e sustentar a ideia de que é possível “ver” também de olhos

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fechados, até coisas invisíveis, pois através dos outros sentidos temos
uma percepção diferente do mundo. Imersos na escuridão ficamos mais
atentos ao que o ambiente nos revela.

Cao Guimarães mostra em seu livro Histórias do não ver suas experiên-
cias de “sequestro encomendados”, no qual convidou outras pessoas
a levá-lo vendado a algum lugar, lhes sendo dada total liberdade para que
fizessem qualquer coisa com ele. Levaria consigo apenas uma câmera e só
tiraria a venda quando lhe deixassem no ponto inicial onde estava quando
fora sequestrado. Ao final de cada sequestro Cao escreveu suas observa-
ções e relatos da experiência.

É fechar os olhos de propósito para poder ver mais por outros meios. Ao
amenizar o domínio da visão sobre os outros sentidos, permitimos que
surja um olhar poético que não tínhamos antes. “Céu e chão eram halo
sem luz e sem peso. E dentro desse lugar caminhava a lembrança de

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caminhar sem saber que caminhava ”(GUIMARÃES, 2013, n.p.). Uma vez
li uma história na qual um personagem dizia ao outro que, para escrever
bem, era necessário escrever como se estivesse de olhos fechados. Acho
que ele estava certo.

É essa venda nos olhos que ativa uma percepção de mundo enriqueci-
da. O caráter tirano da visão, que Guimarães comenta, some. A força na
interpretação do mundo agora se transfere a outros sentidos, e se constrói
na mente, a partir da imaginação, memórias e no pressentimento do que
pode acontecer. A nossa capacidade de entender, questionar ou investi-
gar as coisas é priorizada. Incentivamos o exercício da nossa percepção
mundo.

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a beleza de saber tomar distância

As fotos não mostravam a princípio, nada muito além do comum, apenas


copas de árvores e pessoas caminhando sob um ponto de vista dife-
rente, sob um foco diferente. Foi a primeira vez que pensei na miopia
como um assunto necessário em meu trabalho. Uma série de fotografias
de um cotidiano desfocado, produzidas no ano de 2015 no início da
graduação, ainda numa espécie de transição do ensino médio para o
mundo acadêmico. O projeto acabou não sendo suficiente para que eu
me sentisse satisfeita com seu resultado, mas foi com certeza um ponto
de partida para que buscasse diferentes formas de compartilhar o olhar
diferenciado.

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Ali nada estava nítido. Foi analisando essa experiência do desfoque que
entendi certa magnitude no ato de se afastar, em saber tomar distân-
cia. Mudar o foco de vez em quando. Isso vale para várias situações da
vida, a distância nos faz refletir, entender o que temos, ou não, ao nosso
alcance. Nos faz dar importância às coisas que deixamos passar por
despercebido. Desfocar é para mim, o que seria caminhar para longe,
fazer uma pausa, para mais tarde, ao voltarmos, sermos capazes de ver
nesse mesmo lugar, cores que antes não existiam.

A partir dessa trilha que vai se construindo para cada vez mais longe,
é possível também, falar da forma mais extrema de se distanciar das
imagens, o não enxergar. Seja com uma venda, a partir da meditação,
cegueira congênita ou acidental. Podemos utilizar esse artifício para
entender melhor o mundo, ou, pelo menos, entendê-lo de outras formas.
O que é a arte se não isso?

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Bavkar em seu texto “Um outro olhar”, tomando como referência figuras
místicas greco-romanas e a sua própria experiência como cego, apre-
senta-nos outros modos de ver. A princípio compara dois deles, a visão
monocular e rudimentar do Ciclope, e a percepção binocular de Ulisses,
considerada a visão perfeita, aquela que diferencia forma de conteúdo.
Ainda decorrendo sobre outros contos mitológicos, faz uma observação
nos colocando como “Ciclopes”, portadores dessa percepção desfavo-
recida, já que comumente consideramos a visão “perfeita” de Ulisses
como a única forma correta de enxergar. Assim, propõe-nos um terceiro
olho, que se fundamenta na cegueira, no invisível. Um olhar que não
aceita o mundo como ele é, e sim como poderia ser. Olhar que os cegos
possuem, “Para mim, os cegos representam o único grupo que ousa
olhar para o sol diretamente nos olhos.[...] eles aceitam o sacrifício, a fim
de que um outro sol se levante” (BAVKAR, 2003, pg.141)

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Acredito que Bavkar tem toda razão quando, nesse mesmo escrito, diz
que não podemos ser reféns da luz. Precisamos exercitar novas formas de
enxergar e conhecer a nossa capacidade de olhar para além do óbvio. A
escuridão nos traz destreza, a possibilidade de construir uma visão a partir
do seu interior, não como algo egoísta, mas como algo contemplativo e
artístico.

