Cesar Polcino - Breve História Da Álgebra
Cesar Polcino - Breve História Da Álgebra
Cesar Polcino - Breve História Da Álgebra
Álgebra Abstrata
Introdução
1 Um panorama geral 3
1.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3
1.2 O simbolismo algébrico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
2 Os campos numéricos 13
2.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
2.2 A necessidade dos números complexos . . . . . . . . . . . . . 16
2.3 Progressos Ulteriores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18
2.4 O Teorema Fundamental da Álgebra . . . . . . . . . . . . . . 21
3 A abstração em álgebra 25
3.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
3.2 O apego à aritmética universal . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
3.3 A álgebra abstrata . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28
5 Novas estruturas 39
5.1 Grupos e matrizes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
5.2 Teoria de corpos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42
5.3 Anéis e Álgebras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46
1
2 SUMÁRIO
Capı́tulo 1
Um panorama geral
1.1 Introdução
Durante muitı́ssimo tempo, a palavra Álgebra designava aquela parte
da matemática que se ocupava de estudar as operações entre números e,
principalmente, da resolução de equações. Nesse sentido, pode-se dizer que
esta ciência é tão antiga quanto a própria história da humanidade, se levamos
em conta que esta última se inicia a partir da descoberta da escrita.
De fato, tanto nas tabuletas de argila da suméria quanto nos papiros
egı́pcios, encontramos problemas matemáticos que lidam com a resolução de
equações. No Papiro Rhind, por exemplo, documento egı́pcio que data apro-
ximadamente do ano 1650 a.C. e no qual o escriba conta que está copiando
material que provém do ano 2000 a.C., encontramos problemas sobre dis-
tribuição de mercadorias que conduzem a equações relativamente simples.
Surpreendentemente, descobrimos também que os antigos babilônios sabiam
resolver completamente equações de segundo grau (veja, por exemplo o Ca-
pı́tulo III de [3]).
Desde os seus começos, a álgebra se preocupou sempre com a procura de
métodos gerais e rigorosos. Assim por exemplo, R.J. Gillings [9, Appendix I]
comentando os métodos que os egı́pcios usavam para lidar com a resolução
de equações diz:
3
4 CAPÍTULO 1. UM PANORAMA GERAL
de Diofanto não chegaram até nós, não sabemos com toda certeza quais os
sı́mbolos que ele usava, mas acredita-se que representava a incógnita pela
letra ς, uma variante da letra σ quando aparece no fim de uma palavra (por
,
exemplo, em αριθµóς - arithmos). Esta escolha se deve provavelmente ao
fato de que, no sistema grego de numeração, as letras representavam também
números conforme sua posição no alfabeto, mas a letra ς não fazia parte do
sistema e não correspondia, assim, a nenhum valor numérico particular.
Ele usava também nomes para designar as várias potências da incóg-
nita, como quadrado, cubo, quadrado-quadrado (para a quarta potência),
quadrado-cubo (para a quinta) e cubo-cubo (para a sexta). O uso de po-
tências superiores a três é notável uma vez que, como os gregos se apoiavam
em interpretações geométricas, tais potências não tinham um significado con-
creto. Porém, de um ponto de vista puramente aritmético, estas potências
sim tem significado e esta era a postura adotada por Diofanto.
A partir de então, os métodos e notaçoes de Diofanto foram se aperfeiço-
ando muito lentamente. Mesmo os sı́mbolos hoje tão comuns para representar
as operações demoraram a ser introduzidos. Muitos algebristas usavam p e m
para representar a adição e a subtração por serem as iniciais das palavras la-
tinas plus e minus. O sı́mbolo = para representar a igualdade foi introduzido
só em 1557 por Robert Recorde e não voltou a aparecer numa obra impressa
até 1618. Autores como Kepler, Galileo, Torricelli, Cavalieri, Pascal, Napier,
Briggs e Fermat, entre outros, ainda usavam alguma forma retórica em vez
de um sı́mbolo, como as palavras aequales, esgale, faciunt, gheljck ou
a abreviatura aeq. Para uma história detalhada da evolução do simbolismo
algébrico, o leitor pode consultar a referência clássica de F. Cajori [4].
