4.

48 PSICOSE
de Sarah Kane

Traduo de Laerte Mello

(Um silncio muito longo.)

- Mas voc tem amigos.
(Um longo silncio.)
Voc tem muitos amigos.
O que voc d aos seus amigos que faz com que eles te apiem tanto?
(Um longo silncio.)
O que voc d aos seus amigos que faz com que eles te apiem tanto?
(Um longo silncio.)
O que voc d?
(Silncio.)
----uma conscincia consolidada reside num salo de banquete escurecido perto
do teto de uma mente cujo cho se move como dez mil baratas quando um
feixe de luz penetra como todos os pensamentos se unem num instante de
harmonia corpo no mais repelente como as baratas contm uma verdade que
ningum nunca fala

Tive uma noite em que tudo me foi revelado.

Como eu posso falar de novo?

hermafrodita em pedaos que s confiou nelanele encontra a sala fervendo em

realidade e implora nunca acordar do pesadelo

e estavam todos l
cada um deles
e eles sabiam meu nome
enquanto eu escapava feito um besouro ao longo das costas de suas
cadeiras

Lembre-se da luz e acredite na luz

Um instante de claridade antes da noite eterna

no me deixe esquecer
-----

Eu estou triste
Eu sinto que o futuro sem esperana e que as coisas no podem melhorar
Eu estou cheia e insatisfeita com tudo
Eu sou um completo fracasso como pessoa
Eu sou culpada, estou sendo punida
Eu gostaria de me matar
Eu costumo conseguir chorar mas agora estou alm das lgrimas
Eu perdi o interesse em outras pessoas
Eu no consigo tomar decises
Eu no consigo comer
Eu no consigo dormir
Eu no consigo pensar
Eu no consigo superar minha solido, meu medo, meu desgosto
Eu estou gorda
Eu no consigo escrever
Eu no consigo amar
Meu irmo est morrendo, meu amor est morrendo, estou matando os dois
Eu avano em direo minha morte
Eu estou aterrorizada com a medicao
Eu no consigo fazer amor
Eu no consigo foder
Eu no consigo ficar sozinha
Eu no consigo ficar com outras pessoas
Meus quadris esto grandes demais
Eu no gosto da minha genitlia

s 4.48
quando o desespero visita
eu vou me enforcar
ao som da respirao do meu amante
Eu no quero morrer
Eu me tornei to deprimida pelo fato da minha mortalidade que eu decidi
cometer suicdio
Eu no quero viver
Eu tenho cimes do meu amor adormecido e cobio sua inconscincia induzida
Quando ele acordar vai ter inveja da minha noite sem dormir de pensamentos e
discursos que no se tornaram pastosos pela medicao
Resignei-me a morrer este ano
Alguns vo chamar isso de autocomplacncia
(eles tm sorte de no saber que verdade)
Alguns vo saber o simples fato da dor
Isso est se tornando a minha normalidade

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100
91
84
81
72
69
58
44
37

38

42
21

28

12
7
-----

No foi por muito tempo, eu no estive l muito tempo. Mas bebendo caf
amargo eu sinto aquele cheiro medicinal numa nuvem antiga de tabaco e algo
me toca naquele lugar ainda soluante e uma ferida de dois anos atrs se abre
como um cadver e uma vergonha h muito enterrada brande sua ftida e
decadente mgoa.