Menciono também “The Blind” (1986), obra de Sophie Calle, na qual


a artista tenta trazer o conceito de beleza dentro da privação da visão.
Calle pergunta a pessoas cegas desde o nascimento qual era para elas a
imagem da beleza. Nesse trabalho, a cegueira nos convida a olhar coisas
simples com mais apreço. Já que os critérios de beleza dos cegos não
estão ligados diretamente a imagem, eles não são enganados por uma
estética que apenas agrada os olhos, mas sim tocados diretamente pelo
o que acontece dentro de si ao se relacionar com determinado cenário,
objeto ou situação.

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Para cada um dos participantes a artista expôs a fotografia do cego que
ela mesma tirou, um quadro com o relato escrito da pessoa e uma ou
mais imagens que Calle escolheu que representasse esse relato.

Somos convidados num dos relatos a apreciarmos a liberdade de um


simples peixe que perambula pela água sem fazer nenhum som. Esse
participante comenta que vê beleza, mas não sabe exatamente o porquê.
Os peixes não fazem nada de especial, não fazem barulho, são pratica-
mente nada e não se conectam a nada, comenta o cego. Mas mesmo
assim o homem já se viu algumas vezes encarando o aquário, porque é
bonito e nada mais.

Um outro participantes diz que a coisa mais bela que já “viu” foi o mar, e
como ele se “perde de vista”. O mais belo nesse caso é que o infinito é

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invisível, nem nossos olhos saudáveis podem capturá-lo. Sua presença
se faz justamente no perder de vista. Ou também no caso dos peixes
onde a beleza deles se constroem a partir de uma certa “não existência”.

Em outro caso uma mulher comenta sobre a beleza das estrelas e delas
carregarem algo dentro de si. Uma garota sobre a beleza da cor verde.
Essas belezas se encontram em mentes que possuem espaço suficiente
para o exercício de nossa imaginação, para carregarem afetos. É encon-
trada num conjunto de palavras que transbordam lembranças, sensações
e sentimentos que nos trazem leveza de alguma forma. Podemos garantir
que nossa sensibilidade permite absorver muito mais do que um simples
jogo de luz e sombra.

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a arte pelos meus olhos

Realizar um mergulho é essencial para a criação artística. É isso que


tentei fazer quando comecei a reconhecer uma linguagem poética que
fosse exclusivamente minha, parte de minha história. Trazer aos poucos
os pinguins para meu trabalho, me ajudou muito a continuar nesse cami-
nho de uma forma mais natural.

Hoje eles se tornaram grande símbolo das minhas produções. Tenho


os abraçado por sua surpreendente característica de serem aves que
vivem no mar, lugar que tem me interessado desde muito pequena. Mas
para poder falar dos pinguins, primeiro preciso revelar o contexto dos
passarinhos.

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Ali, no quintal de minha infância, eram muitos. Cerca de uma dúzia de
pássaros em uma só casa, todos em gaiolas, viveiros. Alguns em pares
ou famílias, mas todos eles destinados ao cárcere da solidão. Ainda crian-
ça, soltei alguns. Por sorte, fui inocentada e protegida pelas mulheres da
família, encobertada pelo ingênuo crime da liberdade.

Como seria poder voar todo o mundo? Como seria poder conhecer todos
os cantos da cidade? Conhecer o topo de todas as árvores e provar o
mais doce e inalcançável fruto do pomar, olhar os diferentes reflexos do
pôr do sol em cada rio, lago e cachoeira, conhecer muitos outros seres
além de mim. Sentir o vento sobre as asas abertas e planar sobre meu
próprio mundo. Cantar para todos, logo de manhã, tudo aquilo que eu
um dia conheci. Mas pinguins não voam. Pelo menos não no ar como eu
estava acostumada a observar os bem-te-vis e andorinhas. Mas se você

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quiser saber como compensam sua inabilidade de alçar voo, basta vê-los
por baixo d’água para perceber que suas “asas” exploram algo mais
denso e fértil que o ar.