A notação de expoentes é usada por Nicolas Chuquet (1445?-1500?) na
sua Tripary, onde escreve expressões como 123 , 103 e 1203 para representar
o que hoje escreverı́amos como 12x3 , 10x3 e 120x3 e também 120 e 71m para
12x0 e 7x−1 .
Alı́ ele usou sı́mbolos como
0,
1,
2, etc. para indicar as posições das
unidades, dı́zimas, centésimas, respectivamente. Assim por exemplo, ele es-
creve 875, 782 como 875
0 7
1 8
22
3 . No restante do livro, ele estuda
as operações entre dı́zimas e justifica as regras de cálculo empregadas. O
leitor interessado pode ver uma tradução ao inglês de De Tiende em [28, pp.
20-34].
No seu livro seguinte, “L’ Arithmetique”, publicado em 1585, ele introduz
uma notação exponencial semelhante para denotar as várias potências de uma
variável. As potências que nós escreverı́amos com x, x2 x3 etc. são denotadas
por ele como
0,
2, e assim, por exemplo, o polinômio 2x3 + 4x2 + 2x + 5
1,
se escreveria, na sua notação como:
2
3+4
2+2
1+5
0
Ele denomina estas expressões de multinômios e mostra como operar com
eles. Entre outras coisas, observa que as operações com multinômios tem
muitas propriedades em comum com as operações entre “números aritméti-
cos”. Ainda, ele mostra que o algorı́tmo de Euclides pode ser usado para
determinar o máximo divisor comum de dois “multinômios”.
É interessante destacar aqui que nos encontramos frente a dois progressos
notáveis na direção da abstração. De um lado temos a percepcão, cada vez
mais clara, de que os métodos de resolução de equações dependem unicamente
do grau da equação e não dos valores dos coeficientes numéricos (vale lembrar
que autores como Tartaglia, Cardano e outros, que se utilizavam apenas de
coeficientes positivos, consideravam como problemas diferentes, por exemplo,
as equações da forma X 3 = aX + b e X 3 + aX = b). Mais importante ainda,
vemos que Stevin trata seus multinômios como novos objetos matemáticos e
estuda as operações entre eles.
Após sua morte, seu amigo escocês Alexandre Anderson fez publicar, em
1615, num só volume, dois artigos de Viète escritos em torno de 1591, inti-
tulados De aequationem recognitione e De aequationem emendationem. 3
2
Viète não usava o termo Álgebra que, por ser de origem árabe, não considerava ade-
quado para a Europa cristã; no seu lugar empregava o termo Análise que, devido talvez a
sua influência, foi adotado depois como sinônimo de “Álgebra Superior”.
3
Dois episódios ilustram muito bem o talento matemático de Viète e fama que chegou
a desfrutar ainda durante sua vida Em 1593, o matemático belga Adriaen van Roomen
(1561-1615) - ou Adrianus Romanus, na versão latinizada do seu nome - propôs “a todos
os matemáticos” o problema de resolver uma determinada equação de grau 45, do tipo:
O embaixador dos Paı́ses Baixos na corte de França afirmou então que nenhum matemático
francês seria capaz de resolver esta equação. O rei, Henrique IV, fez Viète saber deste de-
safio e ele notou que a equação proposta resultava de expressar a igualdade K = sen(45.θ)
em termos de x = sen θ e conseguiu achar, nessa primeira audiência, uma raiz positiva. No
dia seguinte, ele achou todas as 23 raı́zes positivas da equação. Van Roomen ficou tão im-
pressionado que fez uma visita especial a Viète. Este publicou sua solução em 1595, num
tratado intitulado Ad problema, quod omnibus mathematicis totius orbis construendum
propusuit Adrianus Pomanus, responsum.