Um quarto de faces sem expresso que encaram com indiferena a

minha dor, to desprovidas de significado que deve haver uma inteno
diablica.
Dr. Isso e Dr. Aquilo e Dr. Oqueisso que estava apenas de passagem e
achou que poderia entrar para tirar um sarro tambm. Queimando num
tnel quente de desalento, minha humilhao completa por eu tremer
sem razo e por tropear nas palavras e por no ter nada a dizer sobre
minha "doena" que de qualquer maneira apenas saber que no h
significado em coisa alguma porque eu vou morrer. E estou num beco
sem sada levada por aquela voz suave e psiquitrica da razo que me
diz que h uma realidade objetiva na qual meu corpo e mente so uma
coisa s. Mas no estou aqui nem nunca estive. Dr. Isso escreve e Dr.
Aquilo tenta um murmrio solidrio. Me assistindo, me julgando,
cheirando o fracasso paralisante que escorre da minha pele, meu
desespero me rasgando e o pnico me consumindo me encharcando
enquanto eu abro a boca de horror para o mundo e penso por que todos
esto sorrindo e me olhando com um conhecimento secreto da minha
dolorosa vergonha.
Vergonha vergonha vergonha.
Afogada na sua vergonha de merda.
Mdicos misteriosos, mdicos sensatos, mdicos excntricos, mdicos
que voc pensaria que so uns porras de uns pacientes se no lhe
mostrassem provas do contrrio, fazem as mesmas perguntas, colocam
palavras na minha boca, oferecem curas qumicas para angstias
congnitas e cobrem os rabos uns dos outros at eu querer gritar por
voc, o nico mdico que me tocou voluntariamente, que olhou nos
meus olhos, que riu do meu humor mrbido falado numa voz vinda de
dentro do meu tmulo recm-cavado, que tirou um sarro quando eu
raspei minha cabea, que mentiu e disse que era legal me ver. Que
mentiu. E disse que era legal me ver. Eu confiei em voc, eu amei voc,
e no perder voc que me machuca, mas sim a sua falsidade fodida e
descarada que se mascara em notas mdicas.
Sua verdade, suas mentiras, no minhas.
E enquanto eu acreditava que voc era diferente e que voc talvez at
sentisse a aflio que s vezes oscilava pela sua face e ameaava
irromper, voc estava cobrindo seu rabo tambm. Como qualquer outra
boceta mortal estpida.
Na minha cabea isso traio. E minha cabea o tema desses
fragmentos desorientados.
Nada pode extinguir meu dio.
E nada pode restaurar minha f.
Este no um mundo em que eu deseje viver.
5

-----

- Voc fez algum plano?

- Tomar uma overdose, cortar meus pulsos depois me enforcar.
- Tudo isso de uma vez?
- Isso no poderia de jeito nenhum ser interpretado como um grito de socorro.
(Silncio.)
- No daria certo.
- Claro que daria.
- No daria. Voc se sentiria sonolenta por causa da overdose e no teria
foras para cortar os pulsos.
(Silncio.)
- Eu estaria em p numa cadeira com uma corda enrolada no pescoo.
(Silncio.)
- Se voc estivesse sozinha voc acha que voc faria mal a voc mesma?
- Eu tenho medo que eu possa.
- Isso no seria uma defesa?
- Sim. o medo que me mantm longe dos trilhos do trem. S espero de Deus
que a morte seja mesmo a porra do fim. Me sinto como se tivesse oitenta anos
de idade. Estou cansada da vida e minha mente quer morrer.
- Isso uma metfora, no realidade.
- um smile.
- Isso no realidade.
- No uma metfora, um smile, mas ainda que fosse, a caracterstica que
define uma metfora que ela real.
(Um longo silncio.)
- Voc no tem oitenta anos de idade.
(Silncio.)
6

Tem?
(Silncio.)
Tem?
(Silncio.)
Ou tem?
(Um longo silncio.)
- Voc despreza todas as pessoas infelizes ou s especificamente a mim?
- Eu no desprezo voc. Voc no tem culpa. Voc est doente.
- Eu no acho.
- No?
- No. Estou deprimida. Depresso dio. o que voc fez, quem estava l e
quem voc est culpando.
- E quem voc est culpando?
- A mim mesma.

-----

Corpo e alma nunca podem se casar

Preciso me tornar quem j sou e bradarei contra esta incongruncia que me
destinou ao inferno
A esperana insolvel no me mantm de p
Eu me afogarei na disforia
na lagoa negra e fria de mim mesma
o fosso da minha mente imaterial
Como eu posso voltar forma
agora que meu pensamento formal se foi?
No uma vida que eu possa aceitar.
7

