2011 AnaPaulaIervolino VOrig
2011 AnaPaulaIervolino VOrig
2011 AnaPaulaIervolino VOrig
São Paulo
2011
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
Bolsista FAPESP
São Paulo
2011
Exemplar Original
TERMO DE APROVAÇÃO
_____________________________________
_____________________________________
AGRADECIMENTOS
ABSTRACT
When Brazil participated in the Second World War, the Brazilian immigrant communities that
were related to the Axis Power suffered persecutions by governmental authorities as well as
attacks made by the press and part of the population. In the German communities there were
ideals based on Pan-Germanism including the use of German language and customs; feelings
of belonging to Germany were common among its inhabitants. Beside other members of the
Brazilian Expeditionary Force (FEB), people from these communities were also drafted. The
research, based on different sources – especially oral and written testimonies – focuses on
identity questions about these combatants.
Keywords: FEB; Brazilian Expeditionary Force; German Brazilians; national identity, Second
World War.
SUMÁRIO
1
Apud BRASIL. Ministério das Relações Exteriores, 1944, p. 53.
2
Decreto-Lei N. 1.561, de 2 de setembro de 1939, assinado pelo Presidente da República. Apud BRASIL.
Ministério das Relações Exteriores, 1944, p. 69.
3
Ao longo do texto são mencionados às vezes simplesmente como teuto-brasileiros da FEB ou expedicionários –
ou combatentes – descendentes de alemães.
4
Cf. Carone (1977).
2
5
Não houve qualquer reação séria da Liga das Nações, instituição supranacional criada pelos países vencedores
da Primeira Grande Guerra (1914-1918). As atenções das grandes potências liberais no período entreguerras
voltavam-se, entre outras questões, à implantação de medidas para enfraquecer a União Soviética.
6
Robert Paxton (2007, p. 27-28) comenta que apelos da doutrina fascista, que se utilizavam amplamente de
imagens vinculadas ao Império Romano, estimulavam emoções agressivas que, até então, a Europa só havia
testemunhado em situações de guerra ou de revolução social; no mesmo sentido, destaca Rémond (2002, p.
105) a exaltação da aventura, [que] predispõe os espíritos a desejar a guerra, que o próprio fascismo prepara,
empreendendo um esforço militar considerável. Tratando especificamente do nazismo, Hannah Arendt (2000,
p. 361) destaca a relevância da guerra para a doutrina que se define como um movimento, com objetivos
expansionistas. Nesse mesmo sentido, explica Rémond (2002, p. 105) que para o fascismo a guerra é uma
necessidade doutrinal, passional, sentimental e, por fim, de política interna, acrescentando: [...] Não se pode
impunemente mobilizar as paixões dos homens sem lhes propor, ao cabo de alguns anos, um objetivo que lhes
coroe o esforço. As conquistas, as anexações, as vitórias constituem a justificação indispensável das coações
impostas e dos esforços exigidos (RÉMOND, 2002, p. 105).
3
antes da eclosão da guerra. Desde a ascensão do nazismo, em 1933, o governo de Adolf Hitler
equipava o país com um numeroso e potente exército, desobedecendo a uma série de
restrições impostas pelos tratados firmados após 1918. Manifestações da política
expansionista começaram em 1935, com a anexação da região do Sarre, perdida nos mesmos
acordos. Em 1936, a Renânia foi remilitarizada e, em 1938, o restante da Áustria foi anexado.
No mesmo ano, após o desmembramento da Tchecoslováquia consentido pela Grã-Bretanha,
França e Itália, a Alemanha tomou a Boêmia e a Morávia e, contrariando o que havia sido
acordado, pouco depois transformou a Eslováquia em Estado satélite. A Alemanha também
interveio na Guerra Civil Espanhola (1936-1939),7 ocasião em que foram testadas armas da
força aérea alemã, a Luftwaffe.8.
No Oriente, o Japão governado pelo imperador Hirohito praticava ações imperialistas
desde o início dos anos 30. Com eficiente organização militar desde o início do século XX e
com recursos naturais escassos para sua população crescente, em 1931 conquistou a
Manchúria, que tinha solos férteis para o plantio de alimentos, além de carvão e minérios. A
guerra sino-japonesa teve início em 1937, resultando num massacre de centenas de milhares
de pessoas até 1945, enquanto a China vivia sob a guerra civil entre o governo de Chang-Kai-
Chek e os adeptos do Partido Comunista liderado por Mao Tsé-tung. A União Soviética
também sofreu ataques de contingentes japoneses a partir de 1938, derrotados pelo Exército
Vermelho no ano seguinte.9
A aproximação entre o regime italiano e o alemão consolidou-se aos poucos nos anos
iniciais da década de 30, por conta de suas semelhanças, seus objetivos imperialistas e por
terem tido acordos recusados pelas potências liberais. Fortemente industrializados, os dois
países, bem como o Japão, tinham ainda em comum descontentamento com a relação de
forças estabelecida entre as potências mundiais desde o final da Primeira Guerra. A aliança
ficou conhecida como Eixo; como lembra René Rémond (2002, p. 113), remetendo
inicialmente à linha vertical imaginária ligando Roma e Berlim. O Pacto Anti-Comintern,
assinado em 1936, integrou o Japão aos outros dois países.
7
Embate entre o governo eleito – apoiado por liberais, anarquistas, socialistas e comunistas que se somaram a
dezenas de milhares de civis voluntários vindos de países dos cinco continentes – e militares visando um golpe
de Estado – apoiados por grupos anticomunistas, alta burguesia, partidos tradicionais, além de governos como
o alemão e o italiano. Vitoriosas, as forças golpistas instauraram um regime autoritário liderado pelo General
Francisco Franco, que duraria mais de três décadas (RÉMOND, 2002, p. 114-116).
8
Cf. Rémond (2002) O painel Guernica, pintado por Pablo Picasso, retrata os horrores vividos pela população
civil, vítima de ataques aéreos que atingiram a pequena cidade que forneceu o título da obra.
9
Cf. Hobsbawm (2007, p. 44-45).
4
A disputa também vinha sendo travada entre as grandes potências fora da esfera
militar, por meio de esforços que visavam trazer outros para suas áreas de influência política e
econômica. O governo do Brasil e dos demais países da América Latina lidavam com
pressões feitas principalmente por dois países com potentes complexos industriais: os Estados
Unidos e a Alemanha, que – segundo Gerson Moura (1991, p. 26-27) – durante os anos 30
haviam conquistado a primazia exercida no continente durante as décadas anteriores pela Grã-
Bretanha. Durante a década de 30, as relações comerciais do Brasil com os EUA e com a
Alemanha tenderam a crescer.10
A eleição do governo de Franklin Roosevelt, em 1933, marcou a substituição da
política de intervencionismo militar exercida no continente latino-americano das décadas
anteriores por outras formas de pressão visando hegemonia política e econômica. Enfatiza
Ricardo Seitenfus (2003, p. 7) que, mesmo sendo mantida a disposição do Departamento de
Estado de construir um pan-americanismo formal e constrangedor, a nova posição tornou
Franklin Roosevelt o político norte-americano mais popular na América Latina. A
colaboração mútua em torno da unidade pan-americana, em pauta nas conferências entre
representantes de países do continente, foi enaltecida por autoridades dos EUA. Ao mesmo
tempo, o grande fluxo de trocas comerciais estabelecido com os países latino-americanos e os
empréstimos a eles concedidos para a produção de bens primários garantiram à grande
potência matérias-primas e mercado externo que consumisse seus produtos industrializados.
Essas medidas assumiram grande importância nas economias dos países periféricos,
essencialmente agrícolas, drasticamente afetadas pelas crises e dependentes da potência norte-
americana.11
A Alemanha, pelo contrário teve sua economia devastada pela Primeira Grande Guerra
(1914-1918) e seus desdobramentos, passando por sucessivas e severas crises políticas e
econômicas durante a República de Weimar, até que retomou sua projeção internacional com
a rápida recuperação econômica propiciada durante o regime nazista, sob a liderança de Adolf
Hitler. Grandes avanços foram feitos na conquista de seus objetivos na América Latina,
principalmente de ordem comercial: ainda que com divisas bem menores do que as de outros
países que atuavam no sistema de livre mercado, suas trocas com os países do continente
tenderam a crescer. Além disso, na cooperação militar, que já ocorria desde o início do século,
10
René Gertz destaca elementos que demonstram a aproximação entre Brasil e Alemanha também na política:
[...] Vargas colaborava nas “campanhas para auxílio de inverno” promovidas pelo governo alemão,
enviando carregamentos de café. A polícia brasileira colaborou com a GESTAPO (Olga, a mulher do
dirigente comunista brasileiro Prestes, que tinha cidadania alemã, foi deportada para a Alemanha; foi
acertado um acordo para o treinamento de policiais brasileiros na Alemanha) (GERTZ, 1987, p. 63).
11
Cf. Moura (1991, p. 28-30).
5
encarado por Carone (1977, p. 277) como violento e sibilinamente pró-Eixo, desencadeou
manifestações de grupos liberais e também do governo norte-americano. Visando causar
temor em torno da existência de espiões a serviço da Alemanha, Washington enviou
advertências ao governo Vargas quanto ao perigo da subversão por parte de imigrantes de
alemães, italianos e japoneses infiltrados a favor de um plano imperialista dos países do Eixo
na América Latina.
Na Europa, conforme cronologia apresentada por Paulo Fagundes Vizentini (2004), o
Exército alemão vinha obtendo avanços ininterruptos em sua estratégia de Blitzkrieg (guerra-
relâmpago). Ataques foram dirigidos à Dinamarca e à Noruega em abril de 1940; em seguida,
foi a vez de Luxemburgo, Bélgica e Países Baixos. A França, atacada e rapidamente rendida
em junho de 1940, foi dividida administrativamente: uma zona foi ocupada pela Alemanha e a
parte menor, chamada República de Vichy, permaneceu liderada pelo governo francês,
representado pelo até então Vice-Primeiro-Ministro Marechal Henri Philippe Pétain, em
colaboração com o regime nazista.
Logo depois, a Grã-Bretanha passou a sofrer ataques aéreos, respondidos com
bombardeios lançados sobre cidades alemãs. Em 1941, a Grécia e a Iugoslávia foram atacadas
pela Alemanha e pela Itália, que entrou no conflito a partir de junho do ano anterior. O Japão
dirigia agressões a outros países do Pacífico. Em junho de 1941, começaram os ataques
alemães contra a União Soviética que obtiveram grandes avanços, desobedecendo a um pacto
de não-agressão firmado anos antes entre os dois países.15 A URSS tornou-se então aliada do
bloco de países contra o Eixo, enquanto os Estados Unidos mantinham posição oficial de
neutralidade, mas já colaboravam com a Grã Bretanha, aguardando o melhor momento para
participar do conflito.16
Os avanços do Eixo na guerra empolgavam parte das autoridades do Estado Novo,
enquanto os opositores de Vargas se identificavam cada vez mais com o bloco do governo
favorável à aproximação com os Estados Unidos. Economicamente, contudo, o Brasil já
estava envolvido na guerra. Com o bloqueio britânico17 e a conseqüente redução de relações
15
Em agosto de 1939, após sucessivas tentativas de consolidar alianças com governos liberais contra o
imperialismo alemão, a URSS firmou com a Alemanha um acordo secreto de não-agressão, o Pacto Molotov-
Ribbentrop, que remete aos nomes dos ministros das relações exteriores dos dois países. O documento previa
relações comerciais, além da divisão da Polônia – cujo governo até então mantinha com a Alemanha relações
de cooperação – e concessões relativas a territórios de outros países para ambos os lados. Conforme o acordo
firmado, a URSS ocupou o território oriental polonês em meados de setembro de 1939 e em seguida
transformou alguns outros Estados vizinhos em territórios anexados ou países satélites.
16
Cf. Vizentini (2004).
17
Forças britânicas retiveram navios brasileiros que carregavam armamentos adquiridos da Alemanha, em
outubro de 1940 e janeiro do ano seguinte, provocando novas tensões entre os dois blocos do governo.
7
guerra com os Aliados. A iniciativa contou com o apoio do Exército, que seria equipado com
modernos armamentos norte-americanos. Ainda que parte dos líderes dos países Aliados não
desejasse a participação de forças brasileiras que necessitavam ser treinadas e equipadas, em
reunião entre Vargas e Roosevelt, realizada em janeiro de 1943, ficou acertado o envio de
tropas brasileiras a uma frente que seria definida posteriormente.
Passadas mais de seis décadas desde o retorno dos expedicionários da FEB ao Brasil, a
partir de meados de 1945, muitos textos foram produzidos sobre a participação militar
brasileira na guerra, principalmente por ex-combatentes. O primeiro capítulo da dissertação
começa com discussões a respeito dessa vasta produção bibliográfica. Situando o assunto
tratado, são expostas informações sobre a cronologia de operações das tropas brasileiras e a
caracterização do contingente, extraídas de bibliografia especializada. A partir disso e da
análise de documentação oficial do Exército, é proposta uma estimativa sobre o número de
expedicionários descendentes de alemães e provenientes de comunidades teutas do Sul do
Brasil que integravam a FEB.
O segundo capítulo propõe reflexões sobre a violência vivenciada na FEB e a memória
dos expedicionários. Foram analisados para tanto depoimentos de ex-combatentes:21 19
entrevistas,22 alguns livros de memórias e um diário disponibilizado por um dos entrevistados.
A análise demonstra que a violência intrínseca às experiências de guerra assumiu especial
significação nas memórias dos ex-combatentes da FEB, embora nem sempre se sintam à
vontade para tratar de eventos traumáticos vivenciados. Problematizou-se a reconstrução de
episódios da FEB considerando grupos sociais dos quais participam os rememoradores. Além
disso, foi sugerida a interferência das memórias da guerra reconstruídas a partir do presente na
formação e manutenção de sentimentos de pertencimento que entremeiam os depoimentos
quando falam dos assuntos abordados na dissertação. Tratou-se, portanto, de estabelecer
vínculos entre memória e identidade.
Considerando-se, de antemão, que sentimentos identitários manifestados na FEB
relacionam-se não apenas a situações vivenciadas nas tropas brasileiras, mas também a
sentimentos formados anteriormente no Brasil, o assunto é abordado no terceiro capítulo. Os
expedicionários teuto-brasileiros vivenciaram situações privilegiadas para a formação de
21
Quando se menciona ‘ex-combatentes’, refere-se aos veteranos da FEB, ou seja, homens que participaram na
Itália de atividades de retaguarda ou de linha de frente. Desconsidera-se, assim, a denominação oficial, pois
como explica César Campiani Maximiano (2004b, p. 17) [...] graças a uma chicana jurídica empreendida no
início dos anos 60, todos os membros do Exército no período bélico, mesmo aqueles que permaneceram no
Brasil durante a guerra, são “ex-combatentes”.
22
Dividem-se em 15 entrevistas gravadas durante o curso de mestrado – cuja realização foi possível graças ao
financiamento recebido pela FAPESP – e quatro entrevistas realizadas anteriormente.
9
sentimentos de pertença desde a sua infância e juventude nas comunidades teutas (localidades
de colonização predominantemente alemã), onde circulavam valores pan-germanistas e
nazistas que valorizavam ideais e costumes tidos como alemães e estimulavam a criação e
manutenção de laços de pertencimento relacionados à Alemanha. Em todo o mundo ocidental,
radicalizavam-se discursos nacionalistas, inclusive no Brasil, onde foram fortalecidos
princípios de nação em torno da construção da idéia de brasilidade. Com o posicionamento do
país na guerra, imigrantes alemães e seus descendentes – entre outros grupos relacionados na
época aos países que se tornaram inimigos – passaram a ser reprimidos e perseguidos pelas
autoridades, pela grande imprensa e pela população.
Para aferir sentimentos identitários em relação ao Brasil e à Alemanha no período
anterior à participação na FEB, depoimentos de ex-combatentes descendentes de alemães
foram analisados. Tratando de possível impacto das experiências da guerra e sentimentos daí
decorrentes em lembranças anteriores, foram estudadas também transcrições de entrevistas
realizadas com outras pessoas que habitavam comunidades alemãs no período. Procurou-se
aferir, em depoimentos de ex-combatentes sem ascendência alemã, sentimentos possivelmente
mantidos na época em relação aos habitantes de comunidades teutas. Para isso, foram
apresentados dois livros redigidos na época por autoridades policiais que difundiam a
existência de traidores e espiões entre os descendentes de alemães, teor da propaganda oficial
em relação a essa população no período. Partiu-se, portanto, da concepção de identidade
assim resumida por Michel Pollak:
[...] o sentido da imagem de si, para si e para os outros. Isto é, a imagem que
uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que
ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua
própria representação, mas também para ser percebida da maneira como quer
ser percebida pelos outros [...] (POLLAK, 1992, p. 204).
Além disso, sentimentos sobre diferentes grupos com os quais conviviam: italianos,
norte-americanos, alemães, demais expedicionários da FEB – oficiais e subalternos, da linha
de frente e da retaguarda, de unidades diferentes, negros e brancos, etc. As mesmas questões
são verificadas em relatos de outros expedicionários, visando distinguir sentimentos
particulares dos descendentes de alemães e, ao mesmo tempo, aferir sentimentos dos demais
em relação a esse grupo específico. Outra questão, aliás, consiste justamente em compreender
se havia na FEB uma identidade de grupo partilhada pelos descendentes de alemães.
A investigação dedica especial atenção, portanto, a maneiras pelas quais
expedicionários da FEB provenientes de comunidades alemãs se concebiam e pelas quais
eram vistos enquanto interagiam com diferentes grupos, problematizando, entre outras
questões, a recepção de valores nacionalistas e outros ideais difundidos. Trata-se de perceber
quem eram os identificados como “nós” e quem eram os “outros” em três momentos distintos:
antes, durante e depois das atividades da FEB.
1 O BRASIL NO MUNDO CONFLITUADO: OS COMBATENTES
Desde o fim da Segunda Guerra, muito foi escrito no Brasil a respeito da participação
militar no confronto. Estado, Exército, grupos políticos, veículos de imprensa, pesquisadores,
produtos destinados ao mercado consumidor, ex-combatentes e outros interlocutores
exploraram temáticas da FEB, inseridas em disputas ideológicas travadas na interação de
idéias e versões difundidas no Brasil até os dias atuais. Não há como não notar, contudo, a
limitada contribuição de historiadores oriundos das universidades diante do total do material
bibliográfico: representa apenas 8% do total de 179 livros mapeados sobre o tema, a maioria
escrita por ex-combatentes da FEB (Gráfico 1).
12
Jornalistas e
escritores civis
10%
Escritores
militares
5%
Historiadores
acadêmicos
8%
Correspondentes
de guerra
8%
Ex‐combatentes
da FEB
69%
GRÁFICO 1 – DISTRIBUIÇÃO DOS 179 LIVROS SOBRE A FEB MAPEADOS SEGUNDO CLASSIFICAÇÃO
DE SEUS AUTORES OU ORGANIZADORES
30
25
20
15
11
10
6
5
4
5
2
2
1
1
1
0
1945‐1954 1955‐1964 1965‐1974 1975‐1984 1985‐1994 1995‐2004 2005‐2011
Livros publicados Teses e dissertações defendidas
23
Para uma noção do número atual de teses e dissertações existentes, informações do banco de dados da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do Ministério da Educação (Capes/MEC) que
reúne resumos de trabalhos defendidos a partir de 1987 foram cruzadas a currículos de pesquisadores
cadastrados no sistema Lattes. Além do número de trabalhos de História mencionados, foram mapeadas teses e
13
dissertações de outras áreas do conhecimento: Ciência Política (1), Sociologia (1), Ciências Sociais (2), Teoria
e História da Literatura (1), Operações Militares (1) e Enfermagem (4), todas defendidas a partir de 1995.
Banco de Teses e Dissertações. Disponível em: http://capesdw.capes.gov.br/capesdw/Teses.do. Acesso em:
31/01/2011. Consulta feita digitando-se a expressão “Força Expedicionária Brasileira” no campo “assunto”.
Plataforma Lattes. Disponível em: http://lattes.cnpq.br. Acesso em: 30/01/2011. Consulta feita digitando-se a
expressão “Força Expedicionária Brasileira” no campo “assunto”.
24
Nota-se o objetivo de compreender o envolvimento de militares na política em estudos sobre o tenentismo
desenvolvidos por Edgard Carone (1975) e a essas preocupações também se alinha a História Militar do
Brasil, de Nelson Werneck Sodré, representante de vozes dissonantes dos discursos dominantes nos quadros
do Exército. Preocupações do período são especialmente explícitas em depoimento de José Murilo de
Carvalho, na introdução de seu livro. Cf. Carvalho (2005, p. 7).
14
25
Prossegue o autor enfatizando que Paul Ricoer – apoiando-se em Karl Mannheim – se declara convencido de
que as ciências humanas não podem ser inteiramente separadas da ideologia (KONDER, 2002, p. 166).
Idéias do físico Thomas Kuhn (1979) aplicadas à Sociologia do Conhecimento Científico, do mesmo modo,
problematizam as escolhas feitas pelos pesquisadores dos meios acadêmicos, concebendo a comunidade
científica como grupo social, cujas posições, crenças e valores dominantes influenciam na seleção dos objetos
de estudo e na própria “validade” das descobertas.
26
Com o fim da ditadura, aos poucos foram reduzidos estigmas que eram relacionados às pesquisas militares, ao
mesmo tempo em que se tornava possível a consulta a fontes até então inacessíveis V. CASTRO,
IZECKSOHN, KRAAY, 2004, p. 23).
27
Cf. CASTRO, IZECKSOHN, KRAAY, 2004, p. 27.
15
28
Como resume a obra de José Carlos Reis (2004), os fundadores dos Annales, opunham-se à concepção de
história baseada na narrativa linear que glorificava Estados nacionais e grandes feitos de personalidades
notáveis. Salienta Pierre Vilar (1985) que o objeto das investigações passava a abranger todos os aspectos da
ação humana: tratava-se de uma concepção de história total, que ia além de “grandes” acontecimentos e
instituições políticas até então privilegiados pelos historiadores ditos positivistas. No lugar de uma história-
narrativa, pressupunha-se o tempo cíclico, composto de diversas durações que interagem dialeticamente e
propunham-se estudos em torno de uma história-problema. De acordo com essas idéias, as pesquisas históricas
passavam a depender de conhecimentos de outros campos do conhecimento e a serem baseadas não apenas em
documentos oficiais, mas em qualquer vestígio deixado pelas sociedades humanas. François Laplantine pontua
algumas tendências daí decorrentes: [...] Trata-se de ir do público para o privado, do Estado para o
parentesco, dos "grandes homens" para os atores anônimos, e dos grandes eventos para a vida cotidiana. Sob
a influência da escola dos Annales, a história contemporânea, pelo menos na França, tornou-se uma história
antropológica, isto é, uma história das mentalidades e sensibilidades, uma história da cotidianidade material.
(LAPLANTINE, 2007, p. 155).
16
americanos são problematizados por Luis Felipe da Silva Neves (1992; 1995) e o mesmo
assunto é estudado por Alfredo Oscar Salun (1996; 2004), que aborda a interação também
com soldados alemães. Experiências vivenciadas pelos correspondentes na FEB são
investigadas por Leonardo Guedes Henn (2000), além do papel da imprensa na guerra.29
A situação enfrentada por ex-combatentes após o retorno ao Brasil é objeto de estudo
de Francisco César Alves Ferraz (2002; 2004; 2005), bem como de Sirlei de Fátima Nass
(2005), voltado para a realidade do Paraná. Luciana Ibarra dos Santos (2006) estuda questões
relacionadas ao cotidiano e sentimentos dos soldados, analisando propagandas destinadas à
FEB, difundidas pelo Estado brasileiro e por tropas inimigas para atingir a moral dos
contingentes brasileiros. Depoimentos orais de veteranos da FEB foram utilizados como
fontes em quase todos esses trabalhos – muitas vezes, ao lado de documentos escritos – ou
tornaram-se o próprio objeto, naqueles autores que estudam a história da memória.30
Esses trabalhos somaram-se a obras produzidas desde o fim da guerra fora das
universidades. Pesquisa de mapeamento de livros sobre a FEB verificou que foram publicados
ao longo do tempo – em número limitado, mas ininterruptamente – livros de correspondentes
de guerra, de escritores militares, de jornalistas e de escritores civis. Em grande volume, ao
mesmo tempo, surgiram livros escritos por ex-combatentes oficiais e subalternos. O número
de livros de autores não acadêmicos mapeados, distribuídos por década de publicação, é
apresentada pelo Gráfico 3.
29
O mesmo tipo de preocupação é notado em trabalhos defendidos fora de programas de pós-graduação em
História. Na área de Enfermagem, tratam de situações particulares de enfermeiras na FEB Maristela Freitas
Silva (1995), Margarida Maria Rocha Bernardes (2003) e Alexandre Barbosa de Oliveira (2007; 2010), que
aborda também situações vivenciadas por elas após o confronto, durante o processo de inclusão no Serviço
Militar. Na Sociologia, Sebastião André Alves de Lima Filho (2000) problematiza a formação de sentimentos
patrióticos entre os expedicionários na FEB. Em menor volume, foram feitas investigações que estudam
representações posteriormente produzidas sobre a FEB. Na área de História, monumentos de guerra
construídos na Itália em homenagem às forças brasileiras são estudados por Carmen Lucia Rigoni (2003).
Cassio dos Santos Tomaim (2008), por sua vez, reflete sobre relações entre as memórias da FEB e o cinema
documentário brasileiro. Nas Ciências Sociais, Amanda Pinheiro Mancuso (2003; 2007) analisa narrativas
produzidas nas forças armadas. O conteúdo e forma dos textos de Rubem Braga, que atuou como
correspondente de guerra é estudado por Ricardo Luís Meirelles dos Santos (2001), da área de Teoria e
História da Literatura. São também bastante abordados os motivos que levaram à decisão pela formação na
FEB, que sob o prisma da Ciência Política é estudado por Vagner Camilo Alves (2002) e, na História Social,
por Tullo Vigevani (1990).
30
Em outras pesquisas, documentos diversos que também expressam pontos de vista de expedicionários são
estudados: relatos de ex-combatentes, por Luciano Bastos Meron Neves (2009); diários de guerra, por Carmem
Lucia Rigoni (2009; 2010); canções criadas pelos combatentes, por Maria Elisa Pereira (2009).
17
29
30
23
25
19
18
20
16
15
10
6
4
4
3
2
2
2
2
2
1
1
1
0
1945‐1954 1955‐1964 1965‐1974 1975‐1984 1985‐1994 1995‐2004 2005‐2011
31
Cinco livros de ex-combatentes que não tiveram suas datas de publicação identificadas foram desconsiderados
na elaboração do gráfico.
32
De acordo com os autores, desde a época de sua consolidação institucional, no fim do século XIX, o Exército
apoiava autores militares – e, eventualmente, civis – que produziam narrativas que consistiam em histórias de
campanhas, freqüentemente bem-documentadas, ainda que muitas vezes abordadas de forma estreita.
Consolidado como história militar brasileira, o gênero atingiu seu apogeu em meados do século seguinte.
(CASTRO, IZECKSONH e KRAAY, 2004, p. 14-15).
