Ferreira Gullar, Memórias Do Exílio - Batista, Rosane Pires
Ferreira Gullar, Memórias Do Exílio - Batista, Rosane Pires
Ferreira Gullar, Memórias Do Exílio - Batista, Rosane Pires
CAMPINAS
2011
FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP
Bibliotecria: Ceclia Maria Jorge Nicolau CRB n 3387
ii
Para Maria Olinda e
Luisa.
v
A lembrana se transforma
medida que se atualiza.
Henri Bergson
vi
AGRADECIMENTOS
viii
RESUMO
ix
ABSTRACT
The research attempts to focus on Ferreira Gullar personal, political and poetic
itineraries, until the moment when the poet was forced to the condition of exile. In
that direction, it is relevant to remark on the construction of its poetic language in
the period referring to the time of exile in order to realize the implications of this
experience. The poet, in the epic moment of shock, experiencing the uprooting and
facing the possibility of death and traumas originating from military dictatorship,
found on the act of writing a place of shelter and political resistance. The research
undertaken here attempts to analyze the poems written during the time of exile and
those written in the early years after the exile, as well as the autobiographical
memory written 20 years after the exile. For that purpose were selected: Dentro da
noite veloz (1962-1975); Poema sujo (1975); Na vertigem do dia (1975-1980);
Rabo de Foguete (1998). Through these works was plausible to grasp the work of
memory produced by the poet because the personal, social and political life of the
poet are clasped as those linked to a historical context that refers to the years of
military dictatorship in Latin America and more specifically in Brazil. Moreover,
these works reflect the maturation of Gullars poetical language as a result of the
exile experience, and were taken here as a document, a relevant witness to think
about this recent period of Brazilian history.
x
SUMRIO
2. MEMRIAS DO EXLIO............................................................................... 97
2.1. Dentro da noite veloz (1962-1975) .......................................................... 111
2.2. Poema sujo (1975) .................................................................................. 122
2.3. Na vertigem do dia (1975-1980) .............................................................. 143
2.4. Rabo de Foguete (1998) ......................................................................... 151
xi
CONSIDERAES INICIAIS
1
Cf. LAFET, Joo Luiz. Traduzir-se: ensaio sobre a poesia de Ferreira Gullar. In:______. A
dimenso da noite e outros ensaios, 2004. As demais citaes de nota de rodap seguiro este
padro.
2
CAMENIETZKI, Eleonora Ziller. Poesia e poltica: a trajetria de Ferreira Gullar, 2006, p.21.
13
sua obra quanto a forma que ela adquiriu resultado do um processo de
transformao pessoal, social e poltico.
Os itinerrios percorridos surgem na sua fatura potica demonstrando as
vrias etapas construdas e que foram se transformando at chegar naquilo que
ele mesmo denomina como sua linguagem potica. Do lirismo ao concretismo, dos
cordis novamente ao lirismo, pode-se perceber uma busca que o levou
construo de uma linguagem potica prpria que se deu por meio de um
movimento de experimentaes de sintaxes e como resultado do prprio contexto
social no qual o poeta estava inserido. Nas palavras de Gullar,
3
CAETANO, Rodney. O resmungo necessrio. Jornal de Literatura do Brasil, Curitiba. Disponvel
em:< www.resmungos.com.br>. Acesso em: 11 fev.2009.
14
militar, tornou-se imperioso realar a confluncia entre a trajetria pessoal, social e
poltica e a trajetria literria de Ferreira Gullar. E, nessa direo, a presente
pesquisa tem o intuito de proceder a uma anlise pautada na considerao das
interpenetraes, subjacentes aos aspectos sociais e estrutura da obra potica
de Gullar.
na esteira destas consideraes que a pesquisa foi sendo elaborada,
tomando esse poeta - que nasce em 1930 e faz parte do cenrio das
transformaes sociais, culturais e polticas do Brasil - como foco privilegiado de
interpretaes sociolgicas.
Conceber a produo literria de Ferreira Gullar como objeto de anlise,
neste caso, tornou-se fundamental para as indagaes sociolgicas propostas,
tendo em vista que a arte um sistema simblico de comunicao inter-humano,
e como tal interessa ao socilogo.4
A obra de Ferreira Gullar nos fornece contribuies essenciais para o
tratamento sociolgico da experincia por ele vivida no exlio, j que o poeta
elaborou seu pensamento sob o prisma daquele que vivenciou diferentes tempos
e que a memria desta experincia a envolver uma atmosfera cultural e poltica
compartilhada foi materializada na sua narrativa literria.
A escolha desse poeta ocorre por sua relevncia no processo de uma
ruptura esttica de vanguarda na paisagem literria brasileira e, tambm, porque
em sua literatura, possvel perceber uma memria sobre as implicaes do
regime militar brasileiro. Um movimento de memria que advm da confluncia
entre a trajetria social e poltica e a trajetria literria.
A hiptese central, nesse sentido, considera que possvel descortinar,
por meio da produo literria de Ferreira Gullar, uma memria do exlio cuja
experincia evidencia um evento-limite que foi a ditadura militar brasileira. As
memrias e o imaginrio desse processo, com seu caleidoscpio de
4
Cf. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade, 2000, p. 21. Nesse livro, Candido chama a
ateno para a anlise da obra que s poder ser realizada de uma forma coerente na medida em
que fundirmos texto e contexto numa interpretao dialeticamente ntegra, em que tanto o velho
ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convico de
que a estrutura virtualmente independente, se combinam como momentos necessrios do
processo interpretativo. Idem, Ibidem, p. 4.
15
possibilidades, vo aparecendo em sua obra em funo das condies materiais e
culturais vividas pelo poeta. E, nesta perspectiva, considera-se tambm que ao
discurso internamente inflamado pela memria sucedeu a reflexo tensa, balizada
pela avaliao poltica; a expresso inspirada e prazerosa do narrador lrico deu
lugar concentrao do analista dialtico da cultura.5
Para a realizao da anlise foi tomada toda a sua poesia escrita no
exlio e, posteriormente, seus escritos poesia e autobiografia - sobre o exlio,
buscando igualmente configurar a memria desta fatdica experincia no momento
de sua realizao e o movimento de memria que toma o passado a partir do
tempo presente. Assim, abordaram-se as configuraes que fazem parte do
processo de memria e do imaginrio arroladas no espao e no tempo de sua
literatura.
Ressalta-se que os itinerrios do poeta so aqui tomados como ponto
relevante na realizao das anlises, pois a partir deles foi possvel refletir acerca
do contexto social, cultural e poltico em que a investigao se insere. Mas, a
trajetria do poeta foi analisada considerando a sua literatura como ndice
analtico, por meio da qual sero identificadas as passagens biogrficas. Pensar
as imagens que advm de sua obra considerar a possibilidade de falar de um
perodo histrico brasileiro a partir da potica do sujeito que falou do lugar do no-
oficial6.
Numa sociedade dita moderna, na qual o sentido de utilidade e preciso
das coisas so prioridade, a poesia muitas vezes torna-se menos relevante, como
se no acolhesse nenhuma necessidade humana e como se por meio dela no se
pudesse pensar os processos polticos e sociais vividos numa determinada poca.
5
VILLAA, A. Gullar: a luz e seus avessos,1998, p.88.
6
A histria oficial segundo Benjamin apresenta uma viso equivocada do passado construda no
presente, pois ela representa uma montagem seletiva de acontecimentos passados num
encadeamento linear. O lugar da histria no oficial possibilita ao historiador um olhar sobre os
acontecimentos histricos que desconstrua os encadeamentos temporais lineares e vazios, alm
de construir uma viso diferente daquela sustentada pelas classes dominantes. Cf. BENJAMIN,
Walter. 1994. Vale aqui lembrar que estamos analisando as memrias do exlio de um poeta
forado a deixar o seu pas num contexto histrico bastante diferente daquele no qual o poeta vive
atualmente, pois podemos dizer que hoje ele ocupa o lugar de um artista estabelecido conforme a
concepo de Norbert Elias. Ver, nesse sentido, o livro de Norbert Elias e John Scotson, Os
estabelecidos e os outsiders, 2000.
16
Entretanto, rompendo com esta perspectiva, tomou-se a poesia construda por
Gullar como objeto de anlise.
Parte-se da ideia de que a literatura pode ser tomada como ndice
analtico para as indagaes sociolgicas propostas. Destarte, ressalta-se a
linguagem potica e memria autobiogrfica como importante campo para
investigaes sociolgicas, capaz de evidenciar diferentes prismas da sociedade,
na medida em que so criaes culturais, onde a elaborao artstica e o contexto
social esto imbricados. Para tanto, lanou-se mo da poesia do autor em questo
e das memrias intituladas Rabo de Foguete como fonte de anlise primria.
Nesse sentido, no se quer reduzir sua obra como produto do meio, pois a anlise
sociolgica deve considerar o escritor como sujeito de sua prpria ao.
Buscamos sublinhar as memrias do exlio, como um potencial criativo e
crtico alicerado pelas lembranas. O potencial criativo de rememorao desta
experincia por meio da escrita literria resultado da relao do autor com as
representaes coletivas e suas lembranas. Nessa direo, cabe ressaltar as
palavras de Jaime Ginsburg ao se referir necessidade de se pensar a memria
da ditadura militar brasileira, pois, a crtica universitria se ocupou, at hoje, de
modo espantosamente insuficiente das relaes entre a literatura brasileira e a
ditadura militar.7O que se procurou realizar aqui, foi justamente, um caminho
inverso, tomou-se a poesia de Ferreira Gullar para refletir a questo da ditadura
militar brasileira e suas implicaes na vida e na obra deste poeta.
Do conjunto de sua vasta obra, elencou-se num primeiro momento a sua
poesia que vai de 1949 at 1975 para se pensar os itinerrios pessoal, poltico e
potico de Ferreira Gullar e, num segundo momento, o livro Dentro da noite veloz
no qual se encontram poemas escritos desde 1962 at 1975, o Poema sujo escrito
em 1975, perodo em que o poeta se encontrava no exlio. Analisou-se tambm o
livro Na vertigem do dia que inclui poemas escritos entre os anos 1975 a 1980 e o
livro Rabo de Foguete escrito em 1998, ambos escritos aps a experincia do
desterro.
7
GINZBURG, Jaime. A ditadura militar e a literatura brasileira: tragicidade, sinistro e impasse. In:
SANTOS, C. M.;TELES, E.;TELES, J. de A. (orgs.). Desarquivando a ditadura: memria e justia
no Brasil, 2009, v.II, p.557.
17
Assim sendo, considerando a vasta obra do poeta, cabe ressaltar que
os ensaios sobre obra de arte e seus demais textos para o teatro e televiso no
sero aqui utilizados como fonte para as anlises.
Tomou-se a poesia como um lugar possvel para a
construo de um olhar sociolgico, pois o
8
ADORNO, Teodor. Notas de literatura I, 2003, pp. 66-67.
9
Idem, Ibidem, p.76.
10
IANNI, Octavio, Sociologia e literatura, 1997, p. 42.
18
Alguns autores apontam para a necessidade do tratamento sociolgico
da literatura com nfase nas diferentes formas narrativas romances, crnicas,
contos, poesias considerando assim as transformaes intrnsecas sociedade
moderna. Nessa direo, destacam-se Antonio Candido e Walter Benjamin,
autores relevantes para tomarmos como apoio durante nossa investigao.
Antonio Candido, em seu livro Literatura e sociedade11, aponta para um
conjunto de reflexes sobre literatura e vida social. Para esse autor, a criao
artstica e o contexto scio/cultural no qual a obra produzida no devem ser
pensados como algo apartado. Pelo contrrio, o social constitui a estrutura da
obra. Mas tambm necessrio considerar outros aspectos tais como valores
sociais, ideologias e representaes.
Um importante estudo aqui considerado foi o livro O discurso e a cidade,
de Antonio Candido, no qual o autor, ao analisar romances e poemas, faz num
primeiro momento eficazes crticas sobre sociedades a partir de uma literatura que
busca a ideia do real e, num segundo momento, evidencia aquilo que poderamos
chamar de lugares imaginrios. Candido, dessa maneira, nos faz pensar que ao
tratarmos da literatura, uma imagem da cidade pode ser construda tanto do ponto
de vista da representao do real quanto das fantasias, medos e desejos ali
evidenciados.12
Para construir um esboo sociolgico, utilizou-se Norbert Elias, com o
propsito de refletir sobre os itinerrios social, cultural e poltico de Gullar
presentes em sua potica. Para tanto, a reflexo inspirou-se no livro Mozart:
sociologia de um gnio. Nele, ao reconstruir a trajetria de Mozart, o autor procede
a uma reconstruo do contexto social e poltico de uma determinada poca, um
panorama da sociedade de corte. E, ao apresentar a necessidade que Mozart
tinha de romper com o gosto musical da poca, transformando-se num artista
autnomo, Elias estabelece relaes entre dados estruturais e aspectos da vida
pessoal do msico, a fim no de analisar as sobreposies de um aspecto sobre o
outro, mas perceber as linhas tnues dessa relao.
11
Cf. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e histria literria, 2002.
12
Ver CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade, 1993.
19
Para Elias, no se pode separar o artista do homem, ou seja, para a
compreenso da genialidade de Mozart, no se deve descartar as discrepncias
experimentadas por ele. Nesse sentido, imprescindvel considerar a dinmica
interna do fluxo-fantasia, a corrente de conhecimentos do artista e sua posio
crtica frente a sua produo.13
As narrativas literrias selecionadas para esta pesquisa levam em
considerao a dimenso espao-temporal que sintetiza a memria e as
transformaes histricas e polticas vividas pelo poeta. A alegoria, presente em
sua potica, nos indica uma disposio para uma luta em favor da transformao
da realidade brasileira daquela poca. Sua arte alegrica com seu apuro formal e
qualidade artstica nos indicam as impresses de um sujeito histrico que
vivenciou a experincia do choque, num perodo no qual havia uma interveno
militar violenta no Brasil.
assim que o poeta vai extraindo dos modos da vida sua matria
potica. E, nessa direo, foi necessrio contextualizar tanto o Ferreira Gullar
quanto sua poesia, o que pode ser visto no primeiro captulo, mas sempre levando
em conta que a poesia no um reflexo direto da realidade estudada, mas uma
interpretao desta. Pode-se perceber que sua poesia uma autobiografia de sua
prpria trajetria potica. A profissionalizao vai sendo evidenciada como uma
conscincia da prpria linguagem e como meio de ganhar a vida. A potica de
Ferreira Gullar resultado, portanto, de sua origem e dos itinerrios percorridos
por ele.
No segundo captulo buscou-se analisar os poemas escritos entre 1962 a
1975, perodo que contempla a transio entre a poesia enquanto instrumento
poltico para aquela voltada mais questo esttica. Este perodo inclui tambm
as poesias escritas durante o tempo do exlio. Ainda neste captulo, analisou-se a
poesia escrita num momento posterior ao exlio mas que nelas encontra-se os
impasses desta experincia sobre a vida e a obra de Gullar. E, para tanto, torna-
se imperioso tambm enfatizar o conceito de histria de Le Goff14, pois para ele a
13
ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gnio, 1995, p.125.
14
Ver LE GOFF, Jacques. Histria e Memria, 2003.
20
histria deve ser analisada em relao a determinada realidade sobre a qual se
testemunha, considerando como um relato de uma experincia vivida, do sujeito
que pode afirmar eu vi, eu senti. Os dados obtidos por um sujeito que presenciou
um evento, com sua emoo e relao de detalhes no nvel do cotidiano,
ofereceria ao historiador informaes que de outra forma seriam inacessveis, bem
como lhe permitiria confirmar outras fontes de documentao. Seria, portanto, a
vida diria ou do cotidiano abrindo possibilidades para o detalhe, o marginalizado
entre outros contribuindo para uma nova concepo de histria e tambm para a
literatura.
As configuraes do terceiro captulo revelam as imagens da cidade da
infncia do poeta. Por meio das reminiscncias presentes no Poema sujo, foi
possvel recortar as imagens da cidade natal como momento privilegiado de
resistncia poltica do poeta, na qual o impacto traumtico das ditaduras, tanto a
brasileira quanto aquelas vividas pelo poeta nos pases da Amrica Latina, lhe
impuseram uma necessidade de retorno as lembranas da infncia e da
adolescncia feitas no tempo do presente, para assim recuperar no passado a
identidade perdida no presente do desterro.
Pensar a memria dentro de uma relao indivduo e sociedade - no
campo das cincias sociais considerar as diferentes acepes que este conceito
possui. O conceito de memria tomado a partir de uma perspectiva scio-
cultural.
Alguns autores desenvolveram o conceito de memria dentro desse
aspecto scio-cultural, todavia h algumas diferenas nestas concepes. Maurice
Halbwachs15, por exemplo, vai trabalhar tal conceito considerando que as
memrias individuais podem ser entendidas como determinadas por construes
coletivas. Para ele, por mais pessoal que possa ser o ato de rememorar, este seria
construdo socialmente. Nesse sentido, o autor enfatiza a esfera social,
considerando que a estrutura e funcionamento das construes coletivas da
memria so autnomas ao desgnio dos atores sociais, um olhar muito prximo
da noo positivista de E. Durkheim. Considera ainda que a rememorao ocorra
15
Ver HALBWACHS, M. A memria coletiva, 1990.
21
por meio de quadros sociais da memria e tais memrias vo sendo renovadas na
medida em que se renovam os laos de solidariedade entre os indivduos. E
exatamente a linguagem que forma o quadro social primeiro da memria coletiva e
a individualidade vai sendo construda a partir dos quadros sociais comuns a
todos. Nesta perspectiva, sem querer reduzir o pensamento do autor, parece que
o pensamento individual uma decorrncia do coletivo e os valores e aspectos
contraditrios parecem no existir.
Observa-se, contudo, que para outros autores, como Marcuse, por
exemplo, o enfoque dado ao conceito de memria como um fenmeno coletivo
que resulta da ao do indivduo na sociedade. E, nesse sentido, a memria
apareceria a como um movimento tanto de conhecimento quanto de liberdade.
Em Freud, Marcuse buscou compreender como as contradies entre indivduo e
sociedade eram internalizadas pelo indivduo. Enquanto que para Freud a perda
da memria uma resposta ao esquecimento de eventos traumticos, para
Marcuse a memria pode ser compreendida como a liberao de promessas e
potencialidades que, embora subtradas e alienadas pela sociedade capitalista,
ainda existiam.16 Diferentemente de Halbwachs, Marcuse analisa a memria como
possibilidade de construo do social e no derivada dela.
Para Walter Benjamin, a memria um processo, um movimento
dialtico desencadeado pelo presente17 que comporta a ideia de espao e tempo,
seleo e esquecimento. O passado entendido como um fato em movimento,
fato de memria, que alude aos acontecimentos e construo destes no
presente. Para esse autor, o tempo presente um espao repleto de agoras,
portanto, a histria objeto de uma construo cujo lugar no o tempo
homogneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras.18 Nesse sentido, a teoria
da histria para Benjamin uma teoria da memria. A escrita de Gullar marcada
pela sntese dos tempos cronolgico e psicolgico, apontando, portanto, para um
tempo em movimento, aquilo que Walter Benjamin vai enfatizar no seu olhar sobre
16
MARCUSE, H. Eros e civilizao, 1968, pp.18-19.
17
BENJAMIN, W. Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura,
1994, pp. 221-232.
18
Idem, Ibidem, p. 229.
22
a histria. Nesta perspectiva, um poema pode ser compreendido como uma
interface entre uma vivncia original e experincias posteriores. A experincia
potica expe conseqentemente a condio humana.
imperioso destacar, ainda, que as anlises de Walter Benjamin vo
se configurando por meio das artes e da literatura. Aquilo que poderamos chamar
de uma sociologia da literatura pode ser percebida em seus estudos sobre Charles
Baudelaire. por meio da obra desse poeta, alicerada a partir de uma dinmica
do social, que Benjamin construir sua teoria da modernidade, apontando para as
transformaes sociais e culturais na Paris daquele perodo.
Ao analisar a poesia de Baudelaire, Benjamin a considera parte
integrante do processo de mudana social, bem como matriz de conhecimento
para a compreenso daquela realidade social. Alm da poesia, suas anlises
abarcam a trajetria desse poeta francs e, a partir desses dois vieses, Benjamin
busca compreender a relao entre a literatura e as transformaes urbanas na
Paris do sculo XIX, como resultado da experincia capitalista daquela poca.
Nesse sentido, possvel uma reflexo que considere as questes histricas e
polticas inerentes literatura de Gullar, tendo em vista que estas se apresentam
tanto na forma quanto no contedo de sua criao artstica.
Para enfocarmos o momento em que a literatura passa a dialogar com a
prpria sociedade, foi necessrio recorrer a Walter Benjamin, pois em sua obra
encontra-se uma constelao de fragmentos por meio dos quais pode-se
compreender o complexo processo da experincia do indivduo. As figuraes da
ditadura militar brasileira so aqui tecidas por aquilo que se inscreve como
fragmento na literatura de Gullar. Nessa busca, entre vrios de seus relevantes
textos, um dos quais se torna imprescindvel Teses sobre filosofia da histria, no
sentido de auxiliar na compreenso da questo da temporalidade histrica.
No texto A imagem de Proust, Benjamin realiza uma anlise sobre a
obra de Marcel Proust19 evocando uma construo imagtica das memrias desse
escritor. No lhe interessa a vida descrita como ela foi de fato, mas acima de tudo,
a vida lembrada por aquele que a viveu. O que se deve extrair, portanto, o mais
19
As obras analisadas so os treze volumes de Em busca do tempo perdido de Marcel Proust.
23
importante para o autor que rememora, no o que ele viveu, mas o tecido de
20
sua rememorao, o trabalho de Penlope da reminiscncia , ou ainda, aquilo
que ele chama de memria involuntria em Proust. Tal conceito se refere a uma
memria que pertence ao repertrio da pessoa privada cujo passado, porm,
entra em conjuno com o passado coletivo.21
Ainda sobre memria, relevante pensarmos os dois movimentos que
ocorrem na hora da rememorao. Um se conduz ao passado e outro se
encaminha para o presente e exatamente a smile entre eles que permite a
manuteno da dinmica da vida.22
As anlises em torno da memria do poeta foram realizadas
considerando tanto a transmisso oral, construda a partir das inmeras
entrevistas dadas, quanto aquela conservada em sua escrita literria. Pois pensar
o passado estar atento s transformaes do presente e sua articulao deve
ser feita no prprio presente. O passado deve ser, portanto, articulado
historicamente e, ao faz-lo, no significa conhec-lo como ele de fato foi.
Significa apropriar-se de uma reminiscncia, tal como ela relampeja no momento
de um perigo.23 Nesse sentido, Benjamin deposita no materialismo histrico a
capacidade de fixar uma imagem do passado apresentada por meio do sujeito
histrico.
A ao de lembrar e esquecer so prticas construdas socialmente e o
ato de lembrar no requer a recuperao real do passado, mas cabe notar que o
indivduo que rememora o faz inserido num tempo e de maneira singular. Pode-se
20
BENJAMIN, Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura, 1994,
p. 37.
21
Ver MATOS, Olgria. In: Revista Semear, n. 6.
22
O triunfo do primeiro sobre o segundo configura-se como a perda da utopia, a perda dos sonhos
ou do tesouro a que se refere Hannah Arendt. Para ela, a histria das revolues - do vero de
1776, na Filadlfia, e do vero de 1789, em Paris, ao outono de 1956, em Budapeste - que
decifraram politicamente a histria mais recndita da idade moderna, poderia ser narrada
alegoricamente como a lenda de um antigo tesouro, que, sob as circunstncias mais vrias, surge
de modo abrupto e inesperado, para de novo desaparecer qual fogo-ftuo, sob diferentes
condies misteriosas. [] A perda, talvez inevitvel em termos de realidade poltica, consumou-
se, de qualquer modo, pelo olvido, por um lapso de memria que acometeu no apenas os
herdeiros como, de certa forma, os atores, as testemunhas, aqueles que por um fugaz momento
retiveram o tesouro nas palmas de suas mos; em suma os prprios vivos. AREND, Hannah. Entre
o passado e o futuro, 1968, pp. 30-31.
23
BENJAMIN, Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura, 1994,
p. 224.
24
dizer que o ato de rememorar trazer o passado ao tempo presente e aos dilemas
que este encerra. Pois no presente h a necessidade de no esquecimento do
passado como forma de garantia para que aes consideradas nefastas no
possam se repetir no futuro.
Umas das questes relevantes para Benjamin foi o declnio da tradio
oral, o desaparecimento da transmissibilidade oral, do sujeito que transmite a
histria pela oralidade. Nesse sentido, enfocou a perda da transmissibilidade, a
destruio dos elos com o passado e a perda da capacidade de aprender por meio
de experincias passadas. Para ele a memria pode ser compreendida como um
ato voluntrio de lembrar o passado, partindo de um desejo individual como uma
ao racional que dilua o passado reconstruindo o novo. Mas tambm a memria
pode ser entendida como uma lembrana involuntria, na qual imagens do
passado e do presente se encontram no tempo do agora e isso ocorre de forma
independente da vontade do sujeito. Benjamin, a partir da noo de experincia
traumtica de Freud24, elaborou sua teoria da modernidade, afirmando que o
indivduo moderno convive com os impactos de impresses traumticas do mundo
exterior e que no se transformam em experincias, colocando-se no campo de
resposta reativa e momentnea. O que o Benjamin est enfatizando que havia
uma experincia muito singular em construo, decorrente dessa nova paisagem
urbana que se configurava naquele perodo. E dentro dessa nova experincia a
memria pode ser construda por cada indivduo, mas devem-se considerar os
conflitos internos de cada um que envolve essa relao com o passado e, nesse
sentido, h uma ameaa ideia de memria coletiva, e o esquecimento do
passado pode gerar grandes ameaas ao futuro. Nesse sentido, a memria para
Benjamin uma experincia entre indivduos num tempo e espao definidos. O
passado se transforma e por isso mesmo transforma o indivduo na medida em
que busca no presente os traos remanescentes do passado. Para Benjamin no
existe apenas uma forma de se relacionar com o mundo, mas inmeras, com
aspectos positivos e negativos. E, nessa direo, a poesia foi tomada nesta
24
Freud considerava que os estmulos do mundo exterior atravessam nossa proteo consciente e
se tornavam fonte de excitao nos indivduos.
25
pesquisa como uma forma que um indivduo encontrou para se relacionar com o
mundo e pode-se tom-la tambm como campo possvel de transmisso de
conhecimento e percepo de mundo. A memria do poeta vai sendo construda
nesse espao literrio por meio de reminiscncias, atravs das quais se depara
com um passado recente da histria brasileira que necessita ser revisto, evitando
assim o silncio que foi instaurado no Brasil referente s consequncias de sua
ditadura militar.
E para melhor configurarmos os estudos na Amrica Latina sobre essa
problemtica, vale enfatizar a leitura de Seligmann-Silva sobre a teoria do
testemunho que foi construda em funo das catstrofes que o mundo presenciou
no sculo XX. Este sculo considerado como um perodo do luto devido a estas
catstrofes e junto com estas, muitos acontecimentos marcaram a maneira de
representar o mundo. Houve uma transformao do olhar sobre a histria, uma
ruptura em relao ao modelo de histria at ento estabelecido pela historiografia
burguesa e entendido enquanto linear, homogneo e vazio.
Nessa direo, destaca-se o conceito de testemunho e torna-se
imperioso relacion-lo a uma literatura que vm sendo discutida na Amrica Latina
desde os anos 60. Esse conceito discute o limite entre o literrio, o fictcio e o
descritivo, alm de uma tica da escritura.25 Para Seligmann-Silva, nas
abordagens sobre o conceito de testemunho
deve-se buscar caracterizar o teor
testemunhal que marca toda obra literria, mas
que aprendemos a detectar a partir da
concentrao desse teor na literatura e
escritura do sculo XX. Esse teor indica
diversas modalidades de relao metonmica
entre o real e a escritura. [...] Esse real no
deve ser confundido com a realidade tal como
ela era pensada e pressuposta pelo romance
realista e naturalista: o real que nos interessa
aqui deve ser compreendido na chave
25
Cf. SELLIGMANN-SILVA, Mrcio. O local da diferena: ensaios sobre memria, arte, literatura e
traduo, 2005b, p. 85.
26
freudiana do trauma, de um evento que
justamente resiste representao.26
27
a oficial para que assim - como num tribunal aqueles considerados culpados
pelos seus crimes recebam as devidas punies. Pois se devem considerar os
limites ticos intrnsecos relao com um passado responsvel pela promoo
de vrios traumas, bem como perceber a relevncia que o testemunho possui na
historiografia sobre violncia extrema.
Durante as anlises empreendidas sobre os poemas escritos no exlio,
considerou-se que tais poemas bem como as memrias Rabo de Foguete podem
ser aqui lidos no registro de um testemunho dos acontecimentos vividos durante a
ditadura na Amrica Latina, de maneira mais especfica, sobre a aquela que se
instaurou no Brasil. Gullar por meio desta escritura pode oferecer o testemunho do
sujeito que sobreviveu, daquele que habita na clausura de um acontecimento que
o aproximou da morte.30 O testemunho envolve uma relao entre o real e o
simblico e entre passado e presente e , justamente, na linguagem da poesia e
da literatura que se d o encontro destes elementos. Pois,
Vale aqui situar que a obra de Ferreira Gullar muito vasta e inclui
poesias, ensaios crticos, peas teatrais, artigos jornalsticos, literatura infantil,
traduo entre outros, e por isso, torna-se imperioso reiterar que a extensa
produo de Gullar no ser aqui analisada como um todo, principalmente as
atuais publicaes feitas na impressa nacional e, em especial, no jornal Folha de
So Paulo. A pesquisa tomou como objeto de anlise os itinerrios do poeta at
sua profissionalizao, culminando com a sua sada do pas por motivos de
30
SELIGMANN-SILVA, M. Testemunho e a poltica da memria: o tempo depois das catstrofes,
p.78.