Eles vo me amar por aquilo que me destri

a espada nos meus sonhos
o p dos meus pensamentos
a doena que se reproduz nas dobras da minha mente
Todo elogio tira um pedao da minha alma
Uma crtica expressionista
Nas cadeiras centrais entre dois bobos
Eles no sabem nada
Eu sempre sa livre
ltima numa longa linha de cleptomanacos literrios
(uma tradio honrada pelo tempo)
Roubo o ato sagrado
No caminho distorcido para a expresso
Um excesso de pontos de exclamao escreve um iminente colapso nervoso
Uma nica palavra numa pgina e l est o teatro
Eu escrevo para os mortos
os no-nascidos
Depois das 4.48 eu no vou falar mais
Eu alcancei o fim desse conto sombrio e repugnante
de um sentimento internado numa carcaa aliengena e
inchado pelo esprito maligno da maioria moral
Eu estou morta h muito tempo
De volta s minhas razes

Eu canto sem esperana na fronteira

-----

RSVP ASAP

-----

s vezes eu me viro e sinto o cheiro de voc e eu no posso seguir eu no

posso seguir foda-se sem expressar essa terrvel to fodidamente horrorosa
fsica dolorosa fodida saudade que eu tenho de voc. E eu no posso acreditar
que posso sentir isso por voc e voc no sente nada. Voc no sente nada?
8

(Silncio.)
Voc no sente nada?
(Silncio.)
E eu saio s seis da manh e comeo minha procura por voc. Se sonhei a
mensagem de uma rua ou um bar ou uma estao eu vou l. E espero por
voc.
(Silncio.)
Voc sabe, eu me sinto como se estivesse sendo manipulada mesmo.
(Silncio.)
Eu nunca na minha vida tive problema em dar a outra pessoa o que ela quer.
Mas ningum jamais foi capaz de fazer isso por mim. Ningum me toca,
ningum se aproxima de mim. Mas agora voc me tocou em algum lugar to
fodidamente profundo que eu no consigo acreditar e eu no consigo ser assim
para voc. Porque eu no consigo te achar.
(Silncio.)
Como ela ?
E como eu vou saber que ela quando a vir?
Ela vai morrer, ela vai morrer, foda-se ela s vai morrer.
(Silncio.)
Voc acha que possvel uma pessoa nascer no corpo errado?
(Silncio.)
Voc acha que possvel uma pessoa nascer na poca errada?
(Silncio.)
Vai se foder. Vai se foder. Vai se foder por me rejeitar nunca estando l, vai se
foder por me fazer sentir uma merda, vai se foder por me fazer sangrar amor e
vida, que se foda meu pai por ter fodido minha vida para sempre e que se foda
minha me por no t-lo abandonado, mas acima de tudo, vai se foder Deus
por ter me feito amar algum que no existe,
VAI SE FODER VAI SE FODER VAI SE FODER.

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- Ah querida, o que aconteceu com seu brao?

- Eu me cortei.
- Isso foi muito imaturo, procurar chamar a ateno desse jeito.
Te aliviou de alguma forma?
- No.
- Aliviou sua tenso?
- No.
- Te aliviou de alguma forma?
(Silncio.)
Te aliviou de alguma forma?
- No.
- No entendo por que voc fez isso.
- Ento pergunte.
- Aliviou sua tenso?
(Um longo silncio.)
Posso olhar?
- No.
- Queria olhar, para ver se infeccionou.
- No.
(Silncio.)
- Eu achei que voc poderia fazer isso. Muita gente faz. Alivia a tenso.
- Voc j fez?
- ...
- No. So e sensato demais porra. No sei onde voc leu isso, mas no alivia
a tenso.
(Silncio.)

Por que voc no me pergunta por qu?

10

Por que eu cortei meu brao?

- Voc quer me falar?
- Sim.
- Ento fale.
- ME.
PERGUNTE.
POR QU.
(Um longo silncio.)
- Por que voc cortou seu brao?
- Porque me faz sentir bem pra caralho. Porque bom pra caralho.
- Posso olhar?
- Voc pode olhar. Mas no toque.
- (Olha) E voc acha que no est doente?
- No.
- Eu acho. A culpa no sua. Mas voc tem que assumir a responsabilidade
pelos seus atos. Por favor no faa isso de novo.

