Entrevista Sobre Residualidade
Entrevista Sobre Residualidade
Entrevista Sobre Residualidade
RP Isso que voc observou sobre o lxico, espanhol ou galego, e se encontra na nossa
cultura nordestina, realmente residual. Muitas pessoas j tocaram no assunto antes.
Inclusive h matrias veiculadas por revistas de divulgao que circulam regularmente nas
bancas e parecem ser revistas de cincia quando na verdade so de divulgao cientfica,
como Galileu ou Super-Interessante e quejandas. Uma delas publicou se no me engano
a matria saiu na Isto anotaes curiosas de um jornalista sobre estes falares, numa
linguagem jornalstica, evidentemente. Ele no falou em residualidade, claro, e nem
podia, pois escreveu a matria sem ter conhecimento da nossa teoria. Mas, de fato, sua
constatao convergiu para o que teorizamos. O fato lingstico existe e preciso
desenvolver pesquisa nesse sentido na rea da Lingstica. Ns no fizemos isso. No vou
fazer pesquisa lingstica. Compete a quem for da rea faz-lo. Minha investigao se
circunscreve rea da Literatura e da cultura, mas no especificamente da cultura
lingstica. Sua observao sobre a residualidade est correta. A obra de Gonalo de
Berceo mostra uma ligao temtica com a do Ariano Suassuna, tambm com a de Gil
Vicente e com a de certos cordis nordestinos. A Compadecida est ligada narrativa
antiqssima dos rabes, s Mil e uma noites. Todas essas coisas se juntam, se harmonizam.
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Ento a gente comea a pensar no resduo, naquilo que remanesce das culturas vrias. Mas
ns pensamos concomitantemente na hibridao de culturas. E o que vem a ser hibridao
cultural? Este conceito acompanha o de residualidade. Hibridao cultural expresso
usada para explicar que as culturas no andam cada qual por um caminho, sem contato com
as outras. Ou seja, no percorrem veredas numa nica direo. So rumos convergentes.
So caminhos que se encontram, se fecundam, se multiplicam, proliferam. A hibridao
cultural se nutre do conceito de hibridismo, comum mitologia. Que um ser hbrido?
aquele composto de materiais de natureza diversa. No caso, o Auto da Compadecida
composto de hibridismos culturais provenientes de narrativas culturais diferentes. hbrido
por isso; e residual tambm por isso.
RM Apesar de o Ariano ter conscincia de que esse episdio fazia parte do folclore
nordestino...
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entenderem, use substratos mentais, que estes tambm so restos, remanescncias. Eu j
usei a expresso h algum tempo, inclusive porque bonita. Eu quero primeiro lembrar a
ligao que h da residualidade com a hibridao cultural, com os hibridismos. Que vem a
ser um hbrido? Um centauro, metade homem, metade cavalo, imaginrio concebido na
Idade Antiga, na Grcia dos deuses. Eis um exemplo de ser hbrido. So duas naturezas: a
humana e a irracional num nico ser. A cultura assim. E as obras literrias tambm. Esse
o modo da gente enxergar a obra residual. A ns nos compete termos bons olhos para
enxergar os resduos nas obras literrias. Significa dizer que ns chamamos a ateno dos
nossos alunos, dos nossos colegas professores, dos nossos companheiros de investigao
daqui, de outras universidades do Cear, do Brasil e de outros pases... Mas s incorpora
esse ponto de vista de investigao quem quer, pois assim acontece com o conhecimento.
Felizmente ele no uma camisa-de-fora. E h um segundo conceito, o de cristalizao,
marca bem prpria da Teoria, estabelecida a partir da noo de resduo. O conceito
principal o da residualidade; e se eu tivesse de fazer uma escolha por grau de
importncia, colocaria este conceito em primeiro lugar; em segundo a cristalizao; em
terceiro a mentalidade; em quarto o hibridismo cultural. Essas coisas podem ser
investigadas tanto separadamente quanto em conjunto, porque uma implica na outra e ajuda
a esclarecer ao mesmo tempo o objeto investigado. So o que em teoria chamamos de
conceitos operativos, ou operacionais, isto , indispensveis operao do esclarecimento.