31
SELIGMANN-SILVA, M. O local da diferena: ensaios sobre memria, arte, literatura e traduo,
2005b, p. 64.
28
perseguio poltica, e tambm sua produo potica no que se refere ao exlio.
No se coloca como fonte de anlise sua insero atual na cena da literatura
nacional, nem mesmo os direcionamentos polticos que orientam sua vida
atualmente. Aqui se buscou tratar das memrias do exlio, pois o ato de
rememorar traz ao sujeito uma noo de pertencimento de mundo diante da perda
de identidade imposta pela experincia do desterro, alm de lhe possibilitar uma
luta pelo no esquecimento de uma histria recente, bem como um refgio da dor
nessas escrituras.
Para realizao das anlises foram utilizados os seguintes livros de
autoria de Ferreira Gullar: Toda poesia: (1950-1987), publicado pela editora Jos
Olympio em sua 5 edio, do ano de 1991, cujo prefcio de Franklin de Oliveira;
Um pouco acima do cho em sua 2 edio comemorativa dos 50 anos do livro,
publicado pela Academia Maranhense de Letras no ano de 1999; Dentro da noite
veloz publicado pela editora Jos Olympio em sua terceira edio no ano de 1998,
cujo prefcio assinado por Ivan Junqueira e Rabo de Foguete: os anos de exlio
publicado em 1998 pela editora Revan.
29
1. OS ITINERRIOS POTICOS DE FERREIRA GULLAR
Estamos no
reino da palavra, e tudo que aqui sopra verbo, e
uma solido irremissvel.
Ferreira Gullar
32
Cf. CRUZ, Arlete. Nomes e nuvens: ligeiras consideraes em torno da paisagem literria
maranhense ps-1889, 2003.
33
Idem, Ibidem, p.14.
34
Idem, ibidem, p.14.
32
mais estudaram na Europa e, sim, noutras capitais brasileiras, como Salvador,
Recife, entre outras. Entre eles, destacam-se Celso Magalhes, Tefilo Dias,
Raimundo Corra, Nina Rodrigues, Coelho Neto, Catulo da Paixo Cearense, os
irmos Arthur e Alusio Azevedo, Graa Aranha, Maria Firmina dos Reis, Visconde
Vieira da Silva, Brando Jnior e Teixeira Mendes.35
No incio do sculo XX, alguns dos intelectuais desses dois ciclos ainda
permaneciam vivos, o que permitiu sustentar a ideia da Atenas brasileira
convivendo com um desenvolvimento econmico pautado na marginalizao da
grande populao do Estado. Nesse sentido, a nfase em um desenvolvimento
estava colocada apenas s classes que podiam enviar seus filhos para fora do
Estado. A imagem da Atenas brasileira vai sendo legitimada como mecanismo de
conservao e manuteno de uma frustrao diante da frgil economia daquele
Estado, sendo muitas vezes mobilizada como forma de compensao e, noutras,
como discurso poltico capaz de omitir a dura realidade vivida pela populao
local.
No Maranho, no diferente do restante Brasil, os intelectuais desse
perodo foram atrados para cargos pblicos no Executivo e no Legislativo,
mantinham-se ligados estrutura poltico-administrativa do Estado e isso lhes
retirava, de certa forma, a possibilidade da reflexo e do posicionamento
independentes. Essa relao entre intelectuais e Estado foi analisada por Srgio
Miceli no livro Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945), no qual o autor
aponta para o fato de que
35
Idem, ibidem, p. 15.
36
MICELI, Srgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945),1979, p.139.
33
Trata-se de perceber a expectativa das classes dirigentes em relao
aos intelectuais desse perodo. Nos inmeros postos abertos pelo Estado
brasileiro no perodo Vargas, por exemplo, os intelectuais realizavam servios
burocrticos e as atividades intelectuais eram produzidas paralelamente quelas
funes exercidas como funcionrios pblicos. Porm,
37
Idem, Ibidem, p.142.
38
A formao social do Maranho sofreu forte influncia da herana estatal portuguesa, e o Estado
convivia com um atraso social e econmico, como resultado de uma poltica patrimonialista.
Segundo Faoro ap. Souza, essa concepo (...) responderia, em ltima instncia, pela substncia
intrinsecamente no-democrtica, particularista e baseada em princpios que sempre teria marcado
o exerccio do poder poltico no Brasil. A ideia central de Faoro a de que o Brasil herda o
34
neste contexto familismo39 e cooptao de intelectuais junto aos cargos executivos
e eletivos.
Associada a uma poltica clientelista e familista, com uma economia
cada vez mais combalida, sem sustentao de base, apontando para uma
decadncia, a literatura, fonte de orgulho da elite da cidade, legitima-se como
tentativa de compensao, o que alguns autores chamam de ciclo decadentista,
que vai de 1894 a 1932.40 A concepo de decadncia local tem sido tematizada,
desde o sculo XIX, pelos discursos poltico, econmico e cientfico, alm de ser
tratada esteticamente em verso e prosa, em sons e imagens plsticas.
Segundo Alfredo Almeida, a decadncia da lavoura, que teve incio no
Estado com a abolio da escravatura e, consequentemente, a runa dos grandes
proprietrios, utilizada como categoria de anlise para a compreenso da
conjuntura econmica daquela regio. Essa categoria foi incorporada tanto pelo
pensamento oficial quanto pela produo erudita da cidade, como padro
explicativo aceito sem contestaes, alm de assumir um carter de consenso.
somente a partir da dcada de 1980 que a noo de decadncia comea a ser
questionada e relativizada pela produo acadmica local.41
Para Rossini Corra, essa noo foi utilizada pela elite cultural e poltica
do Estado com o intuito de legitimar as estruturas de poder, especialmente porque
a
sistema de poder poltico de Portugal. Ele procurou comprovar sua hiptese, buscando as razes
que se estendem at a formao do Estado portugus no sculo XII. Cf. SOUZA, Jess. A
modernizao seletiva: uma reinterpretao do dilema brasileiro, 2000, pp.168-169.
39
Na dcada de 1930, perodo em que Gullar nasceu, o poder no Maranho era disputado por
duas faces polticas representadas por Marcelino Machado (que se casar com a filha do
governador Benedito Leite) e a de Magalhes de Almeida (que se casar com a filha do
governador Urbano Santos). Cf. CRUZ, Arlete. Op. cit., p.23.
40
Nesse perodo, predominou a escola literria do parnasianismo ainda contemplando as glrias
conquistadas pelos escritores do sculo XIX. Cf. CRUZ, Arlete. Op. cit.
41
ALMEIDA, Alfredo W. Berno de. A ideologia da decadncia: uma leitura antropolgica da histria
da agricultura no Maranho, 1982.
35
expectativa do retorno idade urea do
paraso perdido, sem fundamento na
realidade objetiva, protegeu-se na
mtica apologia do renascimento.42
42
CORRA, Rossini. Formao social do Maranho: o presente de uma arqueologia, 1982, pp.
310-311.
43
Cf. CRUZ, Arlete. Op.cit.
44
Idem, ibidem, p. 27.
45
Em 1922, havia um movimento artstico que privilegiava a ruptura com antigas bandeiras. Vivia-
se uma efervescncia de carter intelectual, cujo saldo qualitativo implicava um amadurecimento
esttico, no qual inmeros artistas, dentre os quais pintores, poetas, msicos, escultores etc.,
buscavam pari passu a ruptura com antigos padres burgueses, com o passadismo, com a
importao de modelos, com o academicismo, a cpia. Esse movimento permitiu a renovao da
36
acontecimento no encontrou nenhuma repercusso no cenrio literrio
maranhense. Flvio Soares afirma que Mrio de Andrade, ao visitar So Lus,
disse que a cidade era a clula mater no contexto brasileiro da mesmice,
acomodao, e acrescentou: So Lus (entenda-se: o Maranho) est integrada
no todo brasileiro, numa pasmaceira me.46
Essas geraes de escritores olhavam So Lus a partir uma imagem
pautada no na experincia vivida na cidade, mas num mito criado em torno da
noo de Atenas brasileira, alimentada por lembranas nostlgicas, celebrando
romanticamente esse Maranho. Diante dos escritores aqui glosados, vale
destacar Joo Lisboa47, que permaneceu na cidade, saindo apenas nos ltimos
anos de sua vida, em busca de fomento para concluir sua obra. possvel que
Lisboa seja um dos poucos a se referir, ainda que com parca frequncia, aos
horrores da escravido negra no Estado, e enquanto jornalista estava atento s
mazelas dessa terra e do povo, evidenciando sua indignao para com a
miservel realidade poltica e social do Maranho48.
Ao pensar a entrada de Ferreira Gullar na cena ludovicense, vale
lembrar que o poeta nasce em 10 de setembro de 1930 em So Lus e, no cenrio
da poltica nacional, esse ano foi marcado pelo movimento revolucionrio liderado
por Getlio Vargas, que culminou na deposio do presidente de ento,
Washington Lus, encerrando assim, o perodo da Repblica Velha.
E, nesse perodo, enquanto no cenrio artstico nacional o modernismo
embala a produo literria, em So Lus, tal forma de expresso ainda est
distante de se colocar como relevante. Segundo Rossini Corra,49 o Modernismo
s chegou ao Maranho com Bandeira Tribuzi, no final dos anos 40, apesar de
37
alguns autores considerarem que, sob a influncia de Antnio Lopes, vrios jovens
aglutinavam-se em torno do Cenculo Graa Aranha, construindo essa concepo
modernista, antes mesmo de Tribuzi.50
exatamente nesta dcada de 40 que a paisagem literria ludovicense
j conta com a presena de Jos Ribamar Ferreira, o poeta cujo pseudnimo
Ferreira Gullar, que nasceu em So Lus do Maranho, na Rua dos Prazeres, 497.
Ele o quarto, dos onze filhos do comerciante Newton Ferreira e da dona de casa
Alzira Ribeiro Goulart.
Quando criana, com sete anos51, o poeta iniciou seus estudos no
Jardim Decroli ao lado da igreja dos Remdios52 -, l permanecendo por dois
anos. Posteriormente, iniciou aulas com professoras contratadas pela famlia.
Em 1939, enquanto o menino Jos de Ribamar realizava seu primrio,
o mundo se deparava com a trgica experincia da 2 Guerra Mundial. No incio
dos anos 40, Gullar entrava para o colgio Ateneu Teixeira Mendes e, em seguida,
para a Escola Tcnica, hoje, Centro Federal de Educao Tecnolgica CEFET.
Nesta escola, o poeta estudou de 1943 a 1947. Ainda no ano de 1943, ele
passava a ficar mais no interior de sua casa para ler e escrever poemas, pois
havia experimentado um sentimento de paixo por uma menina. A paixo o deixou
recluso na escrita.
Sua infncia foi marcada por uma rotina tpica de um menino de cidade
pequena. Tal como lembra Brait, Gullar
50
Cf. CRUZ, Arlete. Op cit.
51
Nesse perodo (1937), Getlio Vargas se encarregava de liderar um novo golpe e, com isso, se
instaurava a ditadura do Estado Novo no Brasil.
52
A igreja dos Remdios localiza-se na Praa Gonalves Dias, cujo nome uma homenagem ao
poeta maranhense. Os arredores desta igreja foram palco das festas descritas no romance O
Mulato de Alusio de Azevedo, no qual o autor realiza uma crtica social e anti-racista severa sobre
a So Lus de 1881.
38
acebolado regado com guaran Jesus, num restaurante
que ficava ao lado do cinema. 53
53
GULLAR, F. Seleo de textos BRAIT, Beth. p. 06.
54
Entrevista de Ferreira Gullar Gilfrancisco Santos. Disponvel em: <http://.versoeprosa.ning.br>.
Acesso em: 19 mai. 2009.
55
TRIGO, Luciano. O poema tem que ser um relmpago. In: Revista Poesia Sempre, 2004, p. 14.
56
Site oficial de Ferreira Gullar. Disponvel em: <http://portalliteral.terra.com.br/>. Acesso em: 11
nov. 2008.
39
como locutor na rdio Timbiras e passava a colaborar no suplemento literrio do
Dirio de So Lus.
Em 1930, quando nasce Ferreira Gullar, a ilha de So Lus possua um
panorama no qual h uma convivncia entre as representaes de uma elite
letrada com sua decadncia material e uma renovao cultural encampada pela
produo intelectual dos novos atenienses. O esforo de renovao cultural
almejada por estes possibilitou uma valorizao da experincia local, bem como
permitiu uma organicidade da cultura regional por meio da produo de obras, da
edio de publicaes, da criao de instituies relevantes, alm de eventos
comemorativos de interesses coletivos e especficos.
Em outros termos, esse grupo pretendia uma interveno concreta
naquela realidade, visando a apontar solues para o presente, capazes de
projetar um futuro glorioso, tendo como artefato fundamental o passado mitolgico
da Atenas brasileira. Tratava-se, portanto, de construir uma continuidade em
relao ao passado, para que no se apague a chama daquele ideal e se no
perca a tradio que deu [ao Maranho] as glrias da Atenas do Brasil.57
No final da dcada de 40, So Lus se deparava com os debates
relativos ao modernismo influenciados por Bandeira Tribuzi e pela renovao
formal da poesia brasileira. Uma ousadia para uma poca na qual havia a
predominncia da literatura lusitana e, ainda, porque ningum havia implantado a
nova ordem esttica no Maranho no contexto dos anos 20. O conservadorismo
preponderou sobre o modernismo em termos estticos tambm na dcada de 30
no Estado.
Bandeira Tribuzi era um poeta maranhense que foi estudar na Europa e,
ao retornar para a ilha de So Lus, trouxe na bagagem as novidades da poesia
moderna, da vanguarda. O jovem Jos Sarney tornou-se amigo de Bandeira
Tribuzi e ambos criaram a Revista A Ilha. No mesmo perodo, Gullar e Lago
Burnett fundaram a Revista Saci que, posteriormente, passou a ser denominada
Afluente. Sobre este, perodo o poeta comenta que
57
MEIRELES, Mrio. Histria do Maranho,1980, p. 354.
40
eles tinham a coisa que o Tribuzi trouxe, de
vanguardista. Ns, no; ns ainda tnhamos uma
ligao com o passado, com uma coisa mais
parnasiana. Depois tudo se fundiu num movimento s,
ficou aquela gerao de escritores jovens, abertos para
uma transformao do Maranho e da cultura
maranhense.58
58
Ferreira Gullar conta tudo!!!. Jornal de Poesia. Revista Agulha. Disponvel
em:<www.revista.agulha.nom.br>. Acesso: 17 mai. 2008.
59
CORRA, Rossini. Atenas brasileira: a cultura maranhense na civilizao nacional, 2001, p. 197.
60
Cf. CRUZ, Arlete. Op. Cit.
61
TRIGO, Luciano. O poema tem que ser um relmpago. In: Revista Poesia Sempre, 2004, p. 20.
41
a partir dos ltimos anos da dcada de 40 que So Lus vai sentindo
novas brisas de liberdade, entretanto, j sob o domnio da oligarquia vitorinista.62
Os movimentos literrios dessa poca, cansados da viso da Atenas brasileira em
contraposio dura realidade do Estado, buscavam a renovao desse olhar
sobre a cidade. O jovem Ferreira Gullar e sua amiga Lucy Teixeira organizam,
nesse contexto, o Congresso Sbido de Poesia.63
Em 1949, o jovem poeta, com apenas 18 anos, lana, sob o
pseudnimo de Ferreira Gullar, Um pouco acima do cho, causando um alvoroo
no meio intelectual. Portanto, com esta idade, Gullar j compe a paisagem
potica da cidade, com o intuito de renovar as discusses feitas sobre a realidade
social local, ainda que sua poesia estivesse distante daquilo que a linguagem
potica alcanada por Gullar em, por exemplo, A Luta corporal.
A escolha pelo sobrenome Gullar, segundo o poeta, ocorre em funo
de certo mpeto de diferenciao face grande quantidade de poetas existente
naquele Estado que ostentava o nome Ribamar.64 Da a opo pela incorporao
do sobrenome Gullar, herdado de sua me.
62
Governo de Vitorino Freire.
63
nesse final da dcada de 40 que ser criada a Sociedade Artstica do Maranho (SCAM) por
Lila Lisboa de Arajo, mais ligada msica erudita.
64
GULLAR apud BRAIT, B. Ferreira Gullar. Seleo de textos Beth Brait, p. 07.
65
Idem, Ibidem, p. 08.
42
percebido por personagens que se destacaram no cenrio econmico e poltico
nos sculos anteriores, como por exemplo, Catarina Mina66, Ana Jansen67 alm,
claro, de encontrarmos atualmente, mulheres atuando como lderes tanto nas
comunidades quanto nos movimentos sociais. Durante pesquisa de campo na
cidade de So Lus, observou-se tambm que diversas rvores genealgicas
apontam para o sobrenome matriarcal como desdobramento dos sobrenomes de
filhos e netos nas famlias maranhenses.
A estreia potica de Gullar, portanto, apesar de no constar em Toda
Poesia, ocorre com Um pouco acima do cho68, livro publicado em 194969, e que
no prenunciaria o Ferreira Gullar inventivo e sensvel dos poemas posteriores.
70
Gullar optou por deix-lo sombra dos casares de sua cidade natal. Ressalta-
se, nesse sentido, que a poesia dos verdes anos , via de regra, um
66
Catarina Rosa Pereira de Jesus, conhecida como Catarina Mina, foi uma escrava muito bonita
que a custa de muito trabalho e, segundo consta, de alguns favores prestados aos portugueses
endinheirados da Praia Grande da poca, conseguiu reunir recursos suficientes par a obter a
compra de sua alforria. Depois de conseguir a liberdade, prosseguiu trabalhando arduamente,
enriqueceu e tornou-se senhora de um grande nmero de escravos e de imveis. Opulenta, saia
s ruas da cidade acompanhada por um grande squito, sempre bem vestida e coberta de jias.
Cf. Jornal Cazumba. So Lus, 03 jul. 2007. A partir do poder econmico conquistado, Catarina
Mina tornou-se uma mulher de grande relevncia no contexto econmico e poltico daquela poca.
67
Ana Joaquina Jansen Pereira Leite, conhecida como Ana Jansen, ou mais precisamente,
Donana ou Nhajansen uma das mais conhecidas personagens do Maranho do Sculo XIX. Na
apresentao do livro Ana Jansen: rainha do Maranho, 2007, o organizador Jomar Moraes, afirma
que ela era dona de uma personalidade forte, afirmativa e capaz de retraar os caminhos que o
nascimento pobre parecia indicar ou sugerir, Ana Jansen foi a nica, de todas as damas da
sociedade maranhense do sculo XIX, a impor-se por si mesma, alcanando culminncia sem
paralelo em seu tempo. Alm de tornar-se a chefe incontestvel e providencial de sua numerosa
famlia, manteve a prosperidade de seus negcios, mesmo diante das ameaas do progresso que
vinha para arruinar parte deles, e reuniu adeptos bastantes para instituir e liderar uma importante
faco poltica na provncia. Donana fez histria pela sua relevncia tanto no contexto social,
poltico e econmico como tambm pelos maus tratos destinados aos seus escravos. Atualmente,
ela permanece na memria coletiva da cidade, como um fantasma que passeia pelas ruas de so
Luis nas noites de sexta-feira. Talvez essa fantasmagoria corresponda a severa pena que o
inconsciente coletivo aplicou memria de Dona Ana Jansen. Cf. MORAES, Jomar. Ana Jansen:
rainha do Maranho, 2007, p.79.
68
Esse livro eu publiquei em So Lus, so poemas que foram escritos entre os dezoito e
dezenove anos, poca em que eu j trabalhava como locutor na Rdio Timbira. Guardei algum
dinheiro e minha me me ajudou bancando o resto. O livro foi publicado assim numa pequena
grfica que ficava no fundo de uma igreja, na Rua do Egito. Ento, foi assim que saiu esse primeiro
livro, como todos os livros, isso ocorria no s no Maranho. Mesmo mais tarde, alguns poetas, at
Drummond, estavam custeando seus livros segundo ou terceiro livro. Naquela poca, editora
para publicar poesia era uma coisa muito rara. Entrevista de Gullar Gilfrancisco Santos.
Disponvel em: http://.<versoeprosa.ning.br>. Acesso em: 19 mai. 2009.
69
H uma segunda edio deste livro publicada pela Academia Maranhense de Letras, numa
edio comemorativa dos 50 anos da obra do poeta, no ano de 1999.
70
BRASIL, Assis. Gullar, uma poesia de corpo inteiro. Jornal do Brasil, 1976.
43
deslumbramento ntimo, vital para o autor, mas de interesse mnimo ou nenhum
para quem no participa diretamente de sua vida.71 Nesse livro, permeado por
versos decasslabos e alexandrinos, o poeta demonstra as influncias parnasianas
ressaltadas no incio de sua carreira e que podem ser observadas nos trechos do
poema a seguir, intitulado Rua da Infncia, escrito em 1948:
71
VILLAA, A. A poesia de Ferreira Gullar, 1984, p.5.
72
A noo de ilha aparece aqui no somente como limites geogrficos, mas tambm como limites
para a construo de uma fatura potica mais amadurecida. [...] Eu nasci em Macondo, quer dizer,
em So Lus do Maranho. As coisas custavam a chegar l. Minha casa no tinha livros e eu, na
verdade, vivia num quintal com as galinhas, patos, os perus, esses bichos. E resto do tempo era na
44
ano seguinte e parte para o Rio de Janeiro, seguindo a tradio dos literatos
maranhenses, no sentido de migrar para outras regies do pas.
Segundo Rossini Corra, a resposta exportao da inteligncia
maranhense reside nas precrias condies da vida intelectual na provncia e na
busca pelo reconhecimento nacional, em contraposio ao anonimato e ao
esprito de ressentimento decadentista daqueles que permaneceram na cidade.73
Os anos 50, na cidade natal do poeta, so marcados por publicaes
de livros com versos brancos, mais soltos, mais poesia que fico em termos de
forma e contedo. Era a chegada do Modernismo, com trinta anos de atraso. A
obra de Bandeira Tribuzi e Nascimento Moraes Filho repercutiu nesse perodo em
funo de uma literatura preocupada com as questes sociais, ambientais e a
situao dos menos favorecidos74. Durante estes anos, o jovem Gullar j alava
vo em direo paisagem literria nacional. Entretanto, o poeta diz que sua
poesia que se inicia em So Lus, ou seja, que ele escreveu at 1950 nada tinha
a ver com Galo galo ou Poema Sujo. Ela estava condicionada linguagem
parnasiana que transforma todas as coisas naquela monotonia marmrea da
mtrica decassilbica.75
Uma nova compreenso do que vem a ser a poesia moderna vai sendo
construda a partir de leituras, realizadas na biblioteca pblica, tais como Lua
diurtica, de Carlos Drummond de Andrade, O empalhador de passarinhos, de
Mrio de Andrade, alm de outros escritores como lvaro Lins e Otto Maria
Carpeaux. Estes tiveram, portanto, uma importncia fundamental para a mudana
daquilo que Gullar entendia como poesia.
rua jogando bola. Eu no sabia, por exemplo, que a oito quadras da minha casa ficava a praa
Joo Lisboa, cheia de poetas. Enfim, eu ignorava absolutamente tudo, tanto que, com toda a
franqueza, naquela poca eu imaginava que todos os poetas j haviam morrido. Quando comecei
a escrever, s conhecia os poetas de livros, de modo que, para mim, estavam todos mortos. Se
apareciam nos livros, porque estavam mortos (risos). Anos depois, quando arrisquei os primeiros
versos, perguntei-me por que resolvera me dedicar a uma profisso de defuntos, por que insistia
em querer ser poeta. Agora, vejam bem que estou recuando quele perodo de 1945 e 1950. A
essa altura, o movimento modernista j era objeto de estudo nas universidades e nas escolas. E
eu inteiramente por fora de tudo. por isso que Um pouco acima do cho irradia uma ingenuidade
absoluta. Entrevista de Ferreira Gullar Revista Poesia Sempre, 1998, p.390.
73
CORREA, Rossini. Atenas brasileira: a cultura maranhense na civilizao nacional, 2001.
74
Cf. CRUZ, Arlete. Op. cit.
75
Entrevista de Ferreira Gullar. Revista Poesia Sempre, 1998, p. 391.
45
A partir de ento comecei a entender o que era a
poesia moderna, o que pretendiam fazer os poetas
modernos. E ento, de repente, uma revelao em
minha cabea. Percebi, de sbito, todo aquele
processo, tanto assim que, em 1950, escrevi um poema
a partir de um anncio de Sal de Frutas Eno que
constava da silhueta de um galo com o bico aberto e
um sol radiante por trs. E ento aquele galo, aquela
silhueta de galo, me fez escrever o poema, sob o ttulo
de O galo, que ganhou o Concurso Nacional de
Poesia do Jornal de Letras. 76
76
Idem, Ibidem, p.391.
77
O Jornal de Letras era uma publicao da cidade do Rio de Janeiro.
78
Cf. TRIGO, Luciano. O poema tem que ser um relmpago. In: Revista Poesia Sempre, 2004.
79
Entrevista de Gullar Revista Poesia Sempre, 2004, p. 391.
46
a poesia pudesse modificar o mundo. Eu ainda no
sabia nada, estava em So Lus do Maranho. Mas era
necessrio que a poesia modificasse alguma coisa. Ela
no podia ser intil, algo sem sentido, porque eu tinha
feito dela o sentido da minha vida. Ento esse galo, a
identificao com esse animal, uma coisa muito
profunda em mim, porque toda a minha infncia est
ligada quelas aves sem retrato.80
80
Idem, Ibidem, p. 400.
81
Cadernos de Literatura Brasileira, 1998, p.10.
47
entanto, os governistas trataram de sabotar de forma metdica todas as atividades
programadas. Nesse sentido, a polcia proibiu a realizao do comcio na praa
Joo Lisboa, forando sua transferncia para a praa Deodoro, a fim de exaurir a
manifestao. E, ao mesmo tempo, a praa Joo Lisboa foi tomada por soldados
com o intuito de dissipar qualquer manifestao popular. No entanto, o comcio de
Adhemar de Barros foi realizado com muitos outros contratempos, mas no final
dele
82
Cf. COSTA, Wagner Cabral da. A raposa e o canguru: crises polticas e estratgia perifrica no
Maranho (1945/1970), 2010, p.30.
83
A greve foi um movimento articulado pelas oposies contra a posse do governador Eugnio
Barros (PST), ligado a Vitorino Freire, vitorioso em eleies marcadas por denncias de fraude.
As Oposies Coligadas apresentaram como candidato Saturnino Bello, ex-interventor (1946-7) e
ex-vice-governador (1947-50), que rompera com a situao em virtude de sua no indicao como
candidato ao governo pelo vitorinismo. Aproveitando-se das dissidncias abertas no seio do grupo
dominante, as oposies vislumbraram em Sat Bello a possibilidade de finalmente alcanarem o
governo estadual. A campanha eleitoral de 1950 foi particularmente agitada e provocou forte
interesse da populao, pois, alm dos cargos estaduais (governador, senador e deputados), ainda
estava em jogo a sucesso presidencial. Ao longo do ano, todos os candidatos presidncia
estiveram em So Lus, realizando comcios e acirrando a disputa eleitoral. Idem, Ibidem, p.33.
Durante esse perodo muitas pessoas foram detidas pela polcia, entre elas estava Maria Arago.
A militante comunista Maria Arago foi presa e enquadrada na Lei de Segurana Nacional sob a
acusao de fomentar incndios; sem culpa formalizada, a mdica permaneceu presa entre 5 de
outubro e o Natal de 1951, pois foi a nica excluda da anistia dada pelo governador aos
oposicionistas aps o trmino da greve. Em suas memrias, a lder do PCB narrou a discusso
com o chefe de polcia por ocasio da priso: Ele disse que eu estava tocando fogo nas casas e
eu o desmoralizei, dizendo que todo mundo sabia ser o governo que mandava fazer isso, como
forma de vingana contra a greve e contra o repdio que o povo lhe devotava (idem, ibidem, p.33).
48
tambm conhecida como Balaiada Urbana, o mais longo movimento de massa
naquela cidade, em repdio s prticas vitorinistas. Entretanto, o que se observou
at o governo atual foi um continusmo construdo a partir de um discurso de
desenvolvimento muito presente na poltica implementada pelas oligarquias que
estiveram presentes at o momento atual no Maranho. Nunca houve de fato uma
ruptura com tais oligarquias, apenas pequenas disputas internas entre aqueles
que as formam e as integram. O controle do aparelho estatal sempre ocorreu
como uma forma de consecuo de objetos pblicos e privados.84
O poeta deixou a sua cidade de origem em 1951. Seria desnecessrio
mencionar que, aps sua sada, a velha So Lus ainda conviveu com cenas de
excessos de corrupo eleitoral praticadas pelo Estado. Apesar de tudo, o
vitorinismo no foi sedimentado, apenas cedeu lugar a outro tipo de oligarquia,
cujos instrumentos do poder disciplinador, como diria Foucault, so mais
atualizados: ao invs de queimar casas de operrios, esta lana mo dos meios
de comunicao de massa.
84
Ver PEREIRA, Robison R. Silva. Maranho Crislida? Prticas discursivas e rede de relaes
sociais no Governo de Jos Sarney 1966/1970, 2008.
49
1.2. Gullar e a Cena Literria Nacional
85
Entrevista de Ferreira Gullar Gilfrancisco Santos. Disponvel em: <www.versoeprosa.ning.br/>.
Acesso em: 19. Mai. 2009.
86
Entrevista de Ferreira Gullar ISM News. Disponvel em:< www.portalliteral.terra.com.br>.
Acesso em: 18 mai. 2009.