-----

Eu temo perder aquela que eu nunca toquei

o amor me mantm escrava numa jaula de lgrimas
Eu ro minha lngua com a qual nunca posso falar com ela
Eu sinto falta de uma mulher que nunca nasceu
Eu beijo uma mulher atravs dos anos que dizem que nunca vamos nos
encontrar
Tudo passa
Tudo perece
Tudo empalidece
meu pensamento se vai com um sorriso assassino
deixando uma ansiedade discordante
que ruge na minha alma
Sem esperana Sem esperana Sem esperana Sem esperana Sem
esperana Sem esperana Sem esperana

11

Uma cano para minha amada, tocando sua ausncia

o fluxo do corao dela, o respingar do seu sorriso
Em dez anos ela ainda estar morta. Quando eu estiver vivendo com isso,
lidando com isso,
quando alguns dias se passarem quando eu nem sequer pensar mais nisso,
ela ainda estar morta.
Quando eu for uma velha senhora vivendo na rua esquecendo meu nome ela
ainda estar morta, ela ainda estar morta, esta
porra
est acabada

e eu tenho que ficar sozinha

Meu amor, meu amor, por que me abandonaste?
Ela o lugar de repouso onde nunca deitarei
e a vida no tem sentido na luz da minha perda
Feita para ser sozinha
para amar a ausncia
Me encontre
me liberte
desta
dvida corrosiva
desespero ftil
horror em repouso
Eu posso ocupar meu espao
ocupar meu tempo
mas nada pode ocupar o vazio do meu corao
A necessidade vital pela qual eu morreria
Colapso

-----

- Nada de ses ou mases.

- Eu no disse se ou mas, eu disse no.
- No-posso devo nunca tenho-que sempre no-vou devia no-irei.
Os inegociveis.
Hoje no.
12

(Silncio.)
- Por favor. No desligue minha mente na tentativa de me curar. Oua e
entenda, e quando sentir desprezo no o expresse, pelo menos no
verbalmente, pelo menos no para mim.
(Silncio.)
- Eu no sinto desprezo.
- No?
- No. A culpa no sua.
- A culpa no sua, isso tudo que eu sempre ouo, a culpa no sua, uma
doena, a culpa no sua, eu sei que a culpa no minha. Voc me disse isso
com tanta freqncia que eu estou comeando a pensar que a culpa minha.
- A culpa no sua.
- EU SEI.
- Mas voc permite.
(Silncio.)
Permite?
- No h uma droga sobre a terra que possa fazer a vida significar algo.
- Voc permite esse estado de desesperado absurdo.
(Silncio.)
Voc permite.
(Silncio.)
- Eu no serei capaz de pensar. Eu no serei capaz de trabalhar.
- Nada vai interferir mais no seu trabalho do que o suicdio.
(Silncio.)
- Eu sonhei que tinha ido mdica e ela me deu oito minutos para viver. E eu
tinha ficado sentada na porra da sala de espera por meia hora.
(Um longo silncio.)

13

Tudo bem, vamos l, vamos s drogas, vamos lobotomia qumica, vamos

desligar as funes mais altas do meu crebro e talvez eu me torne um pouco
mais fodidamente capaz de viver.
Vamos l.

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abstrao at o limite do

desagradvel
inaceitvel
desinspirador
impenetrvel

irrelevante
irreverente
irreligioso
impenitente

desagradar
deslocar
desencarnar
desconstruir

Eu no imagino
(claramente)
que uma nica alma
podia
iria
deveria
ou vai
e se eles fizessem
no acho
(claramente)
que outra alma
uma alma como a minha
podia
iria
deveria
ou vai
sem levar em conta

14

Eu sei o que eu estou fazendo

bem at demais
Nenhum falante de lngua materna

irracional
irreduzvel
irredimvel
irreconhecvel

descarrilada
desordenada
deformada
de forma livre

obscuro at o limite do

Verdadeiro
Certo
Correto
Qualquer um ou qualquer pessoa
Cada
cada-um
todos

afogando num mar de lgica

este monstruoso estado de paralisia

ainda doente

-----

Sintomas: Sem comer, sem dormir, sem falar, sem desejo sexual, em
desespero, quer morrer.
Diagnstico: Dor patolgica.