18
mais minuciosas pesquisas feitas por autores que pertenceram às tropas brasileiras é
disponibilizada pelo Tenente-Coronel Manoel Thomaz Castello Branco, capitão da FEB, no
livro O Brasil na II Grande Guerra, publicado em 1960, pela Biblioteca do Exército Editora.
De forma mais resumida, concentram-se nos mesmos acontecimentos outros livros como
Trinta anos depois da volta (1977) e Cinqüenta anos depois da volta (1995), do General
Octavio Costa, tenente da FEB. Abordagens semelhantes foram feitas sobre a trajetória ou
atividades de subunidades específicas às quais pertenceram os autores ex-combatentes.33
Esses autores militares e ex-combatentes da FEB em geral não discordam uns dos
outros34 e as poucas polêmicas existentes tratam basicamente de contestar dados fornecidos
pelas versões predominantes sobre eventos específicos ou a atuação de subunidades. Na
memória dos comandantes, não existem limites claros entre marcos cronológicos das
operações da FEB e marcos de suas experiências. Pode-se fazer analogia com o que constata
Michel Pollak (1992, p. 203) sobre a memória de pessoas que exercem importantes cargos na
vida pública: freqüentemente, as datas públicas quase que se tornam datas privadas e os
acontecimentos políticos assumem maior significação do que a vida privada.
O tom especialmente explícito na citada obra do comandante da FEB encontra-se
também em outros livros: vinculada a um dever patriótico, principalmente de ordem moral e
política nas gerações brasileiras da atualidade e do futuro (MASCARENHAS DE
MORAES, 1947, p. 9), tem suas motivações resumidas como nobres intuitos de propagar
pelo Brasil afora os feitos gloriosos de nosso Exército na Campanha da Itália (p. 14). Os
livros eventualmente exageram quando descrevem a contribuição da FEB para a vitória dos
33
Na época em que era capitão, Thomaz Castello Branco, que foi Oficial de Comunicações da FEB, publicou As
transmissões do Regimento Sampaio (1946). O Capitão Antorildo Francisco da Silveira, 1º Tenente de
Infantaria, escreveu O 6º RI expedicionário (1947). O General Delmiro Pereira de Andrade, O 11º RI na
Segunda Guerra Mundial (1950), tratando da unidade que comandou. O Coronel Fernando Lavaquiel Biosca,
na FEB Tenente-Coronel da Intendência, escreveu A intendência no teatro de operações na Itália (1950). O
Tenente-Coronel Médico Carlos Paiva Gonçalves escreveu Seleção médica do pessoal da FEB (1951). O
Marechal José Machado Lopes, coronel do 9º Batalhão de Engenharia da FEB, é autor de A engenharia na
FEB (1959) e O 9º Batalhão de Engenharia de Combate no caminho da Itália (1981). Tendo atuado como
capitão nesse mesmo batalhão, o General Raul da Cruz Lima Junior escreveu Quebra-canela: engenharia
brasileira na Campanha da Itália (1982). A Artilharia da FEB foi abordada na obra A artilharia divisionária
da Primeira Divisão de Infantaria Expedicionária na Campanha da Itália (1962), de Heitor Borges Fontes,
que nessa arma atuou como major. Montese marco glorioso de uma trajetória (1985) trata de um combate em
que esteve envolvido o autor, Coronel Adhemar Rivermar de Almeida, capitão de infantaria na FEB. O
General Walter de Menezes Paes abordou em Lenda Azul (1991) a atuação do III Batalhão do Regimento
Sampaio, unidade que comandava no posto de capitão. O Major Antônio André, na FEB 3º Sargento da
Companhia de Transmissões, publicou a Resenha o Brasil na Segunda Guerra Mundial: Roteiro da FEB e as
comunicações da 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária (2007).
34
Exceção é encontrada no livro A verdade sobre a FEB do Marechal Floriano de Lima Brayner (1968), coronel
da FEB.
19
35
Isso já se fazia presente em um pequeno livro recebido pelos pracinhas no final da guerra, organizado pela
Secretaria Especial do Comando e impresso em 1945 pela Seção de Divulgação e Conhecimentos Gerais do
Teatro de Operações do Mediterrâneo (MTOUSA), norte-americana. Definido como resumo histórico, destaca
o papel da FEB reproduzindo elogios feitos por oficiais norte-americanos como o General Crittemberger,
comandante do IV Corpo do 5º Exército Americano: Os feitos da Força Expedicionária Brasileira [...] terao
um logar proeminente quando for escrita a história desta guerra (p. 46-47).
36
Cf. Mattos (1983); Araripe (1969).
37
Com a criação de sua editora, em 1937, o Exército assumiu diretamente a missão de publicar os autores de
seu interesse (CASTRO, IZECKSONH e KRAAY, 2004, p. 15).
38
Cf. MAXIMIANO, 2004a, p. 356.
20
Não raramente, esses livros questionam aspectos das versões mais difundidas pelos
oficiais da FEB. O Coronel Olívio Gondim de Uzêda (1952, p. 9), major da FEB transferido
para reserva a pedido, depois do retorno da FEB ao Brasil, aponta como motivação a idéia de
fazer ressaltar da confusão existente os feitos do Batalhão que Deus me deu a honra de
comandar. De modo análogo, A verdade sobre Guanela, de Alfredo Bertoldo Klas (2002),
conta seu próprio ponto de vista sobre o episódio. A tese de doutorado em História
Econômica do ex-combatente Francisco Pinto Cabral, defendida na USP em 1982, e
publicada em 1987, consiste em uma narrativa linear de eventos relacionados às operações
para a tomada de Monte Castello, baseada em documentação da época e em suas memórias, a
qual contesta versões consideradas “distorcidas”. Deve-se mencionar ainda a coletânea
Depoimentos de oficiais da reserva sobre a FEB (1949), organizada por Demócrito
Cavalcanti Arruda, tenente da FEB, e a obra de Leonércio Soares (1996), Verdades e
vergonhas da Força Expedicionária Brasileira.
Em muitas das obras desse conjunto, contudo, as grandes operações da FEB cedem
espaço a situações cotidianas e sentimentos. Representam múltiplos pontos de vista, na
medida em que seus autores compõem um grupo bastante heterogêneo. Nos livros de
memórias, as lembranças confundem-se com pesquisas feitas posteriormente. Muitos deles
reproduzem trechos dos mais consagrados livros de oficiais para dar credibilidade a situações
relatadas. Mas isso não deve conduzir à falsa impressão de que consistem em mera repetição
de versões dominantes, pois com os assuntos tratados em vários momentos problematizam
questões que eram desconhecidas ou foram silenciadas pelos autores oficiais dos livros mais
conhecidos. São, dessa forma, fontes fundamentais não apenas para o aferimento de questões
identitárias dos expedicionários, mas também para a compreensão de diversos aspectos –
inclusive militares – das operações da FEB na Itália e das disputas pela memória.
Fora dos meios militares e de ex-combatentes, o tom de celebração à FEB foi
especialmente contestado pelo jornalista William Waack (1985). Na obra Duas faces da
glória, ele demonstra que a versão registrada em documentação norte-americana e alemã [...]
contrastava fortemente com a grandiloqüência que se encontra em muitas narrativas sobre a
FEB (1985, p. 12-13). Os expedicionários são retratados como homens indisciplinados, mal
preparados, sem cuidados de higiene e ineficientes em combates cuja relevância é
questionada. Ao limitar a crítica histórica apenas à fundamentação em documentos escritos39 e
39
O próprio autor explicita essa concepção: [...] Procuro apenas realizar trabalho jornalístico, o qual implica a
crítica histórica, ou seja, fundada em documentos, das versões até agora dadas como boas e verdadeiras [...]
(WAACK, 1985, p. 12)
21
chegando a considerar que Vários deles falam por si e dispensam maiores comentários [...]
(1985, p. 13), acabou, contudo, reproduzindo os discursos que analisou e incorrendo,
portanto, no mesmo erro dos autores que critica. Essa obra – assim como o filme Rádio
Auriverde (1991), produzido por Silvio Back – teve repercussões entre textos posteriormente
publicados. Por exemplo, o ex-combatente Nilson Vasco Gondin (2000), que foi sargento da
FEB, repudia as duas obras em seu livro de memórias:
Luis Felipe da Silva Neves (1995, p. 296) considera que Waack agiu mais como
jornalista sensacionalista do que como historiador prudente. Entre os livros de
correspondentes de guerra – que consistem principalmente na reprodução de crônicas escritas
durante a guerra sobre situações cotidianas observadas, com constantes elogios à atuação da
FEB –41 inseriu-se particularmente nessas discussões a terceira edição da obra de Joel Silveira
e Thassilo Mitke A luta dos pracinhas (1993), que recebeu o subtítulo A FEB 50 anos depois:
uma visão crítica. Ao conteúdo original, foram acrescidos dois textos que claramente
respondem ao filme de Back e à obra de Waack. Um deles é o artigo do General Plínio
Pitaluga, cujo conteúdo é sintetizado no título: A FEB não foi ganhar a guerra sozinha. E nem
40
Prossegue o ex-combatente: [...] Francamente, só conhecemos um meio de ser diligente numa frente de
batalha, que é contabilizar a campanha e vitórias obtidas. E esse saldo nos foi literalmente positivo. Quanto
ao pouco asseado, perguntamos: nas condições em que vivíamos, “morando” em buracos nos Apeninos, a
uma temperatura de mais de vinte graus negativos, por quase três meses, a toda hora nos jogando no chão
para nos defender das granadas, muitas vezes em poças de lama, como poderíamos nos manter limpos e
asseados? [...] Nossos oficiais incompetentes? Não são estes os atestados passados pelas autoridades e
comandantes do 4º Corpo e 5º Exército americano, ao conceder-nos o título de: Membros honorários do 4º
Corpo de Exército. [grifos do autor] (GONDIN, 2000, p. 72).
41
Se a compreensão desses discursos deve levar em conta a atuação de órgãos responsáveis na época pela
censura e controle da informação que não permitiriam a publicação de opiniões que prejudicassem a imagem
das tropas brasileiras, conclui Leonardo Guedes Henn (2000) que mesmo após a guerra poucas críticas foram
emitidas por esses autores: De forma geral, os correspondentes de guerra brasileiros junto à FEB não
deixaram de inserir-se no rol de literatura de exaltação cívica. Apesar de muitos destes terem se notabilizado
no jornalismo brasileiro pela veia acentuadamente reflexiva e crítica, casos de Braga, Silveira e Squeff, em
relação à atuação brasileira na guerra, as suas análises praticamente não diferiram daquelas efetuadas pelos
ex-combatentes (HENN, 2000, p. 178).
22
Feitas as devidas ressalvas sobre obras escritas por militares ex-combatentes da FEB, é
inegável sua contribuição para a obtenção de dados oficiais sobre a campanha na Itália. Por
exemplo, o livro O Brasil na II Grande Guerra (1960), do Tenente-Coronel Manoel Thomaz
Castello Branco, capitão da FEB, é descrito por Luis Felipe da Silva Neves (1995, p. 296)
como um extenso manual sobre o Brasil na guerra e considerado básico para qualquer
estudo sobre o corpo expedicionário ao fornecer a mais completa relação de dados
numéricos acerca da FEB.
A atuação das tropas brasileiras, sob o ponto de vista do comando das operações, foi
resumida e dividida em fases principais pelo Coronel Humberto Castelo Branco,43 em um
texto de 1946, reproduzido na antologia A presença do Brasil na 2ª Guerra Mundial,
organizada pelo Major Raul Mattos A. Simões, aspirante a oficial da FEB. A primeira fase,
que se inicia em setembro de 1944, consiste em combates nas proximidades do Rio Arno. A
segunda, entre novembro e fevereiro de 1945, concentrou-se na margem oeste do Rio Reno
italiano, perto da região de Porreta Terme, sendo marcada por tentativas frustradas para a
42
Cf. CASTRO; IZECKSOHN; KRAAY, 2004.
43
Tornar-se-ia posteriormente o primeiro presidente da ditadura militar brasileira instaurada a partir do golpe de
1964.
23
conquista de Monte Castello, posição tomada a seguir, no período conhecido como ofensiva
da primavera. Por fim, na última fase, iniciada em abril, as tropas avançaram na direção
noroeste, conquistando e ocupando diversas localidades.44
Durante o tempo em que a FEB esteve na Itália – pouco mais de um ano – e os cerca
de oito meses em que suas tropas estiveram em combate, os expedicionários participaram de
diferentes atividades, de acordo com as unidade e subunidades às quais eram adidos e seus
postos ou graduações. Como já mencionado, à 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária – 1ª
DIE – pertencia a maior parte do contingente, aproximadamente 15 mil homens. O restante
pertencia ao Depósito de Pessoal – composto por cerca de dez mil homens e responsável pelo
fornecimento de homens para a substituição de baixas – e a órgãos de comando e de apoio. A
organização da 1ª DIE é resumida no Quadro 1:
44
Cf. Castelo Branco, 1946, p. 105. Apud Simões, 1967, p. 69-70.
45
O Esquadrão de Reconhecimento consistia na cavalaria da FEB, vinculada à Tropa Especial.
24
Comando 3
Companhia de Comando e Serviço 112
9º Batalhão de
Destacamento de Saúde 12
Engenharia
1ª Companhia de Engenharia 176
(total de efetivos: 655)
2ª Companhia de Engenharia 176
3ª Companhia de Engenharia 176
Comando 90
Companhia de Triagem 112
Batalhão de Saúde
1ª Companhia de Evacuação 103
(total de efetivos: 511)
2ª Companhia de Evacuação 103
3ª Companhia de Evacuação 103
46
Tais denominações, criadas durante a campanha, são utilizadas na cronologia abaixo para identificar as
operações dessas unidades, a título de simplificação. Deve-se destacar que o 1º, o 2º e o 3º Grupo de Obuses,
eram armados com canhões de calibre 105 mm, chamavam-se inicialmente 1º Batalhão e 2º Batalhão do 1º
Regimento de Obuses Auto-Rebocados (I/1º ROAuR e II/1º ROAuR, abreviados também I/1º ROAR e II/1º
RoAR) e 1º Batalhão do 1º Batalhão e 2º Batalhão do 2º Regimento de Obuses Auto-Rebocados (I/2º ROAuR
ou I/2º ROAR). O 4º Grupo de Obuses, munido de canhões de calibre 155 mm, chamava-se inicialmente 1º
Batalhão do 1º Regimento de Artilharia Pesada Curta (I/RAPC). Cf. Castello Branco (1960, p. 126).
47
Comando, Companhia de Comando, Destacamento de Saúde, Companhia de Serviço, Companhia de Canhões
Anti-Carro e Companhia de Obuses (CASTELLO BRANCO, 1960, p. 126).
48
Cf. Castello Branco (1960, p. 126). De acordo com o jornalista Ricardo Bonalume Neto (1995, p. 135), a
numeração seqüencial das companhias de fuzileiros era feita da seguinte forma: o 1º Batalhão de cada
regimento de infantaria tinha a 1ª, a 2ª e a 3ª companhias; ao 2º Batalhão de cada regimento pertenciam a 4ª, a
5ª e a 6ª Cia.; e o terceiro Batalhão, a 7ª, a 8ª e a 9ª Cia. A numeração da companhia de petrechos pesados, por
sua vez, acompanhava a do batalhão correspondente: cada regimento tinha, assim, uma CPP.1, uma CPP.2 e
uma CPP.3.
49
Cf. Bonalume Neto (1995, p. 135) e Maximiano (2004a, p. 347).
25
50
Salvo pouco mais de cem pessoas, transportadas à Itália por via aérea.
51
Cf. Boletins do Exército especiais n. 18-HH, 18-II, 18-LL, 18-PP e 18-SS, de 1944 e 1945. Apud Castello
Branco (1960, p. 167-169).
26
Unidades da FEB seguiram então para o Vale do Rio Serchio, onde fizeram sucessivos
avanços. Conquistaram, sob tempo chuvoso, os povoados de Chivizano e Bolognana e as
localidades de Coreglia Antelminell e Fornaci; em seguida, tomaram Gallicano, Fabricche e
Cardoso e conquistaram a cidade de Barga e a localidade de Gallicano. Também
Sommocolonia foi ocupada, assim como as regiões de Transilico e Verni; foram capturados o
Monte Faeto e a localidade de Calomini; foram conquistadas Lama di Sopra, Pradoscello,
Pian de los Ríos, Collo e San Quirico. O mês de outubro terminou com contra-ataques de
forças inimigas, que recuperaram posições como Pian de los Ríos: era o primeiro revés
sofrido pelo contingente brasileiro, que começou a ser deslocado para o Vale do Reno.
No início do mês seguinte, em setembro, os batalhões do 6º Regimento de Infantaria
dividiram-se: o II/6º RI foi para a região de Porretta Terme, ocupando a Torre di Nerone entre
os dias três e quatro e, seguindo para o leste, no dia 14 conquistou a cota 670; o III/6º RI foi
deslocado para a área de Marano, entrando em combate na linha de Affrico – Volpara; o I/6º
RI, somado a um Pelotão de Reconhecimento, foi para a região de Borgo Cappane,
conquistando Boscaccio, Il Sasso e Monte Cavalloro, no dia 16. Deslocada temporariamente
do 1º Batalhão, a 3ª Cia. uniu-se a um batalhão de tanques norte-americano integrado à FEB.
No dia 18, as ações da 1ª DIE foram redefinidas, passando para a região entre a estrada 64 e o
Rio Marano. Dois ataques feitos a Monte Castello nos dias 24 e 25 pela Task Force
americana, unidade à qual estava integrado o III/6º RI, foram frustrados.
Desde seis de outubro, o segundo e o terceiro escalões já estavam também em
território italiano. O segundo, sob o comando do General Cordeiro de Farias, era composto
basicamente pelo 1º RI, o I/2º ROAR (designado mais tarde 2º Grupo de Obuses), unidades
restantes do Esquadrão de Reconhecimento e tropas do 9º Batalhão de Engenharia, da Cia. de
Transmissões e do 1º Batalhão de Saúde. A maioria dos homens do terceiro escalão,
comandado pelo General Falconière, pertencia ao 11º RI, I/2º ROAR (designado mais tarde 3º
Grupo de Obuses), I/1º RAPC (mais tarde, 4º Grupo de Obuses), além de tropas do 9º
Batalhão de Engenharia, da Cia. de Transmissões e do 1º Batalhão de Saúde.
De Nápoles, o segundo e o terceiro escalões seguiram em embarcações com
capacidade para 200 homens para o porto de Livorno, sendo então transportados em
caminhões para Pisa. Quase sem treinamentos, entraram em ação, com o início das
substituições de efetivos do 6º RI por tropas do 1º RI. O Regimento Sampaio foi enviado a
partir de vinte de novembro para Riola, com exceção do 1º Batalhão, designado para Silla,
onde chegou poucos dias depois.
27
52
De acordo com o comandante da FEB, entre eles houve 14 corpos não identificados e dois soldados
extraviados, dados como mortos.
28
Quando o governo liderado por Getúlio Vargas decidiu pela participação militar na
Segunda Guerra, o Brasil – ao contrário de outros países, equipados com grandes exércitos e
potentes indústrias de guerra – contava com número restrito de efetivos nas forças militares,
munidas de armas ultrapassadas. Desde os anos anteriores, vinham sendo feitos esforços para
a ampliação e modernização do Exército. Vinculada a diversos interesses políticos, a própria
decisão pelo envio de tropas brasileiras à guerra, que seriam treinadas e equipadas pelo
Exército Norte-Americano, inseriu-se nesses esforços. Depois do bloqueio britânico de navios
que vinham da Alemanha com carregamentos de armamentos comprados pelo Brasil, gerando
grandes embates entre as forças divergentes do governo, o país tornou-se totalmente
dependente dos Estados Unidos para o fornecimento de equipamentos militares.
Medidas de caráter estritamente militar foram implantadas pelo governo brasileiro
imediatamente após a declaração de estado de guerra contra a Alemanha e a Itália, feita em 31
de agosto de 1942.53 Em uma publicação do Ministério das Relações Exteriores (1944) que
reúne documentos oficiais da época, observa-se que em 16 de setembro de 1942, um decreto
assinado pelo presidente Getúlio Vargas ordenava a mobilização geral, definindo, no Art. 2º:
Os reservistas das Forças Armadas aguardarão, para se apresentarem às suas corporações,
ordem de chamada expedida pela autoridade competente.54 Em junho do ano seguinte – de
acordo com cronologia apresentada por Joaquim Xavier da Silveira (2001, p. 299, 302), que
na FEB foi soldado – foi aberto o voluntariado. Em grande volume, principalmente indivíduos
recrutados apresentaram-se e foram incorporados às forças armadas, ocasionando aumento de
efetivos que é constatado por diferentes autores.55
As primeiras ações para a formação da 1ª Divisão de Infantaria Divisionária – 1ª DIE,
única das três divisões brasileiras inicialmente previstas a ser efetivamente constituída –56
53
Decreto n. 10.358. Apud Brasil. Ministério das Relações Exteriores, V. 2 (1944, p. 193-194).
54
Decreto n. 10.451. Apud Brasil. Ministério das Relações, V. 2 (1944, p. 194-195).
55
O Tenente-Coronel Castello Branco (1960, p. 77-82), referindo-se à mobilização durante a guerra, destaca que
– contrastando com os Estados Unidos, que contavam com 130.000 homens mobilizados – o Exército
Brasileiro tinha 60 mil homens, número que até a constituição da FEB seria triplicado, graças a esforços
nacionais viabilizados com o auxílio de empréstimos concedidos pelos EUA. Entre os historiadores, César
Campiani Maximiano (2004a, p. 346) menciona: O Exército Brasileiro tinha apenas 72.566 homens no início
de 1943. Esse número subiria para 144 mil no ano seguinte. Afirma Alcemar Ferreira Junior, baseado em
dados fornecidos por relatório de Eurico Gaspar Dutra: Em 1939 o efetivo total do Exército era de 60.000
homens; em 1942 atingiu 95.000 e em dezembro de 1943 já totalizava 165.000 soldados. DUTRA, Eurico G.
Relatório do Ministro da Guerra de 1943, p. 20-30. Apud Ferreira Junior (2005, p. 5).
56
As primeiras discussões entre autoridades brasileiras e aliadas, a partir do início de 1943, planejavam o envio
de um Corpo Expedicionário composto por três divisões de infantaria compostas, no total, por 60 mil homens
Cf. Ferraz (2005, p. 43-44).
29
começaram na segunda metade de 1943. O Ministro de Guerra General Eurico Gaspar Dutra
enviou, em 9 de agosto, um convite ao General João Batista Mascarenhas de Moraes para o
comando da divisão, que teve resposta afirmativa, e, no mesmo dia assinou uma portaria
(Portaria Ministerial n. 47-44)57 definindo unidades já existentes no Exército Brasileiro para a
mobilização de parte das unidades da 1ª DIE. Pouco depois foi formalizada também a criação
de unidades não divisionárias da FEB.58
O General Mascarenhas e Moraes acumularia as funções de comando da 1ª DIE e da
FEB como um todo. Logo abaixo viriam os generais Euclides Zenóbio da Costa e Osvaldo
Cordeiro de Farias, respectivamente, Comandante da Infantaria e Comandante da Artilharia
da Divisão de Infantaria. Haveria ainda o cargo de Inspetor Geral, assumido pelo General
Olympio Falconière da Cunha, designado em julho de 1944 (CASTELLO BRANCO, 1960, p.
131). Ao final das atividades de mobilização, que se estenderam até o início de 1944,59 a
Força Expedicionária Brasileira seria composta de pouco mais de 25 mil homens: cerca de 15
mil na 1ª DIE e cerca de 10 mil no Depósito de Pessoal, responsável pela substituição de
baixas sofridas em ação de guerra. O restante do contingente pertenceria a órgãos de comando
e de serviços de apoio (Banco do Brasil, Correio, correspondentes de guerra, etc.).
A partir de março de 1944, o contingente partiria das diversas cidades que sediavam
suas unidades mobilizadoras para se concentrar no Rio de Janeiro, onde receberia
treinamentos, embora só posteriormente fosse ter contato com praticamente todo o armamento
a ser utilizado.60 Paralelamente, ocorria a preparação para deixar o Brasil. De obras de autores
militares e pesquisadores acadêmicos podem ser extraídos alguns aspectos que caracterizavam
o contingente.
Apesar dos apelos patrióticos que visaram incentivar a apresentação voluntária para a
FEB, desde o início foi definido que as unidades expedicionárias seriam compostas
principalmente de civis convocados da reserva. Entre os homens que integraram o oficialato,
o percentual de oriundos da reserva (R/1 e R/2)61 era quase nulo nos postos mais altos, mas
aumentava gradativamente nos postos subalternos (Quadro 2).62
57
Apud Castello Branco (1960, p. 135) e Mascarenhas de Moraes (1947, p. 21-23).
58
Cf. Castello Branco (1960).
59
Como relata o então comandante da 1ª DIE, ao final do ano anterior a organização da FEB permanecia em
fase embrionária (MASCARENHAS DE MORAES, 1947, p. 27).
60
Cf. Ferraz (2005, p. 49).
61
Notas do comandante da FEB explicam no que consistia a Reserva de 1ª Classe (R/1) e a Reserva de 2ª Classe
(R/2): OBSERVAÇÕES A) – Os Oficiais R/1 são oficiais da Reserva Remunerada de 1ª Classe. Eram antigos
Sargentos que, pelos serviços prestados ainda no Brasil, foram promovidos a Tenentes e, em face da
legislação específica, transferidos para a Reserva Remunerada, ao mesmo tempo em que eram convocados
para o Serviço Ativo. Na realidade, não chegaram a sair das fileiras do Exército. B) – Os Oficiais R/2 são
30
Entre os subalternos – sargentos, cabos e soldados, que segundo dados fornecidos por
Mascarenhas de Moraes (1960, p. 401), perfaziam cerca de 94% do contingente – quase todos
haviam sido convocados da vida civil. Com isso, de acordo com Francisco César Ferraz
(2005, p. 49), eram cerca de mil os voluntários incorporados na FEB – entre militares e civis,
subalternos ou superiores – ou cerca de 4,00% do total do contingente.63 Quanto à idade,
afirma César Campiani Maximiano (2010, p. 20): Quando partiram para a Itália, os
veteranos da Força Expedicionária Brasileira estavam, em sua maioria, na primeira metade
da casa dos vinte anos de idade.
Os expedicionários tinham origem de todas as regiões do Brasil. Nota-se no Quadro 2,
que se refere aos 23.702 praças, que a maior parte vinha de estados da Região Sudeste
(64,02%), ficando a Região Sul em segundo lugar (18,36%). Menos de um quinto dos praças,
portanto, era proveniente de estados do Nordeste, Norte ou Centro-Oeste (Quadro 3).
oficiais da Reserva de 2ª Classe, via-de-regra egressos dos Centros de Preparação dos Oficiais da Reserva
[CPOR]. Há, no entanto, 108 oficiais da FEB que ingressaram no oficialato da Reserva, por fôrça da
profissão que abraçaram (médicos, dentistas, farmacêuticos, etc.) e em face dos bons resultados apresentados
nos estágios a que se submeteram (1960, p. 400).