50
Quando cheguei, fui morar num quarto de uma casa de
penso, na Rua Benjamin Constant, na Glria, em frente de
um templo positivista que no existe mais. Fiquei ali durante
um ms, porque a dona da penso me pediu o quarto, e eu
tive que sair de l. Fui para outra penso, na Rua Santo
Amaro, que era um lugar muito pior. A primeira coisa que fiz
foi ir no Jornal de Letras, na Avenida Erasmo Braga, que era
dirigido pelo Joo Cond. A fui me enturmando, comecei a
frequentar o bar Vermelhinho, em frente ABL e a conhecer
pessoas.87
51
Oliveira atrs, rindo. O Oswald entrou, em manga de
camisa, com aqueles olhos enormes, e falou: Vim
abraar voc pelo seu aniversrio. E trouxe para mim
um livro dele, A morte e o rei da vela, uma edio
antiga, com dedicatria. A ele falou: olha eu vou dar
um curso na Itlia, e o ltimo captulo do meu curso vai
ser A Luta Corporal. Ficamos amigos, tanto que passei
o Ano Novo, de 1953 para 1954, na casa dele. O
Oswald j estava meio adoentado, e em outubro de
1954 ele morre.90
90
TRIGO, Luciano. O poema tem que ser um relmpago. In: Revista Poesia Sempre, 2004, p.21.
91
Idem, Ibidem, p. 22.
52
no intervalo de um concerto. Disse que no tinha
gostado do Mozart e p, ficou estatelado no cho.92
92
Idem, Ibidem, p. 22.
93
Referindo-se a Mrio Pedrosa.
94
FERREIRA Gullar Conta Tudo!!! Jornal de poesia. Disponvel em:< www.jornaldepoesia.jor.br>.
Acesso em: 02 jun. 2008.
95
TRIGO, Luciano. O poema tem que ser um relmpago. In: Revista Poesia Sempre, 2004, p. 21.
53
exatamente devido a isto. Ele no esconde nas entrevistas dadas sua admirao
pela poesia e pela pessoa de Joo Cabral.
Quanto ao seu convvio com Drummond, Gullar explica que
96
Idem, ibidem, p. 21.
97
ANTENORE, Armando. A poesia surge do espanto. Revista Bravo, mar. 2009.
54
Lua diurtica, de Drummond, por exemplo, o influenciou muito no sentido
de uma poesia moderna, uma poesia que lhe permitiu se desgarrar das amarras
da Gerao de 45.
Mrio Faustino, que nasceu no Piau, no mesmo ano que Gullar, e que
tambm foi morar no Rio de Janeiro tece, no livro De Anchieta aos concretos
(2003), crticas sobre o panorama da poesia brasileira, afirmando a importncia
dos principais literatos de 22 e como este movimento foi crucial para o
desenvolvimento da cultura brasileira. Para ele, a poesia brasileira foi
impulsionada de fato a partir do modernismo. Faustino ressalta a relevncia da
poesia - no sem apontar algumas crticas - de Carlos Drummond de Andrade e
Joo Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Ceclia Meireles,
Vinicius de Moraes, Oswald de Andrade, Murilo Mendes entre outros, mas admite
certa monotonia na literatura brasileira no incio da dcada de 50, que poderia ser
quebrada por poetas como Augusto e Haroldo de Campos, Dcio Pignatari e
Ferreira Gullar. Estes jovens, para ele, estavam por infundir transformaes
necessrias na poesia brasileira.
Ainda em 1954, Gullar surge na cena literria nacional, impulsionando a
poesia concreta do Brasil, com a publicao de A Luta Corporal. Com este livro, o
poeta abre
98
Ver GULLAR, Ferreira. Toda poesia (1950-1987), 1991, p. 370.
55
A Luta Corporal, ainda como o livro anterior, foi custeado pelo prprio
poeta, mas editado e impresso na grfica dO Cruzeiro, revista em que, poca,
Gullar trabalhava como revisor de texto, sob a direo do romancista baiano
Herberto Salles.
Com A Luta Corporal, Gullar conseguiu avocar ateno para sua poesia.
Sobre este livro, Glauber Rocha tece os seguintes comentrios:
99
Entrevista de Ferreira Gullar Gilfrancisco Santos. Disponvel em:<http://.versoeprosa.ning.br>.
Acesso em: 19 mai. 2009.
100
ROCHA, Glauber. Folha de So Paulo, 20 mar. 1977.
56
procuravam por todos artifcios das arquiteturas
estticas decadentes esconder o subdesenvolvimento
do Terceiro Mundo, em nome de uma perfeio
confinada ao elitismo dos intelectuais neo-
101
colonizados.
101
ROCHA, Glauber. Folha de So Paulo, 20 mar.1977.
102
ORTIZ, Renato. A moderna tradio brasileira: cultura brasileira e indstria cultural,1994, p.27.
57
Revoluo no pensamento, nas idias, texto, forma,
vida: nenhum movimento cultural brasileiro jovem
escapa da fecunda influncia do SDJB, dirigido por
Gullar e Reynaldo Jardim, com a colaborao dos
irmos Campos e do extraordinrio poeta Mrio
Faustino, irmo gmeo de Gullar que explodiu num
Jumbo sobre os Andes, inspirando o controvertido
Paulo Martins de Terra em Transe. [...] Dezenas de
nomes novos surgiram escrevendo coisas at ento
inditas no Brasil: polmicos, radicais, cultos,
inteligentes, sensveis e visionrios.103
103
ROCHA, Glauber. Jornal Folha de So Paulo, 20 mar.1977.
104
Ver FAUSTINO, Mrio. De Anchieta aos concretos, 2003.
105
Inmeras reflexes literrias eram realizadas por crticos que participavam da atividade
jornalstica no Brasil desde o final dos anos 40. Entre eles destacam-se Otto Maria Carpeaux
(Correio da Manh, 1940-1945); lvaro Lins (Correio da Manh, 1941-1945); Srgio Buarque de
Holanda (Dirio de Notcias, 1940-1948, e Dirio Carioca,1950-1954); Antonio Cndido (Folha da
Manh,1943-1945, Dirio de So Paulo, 1945-1947) Afrnio Coutinho (Dirio de Notcias, 1948-
1953), entre outros. Idem, Ibidem, p. 16.
58
Vale acrescentar ainda que as teorias de Merleau-Ponty106 influenciaram
profundamente os artistas brasileiros desse perodo, por meio de crticos como,
em especial, Mrio Pedrosa, Ferreira Gullar que, por sua vez, foram interlocutores
de Lgia Clark, o que resultou na fecundao do movimento neoconcreto.
No ano de 1954, em meio construo de sua base potica e ao
estabelecimento de vnculos de amizade, conheceu a atriz Tereza Arago, com
quem se casou e com a qual teve seus trs filhos Paulo, Luciana e Marcos. Este
ltimo morreu em 1990, e Tereza, quatro anos depois, ambos no Rio de Janeiro.
106
Especialmente influenciados pela leitura de A estrutura do comportamento, de autoria de
Merleau-Ponty. Cf. BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vrtice e ruptura do projeto construtivo
brasileiro, 1999.
59
possibilidades histricas da poesia moderna. De fato, A
Luta Corporal tributrio de um neo- simbolismo grato
gerao de 45, vale-se da hermtica livre-associao
dos surrealistas e tambm prefigurao da poesia
concreta (em peas como Rozeiral e
Negrornorigens.107
60
corpo, na idade perplexa e interrogativa, mas sua
identidade quer alargar-se na medida dos ideais
extremados.110
110
VILLAA, A. A poesia de Ferreira Gullar, 1984, pp.44-45.
111
Idem, Ibidem, p.09.
112
Os irmos Campos.
61
sintaxe? Eles bolaram a nova sintaxe que era a sintaxe
espacial, no mais o discurso, mas a juno das
palavras, dos espaos, assim nasceu a poesia
concreta.113
113
Entrevista Gilfrancisco Santos. Disponvel em:<http://.versoeprosa.ning.br>. Acesso em: 19
mai. 2009.
114
VILLAA, A. A poesia de Ferreira Gullar, 1984, p. 31.
62
ainda eram muito ligados ao passado, no tinham o
mesmo esprito que os outros. Ento por isso eu os
exclu do livro.115
115
TRIGO, Luciano. O poema tem que ser um relmpago. In: Revista Poesia Sempre, 2004, p.17
116
VILLAA, A. A poesia de Ferreira Gullar, 1984, p.12.
117
Idem, Ibidem, p.43.
118
Ver TURCHI, Maria Z. Ferreira Gullar: a busca da poesia, 1985.
63
1.2.2. O Vil Metal (1954-1960)119
119
GULLAR, F. Vil metal. In: ______. Toda poesia, 1991.
120
VILLAA, A. A poesia de Ferreira Gullar, 1984, pp.52-53.
121
Idem, Ibidem, p.45.
64
corporal, tenta reaver a poesia. S que ao faz-lo avana cauteloso, pois no
deixa de lhe atormentar o fato de que o novo poema j nasce marcado pela
morte.122 Considerando que nada resiste ao tempo, a construo potica vai
sendo reconstruda a partir de um modelo dialtico no qual a construo e a
destruio vo sendo edificadas. A resistncia , portanto, da prpria linguagem
que insiste num tempo histrico marcado pela ideia de transformao.
Joo Luiz Lafet123 enxerga em Vil Metal a referncia a um tempo no
qual Gullar apresenta um maior amadurecimento, com maior controle da
linguagem, e com a mesma viso amarga, temperada agora com a espcie de
calma que tm os grandes artesos. Tambm aqui podemos destacar a
identidade do eu, sua capacidade de reconhecer as coisas e se auto-reconhecer
est presente em alguns destes poemas. Nessa direo, Villaa diz que
122
TURCHI, Maria Z. Ferreira Gullar: a busca pela poesia,1985, p. 72.
123
LAFET apud VILLAA, A. A poesia de Ferreira Gullar, 1984, p. 59.
124
VILLAA, A. A poesia de Ferreira Gullar, 1984, p.69.
65
1.2.3. Poemas Concretos e Neoconcretos (1957-1958)
125
FAUSTINO, Mrio. De Anchieta aos concretos, 2003, p. 45.
66
concluso que o ideal era retirar o discurso da
poesia.126
126
Com Gullar volta a potica da realidade. O Estado de So Paulo, 28 set. 77.
127
Dois grupos paulistas so relevantes a esse movimento: o Noigandres poetas paulistas (Dcio
Pignatari e os irmos Campos) que apresentava, por meio de seus textos e poesias, uma reao
ao subjetivismo formalista e ao iderio classicizante da Gerao de 45 e o Grupo Ruptura
formado por pintores e escultores paulistanos (Geraldo de Barros, Waldemar Cordeiro, entre
outros) que defendia as mesmas proposies dos integrantes de Noigandres -. O movimento
concreto nas Artes Plsticas pretendia romper com toda uma vertente subjetivista representada
pela pintura figurativa de carter expressionista, alm da tendncia abstracionista, concepo
hedonista da arte abstrata. Privilegiava a organizao do espao, a estruturao das formas e das
cores, desvinculadas de contedos extra-pictricos. Ver ARRUDA, Maria Arminda. Metrpole e
cultura - So Paulo mo meio sculo XX, 2001. E havia tambm o Grupo Frente, formado por
artistas plsticos, escultores e poetas no Rio de Janeiro. Vrios integrantes deste grupo formaram
posteriormente o movimento neoconcreto. Ver BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vrtice e ruptura
do projeto construtivo brasileiro, 2003.
128
Idem, ibidem, p. 343.
129
Inspiram-se em Mallarm, alm de Pound, Joyce, Cummings e outros.
67
impunha. E, em 1954, vspera de uma mudana significativa na poesia brasileira
Gullar rastreia essa mudana em A Luta Corporal. Os irmos Campos, Haroldo e
Augusto, em So Paulo, vindos da poesia poundiana e com a revista Noigandres
(os nmeros mais importantes so de 1955/56), procuravam tambm uma sada
para o exaurido discurso potico.130
Para Gullar, a poesia concreta deveria
criar uma nova linguagem, uma nova sintaxe, que fosse
multidirecional. Esse termo eu tirei da Rdio Timbira, de
So Lus do Maranho, onde trabalhei, e o locutor dizia:
Rdio Timbira, em ondas unidirecionais... (risos). O
poema teria de ser uma construo sem discurso, a
juno de palavras numa pgina. Sem a sintaxe verbal
e, sim, visual.131
130
BRASIL, A. Jornal do Brasil. 24. jan. 76. Disponvel em: <portalliteralterra.com.br >. Acesso em:
18 mar. 2009.
131
Idem, Ibidem.
132
LAFET apud VILLAA, A poesia de Ferreira Gullar, 1984, pp.76-77.
68
concretizar, abstratiza mais ainda os conceitos, j de si
abstraes.133
69
aproxima a sintaxe do discurso e a fatalidade do tempo,
num mesmo registro negativo. A generalizao com
que v o tempo, leva-o a outra generalizao: admitindo
que no discurso a palavra se expe com mais
subjetividade (enquanto integrada necessria
predicao), Gullar quer agora evit-lo para que ele no
volte a ser a expresso de uma fragilidade dentro do
tempo em que ele mesmo constri. Prope-se, ento, a
encontrar a palavra dura, ponderada, to objetivamente
identificada consigo mesma que possa, da, tirar sua
fora de concentrao e enfrentamento do plano
temporal.135
135
VILLAA, A. A poesia de Ferreira Gullar, 1984, p.76.
136
Em Un Coup de Ds, Mallarm, a partir de uma perspectiva simbolista, constri o poema em um
espao em branco da pgina. Esse poema foi retomado, na segunda metade do sculo XX, pelo
movimento da poesia concreta, produzido no Brasil, como referncia para suas teorias, atravs de
sua estrutura espao-temporal. O movimento concreto no Brasil se inspirou no poeta francs e,
partindo da crtica literria estruturalista e ps-estruturalista, buscou entender como Un coup de
ds revigora a poesia como uma extenso da transparncia do espao da escritura.
137
Os primeiros artigos dos concretistas de So Paulo, Nova poesia: concreta, de Dcio Pignatari;
Poesia concreta de Augusto de campos; e Olho por olho a olho nu, de Haroldo de Campos, foram
publicados na Revista ad, n. 20 que foi lanada junto com o nmero 3 da Revista Noigandres.
70
vida moderna engendrava nos grandes centros urbanos. Nesse sentido, o espao
grfico deveria ter tambm uma funo orgnica no poema, pois este, por meio de
sua linguagem, apresentaria os temas, problemas designadores das
transformaes urbanas das principais cidades brasileiras.
Segundo Gullar, em entrevista, os irmos Campos foram apresentados
poesia de Mallarm por ele.
[...] O interesse deles era muito mais pela poesia
inglesa, era mais por Ezra Pound e James Joyce. O
Mallarm fui eu que introduzi para eles, inclusive Un
coup de ds... que eles no conheciam. A eles
passaram a se interessar. Por exemplo, eles
desprezavam Oswald de Andrade. A primeira conversa
com Augusto, quando ele falou no chamado elenco de
autores, ele usava essa expresso, "o nosso elenco de
autores", ele mencionava uma srie deles, Ezra Pound,
Joyce, Joo Cabral, Drummond e ficava por a. Eu falei
assim: o Oswald um poeta de certo modo mais
inovador, em certos aspectos, mais do que esses que
voc citou. A o Augusto falou: o Oswald um
esculhambado. Bom, se ele esculhambado, eu no
sei, estou falando da poesia dele e no da pessoa do
Oswald. Eu tambm no acho que ele seja uma pessoa
esculhambada, conheo ele inclusive. [...] Ento eu
falei: voc est equivocado, o Oswald (at usei essa
expresso) possui uma linguagem dele, ademais ele
jovem, como se fosse uma folha verde, uma coisa
verde, uma plantinha verde, uma coisa diferente, acho
que se a gente est querendo fazer uma outra poesia,
precisa ler o Oswald. A bem da verdade, eles leram e
se entusiasmaram, valorizaram ao ponto de redescobri-
lo e revaloriz-lo, que estava esquecido, tanto que a
primeira coisa que li de Oswald, Serafim Ponte Grande
(1933), eu comprei no sebo. Foi no sebo da Livraria
So Jos, estava um amontoado no cho, uma srie de
livros sendo vendidos ao preo de trs vintns. Dessa
conversa surgiu isso e o Oswald acabou sendo
valorizado pelos irmos Campos.138
138
Entrevista de Ferreira Gullar Gilfrancisco Santos. Disponvel em:<http://.versoeprosa.ning.br>.
Acesso em: 19 mai. 2009.
71
Reynaldo Jardim e Mrio Faustino, e o Jornal Dirio de So Paulo. Em 1958,
Faustino escreve que so nossos os votos que os concretistas continuem a
enriquecer-nos, a manter-nos vivos e inquietos. Que a poesia concreta evolua no
mais frtil sentido que puder ser encontrado.139 Mas acrescenta tambm que ela
se transformou.
E especificamente no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil140 que
Ferreira Gullar provoca a ruptura entre suas ideias e as do grupo de So Paulo,
que enfatizavam o conceito de pura visualidade da forma. Em 1957, Gullar
discorda do artigo intitulado Da psicologia da composio matemtica da
composio, publicado no Jornal do Brasil pelo grupo de So Paulo. Em resposta
a esta divergncia, ele publica no mesmo jornal o artigo Poesia concreta:
experincia fenomenolgica, marcando assim sua ruptura com o grupo
paulistano.141 Descontente com o desenrolar da poesia concreta, Gullar organiza o
Manifesto Neoconcreto, em 1959.142
A arte neoconcreta desejava fundar um novo espao expressivo. Nos
trechos abaixo, fica explcito o porqu do embate com o concretismo.
139
FAUSTINO, M. De Anchieta aos concretos, 2003, p.463.
140
interessante destacar como o Jornal do Brasil tornou-se um espao de discusses relevantes
na cena nacional cultural. Entre os anos de 1950 e 1960 ele foi palco de discusses que marcaram
as vanguardas artsticas desse perodo. Durante o movimento concreto ele publicou no seu
Suplemento Dominical, textos de F. Gullar, Mrio Faustino, Clarice Lispector, Glauber Rocha, entre
outros. Esse jornal funcionou como um dos veculos protagonistas das reformas do jornalismo
brasileiro (Costa, 2005), pois ainda no havia espaos institucionais que possibilitassem a
profissionalizao dos diversos grupos intelectuais. Ele os empregava e lhes permitia expressar
suas opinies.
141
Pautado numa crtica merleaupontyana teoria da Gestalt que tambm ser empregada em
seu Manifesto Neoconcreto de 1959, do qual participaram os amigos Lygia Pape, Theon Spandis,
Reinaldo Jardim e Lygia Clark. Para Merleau-Ponty, a abertura do mundo e do visvel so
inalienveis e, nessa direo, ele trabalha tambm com a noo de obra em movimento e
estrutura. Lgia Clark, dialogando com Gullar sobre as ideias deste filsofo, mostra por meio de sua
obra a relevncia e o papel do processo, como modo de ser da obra. A ideia era que o fazer
deveria ser mais significante que o resultado obtido atravs dele, da a necessidade de obras que
se modificam constantemente e, neste movimento, assimilam o novo como condio para manter-
se vivo. Outro elemento dessa influncia merleaupontyana pode ser percebido na interao entre
sujeito e objeto, que se utiliza do corpo e do mundo para se construir, rompendo a separao entre
o mundo interno e mundo externo. Nesse sentido, o todo no pode ser dividido em partes, porque
deste modo o perdemos.
142
O Manifesto Neoconcreto foi assinado por Lygia Pape, Reynaldo Jardim, Theon Spandis, Helio
Oiticica, Lygia Clark, Franz Waissman e Amlcar de Castro. Esse movimento criticava o desvio
mecnico e cientificista que o concretismo acabou desenvolvendo e buscava um retorno ao
humanismo. Cf. Cadernos de Literatura Brasileira, 1998, p.12. O manifesto escrito por Gullar e
assinado por vrios pintores da poca, denota o envolvimento entre a poesia e as artes plsticas,
considerando a especificidade da linguagem de cada deles, em busca de nova esttica.
72
O neoconcreto, nascido de uma necessidade de
exprimir a complexa realidade do homem moderno
dentro da linguagem estrutural da nova plstica, nega a
validez das atitudes cientificistas e positivistas em arte e
repe o problema da expresso, incorporando as novas
dimenses verbais criadas pela arte no-figurativa
construtiva. O racionalismo rouba arte toda a
autonomia e substitui as qualidades intransferveis da
obra de arte por noes da objetividade cientfica. [...]
No concebemos a obra de arte como mquina nem
como objeto, mas como um quasi-corpus, isto , um
ser cuja realidade no se esgota nas relaes
exteriores de seus elementos; um ser que,
decomponvel em partes pela anlise, s se d
plenamente abordagem direta, fenomenolgica.143
143
Manifesto Neoconcreto. In: BRITO, R. Neoconcretismo: vrtice e ruptura do projeto construtivo
brasileiro, 1999, pp. 10-11.
144
ARRUDA, Maria Arminda. Metrpole e cultura: So Paulo no meio sculo XX, 2001, pp. 350-
351.
145
Ver Cadernos de Literatura Brasileira, 1998, n.6, p.12.
73
grande absurdo! O Augusto me disse que eu no tinha
nada a ver com aquilo. Bom, eu disse. Publicamos, sim,
no Suplemento, mas com um texto ao lado, criticando.
E assim foi. Publiquei o texto deles, mas, junto, coloquei
o meu Poesia concreta: fenomenolgica, com uma
viso diferente. Afinal de contas, existe uma experincia
individual de cada um com o mundo. Esse
conhecimento fonte da arte. Voc acaba apreendendo
os fenmenos pelos sentidos. Depois da publicao,
houve a ruptura: de um lado, um grupo do Rio, do outro,
os paulistas.146
146
A UFMG relembrou a data, em maio de 2006, na Jornada do Poema
Concreto/Processso/Experimental, promovida pela Faculdade de Letras, que discutiu os rumos do
movimento vanguardista e sua produo atual. Site da UFMG. N 1534 - Ano 32. Boletim
Informativo. Lngua concreta (e afiada) Miguel Arcanjo Prado, 2006.
147
TRIGO, Luciano. O poema tem que ser um relmpago. In: Revista Poesia Sempre, 2004, p.23.
74
internas que constituem o discurso. Ento no fundo ela
abstrata. A poesia concreta devia se chamar poesia
abstrata. Porque a palavra pra s concreta se eu
digo esta pra. Agora pra, pra, pra.148
148
Idem, Ibidem, p. 23.
149
COM Gullar volta a potica da realidade. O Estado de So Paulo, 28 set. 77. Disponvel
em:<www.portalterra.com.br>. Acesso em: 18 abr. 2009.
150
TRIGO, Luciano. O poema tem que ser um relmpago. In: Revista Poesia Sempre, 2004, p.27.
75
pgina, induzia uma determinada leitura. Ou seja, a
forma do livro era determinada pelo poema que eu
estava querendo fazer, pelas palavras. Ento o livro
no tinha capa, era uma estrutura que nasceu com o
fazer do prprio poema. Pensei: bom, uma coisa
espacial agora, tridimensional e manusevel. A
comecei a fazer poemas assim, poemas-objeto, com
placas brancas quadradas e outras em formas de
tringulo, presas por dobradia, que, quando abriam,
mostravam uma palavra, ou seja, tinha uma palavra
pulsando dentro daquilo. Eram poemas espaciais,
manuseveis. Depois de fazer vrios poemas com a
mo, pensei, bom, agora vou fazer com o corpo. O cara
vai entrar no poema. A inventei o Poema enterrado,
que uma sala dentro do cho. Voc descia por uma
escada ao subsolo, abria uma porta e l tinha um cubo
vermelho de 50 por 50 centmetros.151
151
Idem, Ibidem, p. 29.
152
Idem, Ibidem, p. 29.
76
Oswald) de onde saram Cinema Novo, Neo Bossa
Nova, Neo Teatro de Arena, Tropicalismo.153
Aps esse perodo, Gullar parte para uma literatura de cunho poltico-
participante. O que no retira a legitimidade do teor poltico e o potencial de
engajamento do perodo anterior. A considerao de que esta ltima fase mais
poltica e engajada no esvazia a atuao crtica do poeta.
153
ROCHA, G. Jornal Folha de So Paulo, 20 mar. 1977.
154
BRASIL, A. Gullar, uma poesia de corpo inteiro. Jornal do Brasil. 24. jan. 76. Disponvel em:
<www.portalliteral.com.br>. Acesso em: 17 ago. 2009.
155
A repercusso que nos referimos considerando o aspecto da poesia e no o das artes
plsticas.
156
BRITO, R. Neoconcretismo: vrtice e ruptura do projeto construtivo brasileiro, 1999, pp. 94-95.
77
E, nesse sentido, parece que a poesia concreta e neo-concreta foram
necessrias naquele contexto de exausto da poesia modernista, possibilitando
inmeros debates sobre a poesia contempornea.
157
VILLAA, A. A poesia de Ferreira Gullar, 1984, p.81.
78
minha poesia acompanhou isso [...]. Minha poesia de hoje
desdobramento disso.158
158
GULLAR apud COSTA, C. Longa licena potica chega ao fim. Jornal do Brasil. 29 mai. 99.
Disponvel em: <www.portalliteral.com.br>. Acesso em: 15 jun. 2009.
159
TITO, Edison. Ferreira Gullar: compromisso e poesia. Jornal de Braslia. 04 out. 77. Disponvel
em: <www.portalliteral.com.br>. Acesso em 13 mai. 2009.
79
experincia no CPC, sua poesia ganhou outro formato. Integra tambm, neste
mesmo ano, a equipe do jornal O Estado de So Paulo como redator na sucursal
carioca e permaneceu ligado a este jornal por mais de trinta anos.
Como resultado dessa experincia, Gullar escreveu os romances de
cordel que integram Toda poesia: 1950-1987. Trata-se de quatro poemas de
cordel: Joo boa-morte, cabra marcado para morrer; Quem matou Aparecida?;
Peleja de Z Molesta contra Tio Sam e Histria de um valente. Estes balizam o
seu engajamento poltico e social. Para muitos, a ruptura, tanto com o
concretismo, quanto com o neoconcretismo, era considerada um retrocesso de
sua linguagem potica.
160
Entrevista de Gullar Revista Poesia Sempre, 1998, pp.396-397.
161
Formado por cariocas nos anos 60, o Grupo opinio reunia o teatro de protesto e de resistncia,
contava com um centro de estudos e buscavam propagar a dramaturgia popular e nacional.
Buscava criar uma resistncia por meio da arte diante da imposio do Golpe Militar de 1964.
Produziram o Show Opinio que foi dirigido por Augusto Boal, o que permite perceber que havia
tambm um dilogo com o teatro paulistano. Esse show contava com a participao do compositor
e tambm cantor maranhense Joo do Vale bem como Z Kti, Nara Leo que depois foi
substituda por Maria Bethnia, que marca sua estria nos palcos do Brasil com este show. Esse
Grupo vai privilegiar a arte popular e suas idias se expandem para outros setores artsticos.
Ferreira Gullar, sua esposa Teresa Arago e outros amigos como Oduvaldo Viana Filho, Paulo
Pontes, Armando Costa, Denoy de Oliveira entre outros, transforma em empresa o Grupo Opinio
em 1966 quando neste mesmo perodo estriam Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come de
autoria de Gullar e Oduvaldo Vianna Filho, ganhando vrios prmios. Em 1967 o Grupo Opinio
encena A sada? Onde fica a sada de Gullar em parceria com Antonio Carlos Fontoura e Armando
Costa e, em 1968, encenam Dr. Getlio, sua vida e sua glria escrita em conjunto com Dias
Gomes. Ver site oficial do poeta. Disponvel em:< www.portalliteral.com.br>. Acesso em: 16
jun.2009.
80
Rio de Janeiro invadida por militares e estes queimaram a primeira edio de
seu ensaio Cultura posta em questo, que havia sido publicada em 1963. No dia
1o de abril de 1964, Gullar filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro e, com o
recrudescimento da Ditadura, em 1968, atravs da instalao do Ato Institucional
n 5, que fechou o Congresso, cassou mandatos, suspendeu direitos polticos, o
poeta foi preso, assim como outros artistas e intelectuais.
162
Entrevista de Ferreira Gullar Revista Poesia Sempre, 1998, p.398.
163
Idem, Ibidem.
164
Cabra marcado pra morrer tambm foi o ttulo escolhido em reunio do CPC do filme que seria
realizado por Eduardo Coutinho. O ttulo foi baseado no poema de Ferreira Gullar. Eduardo
Coutinho decidiu filmar a saga do lder nordestino das Ligas camponesas, Joo Pedro Teixeira, e
sua luta pela reforma agrria, que culminou com seu assassinato por latifundirios, em 1962. Ver
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revoluo, do CPC era da TV, 2000,
p.97
81
agrria, que eu fizesse um poema capaz de funcionar
como estrutura de uma pea. [...] eu nunca considerei
aqueles romances de cordel como literatura, como
poesia. Ao contrrio, aquilo ali foi uma atitude de
rejeio da poesia num momento em que passei a
julgar que a sociedade brasileira e, sobretudo, a
literatura brasileira eram coisas desligadas do povo, e
que seria necessrio transformar o pas. Eu no queria
mais fazer literatura, e sim mobilizar minha capacidade
de escrever, de usar o verso, para fazer a revoluo.165
Cabe destacar que o Brasil, nesse momento, passava por uma srie de
transformaes resultantes de acontecimentos anteriores, de meados do sculo
XX, e que desembocaram na busca por uma ideia de brasilidade perseguida por
diferentes setores da sociedade.
Segundo Eduardo Jardim de Moraes, no livro A brasilidade
modernista166, o modernismo brasileiro poderia ser pensado em dois momentos.