Outro episódio que ilustra sua extraordinária capacidade é o seguinte. Durante a guerra
com a Espanha, ainda a serviço de Henrique IV, ele pode decifrar o o código utilizado
pelos espanhois a partir de cartas que foram interceptadas e, dali em diante, conhecer
o conteúdo de novas cartas escritas nesse código. Os espanhois achavam seu código tão
difı́cil de ser quebrado, que acusaram a França, perante o Papa, de usar feitiçaria.
10 CAPÍTULO 1. UM PANORAMA GERAL
equalle.
(Usarei, como faço frequentemente no trabalho, um par de linhas para-
lelas, do mesmo comprimento assim :=, porque duas coisas não podem
ser mais iguais).
Este sı́mbolo não foi incorporado rápidamente; como vimos, Viète, usava
ainda, em 1589, a expressão aequalis e, mais tarde, o sı́mbolo ∼. Descartes,
em 1637, usava ∝ que provavelemente deriva de ae, usado como abreviatura
de aequalis.
Incidentalmente, vale a pena mencionar que os sı́mbolos + e - hoje usados
para denotar adição e subtração respectivamente aparecem impressos pela
primeira vez num texto de Johannes Widman, professor da Universidade
de Leipzig nascido em torno de 1460. O sinal + deriva, aparentemente da
palavra latina et, usada em vários manuscritos para designar a adição e o sinal
- da letra m que, como vimos, era usada para abreviar minus. Eles são usados
numa aritmética comercial intitulada Rechenung auff allen Kauffmanschafft
que publicou em 1489, mas estes sinais já aparecem em notas manuscritas
de um aluno seu de 1486 que se conservam na biblioteca de Dresden (Codex
Lips 1470).
Eles foram aceitos gradativamente e já Boaventura Cavalieri, um discı́-
pulo de Galileo, na sua Exercitationes Geometricae Sex de 1647 os usa como
se fossem familiares ao leitor.
5
Termo derivado de gemellus, gémeas, que ele já usara na sua Pathemwaie to Knowledge
para designar as paralelas.
12 CAPÍTULO 1. UM PANORAMA GERAL
Capı́tulo 2
Os campos numéricos
2.1 Introdução
As orı́gens da noção de número ou operação são tão antigas quanto a pró-
pria cultura humana. Parece claro que os números naturais; i.e., os elementos
da seqüência 0, 1, 2, 3, . . . desenvolveram-se a partir da experiência cotidiana
e os seu emprego foi generalizando-se gradativamente. Algo análogo aconte-
ceu com os números racionais não negativos; i.e., os números da forma a/b,
onde a e b são números naturais. Já encontramos o uso destes números no
Egito, na Babilônia, e os gregos fizeram deles usos muito sofisticados.
Algo bem diferente aconteceu com os números negativos. O primeiro uso
conhecido dos inteiros negativos encontra-se numa obra indiana, devida a
Brahmagupta, de 628 d.C. aproximadamente, onde são interpretados como
dı́vidas. Desde seu aparecimento, eles suscitaram dúvidas quanto a sua le-
gitimidade. Assim por exemplo, Stifel em 1543 ainda os chama de números
absurdos e Cardano, de quem nos ocuparemos adiante, os considerava solu-
ções falsas de uma equação.
Uma coisa semelhante aconteceu com os números irracionais; isto é, aque-
les que não podem ser escritos na forma a/b com a e√ b números
√ inteiros; por
exemplo, os números que hoje representamos como 2, 3, π, e, etc. Já ná
época dos pitagóricos, no século VI a.C. se sabia da existência de segmentos
cuja medida não era um número racional: dado um quadrado√de lado 1, pode-
se provar facilmente que sua diagonal de ter medida√ igual a 2. Para autores
como Pascal e Barrow, sı́mbolos tais como 2 representavam apenas mag-
nitudes geométricas que não tinham existência independente, e cuja medida
13
14 CAPÍTULO 2. OS CAMPOS NUMÉRICOS
apenas podia ser aproximada por números racionais. Tal é também o ponto
de vista assumido por Newton na sua Arithmeica Universalis, publicada em
1707.