62
Essas informações são confirmadas por comentários de Castello Branco (1960, p. 132-133), que menciona
dificuldades enfrentadas na FEB resultantes da falta de efetivos experientes no comando das subunidades.
63
Considerando-se o total de 25.334, conforme é mencionado por autores como Mascarenhas de Moraes (1947,
p. 41), Francisco César Ferraz (2002, p. 4) e César Campiani Maximiano (2010). Há uma pequena divergência
em relação aos dados fornecidos por Castello Branco (1960, p. 127), que considera o total de 25.445 de
efetivos.
31
64
Cf. Castello Branco (1960, p. 136, 141).
32
65
Cf. MIRANDA, 2002, p. 69. Apud Maximiano (2004a, p. 346).
33
De acordo com Castello Branco (1960, p. 139), deixaram ainda mais a desejar do que
as inspeções físicas os exames psicológicos: deveriam distinguir indivíduos que possuíam um
espírito fraco daqueles em perfeito equilíbrio emocional, portadores de um espírito forte e
uma formação moral sólida a impeli-los à frente, mas [...] passaram centenas de homens,
inclusive oficiais, que não estavam em perfeitas condições para suportar as imensas
responsabilidades que lhes caberiam na batalha.
Por fim, destaca o autor que houve dificuldades provenientes da pulverização, e a
incorporação de doentes ou incapazes foi decorrente também de dificuldades oriundas das
atividades de mobilização, que – contrariando a decisão inicial de incorporar indivíduos de
regiões específicas –66 ocorreram em todas as regiões do país. Foram criadas Juntas Especiais
de Saúde espalhadas pelo país que, por necessitar de especialistas de diversas áreas,
incorporaram médicos militares e médicos civis não remunerados e, assim mesmo, em alguns
casos não tinham pessoal suficiente.
Enquanto isso, entre os representantes de classes mais abastadas, foram vários os
convocados que conseguiram ser isentados, por diferentes meios. Estudos de Ferreira Junior
(2006, p. 6-7) apontam que entre as normas que isentavam indivíduos de condições
determinadas, foram mantidas basicamente aquelas que privilegiavam as classes médias e
altas. Constatou também o autor que houve convocados licenciados do Exército ou
transferidos para unidades não expedicionárias, de acordo com pedidos realizados por grandes
empresas ou autoridades políticas.
Segundo Francisco César Ferraz (2004, p. 368), a liberação de homens de classes
favorecidas já era tradição no Brasil: mesmo com a instituição do serviço militar obrigatório,
66
Esperava-se inicialmente ter contingentes provenientes das seguintes regiões militares: 1ª (estados do Rio de
Janeiro e Espírito Santo), 2ª (estado de São Paulo), 4ª (praticamente todo o estado de Minas Gerais) e 9º (Mato
Grosso e Mato Grosso do Sul). Cf. Castello Branco (1960, p. 137).
34
a partir de 1916, eram raros os seus representantes nos quadros do Exército, que pagava
baixos soldos e, com isso, [...] somente atraía os mais pobres e menos instruídos, que viam
nos quartéis a garantia mínima de emprego, alimentação e abrigo. Além disso, em parte
devido às conhecidas condições enfrentadas pelos praças nos quartéis, o serviço militar era
visto como castigo imposto pelo Estado. Conseqüentemente, na ocasião da mobilização da
FEB:
Tal situação havia sido denunciada anteriormente por alguns textos escritos por
veteranos da FEB como a coletânea Depoimentos de oficiais da reserva sobre a FEB,
organizada por Demócrito Cavalcanti Arruda (1949), poucos anos depois do fim da guerra.
Em um dos artigos, esse autor – capitão da reserva que atuou como comandante de Pelotão de
Petrechos da 4ª Companhia do 6º Regimento de Infantaria – relata que os exames de saúde
foram forjados através de relações de apadrinhamento e, como conseqüência, em geral, só os
mais desamparados integraram a FEB:
67
O autor foi sargento da FEB e desenvolveu uma tese de doutorado em História Econômica sobre o tema,
tratado sob o ponto de vista militar e entremeado por suas memórias, como outros livros de outros ex-
combatentes. Refere-se à obra de “Mário Fernandes, Xavantes na Itália”. De modo análogo, o contingente é
descrito por Silveira (2001, p. 135) como um mosaico racial.
36
seja, dignas de menção – posição tão criticada pelas propostas da Nova História. Em outra
passagem, o culto a feitos heróicos é evidenciado:
Pressupõe Dennison de Oliveira (2008, p. 57) que A FEB parece ter recrutado de
forma indistinta brasileiros, ítalo-brasileiros, nipo-brasileiros e teuto-brasileiros [...]. O
autor arrisca o seguinte “palpite” para uma noção quantitativa de expedicionários
provenientes de comunidades alemães radicadas no Brasil:
Utilizando o mesmo percentual, Dennison de Oliveira (2008, p. 60) estima que havia
ao menos 48 oficiais oriundos de comunidades alemãs. De acordo com seus cálculos, haveria
774 expedicionários de comunidades alemães, entre praças e oficiais. Durante uma consulta
ao Arquivo Histórico do Exército (AHEx), sediado no Rio de Janeiro, não foram encontrados,
no acervo da FEB, documentos ou listagens que apresentassem as cidades de origem de cada
um dos expedicionários, o que viabilizaria informações mais precisas. A fonte utilizada por
Mascarenhas de Moraes para calcular o percentual de praças provenientes de cada estado
talvez tenha essa informação, mas infelizmente não está identificada no livro do comandante
da FEB.
Dadas essas limitações, a visita ao AHEx resultou na seleção de um conjunto de
documentos que fornecem dados sobre um grupo de expedicionários pertencentes a uma
unidade específica, encarado como uma amostragem para sugerir o percentual aproximado de
combatentes provenientes de comunidades alemãs da Região Sul do Brasil incluídos na FEB.
Para a viabilização da análise, contou-se com valiosa colaboração do Professor Francisco
César Ferraz, que na ocasião realizava coleta de dados com seus alunos da Universidade
Estadual de Londrina, e gentilmente cedeu as fotografias dessas fontes selecionadas. A
documentação apresenta informações sobre 703 expedicionários que eram adidos a uma
mesma unidade no fim da guerra, quando foram desligados das forças armadas, como ocorreu
com grande parte do contingente.
A unidade pertencia ao Centro de Recompletamento de Pessoal da FEB (CRP), que
teve sua organização autorizada no Brasil em 23 de agosto de 1944, e na Itália fornecia
efetivos para a substituição de baixas nas diferentes tropas em ação, enquanto recebia
indivíduos que obtinham alta dos hospitais militares, após terem sido tratados de doenças ou
ferimentos. De acordo com informações obtidas no AHEx, o CRP foi extinto ainda na
Europa, ao final das hostilidades. Por isso, sua documentação foi mantida nesse arquivo,
enquanto documentos de mesma natureza foram enviados para unidades do Exército, que
continuaram existindo no Brasil, distribuídas em diversos estados e municípios.
Os documentos consistem em 642 cópias de certificados de reservista e 61
documentos de isenção definitiva do Exército. Exemplos dessa documentação são mostrados
na Figura 1.
38
A Relação Modelo E, repetindo vários dos campos dos documentos que a antecede,
tem locais destinados a: nome, filiação, data de nascimento, onde nasceu, onde reside,
profissão, estado civil, cor, altura, olhos, cabelos, barba, bigodes, rosto, nariz, boca,
alfabetizado (sim/não), data de inclusão, data de exclusão e comportamento. A tabulação das
informações da documentação tornou-se exaustiva não apenas pela quantidade de páginas,
cerca de 1.400: deparou-se com dados preenchidos sem qualquer padronização, com rasuras
freqüentes; além disso, muitas vezes, dados incompletos, abreviados ou ilegíveis. O
preenchimento foi feito ora à mão, ora à máquina; termos e critérios distintos foram
empregados em documentos diferentes para os mesmos aspectos; os campos nem sempre
foram respeitados, de modo que há informações distribuídas aleatoriamente nas margens ou
em espaços destinados a outros dados que, conseqüentemente, deixaram de ser fornecidos ou
foram dispostos em outro local. Anotações eventualmente afirmam ter o registro sido feito
com base em declarações dos próprios expedicionários sem qualquer verificação, o que talvez
se aplique também a parte dos outros formulários, sem esse tipo de menção, o que pode
ocasionar outras distorções dos dados.
Os 703 indivíduos do CRP sobre os quais se referem os documentos de isenção
definitiva do Exército e certificados de reservistas representam um percentual pequeno da
FEB – 2,77% dos 25.334 homens. A maior parte desses expedicionários pertenceu a unidades
diversas da 1ª DIE ou do Depósito de Pessoal antes de sua incorporação ao CRP. Antes de
verificar quantos deles tinham sobrenomes alemães e viviam em locais de colonização teuta, a
confiabilidade da amostragem foi testada confrontando-se resultados obtidos com a tabulação
de dados com informações relativas ao contingente como um todo, já apresentadas.
40
O grupo é constituído, sobretudo, por jovens que tinham na FEB vinte e poucos anos,
nascidos entre 1919 e 1923, padrão observado em relação aos demais expedicionários.68
Quanto à graduação na hierarquia militar, foram identificados alguns sargentos, vários cabos e
número bem maior de soldados (80,27 %).69
Sobre a origem desses expedicionários, constatou-se efetivos provenientes de diversos
estados do Brasil. Cerca de quatro quintos habitavam as regiões Sul ou Sudeste e as
proporções por estado de origem também quase não destoam daquelas relativas ao total de
praças da FEB.70 Profissões declaradas na documentação do CRP apontam a predominância
de expedicionários de classes humildes, como agricultores ou lavradores e comerciários, além
de motoristas, mecânicos, carpinteiros, pedreiros, alfaiates, barbeiros, jornaleiros e ajudantes
de uma série de profissionais, contrastando com uma minoria formada de profissionais, como
funcionários públicos, advogados, estudantes e mesmo um fazendeiro. Vários documentos de
isenção definitiva do Exército sugerem a presença de doentes ou incapazes incorporados
apesar das inspeções de saúde, explicitando: não há relação de causa e efeito entre o estado
atual [ou a doença] e as condições de serviço em ação de guerra, menção freqüentemente
acompanhada do comentário: sem direito a amparo do Estado.71
Menos de um terço dos documentos analisados informam como os indivíduos foram
incorporados no Exército (voluntariado ou sorteio). Os identificados como voluntários foram
integrados entre 1938 e 1945, portanto, desde antes mesmo do início da guerra. A forma de
incorporação registrada – como é explicitado em alguns dos documentos – às vezes se refere à
apresentação para o serviço militar e às vezes à apresentação para a FEB. Isso provavelmente
ajuda a entender por que a proporção de voluntários verificada (6,54 %), ainda que bem
menor do que a de identificados como convocados ou sorteados (27,73 %), é relativamente
maior do que a que corresponde ao total do contingente (4 %), apresentada no item anterior.
Os documentos que apresentam a data da incorporação no Exército sugerem que quase
todos eram civis quando o Brasil extinguiu relações comerciais e diplomáticas com a
Alemanha, a Itália e o Japão, em janeiro de 1942. Muitos foram incorporados somente a partir
68
Em número bem menor, há indivíduos mais velhos – nascidos entre 1908 e 1917 – e mais novos – de classes
entre 1924 e 1927.
69
O comentário refere-se a 588 dos ex-combatentes, pois a documentação de 115 indivíduos não tinha essa
informação explicitada.
70
A diferença para quase todos os estados não ultrapassa 0,50 percentuais. Entre as exceções, as maiores
diferenças em relação ao total de praças da FEB foram constatadas nos valores relativos ao Distrito Federal
(17,78% dos expedicionários do CRP contra 25,72% do total de praças da FEB) e Rio Grande do Sul (9,82%
dos expedicionários do CRP contra 7,64% do total de praças da FEB).
71
Deve-se considerar, contudo, que os registros nem sempre podem ter sido precisos nesse sentido. Alguns
praças que tiveram doenças ou ferimentos enfrentaram dificuldades para provar posteriormente a relação com
as atividades de guerra e ter direito às pensões.
41
72
Viviam nos seguintes municípios: Cachoeira, Curitiba e Rio Negro, no Paraná; Brusque, Joinville, Blumenau,
Gaspar e Joinville, em Santa Catarina; Carazinho, Passo Fundo, Sobradinho, Santa Rosa e São Vicente do Sul,
no Rio Grande do Sul.
42
73
Cf. Peres (s/d, p. 160).
44
74
O desembarque aliado na Sicília ocorreu em julho de 1943, depois de ter sido adiado durante meses porque
Churchill, democratas norte americanos e outras autoridades consideravam mais conveniente a permanência
em fronts secundários enquanto sucedia o mútuo desgaste da URSS e da Alemanha (VIZENTINI, 2004).
75
Cf. VIZENTINI, 2004, p. 90-92.
76
Conforme informações fornecidas pelo General Carlos de Meira Mattos – capitão de infantaria da FEB e
prefaciador do livro do ex-combatente Joaquim Xavier da Silveira (2001, p. 10).
45
O historiador John Keegan disse que a campanha na Itália foi mais custosa
para a infantaria do que a guerra na França. O terreno favorecia muito mais a
defesa, com uma “riqueza de obstáculos” como rios, lagos, colinas isoladas,
montanhas e desfiladeiros (BONALUME NETO, 1995, p. 187).
A vulnerabilidade dos brasileiros na maior parte dos combates pode ser ilustrada com
uma crônica escrita em janeiro de 1945 por Rubem Braga, correspondente de guerra que
acompanhou as atividades da FEB:
77
A essas entrevistas foram somadas quatro realizadas anteriormente, com veteranos da FEB com as mesmas
características.
78
Quadro apresentado no Anexo 1.
79
Vinculando o papel do historiador – como Pierre Vilar (1985) e os intelectuais marxistas em geral – a esforços
pela consciência dos mais oprimidos nas tensões entre as classes e, portanto, ao objetivo de mudança e ruptura,
enfatiza o autor: A pior espécie de história oral é aquela que começa e termina com a empregada doméstica
(THOMPSON, 2002, p. 174).
80
Esperava-se através do contato com os primeiros depoentes, indicados por seccionais da ANVFEB, obter
indicações de outros ex-combatentes desvinculados da associação, o que não ocorreu.
81
Cf. Halbwachs (1965; 2006).
47
82
Estão de acordo os pressupostos de Henry Rousso, inseridos em discussões fortalecidas a partir da década de
70 do século XX que procuravam caminhos para a interpretação de fontes memorialísticas: [...] A memória
[...] é uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado,
um passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar,
social, nacional. Portanto, toda memória é, por definição, “coletiva” [...] (ROUSSO, 2005, p. 94-95).
83
Série CD-90 – População (recenseada, residente e presente). Disponível em:
http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?vcodigo=CD90&t=populacao-recenseada-residente-e-presente.
Acesso em: 10/11/2010. Fonte mencionada pelo documento: IBGE, Censo Demográfico 1872/2010. Até 1960,
dados extraídos de: Estatísticas do século XX. Rio de Janeiro: IBGE, 2007.
84
Pensões foram concedidas aos ex-combatentes da FEB somente com a Constituição de 1988.
48
85
[...] lugares particularmente ligados a uma lembrança, que pode ser uma lembrança pessoal, mas também
pode não ter apoio no tempo cronológico. Pode ser, por exemplo, um lugar de férias na infância, que
permaneceu muito forte na memória da pessoa, muito marcante, independentemente da data real em que a
vivência se deu. Na memória mais pública, nos aspectos mais públicos da pessoa, pode haver lugares de apoio
da memória, que são os lugares de comemoração. [...] (POLLAK, 1992, p. 202).
49
noites lá, meu Deus, são quatrocentos e cinqüenta homens gerando calor! Só
debaixo de onde ficava o ventilador, vinha uma calha assim, aí vinha o vento
para nós... Mas daí todo mundo queria ficar ali, e não dava. E, quando
embarcamos, o soldado falava em castelhano, nos levou até lá embaixo, até o
fundo do navio. Aí nós perguntamos para ele assim: “E como é que é isso
aqui?”, e ele disse: “Não tem problema nenhum! Porque se o alemão mandar
um torpedo aqui, vai estourar mais ou menos nessa altura” [...]. Aí eu
perguntei: “Sim, e o que acontece?”, e ele disse: “Tem dois companheiros
meus armados dormindo ali em cima da escada. Tem um alçapão. Se esse
compartimento for atingido, eles fecham o alçapão”. O soldado perguntou:
“Sim, mas eles deixam a gente sair primeiro?”, aí ele começou a rir,
imagina... “Enche esse compartimento, mas o navio continua flutuando” –
Porque são compartimentos estanques. [...] E aí no terceiro dia, no navio,
ficou assim... Meu Deus! 70% estavam vomitando! Já pensou? Cinco mil e
duzentos homens lá dentro! Eles espalharam milhares de baldes pelo convés.
[...]86
1º de julho de 1944.
[...] O calor nos compartimentos era insuportável, embora estando todos
ventiladores funcionando. (p. 3)
2 de julho de 1944
[...] Via-se muita gente pálida, efeito do jogo do navio. [...] (p. 4)
3 de Julho de 1944
Já não-se via mais terra quando subi aos convez, acompanha[va]m-nos
apenas os destróier[es] [...]. Senti-me bastante atordoado neste dia mas não
cheguei a enjoar. O dia era lindo e o mar em azul profundo. À tarde houve
um alarme geral, todos subiram aos convés nos respectivos postos de
abandono do navio. O alarme foi de treinamento. [...] (p. 4-5)
4 de Julho de 1944
As horas passaram vagarosamente e muita gente enjoou, também neste dia
me senti meio tonto. Um sargento foi recolhido ao Hospital de bordo, crise
de nervos (p. 5).87
86
Ferdinando Piske, veterano da FEB descendente de alemães, nascido em 1923, em Timbó-SC. Depoimento
concedido em 09 de abril de 2005, em Jaraguá do Sul-SC.
87
Algumas evidências sugerem que as primeiras anotações do diário foram registradas posteriormente, na Itália:
Rio de Janeiro, 29 de junho de 1944. Vila Militar. [...] Os praças jogaram, nos últimos dias, o dinheiro fora,
pois foi ordenado que podia-se levar somente 100,00 mesmo assim levei 800,00 Cr$ que me foi trocado mais
tarde em liras na Itália. [...] (p. 1) [grifos nossos]. A partir do início de agosto, há evidências de
contemporaneidade entre os eventos narrados e o registro das anotações: no dia 4, por exemplo, o
expedicionário ao mencionar o local onde está, escreve não sei o nome ainda (p. 21), informação
complementada nas anotações dos dias seguintes. Quanto aos registros do trajeto à Itália, que ocorreu nesse
meio tempo, a riqueza de detalhes e de datas sugere que tenham sido feitos dia após dia, imediatamente após
os eventos tratados. De qualquer modo, nota-se que as impressões recentes de Walter Carlos Hertel muito se
aproximam de relatos feitos décadas depois por outros depoentes.
51
Conta um veterano da FEB que foi sargento do 1º RI, Alcides Conejeiro Peres, em seu livro
de memórias:
[...] A segunda etapa era Livorno. Seguimos [de Nápoles] em lanchas rasas,
desconfortáveis, oscilantes. Foram trinta e seis horas de navegação em mar
revolto, tempestades, tromba d’água. A própria tripulação enjoava. [...]
(PERES, s/d, p. 154-155)
E Adolfo José Klock, ex-combatente descendente de alemães que foi soldado do 11º
RI e depois do 9º Batalhão de Engenharia:
Alguns dos depoentes pertencentes ao 11º RI, por exemplo, declaram ter viajado à
Itália com o segundo escalão quando foram do terceiro.89 Em outros casos, os expedicionários
não sabiam o escalão ou a data de embarque, mas essas informações são sugeridas pelas
unidades a que pertenceram ou atividades das quais participaram. Um dos depoentes relatou
ter participado de operações em Monte Castello, mas a unidade que declarou fazer parte não
foi empregada nesses combates, o que tornou complicado distinguir se foi adido de outra
unidade por um período ou se forneceu informações equivocadas (quanto à unidade ou
88
Adolfo José Klock, veterano da FEB, nascido em 1921, em Blumenau-SC. Depoimento concedido em 11 de
março de 2009.
89
A declaração faz sentido já que os dois partiram do Rio de Janeiro na mesma data em navios distintos, sendo
provavelmente considerados como um só escalão de mais de dez mil homens. Se a hipótese procede, a data do
acontecimento vivenciado adquiriu na memória maior significação do que a versão oficial. A título de
padronização, contudo, foram considerados os cinco escalões descritos nos livros dos oficiais da FEB e de
pesquisadores do tema.
52
mesmo quanto ao combate, já que adquiriu grande significação simbólica entre as operações
da FEB).
O confronto com outras fontes e a análise do conjunto de experiências relatadas
permitiu identificar, completar e corrigir alguns dados fundamentais para demonstrar a
diversidade da amostra e compreender o que é relatado nos depoimentos. As fontes
memorialísticas, dessa forma, envolveram procedimentos metodológicos que se aplicam
também a fontes de outras naturezas:
A proposta ao analisar fontes memorialísticas foi, assim, a mesma adotada por César
Campiani Maximiano em sua tese de doutorado em História Social, defendida na
Universidade de São Paulo, em 2005:
90
Cf. Portelli (2005, p. 106).
53
Se toda memória fosse coletiva, bastaria uma testemunha para uma cultura
inteira; sabemos que não é assim. Cada indivíduo, particularmente nos
tempos e sociedades modernos, extrai memórias de uma variedade de grupos
e as organiza de forma idiossincrática. Como todas as atividades humanas, a
memória é social e pode ser compartilhada (razão pela qual cada indivíduo
tem algo a contribuir para a história “social”); mas do mesmo modo que
langue se opõe a parole, ela só se materializa nas reminiscências e nos
discursos individuais. Ela só se torna memória coletiva quando é abstraída e
separada da individual: no mito e no folclore [...], na delegação [...], nas
instituições [...]. Quando compreendemos que “memória coletiva” nada tem
a ver com memórias de indivíduos, não mais podemos descrevê-la como
expressão direta e espontânea de dor, luto, escândalo, mas como uma
formalização igualmente legítima e significativa, mediada por ideologias,
linguagens, senso comum e instituições (PORTELLI, 2005, p. 127).
[...] A situação da população italiana estava horrível. Não tinham nada, nada.
E essa questão de fumar, isso é um vício difícil de deixar. E nós já tava lá há
uma semana lá na guerra e aquela população lá na frente, pedindo, os
meninos, as moças, os rapazes, homens, pedindo um cigarro. [...] Em todas
cidades não tinha nada. Nada, nada, nada, nada mesmo! Não tinha
alimentação, [...] não tinha nada.93
João Carturano, soldado que também pertenceu ao 11º RI, comentou sobre o fim da
guerra: [...] E depois da guerra, então nós tinha dó daquelas crianças, que não tinha comida
pra elas comer e vinham pedir comida pra nós.94 A prostituição decorrente da miséria sofrida
na Itália é também apontada por alguns dos depoimentos, como o livro de memórias do
veterano da FEB Nilson Vasco Gondin, sargento do 6º RI:
[...] conheci uma mocinha dos seus 19 a 20 anos, que me convidou para
fazer um programa. Tudo bem, vamos, onde? Lá em casa, disse ela. OK,
vamos. Lá chegando, entramos numa peça ao rés do chão, porão, onde se
encontrava toda a família. Avós, pais, irmãos, irmãs, filhos, enfim toda a
família. A um sinal da mocinha, todos foram saindo, rindo, fazendo gracejos,
etc. [...] (GONDIN, 2000, p. 79).
91
Ferdinando Piske, depoimento citado.
92
Arnaldo Müller, veterano da FEB descendente de alemães, nascido em 1919, em Gaspar-SC. Depoimento
concedido em 11 de março de 2009, em Blumenau-SC.
93
Alfredo Gaertner, veterano da FEB descendente de alemães, nascido em 1923, em São Bento-SC. Depoimento
concedido em 12 de novembro de 2010, em Jaraguá do Sul-SC.
94
João Carturano, veterano da FEB, nascido em 1916, em Brusque-SC. Depoimento concedido em 12 de março
de 2009, em Blumenau-SC.
55
O temor quanto à ação dos partigiani é relatado no diário de Walter Carlos Hertel, nos
registros feitos em Stazzema, em 30 de setembro de 1944, que discorrem sobre uma italiana
com quem lá falou em alemão: A coitada está bem aborrecida com os partigianos que
pretendiam rapar o cabelo ruivo lindo dela por ela ter servido forçada aos alemães de
intérprete. [...] (p. 63). Coincidência ou não, os dois depoentes integraram o 6º RI e referem-
se à segunda metade de setembro, em localidades bastante próximas: pode-se indagar se a
ação dos partigiani foi mais marcante naquela situação, não vivenciada por expedicionários
de outras unidades.
56
Há, por outro lado, aspectos relacionados à população italiana que não são tratados no
diário de Walter Hertel ou nos depoimentos de outros ex-combatentes que pertenceram ao
primeiro escalão, mas são enfatizados em entrevistas de outros veteranos da FEB, talvez por
terem ocorrido mais intensamente em regiões em que permaneceram tropas chegadas noutros
escalões. João Carturano relata, a respeito dos maus tratos recebidos pelos italianos por parte
dos soldados alemães: [...] os italianos, que estavam sofrendo muito com os alemães. Os
alemães derrubavam as casas, derrubavam a ponte e quebravam as árvores, tiravam as
criações deles, matavam. E judiavam, né? [...]95. Detalhou o livro de memórias de José Alves
da Silva (2001, p. 247) sobre uma forma de violência praticada pelos alemães às mulheres
italianas: [...] Muitas moças traziam uma atadura amarrada à perna, um pouco acima do
tornozelo. [...] as pernas amarradas cobriam a cruz gamada impressa à fogo, nas moças que
ficaram com jovens soldados alemães [...]. O assunto é abordado também por Arnoldo
Müller:
[...] os alemães [...] faziam das moças o que eles bem entendiam... Deram
uma ordem em todas as cidades da Itália, [exigindo que] a porta da frente
deveria permanecer aberta para eles, especialmente [para] fazer o que bem
entendiam com as coitadas das mulheres. Então houve muito sofrimento.
Eles ainda davam assim um carimbo embaixo do joelho, mesma coisa
quando fazem um carimbo nos cavalos aqui, para reconhecer. Aqui eles
faziam com as moças. A gente sabia direitinho o que tinham feito com tal
moça, todas eram de vestidinho curto [...]Foi uma coisa muito triste.96
Sobre os treinamentos na Itália, o diário de Walter Carlos Hertel revela anotações com
queixas de dores no corpo e comentários de severas queimaduras de sol nas costas que sofreu,
acidentes ocorridos com outros expedicionários, e ocasiões em que conseguiu escapar de
atividades de instrução, o que sugere que não considerava serem experiências das mais
agradáveis. Embora discordem quanto à maior ou menor dureza dos treinamentos no Brasil,
depoimentos de ex-combatentes de diversas unidades relatam que a instrução tornou-se mais
pesada na Itália. Nilson Vasco Gondin (2000, p. 78-79) descreve em seu livro treinamentos
rigorosos no acampamento próximo a Nápoles e Ferdinando Piske, também do primeiro
escalão de embarque, afirmou:
[...] Nós treinamos pouco no Rio de Janeiro, mas o treinamento mais intenso
foi lá na Itália, quando nós fomos treinados por oficiais e sargentos
95
João Carturano, depoimento citado.