Um primeiro que enfeixa os anos de 1917 e 1924, e um segundo momento, que
tem incio em 1924 e se acirra em 1930. Neste primeiro, h uma preocupao
mais esttica, os artistas desse perodo esto mais preocupados em romper com
o passadismo, alm de tentar incorporar as principais ideias das vanguardas
europeias. Para o autor, o ano de 24 constitui um marco de mudana de rumos
dentro do movimento modernista.167 Mas principalmente no ano de 1930 que se
busca elaborar uma literatura de carter nacional e, posteriormente, elaborar um
projeto mais extenso de cultura nacional. Nesta perspectiva, a questo de uma
brasilidade se coloca no centro das discusses. O autor cita alguns manifestos
construdos como, por exemplo, Pau-Brasil, Antropofagia e Anta e, a partir da,
estabelecida uma relao entre uma noo de modernidade e a construo de
identidade nacional.168 Outro ponto relevante apontado por Moraes se refere s
transformaes histricas que ocorriam na dcada de 20, associando-as ao
movimento modernista. Para ele,
165
Entrevista de Ferreira Gullar Revista Poesia Sempre, 1998, p.397.
166
Ver MORAES, Eduardo Jardim de. A brasilidade modernista, 1978, pp.57-109.
167
Idem, Ibidem, p. 73.
168
Cf. Complexo de Z Carioca de Lilia Schwarcz.
82
a revoluo de 24, surgida na onda crescente do
tenentismo, por sua vez iniciada no levante do Forte em
22 e de onde sairia o que viria a ser a coluna Prestes,
alm de revelar para os modernistas uma nova
dimenso de seu movimento, abriu caminho para uma
longa srie de explicaes da reviravolta nacionalista
em 24.169
169
MORAES, Eduardo Jardim. A brasilidade modernista: sua dimenso filosfica, 1978. p.76.
170
ORTIZ, R. A moderna tradio brasileira,1994, p.35.
83
e livros em lngua inglesa que comeam a superar em
nmero as publicaes de origem francesa.171
171
Idem, Ibidem, p. 45.
172
RIDENTI, Marcelo. Brasilidade revolucionria: um sculo de cultura e poltica, 2010, p.13.
84
Gullar est, portanto, inserido nesse contexto especfico e com ele
dialogando, por meio de sua fatura potica. Como relatou em algumas entrevistas,
escrevia poemas dentro da perspectiva do Partido Comunista Brasileiro. Pois,
173
Ridenti chama ateno para as mudanas relacionadas sigla PCB. Inicialmente, PCB
correspondia ao Partido Comunista do Brasil. Em 1961, o partido passa a denominar-se Partido
Comunista Brasileiro para, em 1962, sofrer uma ciso e retomou o antigo nome e passou a ser
conhecido pela sigla do PCdoB. Ibidem, p.57.
174
Idem, Ibidem, p.12.
175
Em Brasilidade revolucionria: um sculo de cultura e poltica, Ridenti aborda a questo da
brasilidade e seu desenvolvimento no pensamento social brasileiro, nas artes e na poltica e na
vida cotidiana. Para ele, mais que uma aposta no socialismo, havia uma crena arraigada de que
a condio de ser brasileiro poderia contribuir significativamente para construir uma nova
civilizao, em que as pessoas poderiam desenvolver todas as suas potencialidades, contidas
pelos limites da organizao social, poltica, econmica e cultural existentes (2010, p.13).
Outrossim, ressalta o PCB como partido que soube usar a arte e os intelectuais numa via de mo
dupla, pois serviu-se da arte para agitao e propaganda, mas tambm tornou-se um meio para
artistas ganharem prestgio e difuso em mbito nacional, marcando posio em seu campo
(p.69). Neste sentido, destaca dentre vrios artistas, o caso de Jorge Amado, que chegou a viver
85
em geral associada conclamao ao povo brasileiro para
realizar sua revoluo, em sintonia com as lutas de povos
pobres da Amrica Latina e do Terceiro Mundo. Os artistas
engajados das classes mdias urbanas identificavam-se com
os desertados da terra, ainda no campo ou migrantes nas
cidades, como principal personificao do carter do povo
brasileiro, a quem seria preciso ensinar a lutar politicamente.
Propunha-se uma arte que colaborasse com a desalienao
das conscincias. Recusava-se a ordem social instituda por
latifundirios, imperialistas e no limite, em alguns casos
pelo capitalismo. Compartilha-se certo mal-estar pela
suposta perda da humanidade, acompanhando da nostalgia
melanclica de uma comunidade mtica j no existente, mas
esse sentimento no se dissociava da empolgao com a
busca do que estava perdido, por intermdio da revoluo
brasileira. Pode-se mesmo dizer que predominava a
empolgao com o novo, com a possibilidade de construir
naquele momento o pas do futuro, mesmo remetendo a
tradies do passado.176
fora do pas e teve vrias de suas obras traduzidas em inmeros pases pela ajuda dada pelo
partido. Ridenti ressalta ainda a ideia de uma estrutura de sentimento da brasilidade (romntica)
revolucionria. A concepo de brasilidade revolucionria como estrutura de sentimento foi
construda baseando-se nos conceitos de Raymond Williams sobre estrutura de sentimento e de
romantismo formulado por Lwy e Sayre. O autor considera que o florescimento cultural e poltico
dos anos 60 e 70 ocorridos no Brasil (analisado no livro de sua autoria Em busca do povo
brasileiro, 2000), pode ser entendido como brasilidade romntico-revolucionrio. Ver RIDENTI,
Marcelo. Brasilidade revolucionria: um sculo de cultura e poltica, 2010, pp. 84-119.
176
Idem, Ibidem, p. 91.
86
[...] quando rompi com minha prpria experincia, quando
senti que ainda era pouco, quando compreendi que aquilo
tudo me cerceava e me impedia de ir mais fundo no
conhecimento das coisas, na indagao sobre o mundo,
ento entrei em crise, porque eu havia me tornado, diante de
todo o mundo, uma espcie de lder do concretismo e, depois
da ruptura com os paulistas, do neoconcretismo, movimentos
que alcanaram grande repercusso nacional.177
177
Entrevista de Ferreira Gullar Revista Poesia Sempre, 1998, p.397.
178
TRIGO, Luciano. O poema tem que ser um relmpago. In: Revista Poesia Sempre, 2004, p.30.
179
Entrevista de Ferreira Gullar Revista Poesia Sempre, 1998, p.397.
87
interessante destacar que os trabalhos de Gullar orientados para o
teatro nascem exatamente dessa experincia com o CPC.
88
uma renncia a tudo mesmo, era a deciso de ir pra
luta. claro que o prprio golpe me ensinou depois que
isso no era to fcil. Aprendi que aquela simplificao,
de olhar e achar que dava pra mudar tudo no plano
social, daquela maneira, no era bem assim. O negcio
muito mais complicado. E a poesia tambm uma
coisa muito mais complexa. Ento, eu voltei reflexo,
fui reconstruindo a minha linguagem. Mas eu tambm
no queria mais que minha linguagem fosse aquela de
A luta corporal. Porque eu era outra pessoa, voltada
para as questes sociais, menos dentro de mim, menos
esteta.183
183
TRIGO, Luciano. O poema tem que ser um relmpago. In: Revista Poesia Sempre, 2004, p. 30.
184
No havia o propsito de fazer literatura, e sim de realizar a coisa mais simples, mais fcil, mais
acessvel a todos, de modo que cada um pudesse tomar conscincia dos problemas sociais do
pas. Entrevista de Ferreira Gullar Revista Poesia Sempre, 1998, pp.397-398
185
Para Pierre Nora (1984), os museus podem ser vinculados s musas por herana materna
(matrimnio) e so considerados nesse sentido, lugares de memria; mas por herana paterna
(patrimnio) que podem ser compreendida enquanto configuraes e dispositivos de poder. Nessa
direo, os museus podem ser percebidos enquanto lugar que convive com memria e poder.
89
histricos relevantes de uma poca, e que o fato de guard-los e,
consequentemente, manter sua memria, evidencia uma noo de poder muito
explcita nessa escolha. Com os romances de cordel, o poeta tenta dar voz
queles que, em geral, no a possuem.
Para Eleonora Camenetzki, outro poeta que soube muito bem articular
poesia e poltica foi Pablo Neruda. Sem ter sua potica modificada drasticamente,
como no caso de Gullar, Neruda soube encarnar as atribuies de poeta do povo
e militante poltico.186 Para Gullar, o poema foi utilizado como arma ideolgica
frente ao aparelho repressor do Estado.
Os romances de cordel, para Gullar, foram um reencontro com o povo
brasileiro. So poemas narrativos nos quais
a conscincia do eu lrico se pretendia annima (na
medida em que desejava identificar-se com a
generalidade dos trabalhadores espoliados), mas
acabava por se formalizar como uma conscincia
deslocada para um futuro idealizado, de onde indicava
o caminho.187
186
CAMENETZKI, Eleonora Ziller. O poeta, o poema e a sinfonia. In: Revista Poesia Sempre,
2004, p. 47.
187
VILLAA, A. A poesia de Ferreira Gullar, 1984, p. 115.
90
todo o sofrimento. Contudo, Joo encontra-se com Chico Vaqueiro, outro lavrador
que consegue no apenas dissuadi-lo, mas o convence de que o problema deles
todos o latifndio, que a soluo entrar para a Liga dos Camponeses e lutar
em conjunto, e que o campons vencer/ pela fora da unio.
O segundo poema, Quem matou Aparecida? Histria de uma favelada
que ateou fogo s vestes, narra a vida de uma moa, moradora de uma favela
situada nas proximidades do bairro do Leblon, no Rio de Janeiro. sua volta a
pobreza,/ a fome, a doena, a morte;/ e ali adiante a riqueza/ dos que tinham
sorte. Quando jovem, a personagem dizia me que queria ter um filho, pois um
filho era mais barato que comprar uma boneca e, ento, uma vizinha a leva para
Ipanema para trabalhar como bab, a boneca de verdade/ que ela enfim
ganharia. Nessa casa, o patro passou a ter relaes sexuais com ela, at um dia
em que a patroa os flagra em um momento de intimidade. No dia seguinte, a
personagem trada simula que Aparecida havia roubado suas joias e chama a
polcia, que acaba por prend-la. Na priso, os guardas descobrem que ela est
grvida e a soltam, pois j haviam batido muito nela e ficaram com receio das
consequncias. Aparecida retorna favela, cuida da me que estava doente e
consegue outro emprego, agora como domstica. Porm, ao nascer o filho,
demitida. Passando fome com sua famlia, Aparecida no v outra sada, seno
prostituir-se. Aos 15 anos, a personagem conhece um companheiro e abandona a
prostituio. Os dois vivem uma vida difcil; ele era operrio de uma usina e, certa
feita, aps participar de uma greve, desaparece e nunca mais volta para casa.
Diante desta situao, e desesperada ao ver o filho morrer de fome, Aparecida
ateia fogo em seu prprio corpo, reao extrema a uma aflio desmedida.
O terceiro poema, Peleja de Z Molesta com Tio Sam, aborda a
histria de um cearense cantador, que resolve desafiar o Tio Sam e ambos
comeam, em uma conversa assemelhada a um repente, uma disputa, na qual
temas relevantes so abordados, como, por exemplo, a relao entre Brasil e
Estados Unidos, racismo, Cuba entre outros. O quarto poema, Histria de um
valente, que foi escrita por Gullar a pedido do Partido Comunista Brasileiro, narra
a priso de Gregrio Bezerra, um dos lderes comunistas que havia sido preso em
91
Recife em 1964, durante o golpe militar. Inmeras cenas de tortura so narradas,
dentre as quais possvel destacar: O sangue agora o cobria/da cabea aos
ps./ No cho derramaram cido/ e fizeram ele pisar. Quanto autoria do poema,
Gullar esclarece que
por medida de precauo, j que a represso se
intensificava a cada dia, assinei o poema com o
pseudnimo de Jos Salgueiro, o que levou muita gente
a acreditar que se tratava de um poeta nordestino,
daqueles tpicos de feira de cordel, a ser o autor do
texto.188
Nos romances de cordel, Gullar utiliza uma forma potica simples para
veicular, por meio dela, um contedo revolucionrio, mas precisamente,
construdo a partir de uma racionalidade marxista. O objetivo era permitir que o
188
Entrevista de Ferreira Gullar Revista Poesia Sempre, 1998, p. 28.
189
VILLAA, A. A poesia de Ferreira Gullar, 1984, p. 103.
92
povo compreendesse de forma didtica os impasses, ou como no dizer, a
explorao do trabalho dentro de um modelo capitalista. Da a ideia de transform-
lo tambm em peas teatrais de cunho popular, para atingir as classes sociais
menos favorecidas, utilizando personagens comuns a estas mesmas pessoas, tais
como o lavrador e os proprietrios de terra, tipos capazes de evidenciar seus
interesses e contradies. Isso, portanto, pode ser entendido como uma estratgia
poltica do CPC e de seus integrantes. Era, nesse sentido, uma arte dirigida ao
povo.
Se no primeiro caso o poema resultava como um
produto final da relao problemtica entre o eu e a
realidade, coroando de alguma forma o desempenho
artstico dentro de uma srie literria, agora o poema
o instrumento da interferncia do eu na realidade social
vista como processo conflituoso dos interesses de
classes.190
93
Diante do exposto, cabe salientar que os romances de cordel foram
instrumentos utilizados contra o poder dominante da poca e colocaram Gullar na
busca por uma literatura nacional-popular que, vale lembrar, vem desde o
modernismo. Nestes poemas, a preocupao central com a histria do povo
brasileiro e seu embate ideolgico, que podemos perceber por meio dos temas e
das terminologias aqui presentes. Trata-se, em outros termos, de uma busca pela
identidade nacional.
A sua poesia deste perodo refletia a necessidade moral de lutar contra
a injustia social e a opresso. Ele recomeou sua experincia potica com
poemas de cordel e, mais tarde, reelaborou sua linguagem at alcanar a
complexidade dos poemas que constituem Dentro da noite veloz, editado em
1975, mas que traz em seu contedo uma transio entre uma poesia social e um
amadurecimento de sua potica.
A poesia social e a militncia poltica desse perodo fazem com que a
polcia comece a persegui-lo. Com vistas a evitar uma nova priso, em 1970,
Gullar entra para a clandestinidade e, em 1971 mesmo ano que seu pai morre
na cidade de So Lus -, parte para o exlio, fixando moradia primeiramente em
Moscou e, depois, em Santiago, Lima e Buenos Aires. Enquanto morou fora do
pas, colaborou com jornais como O Pasquim, Opinio, dentre outros, sob o
pseudnimo de Frederico Marques. Diante da situao do pas, a sua produo
potica no se limitava apenas aos cordis e a aos poemas vinculados ao CPC.
Um perodo no qual sua poesia era basicamente social e engajada pautada em
imagens idealizadas da classe operria e da revoluo, ou mesmo como Antonio
Candido denomina como poesia voltada para o social. Com o Golpe de 64, e
diante da derrota, o poeta repensa sua linguagem potica, pois percebe que a
simplificao esttica em prol da luta poltica no era uma sada interessante.
Entre os anos de 1964 e 1969, quando participava do Grupo Opinio, as
indagaes sobre o fazer artstico vo se incorporando s preocupaes polticas
e s questes do social e do nacional. Essa transio presente na sua potica
pode ser vista no livro Dentro da noite veloz que condensa tanto estas indagaes
quanto as implicaes da experincia do exlio. sobre os poemas que foram
94
construdos durante o exlio e, posteriormente, sobre o exlio que os captulos
seguintes vo se ater.
95
2. MEMRIAS DO EXLIO
[...] Mas no importa. A vida no o que deveria ter sido e sim o que foi. Cada um
de ns a sua prpria histria real e imaginria.
Ferreira Gullar
97
O exlio surge de forma recursiva na histria, entretanto, necessrio
perceber suas particularidades e o contexto no qual ele emerge, mas h neste
evento um elemento comum que o entrecruzamento da intolerncia com a
excluso desde o incio da experincia.192
As leis de deportao surgem pela primeira vez, segundo Maria Jos de
Queiroz, no antigo oriente. Os primeiros a conhecerem tais leis foram os
habitantes das cidades de Israel e, posteriormente, todo o povo hebreu. Porm, as
deportaes de mais vinco na histria de Israel viriam a ocorrer sob
Nabucodonosor, por ocasio das campanhas contra Jud e Jerusalm, em 597,
587 e 582 a.C..193 E, justamente, tais deportaes que passam a ser chamadas
de exlio. Ainda de acordo com a autora, do exlio resultam a necessidade e o
direito de asilo. A divindade do Asylon assegurava o dom da imunidade a toda
pessoa perseguida injustamente, sobretudo no estrangeiro, a fim de resguardar-se
de vingana.194
pertinente destacar a ideia contida na expresso resguardar-se da
vingana de seus opressores, pois se nos ativermos ao contexto atual, podemos
enfatizar que as pessoas que vivenciaram a experincia do exlio e que, portanto,
sofreram as punies a ele relacionadas, bem como tantas outras na histria das
ditaduras latino-americanas que foram presas, torturadas e perseguidas no tm o
direito de buscar junto s instituies judiciais as reparaes aos danos sofridos
durante esta fatdica experincia. A elas parece que restou apenas o silncio e o
medo da vingana dos antigos e, ainda presentes, opressores. E hoje, quando se
fala em reparao, ou em trazer tona a verdade sobre a ditadura brasileira, por
exemplo, a ideia de vingana adquire fora junto queles que perseguiram,
assassinaram e torturam inmeras pessoas. Eles se perguntam: se durante o
regime militar as pessoas foram obrigadas ao desterro com medo da vingana por
parte de um Estado autoritrio, por que agora elas no podem se vingar tambm?
192
PAIVA, Tatiana M. C. Memrias de uma herana: a experincia de filhos exilados brasileiros da
ditadura militar, In: SANTOS, Ceclia M; TELES, Edson: TELES, Janana de A. Desarquivando a
ditadura: memria e justia no Brasil, 2009, p.135.
193
guisa de ilustrao, vale lembrar que a palavra exlio advm do latim exilium, que significa
desterro, degredo, e que a palavra exilado incorpora-se ao vocabulrio portugus apenas em
1939. Cf. QUEIROZ, Maria Jos de. Os males da ausncia ou a literatura do exilo,1998, p. 21.
194
Idem, Ibidem, p. 21.
98
A questo em curso que no se trata de dio, mas de se fazer justia, de fazer
emergir uma verdade que ficou silenciada por muitos anos no nosso pas e que
necessita ser revisitada para sanar antigas feridas e impedir que novas sejam
abertas.
Para Michel Foucault195, a memria tambm pode ser entendida como
conhecimento e, por s-lo, tambm est intimamente relacionada a mecanismos
de dominao e poder. Para ele, os sujeitos rememoram o passado por meio de
expresses corporais, hbitos e costumes e esta rememorao nada tem de
neutra, pelo contrrio, ela equaciona dominao e poder. A memria, para este
autor, materializa-se em prticas e instituies sociais. Para Foucault, o poder est
em toda parte e, igualmente, coopta, domina de maneira infinita e mais, o poder
tambm regulador do conhecimento e do saber. Da a urgncia de que, no
Brasil, a memria sobre o que foi o regime militar seja construda. preciso falar,
rememorar, salientar as atrocidades cometidas em prol, pelo menos como
argumentavam as autoridades daquele regime, de um desenvolvimento
econmico e social. No se trata simplesmente de uma vingana, mas da
necessidade de justia s famlias das vtimas e a estas pelas brutalidades
experimentadas durante este perodo da histria do Brasil. E por isso as memrias
deste passado fornecem, tambm, uma viso do presente, para que os traumas
do passado no voltem a ser vividos.
A anlise que se segue parte exatamente das memrias construdas
nas escrituras de Ferreira Gullar sobre sua experincia de desterro e as
implicaes desta em sua vida e obra. No primeiro captulo, acompanhamos os
itinerrios poticos e polticos do poeta e percebemos como ele utilizou a poesia
como instrumento poltico. Devido a sua participao poltica e diante dos abusos
perpetrados pelo Estado autoritrio196, Ferreira Gullar se v forado a deixar o
195
Ver de autoria de Michel Foucault: A ordem do discurso; A arqueologia do poder; As palavras e
as coisas; Vigiar e punir; Histria da sexualidade 1: a vontade do saber, 1980, pp.139-167.
196
O medo de Gullar era de ser preso, torturado ou mesmo morto pelo militares. Sobre as torturas,
encontramos inmeros materiais que afirmam a existncia dela como instrumento racional de
poder utilizado pelos militares no Brasil ver, por exemplo, GASPARI, Elio. A ditadura
envergonhada: as iluses armadas, 2002; FICO, Carlos. Alm do golpe: verses e controvrsias
sobre 1964 e a ditadura militar, 2004; VENTURA, Z. 1968: o ano que no acabou,1988 e BETTO,
Frei. Batismo de sangue, 1982.
99
Brasil, nica sada para evitar sua priso. Tal como ser possvel perceber,
durante o perodo do exlio sua linguagem potica revisitada, e vai sendo
elaborada a partir da experincia do choque e sua poesia passa a ser, nesse
intercurso, aquilo que podemos chamar de poemas de resistncia. Entretanto,
cabe frisar que o poeta abandona a esttica simples dos poemas antes vinculados
ao CPC e retoma o modernismo mais lrico, tornando-se evidente a confluncia e
influncia da poesia de Drummond, Bandeira e Joo Cabral. Sua escrita est
indissocivel dos aspectos histricos do sujeito. O fazer potico durante o exlio
timbrado pela necessidade de superar a ideia constante da morte.
Ginzburg chama ateno para os efeitos traumticos da ditadura militar,
considerando tanto o sentido coletivo derivado de uma experincia histrica
ainda no superada quanto o individual, expressado nos discursos de pessoas
torturadas.197 Para o autor, a sociedade contempornea tende a banalizar, nos
meios de comunicao de massa, as catstrofes e runas produzidas por sua fora
de barbrie.198 E aqui, barbrie pode ser entendida como ao de um governo
repressivo e autoritrio.
O Brasil o nico pas da Amrica Latina que nunca julgou um nico
militar pelos crimes de tortura realizados durante a ditadura militar. Alguns
processos ainda correm na justia e algumas aes j so efetivadas, mas ainda
de forma inibida. Os responsveis pelos atos de tortura, abusos sexuais,
desaparecimento foroso e homicdios praticados durante o perodo de 1964 e
1985 ainda vivem no Brasil em plena liberdade, alguns ainda esto na ativa e
outros so aposentados e recebem penso do Governo brasileiro. Somente em
agosto de 2010 que os trs policiais do DOI-CODI, responsveis pela montagem
da verso de suicdio de Vladimir Herzog, entre outros crimes, foram
condenados199. Nesse contexto, visvel que as marcas desse processo no Brasil
197
Ver GINZBURG, Jaime (org.) Dossi Literatura e autoritarismo, 2001.
198
GINZBURG, Jaime (org.). Dossi Literatura, violncia e direitos humanos, 1998, p.07.
199
O Ministrio Pblico Federal (MPF) ingressou nesta segunda-feira (30/8/2010) com ao civil
pblica pedindo o afastamento imediato e a perda dos cargos e aposentadorias de trs delegados
da polcia civil paulista que teriam participado diretamente de atos de tortura, abuso sexual,
desaparecimento forados e homicdios, em servio e nas dependncias de rgos da Unio,
durante o regime militar (1964 1985). Segundo informaes do MPF, a ao pede a
100
se colocam como invisvel aos olhos da sociedade. Esse emudecimento aparece
como uma estratgia de poder, para que no haja o julgamento dos crimes desse
perodo.
Muitas pessoas, para fugir das perseguies, torturas e prises, viram-
se obrigadas a deixar o pas. Uma delas foi Ferreira Gullar. E a vivncia do exlio
denota a imposio do abandono tomado tanto do ponto de vista fsico quanto
psicolgico, marcado pela violncia e sofrimentos extremados. A poesia escrita
durante e sobre este perodo ser tomada aqui como instrumento de testemunho e
transformao do prprio sujeito implicado.
Segundo Edward Said, o exlio
Said diz que a moderna cultura ocidental fruto dos exilados, dos
foragidos e dos emigrantes. Para ele, o perodo moderno espiritualmente
destitudo e alienado, a era da ansiedade e da ausncia de vnculos [...] a era do
refugiado, da pessoa deslocada, da imigrao em massa.201 Tudo isso como
consequncia das guerras, do imperialismo e dos anseios de governos totalitrios.
responsabilizao pessoal de Aparecido Laertes Calandra, David dos Santos Araujo e Dirceu
Gravina, os dois primeiros aposentados e o terceiro ainda na ativa, alm da condenao a
reparao por danos morais coletivos e restituio das indenizaes pagas pela Unio. Capito
Ubirajara, capito Lisboa e JC, codinomes utilizados, respectivamente, pelos trs policiais
enquanto atuaram no Doi/Codi, foram reconhecidos por vrias vtimas ou familiares em imagens de
reportagens veiculadas em jornais, revistas e na televiso. Ainda de acordo com a procuradoria,
dentre vrios crimes, os trs teriam participado da montagem da verso fantasiosa de que o
jornalista Vladimir Herzog teria cometido suicdio na cadeia. LEIS e negcios. Disponvel em: <
http://colunistas.ig.com.br/leisenegocios>. Acesso em: 30. ago. 2010.
200
SAID, Edward. Reflexes sobre o exlio. In: ______. Reflexes sobre o exlio e outros ensaios,
2003, p. 46.
201
Idem, Ibidem, pp. 46-47.
101
O sentimento de solido corolrio da contingncia existencial, visto
que o indivduo inserido num mundo estilhaado como um espelho de si mesmo.
Nessa direo, os poemas escritos por Gullar no contexto de exlio oferecem um
testemunho expressivo acerca de uma poca pouco discutida no Brasil e
merecedora de mais ateno. interessante salientar tambm como o
enfrentamento do isolamento permitiu que o poeta encontrasse no rigor da palavra
sua singularidade, seu estilo, sua linguagem absoluta.
Gullar comenta em vrias entrevistas que sua poesia surge do espanto,
segundo ele porque preciso do espanto. No determino o instante de escrever:
Hoje vou sentar e redigir um poema. A poesia est alm de minha vontade. Por
isso, quando me indagam se sou Ferreira Gullar, respondo: s vezes.202 O
espanto pode surgir das coisas banais da vida, porque nelas se oculta o prprio
mistrio da vida, mas aqui se tomou a ideia de espanto enquanto choque e,
justamente, o choque e os traumas proporcionados pela experincia do exlio o
levou a outro tipo de experincia potica, a construo do Poema Sujo.
Segundo Marcelo e Maren Viar, o perodo do exlio de ptrias
geogrficas bem como institucionais pode ser compreendido no registro de
uma experincia traumtica, pois,
202
ANTENORE, A. A poesia surge do espanto. Revista Bravo, mar. 2009.
203
VINR, Marcelo; VINR, Maren. Exlio e tortura, 1992, p.111.
102
identificatrios - ao tentar ser suplantada possibilita reflexo e um movimento de
busca incessante, mais precisamente um retorno do sujeito a sua prpria origem.
Ao ler Poema Sujo, fica muito clara a busca do poeta pela sua cidade natal, pela
sua infncia esquecida como uma necessidade de estabelecimento de vnculos
identificatrios.
O psicanalista uruguaio Marcelo Viar tambm ficou exilado na Frana
por 15 anos e, em conjunto com sua esposa Maren, relatou suas experincias no
campo da psicanlise com ex-torturados e ampliou as possibilidades da atuao
da psicanlise no contexto scio-poltico da Amrica Latina. No livro Exlio e
tortura204, eles ressaltam a dificuldade em situar, a partir de um referencial terico,
o horror vivido pelos indivduos que sofreram algum tipo de tortura. Falar da
tortura e de suas consequncias, dar um sentido ao horror, [...] isto nos faz tocar
os limites do impensvel.205
Na impossibilidade de atribuir sentido prpria vida, no momento em
que a morte um risco eminente, Ferreira Gullar se debruou na tarefa da escrita
como uma garantia de uma relao cujo encontro desempenhado pela prpria
linguagem que, por meio do poema, ele pode ancorar as referncias da sua
experincia humana, fazendo-o viver e transcender.
As ditaduras que ocorreram na Amrica Latina trouxeram inmeras
implicaes ao processo de criao artstico para os artistas envolvidos neste
processo. No caso em questo, a palavra assumir um lugar singular, um lugar de
luta, de resistncia, de testemunho e de encontro com sua prpria identidade, com
sua memria, com seu tempo.
Paul Celan, em Fuga da Morte, um dos poemas mais famosos da
literatura alem moderna, escrito no perodo ps-guerra, pe em tela o horror
vivido nos campos de concentrao. Celan no apenas viveu nos campos de
concentrao juntamente com seus pais, como se tornou rfo em decorrncia do
holocausto. O poeta conseguiu fugir e viveu primeiramente na Unio Sovitica,
depois, ao fim da guerra, retornou para a Romnia e, posteriormente, migrou rumo
204
Idem, Ibidem.
205
Idem, Ibidem, p.133.