So, pois, os conceitos operativos da nossa teoria. Ento, a primeira coisa a entender o
resduo. Que o resduo? Est dito no meu livro Poesia insubmissa afrobrasilusa, tambm
na minha tese O jogo de duplos na poesia de Mrio de S-Carneiro, e nos vrios escritos
seguidamente elaborados e publicados em Anais e Atas de reunies cientficas nacionais e
internacionais, em revistas, em livros: resduo aquilo que remanesce de uma poca para
outra e tem a fora de criar de novo toda uma obra, toda uma cultura. O resduo dotado de
extremo vigor. No se confunde com o antigo. manifestao dotada da fora do novo
porque passa sempre por uma cristalizao. algo que se transforma, como o mineral
bruto tornado jia na lapidao. A camos no conceito de cristalizao. E o que a
cristalizao? Li este termo pela primeira vez em pginas esparsas, assim como a palavra
resduo. Em certos livros podemos ler: so resduos que esto disposio de quem os
queira aproveitar... Em seu livro A criao literria, Massaud Moiss dispensa algumas
linhas ao residuo interno por ele vislumbrado em toda obra de arte. Antonio Candido toca
de raspo no assunto: resduos do Romantismo esto presentes no Realismo. Alfredo
Bosi tambm. Mas nenhum deles, nenhum desses autores pra, a fim de desenvolver uma
reflexo mais longa sobre o resduo. Venho fazendo esta reflexo mais detida; posso no
ter o mesmo talento que eles, mas entreguei-me mais largamente ao assunto. Ento vamos
ver de novo o que o resduo. O resduo aquilo que resta de alguma cultura. Mas no
resta como material morto. Fica como material que tem vida, porque continua a ser
valorizado e vai infundir vida numa obra nova. Essa a grande importncia do resduo e da
residualidade. O resduo no um cadver da cultura grega ou da cultura medieval que
deve ser reanimado nem venerado, num culto obtuso de exaltao do antigo, do morto,
promovendo o retorno ao passado, valorizando a melancolia e a saudade, como fizeram os
portugueses durante o Saudosismo literrio; no isso. A gente apanha aquele
remanescente dotado de fora viva e constri uma nova obra com mais fora ainda, na
temtica e na forma. a que se d o processo da cristalizao. No posso dizer onde
comea nem onde termina a cristalizao. S posso afirmar que assim. Poder algum
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assegurar quando comea a se fazer o casulo da borboleta? Ou se est a meio processo de
se fazer ou se chegou ao fim? preciso compreender este processo como um todo.
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fase, no toda a Idade Mdia. Ningum melhor do que Richard Wagner para representar a
poca romntica, momento em que escreveu, bem significativo do modo de ser alemo
naquele momento.
Ento, como conhecer a mentalidade desses povos, como apreender a mentalidade
desses homens, como captar a mentalidade que permaneceu por muito tempo nas culturas?
Atravs dos vestgios (remanescncias, resduos) encontrveis nas obras da cultura
espiritual e material dos povos. A Antropologia sabe que atravs da cultura material que
chegamos a compor um painel da cultura espiritual dos povos. Cultura espiritual, tal qual
emprego aqui, tem o sentido de conjunto de idias, conjunto ideolgico de um momento.
a que devemos surpreender o teor da mentalidade.
Voc pode perfeitamente dizer: esse homem tem uma mentalidade tacanha; ou tem
uma mentalidade pequena. Essa avaliao diz respeito a uma maneira de ser e por isso ao
classificamos o pensamento de certo indivduo como tacanho ou pequeno estamos
procedendo a uma avaliao da sua viso-de-mundo a qual envolve, naturalmente, valores,
valorao. Voc est avaliando. Quando algum se pe a considerar criticamente
determinada coisa, a pessoa procede a uma avaliao de mentalidade. Em todos os livros
lidos h menes mentalidade. Desde muito antes da histria das mentalidades, j
falvamos da mentalidade persa, da mentalidade dominante na Grcia antiga ou da
mentalidade que permeou o Romantismo portugus. Essas aluses so freqentes. Mas, no
sentido de mentalidade, teoricamente pensada e analisada, encontramo-la bem definida na
Histria das Mentalidades, surgida como uma das alternativas de compor um novo vis de
investigao histrica para a Escola dos Anais e a Histria Nova, a Nouvelle Histoire
francesa.