96
Arnoldo Müller, depoimento citado (2009).
57
No mesmo sentido, relatou B. A. S., que chegou à Itália com o segundo escalão: [...]
Participei de todos os treinamentos – porque lá fizemos treinamento muito puxado. Antes de
ir para o front. Muito puxado. [...]98. Relatou Ervino Riffel, do terceiro escalão:
[...] Nós tivemos um treinamento muito forte no Rio de Janeiro. [...] Até nós
tínhamos treinamento de tiro real, que a artilharia atirava por cima de nós, e
as metralhadoras, e nós tínhamos que rastejar por baixo para não pegar tiro.
[...] Era treinamento, era tudo, era educação física, treinamento, e
aprendendo a manejar as armas, nós tínhamos armas americanas aqui,
algumas, para treinamento. Lá depois [na Itália] nós recebemos os
armamentos para a guerra, tudo completo.99
Para Adolfo José Klock, marcaram mais os treinamentos da Itália, pois contou que no
Brasil trabalhava na cozinha: [...] aqui pouco valeu, depois quando chegamos lá o americano
é que deu instrução. Ô!100 O ex-combatente A. C. P., do quinto escalão, também destaca: [...]
no porto de Pisa, então tivemos a instrução lá. A rede farpada, tinha que passar por baixo da
rede e a metralhadora atirando por cima. A gente não podia levantar a cabeça, porque senão
era atingido. [...].101 E Manuil Goethel Piegas:
[...] Stafoli era um local onde estava feito um acampamento de pessoal como
reserva para a qualquer momento serem chamados para ir para o front. Nesse
local, era um local de treinamento também. Treinamento bem rígido, porque
era para ali que iriam os futuros substitutos para combater no front. [...]102
97
Ferdinando Piske, depoimento citado.
98
B. A. S., veterano da FEB descendente de alemães, nascido em 1923 em Cachoeira do Sul-RS. Depoimento
concedido em 22 de abril de 2009, em Novo Hamburgo-RS. Não pôde assinar a carta de autorização por ter
sido hospitalizado dias após a entrevista.
99
Ervino Riffel, veterano da FEB descendente de alemães, nascido em 1919, em Brusque-SC. Depoimento
concedido em 08 de abril de 2005, em Brusque-SC.
100
Adolfo José Klock, depoimento citado.
101
A. C. A. P., veterano da FEB descendente de alemães, nascido em 1920, em Pelotas-RS. Depoimento
concedido em 23 de abril de 2009, em São Lourenço do Sul-RS. Nome do depoente omitido pela
impossibilidade de entrar em contato após a entrevista.
102
Manuil Goethel Piegas, veterano da FEB descendente de alemães, nascido em 1922, em Uruguaiana-RS.
Depoimento concedido em 22 de abril de 2009, em Porto Alegre.
58
obeliscos, várias coisas assim. Redes, nós subíamos em enormes redes, tudo
frouxo, difícil para passar. [...] E eu fiz as quatro semanas de instrução
forçada [na Itália] com os monitores americanos, fiz tudo... Eles quase
matavam a gente! 103
[...] Ah, o treinamento aqui no Brasil era assim, era que nem... é, um
treinamento você sabe como é, né?! É uma luta, assim, toda a vida é como é
ainda. Às vezes é no mato, às vezes é fazer tiros, às vezes é a educação
física, e também... [...] isso era que nem agora também aí. Só que lá na Itália
era mais brabo. Lá sempre nós tínhamos que fazer esse treinamento embaixo
de bala real. Aqui não tinha isso ainda. Eles fazem o combate aqui, mas é
tudo sob balinhas [...] Ali [Em Stafoli] era fogo, né?! Era uma instrução dia e
noite, era um cacete. Barbaridade! Era um trabalho tão grande, que parecia
que “meu deus, acho que querem acabar com a gente aqui”. Mas era uma
realidade. Eles tinham que nos preparar para ir para o front. [...]104
103
Fridolino Kretzer, veterano da FEB descendente de alemães, nascido em 1922, em Indaial-SC. Depoimento
concedido em 09 de abril de 2005, em Jaraguá do Sul-SC.
104
Arnoldo Müller, depoimento citado. 2005.
59
[...] Nós não tínhamos mais o que vestir para nos aquecer melhor. A galocha
sem o bozequim, estava cheia de feno, palha de trigo para conservar os pés
quentes, a fim de evitar pé-de-trincheira, para não congelar ou ter de amputá-
los. Além de toda roupa de lã usada, vestíamos ainda um grosso, comprido e
pesado casaco sobretudo, que parecia mais ser um carpet cor de caramelo,
diziam ser inglês. O meu, por exemplo, além de tudo mais, tinha ainda duas
manchas de sangue seco. Também vestíamos um bom cachecol de lã em
volta do pescoço, casquete de lã, onde só apareciam os olhos e a ponta do
nariz, capacete de fibra por baixo e de aço por cima e depois para completar,
uma larga e confortável capa branca que ia do capacete de aço aos pés, onde
dentro da neve nada se via, pois tudo era branco (LINHARES, 2004, p. 71).
Walter Hertel, que estava em Monte Cavalloro no início do inverno, registrou em seu
diário suas impressões sobre o frio:
Nas linhas de frente, são lembradas pelos ex-combatentes situações de perigo e tensão
constantes. B. A. S., que foi sargento transferido do Centro de Recompletamento de Pessoal
(CRP) para o 11º RI em janeiro de 1945, relatou que comandou patrulhas perigosas. Além
disso, por pouco não foi morto por uma bomba quando estava a certa distância da linha de
frente, depois de ter sido quase atingido por uma granada que o deixou atordoado:
[...] A casamata era um buraco cavado num barranco para disfarçar, para não
denunciar as posições da gente, e eu dormia lá e embaixo, a uns 800 metros
ou mais, tinha uma linha de mais de 30 canhões que atiravam a noite inteira.
Tiro de inquietação, como era chamado. E eu, a primeira noite, quase
amanheci enterrado, porque caía terra com os estrondos dos canhões. Aí, no
dia seguinte, a uns 60 metros tinha uma árvore, uma arvorezinha que parecia
um guarda-chuva: “Capitão, eu vou dormir debaixo daquela árvore”.
“Beeenno...” [...] Primeira noite, deitei, sentei no saco de dormir [...,] rezei,
olhei as linhas de canhão lá Bam! Bam! Bam! [...] Dormi feito um anjo!
Segunda noite: dormi feito um anjo! Terceira noite: deitei, fiz a mesma
coisa. Deitei de costas, não deu certo, do lado direito não deu certo,
esquerdo, de barriga para baixo não deu certo, enrolei meu saco e fui para o
buraco. [No] dia seguinte, [...] eu levantei a cortina, aquele sol do dia. [...]
olhei lá para a minha árvore, um monte de terra, um monte de soldado
cavando lá. Aí eu fui indo para lá. Aí um soldado disse: “Capitão, não é
60
Ervino Riffel, soldado que atirava com bazuca pertencente a um pelotão de petrecho
do 11º RI, conta o perigo do trajeto ao front em Monte Castello:
Ferdinando Piske conta que, quando sargento e comandante de pelotão do 6º RI, quase
foi atingido por uma rajada de metralhadoras de norte-americanos, que pensaram que ele e o
soldado que o acompanhava fossem alemães:
[...] Tinha uma senha. Toda a noite trocava essa senha, e a gente tinha que
dizer. Mas esquecemos! Daí o soldado disse: “Sargento, diz a maldita
senha!”. Eu disse: “Bom, você sabe qual é?”. Ele disse: “Não sei não”. Eu
disse: “Então...” – E me deu um estalo. Aí eu gritei “Brazilians!” Aí o cara lá
disse: “Ok, Brazilians. Come on!” Aí nós fomos lá, de mãos levantadas. Aí
ele botou um facho de luz na nossa cara, e disse “Ok, Brazilians, I am
sorry”. Aí nós juntamos nossos fuzis e fomos. [...]107
José Alves da Silva relata suas primeiras experiências na linha de frente de Monte
Castello: [...] Durante o dia 1º permanecíamos quietos, sem mostrar a cabeça para não atrair
os bombardeios, porque os tedescos passavam os dias de binóculos nas mãos, procurando
descobrir as nossas posições. [...] (SILVA, 2001, p. 80-81). Nilson Vasco Gondin relata o
poder de destruição do armamento dos inimigos:
105
B. A. S., depoimento citado. Relatou o depoente que por causa do episódio sua noiva no Brasil recebeu
a notícias que tinha morrido. Quando regressou ao Brasil, ela tinha casado com o carteiro que entregava suas
cartas enviadas da Itália até então.
106
Ervino Riffel, depoimento citado.
107
Ferdinando Piske, depoimento citado.
61
[...] O primeiro combate que eu entrei no front nós fomos render outra Cia. E
no [inaudível] tinha um pé de castanha, bem ramalhudo. Ah! Ali pelas nove
estouraram bomba em cima de nós. Morteiro... Pegou granada em cima do
pé de castanha, em cima, cortou tudo. “Puxa merda, o primeiro combate e eu
já fui pro pau!” E tinha um paulistinha, que era meu colega, que era
pequeninho, magrinho. Eu digo agora “Já viemos e já vamos pro pau!”
[risos]. Mas dessa escapamos. [...]108
[...] Então nós ficamos mais ou menos um mês, a gente cuidava daqui e dali,
até de noite a gente tinha que dar guarda... numa escuridão! [...] De repente,
eu estive de guarda, umas duas horas da madrugada, eu vi um bicho pular,
assim, de branco... “Meu Deus, será que é um alemão?” Mandei ele parar
umas duas, três vezes, não parou, toquei-lhe a bala! Mas aí desapareceu, no
outro dia fui lá ver, era um grande, um coelhão branco. De noite parecia uma
pessoa... Mas, dá um medo de noite, né?! Depois, naquele lugar, naquela
época, puxa, merda! Normalmente a gente era surpreendido por um inimigo,
que por toda a parte estava. [...] os americanos fizeram manobras bem perto
daquele depósito, aí um destes americanos soltou um tiro de bazuca [...] Não
sei como é que foi, aquilo foi bater lá naquele depósito, naquele de munição.
Estourou, e começou a pegar fogo, ah, mas foi uma coisa feia, viu?! Se nós
tivéssemos ficado, não sobrava nada. [...]109
108
Sebastião Ribeiro Duarte, veterano da FEB, nascido em 1921, em Bom Retiro-SC. Depoimento concedido em
11 de março de 2009, em Blumenau-SC.
109
Arnoldo Müller, depoimento citado. 2005. O episódio foi novamente lembrado pelo depoente em entrevista
realizada em 2009.
110
Arnoldo Müller, depoimento citado. 2009.
62
Olha, na FEB eu acho que o era mais difícil para o soldado é a patrulha, né,
compreende? Porque o patrulheiro tem que sair de noite, em geral de noite,
em terreno desconhecido, enfrentar terreno minado... Não sabe onde vai
encontrar o inimigo. Então aí é a parte mais difícil. Mas eu, felizmente,
nunca dei patrulha, porque eu era Chefe de Metralhadora. Chefe de Peça de
Metralhadora. Quem dá patrulha é só fuzileiro.111
[...] A patrulha é uma das piores missões que tem para quem vai fazer.
Porque vai entrar em campo desconhecido, não sabe o que tem na frente, não
sabe quem é que está do lado e também muitas vezes não sabe quem está na
retaguarda, compreende?112
[...] Muitas vezes a gente saía de noite, de madrugada, tremendo pela base
[...] Uma vez eu estava comandando a patrulha, outra vez o pelotão todo. Os
alemães aprontaram uma armadilha para nós. Nós passamos por um
caminho, eles nos deixaram passar, então na volta a gente já vinha tranqüilo,
111
Lot Eugênio Coser, veterano da FEB descendente de alemães, nascido em 1924, em Quaraí-RS. Depoimento
concedido em 20 de abril de 2009, em Gaspar-SC.
112
Manuil Goethel Piegas, depoimento citado.
113
A. C. A. P., depoimento citado.
63
e daqui a pouco a gente topava com eles. Aí tinha que brigar. Mas,
felizmente, nessas patrulhas, nunca houve problemas. [...]114
Mas noutra ocasião não teve a mesma sorte, perdendo um dos homens de seu pelotão:
[...] Foi fazer uma patrulha, e na volta os alemães começaram a atirar, e ali o
terreno era todo minado [...]. Quando o sargento gritou para ele “Vem
embora, nós vamos dar cobertura”, eles entraram em posição, mas ele foi
atingido por uma rajada de metralhadora nas costas quando estava passando
por ali. [...]115
Relata também Ervino Riffel, sobre uma patrulha que antecedeu a tomada de Montese:
Tais situações contrastam com os relatos dos livros dos oficiais da FEB, na medida em
que se concentram no relato dos combates. Uma crônica escrita por Rubem Braga (1964, p.
202) em 18 de janeiro de 1945 já denunciava a diferença entre os pontos de vista de
subalternos e superiores sobre as patrulhas: [...] E, no dia seguinte o comunicado diz que “a
frente estêve calma, limitando-se a atividade de patrulha”. Mas para os homens que fazem
êsses passeios a 14 graus abaixo de zero – a noite não é tão calma assim.
114
Ferdinando Piske, depoimento citado.
115
Id.
116
Ervino Riffel, depoimento citado.
64
em que houve o maior número de brasileiros mortos. A. C. A. P., que mais tarde – nos
combates em Zocca – seria ferido por um estilhaço de granada, contou o horror vivenciado:
[...] Ali foi uma coisa muito feia. [...] Na serra de Montese tinha uma igreja,
com uma torre muito alta. E a gente tinha os alemães lá observando todos os
movimentos. [...] E tinha um tanque na frente dirigido pelo americano. Então
nós íamos avançando, e quando eles viam que a artilharia alemã ia bater em
cima da gente, então ele parava, e nós tínhamos que parar também. Aí nós
nos atirávamos no chão, rastejando. Levamos um dia inteiro até chegar na
cidade de Montese. [...] eles atiravam muito, a artilharia. Morteiro e bombas.
Então ficava aquele poço de terra solta, então eles começavam a minar. [...]
A pessoa pisava em cima, aí o poço explodia [...]. Ali ficou muita gente boa.
Porque muita gente ali morreu e foi atingido, lá. Até que tinha um mulato,
um negro... [...] Um olho tinha saído fora, e [com] o outro ele mal e mal
enxergava. E um companheiro nosso também foi atingido por uma granada...
Foi atingido e, infelizmente, naquela época ele faleceu. Ali ficamos dois
dias, no terceiro fomos substituídos por outra companhia. [...]117
[...] Outros fatos que me marcaram foram as mortes dos meus dois soldados.
Um estava de sentinela comigo quando morreu. E o outro, eu estava sentado
junto com ele e convidei ele para sair daí porque estava caindo granada de
morteiro perto, ele não quis sair, e quando eu saí a granada caiu em cima
dele, ele morreu. Também isso grava muito a gente. [...] Morreu em 16 de
abril, em Montese [...].118
E Manuil Piegas:
117
A. C. A. P., depoimento citado.
118
Lot Eugênio Coser, depoimento citado.
65
Ferdinando Piske relatou a decisão que teve que enfrentar diante de uma civil italiana
muito ferida pelos combates travados entre brasileiros e alemães:
[...] a guerra é um horror. [...] a gente passou por cada coisa... Por exemplo,
uma outra cidade que nós tomamos, Zocca, foi destruída durante uma noite
pelas duas artilharias: a nossa e a dos alemães. Os alemães não queriam
deixar a gente avançar, e nós queríamos avançar e expulsá-los. Então, os
dois se pegaram. Em pouco tempo – era uma cidadezinha como o centro de
Guaramirim – isso ardia de ponta a ponta. [...] A certa altura, ouvimos os
gritos de uma mulher “Per amor, me matem! Me matem! Me matem!”. Aí
nós chegamos perto, a coitada estava com uma criança toda carbonizada, de
uns três anos, deitada em cima dela, ela com a perna quebrada, com uma
baita viga de concreto em cima, e também toda queimada. E gritando “Me
matem! Me matem! Me matem!”. Aí o soldado que estava comigo puxou
119
Manuil Goethel Piegas, depoimento citado.
120
Ervino Riffel, depoimento citado.
121
Adolfo José Klock, depoimento citado.
122
Id.
66
uma pistola e olhou para mim, e eu fiz assim [sinal afirmativo]. Aí eu fui
andando, dali a pouco eu virei a esquerda, estava o pelotão lá. Aí nós
ouvimos aquele tiro seco, e os gritos cessaram. Mas é uma barbaridade! Pelo
menos libertaram a pobre da mulher, já que ela ia morrer mesmo. [...]123
[...] Que o soldado brasileiro sentiu medo lá, isso eu vi, não é, eu mesmo tive
muito medo. Agora, uns tem... Como é que eu vou explicar, uns resistem
melhor ao medo do que outros. Uns tremem, outros não tremem... Eu, graças
a Deus, nunca tremi. Tinha medo, mas não tremi. Mas teve um soldado meu
que um dia eu perguntei “Seu Miranda, deixa de tremer aí!”, ele disse “estou
com frio, cabo”. Está com frio! Ele não estava com frio, estava com medo!125
123
Ferdinando Piske, depoimento citado.
124
Manuil Goethel Piegas, depoimento citado.
125
Lot Eugênio Coser, depoimento citado.
67
O depoente Alcides Conejeiro Peres conta que depois de ter comandado uma patrulha
de seu grupo de combate da 8ª Cia. do 1º RI, sob grande tensão e perigo, foi afastado das
atividades de combate porque teve exaustão de guerra. O Pe. Joaquim de Jesus Dourado,
capelão da FEB, relata em seu livro de crônicas escritas durante as operações na Itália o que
ouviu de um expedicionário internado em um hospital:
passos na minha frente somente ouvi o ruído e deu tempo de cair no chão
quando estourou e ouvi passar estilhaços por cima de mim. Levantei tonto do
estrondo e meu coração estava batendo vivamente. Outras granadas caíram a
20 até 50 mtr. do posto e felizmente não feriu ninguém, somente via-se os
sinais na parede. [...] (p. 65)
126
Denominava-se fox hole, cuja tradução literal significa “buraco de raposa”, os buracos
onde permaneciam os expedicionários na linha de frente, para se protegerem de ataques
inimigos.
69
Assim, durante a realização da maior parte das entrevistas, verificou-se o mesmo que o
do historiador Alessandro Portelli quando colheu depoimentos de outra situação brutal – a
execução de 115 civis em uma pequena cidade da Itália por tropas nazistas:
Foi constatado, todavia, que durante décadas vários dos ex-combatentes da FEB
haviam guardado para si suas memórias. Manuil Goethel Piegas explicitou seus sentimentos
nesse sentido:
127
Edgar Kielwagen, veterano da FEB descendente de alemães, nascido em 1921, em Blumenau-SC.
Depoimento concedido em 20 de abril de 2009, em Blumenau-SC.
128
Gerd Emil Brunckhorst, veterano da FEB descendente de alemães, nascido em 1920, no Rio de Janeiro.
Depoimento concedido em 30 de janeiro de 2010, em São Paulo.
70
Por outro lado, em outras entrevistas, o indizível não é dito. Alguns depoentes
relataram muito pouco de suas experiências, de modo que a transcrição das entrevistas
apresenta perguntas mais longas do que as respostas. Se nos casos anteriormente comentados
os ex-combatentes discorreram sobre suas experiências livremente,130 procurou-se estimular a
memória de outros com perguntas como O que era mais difícil na Itália? Alfredo Gaertner,
sargento que atuou como comandante de pelotão na linha de frente, respondeu: Ah, o mais
difícil? Tudo. Tudo. Questionado novamente, acrescentou poucas palavras: Ah... A gente num
país estranho, enfrentando adversários estrangeiros, tudo perigoso.131 De modo análogo
129
Manuil Goethel Piegas, depoimento citado.
130
Atentou-se na maior parte das entrevistas para recomendações de Gabriele Rosenthal (2005, p. 199) ao
elaborar um questionário de respostas amplas, procurando não interromper o que era relatado: [...] temos que:
primeiro, dar a nossos entrevistados/autobiografados espaço suficiente para criarem sua narrativa, sem
impor uma gestalt alheia através de nossas perguntas e interferências [...].
131
Alfredo Gaertner, depoimento citado.
71
sucedeu a entrevista de respostas lacônicas de João Carturano, que atuou como mensageiro e
telefonista, permanecendo quase todo o tempo na linha de frente, e assim resumiu suas
experiências: A rotina na Itália? Era fome, frio e medo. Fome, frio e medo.132 E também a
conversa com Edgar Kielwagen, que enfaticamente afirmou: Como eu já disse, eu me
acostumava a tudo, fácil. É só.133
Assim também foi a entrevista feita com Walter Hertel. Contrastando com a riqueza de
seus registros feitos no diário analisado, respondeu com frases curtas às indagações feitas.
Sobre sua experiência na FEB, respondeu simplesmente: Boa. Boa, pela amizade. Quanto à
viagem para a Itália: Também boa, dentro do possível. Agora, teve muita gente que passou
mal. Enjoava, ficava como morto na cama. Mas, assim, em geral foi boa.134 Os diálogos
sucederam-se desse modo durante toda a entrevista: respostas breves e vagas, quando não
sinais afirmativos ou negativos. Era de se esperar que entrevistas como a desse depoente e a
de Alfredo Gaertner seriam mais breves do que as realizadas na residência dos ex-
combatentes, já que foram gravadas durante o 22º Encontro da Associação Nacional de
Veteranos da FEB – realizado em novembro de 2010 na cidade catarinense de Jaraguá do Sul.
Os depoentes estavam em um espaço de sociabilidade para interagir com outros ex-
combatentes e dispunham de pouco tempo para as entrevistas.
Mas, além disso, deve-se lembrar um apontamento feito pelo pensador Walter
Benjamin ao observar o comportamento de veteranos da Primeira Grande Guerra (1914-
1918): conforme Jeanne Marie Gagnebin (2001, p. 87), Os sobreviventes que voltaram das
trincheiras, observa Benjamin, voltaram mudos. Por quê? Porque aquilo que vivenciaram
não podia ser mais assimilado por palavras. Por isso, nas entrevistas de respostas breves,
novamente, fizeram-se úteis ensinamentos de Paul Thompson:
[...] A lição importante é aprender a estar atento àquilo que não está sendo
dito, e a considerar o que significam os silêncios. Os significados mais
simples são provavelmente os mais convincentes.
Em suma, o que podemos esperar ganhar pela influência da psicanálise é um
ouvido mais perspicaz para as sutilezas da memória e da comunicação, mais
do que a chave de um quarto secreto (THOMPSON, 2002, p. 204-205).
Deve-se considerar que alguns dos depoentes podem não ter se sentido à vontade para
falar de determinados assuntos com a entrevistadora, como apontado por César Campiani
Maximiano:
132
João Carturano, depoimento citado.
133
Edgar Kielwagen, depoimento citado.
134
Walter Carlos Hertel, veterano da FEB descendente de alemães, nascido em 1922, em Jaraguá do Sul-SC.
Depoimento concedido em 12 de novembro de 2010, em Jaraguá do Sul-SC.
72
[...] há temas que são abordados pelo entrevistador que são tidos por “tabus”:
particularidades da guerra que não são consideradas convenientes de se
comentar com quem não compartilhou da experiência, como episódios de
extrema violência ocorridos em combate [...] (MAXIMIANO, 2005, p. 39).
Notaram-se, de fato, outros temas que foram tratados com dificuldade por parte dos
depoentes, podendo ser considerados tabus. Exemplo disso foi o receio de Gerd Emil
Brunckhorst ao começar um assunto, perguntando a idade da entrevistadora. Quando ouviu a
resposta – 29 anos – ponderou: Bom... Já perdeu muitas ilusões [...], mas hesitou em
continuar: eu nem sei se vou contar essa...135 Em momentos como esse, procurou-se insistir
com gentileza e naturalidade para que o assunto fosse tratado, sem violar a vontade do
depoente, que acabou relatando a história que tinha começado: tratava-se da experiência de
um amigo da FEB com uma menina italiana que se prostituía.
Momentos de lazer e descontração são muito enfatizados no diário de Walter Carlos
Hertel, especialmente nas anotações que dizem respeito aos primeiros meses na Itália. Nas
entrevistas de ex-combatentes, contudo, são lembrados apenas eventualmente. Por certo,
aqueles que chegaram com o primeiro escalão – como o autor do diário – estiveram bem mais
tempo longe das linhas de frente no período inicial. Por terem permanecido por maior tempo
na Itália, por outro lado, permaneceram também durante período maior enfrentando as
durezas do front. Se a memória se reconstrói a partir da interação em diferentes grupos
sociais, no decorrer dos anos, comentários entre a população brasileira que sugeriam que os
expedicionários teriam ido passear na Itália possivelmente contribuíram para que os
momentos de lazer tenham deixado de ter sido valorizados pela memória coletiva mantida
entre os ex-combatentes.
Mas, além disso, como ressalta César Campiani Maximiano – dirigindo pertinentes
comentários a investigações sobre a FEB que não prestaram devida atenção a elementos
intrinsecamente relacionados à experiência da participação de qualquer guerra – o trauma
naturalmente se sobressai a outras experiências na memória dos veteranos de qualquer
confronto:
135
Gerd Emil Brunckhorst, depoimento citado.
73
136
Conforme Henry Rousso: [...] Seu atributo mais imediato é garantir a continuidade do tempo e permitir
resistir à alteridade, ao “tempo que muda”, às rupturas que são o destino de toda vida humana; em suma, ela
constitui – eis uma banalidade – um elemento essencial da identidade, da percepção de si e dos outros. Mas
essa percepção difere segundo nos situemos na escala do indivíduo ou na escala de um grupo social, ou
mesmo de toda uma nação. Se o caráter coletivo de toda memória individual nos parece evidente, o mesmo
não se pode dizer da idéia que existe uma “memória coletiva”, isto é, uma presença e portanto uma
representação do passado que sejam compartilhadas nos mesmos termos por toda uma coletividade
(ROUSSO, 2005, p. 94-95).
137
Lot Eugênio Coser, depoimento citado.
74
138
Cf. Hobsbawm (2004, p. 104-105) e Vilar (1985, p. 161).Germinava o nacionalismo como ideologia de
Estado e se é ideologia – conforme destaca o conceito fornecido por Pierre Bordieu (2007, p. 10) –
necessariamente serve a interesses particulares que tendem a apresentar como interesses universais, comuns
ao conjunto do grupo. Ainda em 1848, Karl Marx e Friedrich Engels (2001, p. 64), no Manifesto do Partido
Comunista, alertavam o proletariado que sua identificação a ideais nacionais favoreceria as classes
dominantes.
139
Segundo Hobsbawm (2004, p. 34), os valores nacionais vinculados à Revolução Francesa preocupavam-se
essencialmente com a disposição de adotar a língua francesa junto com outras coisas como as liberdades, as
leis e as características comuns do povo.