Quando a ciência européia ainda não tinha clara a validade do emprego
dos números negativos ou dos irracionais, irromperam no mundo matemático
os números que hoje chamamos de complexos.
O fato de que um número negativo não tem raiz quadrada parece ter sido
sempre claro para os matemáticos que se depararam com a questão.
A rigor, uma equação era vista como a formulação matemática de um
problema concreto; assim, se no processo de resolução aparecia uma raiz
quadrada de um número negativo, isto era interpretado apenas como uma
indicação de que o problema originalmente proposto não tinha solução. Como
veremos, foram só as equações de terceiro grau que impuseram a necessidade
de trabalhar com estes números.
Vejamos inicialmente alguns antecedentes. Um primeiro exemplo desta
atitude aparece na Arithmetica de Diophanto. Aproximadamente no ano de
275 d.c. ele considera o seguinte problema:
Um triângulo retângulo tem área igual a 7 e seu perı́metro é de 12
unidades. Encontre o comprimento dos seus lados.
x 10 − x
| | |
x(10 − x) = 40.
√
Isto leva a equação x2 − 10x + 40 = 0 cujas soluções são x = 5 ± −15.
Ele reconhece que o problema dado não tem solução mas, talvez a tı́tulo de
16 CAPÍTULO 2. OS CAMPOS NUMÉRICOS
curiosidade, ele observa que trabalhando com essas expressões como se fossem
números,
√ deixando√de lado as torturas mentais envolvidas e multiplicando
5 + −15 por 5 − −15 se obtém 25 − (−15) que é 40.
Em consequência, ele chama estas expressões de raı́zes sofı́sticas da equa-
ção e diz, a respeito delas, que são tão sutis quanto inúteis.
Seguindo Cardano, ele também chama esta expressão de sofı́stica mas, por
outro lado, ele percebe que x = 4 é, de fato, uma raiz da equação proposta.
Assim, pela primeira vez, nos deparamos com uma situação em que, ape-
sar de termos radicais de números negativos, existe verdadeiramente uma
solução da equação proposta. É necessário então compreender o que está
acontecendo.
Bombelli
√ concebe então a possibilidade de que exista uma expressão√ da
forma a + −b que possa √ ser considerada
√ como raiz cúbica de 2 + −121
3
i.e., que verifique (a + −b) = 2 + −121. A forma em que ele √ calcula
esta raiz é um tanto√ peculiar; ele assume que a raiz cúbica de 2 − −121
seja da forma
√ a − −b.
√ Como ele sabe que 4 deve ser raiz da equação, tem
que a + −b + a − −b = 4. Neste ponto felizmente as quantidades não
existentes se cancelam√e obtemos a √ = 2. Com esse resultado, é muito fácil
3
voltar à equação (a + −b) = 2 + −121 e deduzir que b = 1. Assim, ele
2.2. A NECESSIDADE DOS NÚMEROS COMPLEXOS 17
p
3
√ √
obtém que 2+ −121 = 2 + −1 e que:
√ √
x=2+ −1 + 2 − −1 = 4
é uma solução da equação dada. Claro que este método não é verdadeira-
mente útil para resolver equações, pois para o cálculo da raiz cúbica foi ne-
cessário conhecer de antemão a solução, mas tem o mérito de explicar como
se pode obter a solução apesar de aparecer, no caminho, uma raiz quadrada
de um número negativo.
Bombelli percebeu claramente a importância deste achado. Ele diz:
Eu achei uma espécie de raiz cúbica muito diferente das outras, que
aparece no capı́tulo sobre o cubo igual a uma quantidade e um número.
. . . A princı́pio, a coisa toda me pareceu mais baseada em sofismas que
na verdade, mas eu procurei até que achei uma prova.
Ele utiliza a expressão più di meno para se referir ao que nós denotariamos
como +i e meno di meno para −i. Ele enuncia então o que chama de regras
do produto:
+.(+i) = +i
−.(+i) = −i
+.(−i) = −i
−.(−i) = +i
(+i).(+i) = −
(−i).(+i) = +
(−i).(−i) = −
R3 | 2pR| 0m121 | |.