103
Frana, lugar em que escreveu seus poemas e onde o fantasma dessa
experincia nefasta o impeliu ao suicdio.206 Considerando o que disse Adorno
sobre a poesia aps Auschwitz207, Celan a prova de que a poesia pode
testemunhar uma determinada realidade histrica, como aquela presente no
poema Fuga da morte.208
206
No filme Batismo de sangue, que conta a histria de Frei Tito no contexto da ditadura militar
brasileira, podemos observar que ao sair da priso no Brasil e se exilar na Frana e convivendo
com o fantasma da tortura e de seus torturadores, ele no agentou a vida na qual realidade e a
fantasia gerada pelas inmeras horas de tortura o impele ao ato do suicdio como resposta dor,
necessidade de romper definitivamente com o trauma que est visivelmente o torturando. Vale
dizer que o cinema brasileiro vem discutindo tais questes de forma bastante interessante nos
ltimos dez anos e que, muitas vezes, as implicaes da ditadura militar brasileira tm sido pouco
discutidas nos meios acadmicos e com poucos livros relevantes publicados, gerando assim um
dficit que se torna imperioso sanar. Alguns filmes, apenas para exemplificar, e que trazem os
dilemas da nossa ditadura vivida: Matou a famlia e foi ao cinema (1969); Vida de artista (1972);
Eles no usam Black-tie (1981); O pas dos tenentes (1987); Que bom te ver viva (1989); Para
Frente, Brasil (1982); Zuzu Angel (2006); Feliz ano velho, Hercules 56 (2006); Alma corsria
(1993);Cabra marcado para morrer (1985); Ded mamata (1988); Lamarca (1994); O que isso
companheiro? (1997);Dois crregos (1999); Araguaya: a conspirao do silncio (2004);Cabra-
cega (2004); Batismo de sangue (2006); O ano em que meus pais saram de frias (2006);Sonhos
e desejos (2006); Quase dois irmos (2004); Nunca fomos to felizes (1984); Tempo de resistncia
(2003).
207
Adorno comenta que aps Auschwitz no haveria mais lugar para a poesia no mundo. Pois, [a]
crtica cultural encontra-se diante do ltimo estgio da dialtica entre cultura e barbrie: escrever
um poema aps Auschwitz um ato brbaro, e isso corri at mesmo o conhecimento de por que
hoje se tornou impossvel escrever poemas. ADORNO, T. Crtica cultural e sociedade, 1998, p. 26.
interessante destacar que Adorno tece comentrios elogiosos aos poemas de Paul Celan,
considerando a importncia destes como memria dos horrores cometidos pelos nazistas durante
a segunda grande guerra.
208
Leite negro da madrugada ns o bebemos de noite/ ns o bebemos ao meio-dia e de manh
ns o bebemos de noite ns o bebemos bebemos/ cavamos um tmulo nos ares l no se jaz
apertado/ Um homem mora na casa bole com cobras escreve /escreve para a Alemanha quando
escurece teu cabelo de ouro Margarete /escreve e se planta diante da casa e as estrelas fascam
ele assobia para os seus Mastins/ assobia para os seus judeus manda cavar um tmulo na terra/
ordena-nos agora toquem para danar/ Leite negro da madrugada ns te bebemos de noite /ns te
bebemos de manh e ao meio-dia ns te bebemos de noite ns bebemos bebemos /Um homem
mora na casa e bole com cobras escreve/ escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo
de ouro Margarete/ Teu cabelo de cinzas Sulamita cavamos um tmulo nos ares l no se jaz
apertado /Ele brada cravem mais fundo na terra vocs a cantem e toquem /agarra a arma na cinta
brande-a seus olhos so azuis /cravem mais fundo as ps vocs a continuem tocando para danar
/Leite negro da madrugada ns te bebemos de noite /ns te bebemos ao meio-dia e de manh ns
te bebemos de noite ns bebemos bebemos/ um homem mora na casa teu cabelo de ouro
Margarete/ teu cabelo de cinzas Sulamita ele bole com cobras /Ele brada toquem a morte mais
doce a morte um dos mestres da Alemanha/ ele brada toquem mais fundo os violinos vocs a
sobem como fumaa no ar/ a vocs tm um tmulo nas nuvens l no se jaz apertado/ Leite negro
da madrugada ns te bebemos de noite/ ns te bebemos ao meio-dia a morte um dos mestres da
Alemanha/ ns te bebemos de noite e de manh ns bebemos bebemos/ a morte um dos
mestres da Alemanha seu olho azul/ acerta-te com uma bala de chumbo acerta-te em cheio/ um
homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete/ ele atia seus mastins sobre ns e sonha a
morte um dos mestres da Alemanha /eu cabelo de ouro Margarete/ teu cabelo de cinzas
Sulamita. CELAN, Paul. Traduo Modesto Carone. In: GUINSBURG J.; TAVARES, Zulmira R.
104
No exlio, o indivduo parece conviver no apenas com uma fronteira
territorial, mas tambm com uma fronteira da lngua. H, portanto, para ele, uma
necessidade de ultrapass-las, mesmo que isso seja feito por meio de sua
palavra, de sua lngua, porque h a no s uma saudade da ptria, da lngua
materna, mas esta pode ser entendida tambm como um mecanismo de poder, de
resistncia. E, assim, como vemos na poesia de Paul Celan uma memria
histrica, tambm podemos v-la no Poema Sujo,assim ele pode ser entendido
enquanto um lugar de busca de realidade e de orientao e sentidos possveis
que foram perdidos naquele momento em que pulsava a ideia da priso certa e,
por conseguinte, da morte. Pois, no limiar do silncio estabelecido pelo exlio,
que o emudecimento rompido por meio da escrita. Para Franco Rella, o silncio
deve mostrar, com a plenitude do smbolo, o que a linguagem da abstrao e da
cincia no podem dizer, na medida em que se estrutura a partir de seu
recalque.209 Portanto, o silncio, a ntima tendncia ao emudecimento, se refere a
plenitude da experincia concreta do sujeito.
Em meio a tantas perdas - como so relatadas em o Rabo de foguete
uma coisa permaneceu salva, a sua capacidade de escrever poemas, a sua lngua
que ressurge com uma fora esttica de significativa expresso. Gullar encontrara
em Poema sujo, por exemplo, uma forma de construir um horizonte de sentido e
de transmisso da pluralidade de histrias que parece ser estruturalmente
compatvel com a pluralidade das linguagens do poeta. O poema como
manifestao da linguagem um lugar de testemunho, no qual o poeta ruma ao
encontro de sua prpria existncia, despedaado com a realidade e, talvez
possamos dizer, em busca mesmo de uma realidade.
Cabe observar que a poesia enquanto memria reflete uma
determinada poca, pois aquela escrita no calor da possibilidade da morte ganha
Quatro mil anos de poesia, 1969. Neste poema possvel ver o seu teor testemunhal. Diante da
dificuldade de narrar experincias traumticas, a arte se apresenta como um lugar relevante para
pensarmos o teor testemunhal discutido por Mrcio Seligmann-Silva no livro organizado por ele,
Histria, memria, literatura: o testemunho na era das catstrofes, 2003. No campo das artes
plsticas, podemos citar Anselm Kiefer que a partir de poemas de Paul Celan - e no s deles -
pintou os horrores do nazismo. Ver RAMOS, Lilian Santiago. Pequena histria do Mal: Anselm
Kiefer e Walter Benjamin, 2009, (4 captulo). E ainda, LAUTERWEIN, Andrea. Anselm Kiefer et la
poesie de Paul Celan, 2006.
209
Ver RELLA, Franco.Il silenzio e le parole, 1981, p. 172
105
uma conotao diferente daquela escrita passado esse perodo. talo Calvino, em
Seis propostas para o prximo milnio, j observava que dificilmente um escritor
poder escrever sobre a condio de violncia e de opresso, sem modificar a
observao, a maneira de ver o mundo, os meios de conhecimento e as formas de
controles. Calvino, ao discutir a relao do poeta com o mundo, faz referncia ao
mito de Medusa e Perseu. Para ele, quando o poeta rememoriza sua prpria
biografia, toda a violncia, a inrcia, a opacidade do mundo parecem traduzidos
no olhar inexorvel da Medusa, deixando a todos petrificados.210 Neste mito,
Perseu s consegue escapar de ser petrificado pelo olhar de Medusa porque ele
dirige seu olhar para aquilo que s pode se revelar por meio de uma viso indireta,
por uma imagem capturada pelo espelho. evocando tal mito que Calvino nos
dir que a literatura que feita a partir de imagens e representaes e que s
possvel falarmos de nossa poca na medida em que se captura no espelho da
representao literria a imagem de momentos sofridos e que se poderia
referenciar como aquele vivido por toda uma gerao romntico-revolucionria,
como diria Marcelo Ridenti, percebendo o peso das pedras incrustadas pelas
ditaduras militares latino-americanas e, em especial, a brasileira. Parece-nos que
Gullar, ao escrever o Poema sujo, foge do confronto direto, de olhar diretamente
para a face da Medusa e decide, como Perseu, usar um espelho, neste caso as
memrias de sua infncia.
O Poema sujo que pode ser chamado de poema de memrias, pois
nele Gullar retrata no a So Lus de 1975, ano em que escreve, mas sim aquela
velha cidade em que viveu sua infncia e adolescncia. Este fato, somado aos
dados biogrficos do autor, tais como aqueles abordados no primeiro captulo,
permitem a interpretao de que o Poema Sujo seria uma viagem ao passado em
busca de sua prpria identidade. A palavra casa nos remete ideia de
pertencimento, de um lugar que seu, de conhecido, familiar. Por meio da poesia,
o poeta evoca a ideia de que somos mortais. Nas palavras de Gullar: Acho que o
poeta constri um corpo fora dele, um corpo para no morrer.211
210
CALVINO, I. Seis propostas para o prximo milnio, 1990, p.16.
211
Entrevista de Ferreira Gullar Revista Poesia Sempre, 1998, p. 383.
106
O abandono dos poemas da fase do CPC, a busca por uma nova
potica que se inicia no final dos anos 60 bem como as implicaes referentes
sua experincia do exlio, permite ao Gullar a construo de uma nova potica.
Nos poemas escritos entre 1964 a 1969 e naqueles realizados no exlio, nota-se
uma volta ao modernismo e um tom mais lrico, superando suas angustias
presentes em A luta corporal. As memrias da infncia se fundem em torno de
identidade pessoal e da realidade brasileira e so construdas a partir da
experincia do choque.
Ao analisarmos os poemas de Gullar escritos durante o exlio e sobre
o exlio como sua memria autobiogrfica, partimos da ideia de que consta em tais
escrituras aquilo que Seligmann-Silva chama de teor testemunhal.
Mrcio Seligmann-Silva, em suas publicaes212 sobre a literatura do
testemunho, delineia a luta contra o esquecimento das violncias sofridas a partir
de relatos de sobreviventes dos campos de concentrao nazista. Salienta a
dificuldade da linguagem como instrumento incapaz de dar conta do real.
Desenvolve ainda um panorama sobre a questo da literatura do testemunho,
abordando os estudos realizados na Europa e aqueles desempenhados na
Amrica Latina. Esse tema merece ateno, pois o desenvolvimento de trabalhos
feitos na Europa para averiguar as consequncias nefastas do nazismo de
interesse de historiadores, filsofos, socilogos, artistas e de leitores de um modo
geral e, creio que em se tratando de estudos feitos na Amrica Latina, em especial
no Brasil, so de extrema importncia tendo em vista a necessidade marcante de
pesquisas que investiguem a questo das ditaduras militares nos pases latino-
americanos. As contingncias da vida sob o impacto das barbries cometidas,
muitas vezes, sob o discurso do desenvolvimento e do progresso, repercutem no
prprio fazer historiogrfico. Na medida em que
212
SELIGMANN-SILVA, Mrcio. Literatura de testemunho: os limites entre a construo e a
fico. In: Letras, Santa Maria, UFSM, n 16, janeiro / junho 1998, pp. 9-37;_____. A literatura do
trauma. In: Revista Cult, n 23, junho 1999, pp. 40-47; _____. A histria como trauma. In:
NESTROVSKI, Arthur; ______ (orgs.). Catstrofe e Representao, 2000, pp. 73-98; ______. O
local da diferena: ensaios sobre memria, arte, literatura e traduo, 2005b.
107
o historiador trabalha no sentido da libertao do
domnio de uma imagem do passado que foge ao nosso
controle; esse passado deve ser incorporado dentro de
uma memria voltada agora tambm para o futuro
dentro de uma memria que possibilite a narrao, diria
Benjamin.213
213
SELIGMANN-SILVA, Mrcio. A histria como trauma. In: NESTROVSKI, Arthur; ______ (orgs.).
Catstrofe e Representao, 2000, p.89.
214
Idem, Ibidem, p.75.
215
Idem, Ibidem, p.90.
108
sequestrado, torturado e assassinado e que nunca pde sepultar seu corpo, pois
este havia sido jogado nas profundezas da baia de Guanabara no Rio de Janeiro:
S queria lembrar o tormento/ que fez (s)eu filho suspirar/ [...] / S queria
agasalhar (s)eu anjo / E deixar seu corpo descansar./[...]/ Quero lanar um grito
desumano/Que uma maneira de ser escutado/Esse silncio todo me
atordoa/Atordoado eu permaneo atento.216
A dor e os traumas daqueles que, de alguma forma, viveram a
experincia do exlio no se resume a sua prpria vida. As implicaes desse
evento transbordam para a famlia como um todo, para o campo profissional e
social do indivduo.
Denise Rollemberg, no livro Exlio: entre razes e radares217, faz uma
abordagem sobre o exlio a partir de perspectivas diversas: histrica, poltica,
pessoal, emocional. Tomando os exilados entre os anos de 1960 e 1970, a autora
os classifica em dois grupos: gerao de 1964 aqueles ligados ao movimento
reformista durante o governo de Joo Gullar, tanto aqueles vinculados aos
partidos legalizados quanto aqueles ligados ao Partido Comunista Brasileiro que
era ilegal naquele perodo - e a gerao 1968 eram em sua maioria estudantes
ainda no processo de formao profissional, vinculados aos movimentos
estudantis entre 1965 e 1968.
Para ela, tanto a clandestinidade quanto o exlio ainda so temas pouco
pesquisados no Brasil. O clandestino seria um exilado dentro do prprio pas,
entretanto, as diferenas entre tais experincias so bastante significativas. Esses
eventos no necessariamente se deram de forma separada, muitos passaram
primeiro pelo momento da clandestinidade e, depois, viram-se obrigados a rumar
para o exlio, como foi o caso de Gullar. Ele passou tanto pela clandestinidade
quanto pelo exlio, entretanto, considerando a classificao da historiadora Denise
Rollemberg, pode-se dizer que ele um caso atpico. A autora salienta que o
exlio para a primeira gerao possua uma conotao de um recurso para
216
Cano Anglica de Chico Buarque.
217
Ver ROLLEMBERG, Denise. Exlio. Entre razes e radares, 1999 e ROLLEMBERG, Denise.
Nmades, sedentrios e metamorfoses: trajetrias de vidas no exlio. In: REIS, Daniel Aaro;
RIDENTI, Marcelo; MOTA, Rodrigo Patto S (Orgs.). O golpe e a ditadura militar: quarenta anos
depois (1964-2004), 2004.
109
escapar da priso, mas tambm como um perodo de reorganizao e preparao
para a reintegrao luta, enquanto que para a segunda gerao composta por
jovens estudantes, o retorno para o Brasil tornava-se cada vez mais distante. No
caso de Gullar, ele saiu para o exlio junto com a segunda gerao, mas
pertenceria tambm primeira.
Durante sua permanncia no exlio, o poeta escrevia e enviava seus
textos para a impressa brasileira, sob o pseudnimo de Frederico Marques, para
no levantar nenhuma suspeita sobre seu paradeiro. Vale lembrar que, naquele
momento em que se v obrigado a fugir do pas, ele j havia rompido com o
anonimato, j escrevia tentando dar voz a uma maioria sem histria dentro do pas
e, nesse contexto, j era situado como foragido e ainda sobrevivente.
Seu retorno ao Brasil ocorreu no dia 10 de maro de 1977, perodo
anterior lei da anistia que a lei N 6.683, de 28 de agosto de 1979. Segundo
Edson Teles,
os militares cederam s presses da opinio pblica e o
Legislativo aceitou a anistia proposta pelo governo,
ainda que parte dos presos e perseguidos polticos no
tenha sido beneficiada. [...] A Lei de Anistia foi o marco
da transio entre a ditadura e o Estado de Direito,
visando superar e mais do que isso, salientar, o que
limita ou elimina a superao o drama vivido diante da
violncia estatal.218
218
TELES, Edson. Polticas do silncio e interditos da memria na transio do consenso. In:
SANTOS, C. M.; ______.; TELES, J. de Almeida (orgs.). Desarquivando a ditadura: memria e
justia no Brasil,V.II, 2009, p.578.
110
liberao dos prisioneiros polticos decretar, de
antemo, a sua prpria impunidade.219
219
SELIGMANN-SILVA, Mrcio. Anistia e (in) justia no Brasil: o dever de justia e a impunidade.
In: SANTOS, C. M.; TELES, E.; TELES, J. de Almeida (orgs.). Desarquivando a ditadura: memria
e justia no Brasil, V.II, 2009, p. 541.
220
MEZAROBBA, Glenda. Anistia de 1979: o que restou da lei forjada pelo arbtrio? In: SANTOS,
C. M.; TELES, E.; TELES, J. de Almeida (orgs.). Desarquivando a ditadura: memria e justia no
Brasil, V.II, 2009, p.375.
221
VILLAA, A. A poesia de Ferreira Gullar, 1984, p. 105.
111
Neste livro pode-se acompanhar a transio que ocorre na linguagem
potica de Gullar e que se cristalizar no momento em que escreve o Poema sujo.
No poema A bomba suja, por exemplo, o poeta utiliza uma esttica
simplificada para falar das contradies do pas.
No dicionrio a palavra
mera idia abstrata
Mais que palavra, diarria
uma arma que fere e mata
No Piau
de cada 100 crianas que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade223
O funcionrio pblico
222
GULLAR, F. Dentro da noite veloz, 1998, p.4.
223
Idem, Ibidem, p.07.
112
no cabe no poema
com seu salrio de fome
sua vida fechada
em arquivos.
No cabe no poema
O operrio
que esmerila seu dia de ao
e carvo
nas oficinas escuras.224
224
Idem, Ibidem, p.10
225
VILLAA, A. A poesia de Ferreira Gullar, 1984, pp. 115-116. Grifo do autor.
113
a vida
que cheia de crianas, de flores
e mulheres, a vida,
esse direito de todos
que nenhum ato
institucional ou constitucional
pode cassar ou legar.
Mas quantos amigos presos!
quantos em crceres escuros
onde a tarde fede a urina e terror.
H muitas famlias sem rumo essa tarde
nos subrbios de ferro e gs
onde brinca irremida a infncia da classe operria.
Estou aqui. O espelho
no guardar a marca desse rosto,
se simplesmente saio do lugar
ou se morro
se me matam.
Estou aqui e no estarei, um dia,
em parte alguma.
Que importa, pois?
A luta comum me acende o sangue
e me bate no peito
como o coice de uma lembrana226
[...]
num nibus Estrada de Ferro Leblon.
Volto do trabalho, a noite em meio,
fadigado de mentiras.
226
GULLAR, F. Dentro da noite veloz, 1998, pp.18-19.
227
VILLAA, A. A poesia de Ferreira Gullar, 1984, p.129.
114
eu compro vista aos donos do mundo.
Ao peso dos impostos, o verso sufoca,
a poesia agora responde a inqurito policial-militar. 228
[...]
Como ser neutro, fazer
um poema neutro
se h ditadura em meu pas
e estou infeliz?229
115
livro. Por exemplo, no poema No corpo nota-se uma mudana na sua potica
como resultado da frustrao da militncia poltica.
A poesia o presente.231
[...]
Onde anda voc, Maria Lcia?
Esmagado, Maninho, Raimundinho?
Onde andam vocs, Adi, Dod?
A garagem a quitanda os oitizeiros
onde andam vocs
se h muito anos derrubaram o quartel?
se h muitos anos
destruram Hiroxima, a Gestapo
a Gestapo
e o poeta jogou-se da amurada
onde a gente brincava?
[...]232
231
GULLAR, F. Dentro da noite veloz, 1998, p.73.
232
Idem, Ibidem, pp.64-65.
116
Aqui, as guerras, os horrores do sculo XX entrelaam-se aos
personagens da infncia, aos seus irmos, quitanda do pai, ao Esmagado, seu
amigo da infncia. As lembranas do passado surgem diante da falta da liberdade.
Essa rememorao acontece justamente na hora em que o poeta perseguido e
obrigado a ficar escondido na casa de amigos, como ser explicitado no item que
realiza a anlise de Rabo de foguete.
Em abril de 1971, ele escreve Madrugada, e neste poema encontra-se
um movimento de subjetividade e um olhar crtico sobre a realidade brasileira.
233
Idem, Ibidem, p.75.
234
VILLAA, Alcides. A poesia de Ferreira Gullar,1984, p.104.
117
Numa casa em Ipanema rodeada de rvores e pombos
na sombra quente da tarde
entre mveis conhecidos
na sombra quente da tarde
entre rvores e pombos
entre cheiros conhecidos
eles vivem a vida deles
eles vivem minha vida
na sombra da tarde quente
na sombra da tarde quente235
235
GULLAR, F. Dentro da noite veloz, 1998, p.79.
118
esta manh as metralhadoras
da tirania que chega
para nos matar
E tu, amigo,
j nem as pode escutar236
236
Idem, Ibidem, 85
237
QUEIROZ, Maria Jos de. Os males da ausncia, ou a literatura do exlio, 1998, p. 20.
238
GULLAR, F. Dentro da noite veloz, 1998, p.86.
119
no seu ntimo, persiste uma ideia de resistncia, de no sucumbir diante do
desamparo.
Na busca por sua identidade, por seu cotidiano que ficou para trs, ele
escreveu em 1974 na cidade de Buenos Aires, Ao nvel do fogo
Ao nvel do fogo
e entre fogos (em Santiago
do Chile, em
Buenos Aires, em)
falo
beira da morte
como vegetais
com seu motor de gua
como as aves
movidas a vento, como
a noite (ou a esperana)
com suas hlices
de hidrognio239
239
Idem, Ibidem, p.88.
240
Ver GULLAR, F. Rabo de foguete, 1998.
120
desastre chileno: contrrio escolha da via armada para chegar ao poder, eu
testemunhara no Chile o fracasso da via pacfica.241 Somado a isso, a cidade
sentia os efeitos de uma disparidade de renda e a pobreza do pas que dividira a
sociedade em duas faixas apenas: a dos muitos ricos e a dos muito pobres a
classe mdia desaparecera.242Dois meses depois de sua chegada, sua esposa e
seus trs filhos desembarcaram no Peru. Toda a famlia estava fragilizada pelos
problemas decorrentes da ausncia do pai e, com o passar dos meses, as tenses
entre eles s aumentavam. Nesta cidade, Gullar enfrentou uma desestabilidade
familiar agravada pelo consumo de drogas por parte de seu filho Marcos.
O exlio pode ser um refgio para muitos que fogem das prises e
perseguies, mas o poeta deixa claro aqui que este refgio pode ser tambm
uma grande armadilha. Como edificar uma noo de casa, se tudo ali parece
desmoronar, indaga-se. Para suportar as marcas desse evento, o poeta construiu
uma linguagem capaz de incorporar e representar essa angustia. Estabeleceu,
assim, uma poesia integral capaz de transmitir a experincia da precariedade. A
potica construda no exlio possibilitou a Gullar, como diria Adorno em outro
contexto, alcanar a densidade da experincia sem renunciar a nada de seu
rigor.243 A memria lrica ganha altivez, mediando em alguns momentos uma
sensao de derrotismo tpico do ps-64 e, em outros, um momento posterior,
uma resistncia em torno da esperana que exilados tinham de voltar para o Brasil
e ingressar na ao poltica, na luta comum pela busca de um pas mais justo.
Dentro da noite veloz, diramos, o que h de mais poltico dentro da obra de
Ferreira Gullar e, nele, memria, presente, sensao de velocidade, sentimento de
urgncia so elementos poticos que fazem o eu lrico se mover dentro dessa
noite veloz.
241
Idem, Ibidem, p.198.
242
Idem, Ibidem, p.198.
243
ADORNO apud RELLA, Franco. Il silenzio e le parole, 1981, p.101.
121
2.2. Poema Sujo (1975)
244
FORTES, Lvia S. O trabalho da escritura e rememorao de Ferreira Gullar em Poema sujo
(1975) durante o exlio (1971-1977). In: BRITTO, Clvis C.; SANTOS, Robson dos (orgs.). Escrita e
sociedade: estudos de sociologia da literatura, 2008, p. 189.
122
O exlio, segundo Edward Said, pode ser lido tambm como uma
punio poltica contempornea.245 E diante de tal punio, resta ao poeta o
refgio na escrita, na poesia. Ao se refugiar na sua escrita, Gullar rompe fronteiras
e barreiras do pensamento e da sua prpria experincia. Essa ruptura se faz
presente no Poema sujo.
Este poema escrito num momento em que o poeta sente-se sozinho e
impotente e, nessa direo, se refugia na sua prpria escrita como forma de
escapar do medo, do futuro que se anuncia e que parece aterroriz-lo.
Gullar havia sado do Chile e ainda se encontrava muito traumatizado
com sua experincia naquele pas; ainda muito abalado pela morte de Salvador
Allende, rumara para Lima, e, por no conseguir se adaptar decidiu partir para
Buenos Aires.
245
SAID, Edward. Reflexes sobre o exlio. In: ______. Reflexes sobre o exlio e outros ensaios,
2003, p. 48.
246
Entrevista de Ferreira Gullar Revista Idiossincrasia, 30 ago. 2006. Disponvel
em:<www.portalliteral.com.br>. Acesso em: 4 mai. 2009.
123
O exlio a vida levada para fora da ordem habitual.
nmade, descentrada, contrapontstica, mas, assim que
nos acostumamos a ela, sua fora desestabilizadora
entra em erupo novamente.247
Este poema foi escrito durante seu exlio, no momento de maior terror.
A ideia frequente da presentificao da morte e os traumas dessa experincia
colocam Gullar no limite da prpria vida, fazendo-o mergulhar na escrita.
247
SAID, E. Reflexes sobre o exlio. In: ______. Reflexes sobre o exlio e outros ensaios, 2003,
p.60.
248
CAMENIETZKI, Eleonora Ziller. O poeta, o poema e a sinfonia. In: Revista Poesia Sempre,
2004, p.47.
124
Poema sujo tematiza a condio melanclica do poeta, o sentimento
de solido e impotncia no qual a escrita se transforma no seu prprio abrigo. A
superao de suas perdas parece acontecer num mergulho profundo da escrita,
maneira encontrada para lidar com a sbita revelao de sua condio humana.
Torna-se imperioso salientar que esse carter melanclico, como nos
lembra Susan Sontag, se d exatamente porque o sujeito perseguido pela
morte249 e, para a autora, os melanclicos so as pessoas que melhor
interpretam o mundo. Nessa direo, pertinente falar do luto que para Freud250
representa um grande enigma. A impossibilidade de aceitar a perda, a dimenso
do tempo perdido, a morte. A morte do outro fala sempre tambm de nossa
prpria morte. E, nessa direo, melhor se tornar um sujeito melanclico antes
de sucumbir ante ao passado e a caducidade porque ambos falam de nosso
passar, de nosso declnio. Gullar ope a perda do que se considera universal,
eterno, uma dimenso que se apresenta como universal e eterna, embora
negativa: a durao de seu luto pelo que foi perdido. Para Gullar aceitar essa
perda, reconhecer a morte como dimenso historicamente articulada com a
linguagem. Para Freud esta forma traduzida no luto e na melancolia. O poeta
prefere pensar no luto eterno, antes de admitir o tempo perdido e irredimvel. Ao
menos poder se refugiar na melancolia e no luto por ela: um luto to
incomensurvel e trgico que reflete a imensidade do que foi perdido.
O poema apresenta uma variao de ritmos e estruturas, tal como uma
sinfonia. 251
249
SONTAG, Susan. Sob o signo de Saturno, 1986, p.93.
250
Ver, FREUD, S. Luto e melancolia, 1992.
251
Essa noo de sinfonia foi dada por Eleonora Camenietzki, para ela a paginao de Poema
sujo se aproxima de um desenho semelhante s partituras de uma sinfonia. Ela chama ateno
para o fato de h um sentido de orquestrao no poema alm de um carter sinfnico e uma
possvel correlao grfica. CAMENIETZKI, Eleonora Ziller. O poeta, o poema e a sinfonia. In:
Revista Poesia Sempre, 2004, p.53.
125
minha vida inteira. Ento eu sabia que o poema ia ser
longo.252
252
FERREIA Gullar conta tudo!!! Jornal de Poesia. Disponvel em:
<http://www.revista.agulha.nom.br/>. Acesso em: 27 set. 2009.
253
A ttulo de ilustrao, o poema contm 100 pginas e quase mil versos.
126
humana, do cheiro acre do amor dos corpos, do
fervilhar dos germes da vida e dos vermes da morte.254
254
FERREIRA Gullar segundo Vinicius de Moraes In: Revista Poesia Sempre, 2004, pp.37-38.
255
ROCHA, Glauber, Folha de So Paulo, mar. 1977. Disponvel em: <www.portalliteral.com.br>.
Acesso em: 2 ago. 2009.
256
FONTA, Srgio. Poemas que vieram para ficar. Balaio. Jornal de Ipanema. Dez. 1976.
Disponvel em: <www.portalliteral.com.br>. Acesso em: 4 ago. 2009.
127
lanamento, especialmente porque se tratava de um poema produzido no exlio,
que evocava a terra natal e o pas que o expulsara. O livro foi lanado no Brasil
sem a presena de Ferreira Gullar. Muitos amigos se reuniram em torno desse
lanamento e depois enviaram uma foto ao poeta deste dia, juntamente com
inmeras frases e poemas de amigos que se solidarizavam e que estavam
dispostos a lutar pelo seu retorno, o que ocorreria um ano aps o lanamento do
poema. Vale lembrar que houve tambm uma adaptao para o teatro do Poema
sujo.257
A sua publicao em territrio nacional representava aquilo que Alcides
Villaa considerou como os
Esse peso simblico poderia ser traduzido pela frase de Otto Maria Carpeaux: O
Poema sujo mereceria ser chamado de Poema nacional.259 Sobre isso Joo Luiz
Lafet afirma que h um exagero nesta afirmativa, porm,
257
Foi feita uma encenao do poema, dirigida por Hugo Xavier, com msica de Milton
Nascimento, cantada por Alade Costa. Os atores eram Ester Ges e Rubens Corra. Acompanhei
os ensaios. Um belo trabalho. GULLAR, F. Revista Idiossincrasia, 30 ago. 2006. Disponvel em:
<www.portalliteral.com.br>. Acesso em: 2 jul. 2009.