140
De acordo com Hannah Arendt (2000, p. 188), a ideologia racista, com raízes profundas no século XVIII,
emergiu simultaneamente em todos os países ocidentais durante o século XIX, impulsionada por diversos
movimentos migratórios que chegavam aos países europeus.
141
Conforme Eric Hobsbawm (2004, p. 131), [...] Por um lado, a velha e estabelecida divisão da humanidade
em algumas poucas “raças” que se diferenciavam pela cor da pele passou a ser elaborada agora em conjunto
de diferenciações “raciais” que separavam pessoas que tinham aproximadamente a mesma pele clara, como
“arianos e semitas” ou, entre os “arianos”, os nórdicos, os alpinos e os mediterrâneos. Por outro lado, o
evolucionismo darwinista, suplementado pelo que seria depois conhecido como genética, alimentou o racismo
com aquilo que parecia ser um conjunto poderoso de razoes “científicas” para afastar ou mesmo, como
aconteceu de fato, expulsar e assassinar estranhos [...].
142
As teorias racistas, nas palavras Martines Xiberras (1993, p. 15) tentam excluir uma categoria da população
definida como um alvo a eliminar. Explica Pierre Ansart (2001, p. 24-25) o efeito desse tipo de medida: para
um grupo, a ideologia política, designando claramente os alvos do ódio e do desprezo, pode fornecer aos
membros do coletivo um reforço da auto-estima e da segurança interior. No mesmo sentido, afirma
Hobsbawm (2004, p. 122): não há modo mais eficaz de unir as partes díspares de povos inquietos do que uni-
los contra forasteiros.
76
socialista, que havia se retirado da guerra desde a Revolução de Outubro de 1917, enfatizou
princípios de legitimidade nacional para fortalecer movimentos de libertação emergentes nos
países coloniais, contrariando os interesses dos Estados imperialistas. Argumentos
nacionalistas burgueses foram evocados pelas potências liberais vencedoras – Grã-Bretanha,
França, Itália e seus aliados – para justificar as novas fronteiras desenhadas na Europa e nos
Bálcãs, redistribuindo territórios dos antigos impérios multinacionais extintos, estabelecendo
reparações de guerra e isolando a Rússia com a criação de Estados anticomunistas em sua
fronteira ocidental – Finlândia, Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia e Romênia. Nos novos
Estados, movimentos liberais locais receberam apoio para que assumissem a liderança dos
governos democráticos instaurados.143
Como as populações nacionais não ocupavam territórios contíguos, os ideais
nacionalistas pela primeira vez utilizados para a definição de fronteiras, na prática, criaram
outros países multinacionais, nos quais sentimentos exaltados em oposição ao “outro”
legitimaram a perseguição das minorias. Na União Soviética, a partir de meados dos anos 20,
o socialismo liderado por Josef Stalin voltou-se para o interior das fronteiras nacionais.144 Nos
países capitalistas em geral, que enfrentaram severas crises econômicas nos anos entreguerras,
a idéia de uma economia nacional foi favorecida por políticas protecionistas adotadas não
apenas pelos diversos regimes autoritários inspirados no fascismo italiano e no nazismo
alemão – marcados pela centralização do poder nas mãos do executivo – mas também pelos
governos liberais, contrariando princípios de livre mercado que tanto cultuavam.145
No fascismo italiano, no nazismo alemão e nas ditaduras neles inspiradas o
nacionalismo era tido como componente fundamental. Mas propagandas nacionalistas
também foram difundidas amplamente por governos liberais, dependentes cada vez mais da
opinião pública para a sustentação de medidas implantadas e dos próprios regimes e
ameaçados por forças políticas divergentes. Antigos mitos e tradições ganhavam nova
roupagem e novos eram criados, como já havia ocorrido no fim do século XIX.146
143
Cf. Mandel (1989, p. 20).
144
Como ressalta Montserrat Guibernau (1997, p. 23), essa política contrariava teorias de Karl Marx que
descartavam a possibilidade do comunismo limitado a um só país. Opondo-se à posição internacionalista de
Leon Trotsky, revolucionário que mantinha firmemente posição internacionalista, Stalin incorporou em suas
teorias grandes preocupações com a libertação nacional dos países coloniais ou economicamente dependentes
das grandes potências
145
Cf. Hobsbawm (2004, p. 159-161).
146
De acordo com Hobsbawm (2006, p. 9), a invenção de tradições visava promover a coesão grupal e inculcar
certos valores e normas de comportamento através da repetição, forjando a sensação de uma ligação com o
passado.
77
147
Ainda na década de 30, Walter Benjamin (2005, p. 171-172) preocupava-se com a função política assumida
pela obra de arte quando reproduzida pelo rádio e o cinema: rompiam-se as fronteiras que dividiam a arte e a
cultura dos anúncios publicitários ou propagandas estatais. Partindo dessas idéias, anos mais tarde, Theodor
Adorno e Max Horkheimer (2000, p. 169-214) cunharam o termo indústria cultural para se referir à produção
e apropriação de obras de arte pelos meios de comunicação, utilizadas como os outros instrumentos do
capitalismo para a dominação das maiorias pelos grupos que detinham o poder político ou econômico. Sobre o
assunto Cf. também Clark (2000, p. 7-8).
148
De acordo com Hannah Arendt (2000), locais denominados campos de concentração, extensamente utilizados
pela Alemanha, foram utilizados pela primeira vez pela a Grã-Bretanha para sua política imperialista na África
do Sul. Após a entrada dos Estados Unidos na guerra contra o Japão, seus campos de concentração
confinariam sobretudo famílias de imigrantes japoneses, consideradas inimigas.
149
Explica Pierre Vilar (1985, p. 159) que elementos que deificavam a noção de comunidade já se faziam
presentes em obras anteriores de autores alemães como Johann Gottfried Herder (1744-1803) e Johann
Gottlieb Fichte (1762-1814).
78
150
Cf. também Poliakov (1974, p. 65-69).
79
alemães – atrás somente dos Estados Unidos.151 Enquanto chegavam os imigrantes ao Brasil,
companhias colonizadoras alemãs empenhavam-se na difusão de valores que incentivavam a
manutenção de sentimentos de pertença à Alemanha, buscando um mercado consumidor fiel
entre os colonos. Periódicos de comunidades teutas do Sul do Brasil, em língua alemã,
recebiam auxílio técnico e material da Liga Pangermânica, além de textos redigidos por
intelectuais alemães. Escolas particulares recebiam apoio financeiro e professores vindos da
Alemanha.152 Valores pangermânicos eram também trazidos – conscientemente ou não – por
uma parte dos imigrantes leigos ou religiosos que chegaram a partir do final do século.153
Medidas tomadas na Alemanha, especificamente para a difusão do Deutshtum entre os
alemães que viviam no exterior, foram intensificadas no século XX, muitas vezes com o apoio
da iniciativa privada154 e, mais ainda, desde a ascensão do nazismo, quando passaram a ser
promovidas também aparições de zepelins, transmissões de discursos de Hitler pelo rádio e
oferecimento de bolsas de estudo na Alemanha. Exaltava-se o progresso instituído pelo
nazismo na Alemanha, cultuava-se seu líder Adolf Hitler e, durante a guerra, admirava-se o
desempenho do potente Exército Alemão.155
Por outro lado, o governo brasileiro, a exemplo de outros países, também empreendia
esforços para a construção de ideais de nação, principalmente desde a chegada de Getúlio
Vargas ao poder em 1930. A questão nacional confundia-se com idéias típicas do período
entreguerras: mudança, modernidade e progresso. Aponta Márcia D’Aléssio (2007, p. 164)
que os anos entre 1930 e 1945 foram marcados pela centralização e o objetivo de transformar
o país num Estado-nação moderno, a despeito de suas elites, no geral politicamente em
descompasso com o modus faciendi burguês.
As primeiras medidas do governo revogaram a Constituição de 1891 e fecharam
órgãos do Poder Legislativo: o Congresso Nacional, as assembléias estaduais e as municipais.
151
A vinda desses imigrantes atendia a interesses do Estado brasileiro, que necessitava ocupar territórios ao Sul,
e do Estado alemão, com população excedente. Seu transporte e instalação consistia, ao mesmo tempo, em
atividades lucrativas para grandes empresas envolvidas – companhias colonizadoras, bancos e transportadoras.
152
Cf. Magalhães (1998, p. 103-105). A imprensa local tinha alcance considerável entre os teuto-brasileiros. De
acordo com René Gertz, considerando-se só Santa Catarina, [...] Os três grandes jornais deste estado tinham
em conjunto uma tiragem de pouco mais de 10.000 exemplares Admitindo que viviam 250.000 teutos no
estado e que conseqüentemente havia 50.000 lares, se teria uma média aproximadamente de um jornal para
quatro ou cinco lares [...] (GERTZ, 1987, p. 73).
153
Cf. Magalhães (1998, p. 28-41).
154
Militantes e intelectuais alemães reuniam-se em entidades como a Deutsche Kolonialgesellschaft (Sociedade
Alemã Colonial), o Verein für das Deutschtum im Ausland – VDA (Liga pela Germanidade no Exterior) e em
partidos como o Nationale Volkspartei (Partido Popular Nacional Alemão). Em 1909 foi criado um órgão
denominado Zentralstelle für die Forschung des Deutschtum sim Ausland – ZDA (Central de Pesquisa da
Germanidade no Exterior), que subsidiará os programas de pesquisa que apóiam a emigração e o fomento à
cultura pangermânica no exterior (MAGALHÃES, 1998, p. 105-107).
155
Cf. Tota (2000).
80
O Executivo passou a governar por meio de decretos-lei e teve seus poderes ainda mais
ampliados com a deposição dos governos estaduais, no lugar dos quais foram nomeados
interventores federais, quase sempre militares.156 A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)
foi criada através do Decreto-Lei nº 5.452, de 1° de maio de 1943 e sancionada pelo então
presidente Getúlio Vargas durante o período do Estado Novo, unificando toda legislação
trabalhista então existente no Brasil. Desde o início dos anos 30, foram criados órgãos de
controle para intervir na economia, que – dependente de importações para a obtenção de
produtos industrializados – foi profundamente atingida pela crise mundial.157
Se tais iniciativas contemplavam interesses de parte das forças que apoiaram o golpe
que levou Vargas ao poder, principalmente o movimento tenentista, enfrentaram forte
oposição entre as oligarquias constitucionalistas, pois uma das implicações envolvidas no
projeto modernizador era o fim da hegemonia da oligarquia cafeeira, que protagonizava o
cenário político e econômico até então.158 Com o crescente descontentamento de segmentos
das elites liberais, concretizado na Revolução Constitucionalista de 1932, as eleições para a
Assembléia Constituinte tornaram-se inadiáveis e, em maio de 1933, se elegeram em quase
todos os estados os candidatos ligados aos partidos apoiados pelos interventores. Uma nova
constituição foi promulgada em julho do ano seguinte, baseada no modelo de Estado liberal,
aumentando a ação do Legislativo. A despeito da insatisfação de uma parte dos deputados
quanto às ações políticas tomadas até então pelo governo, no mesmo mês a Assembléia elegeu
Vargas como presidente, com mandato até as eleições previstas para maio de 1938.159
Enquanto isso, surgiam e se fortaleciam no Brasil movimentos inspirados em debates
internacionais considerados por Thomas Skidmore (1996, p. 41) como os primeiros
movimentos políticos nacionais de aguda orientação ideológica. De um lado, a Ação
Integralista Brasileira (AIB), criada em 1932, considerava a adaptação do fascismo europeu a
solução para os problemas políticos e econômicos enfrentados no país. Oscilando entre fases
de apoio e de oposição ao governo, condenava o capitalismo e, principalmente, o comunismo,
156
Cf. Pandolfi (2007, p. 18).
157
Dentre outras ações, permitiram determinar o valor das mercadorias, celebrar de acordos internacionais para a
troca de produtos e mesmo eliminar a produção excedente que pudesse ameaçar o valor de troca, como foi
feito com dezenas de milhões de sacas de café. Mesmo amenizados pelas políticas intervencionistas, os graves
problemas econômicos estenderam-se durante toda a década (CARONE, 1977, p. 15-16).
158
O movimento tenentista, organizado desde a década anterior, era formado principalmente por quadros do
Exército distantes da alta oficialidade, baseava-se em ideais nacionalistas semi-autoritários e modernizadores e
ansiava pelo progresso social e mudanças profundas que exigiam o fim das oligarquias existentes. As
oligarquias constitucionalistas, por sua vez, apoiavam-se em ideais liberais e, pautando-se basicamente no
descontentamento com as fraudes e corrupção nos processos eleitorais, visavam manter-se como classe
dirigente, com o mínimo de mudanças possível (SKIDMORE, 1996, p. 27). Cf. Vianna (2007, p. 67).
159
Cf. Pandolfi (2007, p. 28).
81
160
[...] reuniu entre 500 mil e 800 mil aderentes, para uma população do país de 41,5 milhões de habitantes em
1935 (MAIO e CYTRYNOWICZ, 2007, p. 41,47).
161
Cf. Pandolfi (2007, p. 33).
82
canceladas e foi promulgada uma nova constituição que concedia ao Executivo os poderes de
presidir o país até as novas eleições, que somente deveriam ocorrer depois de seis anos.162
Vários historiadores consideram que o Estado Novo não consistiu em simples
continuidade do projeto que vigorava desde o golpe de 30.163 De acordo com Thomas
Skidmore, os confrontos políticos assumiram a partir de então novas tonalidades:
162
Cf. Pandolfi (2007, p. 33-34).
163
Para Dulce Pandolfi (2007, p. 35), consistiu em um dos resultados possíveis das lutas e enfrentamentos
diversos travados durante a incerta e tumultuada década de 1930.
164
Cf. Maio e Cytrynowicz (2007, p. 48).
165
Cf. Carone (1977, p. 268-271).
83
Estudar até que ponto laços identitários relacionados à Alemanha eram mantidos por
descendentes de alemães incorporados à Força Expedicionária Brasileira nos anos anteriores
exige considerar o alerta de Eric Hobsbawm:
166
Conforme constatou na sua dissertação de mestrado Santino Andrade (2000, p. 97), nos jornais que
circulavam na época em Santa Catarina, estado que recebeu grande número de imigrantes da Alemanha,
grande era a valorização de características a eles atribuídas: não apenas estéticas – pele clara e olhos azuis –
mas também morais – bons trabalhadores e bem disciplinados.
167
Cf. Fáveri (2004, p. 40-41).
168
Cf. Dietrich (2007, p. 56).
84
Portanto, sem perder de vista que as nações consistem numa construção política, a
partir dos Estados e portanto, inserida nas lutas de classes,169 podem ser concebidas ao mesmo
tempo como comunidades imaginadas, expressão que intitula um renomado estudo do
antropólogo Benedict Anderson (2008), ou como religiões, nos termos de Elias Canetti, em
Massa e poder (2005).
Levando-se em conta que [...] as ideologias oficiais de Estados e movimentos não são
orientações para aquilo que está nas mentes de seus seguidores e cidadãos, mesmo dos mais
leais entre eles [...] (HOBSBAWM, 2004, p. 20), foram analisadas entrevistas de veteranos
da FEB visando aferir aspectos que sugerem sentimentos identitários nacionalistas. O
primeiro é a utilização ou não do idioma alemão durante a infância e juventude, pelos
vínculos já expostos entre a língua e a noção de germanidade.
Entre oito ex-combatentes da FEB descendentes de alemães habitantes de
comunidades teutas entrevistados, quase todos relataram que utilizavam cotidianamente o
idioma alemão durante a infância e juventude. Contou com naturalidade Arnoldo Müller,
católico, nascido em Blumenau, SC:
169
Cf. Hobsbawm (2004) e Vilar (1985).
85
oficial da nação. Arnoldo Müller esclarece: [...] a nossa linguagem era um dialeto diferente,
era Plattdeutsch. Era um pouco diferente assim do Hochdeutsch170, Hochdeutsch é diferente,
é mais gramática assim... E Plattdeutsch era [de] uma zona da Alemanha [...].171 Da mesma
forma, conta O. N.,172 nascido em Pelotas-RS, que a língua das conversas em casa era
[Hoch]Deutsch sprechen.173 Ervino Riffel menciona a reação de habitantes de Blumenau
diante do dialeto que aprendeu em Brusque:
O depoente A. C. A. P., que vivia numa região de Pelotas que hoje integra o município
de São Lourenço do Sul, Rio Grande do Sul, e expressa nitidamente a manutenção até hoje de
sentimentos identitários relacionados à língua de seus antepassados:
170
Plattdeutsch é o dialeto conhecido como baixo alemão, falado no Norte da Alemanha. É uma das variações
lingüísticas existentes na Alemanha (Hochdeutsche Sprachen – em português, alto alemão), em oposição à
língua oficial (Hochdeutsche, identificado por parte dos depoentes como alemão gramatical).
171
Arnoldo Müller, depoimento citado. 2009.
172
O. N., veterano da FEB descendente de alemães, nascido em 1920, em Pelotas-RS. Depoimento concedido
em 23 de abril de 2009, em Pelotas-RS. O nome do depoente foi omitido devido a seu falecimento, sem que
pudesse encaminhar a carta de autorização.
173
Ver nota XXX
174
Ervino Riffel, depoimento citado.
175
A Pomerânia é uma região situada na costa do Mar Báltico que abrange uma parte do Norte da Alemanha e
da Polônia.
176
A. C. A. P., depoimento citado.
86
inclusive o idioma – mais por inércia do que por uma posição política consciente. Segue um
dos argumentos do autor para demonstrar o descomprometimento das camadas menos
abastadas em relação à manutenção de costumes tidos como alemães:
De fato, é o que se constata nas experiências relatadas pela maioria dos 11 veteranos
da FEB descendentes de alemães que viviam em comunidades teutas. Católicos ou
protestantes, de segunda à quinta geração em relação a seus antepassados imigrantes,
habitantes regiões predominante agrícolas ou urbanas, nascidos entre 1919 e 1923, em geral
não pertenciam às elites e não freqüentavam seus clubes e instituições. Seis declararam ter
estudado ao menos por um período em escola pública: Adolfo José Klock, Alfredo Gaertner,
Arnoldo Müller, Edgar Kielwagen, Ervino Riffel e Ferdinando Piske. Dos cinco que contaram
ter estudado em escolas particulares, três afirmaram que as aulas eram ministradas exclusiva
ou parcialmente em português: José Edgar Eckert, Osmar Neutzling e Walter Carlos Hertel.
Fridolino Kretzer, que estudou em escola alemã, relatou que aprendeu a falar português como
língua materna, concomitantemente ao idioma alemão, como também José Edgard Eckert e
Osmar Neutzling.
Os que não aprenderam a falar português na escola ou com a família, contaram ter
aprendido na interação com outras pessoas que viviam na região. É o caso de Ervino Riffel:
Ah, a gente foi falando... sei lá, não me lembro mais bem...178 E de Edgar Kielwagen:
[...] com os anos, vamos dizer, a partir dos anos 30, entrou lá no Bairro
Itoupava Seca, ou entraram sempre mais gente de origem portuguesa. E aí
não tinha problema, o meu pai aprendeu logo. Ele até tinha empregados.
Tinha um negro, tinha um mulato, os outros dois eram brancos. A minha
mãe era de [...] origem alemã. Mas ela aprendia o português também. Por
causa dos empregados que construíram a estrada de ferro naquela época, e o
pai dela tinha hotel. Então ficou conhecendo de origem portuguesa também.
E a gente aprendia no convívio.179
Também de A. C. A. P.:
177
Também considerando relações políticas das comunidades, elucida Luiz Felipe Falcão (1998, p. 65) que
condições como o apego ao Deutschtum e o desconhecimento do português deixavam a população mais
dependente das elites locais. Assim o isolamento dos colonos alemães do restante da população brasileira pode
assumir uma feição menos dependente dos acidentes da geografia e das diferenças étnicas, para se revelar
igualmente como parte de uma estratégia de controle e dominação.
178
Ervino Riffel, depoimento citado.
179
Edgar Kielwagen, depoimento citado.
87
Outro descendente de alemães entrevistado que nenhuma relação teve com a FEB – o
agricultor Samuel Guesser, nascido em 1917, habitante de Antonio Carlos, SC181 – relatou,
como os ex-combatentes A. C. A. P. e Fridolino Kretzer, ter estudado em escola com aulas
ministradas exclusivamente em alemão: Era uma escola em que se pagava um réis por aluno
por mês. O Consulado Alemão ajudava também. Daí, só se falava alemão [...]. Contou
também ter aprendido a falar português na interação com outras pessoas da região:
Eu ia aprendendo assim... Eu gostava era muito dos pretos! Nós íamos muito
ali para Antônio Carlos, lá tinha uma igreja pequenininha, mas pequena
mesmo [...] Então a gente aprendia algumas coisas, às vezes vinham pretos
por aqui apanhar laranja, porque a laranja se vendia naquela época. Eu fazia
outros serviços, e assim a gente ia aprendendo. Meio torto, assim como saía
estava bom. [...]182
[...] Antigamente, isso era quase uma traição à raça. Se um alemão casasse
com uma brasileira, isso era uma baixeza. Hoje a maioria se casa cruzado.
[...] Eu não queria casar com brasileira. Também, brasileiros naquela época
eram uma gente muito relaxada, então era tudo pobre, pobre... Assim, ao
redor das casas era só mata-pasto e erva. E moravam todos em terra boa.
180
A. C. A. P., depoimento citado.
181
Vivia na localidade de Rachadel, comunidade alemã. Na época, Antonio Carlos pertencia ao município de
Biguaçu.
182
Samuel Guesser, descendente de alemães, nascido em 1917, em Antonio Carlos-SC. Depoimento concedido
em 16 de abril de 2005, em Antonio Carlos-SC.
183
A depoente é casada com o veterano da FEB Manuil Goethel Piegas.
88
As finalidades da guerra
(‹Transocean›, Agência alemã)
Quais as finalidades que motivaram a guerra que, depois de 2 anos,
continua-se travando? Sim, 2 anos já dura esta guerra, que em 3 de setembro
de 1939 a Inglaterra e a França declararam à Alemanha, quando não queriam
permitir que fossem reparadas as injustiças do passado nem reestabelecida,
na fronteira ocidental alemã, a situação que correspondia á verdade histórica
do continente.
É verdade que isso foi apenas um pretesto. De inúmeros documentos e
declarações dos nossos inimigos, deduz-se, sem logar a sofismas, que a
guerra foi declarada á Alemanha porque está, inflexível, e consciente dos
seus direitos, queria ocupar o logar que lhe cabe na Europa. [...].186
184
Consistiam basicamente em proibir textos que ameaçavam valores como a unidade nacional, os interesses do
país, a dignidade do Brasil ou o sentimento nacional. Afirma, contudo, o autor: o que havia sido liberado
ontem poderia ser proibido amanhã e vice-versa, fazendo da informação uma moeda regida por leis sobre as
quais nem o informante, o transmissor, e muito menos o receptor, tinham qualquer poder. (SOUZA, 2003, p.
178-179).
185
Cf. Gertz (1987).
186
As finalidades da guerra. Correio Dona Francisca. 09 out 1941, p. 3. Jornal consultado no acervo de
periódicos da Biblioteca Pública de Florianópolis.
89
Todo mundo era eufórico. Timbó [, SC], meu Deus do céu! Em Timbó,
naquela época, tinha umas três ou quatro famílias de brasileiros, o resto era
tudo alemão. Então todo mundo torcia, inclusive com o meu patrão, a gente
escutava, antes de iniciar a transmissão das notícias da rádio de Berlim,
vinha o sino do Big Ben, de Londres. Ele batia a cada navio aliado que os
alemães tinham afundado durante o dia. Então, os alemães vibravam! Eu sei
que uma noite foram setenta e dois! Nós dormíamos pegados na sala de
visita, eles vibravam!187
[...] eu ia sempre num alfaiate escutar à noite, num rádio que ele tinha,
quantos navios os alemães afundaram dos americanos e dos ingleses. E fazia
[ruído]: “quinze navios os alemães botaram no fundo”. Eram as notícias que
a gente recebia. Vinham direto de lá, os alemães davam as notícias, a gente
recebia aqui. [...] Então a gente sabia assim. Os que eram de população
alemã, eram todos a favor do Hitler. [...] eram todos hitleristas. [...]188
187
Ferdinando Piske, depoimento citado.
188
Fridolino Kretzer, depoimento citado.
189
Gerd Emil Brunckhorst, depoimento citado.
190
Id.
90
Ah, você vai me desculpar! Era uma alegria, disseram que Hitler deu uma
avanço... Era nossa gente, né?! Torcia pelo Hitler! “O Hitler avançou lá,
matou tantos” – opa, isso era um prato cheio para nós, meu pai,
principalmente...192
191
Samuel Guesser, depoimento citado.
192
Bernardino Besen, descendente de alemães, nascido em 1930. Depoimento concedido em 16 de abril de 2005,
em Antonio Carlos-SC.
193
Luigina De Beni Arrigoni, nascida em 1929, que vivia na cidade de Conegliano, província de Treviso, no
Veneto (Norte da Itália). Entrevista realizada pelo Programa de Educação Tutorial de História (PET-História)
da Universidade Federal de Santa Catarina em Florianópolis-SC, em 18 de outubro de 2002.
194
Walter Carlos Hertel, depoimento citado.
195
Adolfo José Klock, depoimento citado.
91
respondeu: A gente vivia na agricultura. Nem se importava com essa parte [...].196 Ervino
Riffel descreve indivíduos da comunidade onde vivia como “esses alemães mesmo”:
Edgar Kielwagen, por sua vez, mencionou que havia [...] certos alemães que
simpatizavam com o regime de Hitler [...] e, em outro trecho: [...] Naquela época alguns
eram fanáticos, que adoravam Hitler, mas a maioria não [...].198 Quando questionado se a
comunidade torcia para a Alemanha, Arnoldo Müller respondeu: A grande parte... São
safados!199 Contou ainda sobre os habitantes de Blumenau – [...] eu sei que eles torciam,
barbaridade, faziam uma torcida barulhenta, uma coisa de louco. Quando dava aquelas
notícias que eles afundavam os navios, gritavam de alegria –200 e expôs sua opinião sobre um
conhecido que foi à Alemanha para integrar as tropas nazistas, [...] um metido, um
alemãozinho assim, né, metidão [...].201 Em outro trecho, o depoente afirma sobre os soldados
alemães na guerra:
[...] Eles eram ferozes mesmo naquela época, gente muito preparada... As
forças alemães eram as melhores do mundo naquela época, até tomaram a
Polônia parece que em 24 horas, França em 48 horas... Eles pintaram o
caneco, sabe, no princípio. [...]202
196
A. C. A. P., depoimento citado.
197
Ervino Riffel, depoimento citado.
198
Edgar Kielwagen, depoimento citado.
199
Arnoldo Müller, depoimento citado. 2009.
200
Arnoldo Müller, depoimento citado. 2005.
201
Arnoldo Müller, depoimento citado. 2009.
202
Id.