RM E quanto aos historiadores que optaram pela Histria das Mentalidades?
RP Temos muitos nomes. Eu no vou declin-los porque so muitos. Mas de qualquer
forma, a gente tem que compreender mentalidade no sentido exposto. Ento, no possvel
dissociar mentalidade de resduo. Voc pode ver como esto reconstituindo os dinossauros.
Primeiro, descobrem uma presa do bicho. Depois um osso do fmur. Em seguida uma ponta
de rabo, certificando-se serem do mesmo dinossauro. Quando se coloca um vestgio com
outro resto, com outra parte do esqueleto do animal, quando de 15 a 20 por cento desse
esqueleto est montado, torna-se possvel fazer uma projeo, procedimento sempre ideal,
no domnio das cogitaes, para assim compormos uma figura ideal de dinossauro. assim
que entram nos programas de computador estes dados e so projetados. Dessa forma os
cientistas esto construindo a idia dos dinossauros, levantando a hiptese de como eram e
viviam, at a informao converter-se num filme jurssico, de Spielberg. Em tudo por tudo
a residualidade eficaz. Por meio dos resduos os cientistas vo recompondo no s a
datao histrica, mas tambm o modo de ser daqueles animais pr-histricos.
A mentalidade tem a ver no s com aquilo que a pessoa de um determinado
momento pensa. Mas um indivduo e mais outro indivduo e mais outro indivduo, a soma
de vrias individualidades redunda numa mentalidade coletiva. E essa mentalidade coletiva
se transmite atravs da Histria. Por meio da mentalidade dos indivduos a mentalidade
coletiva se constri. Esta ltima, desde pocas remotssimas, transmitida a pocas
recentes.
Exemplifiquemos. Dia 02 de novembro, no nosso calendrio, dia de Finados.
Todo mundo sai de casa e vai para o cemitrio. Isto, no Brasil, algo que a grande maioria
das pessoas faz. No dia dos mortos as pessoas compram flores e velas, vo aos cemitrios,
visitam as covas e tmulos onde foram sepultados os entes queridos, rezam e acendem
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velas para seus mortos. Chega mesmo a haver um culto coletivo junto cruz das almas. E o
visitante acende velas, uma atrs da outra, ao p da cruz, no cemitrio So Joo Batista. De
longe, v-se aquele monte de velas queimando... Ento, o que isso? Nada mais nada
menos do que remanescncia, do que o resduo de uma atitude tanto individual quanto
coletiva, que coincide com algo j era praticado pelos romanos nos lares, o culto dos
antepassados. Onde se praticava este culto? Dentro da prpria casa, num oratoriozinho,
onde era feito o voto eterno de se manter uma chama acesa para o esprito dos mortos da
famlia. Hoje, praticamos o mesmo ritual uma vez ao ano, no dia 02 de novembro, mas
nada impede que essa mesma manifestao seja ritualizada na Igreja catlica atravs da
lmpada votiva. O que ns temos dentro dos templos catlicos? A mentalidade
antiqssima dos lares porque, quando os sacerdotes acendem uma lmpada votiva para o
Corao de Jesus e ela fica queimando durante o ano inteiro, dentro dos templos, estamos
diante da mesma manifestao que os romanos faziam pelo esprito antecessor. Mas esta,
no caso, se reveste de carter sacral porque a Igreja o incorporou e o sacralizou, do ponto
de vista religioso, para neutralizar inclusive um costume pago. De qualquer modo, pela
Antropologia sabemos que a mentalidade se transmite.
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compreender que mentalidade um modo de ser, ento consegue extrair mil coisas de uma
leitura de livros.
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XVII. No Brasil, continua e segue clere pelos sculos XIX e XX, ganhando nicho at no
carnaval de rua do sculo XXI.