258
VILLAA, A. A poesia de Ferreira Gullar, 1984, p.145.
259
CARPEAUX apud VILLAA, A. Ibidem, p.146. Grifos do autor.
128
doutrinas, tambm, mas com uma liberdade enorme no
uso dos processos poticos.260
E continua:
260
LAFET, Joo Luiz. Traduzir-se: um ensaio sobre a poesia de Ferreira Gullar. In: ______. A
dimenso da noite e outros ensaios, 2004, p. 208.
261
Entrevista de Gullar Revista Poesia sempre, 1998, pp.384-385.
129
com os argentinos e chilenos, uma rede para prender
os chamados subversivos como ns, e por isso eu vivia
numa situao difcil, no tinha para onde ir, meu
passaporte tinha sido cancelado pelo Itamaraty, ento
eu escrevi o poema assim, como eu costumo dizer:
como se eu escrevesse a ltima coisa da vida,
enquanto tempo eu vou escrever, que me resta
escrever. O poema foi assim.262
O sujo surge como uma fora intensa, por meio da qual o poeta parece
fazer deflagrar os sentimentos mais represados, a sujeira moral guardada nas
262
Entrevista de Ferreira Gullar. Disponvel em: <www.versoeprosa.ning.com>. Acesso em: 4 out.
2009.
263
Entrevista de Ferreira Gullar Revista Poesia sempre, 1998, p.388.
130
gavetas secretas da famlia, o sujo da lama dos mangues, das bananas podres e
sexo.
264
VILLAA, A. A poesia de Ferreira Gullar, 1984, pp.159-160.
265
MENESES, Adlia Bezerra de. Desenho mgico: poesia e poltica em Chico Buarque, 2002,
p.155.
266
CANDIDO apud MENESES, A. Ibidem, p.155.
267
Existem diferentes verses escritas para cano do exlio de Gonalves Dias, entre elas
destaco Nova cano do exlio de Carlos Drummond de Andrade, Cano do exlio de Casimiro
de Abreu, Canto de regresso ptria de Oswald de Andrade, Cano do exlio de Murilo
Mendes, Cano do exlio mais recente: para Fernando Gabeira de Affonso Romano de
SantAnna, Uma cano de Mrio Quintana, Cano do expedicionrio de Guilherme de
Almeida, Cano do exlio facilitada de Jos Paulo Paes e Cano do exlio s avessas de J
Soares. Encontramos tambm na msica Sabi de Chico Buarque e Tom Jobim e Terra das
palmeiras de Taiguara.
131
haver uma recuperao do romantismo numa poesia moderna. No Poema sujo,
parece haver uma articulao entre dois contextos, quais sejam, o do Romantismo
de Gonalves Dias e o de Gullar, que apresenta uma realidade sofrida do Brasil.
Nesse sentido, a cano do exlio remete situao de quem se sente desterrado
de sua prpria terra.
Este poema evoca, nessa direo, a experincia mais ntima do poeta, imbricada
numa determinada realidade social e histrica. Nesse sentido, imperioso
salientar que a vida pessoal do indivduo no pode ser dissociada da realidade em
que vive. O indivduo, portanto, singular e constantemente aambarcado por
um contexto social. Como nos lembra Elias269, no se deve analisar o indivduo
numa dicotomia em relao sociedade, mas compreender que h uma relao
dinmica e tensa entre eles. Nesta perspectiva, a sociedade produz o indivduo e
o indivduo numa contnua ao com outros indivduos, acabam influenciando a
prpria dinmica da sociedade. Assim, pensar a questo da identidade do sujeito
268
TRIGO, Luciano. O poema tem que ser um relmpago. In: Revista Poesia Sempre, 2004, p.34.
269
Cf. ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gnio, 1995.
132
considerar que ela se constri dentro de um determinado contexto histrico. No
caso particular, pode-se dizer que nenhuma dor, nenhum trauma pode ser
produzido sem considerar o contexto no qual o sujeito est inserido. Se o indivduo
atravessado pela histria e esse movimento o constitui enquanto sujeito,
podemos dizer que h uma articulao entre indivduo e a realidade social que o
cinge, o que parece muito manifesto neste poema de Gullar. Encontramos nele,
retratos e sensaes da infncia e de sua adolescncia e um dilogo entre o
mundo sensvel e uma conscincia alerta para a realidade de seu pas.
270
GULLAR, F. Poema sujo. In: ______. Toda poesia, 1991, p.223.
133
e que pode por um descuido esvair-se por meu
pulso
aberto
Meu corpo
que deitado na cama vejo
como um objeto no espao
que mede 1,70m
e que sou eu: essa coisa
deitada
barriga pernas e ps
com cinco dedos cada um (por que
no seis?)
joelhos e tornozelos
para mover-se
sentar-se
levantar-se271
271
Idem, Ibidem, p.224.
134
Ora, justamente na construo dessa imagem de si mesmo, que a
lucidez do poeta infere a construo de sua identidade. Brasileiro, nordestino,
maranhense, filho do comerciante Newton Ferreira e da dona de casa Alzira
Ribeiro Goulart para agarrar-se a um lugar seguro, a um refgio diante do flagelo
em que se encontra.
Neste poema, so inmeras as narrativas de seres e coisas, pequenas
tramas, sua cidade natal, a famlia, suas razes, at ento ameaadas pela
experincia do exlio.
H tambm, no poema, um movimento dialtico no qual surge por um
lado, o testemunho do menino que vivenciou e assistiu um passado que no pode
ser restitudo e, por outro, o do adulto num presente que no faz nenhum aceno
para o futuro e que, por meio da conscincia crtica, avalia um contexto social no
presente. E, nesse movimento, recolhe fragmentos, ritmos e imagens que aos
poucos vo constituindo a ao de memria num movimento que entrelaa
memria pessoal, histrica e social.
O Poema sujo parece mais o momento crucial de liberdade total do
poeta construda num contexto de solido plena. Liberdade de linguagem, dos
liames das circunstncias polticas, das palavras e do evento-limite que o
atormentava, permitindo emergir a sua poesia lrica. Nesse sentido, esta liberdade
lhe permite romper com a ordem estabelecida, com tica formalista, mas, acima
de tudo, com a prpria condio de estar exilado. Os traumas273 pessoais dessa
experincia dialogam por meio deste poema com a histria contempornea. Nos
fragmentos aqui recortados, o poeta parece manter a esperana diante dos dias
nefastos vividos fora do pas, mas tambm continuar a falar de uma realidade que
precisa ser modificada.
135
(como pode o perfume
nascer assim?)
Da lama beira das caladas, da gua dos esgotos cresciam
ps de tomate
Nos beirais das casas sobre as telhas cresciam capins
mais verdes que a esperana 274
Ou ainda:
o tempo
no escorre nem grita,
antes
se afunda em seu prprio abismo,
se perde
em sua prpria vertigem,
mas to sem velocidade
que em lugar de virar luz vira
escurido;
o apodrecer de uma coisa
de fato a fabricao
de uma noite:
seja essa coisa
uma pra num prato seja
um rio num bairro operrio275
274
GULLAR, F. Poema sujo. In: ______. Toda poesia, 1991, p.222.
275
Idem, Ibidem, p. 242.
136
com mel de abelha e trepava com a janela aberta,
pelo meu carneiro manso
por minha cidade azul
pelo Brasil salve salve,
Stalingrado resiste.
a cada nova manh
nas janelas nas esquinas na manchete dos jornais
276
Idem, Ibidem, pp. 222.
277
Idem, Ibidem, p. 226.
137
l vai o trem com o menino
l vai a vida a rodar
l vai ciranda e destino
cidade e noite a girar
l vai o trem sem destino
pro dia novo encontrar
correndo vai pela terra
vai pela serra
vai pelo mar
cantando pela serra do luar
correndo entre as estrelas a voar
no ar
piiu! piu piu
adeus meu grupo escolar
adeus meu anzol de pescar
adeus menina que eu quis amar
que o trem me leva e nunca mais vai parar
VAAR VAAR VAAR VAAR
Tuc tchuc tuc tchuc tuc tchuc278
278
Idem, Ibidem, p.230.
279
Villa- Lobos (1887-1959) comps Trenzinho Caipira em 1930 (Bachianas n.2).
280
Em 1978 Edu Lobo gravou o LP Camaleo e o Trenzinho do Caipira de Heitor Villa Lobos foi
interpretado pela primeira vez. Portanto, a adaptao e a orquestrao foram feitas por ele e Dori
Caymmi utilizando-se de trechos do Poema sujo de Ferreira Gullar.
138
Garfos enferrujados facas cegas cadeiras furadas mesas gastas
balces de quitanda pedras da Rua da Alegria beirais de casas
cobertos de limo muros de musgos palavras ditas mesa do
jantar,
voais comigo
sobre continentes e mares
E tambm rastejais comigo
pelos tneis das noites clandestinas.281
281
GULLAR, F. Poema sujo. In:______. Toda poesia, 1991, p. 220.
139
por me levar na viagem
Debruado no balco
Newton Ferreira l
seu conto policial.
Nada sabe das conspiraes
meteorolgicas que se tramam
em altas esferas azuis acima do Atlntico.
Na quitanda
o tempo no flui
antes se amontoa
em barras de sabo Martins
[...].284
***
282
Idem, Ibidem, pp. 231-232.
283
Idem, Ibidem, p. 254.
284
Idem, Ibidem, p. 256.
140
Ainda no exlio, no ano de 1974, Gullar foi absolvido pelo Supremo
Tribunal Federal da acusao de pertencer ao comit cultural do Partido
Comunista Brasileiro, mas ele decide permanecer fora do pas com medo de voltar
e ir para a priso, porque as notcias que chegavam pelos amigos no eram muito
animadoras.
Quando o Poema sujo285 lanado no Rio de Janeiro sem a sua
presena, vrios artistas e intelectuais se mobilizavam na tentativa de conseguir
dos militares garantias para que o poeta voltasse para o seu pas.
Antes de retornar ao Brasil, ele decidiu anunciar imprensa, aos
prprios militares e a outros rgos internacionais sua volta. Com isso, ele queria
garantir que no fosse preso ou sumisse ao chegar ao seu pas. Espalhar a notcia
de seu retorno tanto no Brasil como em vrios outros pases era uma tentativa de
conseguir manter-se vivo. Para ele, como os militares estavam preocupados com
a imagem deles fora do pas por causa das denncias de mortes e torturas286, e
tambm pelos acontecimentos que envolviam a morte de Vladimir Herzog. No
entanto, nada disso adiantou. Ao desembarcar em territrio brasileiro, mais
precisamente, na cidade do Rio de Janeiro, demorou apenas um dia para que
fosse preso pelo Departamento de Polcia Poltica e Social, rgo sucessor do
DOPS. Gullar foi interrogado durante 72 horas seguidas, vrios dos
interrogadores iam sendo substitudos, mas o interrogatrio no findava, ele relata
que estava exausto, sem comer, sem dormir e, em consonncia, havia ameaas
em relao ao possvel sequestro de seu filho Paulo, que se encontrava em
tratamento psiquitrico. Aps as 72 horas de priso e interrogatrio, o poeta
consegue ser libertado devido mobilizao de vrios amigos junto s
autoridades do regime militar.
285
Primeira verso do Poema sujo publicada pela editora Civilizao Brasileira. Neste mesmo
ano, ocorre o assassinato do jornalista Wladimir Herzog no DOI-CODI em So Paulo.
286
Elio Gaspari se reporta ao momento em que Castello Branco escreveu uma carta ao coronel
Helio Ibiapina, na qual ele se referia preocupao em conter a violncia poltica como forma de
melhorar a imagem do Brasil no estrangeiro. Cada episdio fora da lei um passo atrs na
opinio pblica [...] e uma restrio no estrangeiro. No sou somente presidente de expurgos e
prises. BRANCO, Castello apud GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada: as iluses armadas,
2002, p.136.
141
Diante do processo de redemocratizao do pas, ainda haviam atos
criminosos praticados pelos agentes do Estado. Os militares no assumiam seus
crimes e os assassinatos de seus opositores. E quando o faziam, a desculpa era
dada sempre utilizando o argumento de que os nimos estavam alterados, como
foi, por exemplo, o caso de Gregrio Bezerra que foi brutalmente assassinado na
cidade do Recife e 20 anos aps este fato o coronel Golbery que ao lado de
Geisel estiveram na origem da conspirao de 1964 e no centro do primeiro
governo constitudo aps sua vitria, retornaram ao poder dez anos depois, com o
propsito de desmontar a ditadura287 afirmava que
287
GASPARI, Elio, A ditadura envergonhada: as iluses armadas, 2002, p. 36.
288
GOLBERY apud GASPARI, Elio. Ibidem, p.133.
289
Cf. GASPARI, Elio. Ibidem, p.36.
142
militar, a principiar pelas dissenses burguesas.290 O autor chama ateno
tambm para as greves de operrios que surgiam no final da dcada de 70, como
elemento relevante para este processo.
290
RAGO apud ANDRADE, Everaldo de O. A liberdade nasce da luta: o surgimento da OSI na
crise da ditadura. In: SANTOS, C. M.; TELES, E.; TELES, J de A. (orgs.) Desarquivando a ditadura:
memria e justia no Brasil. V.I, 2009, p.66.
291
GULLAR apud VILLAA, A. A poesia de Ferreira Gullar. 1984, p. 179.
143
Essa tarde era histria brasileira
que balanava as rvores
passando
e que cheirava a maresia
quando do mar soprava
e quando
crescendo em jasmineiros
a jasmim
cheirava
a histria do Brasil em algum quintal
de So Lus
pouco antes da segunda grande guerra
enquanto
sobre o balco da quitanda nas bananas
que apodreciam 292
144
longe longe do mar
(longe do amor)295
Faam a festa
cantem e dancem
que eu fao o poema duro
o poema-murro
sujo
como a misria brasileira297
O sofrimento no tem
295
GULLAR, F. Na vertigem do dia. In: ______. Toda poesia, 1991, p.278.
296
LAFET, Joo Luiz. Traduzir-se: um ensaio sobre a poesia de Ferreira Gullar. In: ______. A
dimenso da noite e outros ensaios, 2004, p.211.
297
GULLAR, F. Na vertigem do dia. In: ______. Toda poesia, 1991, p.311.
145
nenhum valor
No acende um halo
em volta de tua cabea, no
ilumina trecho algum
de tua carne escura
(nem mesmo o que iluminaria
a lembrana ou a iluso
de uma alegria)
[...]
A justia moral, a injustia
no. A dor
te iguala a ratos e baratas
que tambm de dentro dos esgotos
espiam o sol
[...]298
Em entrevista, Gullar questionado sobre o poema Alegria no qual diz
que o sofrimento no tem nenhum valor e responde:
298
Idem, Ibidem, pp. 276-277.
299
Entrevista de Ferreira Gullar Revista Poesia Sempre, 1998, pp.403-404.
300
SAID, E. Reflexes sobre o exlio. In: ______. Reflexes sobre o exlio e outros ensaios, 2003,
p.57.
146
adolescentes filhos de exilados, e que foram obrigadas a se colocar tambm nesta
condio, enquanto herdeiros do exlio. Para ela, eles
301
PAIVA, Tatiana M. C. Memrias de uma herana: a experincia de filhos exilados brasileiros da
ditadura militar, In: SANTOS, Ceclia M; TELES, Edson: TELES, Janana de A. Desarquivando a
ditadura: memria e justia no Brasil, 2009, p.148.
302
GULLAR, F. Na vertigem do dia. In: ______. Toda poesia, 1991, p.277.
147
(os intestinos dobrados
dentro da barriga, as pernas
sob o corpo)
vejo pelo janelo da sala
parte da cidade:
estou aqui
apoiado apenas em mim mesmo
neste meu corpo magro mistura
de nervos e ossos
vivendo
temperatura de 36 graus e meio
lembrando plantas verdes
que j morreram303
No poema Digo sim, parece colocar toda sua decepo diante daquilo
que foi um projeto revolucionrio no Brasil, tendo em vista as presses de uma
modernidade que havia se instaurado no pas. A esperana que aparece como um
sol entre pulmes e nuvens, nos traz a ideia de que ainda persiste em seu
pensamento um fio de esperana daquilo que podemos chamar de sentimento de
brasilidade revolucionria mesmo diante de toda a derrota sofrida.
Poderia dizer
que a vida bela, e muito,
e que a revoluo caminha com ps de flor
nos campos de meu pas,
com ps de borracha
nas grandes cidades brasileiras
e que meu corao
um sol de esperanas entre pulmes
e nuvens304
303
Idem, Ibidem, p.278.
304
Idem, Ibidem, p.279.
148
Amigos morrem,
as ruas morrem,
as casas morrem.
Os homens se amparam em retratos.
Ou no corao dos outros homens305
Um parte de mim
todo mundo:
outra parte ningum:
fundo sem fundo.
Um parte de mim
multido:
outra parte estranheza
e solido.
305
Idem, Ibidem, p.292.
149
de vida ou morte ___
ser arte?306
Ao ler tal poema, depara-se com as suas sete estrofes nas quais o
contraditrio ultrapassa a dualidade inicial e se converte em dialtica, pois uma
parte est na outra, em tenso que no se esgota307 e percorre-se um
deslocamento que mostra a vertigem sendo transformada em linguagem e mais,
parece que aqui se podem observar todos os itinerrios, as angstias do fazer
arte, da realidade ao espanto que a vida lhe confere para que sua poesia nasa,
da estranheza e da solido que de repente o devolve multido. O movimento
empreendido aqui de traduzir o prprio sujeito, na medida em que o poeta
simultaneamente todo mundo e ningum; multido e solido; razo e delrio; rotina
e espanto; vertigem e linguagem. Mas ser poeta saber traduzir uma coisa na
outra, a pulso dionisaca na forma apolnea, o indivduo na coletividade.308
Da solido do exlio ao movimento da metrpole, Gullar se v numa
sociedade capitalista, na qual o consumo a ao mais efetuada e onde tudo se
transforma em mercadoria, a poesia para ele parece ser uma casa segura, talvez
a nica como quisesse Adorno.309 Escrever por si s parece ser uma ao de
sobrevivncia em meio a essa paisagem que se instaurou e aos traumas agora
vividos, da a necessidade de traduzir-se ou mesmo de traduzir o obscuro.
306
Idem, Ibidem, p. 309. Esse poema foi musicado por Raimundo Fagner e gravado na Espanha
em 1981. Ele faz parte do LP cujo ttulo Traduzir-se/Traducirse no qual Fagner canta outros
poetas estrangeiros.
307
CAMENIETZKI, Eleonora Ziller. Poesia e poltica: a trajetria de Ferreira Gullar, 2006, p.195.
308
LAFET, Joo Luiz. Traduzir-se: um ensaio sobre a poesia de Ferreira Gullar. In: ______. A
dimenso da noite e outros ensaios, 2004, p.210.
309
Ver ADORNO apud SAID, Edward. Reflexes sobre o exlio. In: ______. Reflexes sobre o
exlio e outros ensaios, 2003.
150
2.4. Rabo de Foguete (1998)
310
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin: os cacos da histria,1993, pp.20-58.
151
Ao pensar a racionalidade tcnica como instrumento de morte que foi
utilizada pelo nazismo, pode-se tomar emprestada essa reflexo para pensar o
uso desse instrumental na Amrica Latina e no Brasil, considerando o contexto da
ditadura militar. No Brasil, especificamente, houve a utilizao de uma
racionalidade tcnica principalmente durante as sesses de torturas. Indivduos
eram torturados na presena de um mdico que ficava ao lado dele, para que a
tortura fosse realizada at as ltimas foras do indivduo, mas pretendia-se que
este no fosse morto naquele processo. Muitas vezes, como relatam
sobreviventes, tal tcnica no alcanava seus objetivos porque a fora irracional
de seus torturadores no continha limites, o que resultava em mortes.311 A tortura
foi a manifestao mais crua da essncia repressiva que o Estado assumiu na
sua obsesso desmobilizadora da sociedade.312 Ela era usada durante os
interrogatrios e servia para combater tanto aqueles considerados corruptos
quanto os ditos subversivos. No entanto, ressalta-se que perseguir subversivos
era tarefa bem mais fcil do que encarar corruptos, pois se os primeiros defendiam
uma ordem poltica, os outros aceitavam quaisquer tipos de ordens. Fariam parte
do regime, fosse qual fosse. Poderosas eram suas conexes.313
Faz-se necessrio enfatizar, no caso brasileiro, inmeros livros de
pessoas que passaram por isso e que sentiram a necessidade de narrar o que
viveram, mesmo que esta narrativa encontre inmeros obstculos, como no caso
aqui estudado: Gullar levou 20 anos para poder escrever sobre sua experincia do
exlio, para narrar as dores e dissabores ali experimentados que marcariam para
sempre sua vida e a de sua famlia. Nesse sentido, essa experincia individual
assume um carter coletivo daquilo que no pode ser esquecido. A fora literria e
poltica de Rabo de Foguete expe a histria contempornea da Amrica latina
311
Tocar nos corpos para machuc-los e matar. Tal foi a infeliz, pecaminosa e brutal funo de
funcionrios do Estado em nossa ptria brasileira aps o golpe militar de 1964.
Tocar nos corpos para destru-los psicologicamente e humanamente. Tal foi a tarefa ignominiosa
de alguns profissionais da Medicina e de grupos militares e paramilitares durante 16 anos em
nosso pas. Tarefa que acabamos exportando ao Chile, Uruguai e Argentina. Ensinamos outros a
destruir e a matar. Lentamente e sem piedade. Sem tica nem humanismo. COMISSO
ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS POLTICOS. Direito memria e verdade,
2007.
312
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada: as iluses armadas, 2002, p. 129.
313
Idem, Ibidem, p.135.
152
por meio da memria de Gullar, um sujeito que vivenciou a represso imposta por
uma ditadura militar.
Para Gagnebin, a escrita literria continua sendo o veculo
privilegiado de transmisso dessas experincias do horror, do mal, da morte
annima.314 Ela considera tambm a ausncia de assimilao do passado e a
impossibilidade de luto como conseqncia desse processo.
Em Memria, histria, testemunho315 Gagnebin transita pelas ideias de
Benjamin, destacando a importncia da memria para este autor, e enfatiza que o
indivduo assombrado por memrias traumticas e, a partir de uma leitura de
Freud, ela chama ateno para o fato de que o trauma impede o indivduo de
acessar o campo simblico. Da a dificuldade de rememorizar e narrar tais
experincias. H na memria lacunas, espaos vazios, incompletude, aquilo que
ainda no teve direito nem lembrana nem s palavras.316 Nesse sentido,
relevante a conscincia desse processo de transmisso para possibilitar a
construo de histria dita no-oficial.
Quando o poeta em diversas entrevistas comenta o fato da dificuldade em
narrar o tempo vivido no exlio, ele nos orienta a pensar na memria do choque,
cuja experincia traz consigo o incomunicvel e, nesse sentido, a impossibilidade
da palavra aqui remete impossibilidade de compartilhar tal experincia. Para
Jeanne Marie Gagnebin torna-se imperioso transmitir o inenarrvel manter viva a
memria dos sem-nome, ser fiel aos mortos que no puderam ser enterrados. E,
mais, para ela, descrever esse vivido to sofrido, uma atitude poltica pois lutar
contra o esquecimento e a denegao tambm lutar contra a repetio do
horror.317
Gullar fala da dificuldade de escrever esse livro e diz que o fez graas
ao computador, isso implica evidenciar o quanto difcil, dizendo melhor, penoso
o trabalho de rememorao de um evento traumtico.
314
GAGNEBIN, Jeanne M. Palavras para Hurbinek. In: NESTROVSKI, A.; SELIGMANN-SILVA, M.
(orgs.) Catstrofe e representao, 2000, p.106.
315
GAGNEBIN, Jeanne M. Histria, memria e testemunho. In: BRESCIANI, Stella; NAXARA,
Mrcia. Memria e (re) sentimento: indagaes sobre uma questo sensvel, 2001.
316
Idem, Ibidem, p. 91.
317
GAGNEBIN, J. Marie. Lembrar, escrever, esquecer, 2006, p.47.
153
O livro Rabo de Foguete no teria sado se no fosse
graas informtica. Eu no teria tido pacincia para
escrever aquele livro. Sabe por que? O tempo que eu
escrevi! Aquele livro foi reescrito inmeras vezes!!
Agora, imagina se eu tivesse que datilografar de novo?
Jamais eu faria isso! Bom, faria mas demoraria vinte
anos e ia acabar morrendo sem terminar o livro. Com o
computador eu comecei a reescrever, a me empolgar, a
ficar interessado no livro at termin-lo.318
318
Entrevista de Ferreira Gullar para ISM News. Disponvel em: Disponvel em:
www.portalliteral.terra.com.br. Acesso em: 18 mai. 2009.
319
Cf CARUTH, Cathy. Trauma: explorations in Memory, 1995.
154
e a sociologia tomando-o como um tipo peculiar de fenmeno histrico320, na
medida em que o que est em jogo prpria memria do trauma.
Mas como deixar para trs a memria do vivido no exlio? Da a
necessidade de expurgar, de contar para os outros, de narrar tal experincia e
exatamente na linguagem literria que Ferreira Gullar encontra esse espao, essa
casa segura como diria Adorno.
Em Rabo de Foguete, aparece aquela dificuldade muito caracterstica
de narrativas de sobreviventes, nas quais se tem uma dificuldade em defini-las em
termos de gneros. Relato, autobiografia, fico, prosa, romance, texto
jornalstico, mas o que se deve considerar que acima de tudo, nas entrelinhas da
leitura encontra-se uma imbricao entre real e imaginrio, uma narrativa pautada
na lembrana do passado feita a partir do tempo presente. Um poeta que sofre as
injustias da perseguio poltica, um indivduo que busca a sobrevivncia diante
da clausura. Uma narrativa que embala o leitor num ritmo de distanciamento do
prprio autor, no sentido de uma descrio de uma vida que parece no ser sua.
Mas, sobretudo, uma escritura que depe sobre um perodo histrico no Brasil que
precisa ser lembrado. Em muitos momentos durante a narrativa, o relato histrico
passa a ser uma freqncia, ainda que o texto assuma uma dificuldade em defini-
lo em termos de estilo.
Para Arrigucci, pode-se tambm consider-lo enquanto romance, na
medida em que,
320
Idem, Ibidem, p.151.
155
instrumento de mediao para esse feito a linguagem
coloquial, manada com exatido em dilogos diretos, a
servio de cenas rpidas a que se resumem os
captulos concisos.321
321
ARRIGUCCI, D. Tudo exlio. Jornal Folha de So Paulo, So Paulo,14 nov, 1998. Disponvel
em: <www.portalliteral.com.br>. Acesso em: 5 jun. 2009.
322
SELIGMANN-SILVA, Mrcio. O local da diferena: ensaios sobre memria, arte, literatura e
traduo, 2005b, p.79.
323
POLLAK, Michael. Memria e identidade social. Estudos Histricos, p.203.
324
Idem, Ibidem, p. 204.
156
Pode-se nesse sentido considerar o poeta em questo como um
sobrevivente que experimentou um evento-limite, como algum que habita na
clausura de um acontecimento extremo que o aproximou da morte.325
Rabo de Foguete vai sendo analisado aqui como um Testemunho, pois
temos nele uma construo da prpria histria do Brasil dentro de um determinado
perodo histrico e, como nos lembra Beatriz Sarlo, a literatura pode ser operada
como fonte de entendimento do passado.326
Significante salientar que em alguns momentos de sua narrativa, a
condio do trauma vem tona e pode-se observ-la quando o poeta afirma que
tudo aquilo parece que no aconteceu com ele, mas com outra pessoa, h a um
distanciamento, uma ciso na prpria narrativa. Isso pode ser lido na descrio de
sua fuga do Brasil passando pelo Uruguai, Buenos Aires, Paris para na sequncia
embarcar com destino a Moscou.
325
SELIGMANN-SILVA, M. O local da diferena: ensaios sobre memria, arte, literatura e
traduo, 2005b, p.81.
326
Ver SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memria e guinada subjetiva, 2007.
327
GULLAR, F. Rabo de foguete, 1998, p.50.
157
seguida, o poeta expe sua experincia pelos vrios pases da Amrica Latina,
evocando um contexto social, econmico e poltico, a desintegrao da vida de
sua famlia; depois sua chegada ao Chile em maio de 1973, momento no qual o
poeta passa da condio de foragido para sobrevivente diante das condies
dadas pelo golpe que deporia o governo socialista de Salvador Allende e, em
seguida, o assassinaria. Dias de pavor, de medo das bombas, dos atentados. No
exlio, conviveu com o medo de ser pego por outra ditadura.
Por fim, as narrativas expem a experincia em Buenos Aires que
coincide tambm com a morte de Pern, convivendo, portanto, com o conflito e o
medo em funo do golpe militar daquele pas e, somadas a isso, a doena mental
e a fuga de seu filho Paulo, sua maior tragdia.
Ao narrar o vivido no exlio, o poeta fala do drama e ao falar revive o
evento traumtico e, em alguns momentos, tece reflexes sobre o processo
poltico e sua experincia dentro do contexto poltico brasileiro em relao ao
partido comunista. Reafirma nestas lembranas como a poesia passou a ser um
lugar de sobrevivncia.