Sertralina, 50 mg. Insnia piorada, forte ansiedade, anorexia, (perda de 17 kg,)

aumento de inteno, planos e pensamentos suicidas. Interrompido aps
hospitalizao.
Zopiclona, 7,5 mg. Dormiu. Interrompido aps erupes na pele. Paciente
tentou deixar o hospital revelia do mdico. Detida por trs enfermeiros duas
vezes maiores que ela. Paciente ameaadora e no-cooperadora. Idias
paranicas acredita que os funcionrios do hospital esto tentando
envenen-la.
15

Melleril, 50 mg. Cooperadora.

Lofepramina, 70 mg, dobrada para 140 mg, depois 210 mg. Ganho de 12 kg.
Perda de memria recente. Nenhuma outra reao.
Discusso com mdico residente que ela acusou de traio depois do que ela
raspou a cabea e cortou os braos com uma lmina de barbear.
Paciente liberada para o cuidado da comunidade com a chegada de paciente
gravemente psictico sala de emergncia com maior necessidade de um leito
hospitalar.
Citalopram, 20 mg. Tremores pela manh. Nenhuma outra reao.
Lofepramina e Citalopram interrompidos depois que a paciente ficou puta
devido aos efeitos colaterais e ausncia de melhora evidente. Sintomas aps a
interrupo: Tonturas e confuso. Paciente ficou caindo, desmaiando e
andando na frente de carros. Idias alucinadas acredita que o especialista
o anticristo.
Cloridrato de Fluoxetina, nome comercial Prozac, 20 mg, dobrada para 40 mg.
Insnia, apetite irregular, (perda de 14 kg,) forte ansiedade, incapaz de atingir
orgasmo, idias homicidas em relao a vrios mdicos e fabricantes de
drogas. Interrompido.
Humor: Fodidamente raivoso.
Comportamento: Muito raivoso.
Thorazine, 100 mg. Dormiu. Mais calma.
Venlafaxina, 75 mg, dobrada para 150 mg, depois 225 mg. Tontura, baixa
presso sangunea, dores de cabea. Nenhuma outra reao. Interrompido.
Paciente recusou Seroxat. Hipocondria menciona espasmos de piscar de
olhos e forte perda de memria como evidncia de dyskinesia tardia e
demncia tardia.
Recusou qualquer outro tratamento.

100 Aspirinas e uma garrafa de Cabernet Sauvignon blgaro, 1986. Paciente

acordou numa piscina de vmito e disse "Durma com um cachorro e levante
cheio de moscas". Fortes dores estomacais. Nenhuma outra reao.

-----

Escotilha se abre
Luz total

16

a televiso fala
cheia de olhos
os espritos da viso
e agora estou com tanto medo
Eu estou vendo coisas
Eu estou ouvindo coisas
Eu no sei quem sou

lngua para fora

pensamento truncado

os colapsos inconstantes da minha mente

Onde eu comeo?
Onde eu paro?
Como eu comeo?
(J que eu quero ir em frente)
Como eu paro?
Como eu paro?
Como eu paro?
Como eu paro?
Como eu paro?
Como eu paro?
Como eu paro?
Como eu paro?

Uma etiqueta de dor

Apunhalando meus pulmes
Uma etiqueta de morte
Espremendo meu corao

Eu vou morrer
ainda no
mas est l

Por favor...
Dinheiro...
Esposa...
Todo ato um smbolo
cujo peso me esmaga
Uma linha pontilhada na garganta
CORTE AQUI

17

NO DEIXE ISSO ME MATAR

ISSO VAI ME MATAR E ME ESMAGAR E
ME MANDAR PARA O INFERNO
Eu te imploro para me salvar dessa loucura que me come
uma morte sub-intencional
Eu achei que nunca deveria falar de novo
mas agora sei que h algo mais negro que o desejo