Note que, como não escrevia diretamente números negativos, ele escreve −121
como 0m121. Desta forma, a solução da equação discutida acima aparecia
como:
R3 | 2pR| 0m121 | | p R3 | 2mR| 0m121 | |.
Também é interessante observar que Bombelli não empregava sı́mbolo para
igualdade; desta forma, a equação em apreço era escrita como:
3 1
I ^ eguale a 15^ p.4.
Como era de se esperar, esta interpretação não teve uma grande acolhida
entre seus contemporâneos e nenhuma repercução posterior.
e afirmava que o produto de dois quaisquer destes fatores não dava uma
expressão quadrática com coeficientes reais. Nicholas Bernoulli (1687-
1759) corrigiu esta observação em 1719, na mesma revista, mostrando que
4 4
2
√ 2
2
√ 2
X + a = X + aX 2 + a X − aX 2 + a .
Por outro lado Euler afirmou explicitamente numa carta de 1 de outubro
de 1742, dirigida a N. Bernoulli que um polinômio com coeficientes reais, de
grau arbitrário, podia se decompor dessa forma. Este também não acreditou
na afirmação e deu como contra-exemplo o polinômio
x4 − 4x3 + 2x2 + 4x + 4
Todo polinômio com coeficientes reais admite pelo menos uma raiz
complexa
A abstração em álgebra
3.1 Introdução
Pode-se dizer que o século XIX foi um dos perı́odos áureos da mate-
mática e, em certo sentido, um dos mais revolucionários desta ciência. Até
o inı́cio deste século, a matemática era definida como a ciência da quanti-
dade e das extensão, sendo estas expressões claras referências à aritmétida e
à geometria, respectivamente. Em 1829, Lobachevsky tornou público o novo
mundo da geometria não-euclidiana, liberando assim a geometria da depen-
dência do mundo sensorial. A partir de 1830, com a publicação da obra de
Peacock, a álgebra por sua vez, liberou-se de sua dependência da aritmética.
É precisamente esta última história que estudaremos neste capı́tulo.
25
26 CAPÍTULO 3. A ABSTRAÇÃO EM ÁLGEBRA
Desta forma, quando alguém diz que um número é menor do que zero,
isso faria sentido pois não é a quantidade que é menos do que nada, mas a
qualidade que é inferior à nulidade e exemplifica:
Em 1830, Peacock publicou seu Treatise on Algebra onde tenta dar a esta
disciplina uma estrutura lógica comparável à dada à geometria nos Elemen-
tos de Euclides; isto é, apresentá-la como o desenvolvimento abstrato das
conseqüências de um certo conjunto de postulados.
A obra, que fora ampliada a dois volumes até 1845, marca o verdadeiro
inı́cio do pensamento axiomático em álgebra. No primeiro volume, Peacock
tenta exibir as leis fundamentais da aritmética, trabalhando apenas com nú-
meros e dando aos sı́mbolos + e - apenas o seu significado ordinário.
No segundo volume, desenvolve uma “Álgebra Simbólica” e as mesmas
regras são aplicadas a sı́mbolos sem conteúdo especı́fico. Para ele, a álgebra
era a ciência que trata das combinações de sı́mbolos arbitrários cujo sentido
é definido através de leis de combinação também arbitrárias. Na aritmética,
as definições das operações determinam as regras. Na álgebra simbólica, são
as regras que determinam o sentido das operações.
No inı́cio da obra, que ele pretendia que fosse perfeitamente acessı́vel aos
estudantes, argumentava que a aritmética universal de Masers e Frend não
podia ser aceita no lugar da álgebra por ser a primeira muito restrita e haver,
na segunda, grande quantidade de resultados e proposições de valor e con-
sistência inquestionável. Também criticou o ensaio de Bouée, por considerar
que apelava por demais às interpretações geométricas e propunha soluções
3.3. A ÁLGEBRA ABSTRATA 29
muito vagas.