Em Rabo de Foguete acompanhamos a individualidade do poeta sendo
processada dentro de uma experincia histrica. Foragido e sobrevivente ele
consegue, partindo de um evento traumtico como foi o exlio, uma narrativa na
qual a palavra se imbui de um potencial transformador.
A represso imposta durante a ditadura militar no Brasil deixou marcas
significativas na vida de algumas pessoas. Muitos foram obrigados a deixar o pas
na tentativa de escapar perseguio poltica. O golpe militar de 64 apresenta um
duplo sentido, por um lado, tem-se um Estado como agente modernizador que
impe uma transformao racionalizada da sociedade328 e, por outro, h uma
avassaladora represso poltica que se d por meio de censura, prises,
assassinatos e exlios. Dentre os diferentes grupos que foram obrigados a deixar o
Brasil nesse perodo, est o de escritores. A experincia comum para todos eles
se d por meio da violncia com que o exlio atravessou suas vidas.
328
Cf. ORTIZ, Renato. A moderna tradio brasileira: cultura e indstria cultural 1994, p. 159.
158
Pensar o passado trabalhar a partir de um jogo entre esquecimento e
lembrana que ocorre de forma inconsciente e, nesse embate, o recorte do
lembrado e daquilo que deve ser esquecido aparece dentro de uma relao do
que tem sentido ou no dentro da rememorao. A memria um trabalho de
interpretao do passado feita no presente e que nos permite pensar a relao
entre indivduo e sociedade. Destarte, a
329
BOSI, Ecla. Memria e sociedade: lembranas dos velhos,1979, p. 17.
330
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revoluo era da TV, 2000, p.
121.
331
Com o AI-5, o presidente podia fechar o Congresso, cassar mandatos parlamentares e
governar por decretos uma sociedade onde no havia direito a habeas corpus em casos de crimes
contra a segurana nacional Cf. GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada: as iluses armadas,
2002, p.36.
332
Idem, Ibidem, p.35.
159
trata-se de uma percepo diversa dos fatos, posto que distanciada, mas nem por
isso menos intensa. E, nesse sentido, relevante situar que a palavra associa o
trao visvel coisa invisvel, coisa ausente, coisa desejada ou temida, como
uma frgil passarela improvisada sobre o abismo.333 Palavra e memria so dois
elementos ntimos na fronteira entre o dizvel e o indizvel, entre o que pode ser
testemunhado e aquilo que fica silenciado na lembrana como sintoma de uma
experincia traumtica. A partir desse livro, pode-se tomar Gullar como sujeito que
testemunhou e narrou a experincia do exlio, trazendo a possibilidade de uma
memria da histria poltica e cultural brasileira desse perodo.
Ainda em 1975, vivendo sob os impactos do exlio, Paulo Freire chegou
a sugerir a Gullar um texto escrito a partir de sua experincia no exlio e ele se
recusara a faz-lo, chamando ateno para o fato de que
Esse contar vai sendo realizado na primeira pessoa, com uma escritura
que se prope autobiogrfica e no final do livro o poeta o finaliza com a seguinte
frase: [...] Mas no importa. A vida no o que deveria ter sido e sim o que foi.
Cada um de ns a sua prpria histria real e imaginria.335
Nesta fala do autor, est explicitada uma relao contraditoriamente
conflitante e harmoniosa entre um texto que se prope autobiogrfico e um texto
ficcional. Real e imaginrio possuem uma relao intrnseca no processo da
recordao. As personagens presentes no texto so pessoas reais e outras so
nomes inventados pelo prprio poeta, o que lhe permite construir um jogo que no
consolida a unicidade da relao autor/narrador/personagem.
333
CALVINO, talo. Seis propostas para o prximo milnio,1990, p. 90.
334
GULLAR, Ferreira. Rabo de foguete, 1998, p. 07.
335
Idem, Ibidem, p. 269.
160
O ttulo do livro faz referncia a um samba composto por Joo Bosco e
Aldir Blanc em 1979, mesmo ano que aprovada a Lei da Anistia. Essa
composio fala de um Brasil que comea a receber os seus exilados, que sonha
com o retorno ptria dos que foram obrigados a deix-la, mas remete tambm
dor dos que ficaram, do desgnio infeliz dessas famlias:
336
Grifo nosso.
337
Cf. Letras de msica. Disponvel:< www.vagalume.com.br>. Acesso em: 26 jun. 2007.
338
HABERMAS, Juergen. Nenhuma normalizao do passado, 1987, p. 04.
161
Rumar para o exlio foi a soluo encontrada para algumas das
pessoas que pertenciam a diferentes grupos sociais revolucionrios durante a
vigncia da violncia impingida pelo Estado autoritrio desde o golpe 64. Nessa
direo, destaca-se o fato de que tanto o Brasil como outros pases da Amrica
Latina Chile, Argentina, Peru, etc - so vtimas das catstrofes339
experimentadas no sculo XX. Um sculo marcado pelo indivduo refugiado,
deslocado. Ainda hoje, possvel perceber os impactos desse processo na
dificuldade de transformar as lembranas traumticas em um discurso narrativo
racionalizado.
A narrao construda em Rabo de Foguete feita a partir de um tempo
cronolgico que vai mostrando as experincias e os sentimentos vividos durante a
clandestinidade e o exlio. O livro possui 92 captulos, divididos em quatro partes.
Os captulos so curtos, seguindo um ritmo de prosa, o que confere ao leitor uma
narrativa concisa e fluida.
Na primeira parte, Gullar mostra sua surpresa com um telefonema:
339
A palavra catstrofe vem do grego e significa, literalmente virada para baixo (kata +stroph).
[...] , por definio, um evento que provoca um trauma, outra palavra grega, que quer dizer
ferimento. NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Mrcio (orgs.). Catstrofe e
representao: ensaios, 2000, p. 08.
340
GULLAR, Ferreira. Rabo de foguete,1998, p. 09.
162
legalidade. Agora, enquanto todos os demais
membros do comit cultural iam poder
responder ao processo normalmente, eu teria
que mergulhar na clandestinidade. E isso sem
nunca ter participado sequer de uma reunio
da tal direo.341
163
comunista, ele seria torturado at falar e, como estava por fora dos
acontecimentos do partido, no tendo o que falar seria morto.
344
Idem, Ibidem, p. 12.
345
Idem, Ibidem, p. 11.
346
Idem, Ibidem, p. 18.
164
Alm da decepo em relao aos companheiros de partido, esse
movimento de mudar de casa vrias vezes traz em seu cerne a ideia do no-lugar,
da dvida sobre o seu lugar de pertencimento, ou mesmo da ausncia de lugar
como uma caracterstica do sujeito que vive a clandestinidade.
Enquanto Gullar perambulava tentando se esconder, Thereza teve o
apartamento invadido pela polcia. A filha Luciana ficou com uma arma apontada
para sua cabea, enquanto a me era seqestrada pela polcia. Esse relato
compe uma descrio do tempo do terror, de um perodo de maior
endurecimento do regime militar, tempo marcado pelo medo que embalava a vida
daqueles envolvidos nesse processo. Vale ressaltar que esse , tambm, um
tempo de maior produo cultural no Brasil. Apesar da censura e represso desse
perodo, o pas passava pelo processo de construo de uma indstria cultural e
cristalizao do mercado de bens culturais.347 Havia, portanto, uma represso que
no era veiculada via meios de comunicao de massa.
Gullar, durante o perodo de clandestinidade ainda no Brasil, tinha muito
cuidado para que as pessoas dos prdios por onde se escondera no soubessem
que ele estava ali. Os porteiros eram os principais olhos da polcia, funcionavam
como alcagetes, pois eles avisavam a polcia sobre moradores novos.
Durante esses dez meses, Gullar tentava burlar a polcia. Enviava
cartas de outros Estados para sua mulher, encaminhadas por amigos que
moravam fora. Usava disfarces, quase no saia de casa, apenas para encontros
com Thereza e os filhos. Convivia com a ideia de privao constante.Thereza no
sabia do paradeiro do marido, preferia no sab-lo, pois tinha medo de ser presa e
torturada e, assim, entregar o marido.
Diante da demora do processo instaurado na II Auditoria da Marinha
para apurar as atividades do Comit Cultural do PCB, das acusaes que s
complicavam seu julgamento e do convite de Renato Guimares para fazer um
curso de seis meses na Unio Sovitica, Gullar decide deixar o pas.
347
Cf. ORTIZ, Renato. A moderna tradio brasileira: cultura e indstria cultural, 1994, p.121.
165
De fato j no agentava a condio de
clandestino, vivendo sempre enfurnado e em
sobressalto. J me convencera de que era
praticamente impossvel permanecer num lugar
por muito tempo sem que o sigilo fosse
rompido, a no ser que me decidisse pela
clandestinidade profunda, igual quela em que
viviam Prestes e Giocondo. [...] A realidade se
mostrava em toda a sua crueza: o redemoinho
continuava a puxar-nos, mais e mais, para o
fundo.348
166
Aqueles meus 10 meses de clandestinidade me
ensinaram que o mais certo era apostar no pior.351
351
GULLAR, F. Rabo de Foguete, 1998, p.39.
352
Idem, Ibidem, pp.50-51.
167
dos setores mais politizados e esclarecidos da
populao.353
O conflito ento passa a ser uma presena constante neste lugar. Ainda segundo
Said, o exilado tem a possibilidade de olhar o mundo com os olhos do estrangeiro
e isto lhe permite uma viso original. Para ele,
353
Idem, Ibidem, pp. 85-86.
354
Idem, Ibidem, p.86.
355
SAID, Edward. Reflexes sobre o exlio. In: ______. Reflexes sobre o exlio e outros ensaios,
2003, p.51.
168
a maioria das pessoas tem conscincia de uma cultura,
um cenrio, um pas; os exilados tm conscincia de
pelo menos dois desses aspectos, e essa pluralidade
de viso d origem a uma conscincia de dimenses
simultneas, uma conscincia que para tomar
emprestada uma palavra da msica
contrapontstica. Para o exilado, os hbitos de vida,
expresso ou atividade no novo ambiente ocorrem
inevitavelmente contra o pano de fundo da memria
dessas coisas em outro ambiente. Assim, ambos os
ambientes so vvidos, reais, ocorrem juntos num
contraponto.356
356
Idem, Ibidem, p.59.
357
GULLAR, F. Rabo de foguete, 1998, p.71.
169
que marcava a vida nas principais capitais do Brasil. Um progresso que impe
experincia individual um aspecto trgico.
Nesse momento no Brasil, a ideia do progresso estava na pauta. O pas
buscava se modernizar. Havia nesse perodo a abertura do mercado nacional s
empresas internacionais, a indstria criando um novo contexto econmico e
cultural, pois a indstria cultural comeava a estabelecer estruturas.
Ao deixar sua amante na ex-URSS e, ao chegar ao Chile, em maio de
1973, Gullar se v diante de uma situao bastante preocupante: todas as noites
explodia uma bomba prximo ao nosso apartamento.358 Temos a um relato muito
prximo do jornalismo, no qual somos informados da difcil situao econmica e
poltica daquele pas e que essa situao precria iria favorecer o surgimento do
golpe: encontrei a cidade paralisada por uma greve de transportes que s
terminaria cinco meses mais tarde com a queda de Salvador Allende. E mais:
358
GULLAR. Ferreira. Rabo de foguete, 1998, p.151.
359
Idem, Ibidem, p. 157.
170
Gullar, diante desse discurso, procura pesquisar o assunto tentando livrar-se da
culpa. Numa das fugas de Paulo, Gullar encontra o filho preso numa delegacia:
360
Idem, Ibidem, p. 215.
361
VIAR; VIAR, Exlio e tortura, 1992, p. 73.
171
A tenso entre o poeta e o poltico, entre o narrador e o autor, entre o
real e o imaginrio, ressaltada em vrios momentos da narrativa de Rabo de
Foguete:
362
GULLAR, F. Rabo de foguete, 1998, pp. 78-79.
172
siams. Era um sentimento contraditrio o que
me assaltava naquele instante: sentia falta das
pessoas e da minha vida, mas ao mesmo
tempo a sensao era de alvio e liberdade.
Um propsito perverso parecia ter se instalado
dentro de mim.363
363
Idem, Ibidem, p. 50.
364
Cf. WILLIANS, Raymond. O campo e a cidade: na histria e na literatura, 1990.
173
Versus (1975-79). Bernardo Kucinski365 escreve sobre a imprensa alternativa e
aponta para o fato de que as esquerdas desejavam protagonizar as
transformaes institucionais que apoiavam e, em meio a isso, procuravam
cooptar jornalistas e intelectuais para o espao da imprensa alternativa. Gullar
mesmo do exlio enviava artigos para alguns desses jornais, assinado por meio de
pseudnimo.
Durante a leitura de Rabo de Foguete permanece no leitor uma sensao
de que muito difcil manter uma distancia da biografia de Gullar, pois ali surge a
histria de vida do poeta e esta histria vai sendo narrada sem deixar de lado o
espao e o tempo no qual aquela realidade estava inserida. Mas sempre
lembrando que a dificuldade em narrar tais eventos implica numa ideia de
recriao da prpria realidade vivida, na medida em que os acontecimentos
traumticos e o testemunho surgem dentro de uma relao ntima.
365
Ver KUCINSK, Bernardo. Jornalistas e revolucionrios: nos tempos da imprensa alternativa,
1991.
174
3. A BRISA DA ILHA DE SO LUS QUE SOPRA EM GULLAR DURANTE O
EXLIO
Ferreira Gullar
175
Por que a cidade de So Lus, a velha ilha surge com tanta vivacidade
no Poema sujo? A resposta a tal indagao nos obriga a considerar que parece
existir uma necessidade de falar da terra natal, desse retorno casa diante da
alienao da prpria vida decorrente das experincias traumticas do desterro. E,
nessa direo, Edwaid Said, aponta para a ideia de que o pthos do exlio est na
perda de contato com a solidez e a satisfao da terra: voltar para o lar est fora
de questo.366 O poeta se recupera dessa situao trazendo seu primeiro lar,
evocando suas lembranas e rememorando sua infncia na velha cidade que
surge em meio a essa solido e espiritualidade, como marcas do exlio. E como
nos lembra Joo Luiz Lafet, as imagens da cidade que surgem no Poema sujo
no podem ser entendidas enquanto um esquematismo abstrato do nacionalismo
e da cultura popular. Para compensar, estamos mais prximos de uma
representao concreta e aberta da realidade.367
366
SAID, Edward. Reflexes sobre o exlio. In: ______. Reflexes sobre o exlio e outros ensaios,
2003, p.52. Para os poetas romnticos alemes, o heimweh representava essa idia da sada da
casa.
367
LAFET, Joo Luiz. Traduzir-se: ensaio sobre a poesia de Ferreira Gullar. In:______. A
dimenso da noite e outros ensaios, 2004, p.209.
368
GULLAR, F. Poema sujo. In: ______. Toda poesia, 1991, pp. 219-220.
176
Ao se referir ao retorno casa como um movimento fundamental para o
exilado em termos da escrita, Said destaca nesse caminho Theodor Adorno em
Minima Moralia, sua autobiografia escrita no exlio, cujo subttulo Reflexes de
uma vida mutilada.
Por isso, para Adorno, o nico lar realmente disponvel agora, embora frgil e
vulnervel, est na escrita.370 , justamente, na escrita que Gullar retorna ao seu
lar, a sua cidade natal e os problemas desta cidade localizada prxima linha do
Equador, poderiam ser os problemas vividos em qualquer cidade brasileira. Da a
relevncia desse elemento particular ser lido tambm como um registro do
coletivo. Segundo Eleonora Camenietzki,
369
SAID, Edward. Reflexes sobre o exlio. In: ______. Reflexes sobre o exlio e outros ensaios,
2003, pp.57-58.
370
Idem, Ibidem, p.58.
371
CAMENETZKI, Eleonora Ziller. O poeta, o poema e a sinfonia.In: Revista Poesia Sempre,
2004, p.48.
372
GAGNEBIN, Jeanne M. Walter Benjamin: os cacos da histria,1993, p.20.
177
uma forma transmissvel. Nesse sentido, o ltimo momento de procura pela
escuta, acontece para Gullar no momento da escrita do Poema sujo, no qual o
sentido sua prpria existncia dado diante do fato de sentir-se devastado pela
derrota enquanto indivduo e militante poltico. Nessa direo, pode-se lembrar as
palavras da autora: fazer emergir as esperanas no realizadas desse passado,
inscrever em nosso presente seu apelo por um futuro diferente.373 Foi justamente
a experincia-limite do desterro e o momento da perda de todas as esperanas e,
com isso, a presena certa da morte que fez emergir a experincia maior da
linguagem potica do autor e, neste poema, inmeras imagens da sua primeira
cidade, a ilha de So Lus insurgem.
373
Idem, Ibidem, p. 58.
374
GULLAR, Ferreira. O poema sujo. In: ______. Toda poesia. 1991, p. 259.
178
durante a tarde
durante a vida
cheios de flores
de papel crepon
j empoeiradas
minha cidade doda.375
375
Idem, Ibidem, p. 261.
376
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia, 1977, p.120.
179
objetos abandonados e desprezados, nos detritos e nos cacos, nos inutenslios
que a criana gosta de colecionar.377
O trabalho persistente da memria est fortemente presente nas
escrituras do Poema sujo. Gullar deixa-se levar pelo desejo de reconstruir a
imagem da infncia soterrada no passado, que surge no momento do perigo. A
crtica dialtica interna ao poema aparece nesse impulso entre a memria e a
viso do presente, revelando uma sociedade que passa dentro dessa forma
potica. A voz do exilado ecoa como um grito poltico dentro de um requinte
potico.
palco de ressurreies
inesperadas
(minha cidade
canora
de trevas que j no sei
se so tuas se so minhas
mas nalgum ponto do corpo (do teu? do meu
corpo?)
lampeja
o jasmim
ainda que sujo da pouca alegria reinante
naquela rua vazia
cheia de sombras e folhas.378
377
Esse sentido de verdade est presente tambm na memria da infncia construda na poesia de
Manuel de Barros. Em Memrias Inventadas- A Infncia, o poeta traduz sua infncia reinventando-
a a partir das lembranas que iluminam o silncio das coisas annimas, das coisas inteis, dos
cacos.
378
GULLAR, Ferreira. O poema sujo. In: ______. Toda poesia. 1991, pp. 259-269.
180
Me lavo no Ribeiro.
Mijo na Fonte do Bispo.
Na Rua do Sol me cego,
na Rua da Paz me revolto
na do Comrcio me nego
mas na das Hortas floreso;
na dos Prazeres soluo
na da Palma me conheo
na do Alecrim me perfumo
na da Sade adoeo
na do desterro me encontro
na da Alegria me perco
Na Rua do Carmo berro
na Rua Direita erro
e na da Aurora adormeo379
Ou ainda:
379
Idem, Ibidem, pp. 262-263.
380
Idem, Ibidem, p. 249.
381
Termo retirado da cano popular do bumba-meu-boi do Maranho. Mas que o vento
bulioso balanava teus cabelos e eu ficava com cimes do perfume ele tirava, mas quando o
banzeiro quebrava teu lindo rosto molhava e a gente se enrolava na areia do mar. (Grifo nosso).
Msica de Donato/F. Naiva, cantada por diversos grupos de bumba-meu-boi de So Lus e
gravada tambm pelo grupo Tribo de Jah e por Maria Bethnia.
181
lama do manguezal e suas desigualdades sociais, mas, nesse percurso, aparece
toda a vida do poeta.
Nas gavetas perfumadas de passado382 surge o tempo impregnado
nos objetos, nos inutenslios, nos afazeres noturnos, nos rumores da casa, nos
garfos enferrujados, nos cheiros, nas coisas midas e esquecidas, nos limos, nos
musgos. A narrao recobra a experincia do passado soterrado e o reinscreve no
tempo presente, realizando a construo e/ou reconstruo de sentidos da vida do
sujeito histrico.
A lembrana da cidade da infncia perpassa toda sua existncia. Ela
levada para outros lugares, outros espaos e outros tempos, ela est impregnada
no poeta. No exlio, as identidades pessoal, social e poltica do poeta so
prementes. A dura realidade social e psicolgica possibilita a Gullar a construo
uma estrutura literria, na qual forma e contedo se articulam intrinsecamente.383
E a cidade da infncia evocada no poema como um lugar de resistncia. A
contradio est presente nas imagens que descrevem a velha cidade. Ah, minha
cidade verde contrapondo-se a Ah, minha cidade suja. Da contradio destes
versos aufere-se o fluxo da memria relativo contradio do prprio viver em
So Lus. A lembrana de um cotidiano marcado pela exaltao dos aspectos
fsicos da ilha em contraponto dura realidade social da maioria do povo
maranhense.
E tais contradies so percebidas ainda em alguns trechos do Poema
sujo, como por exemplo, a cidade e o mar, os operrios e a vida na Baixinha. A
So Lus deste poema no representa simplesmente um lugar no sentido de um
regionalismo, ela se apresenta pelas vicissitudes que esto presentes na estrutura
da sociedade brasileira como um todo. Com imagens justapostas ele vai
mostrando a periferia da cidade que fica na periferia do pas com sua beleza e
suas contradies. So Lus vai aparecendo num momento como um desabrochar
da vida, das aventuras do menino e do adolescente e depois passa a ser o palco
das contradies mais acirradas, do operrio, da cidade baixa.
382
GULLAR, Ferreira. O poema sujo. In: ______. Toda poesia. 1991, p. 221.
383
Cf. CNDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e histria literria, 2000.
182
uma interrupo
para que os operrios da fbrica Camboa
descansem um pouco
e se reproduzam nas redes
ou nas esteiras
se amando sem muito alarde
para no acordar os filhos que dormem no mesmo quarto384
Ou ainda:
183
Descendo ou subindo a rua,
mesmo que vs a p,
vers que as casas so praticamente as mesmas
mas nas janelas
surgem rostos desconhecidos
como num sonho mau.
387
Idem, Ibidem, pp. 257-258.
388
Ver BARROS, Valdenira. Imagens do moderno em So Lus, 2001.
184
O menino que arrastava camaro com um cofo se deparava com uma
cidade na qual o abandono de uma modernizao perifrica em relao s
demais capitais brasileiras lhe fora imposta. O isolamento duplo, de um lado o
aspecto intelectual do jovem poeta e, de outro, o insulamento espacial da cidade
da infncia.
Nos versos - ptria de sal e ferrugem - de trem eixos leprosos - caixas
de rolamento - abandonadas cheias - de terra ferrugem graxa - capim coberto de
leo configuram-se as tenses e contradies presentes no pas. A cidade agora
pode ser lida como ptria, porque uma coisa est na outra coisa, como disse o
poeta evocando o sentido dialtico entre o particular e o universal. So imagens
do abandono, a estrada de ferro fadada lama e capins, ferrugem, s runas
dos espaos da infncia e do tempo presente.
Ao ver no Poema sujo essa crtica ao progresso, torna-se imperioso
fazer algumas menes sobre a forma como o progresso tcnico instaurou-se
naquela cidade e o porqu do poeta tecer tantas crticas durante esse momento
da sua escrita.
No Maranho no final do sculo XIX, o algodo se destacava como
principal produto econmico e os industriais da cidade importavam maquinrios
fabris obsoletos. Essa importao ocorria porque a elite ludovicense aps longas
temporadas na Europa desejava reproduzir em terras gonalvinas389 os
costumes europeus. Um exemplo desse moderno pautado numa noo de
progresso tecnolgico configura-se tambm nas exposies que ocorriam em So
Lus, as quais imitavam as exposies universais sucedidas na Europa.
389
Referncia a viso positiva sobre a cidade presente nos poemas de Gonalves Dias.
390
BARROS, Valdenira. Imagens do moderno em So Lus, 2001, p.77.
185
Os ditos valores tradicionais estavam caucionados num modelo de
civilizao francesa. Na abertura de uma dessas exposies, em 1912, havia
bandas de msica tocando o nosso Hino Nacional, a Marselhesa e o Hino
Maranhense, alm de bandeiras da Frana localizadas ao lado de todos os
produtos expostos.391 A peregrinao ao fetiche da mercadoria392 perpetuava-se
por meio dessas exposies. Os valores tradicionais edificavam-se, portanto, na
configurao da noo de formao da cidade aliada presena francesa no
Estado nos anos de 1612 a 1615. O fato de So Lus ter sido fundada por
franceses fazia com que a elite daquele Estado reavivasse os laos com aquele
passado. O orgulho de ser a nica capital brasileira fundada por franceses fez com
que no houvesse uma crtica do passado, mas sim a construo de uma
modernidade que o referenciava com freqncia e, se naquele contexto histrico
Paris era a capital do sculo XIX, smbolo de modernidade, So Lus glorifica seu
passado e procurava imitar os hbitos de seus fundadores. O padre Alcides
dObigny em visita ao Maranho, em meados do sculo XIX proferia:
391
Cf. Idem, Ibidem, p.77.
392
BENJAMIN, Walter. 1995, p.35.
393
DORBIGNY apud BARROS,V. Imagens do moderno em So Lus, 2001, p.23.
186
decadentistas do final do sculo XIX, preservado pelas geraes seguintes e
cristalizado na memria coletiva da cidade. O mito persiste, criando assim um
distanciamento da prpria realidade local e no Poema sujo este mito
questionado como pode ser visto no fragmento:
394
GULLAR, F. Poema sujo. In: ______. Toda poesia, 1991, p.247.
395
BARROS, V. Imagens do moderno em So Lus, 2001, pp. 26-30.
187
No era uma casa: uma casa
tem cadeiras mesas poltronas
Um templo
seria? mas
sem nichos sem altar sem santos?
Que era aquilo-uma-usina?
onde a tarde se fazia
com fascas de esmeril calor de forja
onde a tarde era outra
tarde
que nada tinha daquela
que eu via agora distante 396
Ou ainda:
por sobre ns
um urubu talvez
deriva na direo da Camboa
leve sobre o vasto capinzal e para alm da estrada ferro
por cima das palhoas na lama
e l detrs a fbrica
assentada numa plataforma fumegante de cinza e detritos
de algodo397
396
GULLAR, Ferreira. O poema sujo. In: ______. Toda poesia. 1991, pp. 228-229.
397
Idem, Ibidem, p. 236.
188
de fios
nem o fio
do bafio
envenenado da lama
que de feder tantos anos
j parte daquela gente
(como
o cheiro de um bicho pode ser parte
de outro bicho)
e a tal ponto
que nenhum deles consegue
lembrar flor alguma que no tenha
aquele azedo de lama
(e no obstante
se amam)398
Ao se referir ao rio Anil que corta a cidade e desgua no mar, o poeta descreve:
398
Idem, Ibidem, p. 244.
399
Idem, Ibidem, pp. 247-248.
189
operrios traduzida como a misria dos homens escravos de outros. O repto
imposto ao olhar do leitor inferir que o ato de lembrar por si s j um ato de
transgresso dentro de um processo de modernizao complexa e contraditria.
Com um olhar de acurada sensibilidade, o poeta se debrua sobre camadas
aparentemente invisveis de um passado do operrio nas dcadas de 30 e 40 na
cidade de So Lus.
A ideia de modernizao fincada numa noo de progresso contnuo
em contraposio dura realidade social desses operrios est presente nas
imagens construdas por Gullar. Os operrios dessa indstria txtil no recebiam
nem mesmo um salrio mnimo, muito menos as condies legais de trabalho. No
livro Memrias de Velhos. Depoimentos: uma contribuio memria oral da
cultura popular maranhense (1997), os relatos de inmeros operrios so
apresentados demonstrando que o trabalho fabril mantinha vestgios de um
regime de trabalho escravocrata. Maria Lcia de Oliveira lembra com horror os
anos de trabalho nestas fbricas:
400
SECRETARIA DE CULTURA DO MARANHO, 1997, p.176.
190
(a filha do barbeiro
Fugiu com o filho
Do carteiro
Um mulato
Que trabalhava nos Correios.
As vizinhas cochichavam:
se tivesse fugido
Com um branco
Ao menos ia poder casar)401
E ainda:
401
GULLAR, Ferreira. O poema sujo. In: ______. Toda poesia. 1991, p. 251.
402
Idem, Ibidem, p. 251.
191
o tempo se torna um fenmeno
meramente qumico
que no perturba
(antes
propicia)
o sono.403
403
Idem, Ibidem, p. 240
404
TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. 1998, p. 65.
405
Idem, Ibidem, p. 66.
192
meio atravs do qual ele se materializa na prtica
cotidiana.406
406
Idem, Ibidem, p.66.
407
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa,1994, p.76.
408
GULLAR, Ferreira. O poema sujo. In: ______. Toda poesia. 1991, pp. 237-238.
193
Na noite escura, a horas mortas, ouve-se o barulho das
rodas da carruagem de Donana Jansen assombrando
os notvagos. um carro preto, um coche antigo, de
rodas de ferro, puxado por dois cavalos tambm
negros, os olhos de fogo, botando fumaa das
narinas...Horrvel! O abantesma avana pelas ruas
estreitas da cidade, trazendo no bojo a figura de uma
mulher idosa, de palidez funrea, empertigada no
banco, inteiriada no seu vestido preto, mas que,
apesar de morta, continua a gritar ao cocheiro:
Avante! Avante!.409
409
LIMA, Carlos. Carruagem de Donana Jansen. In: MORAES, Jomar.(org.). Ana Jansen: rainha
do Maranho, 2007, p.81.
410
Idem, Ibidem, p.79.
411
MATOS, Olgria. Aufklrung na metrpole: Paris e a via lctea. In: BENJAMIN, W. Passagens,
2006, p.1123.
412
Idem, Ibidem, p.1129.