talvez isso me salve

talvez isso me mate

um assobio melanclico que o choro de corao partido ao redor da vasilha

infernal no teto da minha mente

um cobertor de baratas

pare essa guerra

Minhas pernas esto vazias

Nada a dizer
E esse o ritmo da loucura
----- Eu asfixiei os judeus, eu matei os curdos, eu bombardeei os rabes, eu fodi
criancinhas enquanto elas imploravam por misericrdia, os campos de
extermnio so meus, todos deixaram a festa por minha causa, eu vou sugar os
seus olhos de merda mand-los numa caixa para sua me e quando eu morrer
vou reencarnar como sua filha s que cinqenta vezes pior e to louca quanto
tudo eu vou fazer da sua vida uma porra de um inferno EU ME RECUSO EU
ME RECUSO EU ME RECUSO TIRE OS OLHOS DE MIM
- Est tudo bem.
- TIRE OS OLHOS DE MIM
- Est tudo bem. Eu estou aqui.
- Tire os olhos de mim

-----

18

Somos antemas
os prias da razo
Por que que eu estou ferida?
Eu tive vises de Deus
e isso vai se passar
Preparai-vos:
pois sereis partidos em pedaos
isso vai se passar
Contemplai a luz do desespero
o fulgor da angstia
e sereis levados escurido
Se houver exploso
(haver exploso)
os nomes dos que ofendem sero gritados dos telhados
Temam Deus
e sua convocao perversa
uma chaga sobre minha pele, um fervilhar no meu corao
um cobertor de baratas onde danamos
este infernal estado de stio
Isso tudo vai se passar
todas as palavras do meu hlito nocivo
Lembre-se da luz e acredite na luz
Cristo est morto
e os monges esto em xtase
Somos os degradados
que destitumos nossos lderes
e queimamos oferendas para Baal
Venham agora, vamos pensar juntos
A sanidade encontrada na montanha da casa do Senhor no horizonte da
alma que recua eternamente
A cabea est doente, a membrana do corao dilacerada
Pisem o cho onde caminha a sabedoria
Abracem mentiras lindas
a insanidade crnica do so

as tores tm incio

----19

- s 4.48
quando a sanidade visita
por uma hora e doze minutos eu fico com a mente no lugar.
Quando isso tiver passado eu terei ido outra vez,
uma marionete fragmentada, um bufo grotesco.
Agora estou aqui eu consigo me ver
mas quando estou encantada pelas miragens vis da felicidade,
a magia repugnante dessa mquina de feitiaria,
eu no consigo tocar na essncia do meu eu.
Por que que voc acredita em mim naquela hora e agora no?
Lembre-se da luz e acredite na luz.
Nada importa agora.
Pare de julgar pelas aparncias e faa um julgamento correto.
- Est tudo bem. Voc vai ficar melhor.
- A tua falta de f no cura nada.
Tire os olhos de mim.

------

Escotilha se abre
Luz total

Uma mesa duas cadeiras sem janelas

Aqui estou eu
E l est meu corpo

danando sobre vidro

Na hora do acidente onde no h acidentes

Voc no tem escolha

a escolha vem depois

20

Corte minha lngua

arranque meus cabelos
corte meus membros
mas me deixe meu amor
Eu preferia ter perdido minhas pernas
arrancado meus dentes
sugado meus olhos
do que ter perdido meu amor

brilha pisca corta queima torce aperta afaga corta brilha pisca soca
queima flutua pisca afaga pisca soca pisca brilha queima afaga
aperta torce aperta soca pisca flutua queima brilha pisca queima

isso nunca vai passar

afaga pisca soca corta torce corta soca corta flutua pisca brilha
soca torce aperta brilha aperta afaga pisca torce queima pisca
afaga brilha afaga flutua queima aperta queima pisca queima brilha

Nada para sempre

(fora o Nada)

corta torce soca queima pisca afaga flutua afaga pisca queima
soca queima brilha afaga aperta afaga torce pisca flutua corta
queima corta soca corta aperta corta flutua corta pisca queima
afaga

Vtima. Perpetrador. Espectador.