1
A exceção a que De Morgan faz referência e o sı́mbolo = .
30 CAPÍTULO 3. A ABSTRAÇÃO EM ÁLGEBRA
Capı́tulo 4
31
32 CAPÍTULO 4. A DESCOBERTA DOS QUATÉRNIOS
(a, b) + (c, d) = (a + b, c + d)
(a, b)(c, d) = (ac − bd, ad + bc)
Vale a pena observar que já neste trabalho Hamilton adota um ponto de
vista formal. Ele diz:
Um fato interessante, que mostra claramente até que ponto era difı́cil
para a coletividade matemática aceitar os números complexos é o seguinte.
Vários anos depois da fundamentação dada por Hamilton, Agustin Louis
Cauchy (1789 - 1857) deu, em 1847, uma outra construção do corpo dos
números complexos. Ele observou que, se no anel dos polinômios reais R[X]
se consideram congruências módulo o polinômio X 2 +1, então todo polinômio
f (X) é congruente a um polinômio da forma aX +b (porque o resto da divisão
por X 2 + 1 deve ser, no máximo, de primeiro grau) e que classes de restos,
neste caso, se somam e multiplicam seguindo exatamente as mesmas regras
que os números complexos. Mais ainda, tem-se que
X 2 ≡ −1 ( mod p ).
Desta forma, ele exibiu um sistema algébrico isomorfo ao corpo dos núme-
ros complexos. O interessante é como ele explica as vantagens deste método,
que mostra até que ponto a ideia de ter uma raiz quadrada de −1 ainda
resultava incômoda:
4.2 Quatérnios.
Como observamos acima, Hamilton era também um fı́sico e percebia clara-
mente as implicações de sua descoberta: ele tinha desenvolvido uma álgebra
que permitia trabalhar com os vetores do plano. Isto o levou a conside-
rar um problema que seria fundamental para a fı́sica da época: desenvolver
uma álgebra de ternas que daria a linguagem para trabalhar com vetores do
espaço.
34 CAPÍTULO 4. A DESCOBERTA DOS QUATÉRNIOS
Ele trabalhou durante dez anos neste problema antes de descobrir onde
estava a dificuldade essencial. Uma carta a seu filho Archibald, de Outubro
de 1843, revela sua obsessão com a questão [10]:
Toda manhã, quando descia para o café, teu irmão William Edwin
e você mesmo costumavam perguntar-me “Bem, pai, você já pode
multiplicar ternas?” A isso eu sempre me via obrigado a res-
ponder, com um triste balanço de cabeça, ”Não, eu apenas posso
somá-las e subtraı́-las”.
i2 = j 2 = k 2 = ijk = −1
α = a − bi − cj − dk.
||α|| = αα = a2 + b2 + c2 + d2
é, de fato, o inverso de α, uma vez que um cálculo simples mostra que αα = 1.
primeiro exemplo conhecido onde a ordem dos fatores altera o produto, i.e.,
a primeira álgebra não comutativa. Mostrou também claramente a possibili-
dade de estender ainda mais o conjunto das álgebras conhecidas.
Novos Exemplos.
Como já observamos, apenas dois meses após a descoberta dos quatér-
nios, Graves introduziu os octônios. Este sistema foi redescoberto indepen-
dentemente em 1845 por Arthur Cayley (1821 - 1895) e por essa razão
os octônios são conhecidos também como Números de Cayley. Estava assim
aberto o caminho para novas generalizações. Em suas Lectures on Quater-
nios de 1853 Hamilton introduziu os Biquatérnios que nada mais são do que
quatérnios com coeficientes complexos e constituem assim uma álgebra de
dimensão 8 sobre os reais. O próprio Hamilton demonstrou, nesse trabalho
que esta álgebra contém divisores de zero (i.e., elementos não nulos a, b tais
que ab = 0) e, consequentemente, ela não é uma álgebra com divisão. Ainda
nesse mesmo texto ele desenvolve uma nova generalização que já tinha ini-
ciado num artigo nos Transactions of the Royal Irish Academy em 1848: os
Números Hipercomplexos.