194
A maneira de narrar inscrita no Poema Sujo traz em si a prpria ideia de
modernidade. O leitor convidado a percorrer esses lugares, esses espaos, essa
cidade na medida em que a poesia moderna permite essa configurao de
imagens, uma descrio objetiva das coisas. Movido pela conscincia de ser
foragido e sobrevivente, o poeta como sujeito histrico experimenta a tragdia da
vida, a perda de sentido, e, assim, por meio da rememorao percorre as ruas de
So Lus, transgredindo e dando voz a um perodo histrico ausente de memrias,
ou ainda, dando voz a um pas carente de outros pontos de vista de sua histria
contempornea.
O estado de nimo brota em meio a um percurso feito pelas ruas de
So Lus, aqui a memria um ato de sobrevivncia, a voz rompendo o silncio
no momento de banimento forado do seu prprio pas, frente aos acontecimentos
polticos daquela poca. A cidade da infncia o cenrio dessa luta incessante na
busca pela sntese de sua existncia diante de uma modernidade fragmentada.
Pensar a cidade , sem dvida, perceber o processo civilizador da
modernidade413, considerando que nesse lugar que a civilizao moderna vai
sendo gerada. O sculo XX est marcado pela busca da compreenso do
moderno, e a cidade um dos lugares mais fecundos para a realizao dessa
investigao. No raro encontramos no Poema Sujo passagens nas quais a
cidade a personagem principal, cenrio, par excellence, do desenrolar da
experincia moderna.
(quando de fato
em todas as torneiras da cidade
a manh est prestes a jorrar)
Menos, claro,
nas palafitas da Baixinha, margem
da estrada de ferro,
onde no h gua encanada:
ali
o claro contido sob a noite
no
como na cidade
413
Ver ELIAS, Norbert. O processo civilizador, 1994.
195
o punho fechado da gua dentro dos canos:
o punho
da vida
fechada dentro da lama
J por a se v
que a noite no a mesma
em todos os pontos da cidade;
a noite
no tem na Baixinha
a mesma imobilidade
porque a luz da lamparina
no hipnotiza as coisas
como a eletricidade
hipnotiza:
embora o tempo ali no escorra,
no flua: bruxuleia
se debate
numa gaiola de sombras414
Ou mesmo:
Da porque na Baixinha
h duas noites metidas uma na outra: a noite
sub-urbana (sem gua
encanada) que se dissipa com o sol
e a noite sub-humana
da lama
que fica
ao longe do dia
estendida
como graxa
por quilmetros de mangue
a noite alta
do sono (quando
os operrios sonham)
e a noite baixa
do lodo embaixo
da casa.415
Ou ainda:
414
GULLAR, Ferreira. O poema sujo. In: ______. Toda poesia. 1991, pp. 241-242.
415
Idem, Ibidem, p.243.
196
- no quarto de um sobrado
na Rua das Hortas, a me
passando roupa a ferro
fazendo vinagre
- enquanto o bonde Gonalves Dias
descia a Rua Rio Branco
rumo Praa dos Remdios e outros
bondes desciam a Rua da Paz
rumo praa Joo Lisboa
e ainda outros rumavam
na direo da Fabril, Apeadouro,
Jordoa
(esse era o bonde do Anil
que nos levava
para o banho no Rio Azul416
416
Idem, Ibidem, p.245
197
Baixinha, que no pode mandar seus filhos para estudar na Europa ou nas
principais capitais do pas, e tudo isso numa s tarde, que condensa toda essa
contradio silenciada.
A histria oficial est permeada de contradies e infere um modo de
compreender o desenvolvimento econmico que est entranhado no pensamento
de diversos autores do sculo XIX e que vigente at hoje, apesar das inmeras
crticas realizadas. Torna-se relevante, portanto, pensar o perodo histrico no
qual as recordaes do poeta se voltam. Esse um momento histrico marcado
por um clima generalizado de confiana no progresso.
Vale lembrar, entretanto, que somente a partir da segunda metade do
sculo XVII, quando desaparece o elemento conciliador entre a f crist e o
racionalismo cartesiano, que a noo de progresso comea a abrir caminhos para
efetivamente participar de um grande debate filosfico, literrio e artstico,417 no
qual o progresso cientfico o ponto crucial. Essa noo acaba sendo
secularizada no sculo XVIII, na medida em que passa a corresponder ideia
iluminista de progresso, marcada pelo contexto das transformaes econmicas e
sociais desse perodo. A noo iluminista de progresso est intrinsecamente
ligada concepo iluminista de razo. Na qual, o progresso precisamente o
progresso da civilizao e que o seu fundamento est no desenvolvimento da
razo e na aceitao da mesma por parte do homem como guia do seu
comportamento.418 Destarte, tal noo apresenta-se como a possibilidade de
realizao da histria da humanidade. Histria que se realiza num sentido
progressivo e de melhoramento constante, cuja comunho entre progresso e
razo implicaria num estado de bem-estar geral. Essa maneira de compreender o
progresso se propaga nos sculos posteriores.
A noo de progresso formulada pelos pensadores iluministas do
sculo XVIII atingiu seu pice no sculo XIX, em funo da consolidao do
capitalismo. Essa noo pode ser definida como sendo composta por concepes
de que a humanidade se desenvolve de forma lenta, gradual e continuamente, por
417
LE GOFF. Histria e memria, 1990, p.248.
418
BOBBIO, N. Dicionrio de poltica,1994, pp. 1010-1011.
198
etapas, sendo cada etapa superior que a antecede. O passado deve ser
valorizado como genitor do presente e possvel a previso de um futuro
inexoravelmente melhor. O avano do inferior para o superior uma lei, o que
permite inferir que a civilizao ocidental superior s demais e, assim, deve-se
valorizar positivamente o desenvolvimento econmico e tecnolgico, bem como a
cincia e a razo ocidental, e assim o fez a elite ludivicense do final do sculo XIX
e meados do sculo XX.
O sculo XIX foi embalado pela f no progresso que se faz presente
nas mais diversas correntes de pensamento e funciona tambm como um dos
motores para o desenvolvimento do capitalismo.
Encontram-se fragmentos desta percepo no Fausto de Goethe. H
a, o arqutipo do indivduo crente no progresso, do homem realizador do
progresso. Daquele que, diante das foras da natureza, no se conforma em
deix-las sem que estas se submetam aos seus interesses e necessidades. Todos
os esforos e sacrifcios, sem medida, so tributos cobrados pelo progresso para
sua plena realizao.
419
GOETHE, J. Fausto,1987, p. 421.
420
Ver BERMAN, M. Tudo que slido desmancha no ar: a aventura da modernidade, 1986.
199
A crtica realizada por esses autores diz respeito aos rumos tomados pelo
esclarecimento que se transformou num conhecimento positivista e mitificador.
Nessa direo, pensar o progresso implicaria, portanto, a compreenso daquilo
que est sendo posto enquanto progresso, pensar de forma crtica determinadas
verdades discursivas que se impem como perspectiva nica.
A partir dessa acepo, pode-se destacar a crtica ao progresso feita
por Walter Benjamin, na qual o autor a realiza a partir do uso de um quadro de
Paul Klee, elaborando uma alegoria para pensar tal conceito.
421
BENJAMIN, W. Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura,
1994, p. 226.
200
fascista, Benjamin demonstra que a f ingnua nesta noo foi um dos elementos
responsveis pela gestao de uma concepo de histria que deixou os
trabalhadores alemes desarmados para enfrentar o embate com as foras do
totalitarismo. Para ele, relevante, portanto, no se pensar o progresso e o bem
estar social como elementos indissociveis, bem como questionar que o primeiro
gera, necessariamente, o segundo.
Acreditar no progresso, segundo Benjamin, significa sustentar a ideia
de que a histria transcorre num tempo vazio e homogneo que vai sendo
realizado linearmente pelos fatos, numa relao causal. Essa concepo de
histria totalmente insustentvel para esse autor.
Na narrativa potica de Gullar a histria no transcorre de forma linear,
vazia. O Poema Sujo uma experincia temporal que a partir de uma digresso,
digamos benjaminiana, o poeta empreende uma flnerie pela cidade da infncia,
mas a partir do presente que pressente o perigo da morte.
Neste poema, Gullar destaca as diferentes velocidades presentes na
movimentao da cidade, e cita a contradio entre a velocidade das ruas, do
trfego intenso, a circulao do dinheiro e das mercadorias em detrimento da
velocidade da cozinha, da velocidade do vento no quintal. possvel pensar
estas referncias tendo em vista as consideraes de Simmel422, ao apontar para
o conflito existente entre o indivduo e a sociedade, entre o ritmo interior desse
indivduo e o ritmo exterior, referente cidade a sua volta. Para o filsofo, o
pleno desenvolvimento da economia monetria acarreta a acelerao da
velocidade da vida e a intensificao do ritmo em todas as suas manifestaes.
No trecho, Sem falar nos mortos que voam para trs423, o poeta que
parece influenciado por uma leitura benjamiana, por suposto, ressuscita de forma
crtica o discurso de um passado que retomado no presente e que ainda hoje
mantm um discurso oficial pautado naquele passado mtico, na valorizao da
concepo da Atenas brasileira. possvel dizer que o trecho anuncia o
movimento dos que voam para trs, que se recusam a olhar a realidade objetiva
422
Cf. SIMMEL, G. A metrpole e a vida mental. IN: VELHO, Octvio G. (org.). O fenmeno
urbano, 1973.
423
GULLAR, F. Poema sujo. In:______. Toda poesia, 1991.
201
da cidade. A prpria inexistncia da velocidade no sentido de mudana, na
medida em que os vivos vivem a experincia mtica dos seus mortos afigura-se
como um bice ao prprio desenvolvimento ao isolamento esttico literrio da
cidade naqueles anos 70, momento em que o poeta constri seu olhar sobre os
impasses da cidade.
Outro poema que evoca a cidade natal denomina-se Uma fotografia
area, presente no livro Dentro da noite veloz e, nele, encontra-se uma memria
da sua cidade natal. Essa presena constante da terra primeira nos faz retomar as
palavras de Edward Said ao afirmar que o exlio baseia-se na existncia do amor
pela terra natal e nos laos que nos ligam a ela o que verdade para todo exlio
no a perda da ptria e do amor ptria, mas que a perda inerente prpria
existncia de ambos.424
So Lus, Macondo, como denomina o poeta, aparece por meio de uma
fotografia area, na qual os espaos domsticos, o espao urbano, o passado
bem como o presente personificado em palavras como meu rosto/agora
sobrevoa retomam a dialtica interna presente no processo da rememorao, as
lembranas aqui fazem os tempos se entrelaarem como um mecanismo de
defesa, ou mesmo, de resistncia diante dos impasses proporcionados pelo exlio.
Torna-se imperioso destacar alguns fragmentos deste poema para
concluir que So Lus reacende as lembranas do poeta e como esta mesma
cidade se coloca como matriz de toda sua fatura potica, considerando o
amadurecimento esttico da potica de Gullar.
424
SAID, Edward. Reflexes sobre o exlio. In: ______. Reflexes sobre o exlio e outros ensaios,
2003, p.59.
202
eu devo ter ouvido
aquela tarde
em meu quanto?
na sala? No terrao
ao lado do quintal?
o avio passar sobre a cidade
geograficamente
desdobrada
em si mesma
e escondida
debaixo dos telhados l embaixo sob
as folhas
[...]
eu devo ter ouvido
seu barulho atolou-se no tijuco
da Camboa na febre
do Alagado resvalou
nas platibandas sujas
nas paredes de loua
penetrou nos quartos entre redes
fedendo a gente
entre retratos
nos espelhos
onde a tarde danava iluminada
Seu barulho
era tambm a tarde (um avio) que passava
ali
como eu
passava margem do Bacanga
em So Lus do Maranho
no norte
do Brasil
sob as nuvens
[...]
203
(no papel)425
[...]
Fala
talvez um rato
que nos ouvia de sob as tbuas
e conosco aprendeu a mentir
e amar
(no nosso desamparo de So Lus do Maranho
na Camboa
dentro do sistema solar
entre constelaes que da janela vamos
num relance)
Fala
talvez o rato morto fedendo at secar
E ningum mais?
E o vero? e as chuvas
torrenciais? e a classe
operria? as poucas
festas de aniversrio
no falam?
A rede suja, a bilha
na janela, o girassol
no saguo chamando contra o muro
as formigas
no cimento da cozinha
Bizuza
morta
Maria Lcia, Adi, Papai
mortos
no falam427
425
GULLAR, F. Dentro da noite veloz, In.______. Toda poesia,1991, pp.199-202.
426
Idem, Ibidem, pp.76-78
427
Idem, Ibidem, pp. 66-70.
204
espao ao seu redor que lhe retira a sociabilidade. O que fazer com o sentimento
de frustrao, de derrota, da dor e do medo da priso e, possivelmente, da morte?
A resposta encontrada por ele se materializou na escrita que evoca a casa, as
memrias aqui surgem como um refgio seguro, mas conscientemente, crtico.
Aqui, o poeta enfrenta o presente trazendo o passado para este embate, ou
mesmo, combate.
Voltando ao Poema sujo, o poeta termina suas linhas refletindo como a
cidade est nele e vice-versa num movimento de dialtica e lirismo que pode ser
lido no seguinte fragmento:
428
GULLAR, F. Poema sujo. In: ______.Toda poesia, 1991, pp.273-274.
205
salta no presente. Nesse sentido, a dialtica interna do poema construda a
partir dos aspectos da prpria vida. A construo desse fragmento se d a partir
da leitura realizada pelo poeta sobre Hegel, considerando que no ramo da rvore
continha o particular e o universal.429 O universal e o particular esto presentes
na medida em que escreve eu estou na cidade e a cidade est em mim. A cidade
da infncia volta nesse processo de memria porque a infncia constituinte do
sujeito. E, no momento do perigo as referncias primeiras voltam com muita fora.
As imagens poticas transcorrem evidenciando os laos entre o indivduo e a
histria. Aqui, os movimentos de conscincia, traduzem-se em linguagem430 e,
nesse sentido,
429
GULLAR, F. Poema sujo lido. DVD. Instituto Moreira Sales, 2010.
430
Cf. VILLAA, Alcides. Gullar: a luz e seus avessos. In: Cadernos de Literatura Brasileira, 1998,
p. 90.
431
VILLAA, A. A poesia de Ferreira Gullar, 1984, p.159.
432
CAMENETZKI, Eleonora Ziller. O poeta, o poema e a sinfonia.In: Revista Poesia Sempre.
2004, p.47.
206
escrever sobre sua cidade natal, rememorar sua infncia nos becos e esquinas de
velha So Lus um ato de resistncia diante da dor da perseguio, do
desamparo e do desterro. O Poema sujo , portanto, nesse sentido, a expresso
mxima da crise e da opresso vivida pelo seu autor, mas tambm o momento
de libertao total de sua poesia e do prprio poeta. O carter trgico da
experincia humana vem tona na sua mais estruturante linguagem artstica e
literria.
A cidade da infncia lembrada pelos perfumes de jasmim, mas
tambm como vtima do desenvolvimento econmico como herana tanto
autoritria quanto traumtica de um processo de colonizao escravocrata, alm
das implicaes da ditadura militar com suas prticas autoritrias em favor de uma
elite econmica. O perder-se pelas ruas de So Lus por meio das lembranas lhe
permite indagaes crticas feitas no agora da rememorao e, assim,
compreender melhor aquela cidade. A cidade assim como outros elementos, tais
como o pai e o corpo, tambm um lugar de identidade e de resistncia poltica
diante da sensao de vazio e abandono de sua prpria identidade. Nesse
sentido, ao nomear a cidade, isto lhe confere existncia no seu degredo.
Falar da cidade no perd-la, assim sendo, no perder-se diante do
flagelo impelido pelo exlio. A cidade para o poeta no se apresenta como um
labirinto, ao contrrio, ela uma sada encontrada, um refgio, a casa, um nome.
Aqui, o homem, a cidade e as coisas so palavras que se recuperam dentro da
linguagem em busca de uma outra realidade que irrompe com aquela imposta ao
poeta.
Durante os meses nos quais o poeta ficou mergulhando escrevendo
este poema, ele entrou num estado de imerso que lhe permitiu criar outra ordem,
diferente daquela que estava ao seu redor em Buenos Aires. Em outras palavras,
a ordem poltica foi substituda pela ordem potica, como nas palavras dele, a
vida pouca, a vida no basta433 da a necessidade da ruptura da ordem por
meio da poesia.
433
GULLAR, F. Poema sujo lido. DVD. Instituto Moreira Sales, 2010.
207
CONSIDERAES FINAIS
Por meio dos itinerrios poticos percorridos por Gullar, reitera-se que a
vida pessoal, social e poltica do poeta esto imbricadas e elas se entrecruzam em
sua fatura potica e aqui sua poesia foi o ponto de partida para as anlises de
uma memria do exlio que alude histria recente da ditadura militar brasileira.
Ao ler os primeiros poemas do autor at aqueles escritos no exlio, pode-se ver um
processo de transformao empreendido em sua fatura potica essencialmente
como consequncia da experincia do desterro.
O poeta deixou a sua terra natal, sua ilha e partiu para o Rio de Janeiro
para romper com o isolamento em que se encontrava. Com o livro A Luta corporal
o poeta se inseriu na cena da paisagem literria nacional e, nele, pode-se
perceber uma luta que implicava por um lado a poesia como expresso de sua
prpria existncia e, por outro, uma necessidade de responder s indagaes
cingidas pela vida. Neste livro, encontra-se, portanto, uma busca da prpria
linguagem do poeta e que tambm continua sendo realizada em Vil Metal. Neste
ltimo, possvel perceber uma articulao temporal permeada pela vida e pela
linguagem do poeta.
Nos primeiros livros como A Luta Corporal e Vil Metal parece haver
como disse Joo Luiz Lafet, uma
434
LAFET, Joo Luiz. Traduzir-se: ensaio sobre a poesia de Ferreira Gullar. In: ______. A
dimenso da noite e outros ensaios, 2004, p.199.
209
proporcionavam nos principais centros urbanos do pas. Abandonando a
perspectiva de considerar a linguagem como um fim em si mesma, Gullar passou
a realizar uma poesia dita neoconcreta rompendo com o movimento concreto de
ento. O concretismo e o neoconcretismo permitiram ao poeta a construo de
uma potica de vanguarda que foi bastante aplaudida na cena da paisagem
nacional e, mesmo que tenha durado pouco tempo na experincia do poeta, foi
uma fase significativa para uma concepo de histria da vanguarda brasileira.
Gullar, no final dos anos 50 e incio dos anos 60, ao ler Karl Marx e vivenciar a
agitao poltica da poca, vislumbrou num projeto revolucionrio a possibilidade
de usar a poesia como instrumento de luta revolucionria. Nesta fase utilizou os
poemas de cordel e os poemas que lhe eram demandados pelo CPC como
instrumento poltico, mesmo que isso tenha lhe custado o empobrecimento da sua
potica.
Os itinerrios percorridos por Gullar o fazem desembocar naquilo que
Alfredo Bosi, no livro Histria concisa da literatura brasileira, chama de poesia
social, opo participante, ou ainda, poesia voltada para as tenses sociais,
referindo-se poesia construda nos primeiros na dcada de 60 e que para muitos
foi entendida como poesia populista, na medida em que ela lidava com imagens
idealizadas vinculadas classe operria e ideia de revoluo. Essa poesia ao
falar da realidade de forma a utilizar uma ideologia que pregava a ao distanciou-
se de um rigor potico. Entretanto, entre os anos de 64 a 69 quando o poeta
participava do Grupo Opinio, passou a se preocupar novamente com a questo
de um rigor esttico associado s indagaes polticas. Os escritos de Gullar na
dcada de 60 associados militncia poltica o colocaram na mira do Estado e,
assim, passou a ser perseguido pela ditadura militar. Com o AI-5, fase de maior
endurecimento do Estado contra as esquerdas, o poeta foi obrigado a ficar na
condio de clandestino dentro de seu prprio pas e, diante do perigo da priso,
da tortura e, possivelmente, da morte como era comum acontecer aos
revolucionrios presos naquela poca, viu-se obrigado a rumar para o estrangeiro
assumindo, assim, a condio de exilado.
210
Justamente os poemas escritos em territrio estrangeiro e aqueles
construdos no seu retorno para o Brasil, mas que tratam do desterro que foram
tomados como objeto da anlise aqui empreendida e o que se pode perceber
que a poesia participante cedeu lugar a outro tipo de poesia, quela que foi sendo
construda diante do desenraizamento e das peculiaridades que constituem a
experincia do exlio. Diante da derrota poltica e, convivendo com as agruras do
desterro, a poesia de Gullar passou a ser um lugar de refgio e de resistncia
poltica. E, nesse momento, em que os traumas e as dores dessa experincia
parecem quase insuportveis, tambm o momento no qual ele recupera a lrica e
amadurece sua linguagem potica.
A complexidade potica dos poemas escritos nesse perodo traz uma
memria de um tempo marcado pelo horror das ditaduras militares que ocorreram
na Amrica Latina e, especificamente, no Brasil. Considerar todos os dramas e os
traumas dessa experincia e perceber como tal evento atravessou sua vida,
considerando tambm as implicaes desse processo para sua famlia, nos coloca
diante de uma poesia que pode ser lida como um registro rigoroso e relevante
para que lembremos a necessidade de uma reconstruo da memria desse
perodo nefasto pelo qual passaram inmeros brasileiros nesse convvio com um
Estado autoritrio de aes violentas e anticonstitucionais. Ao realizar uma
anlise destes poemas, considerando o trabalho de memria ali empreendido pelo
poeta, foi relevante no perder de vista que o ato de recordar implica uma
reconstruo do passado que vai sendo realizada na medida em que ele
reescrito no tempo presente.
Durante o Golpe militar no Brasil, inmeras pessoas foram obrigadas a
deixar o pas e os traumas deixados por essa experincia so reais e necessitam
ser superados. Isso pode ser visto nas palavras do prprio do poeta:
211
achando que deveria ficar no exlio, mesmo aqueles
que conseguiram construir um tipo de vida suportvel,
os que estavam com suas famlias e conseguiram
trabalhar com uma remunerao suficiente para manter
a famlia e educar seus filhos. Mas estas pessoas
manifestavam descontentamento permanente e at
evitam de falar sobre essas coisas. Eu, por exemplo,
estava sempre a manifestar meu descontentamento,
quando eu me chateava e entrava em estado de
depresso me manifestava claramente, e em nenhum
momento me iludia, procurando criar a iluso de que
tudo estava bem. Sempre que a circunstncia tornava a
coisa evidente, o cara abria a boca e dizia tudo o que
estava sentindo. Eu me lembro de que certa vez um
exilado, que sempre se dizia contente, no dia em que
eu decidi sair do Peru para Argentina chamou-me para
uma conversa e manifestou todo o seu desespero. O
exlio foi muito duro para todo mundo.435
435
FELCIO, Brasigis. Ferreira Gular: em luta corporal com a tirania. Jornal O Popular, 07 set. 80,
p. 26.
436
Cf. ROLLEMBERG, Denise. Exlio: entre razes e radares, 1999, p. 50.
212
como desaparecidos polticos. Inmeros so os nomes que personificam a lista
dos desaparecidos polticos no Brasil.437 Segundo Janana Teles,
437
Ver COMISSO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS POLTICOS. Direito
memria e verdade. Braslia: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007. No Dossi dos
Mortos e Desaparecidos Polticos a partir de 1964, realizado com o apoio da Comisso de
Familiares de Mortos e Desaparecidos Polticos, do Instituto de Estudos da Violncia do Estado
IEVE e do Grupo Tortura Nunca Mais RJ e PE 1964, com prefcio de Dom Paulo Evaristo Arns e
publicado pela Imprensa Oficial do Estado, encontra-se uma relao de nomes dos desaparecidos
polticos no Brasil, bem como o nome daqueles que morreram no exlio.
438
TELES, Janana de A. Entre o luto e a melancolia: a luta dos familiares de mortos e
desaparecidos polticos no Brasil. In: SANTOS, Ceclia M.; TELES, Edson; ______. (orgs.).
Desarquivando a ditadura: memria e justia no Brasil, V.I, 2009, p. 151-152.
213
ditado por uma necessidade pessoal como tambm de ordem moral - e os limites
da prpria linguagem para descrever tais eventos.439
As narrativas de Ferreira Gullar escritas no exlio foram tomadas aqui
como um testemunho, ele foi aquele que viu com os prprios olhos, uma
testemunha direta, como diria Gagnebin.440 Pois, ao narrar, por exemplo, em Rabo
de Foguete sua experincia vivida no exlio, o poeta realizou um trabalho de
memria no qual h uma dimenso poltica na medida em que seu testemunho
rompe com uma poltica do esquecimento, ou mesmo, com o emudecimento de
um perodo da histria recente brasileira.
Atualmente no Brasil, diferente de outros pases da America Latina,
parece existir ainda um determinado silncio sobre o tema da ditadura militar. No
obstante os estudos cientficos, em boa parte, se restringem ao campo acadmico,
o cinema trouxe sua contribuio com alguns filmes que discutem essa
problemtica a partir de diferentes aspectos, a literatura tambm se coloca ainda
como um campo profcuo para inmeras anlises, no entanto, uma memria
coletiva sobre este tema esbarra numa poltica do esquecimento. E aquilo que
Mrcio Seligmann-Silva denomina como teor testemunhal est presente em
muitas obras dentro do Brasil, na literatura, na msica e na pintura. So muitas as
vozes que precisam narrar o que viveram, o que sentiram e o que sofreram para
que no percamos de vista a compreenso de que a memria um lugar de poder
como nos lembra Foucault e, nesse sentido, tais narrativas trazem a possibilidade
de sanar as feridas tanto no sentido pessoal quanto social que foram abertas pela
ditadura militar brasileira. Lembrar e narrar, construes feitas do tempo do agora,
permitem aos sujeitos sanar seus traumas, mas tambm evitar que novas
catstrofes sejam realizadas.
A violncia que foi instaurada no Brasil na poca da ditadura militar
precisa ser analisada no tempo presente, porque as sequelas desse evento so
inmeras. Assim, os discursos seriam obrigatoriamente avaliados e,
consequentemente, no se poderia mais justificar determinadas prticas
439
SELIGMANN-SILVA, Mrcio. Escrituras da histria e da memria. In: ______. (org.) Palavra e
imagem: memria e escritura, 2006, p. 212.
440
GAGNEBIN, J. M. Memria, histria, testemunho, 2004, p.93.
214
realizadas naquele perodo, como foi o caso, por exemplo, da tortura, que sempre
foi justificada sob a alegao de que era aplicada aos suspeitos de subverso
atribuindo, nesse sentido, s vtimas a responsabilidade deste ato. Nessa direo,
necessrio que os debates e discursos sejam refletidos de forma mais ampla
para que em nenhum momento do futuro um regime de exceo seja colocado
como possibilidade. Faz-se necessrio tambm que as punies s pessoas
responsveis por este evento sejam efetuadas e, nesse sentido, no se trata de
vingana ou ressentimento - como querem alguns dos envolvidos neste processo -
mas de deixar transcorrer uma histria que insiste em ser negada ou
desconsiderada. E o Estado brasileiro, as Foras Armadas e a polcia, enquanto
detentores e centralizadores da violncia e do poder - como diria Norbert Elias em
o Processo civilizador - devem atuar de maneira a materializar a referida justia,
deixando de lado o conservadorismo poltico de seus integrantes e permitindo ao
pas realizar, de maneira coletiva, o trabalho de luto em relao ditadura militar.
215
OBRA DE FERREIRA GULLAR441
Poesia
Um pouco acima do cho 1949
A luta corporal 1954
Poemas 1958
Joo Boa-Morte, cabra marcado pra morrer (cordel) 1962
Quem matou Aparecida? (cordel) 1962
Histria de um valente (cordel) - 1966
A luta corporal e novos poemas 1966
Por voc por mim 1968
Dentro da noite veloz 1975
Poema sujo 1976
Na vertigem do dia 1980
Crime na flora ou Ordem e progresso 1986
Barulhos 1987
O formigueiro 1991
Muitas vozes 1999
Um gato chamado gatinho 2002 (infantil)
O rei que mora no mar 2001 (infantil)
Em alguma parte alguma 2010
Crnicas
A estranha vida banal 1989
O menino e o arco-ris 2001
As melhores crnicas de Ferreira Gullar 2005
Contos
Gamao 1996
Cidades inventadas 1997
Touro encantado 2003
Memrias
Rabo de foguete 1998
Ensaios
Teoria do no-objeto 1959
Cultura posta em questo 1965
Vanguarda e subdesenvolvimento 1969
Augusto dos Anjos ou morte e vida nordestina 1977
Uma luz do cho 1978
Sobre arte 1983
Etapas da arte contempornea: do cubismo arte neoconcreta 1985
441
A data ao lado das obras refere-se ao ano de sua publicao.
217
Indagaes de hoje 1989
Argumentao contra a morte da arte 1993
O grupo Frente e a reao neoconcreta 1998
Cultura posta em questo/Vanguarda e subdesenvolvimento 2002
Relmpagos 2003
Teatro
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come (com Oduvaldo Vianna Filho) 1966
A sada, Onde fica a sada? (com Antnio Carlos da Fontoura e Armando Costa,
coleo espetculo) 1967
Dr. Getlio, sua vida e sua glria (com Dias Gomes) 1968
Um rubi no umbigo 1978
Televiso
Araponga (com Dias Gomes e Lauro Csar Muniz) 1990
As noivas de Copacabana ( com Dias Gomes e Marclio Moraes) - 1992
Tradues da Literatura
Fbulas, de La Fontaine 1997
As mil e uma noites 2000
Don Quixote de la Mancha, de Cervantes 2002
Tradues do Teatro
Urubu rei, de Alfred Jarry 1972
Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand 1985
Le pays des lphants, de Louis-Charles 1989
Tradues de Ensaios
Rembrandt, de Jean Genet 2002
Van Gogh, de Antonin Artaud 2003
O paraso de Czanne, de Philippe Sollers 2004
Antologias
Antologia potica 1977
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