Meio peixe, meio ave. Conhecidos por viverem em ambientes hostis


gelados imensos e brancos, fizeram parte da minha infância por meio
de desenhos animados, vídeos, jogos, filmes e bichos de pelúcias. O
pinguim se tornou meu animal favorito, uma ave que não pode chegar
perto das nuvens, mas que sabe ler as estrelas para conhecer seu
caminho, levando um pouco do céu para o mar ao traçar efêmeras
linhas de ar no oceano durante seu mergulho.

Antes estavam presentes apenas em esboços de desenhos em cadernos


de anotações, comecei a trazê-los para minha produção artística
em alguns exercícios como a capa de um livro fictício, que viria a
servir de inspiração para o história de Oswaldo, um pinguim que

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tinha o sonho de virar uma baleia. Foi o primeiro modelo do perso-
nagem, ainda sem muito desenvolvimento de sua personalidade,
feito de com grafite macio, um rascunho de pinguim. Além disso,
também trouxe alguns pinguins quando criei uma linoleogravura
para um conjunto de vinhetas infantis. Foram pequenos gestos convi-
dando-os a adentrarem nas minhas produções.

Durante os exercícios do Ateliê I de Artes gráficas recebemos a deman-


da de desenvolver uma peça com dobraduras. O resultado foi o folder
num formato de um triângulo equilátero, que me permitiu criar diferentes
situações dialógicas dentro da peça. Duas pontas formam o bico de
um pinguim que abre e fecha de acordo com seu manuseio. O mar é
formado de letras, em tons de azul e traz impressa a letra da música “O
Pingüim” de Vinicius de Morais. Os desenhos resultante das faces do
folder mudam dependendo da dobra que se faz ou desfaz. É possível ver
uma onda grande ao fundo da praia, uma montanha distante coberta de

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neve, um mar calmo descansando na areia, e o pinguim com sua cartola
surfando na onda, ou nadando sem rumo.

Após a experiência com o folder, pensei em fazer uma narrativa a partir


da imagem que pudesse trazer um personagem autoral com uma jornada
mais estruturada e desenvolvida. Para isso foi necessário que entendesse
o essencial em cada parte do livro e como isso se apresentaria ao leitor.
Meu primeiro personagem foi Pérgola, pinguim míope que decide enxer-
gar sem lentes, o primeiro a ser desenvolvido para além de sua assinatura
visual, foi construída sua personalidade. Curioso e investigativo, à parte
do mundo de outros pinguins, que sequer aparecem no livro.

Não tinha pensado em produzir um texto nesse livro, pois, por um bom
tempo, tive dificuldade de me expressar verbalmente, e apesar de ter
melhorado muito, sempre gostei mais de lidar com as imagens do que com
as palavras. Mas de acordo com o avanço das ilustrações e do roteiro senti

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que era inevitável enfrentar a escrita. Acho importante pisarmos em chãos
diferentes para aprendermos a andar pelo mundo. O texto tornaria a história
completa. As palavras podem ter uma força muito grande, podem ter sinô-
nimos que te conduzem a lugares totalmente diferentes. As possibilidades
de uso do texto são muito variadas e ricas, foi importante dar um primeiro
passo para vencer esse obstáculo.

O livro é todo em preto e branco, possui 40 páginas e todas ilustrações


foram feitas em nankim. Seu formato aberto, de 38x12cm, reforça o horizon-
te glacial. O ambiente que envolve os pinguins não possui uma vegetação
rica ou com muitas outras espécies em volta, é predominantemente de gelo,
mar e céu. Esse cenário, imenso e vazio, foi bastante propício para essa
história que trata do impalpável. Um vazio capaz de destacar o personagem
e nos fazer mais atentos em relação ao que acontece. Podemos focar no
personagem e apreciar seu mundo subjetivo, como se ele compartilhasse
conosco seus pensamentos, como se mergulhássemos juntos.