Um sistema de Números Hipercomplexos é o conjunto de todos os sı́mbo-
los da forma:
x1 e1 + x2 e2 + ... + xn en
onde x1 , x2 , ...xn são números reais - ou, eventualmente, complexos -
e e1 , e2 , ..., en são sı́mbolos, chamados de unidades do sistema. Tal como
no caso dos quatérnios, a soma de dois elementos desta forma é definida so-
mando coeficientes correspondentes e, assumindo a propriedade distributiva,
para definir o produto basta decidir como multiplicar as unidades entre si.
Como o produto de duas destas unidades deve ser outro elemento do sis-
tema, deve ser possı́vel escrevê-lo na forma:
n
X
ei ej = ak (i, j)ek
i=1
Novas estruturas
39
40 CAPÍTULO 5. NOVAS ESTRUTURAS
x1 = ax + by
y1 = cx + dy
Ele introduziu esta noção em 1855, num artigo intitulado Remarques sur
la notation des fonctions algébriques. Certamente, os determinantes estavam
em uso desde muito tempo antes, introduzidos em conexão com a resolução
5.1. GRUPOS E MATRIZES 41
de sistemas lineares. Eles foram utilizados pela primeira vez por Colin Ma-
claurin (1698 -1746) provavelmente em 1729 e publicados postumamente
no seu Treatise of Algebra em 1748. Tal como Cayley observa, a idéia de
matriz precede logicamente àquela de determinante, mas a ordem histórica
foi ao contrário. Como ele estava interessado nas transformações lineares, a
composição das mesmas lhe sugeriu naturalmente a definição de produto de
matrizes e, consequentemente, a de inversa de uma matriz.
Em 1858 publica um segundo trabalho sobre o assunto: A memoir on the
theory of matrices onde introduz a soma de matrizes e o produto por escalares.
Aqui novamente a visão de Cayley lhe permitiu ver um novo sistema algébrico
semelhante aos que vinham sendo desenvolvidos:
É conveniente notar que ainda não existia, na época, uma definição abs-
trata de anel. Consequentemente, o fato de que o conjunto das matrizes
de um dado tamanho constituı́a também um sistema hipercomplexo não era
nada evidente, uma vez que a definição destes dependia da adoção de um
sistema de unidads.
Ele observou explicitamente uma clara relação com os quatérnios; notou
que se M e N são duas matrizes de oredem 2x2 que verificam M 2 = N 2 = −1
e M N = −N M então, escrevendo L = M N , tem-se que as matrizes L, M, N
satisfazem um sistema de relações precisamente similar aquele da teoria dos
quatérnios.
x2 ≡ a ( mod p).
Esta linguagem tinha sido introduzida por Euler em 1754/55. Ele foi o
primeiro a estabelecer a Lei de reciprocidade quadrática: se p e q são dois
inteiros primos, então p é um resı́duo quadrático em módulo q se e somente
se q é um residua quadrático em módulo p.
Subsequentemente, A.M. Legendre (1752-1833) deu outra demonstra-
ção dessa lei e introduziu o sı́mbolo de Legendre que ainda se utiliza em teoria
de números. Gauss mostrou que ambas as demonstrações estavam incomple-
tas e deu a primeira demonstração completa desta lei. Posteriormente ele
publicou outras quatro demonstrações diferentes.
Anos mais tarde, Gauss considerou também resı́duos cúbicos e biqua-
dráticos, numa série de artigos publicados entre 1808 e 1832. Foi nesses
trabalhos que, para obter simplicidade e elegância nas suas demonstrações,
Gauss introduziu os números que hoje chamamos de inteiros de Gauss, que
são complexos da forma a + bi onde a e b são números inteiros. Ele provou
que muitas das propriedades dos números inteiros se estendem aos inteiros de
44 CAPÍTULO 5. NOVAS ESTRUTURAS
onde ζ denota uma raiz p-ésima da unidade, isto é, uma raiz da equação:
X p−1 + X p−2 + · · · + X + 1 = 0.
an X n + an−1 X n−1 + · · · + a1 X + a0
Motivado pela grande variedade de corpos que tinha sido definidos, Ernst
Steinitz tentou um estudo compreensivo da teoria abstrata de corpos no
seu trabalho fundamental sobre o assunto [29], de 1910, que, conjuntamente
com um artigo clássico de Emmy Noether [15], de 1929, são considerados,
por exemplo por Bourbaki [2], como os dois pilares fundamentais da álgebra
moderna.