soca queima flutua pisca brilha pisca queima corta torce aperta
afaga corta brilha pisca afaga pisca soca pisca brilha queima afaga
aperta pisca torce aperta soca brilha pisca queima pisca brilha

a manh traz derrota

torce corta soca corta flutua pisca brilha soca torce afaga pisca
soca corta aperta brilha aperta afaga pisca torce queima pisca
afaga brilha afaga flutua queima aperta queima brilha pisca corta

dor maravilhosa
que diz que eu existo
21

pisca soca corta afaga torce aperta queima corta aperta corta soca
pisca brilha aperta queima corta afaga pisca flutua brilha pisca
afaga aperta queima corta aperta corta soca brilha pisca queima

e uma vida mais s amanh

-----

100
93
86
79
72
65
58
51
44
37
30
23
16
9
2

-----

A sanidade encontrada no centro da convulso, onde a loucura arrancada

da alma dividida.
Eu me conheo.
Eu me vejo.
Minha vida apanhada numa teia de razo
tecida por um mdico para aumentar a sanidade.

s 4.48
eu vou dormir.

Eu vim a voc esperando ser curada.

22

Voc meu mdico, meu salvador, meu juiz onipotente, meu padre, meu deus,
o cirurgio da minha alma.
E eu sou sua seguidora na sanidade.

-----

para atingir objetivos e ambies

para superar obstculos e alcanar um alto padro
para aumentar a auto-avaliao pelo sucesso no exerccio do talento
para superar a oposio
para ter controle e influncia sobre os outros
para me defender
para defender meu espao psicolgico
para justificar o ego
para receber ateno
para ser vista e ouvida
para excitar, surpreender, fascinar, chocar, intrigar, divertir, entreter ou seduzir
os outros
para estar livre de restries sociais
para resistir coao e constrio
para ser independente e agir conforme o desejo
para desafiar a conveno
para evitar a dor
para evitar a vergonha
para apagar humilhaes passadas recapitulando aes
para manter o auto-respeito
para reprimir o medo
para superar a fraqueza

23

para pertencer
para ser aceita
para se aproximar e interagir agradavelmente com o prximo
para conversar de maneira amigvel, para contar histrias, trocar sentimentos,
idias, segredos
para comunicar, para conversar
para rir e contar piadas
para conquistar a afeio do Outro desejado
para aderir e se manter fiel ao Outro
para gozar experincias sensuais com o Outro imaginado
para alimentar, ajudar, proteger, confortar, consolar, apoiar, cuidar ou curar
para ser alimentada, ajudada, protegida, confortada, consolada, apoiada,
cuidada ou curada
para construir uma relao mutuamente agradvel, durvel, cooperativa e
recproca com o Outro, com um igual
para ser perdoada
para ser amada
para ser livre

-----

24

- Voc viu o pior de mim.

- Sim.
- Eu no sei nada de voc.
- No.
- Mas eu gosto de voc.
- Eu gosto de voc.
(Silncio.)
- Voc minha ltima esperana.
(Um longo silncio.)
- Voc no precisa de um amigo voc precisa de um mdico.
(Um longo silncio.)
- Voc est to errado.
(Um silncio muito longo.)
- Mas voc tem amigos.
(Um longo silncio.)
Voc tem muitos amigos.
O que voc d aos seus amigos que faz com que eles te apiem tanto?
(Um longo silncio.)
O que voc d aos seus amigos que faz com que eles te apiem tanto?
(Um longo silncio.)
O que voc d?
(Silncio.)
Ns temos um relacionamento profissional. Acho que temos um bom
relacionamento. Mas profissional.
(Silncio.)
Eu sinto sua dor mas eu no posso manter sua vida em minhas mos.

25

(Silncio.)
Voc vai ficar bem. Voc forte. Eu sei que voc vai ficar bem porque eu
gosto de voc e no se pode gostar de uma pessoa que no goste dela
mesma. Eu temo pelas pessoas de que eu no gosto porque elas se odeiam
tanto que tambm no deixam ningum gostar delas. Mas eu gosto mesmo de
voc. Eu vou sentir sua falta. E sei que voc vai ficar bem.
(Silncio.)
A maioria dos meus clientes quer me matar. Quando eu saio daqui no fim do
dia eu preciso ir para casa para o meu amor e relaxar. Eu preciso estar com
meus amigos e relaxar. Eu preciso dos meus amigos para estar realmente
junto.
(Silncio.)
Eu odeio essa porra desse trabalho e eu preciso dos meus amigos para me
manter so.
(Silncio.)
Me desculpe.
- No culpa minha.
- Me desculpe, isso foi um erro.
- No culpa minha.
- No. No culpa sua. Me desculpe.
(Silncio.)
Eu estava tentando explicar
- Eu sei. Estou com raiva porque eu entendo, no porque eu no entendo.