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Pérgola possui dois pontos de vista importantes no livro, o olhar do
mergulho e o olhar aproximado sobre o peixe. O mergullho simboliza
essa visão desfocada, onde ele cria seu próprio mundo a partir do pouco
que consegue ver. Com seus sentimentos e imaginação, o visual do mar
se altera em texturas de nankin. A fibra do papel, hachuras, manchas de
cinzas, linhas, respingos e pincél seco. O olhar aproximado, que aparece
no final do livro, representa os olhos míopes quando conseguem enxer-
gar com nitidez. Nesse caso, de perto, há mais detalhes do que um olho
comum é capaz de ver. Na ilustração a textura é novamente utilizada

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para enfatizar a graça do que se vê. A aproximação, mesmo de algo
simples como o peixe, permite contemplarmos um desenho singular. É
uma investigação delicada do entorno que encontra a beleza escondida
nas coisas ordinárias da vida.

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Com ajuda da história de Pérgola,
consegui ser selecionada para a
turma do FIQ Jovem em 2018, um
curso de formação de quadrinistas
gratuito que surgiu como um dos
desdobramentos do FIQ (Festival
Internacional de Quadrinhos). As
aulas ocorreram durante todos os
sábados do segundo semestre
daquele ano.

O que aprendi foi muito importante,


não somente para a criação dos
quadrinhos como algo mais tradi-
cional partindo de uma disposição
de quadros sequenciais e balões

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de diálogo, mas principalmente na construção de uma boa narrativa e na
atenção necessária aos recursos que podem enriquecê-la.

Fui apresentada a autores como Suzy Lee que brinca nos seus livros
Espelho, Onda e Sombra com o passar das páginas e a própria mate-
rialidade do suporte. Frederik Peeters em sua HQ autobiográfica, Pílulas
azuis, tratando de uma doença tão temida de uma forma extremamente
delicada e Vitor Caffaggi, quadrinista e também professor do curso, com
suas versões encantadoras do mais clássico brasileiro Turma da Mônica,
os quadrinhos Laços, Lições e Lembranças, que inclusive serviram de
base para o filme de 2019 “Turma da mônica: Laços”. Nesse curso, além
de uma grande admiração pela área, nasceu meu primeiro quadrinho, a
história de Oswaldo, um pinguim vesgo, criativo e super determinado.

Por que não fazer a história de um sonho impossível de um personagem


excêntrico? Assim, meu antiherói decide se tornar uma baleia e faz de tudo

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para que obtenha sucesso em sua jornada. Mesmo diante de várias situ-
ações adversas, seu modo de lidar com a vida faz, desse olhar vesgo,
um olhar que enxerga mais soluções possíveis do que problemas inven-
cíveis. Seu olhar pode não ser diferente como na miopia ou cegueira,
mas faz parte da identidade desse personagem. Seu modo de não se
importar demais, de ir atrás do que deseja e de ser feliz de sua maneira
é o que faz Oswaldo ser único.

Para ser publicado , as histórias desenvolvidas pelos alunos deveriam


ter quatro páginas para se juntarem numa publicação coletiva da turma.
Foi o suficiente para que Oswaldo cativasse seus leitores. A cada aula
dois ou três professores nos ajudavam s problemas do quadrinho, cores,
disposição dos desenhos na página, texto e outros. As dicas eram dire-
cionadas a produção de cada um o que ajudou muito no crescimento
dos alunos.

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A história de Oswaldo, diferente de pérgola, tem uma estrutura mais
comum aos quadrinhos, possui um ritmo mais rápido e passagens divi-
didas em vários quadros dentro de uma mesma página. É conhecendo
as regras que podemos quebrá-las a nosso favor, não faz sentido justi-
ficar por puro querer, precisamos ter consciência do impacto dessas
escolhas dentro de um trabalho. Algumas ilustrações do personagem
sangram na página, o que ajuda a construir esse mundo maluco. Isso
acontece também com as baleias que passam pelo quadro principal
mas intencionalmente poderiam nadar livremente na página, ignorando
as bordas. Mesmo o simples fato do último quadro não possuir a borda
preta como outros já traz uma certa liberdade a ilustração.