Neste trabalho ele introduz a noção de corpo primo, de caracterı́stica de
um corpo e prova um resultado fundamental: que todo corpo pode-se obter
do seu corpo primo pela adjunção de uma série (eventualmente infinita) de
elementos transcendentes e depois a adjunção de uma série de elementos algé-
bricos. Também neste trabalho ele introduz a noção de polinômio separável ,
que ele chama de vollkommen ou completo, e prova que sobre um corpo, todo
polinômio é irredutı́vel ou se decompõe num produto de fatores lineares, se
é somente se ele é extensão de um corpo dado pela adjunção de um número
finito de raı́zes de polinômios sepáveis.
Este último era feito usando as constantes estruturais, que deviam ser ade-
quadamente escolhidas.
Quanto ao conceito de anel, pode-se dizer que ele era conhecido e utilizado
já nos trabalhos sobre teoria dos números algébricos de Richard Dedekind
e Leopold Kroneker (1823 - 1891) embora o termo utilizado fosse ordem.
O termo anel foi introduzido em 1897 por David Hilbert (1862 - 1943),
ainda no contexto especı́fico da teoria dos números algébricos. A definição
abstrata, com toda sua generalidade, foi dada em 1914 por Abraham A.
Fraenkel (1891 - 1965) num artigo intitulado On zero divisors and the de-
composition of rings, no Jour. fur die Reine und Angew. Math.. Ilustrando
a abrangência do conceito, ele dá vários exemplos de anéis: inteiros módulo
n, sistemas de números hipercomplexos, matrizes, e inteiros p-àdicos.
O enunciado de sua definição é muito próximo do atual. Ele considera um
sistema com duas operações, que chama de soma e produto e estabelece que,
em relação à soma, o sistema deve formar um grupo (e enuncia explicitamente
os axiomas desta estrutura). Sobre o produto, ele especifica que deve ser
associativo e distributivo em relação à soma e inclui a existência de um
elemento unidade. A comutatividade da soma, que não foi postulada, é
demonstrada a partir destes axiomas, bem como uma série de resultados
elementais. Há ainda dois axiomas a mais, referentes a certos elementos,
chamados regulares, que não se incluem nas definições modernas.
O objetivo de Fraenkel, neste trabalho, era dar uma teoria abstrata e
compreensiva da teoria de anéis, comparável à que Ernst Steinitz tinha
formulado para os corpos na sua Algebraischen Teorie des Körper publicada
em 1910 no Jour. fur Math. Naturalmente, esta tarefa era por demais am-
biciosa para ser satisfatoriamente desenvolvida tão cedo.
Referências Bibliográficas
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bach), Edgar Blücher, São Paulo, 1996.
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49
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Kant, Hist. Math., 9, (1982), 195 - 200.
Índice Remissivo
52
ÍNDICE REMISSIVO 53
Ruffini, P, 39
sistema de unidades, 41
Smith, D.E., 19
Steinitz, E., 46, 48
Stevin, S., 6
Stifel, M., 13
Study, 42
Sylvester, J.J., 41
Tartaglia, N., 7
tensor, 36
Teorema Fundamental da Álgebra,
21
Torricelli, E., 6
transição, 32
Trinity College, 39
valorização, 46
Van Schooten, F, 10
versor, 36
vetor, 33, 36
Viète, F., 7
Wallis, J, 11
Wallis, J., 19
Weber, H., 46
Widman, J., 11
Winterbourne, A.T., 32
Woodhous, R., 27
Yale College, 36