-----

Engordada
Escorada
Expulsa
meu corpo descompensa
meu corpo voa em pedaos
no h como alcanar
para alm da tentativa de alcanar que eu j fiz
26

voc vai ter sempre uma parte de mim

porque voc teve minha vida em suas mos
aquelas mos brutas
isso vai acabar comigo
eu achei que era silncio
at se fazer silncio
como voc inspirou essa dor?
eu nunca entendi
o que que eu no deveria sentir
como um pssaro voando num cu inchado
minha mente rasgada por um relmpago
quando ela voa fugindo do trovo

Escotilha se abre
Luz total
e Nada
Nada
vejo Nada

Como eu sou?
a filha da negao
de uma cmara de tortura para outra
uma vil sucesso de erros sem perdo
cada passo do caminho eu ca
Desespero me impele ao suicdio
Angstia para a qual os mdicos no podem encontrar cura
Nem querem entender
Eu espero que voc nunca entenda
Porque eu gosto de voc
Eu gosto de voc
Eu gosto de voc
imvel gua preta
to profunda como o infinito
to fria como o cu
to imvel quanto meu corao quando sua voz se foi
eu vou congelar no inferno
claro que eu te amo
voc salvou minha vida

27

eu queria que voc no tivesse

eu queria que voc no tivesse
eu queria que voc tivesse me deixado sozinha
um filme preto e branco de sim ou no sim ou no sim ou no sim ou no sim
ou no sim ou no

Eu sempre te amei
mesmo quando te odiei
Como eu sou?
exatamente como meu pai

ah no ah no ah no

Escotilha se abre
Luz total

a ruptura comea

Eu no sei mais para onde olhar

Cansada de procurar na multido

Telepatia
e esperana
Ver as estrelas
prever o passado
e mudar o mundo com um eclipse de prata
a nica coisa que permanente a destruio
ns vamos todos desaparecer
tentando deixar uma marca mais permanente do que eu mesma

Eu no me matei antes ento no procure precedentes

O que veio antes foi s o princpio

um medo cclico
no a lua a terra
Uma revoluo

Querido Deus, querido Deus, o que eu devo fazer?

28

Tudo que eu sei

neve
e negro desespero

No sobrou nenhum lugar para me virar

um espasmo moral sem efeito
a nica alternativa ao assassinato

Por favor no me corte para descobrir como morri

Eu te digo como morri
Cem de Lofepramina, quarenta e cinco de Zopiclona, vinte e cinco de
Temazepam, e vinte de Melleril
Tudo que eu tinha
Engolida
Cortada
Enforcada
Est feito

cuidado com o Eunuco

de pensamento castrado
crnio
sem ferimento

a captura
a loucura
a ruptura
de uma alma

uma sinfonia solo

s 4.48
a hora feliz
quando a claridade visita

escurido quente
que alaga meus olhos
29

eu no conheo pecado

essa a doena de se tornar grande

essa necessidade vital pela qual eu morreria

ser amada

eu estou morrendo por algum que no se importa

eu estou morrendo por algum que no sabe
voc est me quebrando
Fala
Fala
Fala
um crculo de fracasso de dez metros
tire os olhos de mim
Minha ltima declarao
Ningum fala
Me legitime
Me testemunhe
Me veja
Me ame
minha submisso final
minha derrota final
a galinha ainda dana
a galinha no vai parar
eu penso que voc pensa de mim
do jeito que eu quis que voc pensasse de mim
o pargrafo final
o ponto final final

cuide de sua me agora

cuide de sua me

30

Cai neve negra

na morte voc me abraa

nunca livre

eu no tenho nenhum desejo da morte

nenhum suicida jamais teve

me veja esvanecer
me veja
esvanecer
me veja
me veja

veja

31

Sou eu mesma que eu nunca encontrei, cuja face est colada no lado inferior
da minha mente

por favor abra as cortinas

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