Desde o início dessas experiências narrativas, que colocam em xeque a


visão, já pensava em criar um personagem cego. É Bianca, uma pinguim
cega desde a infância, de corpo branco como seus olhos. Em sua história
de perdas e conquistas, como as de Pérgola e de Oswaldo, ela precisa

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aprender a lidar com os limites e fazer deles uma espécie de combustível
que a leve para um lugar de leveza e beleza. Depois de ter experimentado
nos outros trabalhos, escrever o texto de Bianca foi mais fácil.

Assim como Pérgola, o livro Bianca possui 40 páginas e medidas iguais


quando fechado. A diferença está no modo como se abre, que faz com
que a página dupla resulte num formato quase quadrado. Prioritariamente
feito de contrastes e texturas visuais, a escuridão refere-se à cegueira da
personagem, marcando uma oposição entre ela e o entorno.

A história começa no escuro e, na medida que a personagem vai apren-


dendo a lidar com o mundo à sua volta, o ambiente vai ficando mais claro.
No início sua presença era marcada pelo constraste com o fundo preto,
já no final, apenas um leve contorno nos mostra onde está Bianca. Ela é
finalmente parte daquele mundo, pois já não o teme como antes.

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Após esse trabalho pensei em deixar as palavras de lado por um momen-
to. Há o momento de escutar e o momento de falar. “Verso” é uma narra-
tiva continua e aberta, e que abre mão das palavras. O personagem aqui
é qualquer pinguim, que olha para o céu, que vira mar, e para as estrelas,
que viram peixes. Peixes que se juntam para formar montanhas, e se rear-
ranjam para virar baleia. A baleia nadando na noite escura se dissolve em
flocos de neve, que caem no pequeno
pinguim que tem tudo isso dentro de si.
Ou seja, em sua imaginação.

São porta vozes de meus pensamentos.


Pérgola, Oswaldo, Bianca, o pinguim
qualquer e os outros que ainda estão
sendo gestados numa gaveta de papéis
com anotações e rascunhos esquisi-
tos. Não há como a produção artística

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desvincular-se de nossa vida, mesmo que não seja algo de cunho estritamen-
te biográfico. Desde o começo, todo trabalho que fez sentido pra mim, ou que
considerei digno de ser mostrado como fruto de minha pesquisa poética, teve
uma relação forte com minha vida.

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em direção a novos mergulhos

No último período da graduação de artes gráficas decidimos fazer


uma “auto residência”. Essa decisão influenciou diretamente minha
produção durante o ateliê IV. Buscamos lugares pelo centro de Belo
Horizonte que pudessem atender a essa especificidade, e encontramos
a Casa Azul, lugar pertencente à Universidade Federal de Minas Gerais
e gerenciado pelo DCE, disponível aos estudantes no geral. A casa
se encontra próxima ao Mercado Central e, talvez por ser aindar pouco
conhecida, fomos muito bem acolhidos, também devido à sua recente
reinauguração. A proposta da Residência Artística Cazulo, como decidi-
mos chamar, apoiou-se em uma maior disponibilidade de uso, pois dife-
rente do ateliê que temos na universidade, poderiamos deixar lá nosso
material e frequentar o local em praticamente qualquer horário. Algumas

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atividades e reuniões ocorrreram simultaneamente, mas apenas os alunos
da turma tinham acesso à nossa sala e materiais. A residência artistica,
no geral, é uma experiência de ateliê coletivo num lugar não tradicional
da arte. Demanda um constante diálogo entre os integrantes e o local,
traz o desafio da convivência e a peculiaridade de cada espaço, e isso
faz dessa prática uma ótima experiência para o crescimento dos artistas,
principalmente nesse caso, ainda em formação.

Como apresentei ao longo dessa monografia, minha pesquisa poética se


constituiu em grande parte das histórias dos pinguins, em livros, o que
me distanciou um pouco do desafio de uma exposição no espaço arqui-
tetônico. Como dispor esse tipo de trabalho no espaço, se entendermos
o livro como seu próprio espaço? O ato de virar a página, segurar toda a
história em sua mão e poder leva-lá a qualquer lugar são características
peculiares. A primeira vez que saí do suporte do papel, na companhia de
um livro e de sua história, foi com Pérgola. Para apresentá-lo não sabia

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como seria mais acessível ao público que, além de leitor, seria também
espectador. Foi ai que tive a ideia de usar a fita isolante adesiva como
material artístico, desenhando com ela sobre um banco de três lugares
e a parede por trás dele. Esse desenho tridimensionalizado, por ter uma
linha bastante constrastada, acabou chamando a atenção das pessoas,
que se sentiam convidadas a olhar para ele e a se sentarem. O material
foi muito conveniente para mim, me poupou tempo e se mostrou passível
de correções, diferente da tinta, além de ser forte o suficiente para ficar
ali por bastante tempo.