203
A. C. A. P., depoimento citado.
92
Bom, eu achava [que] o regime estava bom, porque fez uma limpeza. Tinha
muito comunista. E muitos outros partidos, que só criavam confusão, não
deixavam Hitler melhorar o país como devia. Mas no fim Hitler conseguiu,
assumindo o governo de Hindenburg, que era o chanceler alemão naquela
época. [...] Só sei que o negócio funcionava bem lá, até que começou a
guerra, e mudou outra vez.204
[...] ele tirou a Alemanha da miséria! Antes que ele tomasse posse na
Alemanha, lá doutores, advogados andavam com placas nas costas pedindo
pelo amor de Deus um servicinho, o que vinha, né... E depois que ele tomou
conta, ah, ele deixou essa Alemanha lá em cima. Nessa parte, foi
extraordinário [...].205
204
Edgar Kielvwagen, depoimento citado.
205
Arnoldo Müller, depoimento citado. 2005.
206
Id.
207
Arnoldo Müller, depoimento citado. 2009.
93
A simpatia pelo regime alemão, com isso, geralmente não tem relação – como
destacou Gerd Emil Brunckhorst no trecho citado – com a aprovação de ações da Gestapo ou
os massacres feitos nos campos de concentração. Tomou-se o cuidado ainda de diferenciar
percepções de ex-combatentes descendentes diante do regime nazista na Alemanha – e seu
líder, Adolf Hitler – e as organizações nazistas no Brasil. Demonstrou Gertz (1987) que a
atuação de partidários do nazismo no Brasil não era bem vista pelos indivíduos envolvidos
particularmente na difusão de ideais do Deutschtum, pois os líderes das organizações nazistas
tentaram impor sua autoridade nas comunidades, onde as relações de forças já estavam
estabelecidas. Considerou também o autor pequeno o número de pessoas filiadas ao Partido
Nazista do Brasil nos estados do Sul do Brasil,209 diante do total das que cumpriam com as
exigências necessárias à filiação.
Entre os veteranos da FEB de comunidades alemães, os depoimentos demonstraram
pouco – ou nenhum – conhecimento sobre a atuação do partido. Ervino Riffel relatou que não
conhecia. Contou Arnoldo Müller,210 sem tanta certeza: Eu acho que não. Pode ser que
existia, mas mais secretamente... É, a gente não sabia... Eu não sabia não... Mas com certeza
tinha... Tinha.... De acordo com Ferdinando Piske: Não, aqui não. Tinha alguns, eu sei que eu
vi por aí. Mas era isolado, uma meia dúzia de gatos pingados. Quer dizer, não tinham
influência nenhuma.
Quanto a modos ambíguos verificados nos depoimentos ao abordar os sentimentos em
relação ao nazismo, é possível sugerir hipóteses intrinsecamente relacionadas a implicações
das fontes orais. Primeira, deve-se considerar que a recepção de valores nacionalistas – como
a de quaisquer propagandas políticas – estabelece-se desigualmente entre a população.
Posição deliberadamente contra o nazismo, embora muito raramente mantida entre os
habitantes de comunidades alemãs,211 é verificada no depoimento de José Edgar Eckert, que
208
O regime era encarado dessa mesma forma pela população alemã em geral, associado a recuperação da honra
da Alemanha humilhada. Cf. Rémond (2002, p. 89, 94-97, 108) e Hobsbawm (2007, p. 44).
209
Da estimativa de 5.000 membros do partido em todo o Brasil, o autor supõe que 400 a 500 eram do Rio
Grande do Sul e aproximadamente o mesmo número de Santa Catarina, sendo que havia [...] 25.000
indivíduos nascidos na Alemanha nestes dois estados [...] que, portanto, cumpriam com os requisitos para
pertencer ao partido (GERTZ, 1987, p. 87).
210
Arnoldo Müller, depoimento citado. 2005.
211
Cf. Gertz (1987, p. 91).
94
descreve a população que torcia pela Alemanha como gente fanática. Se Edgar Kielwagen –
que emprega expressão semelhante para se referir a quem torcia pela Alemanha na guerra –
demonstrou aprovar o regime nazista, afirmou José Edgar Eckert que seu pai [...] lia muito
jornal, sabia do que se tratava. E ele ensinava nós a não gostar disso aí [...].212
Nesse sentido, cabe destacar que opiniões mantidas pela maioria dos habitantes de
localidades de colonização alemã não foram verificadas em depoimentos de ex-combatentes
que viviam fora dessas regiões, com exceção do de Gerd Emil Brunckhorst. Afirmou Lot
Eugênio Coser, filho de pai alemão que mal chegou a conhecer:
Já Manuil Goethel Piegas relatou que não tinha preocupação com a guerra até o
momento de sua convocação:
[...] Os adolescentes naquela época pensavam mais o seguinte: eu, [no] meu
caso, vou falar o meu caso, eu estava com 18 anos, precisava arrumar um
certificado de reservista pra eu poder trabalhar, porque ninguém empregava
ninguém sem o certificado de reservista, porque depois tinha que servir, aí
ficava a firma desfalcada de empregados. [...] sobre o nazismo, isso sempre
foi coisa... Desculpa, viu... Coisa de intelectual. Tá? [...]214
212
José Edgar Eckert, depoimento citado.
213
Lot Eugênio Coser, depoimento citado.
214
Manuil Goethel Piegas, depoimento citado.
215
Cf. Pollak (1992).
95
216
O. N., veterano da FEB descendente de alemães, nascido em 1920, em Pelotas-RS. Depoimento concedido
em 23 de abril de 2009, em Pelotas-RS. O nome do depoente foi omitido devido a seu falecimento, sem que
pudesse encaminhar a carta de autorização.
217
Cf. Campos (2006), sobre essas proibições em particular.
218
João Carturano, depoimento citado.
96
[...] Isso foi um grande erro do Getúlio, porque você veja: quem criou
escolas em todo esse sul – principalmente, que eu me lembro, aqui na região
– foram os alemães, só tinha escolas alemãs. Eles construíram escolas,
trouxeram professores da Alemanha para ensinar, e, de repente, ele baixa um
decreto de que era proibido falar em alemão, italiano e japonês [...].219
[...] Aqui não aconteceu, ali em Jaraguá dizem que iam umas turmas de
perseguidores pegar os alemães, e xaropeavam com óleo diesel, óleo diesel
desses de mover caminhão, daí xaropeavam eles, chamavam assim “quinta-
coluna!”. Aí então, para não morrer, depois que eles saíam dali, botavam o
dedo na garganta para vomitar o óleo. Não vi, mas contam...223
219
Ferdinando Piske, depoimento citado.
220
Arnoldo Müller, depoimento citado. 2005.
221
De acordo com René Gertz (1987), desde a proclamação da república, o poder no estado era disputado entre
proprietários do planalto da região de Lages, representados principalmente por integrantes da tradicional
família Ramos, e grupos relacionados aos interesses dos industriários do nordeste do estado, região de
colonização alemã. Quando Vargas chegou à presidência, em 1930, entregou o cargo de interventor federal à
família Ramos, que implantou durante toda a década iniciativas repressoras contra as comunidades alemãs,
intensificadas a partir de 1935, quando entrou em vigor uma nova constituição estadual e Nereu Ramos
assumiu o cargo.
222
Ervino Riffel, depoimento citado.
223
Bernardino Besen, depoimento citado.
224
Milton Fonseca, veterano da FEB, nascido em 1919, em Tubarão-SC. Depoimento concedido em 12 de
novembro de 2010, em Jaraguá do Sul-SC.
225
Samuel Guesser, depoimento citado.
97
Situação em que um indivíduo foi obrigado a cantar o Hino Nacional foi lembrada por
Ferdinando Piske:
[...] por incrível que pareça, eu tive um colega – sargento, no batalhão [...]. E
ele pegou lá um alemão e botou lá num quadrado na frente da escola. Pôs o
alemão no meio, e fez ele engolir uns dois copos de óleo de rícino. E aí: “Vai
cantar agora o Hino Nacional Brasileiro!”. Só que o homem não sabia. Então
ele chamou a polícia, levaram o coitado do alemão pra cadeia, não sei o que
houve. E ele achava que ele era um herói! Aí a gente juntava em cima dele:
“Espera aí, mas não é assim! Não é assim... Claro, é proibido, mas você está
transformando isso como se o cara fosse um assassino, tivesse matado vinte
ou trinta pessoas! E nem aí caberia um castigo desses! Nós temos um Poder
Judiciário!”. E ele achava que era um herói!227
226
Arnoldo Müller, depoimento citado. 2005.
227
Ferdinando Piske, depoimento citado.
228
Samuel Guesser, depoimento citado.
229
Hertha Anni Abicht Basso, descendente de alemães, nascida em 1924, em Santa Maria-RS. Depoimento
concedido em 12 de novembro de 2010, em Jaraguá do Sul-SC. Casada com o ex-combatente da FEB Alcides
Basso.
98
Ilha das Cobras, lá no Rio de Janeiro. Como [era] uma pessoa de idade,
doente, não foi. [...] O meu pai foi preso, dormiu uma noite na... preso
porque meu avô falou com ele em alemão e ele respondeu em português.
Mas alguém ouviu e denunciou [...].230
Relatou Edgar Kielwagen: Meu pai, ele foi encarcerado uma noite. E os irmãos dele,
que eram três, todos ferreiros, tinham bastante influência na polícia. E eles foram na polícia,
tirar ele. Porque ele não participava de nenhum partido nazista.233 Embora não seja o tom
predominante entre os descendentes de alemães quando tratam do assunto, Walter Carlos
Hertel, entre risos, afirmou, com naturalidade: A vida aqui era muito perseguida pelo
governo, né... Se falava alemão era preso... Meu pai foi preso, eu fui preso...234 Gerd
Brunckhorst falou sobre a situação no Rio de Janeiro, distante de comunidades teutas:
A utilização do rádio entre alemães e descendentes era vista sob suspeita pelo Estado,
assim como a posse de livros no idioma alemão.236 Hertha Anni Abicht Basso referiu-se a uma
ocasião em que militares foram à sua residência em busca de objetos suspeitos:
230
Lila Kitty Frey Piegas, descendente de alemães, atualmente casada com o veterano da FEB Manuil Goethel
Piegas
231
Ervino Riffel, depoimento citado.
232
José Edgar Kielwagen, depoimento citado.
233
Id.
234
Walter Carlos Hertel, depoimento citado.
235
Gerd Brunckhorst, depoimento citado.
236
Cf. Carneiro (1997, p. 46).
99
gente tudo de armas em punho e queriam que nós mostrasse tudo o que que
nós tinha de comunicação. Tinha um radinho [...], nada mais. Tinha... aquilo
que a gente tinha, tipo de um baú. Era antigo, mas eu estava fazendo um
enxoval [...]. Até aquilo eles abriram, levaram os retratos de família, sabe?
[...] Foi horrível, sabe, a gente ficou com um trauma! Que à noite a gente
tinha a impressão que tinha aquele rumor, sabe? [...]237
Aqui vieram, eles reviraram a casa toda. Meu pai tinha um rádio, e tinha
comprado um dínamo para iluminar a casa, para a energia elétrica. Então nós
fomos acusados de ter um transmissor, um rádio transmissor para falar com
os submarinos para dizer onde tinha navios andando. [...] em que posto tinha
navios. Aí ainda perguntei para um deles, lá:
- O que é que vocês pensam? Colono aqui do mato, como é que ia trabalhar
com isso? Quem ia trabalhar com isso? [...]
Eles vinham de quarto em quarto, abriam os armários, e tudo... E no meio da
roupa pendurada, botava a mão, espiava para ver se tinha fuzil, ou
armamento lá. [...] procuraram por tudo [...] Os livros alemães, isso foi tudo
levado.238
Diante das perseguições, como destacou Marlene de Fáveri, não restavam muitas
alternativas às populações de comunidades alemãs além do silenciamento.239 Ao ser
questionado o que um indivíduo que não sabiam falar português fazia na época, Samuel
Guesser resumiu: Tinha que ficar calado. Contou o descendente de alemães Bernardino
Besen sobre uma atitude de seu pai, diante do temor à repressão:
[...] vieram dizendo que era proibido aqui dentro do Brasil falar a língua
alemã. Proibido! Então, diziam que vinham fiscais ver se tinha alguma
inscrição em alemão. No cemitério, até meu pai foi raspar as escritas do
túmulo da minha mãe, então só deixou a data “nasceu, estrela, e cruz, e mil
novecentos...” e o resto raspou tudo [...].240
Em outro fragmento:
[...] E o meu pai era muito conservador, naquele tempo se rezava, antes e
depois das refeições, como nós sempre rezávamos. “Está perigoso o negócio,
de repente nós podemos ir presos! Pode ter um espião nos vendo rezar em
alemão” [...] Aí meu pai disse assim “Olha, não tem mais jeito, não dá mais
pra nós rezarmos em alemão. Eu não rezo em português”, ele não sabia,
também. Daí ele disse pro filho mais velho “Então, tu reza. Reza, porque nós
não podemos mais arriscar, podemos ir presos”. [...] Faltava só ainda dizer,
237
Hertha Anni Abicht Basso, depoimento citado.
238
Samuel Guesser, depoimento citado.
239
Ilustra a historiadora: Duas mulheres iam pela estrada, iam para a roça, ao trabalho da lavoura. Então uma
delas viu uma cobra e não pode avisar porque uma não podia dizer nada prá outra, não sabia falar em
português! [...] Silenciar: era o verbo para se protegerem de denúncias e problemas com a polícia local [...]
(FÁVERI, 2004, p. 113-114).
240
Bernardino Besen, depoimento citado.
100
Já Ferdinando Piske relatou sobre uma de suas irmãs que resistia às normas impostas,
tendo sido presa diversas vezes por insistir em falar alemão em público:
[...] Eu tinha uma irmã que era revoltada contra isso. Ela trabalhava de
costureira num alfaiate. Geralmente, o cidadão mandava ela numa loja
Paiter para comprar ou um tecido, ou linha, alguma coisa, e aí quando ela
entrava, as vendedoras já diziam: “Ih, aí vem ela, meu Deus do céu...”.
Porque ela entrava e começava a falar alto em alemão, se ouvia do outro lado
da rua. E, como tinha gente que não gostava dela, ligava para o delegado,
vinha a polícia e levava ela para a cadeia. Aí ela reclamava: “Não, mas eu
tenho um irmão que é cabo, lá no Exército! O senhor chama ele aqui”. Daí
eles me chamavam, e falavam: “É, mas, cabo” – depois, sargento – “ela está
errada, o senhor sabe que é proibido”. “Mas o que o senhor quer que eu
faça? Eu não posso fazer nada. Mas solta ela, vou dar uns trancos nela”. Aí
eu falava com ela, e ela dizia: “Não, tudo bem. Eu prometo que não vou
mais falar”. Dali a uma semana estava ela presa de novo. E aí foi, foi, foi,...
Você sabe, chegou num ponto em que o delegado ligou uma vez para o
batalhão, eu tinha sido recém promovido a sargento, aí eu fui lá e ele disse:
“Olha, Sargento, o senhor sabe o que a Edite está fazendo?”, eu disse: “Não,
não tenho idéia. Falou alemão de novo?”. “Não. Pior. Vem cá comigo”. Daí
nós fomos lá na área da cela, sabe o que ela estava fazendo? Estava fazendo
um comício em alemão para os alemães! Daí ele chamou os policiais todos
que estavam lá, e disse “Nunca mais me tragam essa mulher aqui para
dentro. [...] Eu não quero mais esta maldita aqui na minha cadeia!”. E aí,
quando nós fomos saindo, ela xingou a mãe do delegado. Em português!
[...]243
241
Id.
242
Ervino Riffel, depoimento citado.
243
Ferdinando Piske, depoimento citado.
101
se dá ódio entre as famílias, aí cada qual despeja o que é possível.244 Contou também H. P.:
[...] Tinha aí um, agora já está morto, mas aquele era nojento, ele só vinha assim para espiar
para ver se a pessoa falava o alemão [...].245 Entre os ex-combatentes da FEB entrevistados,
destacou Ervino Riffel: Tinha homens civis encarregados de cuidar, se escutassem alguém
falar alemão, tinham que avisar as autoridades: “Os ‘fulanos’ estão falando alemão”. E
então vinham prender esses caras [...].246 Fridolino Kretzer conta sobre diversos delatores da
localidade onde vivia, condenando sua postura: [...] Acho que não devia de acontecer isso!
Que língua tem a ver com guerra? Não é?247
Gerd Emil Brunckhorst relatou sobre as restrições sofridas por sua família quanto à
aproximação do litoral:
[...] Meu pai, por exemplo, que chegou a morar com a minha mãe na represa,
ele teve que sair de lá. Ele não podia continuar morando lá por causa da...
Eles diziam que tinha um risco de se comunicar com a sabotagem. Ele
voltou para São Paulo. Mas assim mesmo, quando ele queria ir para lá, ele ia
na polícia, tirava um salvo conduto, e ia toda a semana para lá. [...]248
[...] O fato de os membros dos dois grupos diferirem em sua aparência física
ou de os membros de um grupo falarem com um sotaque e uma fluência
diferentes a língua em que ambos se expressam serve apenas como um sinal
244
Samuel Guesser, depoimento citado.
245
H. P., esposa de A.C.A. P., cujo nome é omitido pelos motivos já citados.
246
Ervino Riffel, depoimento citado.
247
Fridolino Kretzer, depoimento citado.
248
Gerd Emil Brunckhorst, depoimento citado.
249
Samuel Guesser, depoimento citado.
102
Nos termos de Erving Goffman (1988, p. 15), pode-se afirmar que foi construída uma
teoria do estigma, uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que
ela representa. O ex-combatente Gerd Emil Brunckhorst, consciente de seu estigma, lembra
seus sentimentos: [...] no Rio de Janeiro, eu... Bom, eu não tenho cara de carioca, não é? E
sempre guardo um pouquinho do sotaque de alemão, provavelmente, né? E eu era... na rua
eu não me sentia seguro no Rio [...]. Contou sobre a discriminação sofrida na empresa onde
era, até então, encarregado da seção marítima:
[...] a gente era super perseguido, era a quinta-coluna! [...] Eu sempre me dei
muito com os pretinhos, sabe? [...] E a minha grande amiga do peito era
também morena. [...] Então naquela época ela se estranhou comigo assim.
Eu encontrava com ela e ela me cumprimentava e ela vinha com uma piada
de quinta-coluna. E fazia mal pra gente, né... 252
[...] veio do alto essa palavra, eles eram chamados de quinta-coluna. Nem
sabia o que queria dizer naquele tempo quinta-coluna... Eram os quinta-
coluna: “ô, os quinta-coluna! Ô, quinta-coluna”. [...] Barbaridade! [...] para
250
Gerd Emil Brunckhorst, depoimento citado.
251
Cf. Fáveri (2004).
252
Hertha Anni Abicht Basso, depoimento citado.
253
Atualmente, pertence ao município de Antonio Carlos-SC.
103
provocar mesmo. Não era de brincadeira não [...] isso era não só de bate-
boca por aí. No jornal oficial, eles foram chamados de quinta-coluna!254
[...] Quer dizer que até quando eu servi no Exército, quer ver, tinha muito
descendente de alemão. Então amontoava aquele grupinho [de civis], aqui
em São Lourenço mesmo. E outros, que eram brasileiros, vinham “Ô! Os
alemão aí, ô”. [...] “Os quinta-coluna!”.
Lembrou o agricultor Samuel Guesser: [...] Eles entravam naquelas lojas dos alemães,
lá em Florianópolis, aquelas que tinham fachadas de vidro, era tudo apedrejado, jogavam
257
tudo para fora... E também o ex-combatente descendente de alemães B. A. S.: [...] as
firmas alemãs foram todas depredadas, e tudo... Isso foi em todo o Brasil, não foi só em Santo
Ângelo [RS].258
Ao tratar da época da infância, os dois agricultores descendentes de alemães da
localidade de Rachadel relataram alguma hostilidade em relação a indivíduos que, como os
descendentes de alemães, habitavam a região. Nas palavras de Samuel Guesser:
Relatos de histórias que Samuel Guesser ouviu de seus parentes sobre o tratamento
recebido pelos imigrantes alemães recém-chegados sugerem que restrições contra “os
254
Bernardino Besen, depoimento citado.
255
Cf. Fáveri (2004).
256
Casada com o ex-combatente da FEB Manuil Goethel Piegas.
257
Samuel Guesser, depoimento citado.
258
B. A. S., depoimento citado.
259
Samuel Guesser, depoimento citado.
104
portugueses” ou “os açorianos” da região eram passadas de geração em geração: Era tudo
com reserva. Era apelido, apelido... Muitos gostavam um do outro. Mas o que mais eles
queriam era enganar um ao outro. Aos “portugueses”, refere-se em tom pejorativo: enquanto
o açoriano era quem ia pescar. Pescar, e não trabalhar, os “alemães” – trabalhadores e
desbravadores – foram indo para o mato, mato adentro. Afirma, em outro trecho: Os
portugueses, no princípio, eram ruins.260 Receios contra os “açorianos” são também
evidenciados no relato de Bernardino Besen, nascido em 1930, também em Antonio Carlos.
Relatou sobre os sentimentos às vésperas de freqüentar a escola pública, onde aprendeu a falar
português:
[...] Ali [na escola] aprendi o português. Em pouco tempo, eu era igual os
outros. Não sei nem se deu quinze dias, eu já falava tudo, porque não se
escutava mais nenhuma palavra em alemão, só o português. Aí logo eu me
entrosei, e até eles se admiravam que eu não tinha aquele sotaque, porque eu
aprendi o português no meio dos açorianos, e não puxava aquela fala assim,
puxada... Aí eu peguei uma língua bem melhor do que estes que vem aqui.
[...]262
260
Samuel Guesser, depoimento citado.
261
Bernardino Besen, depoimento citado.
262
Id.
105
A situação enfaticamente tratada por Bernardino Besen e por Samuel Guesser não
aparece nos relatos da infância dos ex-combatentes da FEB entrevistados. Apesar de se
definirem – como pode ser visto em alguns trechos já mencionados – como “alemães” ou
“pomeranos”, no caso específico de A. C. A. P., em oposição a outros grupos, não se verifica
tom de hostilidade – o que não significa necessariamente que não existiam. Arnoldo Müller
assim refere-se à interação com “os tijucanos” que foram trabalhar em Blumenau: Os alemães
também eram uma gente boa também... Em geral eles se dão logo. Vieram muitos tijucanos.
Tijucas veio inteira aqui para Blumenau, morar aqui, é. Tijucas veio! Então, a gente se dava
bem [...].263 Sentimentos identitários da infância são especialmente explicitados por Edgar
Kielwagen: [...] eu me considerava alemão. Mais alemão, vamos dizer. Porque a gente falava
alemão em casa, na escola nos primeiros anos. Mas isso tudo ficou se entrosando. Eu não
tinha ódio, nada disso.264 Panorama totalmente distinto é descrito por B. A. S., que não foi
criado em comunidade alemã, sobre locais onde viveu quando adulto, às vésperas da
incorporação na FEB:
[...] Era um clima pesado entre a alemoada, apesar que Santo Ângelo não
tinha muito. Tinha mais em Ijuí, depois que eu vim para Ijuí. E eu assisti
esse clima pesado em toda a parte que a gente ia, entre os alemães. O
brasileiro, ele gostava desse negócio “Ah, essa alemoada!”... E o alemão, ao
contrário, dizia “Essa negrada!”... Então era isso, essa rivalidade. Isso a
gente sentia em todo lugar que a gente ia. Todo lugar... [...]265
[...] não podemos presumir que, para a maioria das pessoas, a identificação
nacional – quando existe – exclui ou é sempre superior ao restante do
conjunto de identificações que constituem o ser social. Na verdade, a
identificação nacional é sempre combinada com identificações de outro tipo,
mesmo quando possa ser sentida como superior às outras [...]
(HOBSBAWM, 2004, p. 20).
263
Arnoldo Müller, depoimento citado.
264
Edgar Kielwagen, depoimento citado.
265
B. A. S., depoimento citado.
106
[...] Se você quer ver coisa ruim, atiça a populaça, é que nem os sem-terra
hoje. É parecido. Eles avançam e quebram tudo. Eles entravam naquelas
lojas dos alemães, lá em Florianópolis, aquelas que tinham fachadas de
vidro, era tudo apedrejado, jogavam tudo para fora... [...] A populança, da
rua! Que tinha raiva dos alemães! Porque alemães e açorianos, portugueses,
nunca se davam. [...]266
[...] depois houve o quebra-quebra de alemão, e esse troço todo, né, com
prisões e tudo. Então a gente tinha que se guarnecer no quartel. [...] No dia
da declaração de guerra, as firmas que tinham nome de alemão eram todas
depredadas pela rafuagem que existe até hoje. Não é? [...] Rafuagem.
Gentinha. Gentalha. Até hoje existe. De vez em quando eles acham de
depredar um prédio, depredar um ônibus, eles vão e depredam.
Principalmente o Movimento Sem Terra.267
[...] eu era 3º sargento, ... [...] e meu chefe era um subtenente preto. Então ele
começou a me chamar de alemão: “Ô, alemão! Ô, alemão!”, no sentido de
encalhar, não no sentido carinhoso. Aí um dia: “Ô, alemão!” – tirou um
monte de dinheiro – “Leva esse dinheiro e entrega para a minha mulher, lá
266
Samuel Guesser, depoimento citado.
267
B. A. S., depoimento citado.
107
[...] não vai voltar nada que a gente possa ficar comprometida? Não, né? É
porque o meu pai também fez uma vez uma entrevista com uma neta, aí o
meu pai falou também sobre a perseguição, eu não vi ele falar, a minha
esposa viu [...], daí a minha esposa ficou com medo “Mas será que esse
homem não fala demais, não vai se comprometer?”. [...] não vai depois se
envolver na justiça, e vão me procurar [...].270
268
B. A. S., depoimento citado.
269
Bernardino Besen, depoimento citado.
270
Id.
108
de lá. Hino Nacional todos os dias.271 Ao lembrar da escola estadual em que estudou, onde
aprendeu o idioma português, acrescentou Arnoldo Müller: eu sempre gostei muito do
português, e gosto ainda, meu Deus! A minha língua é portuguesa, não tem língua melhor pra
mim. E quando questionado se ainda falava alemão: Ainda falo. Mas não muito bem não. Eu
gosto mais é do português. 272 Em entrevista realizada anos depois, novamente ressaltou:
[...] a gente torcia mais para os portugueses aqui, pros amigos nossos. Eu já
aprendi a língua portuguesa, e todo mundo, meus irmãos também, a gente já
torcia mais para o povo do Brasil mesmo, que é um povo muito bom,
maravilhoso... não tem como o povo brasileiro!273
Olha, foi muito difícil, porque o alemão foi muito espezinhado aqui no
Brasil. Eu até ficava com pena: às vezes, alemão que não tinha nada com o
peixe sofria. Sofria coisas de ataque, de coisa, de prisões. Tiraram o rádio
271
Fridolino Kretzer, depoimento citado.
272
Arnoldo Müller, depoimento citado. 2005.
273
Arnoldo Müller, depoimento citado. 2009.
274
Ferdinando Piske, depoimento citado.
275
Arnoldo Müller, depoimento citado. 2005.
276
Adolfo José Klock, depoimento citado.
277
Manuil Goethel Piegas, depoimento citado.
109
das famílias de origem alemã. Olha, origem alemã, poxa! O que que eu tinha
com isso se meu tataravô imigrou para o Brasil, em 1826? O que que tinha
eu, só porque tenho nome de alemão?278
Outro veterano da FEB, Lot Eugênio Coser, conta que protegia famílias italianas
agredidas:
Embora exceções tenham sido encontradas, verifica-se que na medida em que são
descritas as perseguições, a maioria dos depoentes ex-combatentes – principalmente os que
viveram parte expressiva da infância e juventude em locais de colonização alemã – identifica-
se com “os alemães”, ou seja, o grupo discriminado.280 No momento descrito, as pessoas
agredidas são em geral consideradas as “boas”, em oposição aos agressores: os “maus”. Em
situações como essas, se forem utilizadas palavras de Pierre Ansart:
Se, conforme Elias Canetti (2005, p. 168), [...] nas guerras, as religiões nacionais se
aguçam [...], compreende-se que a intensificação da identificação de muitos teuto-brasileiros
com o país de seus antepassados durante a Segunda Guerra. Mas se deve ter em mente que até
o posicionamento do Brasil na guerra e – mais concretamente – a participação efetiva, a
torcida pela Alemanha não era contraditória a sentimentos de pertença ao Brasil e alguns dos
depoentes, não por acaso, associam o regime brasileiro liderado por Getúlio Vargas ao
nazismo. Resume o ex-combatente A. C. A. P.: [...] Tem gente assim que não achava que o
278
B. A. S., depoimento citado.
279
Lot Eugênio Coser, depoimento citado.
280
Exceção é encontrada no depoimento de Lot Eugenio Coser, que não demonstrou comoção diante da
situação dos “alemães”: [...] como todos os estrangeiros, que eram inimigos naquele tempo, eles sofreram
perseguições, tomaram os rádios, telefones, aquelas coisas a polícia tomou porque eles não podiam ter [...].
Opiniões de outros ex-combatentes sobre a imagem de habitantes de colonização alemã são expostas a
seguir. E também no relato de Ervino Riffel: [...] tinha alguns que eram teimosos mesmo... Naquele tempo
eles tinham armamento também, para caça e tiro, aquelas armas... [...] Eles eram muito teimoso,
escondiam, ou falavam alemão com os outros.
110
Brasil ia entrar na guerra contra os alemães. Então quer dizer que eles não eram contrários
a essa pátria [...].281
A entrada do Brasil na guerra ou a participação militar no confronto, bem como os
fortes apelos patrióticos feitos pelo governo e imprensa na época, podem ter tido algum efeito
semelhante no que diz respeito aos sentimentos em relação ao Brasil para parte da população
brasileira, inclusive descendentes de alemães que habitavam comunidades teutas. Se os teatros
de operação situavam-se muito distantes do território nacional e nas tropas foi incorporada
parcela pequena da população, para os expedicionários teuto-brasileiros a incorporação à FEB
fez com que sentimentos eventualmente mantidos em relação à Alemanha se tornassem
contraditórios a sentimentos de identificação ao Brasil.
Enquanto medidas oficiais eram tomadas para reprimir grupos definidos como
inimigos depois do posicionamento do Brasil na guerra – em agosto de 1942 – enfatizava-se
na imprensa a suposta existência da quinta-coluna, expressão nascida durante a Guerra Civil
Espanhola (1936-1939)283 e popularizada nos anos seguintes, principalmente nos países
liberais, referindo-se à ações de traição e espionagem. Difundiam-se mitos de um “perigo
alemão”, que circulavam desde o século XIX284 e haviam sido retomados pela imprensa norte-
americana desde o início da guerra. Imigrantes alemães eram descritos, conforme constatado
por Marlene de Fáveri (2004, p. 46), como “traidores”, “alienígenas”, “agentes da
Gestapo”, “espiões”, “sabotadores”, perigosos”, “nazistas”, “quistos étnicos”, “quistos
raciais”, etc. Destaca a autora que surgiam entre os intelectuais teorias de que os quistos
étnicos seriam partes ruins da nação, que deveriam ser tratadas cirurgicamente.
281
A. C. A. P., depoimento citado.
282
Cf. Ribas (1944b, p. 205).
283
Quando o golpista General Francisco Franco avançava com quatro colunas militares sobre Madrid,
mencionou uma quinta, supostamente formada por simpatizantes do golpe infiltrados na cidade que era
invadida. Cf. Fáveri (2004, p. 78-79).
284
Cf. Fáveri (2004, p. 40-41).
111
Alinha-se a esse discurso o conteúdo de dois livros escritos por autoridades policiais
de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul na época da guerra, destinados ao grande público: A
5ª coluna no Brasil, de autoria do Chefe de Polícia daquele estado Tenente-Coronel Aurélio
da Silva Py (1942), e O punhal nazista no coração do Brasil, assinado pela Delegacia de
Ordem Política e Social de Santa Catarina, publicado originalmente em 1943 e, novamente,
no ano seguinte.285 As duas obras, amplamente documentadas, “provam” a existência de uma
conspiração nazista no Brasil com amplo apoio dos habitantes de comunidades alemãs.
Grande atenção é dedicada nas obras à demonstração da existência, desde o final do
século XIX, de planos para a anexação da parte meridional do Brasil à Alemanha, com
menções a textos das décadas anteriores produzidos por intelectuais alemães. De acordo com
o Tenente-Coronel Py (1942, p. 11), o que o nacional-socialismo alemão começou a pôr em
prática e vem executando em condições tão assombrosas nada mais é do que um plano de
longa data elaborado e carinhosamente acariciado pelas gerações alemãs que se sucedem.
Nos termos do Secretário de Segurança Pública da Delegacia de Ordem Política e Social de
Santa Catarina (DOPS-SC) Antonio Carlos Mourão Ratton (1944, p. 5), tratava-se de [...]
velho sonho alemão, denunciando o complexo terrível duma raça que se narcisará na própria
ilusão da superioridade [...].
Destacam as diferentes autoridades policiais que a partir da ascensão do nazismo na
Alemanha propagandas foram difundidas visando reunir simpatizantes do regime, por meio de
uma complexa rede de organizações nazistas, que incluem escolas, pastores evangélicos,
clubes de tiro, associações e órgãos de imprensa. Assim, O povo brasileiro [...] foi um campo
propício à dolorosa e nefasta infiltração da mais execrável ideologia política assinalada até
nossos dias sobre a terra: O nazismo, êsse consórcio odioso do crime e da traição
(RATTON, 1944, p. 19). A imigrantes alemães e habitantes de comunidades teutas – os teuto-
brasileiros – é atribuída dupla imagem: alvo dessas medidas propagandísticas e, ao mesmo
tempo, difusores de ideais nazistas. Ressalta o Tenente-Coronel Py que a propaganda
circulava notadamente na zona colonial germânica do grande Estado sulino, terreno
naturalmente fértil, em que produziu frutos rápidos e fartos (PY, 1942, p. 55). A manutenção
de costumes e do idioma do país de seus antepassados teria favorecido uma propensão
“natural” a ideais nazistas:
285
Desta obra foi consultada a segunda edição, que data do ano seguinte, visto que foi acrescida de um capítulo
intitulado O que é a quinta coluna?
112
Tida como “prova” que seus habitantes fossem traidores em potencial, a manutenção
de costumes “alemães” nesses locais é em muitos trechos mencionada:
No mesmo sentido, afirma o capitão Ribas: [...] os alemães não precisavam dar
satisfação dos seus atos a quem quer que fôsse, ressalvando, é claro, o seu “fuehrer” [...]
(RIBAS, 1944a, p. 20). Aos imigrantes alemães são atribuídas outras características
indesejáveis, principalmente no livro publicado em Santa Catarina: [...] verdade se diga, o
Brasil para êles, só entrou em cogitação por ser um país rico e fácil de explorar, até com a
sonegação de impostos (RIBAS, 1944a, p. 20). O apelo a termos do ideário cristão – por
exemplo, A satânica trama alemã descrita por Ratton (1944, p. 8) ou as idéias diabólicas
113
relacionadas ao nazismo pelo Delegado Antonio de Lara Ribas (1944a, p. 31) – constrói a
imagem de uma luta travada entre forças do bem e forças do mal. Não é feita, assim, qualquer
distinção entre a manutenção de costumes alemães, a simpatia ao regime nazista alemão e o
suposto envolvimento numa conspiração nazista no Brasil. Apelando para a união de todos
em torno da nação brasileira, as obras assumem caráter pedagógico.
Confrontando-se livros escritos posteriormente por ex-combatentes com o conteúdo
dos dois livros de autoridades policiais publicados na época, foram constatados pontos
convergentes. Às vezes, a coincidência é tanta que sugere que em alguns momentos nas
narrativas de veterano da FEB resultados de pesquisas a materiais não citados prevalecem
sobre as memórias. Segue uma das descrições do tendente-coronel Py sobre uma organização
que colaborava com o nazismo:
texto do mesmo ex-combatente, por exemplo, menciona a seguinte percepção sobre o que lhe
disse uma cigana, no Rio de Janeiro:
“Tu não vais para a guerra!” Quis rir, achando que ia ser enganado. Lembrei-
me das recomendações sobre informações. A cigana poderia ser uma agente
nazista, pois eu estava esperando apenas o dia de embarcar. Procurei me
acalmar e deixei-a continuar o seu trabalho [...] (MIRANDA, 1998, p. 99).
Resume o livro de Joaquim Xavier da Silveira (2001, p. 32, 124) – que na FEB foi
soldado – que a quinta-coluna era formada por simpatizantes do Eixo e [...] agia bastante, ora
ostensivamente, ora de forma dissimulada, mas sempre, a favor do que já então se
denominava Potências do Eixo (Alemanha, Itália, Japão, este último ainda neutro) [...]. Os
ex-combatentes da FEB que mencionam a situação do Brasil na época em geral pressupõem
que havia planos de anexação de seus territórios meridionais, onde havia comunidades teutas,
pela Alemanha. Joaquim Xavier da Silveira relatou em seu livro:
Se esse veterano da FEB enfatiza a pressão feita a habitantes das comunidades teutas
do Sul, outros destacam a manutenção de costumes tidos como alemães nesses locais. Na obra
de Octavio Costa:
286
Apud Simões (1967, p. 39).
115
gravíssimo de uma vitória alemã custar-nos a mutilação do Sul do país, como vinham
exigindo desde meio século os pangermanistas fanáticos [...].
Os simpatizantes do nazismo são freqüentemente associados ao integralismo. Relatou
Antonio Batista de Miranda, belenense que integrou voluntariamente a FEB, onde
permaneceu por breve período, pois a unidade a que pertencia foi dissolvida ainda no Brasil:
Era uma organização que dava informações para o governo alemão, sobre a
atuação das forças armadas brasileiras. Inclusive, muitos desses navios
foram afundados – isso está comprovado – por informações dadas pela
Quinta-coluna: “Olha, esse navio tal está partindo hoje do Rio de Janeiro
levando não sei o quê para o porto de Nova Orleans, ou Nova Iorque, ou
Norfolks. [...]287
287
Ferdinando Piske, depoimento citado.
116
Apesar disso, ao falar das perseguições aos habitantes de Jaraguá do Sul – alemães e
italianos – os descreve como [...] colonos simplórios, a maioria analfabeta que nada
entendiam de política, só cuidando de suas pequenas roças e vacas leiteiras (SILVA, 2001, p.
23). O ex-combatente da FEB Milton Fonseca, que vivia em Blumenau na época, também não
aprova os castigos impostos à população de teuto-brasileiros:
Explicitadas essas exceções, na maioria dos relatos de ex-combatentes da FEB que não
eram descendentes de alemães verificam-se sentimentos em relação a alemães e descendentes
que, conforme estudos de Marlene de Fáveri (2004), eram partilhados pela população em
288
João Carturano, depoimento citado.
289
Milton Fonseca, depoimento citado.
117
geral. Reforça a constatação um fragmento de uma crônica escrita por Rubem Braga (1964, p.
13) – que atuou como correspondente de guerra na FEB – em setembro de 1944, quando o
navio em que viajou para a Itália zarpava do Rio de Janeiro: Adeus, Rio de Janeiro! [...] Uma
barca da Cantareira passa perto e alguém me chama a atenção: “Veja, é a Quinta! É a
Quinta-Coluna!” [...]. Se parte dos ex-combatentes partilhava tais sentimentos de
desconfiança a alemães e descendentes, na FEB interagiria com habitantes das comunidades
teutas que, por sua vez, como foi demonstrado, tinham sentimentos ambíguos em relação ao
Brasil e à Alemanha. As situações daí decorrentes são tratadas a seguir.
4 DESCENDENTES DE ALEMÃES NA FEB: “NÓS” E “OS OUTROS”
290
Os documentos abrangeram ex-combatentes de diversas origens e locais.
291
Os 34 números do jornal foram integralmente reproduzidos em edição fac-similar organizada por Roberto
Mascarenhas de Moraes, filho do comandante da FEB e publicada em 2010.
292
Cf. Castello Branco (1960, p. 342-343).
293
Apud Mascarenhas de Moraes (2010).
294
Id.
295
Id.
119
das tropas; problema antigo, colocado em pauta pelo militar prussiano Carl von Clausewitz,
no início do século XIX.296 A guerra concebida como disputa do bem versus o mal, na versão
dos Aliados traduzia-se na luta297 da democracia – ou da liberdade –contra o autoritarismo ou
totalitarismo.298 Terminada a guerra, esse discurso dos vencedores naturalmente predominaria
sobre outros pontos de vista.
No Brasil, a partir da declaração de guerra à Alemanha e à Itália – em agosto de 1942,
o Estado Novo – com propaganda oficial e controle da imprensa – difundia amplamente
apelos patrióticos, visando uma mobilização econômica e militar299 para os esforços de guerra
e coesão frente às tensões políticas que afloravam. Insistia-se nas agressões injustas ao Brasil
– país pacífico – cometidas com os torpedeamentos de navios brasileiros que vinham
ocorrendo. Estes eram interpretados como parte de planos imperialistas alemães, visando a
anexação de parte do território brasileiro ao Reich, e ameaçando assim a soberania nacional.300
Ao mesmo tempo, propagandas difundidas por grupos contrários ao posicionamento do Brasil
296
Conforme os estudos de John Keegan, Clausewitz, no início do século XIX percebia a importância do
comprometimento das tropas francesas com os valores da Revolução no bom desempenho dos exércitos
napoleônicos sobre a Prússia. Dedicado a desenvolver uma teoria que garantisse a vitória dos exércitos de seu
país em combates futuros, o veterano do 34º Regimento de Infantaria da Prússia enfrentava um dilema: como
se poderia ter as formas de guerrear praticadas pelos exércitos da República Francesa e Napoleão sem a
política revolucionária? Como se poderia ter uma guerra popular sem um Estado popular? A solução
encontrada, ainda segundo Keegan, era fazer com que os soldados, ao participarem das guerras, se sentissem
envolvidos em ações políticas para os interesses dos seus Estados. Influenciado pelas correntes idealistas da
época, Clausewitz argumenta na sua obra Von Krieg, destinada aos militares, que os objetivos dos soldados
deveriam se aproximar do que chama de guerra verdadeira. Contrapunha-se à idéia da guerra real – aquela
que, baseada na natureza, fundamentava-se na covardia, na fuga, nos interesses individuais – e valorizava
ideais como “obediência total, coragem pura, auto-sacrifício, honra”, que já eram parte da cultura regimental
(KEEGAN, 1996, p. 33-34).
297
Trata-se de um desdobramento da antiga formulação de Santo Agostinho sobre as guerras, que classifica entre
justas – basicamente as de defesa – e injustas – as de ataque. Uma das fragilidades da teoria consiste na
ausência de critérios e de um juiz acima das partes, o que acarreta que ambos os lados podem ter razões
consideradas justas. Cf. Bobbio, Norberto (2003, p. 76-79) Assim, nos argumentos alemães ou italianos, os
ataques feitos a partir da década de 30 consistiam em uma reparação justa à humilhação imposta pelas grandes
potências vencedoras da Primeira Grande Guerra (1914-1918).
298
O conceito, mais tarde profundamente estudado por Hannah Arendt, na época era freqüentemente empregado
pela grande imprensa, referindo-se aos regimes ditatoriais em geral.
299
Como explica Toby Clark, as guerras, a partir de 1914, não dependiam mais somente de disputas militares,
mas também da opinião pública. Para que os países mais envolvidos na guerra conseguissem concentrar suas
economias e esforços nacionais para as atividades bélicas, entre 1939 e 1945, foram fundamentais as agências
e órgãos criados desde o período do conflito anterior para propaganda estatal ou controle de informação,
muitas vezes nomeados nos países democráticos com eufemismos como “serviços de informação” ou
“educação pública”.
300
A participação brasileira na guerra [...] era legitimada por objetivos superiores e universais da democracia,
defesa heróica da soberania nacional ultrajada, respeito às tradições seculares do Exército, etc., embora até
os primeiros anos da guerra a ditadura do Estado Novo não apresentasse quaisquer restrições ao nazismo e ao
fascismo: pelo contrário, muitas das autoridades brasileiras do regime simpatizavam com os regimes
autoritários europeus (FERRAZ, 2002, p. 72-73).
120
ao lado dos Aliados exaltavam as grandes virtudes das tropas nazistas e desencorajavam a
participação brasileira no grande confronto.301
Mais tarde, principalmente a partir de meados de 1945, a imagem da FEB passou a ser
disputada em debates travados entre grupos políticos divergentes. Getúlio Vargas preparava
as recepções dos expedicionários como celebrações de sua popularidade, com o apoio do
Partido Comunista do Brasil.302 Forças opositoras, enquanto isso, retratavam na imprensa os
expedicionários como soldados da democracia, destacando a contradição da existência no
Brasil de um governo ditatorial, ao mesmo tempo em que suas tropas lutavam pelos princípios
democráticos na Europa.303
A participação do Brasil na guerra, encarada como uma luta pela liberdade ou pela
defesa da soberania nacional, atendendo aos clamores, em geral, entremeia livros escritos por
oficiais da FEB, independentemente da data de publicação. Pouca distinção é feita entre as
causas da declaração de guerra contra a Alemanha e a Itália e a decisão pela participação
militar no confronto, sendo esta última tida como desdobramento natural da primeira. Relatam
registros feitos durante a guerra pelo Tenente-Coronel Antonio Henrique Almeida de Moraes,
na época capitão da FEB:
[...] sempre declarei que a única maneira digna de revidar afrontas da espécie
das que nos tinham sido feitas era tomar parte na luta, que já se anunciava,
contra os soldados do eixo: atravessar o oceano e levar ao território inimigo
a mesma guerra que impiedosamente nos batia às portas [...] (CIDADE,
1946, p. 7).
301
Cf. Tota (2000).
302
O líder do PCB, Luis Carlos Prestes, que havia sido libertado depois de ter passado anos na prisão, desde o
fracassado levante de 1935, tornava-se aliado de Vargas, incorporando [...] a glória das vitórias febianas
contra o nazi-fascismo em seus pronunciamentos; no mês do golpe [contra o regime vigente], apoiava o
movimento “Constituinte com Getúlio” (FERRAZ, 2002, p. 138).
303
Um anúncio publicado na época em que chegavam os ex-combatentes – que tinham defendido o Brasil com
armas – os comparava aos eleitores – que deveriam defendê-lo com o exercício do voto. O Estado de São
Paulo, 21de agosto de 1945, p. 7. Apud Ferraz (2005, p. 128).
121
Nas palavras do Tenente-Coronel Manoel Thomaz Castello Branco (1960, p. 560), que
foi capitão da FEB: [...] fomos arrastados pela palavra empenhada, pela honra ultrajada e
pelo amor à liberdade, para orgulho das gerações presentes e exemplo para as que as
sucederam no futuro. O Major Raul Mattos Almeida Simões (1967, p. 195), que na FEB era
aspirante a oficial, avalia a atuação das tropas brasileiras destacando a [...] inestimável
colaboração à vitória da liberdade sobre a tirania, elevando bem alto, no conceito dos outros
povos, o nome do Brasil. Uma obra do Tenente Gentil Palhares (1957) contém a seguinte
afirmação: Já não era a primeira vez que o Brasil se levantava para revidar uma afronta
recebida. [...].304 No mesmo sentido, considerou – décadas depois – o General Carlos de
Meira Mattos, que foi capitão da FEB:
Para Antonio Batista de Miranda (1998), que pertenceu à FEB por breve período, pois
sua unidade foi dissolvida antes do embarque para a Itália, a participação na guerra consistia
304
Cf. PALHARES, Gentil. De são João del Rei ao Vale do Pó. 2 ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército,
1957. p. 49-55. Apud Simões (SIMÕES, 1967, p. 15).
122
numa reação às agressões sofridas e numa luta pela democracia contra os inimigos da
liberdade. A defesa da honra nacional é preocupação explicitada no depoimento do livro de
José Alves da Silva, que foi sargento da FEB, ao enfatizar a indignação da população
brasileira diante dos torpedeamentos de navios brasileiros:
305
O mesmo é ressaltado no livro de Alcides Conejeiro Peres (s/d, p. 121-122), soldado da FEB: [...] A comoção
popular em torno do assunto tomou vulto. Estudantes se reuniam em diversas partes do País e pediam guerra
[...].
306
Os brasileiros em geral estavam [...] Preocupados mais com a batalha da sobrevivência diária [...]
(FERRAZ, 2004, p. 88).
123
[...] perguntávamos: e nós para onde vamos? por quê esta guerra? De
repente, alguém falava: é o que “eles” querem, “eles” nos provocaram,
“eles” afundaram nossos navios indefesos ao longo da cota do Brasil, e aqui
estamos nós para vingar nossos mortos metralhados em suas jangadas
quando não tinham nada a ver com a guerra. E estes “eles” muitas vezes não
tinham nacionalidade, nem rostos mas, eram aqueles que atacaram nossa
pátria, que mataram nossos homens, assim sendo, aqui estávamos nós indo
ao encontro “deles”, em defesa de nossa honra ultrajada. (p. 43)
O depoente A. C. A. P. também afirma que não estava bem inteirado sobre a guerra até
que foi incorporado ao Exército, acrescentando: Depois que a gente foi servir que a gente teve
uma noção do que a gente estava servindo a pátria. Quer dizer que tinha que defender a
pátria. [...].307 Em outra parte da entrevista, todavia, conta que sua família acompanhava as
notícias da guerra por meio de um jornal que seu pai recebia. O que provavelmente adquiriu
no Exército, portanto, foi uma nova noção, relacionada à missão de defender a pátria.
Ferdinando Piske mencionou que a seguinte opinião foi formada durante sua
experiência no Exército: [...] Fui defender a soberania e a integridade da nação brasileira.
Esse é o juramento que o soldado presta. E nós nos sentimos imbuídos da responsabilidade
desse juramento prestado [...].308 Gerd Emil Brunckhorst também relatou, referindo-se ao
período em que serviu anteriormente à segunda convocação para o Exército: [...] eu
acreditava que eu tinha jurado à bandeira [...].309 Deve-se destacar que quartéis – e escolas –
vinham sendo utilizados, desde o século XIX, pelos diferentes países que procuravam se
firmar como Estados-nação, difundindo símbolos, valores e tradições inventadas, nos termos
de Eric Hobsbawm (2006). O próprio Clausewitz foi oriundo de um regimento que é
considerado por John Keegan (1996, p. 31) um dos precursores dessas escolas de nação.
307
A. C. A. P., depoimento citado.
308
Ferdinando Piske, depoimento citado.
309
Gerd Emil Brunckhorst, depoimento citado.
124
Getúlio era uma ditadura. Infelizmente, era a ditadura mais sanguinária que
já existiu nesse país. Era tudo só a vontade dele. Inclusive, me lembro de
uma vez que eu li no jornal que ele governava por decreto-lei. Em vez de ter
Congresso, ele baixava decreto-lei. Então, às vezes ele tomava umas
atitudes, umas decisões, e os ministros diziam “Mas, Senhor Presidente, o
senhor não pode fazer isso, isso é contra a lei”. E ele disse “A lei? Ora, a
lei!”, e fazia. Essa era a filosofia dele. A lei era decretada por ele mesmo, e
ele desrespeitava. Foi um período difícil no país.312
Um diálogo lembrado por Gerd Emil Brunckhorst, durante o qual assumiu uma
postura contra a ditadura, também diz respeito à época em que já estava no Exército, antes do
embarque para a Itália:
310
Palestra proferida em 15 de junho de 2009 no Rio de Janeiro, durante o Primeiro Seminário de Pesquisadores
da Força Expedicionária Brasileira.
311
Edgar Kielwagen, depoimento citado.
312
Ferdinando Piske, depoimento citado.
125
De acordo com o que relata Joaquim Xavier da Silveira, essa percepção foi partilhada
pelos expedicionários, em geral, na Itália:
Por outro lado, houve declarações de ex-combatentes que manifestaram simpatia pelos
regimes ditatoriais, o que não significa necessariamente que já se preocupavam com o assunto
à época da guerra mas que – ao menos – e provavelmente, não mantinham uma posição
contrária. Arnoldo Müller, por exemplo, afirmou que o regime liderado por Getúlio Vargas
era uma ditadura, mas seus comentários sobre o regime relacionam-se a seu líder, e não à
forma de governo: [...] era uma pessoa boa, viu... Meu Deus! Como ele fez leis maravilhosas
pra nós!314 Já Edgar Kielwagen relatou que achava na época da guerra que o nazismo, uma
ditadura, era um bom regime. E Manuil Goethel Piegas, que considera que era bom o regime
liderado por Vargas justamente por ser uma ditadura:
313
Gerd Emil Brunckhorst, depoimento citado.
314
Arnoldo Müller, depoimento citado.
315
Nesse caso, conforme o relato do próprio depoente, trata-se de uma avaliação posterior, pois afirma que
quando era jovem não se preocupava com política.
126
316
Ferdinando Piske, depoimento citado.
317
Apud Gondin (2000, p. 71).
127
[...] Isto achei bastante ridículo, pois o i[n]stinto de cada homem prevê o
perigo e homens normais procuram desviar este perigo que neste caso é o
combate real e só espíritos aventureiros terão prazer em tomar parte numa
operação destas. [...]
[...] Estou agora num certo ponto de acordo com o querer entrar em combate
pois alem do intento de conservação e amor próprio e outros sentimentos
temos um que é maior do que qualquer outro embora que em tempo de paz
nunca o percebi e somente sendo a desgraça na qual se acha presentemente a
Itália e pondo o Brasil no lugar deste desgraçado país preferia em mil vezes
o combate e morte do que ver nossas famílias sofrer tanto, que para poder
manter-se as nossas mães e irmãs tomar a prostituição por ofício e único
recurso de vida. Mais tarde nada mais houve a não ser a revista e uma boa
rodada de chimarrão (p. 27-29).