Alar-se, foi o nome que escolhi para o trabalho feito na Casa Azul. Ele
surgiu à princípio pela ideia do mergulho, mas se tornou, inevitavelmente,
voo, cuja suavidade do percurso me fez feliz. Ocupa duas paredes da
parte de trás da casa, escondido, porém presente. O resultado é uma rota
suave que faz o pinguim, emerge, mergulha e voa. Seu desenho foi feito
novamente com a fita isolante preta, que, devido a sua elasticidade provo-

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cada pelo calor do verão, me permitiu fazer curvas com mais delicadeza.
Até o dia da exposição, acreditei que o trabalho estava concluído, mas
ainda teria mais uma etapa a seguir.

No início da residência era como se a casa fosse uma estranha, como se o


fato de não nos conhecermos estivesse nos separando de alguma forma.
Os problemas que surgiram durante a estadia foram se resolvendo aos
poucos. Só depois de um tempo, fomos nos sentindo mais seguros e à
vontade para trocar ideias com os colegas artistas e trabalhar em nossas
criações. Agora faço parte da memória e, por que não dizer, da recons-
trução, da Casa Azul. Após a exposição, enquanto todos retiravam seus
trabalhos, meus planos seguiram outro rumo. Fiz o registro dos pinguins
na parede com lápis e arranquei as fitas. Isso, pois, além de minha vonta-
de de torná-los parte da casa, em um gesto de acolhida, fui convidada a
pintá-los de forma permanente.

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Agora os pinguins são parte da casa, possuem nas suas linhas que,
agora pintadas com têmpera aguada, deixam ver as texturas da pare-
de, onde nadam sobre montanhas de feitas de rachaduras e marcas do
tempo no muro da casa. “Alar-se” trará um pouco mais de vida ao lugar
e energia às pessoas que passarem por lá. Permitir-se perder o foco -
abandonando temporariamente o papel e os livros - é bom, experimentar
o novo é maravilhoso. É dessa forma que aprendermos, entendemos o
que estamos fazendo e aumentamos nosso repertório criativo.

Desejo que esses meus personagens continuem surgindo e se desdo-


brando em novas experiências. E que através deles eu possa comparti-
lhar um pouco da minha própria história, maneira de ver e viver o mundo.
Gostaria que todos pudessem, por um momento, parar, respirar fundo
e olhar em volta. Somos todos personagens de uma história repleta de
altos e baixos, mas a forma como encaramos o mundo depende apenas
de nós.

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Referências:

BAVCAR, Evgen; TESLER, Elida; BANDEIRA, João. Evgen Bavcar: Memória do


Brasil. São Paulo: Cosac Naify, 2003

CALLE, Sophie. M’as-tu vue. Paris: Centre Pompidou/Éditions Xavier Barral, 2003.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Companhia das letras,
1990.

GUIMARÃES, Cao. Histórias do não ver. Rio de Janeiro: Cobogó, 2013.

JANELA da alma. Direção João Jardim e Walter Carvalho. Brasil: Copacabana


Filmes, 2001. 1 DVD (73 min.).

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LEE, Suzy. Onda. Companhia das letrinhas: São Paulo, 2017

LOPES, Denilson. A delicadeza: estética, experiência e paisagens. Brasília: Edi-


tora Universidade de Brasília:/Finatec Finatec,. Brasília, 2007.

NIKOLAJEVA, Maria. Livro ilustrado: palavras e imagens: Maria Nikolajeva e Ca-


role Scott. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

PEETERS, Frederik. Pílulas azuis. São Paulo: Nemo, 2017

Pérgola, Oswaldo e Bianca podem ser acessados em:


https://issuu.com/danifonsecart

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