Quando trata das motivações para o combate assim que chegou à Itália, portanto, o
pensamento de Walter Carlos Hertel volta-se para sua família, preocupação bem presente no
diário de outro ex-combatente da FEB, Sebastião Boanerges Ribeiro. E José Murilo de
Carvalho (2002, p. 10) atribui à ausência de valores tão difundidos pelo governo brasileiro e
pelo comando da FEB no diário desse expedicionário – que é seu tio – principalmente ao [...]
fato de que essas palavras eram abstrações muito distantes do cotidiano dos pracinhas no
próprio Brasil e, sobretudo, no seu cotidiano no campo de batalha [...]. Uma única – e vaga –
menção do extenso diário de Walter Carlos Hertel talvez possa ser identificada com os valores
318
Poucos dias depois do registro acima, relata o expedicionário descendente de alemães sobre expedicionários
brasileiros que se feriram durante os treinamentos, ao pisar acidentalmente em minas: [...] Estes são as
primeiras vítimas da nossa longa jornada e segundo o capitão [...] devemos agora mais do que nunca
alimentar o desejo de entrar em combate afim de ser os primeiros a matar e a vingar [...] (p. 32).
128
Talvez nessas situações vividas, Ervino Riffel tenha adquirido a convicção a seguir:
[...] Como libertadores nós queríamos libertar a Itália do nazi-fascismo, isso era a nossa
missão... [...].323 Do mesmo modo, afirmou João Carturano, quando indagado sobre os
motivos que levaram a FEB a combater a Alemanha:
319
Quinta Feira, 7 de Setembro de 1944. Dia de grandes festividades no Brasil. Deve haver paradas e desfiles
em todo paíz, e, com certeza, todo Brasileiro está hoje com o pensamento para o filho, irmão ou conterrâneo
que longe do Brasil está lutando pela causa comum dos povos (p. 44).
320
Cf. Ferraz (2002, p. 138). Conforme o autor, por outro lado, [...] a maioria dos oficiais era contra o Estado
Novo, contra a permanência no poder do seu presidente,
321
Exceção é encontrada, por exemplo, no livro de Antonio Batista de Miranda, que se refere aos alemães
nazistas como os inimigos da liberdade (MIRANDA, 1998, p. 23).
322
Walter Carlos Herte, depoimento citado.
323
Ervino Riffel, depoimento citado.
324
João Carturano, depoimento citado.
129
325
B. A. S., depoimento citado.
326
Arnoldo Müller, depoimento citado. 2005.
130
[...] tinha um alemão que morava bem pertinho da fábrica [onde trabalhava].
Só tinha uma cerca, tinha um portão onde ele passava. E eu trabalhei ali
perto. [...]. Uma noite a polícia chegou, e prendeu o alemão. Aí a mulher
dele veio chorando para mim, no portão: chorando... “Buscaram meu
marido, levaram para a cadeia!”. Chorava... E eu disse para ela: “Ah, isso
não é nada! Daqui a alguns dias ele está em casa. Pior é eu!” – eu disse
assim – “agora ele vão me chamar para ir para o Exército de novo”. Eu
tinha chegado um ano antes, “Agora eu tenho que voltar, por causa da
guerra vão me chamar de volta!”. Eu não gostava muito. Eu gostava mais da
vida civil, aqui fora...327
E Fridolino Kretzer:
Mas depois, aí veio uma comissão de militares, vieram escolher gente boa
assim, os melhores, tinha que ficar tudo em fileira, lá em Curitiba, no
Batalhão. Aí via um por um assim... “Você! Você! Você!”, aí você estava
escolhido para ingressar na Força Expedicionária Brasileira. Mas aquilo foi
uma graça de Deus...330
Esse depoente relata ter visto a participação na guerra como oportunidade para
conhecer outros lugares:
[...] Fiquei até contente. Eu vou e, se Deus quiser... Se é pra morrer, a gente
vai morrer, e se é pra voltar, a gente vai voltar muito contente e vai conhecer
muita coisa, né... Naqueles tempos pra conhecer a Europa não era sopa!
[risos]331
327
Ervino Riffel, depoimento citado.
328
Fridolino Kretzer, depoimento citado.
329
Ervino Riffel, depoimento citado.
330
Arnoldo Müller, depoimento citado. 2009.
331
Id.
131
Ah, quando eu fui sorteado, eu disse pro meu amigo lá, os que se criaram
comigo, no domingo nós nos juntávamos para jogar Bocha. Então eu disse
“olha, eu vou servir o Exército”. “Ah, mas é perigoso, agora nós estamos em
guerra!”. Eu digo “e daí? Eu quero é ir pra bem longe, que mato eu já vi que
chega!”. [...] Eu sempre tinha essa opinião: ninguém morre antes da hora. E
a pessoa pode estar onde for, mais protegido que for, chegou a hora, não tem
remédio.332
[...] O meu irmão serviu junto... antes de mim. Quando eu fui servir, veio um
decreto dizendo que se tinha dois [irmãos] servindo o Exército, um podia
requerer a baixa. Eu requeri a baixa, quem ganhou a baixa foi ele [...]333
Alcides Conejeiro Peres, descendente de espanhóis que já era dos quadros do Exército
e apresentou-se como voluntário para a FEB, também destacou sua vontade por aventuras, ao
mencionar um diálogo que teve com um capitão, que lhe disse:
- [...] você é um rapaz de futuro. Você pode estudar, pode ser ainda um
oficial. você é ainda uma criança. Na guerra não se sabe o que vai acontecer.
Desista, menino.
- Não senhor capitão. Eu sinto o desejo de ir. Quero arriscar, sair desse
marasmo. Não tenho nenhuma expectativa de futuro a não ser a promoção
por antiguidade. Desculpe-me senhor capitão. [...](PERES, s/d, p. 141)
332
Adolfo José Klock, depoimento citado.
333
Id.
334
O. N., depoimento citado.
132
De modo geral, assim, o atendimento à convocação é encarado pela maior parte dos
depoentes descendentes de alemães como uma obrigação. Destacou Gerd Emil Brunckhorst:
Torcia [pela Alemanha]. Torcia. É lógico, né, uma simpatia. Mas quando eu
fui pra lá, já quando eu fui convocado, eu digo “bom, eu tenho que ir, né? Eu
não tenho muita dúvida, sou brasileiro”. [...] Olha, eu ia cumprir a minha
obrigação [...].
Relatou Arnoldo Müller: [...] Eu nunca recusei nada [...].336 E Ervino Riffel: [...] Hoje
também é obrigado a gente ir, se tiver uma guerra, quem está servindo e os reservistas que
são pessoas novas vão para a guerra [...].337 Afirmou Walter Carlos Hertel: [...] [Me] Senti
cumprindo uma obrigação. [...] Não sei se gostei ou não gostei. Nessa idade a gente não
tem que gostar ou não gostar.338 Edgar Kielwagen, que afirmou que na infância sentia-se
alemão por utilizar a língua alemã, falou sobre os sentimentos de seu pai, imigrante alemão:
[...] Eu acho que... achou certo... porque eu sou brasileiro.339 De modo mais amplo, incluindo
as experiências vividas na guerra, afirmou A. C. A. P.:
Sobre a guerra, o que falar? Também que eu fiz o que pude fazer. Quer dizer
que eu era mandado. E eu sempre cumpri o que me mandavam. Nunca me
recusei a nada. Naquela época eu enfrentava qualquer coisa.340
José Edgar Eckert, lembrou, além disso, que – depois de incorporado ao Exército –
acidentalmente se apresentou para a FEB, demonstrando a falta de conhecimento que tinha
sobre a mobilização para a guerra:
335
Fridolino Kretzer, depoimento citado.
336
Arnoldo Müller, depoimento citado.
337
Ervino Riffel, depoimento citado.
338
Walter Carlos Hertel, depoimento citado.
339
Edgar Kielwagen, depoimento citado.
340
A. C. A. P., depoimento citado.
341
José Edgar Eckert, depoimento citado.
133
Bom, a gente tinha consciência de que o soldado, durante todo o tempo que
ele está no quartel, é preparado para a guerra. E quando o Brasil declarou
guerra ao Eixo, em agosto de 1942, nós tínhamos consciência de que podia
acontecer de sermos chamados, como de fato aconteceu.342
Foi justamente nessa fase, que muita gente deu no pé. O desertor saía de
fininho e lá fora despia o uniforme, trocando-o por um traje civil, em seguida
adquiria uma passagem na Estação Pedro II e ia para outro Estado. Houve
uma epidemia terrível de todas as “doenças” possíveis e imagináveis. A
Junta Médica Militar mesclada com médicos americanos decidiu examinar
os pretensos “doentes” e acabou sendo derrotada por nocaute, muito
embora[,] e para a nossa vergonha, essa Junta mista houvesse ficado a par
dos atos mais condenados e deprimentes. Havia sujeito que, na ânsia de
escapar ao embarque ingeria de uma só vez 10 comprimidos de Melhoral,
ficando com o coração aos pulos querendo saltar fora do peito. Outros
introduziam dentes de alho no ânus e nos sovacos para simular febre alta e
ainda outros sabendo que os americanos tinham verdadeiro horror às
doenças venéreas, introduziam na uretra uma mistura de leite condensado
com dentifrício Kolynos e, quando o médico americano olhava para o
malandro, fazia a maior cara de espanto, ficava completamente paralisado e
sem ação, balbuciando como se houvesse avistado um fantasma: no, no, no,
tapava os olhos com as mãos virando o rosto para o outro lado, com cara de
nojo, berrando para o falso doente sair dali imediatamente, incapacitando-o.
O sem vergonha, verdadeiro rebotalho da espécie humana, saía todo lépido,
explodindo alegria por todos os poros e pulando numa perna só por haver
feito gato e sapato com a Junta. Existia indivíduos de tanta coragem para o
mal que no desprezo para com seu corpo, procuravam mulheres sabidamente
doentes, para dormir com elas e se contaminarem. (SILVA, 2001, p. 46-47)
E também A. C. A. P.:
[...] Cinco desertaram lá para não servir. Depois que nós voltamos, aí esses
sentiram que não tinham ido também. Porque assim como eles ficaram,
342
Ferdinando Piske, depoimento citado.
343
Fridolino Kretzer, depoimento citado
344
Adolfo José Klock, depoimento citado.
134
podiam ter voltado também. Então eles ficaram sentidos de não ter ido junto.
Mas eles foram presos, porque eram desertores. Tinham que prender eles.345
Frente aos estigmas atribuídos aos desertores, afirma A. C. A. P., ainda sobre seus
sentimentos diante da convocação: [...] Eu não queria ser desertor, nem nada disso não
[...].346 Sentimento semelhante expressou Manoel Antonio Linhares:
[...] estávamos todos em forma, prontos para partir [de Camboriú], menos os
que tinham fugido, ou seja, desertado durante à noite. Em algumas delas
também fui convidado a fazê-lo, porém, jamais pensei em bater na porta da
casa dos meus pais como desertor (p. 40)
E ainda Gerd Emil Brunckhorst, sobre a possibilidade que lhe foi oferecida de forjar
incapacidade numa inspeção de saúde:
[...] antes de embarcar, eu já tinha ficado no Rio de Janeiro, com uma nova
inspeção médica, e ficou um médico militar que era cunhado de um grande
amigo meu. “Olha”, ele me chamou de lado aqui, “você quer ser julgado
incapaz?”. Eu disse “olha, se uma junta médica chegar a essa conclusão, eu
aceito, eu tenho que aceitar. Mas armado eu não quero”. [...]347
[...] Eu tinha um tio [...] que disse assim: “Olha, Fridolino, tu não mata
alemães lá! Tu não mata alemão lá!”. Eu disse:”Não! Não vou matar
ninguém, vou só dar um passeio lá”. Aí a minha tia veio: “Também...
345
A. C. A. P., depoimento citado.
346
Id.
347
Gerd Emil Brunckhorst, depoimento citado.
348
Cf. Souza (2006).
349
Enfatiza Eric Hobsbawm (2004, p. 19-20) que essa obrigação é inerente aos princípios nacionais: [...] o dever
político dos ruritânios à organização política que abrange e representa a nação ruritânia supera todas as
outras obrigações públicas e, em casos extremos (como guerras), todas as outras obrigações de qualquer tipo.
135
Precisavam te mandar lá para matar alemães, são meus parentes”, ela disse.
Aí eu disse: “Bom, foi o que aconteceu. Rompeu relações, e agora... Vamos
para tudo ou nada! Vamos participar, vamos fazer do Brasil um país que
também participou de praticamente o maior conflito do mundo”350
Alfredo Gaertner contou que sua mãe pediu que não matasse ninguém lá, mas não
especificou se a preocupação era oriunda do fato de os inimigos serem alemães – até porque
não se tem certeza se a mãe desse depoente é – como seu pai – descendente de alemães. Falou
também sobre o seu receio de ser perseguido, mas não fica claro se é pelos inimigos alemães
ou dentro do próprio Exército Brasileiro, por sua ascendência teuta:
[...] A minha mãe morava lá em Mafra e... Eu era militar em Curitiba e eles
dispensaram a gente três ou quatro dias para visitar a família, né. Os outros
de outras cidades também. E eu vim para Mafra. E fiquei três dias lá. E a
minha mãe, mulher muito simples naquela época, né. Naquele tempo não
tinha televisão. Tinha o rádio, tinha jornal, tinha... Aí antes de voltar me
despedi das minhas vizinhas, dos meus amigos ali. Na minha mãe dei um
abraço nela e disse para ela assim “pode ficar sossegada, chegando lá na
Itália eu escrevo para a senhora como é que estamos sendo tratados, se
estamos sendo perseguidos”. Ela [disse] “você está indo para a guerra, é,
meu filho? Tá bom, meu filho, você é militar então vá. Mas não mate
ninguém lá”.351
[...] na rua eu não me sentia seguro no Rio. [...] E quando cheguei no Exército, puxa vida,
não tinha discriminação. Fui tratado como qualquer outro. Não digo com preferência, mas
igual os demais [...].355 Adolfo José Klock, quando indagado se havia discriminação, afirmou:
[...] Exército tem ordem, não tem esse negócio.356Do mesmo modo, disse Fridolino Kretzer:
Não, não. Aquilo era bem na linha.357 E José Edgar Eckert: Aí era tudo igual, no Exército não
faz diferença. Afirmou Milton Fonseca, sobre o período em que esteve, com outros
convocados, no 32º Batalhão de Caçadores, em Blumenau: Ali eles eram tratados como
brasileiros. Não tinha nada de alemão. A grande maioria era descendente de alemão [...].358
Ferdinando Piske, contudo, relatou uma situação sofrida ao entrar na vida militar que
lhe trouxe uma série de problemas:
Não se pode perder de vista que, como na vida civil, no Exército era proibido falar
alemão. Relatou Fridolino Kretzer, sobre o transporte de tropas no Brasil feito por linha
férrea:
[...] Nos vagões de trem, estava escrito o que? [...] “É proibido falar em
alemão, em italiano e em japonês”. Aí eu disse para os meus amigos: “Se a
355
Gerd Emil Brunckhorst, depoimento citado.
356
Adolfo José Klock, depoimento citado.
357
Fridolino Kretzer, depoimento citado.
358
José Edgar Eckert, depoimento citado.
359
Ferdinando Piske, depoimento citado. Talvez situação semelhante tenha ocorrido com Ervino Riffel: em seu
Certificado de Reservista consta o nome Ervim; em um pequeno livro recebido imediatamente após a guerra, o
próprio depoente assinou Ervin.
137
Alguns dos ex-combatentes entrevistados lembraram que havia convocados que não
sabiam falar português. Arnoldo Müller contou dificuldades oriundas desse fato:
É, eles já tinham que aprender, porque a maior parte saiu daqui [de
Blumenau] mesmo, como soldado já. É, eles tinham que dar um jeitinho.
Mas eles passavam mal, eles nem falavam. Talvez secretamente eles se
comunicavam uns com o outro, assim. Eu até muitas vezes falei com eles
também um pouco de alemão lá em Curitiba. Eles não sabiam também, eram
gente aqui das colônias. É, mas a gente só escondidinho, ah, puxa, naqueles
tempos a gente não podia.361
[...] Tinha uma minoria muito pequena que não sabia falar nada. Botavam
eles na escola trancados lá e eles iam começando a falar e eles iam indo,
indo e se acostumavam. E conseguiram aprender a falar. [...]363
Esse tipo de instrução foi mencionado também por Ferdinando Piske, apesar de ter
considerado que todos já falavam português:
360
Fridolino Kretzer, depoimento citado.
361
Arnoldo Müller, depoimento citado. 2005.
362
Fridolino Kretzer, depoimento citado.
363
Milton Fonseca, depoimento citado.
138
Quando falam das experiências na Itália, os entrevistados em geral relataram que havia
muitos descendentes de alemães na FEB. Ao contrário do que se esperava, a proibição de
enviar cartas, em idioma diferente do português, não foi apontada como um problema pelos
ex-combatentes descendentes de alemães entrevistados. O tema é tratado por Alcides
Conejeiro Peres, filho de espanhóis, em seu livro de memórias:
364
Ferdinando Piske, depoimento citado.
365
B. A. S., depoimento citado.
366
Adolfo José Klock, depoimento citado.
367
Walter Carlos Hertel, depoimento citado.
368
Ervino Riffel, depoimento citado.
139
[...] Nunca houve nenhum problema dentro do nosso batalhão. [...] tinha
descendente de árabe, de sírio, de libaneses, inglês, de americano, de judeus,
até tinha três... Nos demos muito bem, sabe? [...]371
[...] sabe como é o brasileiro!! [...] Ao menos nunca vi fazer distinção com
branco, com preto, com amarelo... No âmbito da minha Cia. tinha um Cabo,
o Katzuo Niazato, era filho de japonês, todo mundo gostava dele, era igual a
nós, não é? Não tinha essa distinção. Eu tinha soldados pretos meus, dois
soldados bem pretos, que era amigo junto, não tinha nada, não fazia
distinção de cores. O brasileiro nesse ponto não é muito racista não, que eu
saiba, né? [...]372
João Carturano ao falar dos descendentes de alemães antes da FEB frisou que [...] um
alemão é fanático, é ruim. É muito ruim. Essa gente loura [...], mas quando fala da interação
com descendentes de alemães na FEB afirma: Não se diferenciava. Era tudo igual.373 Do
mesmo modo, Sebastião Ribeiro Duarte, que antes se referiu aos teuto-brasileiros como uma
raça desgraçada, afirmou que na FEB todos tinham convivência harmoniosa. Relatou sobre
brincadeiras feitas com sua possível ascendência japonesa – ou chinesa, o depoente não tem
certeza:
369
Por outro lado, alguns autores mencionam discriminação feita pelos oficiais contra os negros. Segundo
Maximiano, o comandante da Infantaria Divisionária Zenóbio da Costa, enquanto considerava os soldados
negros indesejáveis, “foi bastante criticado por só incluir descendentes de alemães numa unidade de Polícia do
Exército que criou ao retornar da Itália” (MAXIMIANO, 2004, pp. 68-69). Cf. também o depoimento de
Demócrito Cavalcanti de Arruda (1949).
370
Edgar Kielwagen, depoimento citado.
371
Gerd Emil Brunckhorst, depoimento citado.
372
Lot Eugênio Coser, depoimento citado.
373
João Carturano, depoimento citado.
374
Sebastião Ribeiro Duarte destaca que tem os “olhos puxados”, mas não sabe a origem de seus antepassados.
140
do outro. Ainda mais quando tava [...] na batalha. Então se um ficava ferido o outro já
socorria. Tudo isso.375 E, com emoção, contou Ervino Riffel:
[...] a FEB era uma coisa muito unida, nós éramos 25 mil, mas aquilo era
tudo uma coisa só. Éramos muito bem unidos, um ajudava o outro, e fazia
pelo outro tudo o que podia fazer. Aquilo aconteceu assim porque nós
estávamos muito longe das nossas famílias, e estávamos na guerra, qualquer
um podia morrer a qualquer hora. Quando a gente queria falar alguma coisa
da família, de casa – nós recebíamos correspondências – então, para não
ficar só com a gente, a gente contava para um amigo mais próximo, e ele
também contava para a gente que recebeu carta “assim, assim, assim”. Daí é
que se formou aquela amizade, aquilo era uma família só. [...]376
[...] a relação dos praças com os oficiais era melhor, melhor camaradagem,
que até hoje existe ente nós, pracinhas. Nós pegamos uma amizade assim na
guerra, uma camaradagem que nunca mais se apagou, até hoje. [...] Aqui no
Brasil, quando nós íamos para o rancho para comer, os oficiais tinham o
deles separado, a comida, o rancho separado, entende, servindo melhor
comida [...]. Lá na Itália, na guerra, não tinha rancho, não tinha nada, era a
céu aberto. Nós tínhamos que receber a comida também em filas, e tudo,
então os soldados lá da linha de frente eram os primeiros, e lá atrás, no fim
375
Adolfo José Klock, depoimento citado.
376
Ervino Riffel, depoimento citado.
377
Sobre essa realidade, eis um relato de João Falcão (1999, p. 189), soldado convocado que não integrou a
FEB: Tudo servia de pretexto para a prisão dos convocados. Havia um rigor sádico por parte dos superiores
hierárquicos. Se o recruta fosse encontrado com qualquer falha no fardamento, era preso. Os estudantes e os
jovens mais bem situados, se flagrados nas festas sociais, sem farda, não escapavam da cadeia. Contou
também José Alves da Silva: O tenente e o subcomandante [...] eram cruéis, truculentos, verdadeiros
ferrabrazes cujo “hobby” consistia em prender soldados em celas diminutas, para depois de 15 dias de prisão
transferi-los [...].
378
Ferdinando Piske, depoimento citado.
141
[...] Entramos hoje também em conversa sobre o nosso Ten., ninguém de nós
simpatiza com ele mas todos admiramos a bravura dele pois em todas
patrulhas ou avanços ele vae em frente com a metralha de mão seguido por
mim e o restante do pessoal. [...] (p. 66)
[...] Mas lá houve outras peculiaridades que eu podia falar sobre. Nós
convivemos com o VIII Exército Inglês, e uma coisa que me impressionou
porque eu não sabia que era naquela época um protetorado a Palestina, e
tinha soldados lá palestinos. Algumas lembranças interessantes... O
australiano com aquele chapéu diferente dele, né, sabe qual? Nunca viu?
Eles usam um chapéu diferente, viu, com a aba reforçada para cá. Já houve
muita cópia por aí. Os escoceses de saiote, viu, interessante. Os hindus com
aquele negócio na cabeça [...]381
Nesse sentido, Walter Carlos Hertel enalteceu as glórias de seu batalhão, em março de
1945: O feito do nosso 1º batalhão [do 6º RI] foi o maior feito da FEB até hoje. Em outro
trecho, explicita vínculos mantidos com seu pelotão:
381
Manuil Goethel Piegas, depoimento citado.
382
Cf. Arruda (1949, p. 56).
143
queriam que eu saísse do Pelotão mas o capitão disse que precisava de mim
como intérprete etc. Também eu senti sair do Pelotão, mas na Cia. teria
vantagem. Minha função de hoje será estender fio telefônico, atender
telefone e radio juntamente com o Moncaio (mensageiro) e mais dois da
secção de comandante. [...]383
Relatou, por sua vez, A. C. A. P., que não quis ir para a enfermaria após ter sido ferido
para ficar lutando com seu pelotão. Situação semelhante foi relatada pelo Padre Joaquim de
Jesus Dourado, em crônica escrita durante a guerra:
Valores tribais que são compartilhados pelos integrantes de um mesmo regimento dos
Exércitos em geral – verificados por John Keegan (1996, p. 153) – fazem-se presentes em
anotações de Walter Carlos Hertel, quando expõe seus conceitos a respeito dos outros
regimentos: O pessoal do 11[º RI] tem ainda grande prestígio com nós, ao contrário do
Sampaio [1º RI].
Rivalidades entre o pessoal da retaguarda e da linha de frente são expressas por
Alcides Conejeiro Peres:
383
Walter Carlos Hertel, depoimento citado.
144
E também por José Alves da Silva (2001, p. 209): Com a FEB reduzida de 1/3 de seu
efetivo para correr célere atrás dos tedescos como só ela sabia fazer, permaneceram inativos
no DP mais de 10.000 homens apenas coçando os sacos. O diário de Walter Carlos Hertel
aponta preconceito em relação ao 1º Regimento de Infantaria: Monte Cavalloro, 3 de Março
de 45. Sábado. [...] o pessoal do 11º RI é muito melhor que o do 1º RI que só quer cartaz [...].
Ainda sobre a interação entre os expedicionários, cabe acrescentar um aspecto
particularmente relacionado aos descendentes de alemães. Ervino Riffel frisou que aqueles
que dominavam a língua alemã – bem como o idioma italiano e o inglês – eram especialmente
bem tratados na Itália, pois o comando necessitava de intérpretes:
[...] Até aqui em Brusque, a maioria que foi convocada, nessa lista, a maioria
foi de origem italiana e de origem alemã. E aí lá na Itália logo foram
escolhidos os intérpretes alemães e italianos. Soldados nossos. Então eles
eram escolhidos, o motorista do major era um que falava o português [...] e o
alemão. [...] O Alberto Maestri foi escolhido para servir cafezinho lá para o
general Mascarenhas de Moraes, junto com Castello Branco, essa gente lá.
É, para ser intérprete em italiano. Conversar com os italianos, depois traduzir
lá para os chefes nossos... E assim era tudo bem repartido, tinha muitos que
falavam inglês também, então eles tinham tudo lá, com os americanos, eles
se entendiam bem, então eles levavam até para passear...384
[...] Feliz aquele que sabia falar alemão lá! Um dia um tenente veio para
mim: “Fridolino, olha, vim te buscar porque o meu sargento morreu. O que
falava alemão!” – porque faziam prisioneiros – “Eu não sei falar alemão!” –
o carioca não fala alemão. [...] “Tu vais comigo, né?”. Eu disse: “[...] Se o
senhor conseguir que o coronel me dispense, eu vou”. [...] Aí o tenente
desceu lá. [...] Aí ficou, ficou, ficou lá, na barraca do coronel. Daqui a pouco
ele voltou. Ele disse: “Não deu nada! Não deu nada! Não deu nada! Ele não
te solta! Ele não te solta! Ele disse que tu és muito prestativo aqui! Sem tu,
não dá! Tu viajas para esses cantos todos aí, tu sabes de tudo, ele disse! E ele
precisa de ti, não te solta, não te solta”. [...] Eu disse: [...] “Fica do meu lado
aqui, vamos aprender alemão!”385
de alemães. Em março de 1945, relata sobre uma patrulha: [...] Um de nossos soldados
sabendo alemão compreendeu o que o tenente disse aos soldados; o jovem oficial nazista
tentava fazer com que os homens voltassem atrás (BRAGA, 1964, p. 336).
[...] O comandante que era do nosso pelotão estava dentro de uma casa,
então ele estava interrogando os alemães, mas os alemães não entendiam
brasileiro, e nem ele entendia em alemão. Aí ele perguntou: “Vocês sabem
entender um pouco de alemão?” – “É, alguma coisinha”. Aí nós
interrogamos os alemães ali. [...]388
Gerd Emil Brunckhorst, mesmo tendo permanecido internado durante quase todo o
tempo em que esteve na Itália, também chegou a fazer esse trabalho. Contou sobre o Hospital
norte-americano em Livorno:
[...] E uma noite também fui chamado para atender a um paciente alemão
que tinha sido aprisionado, mas tinha sido ferido com um tiro no intestino. E
tive que atender para dar instruções de como ele tinha que se comportar
diante do ferimento. E no dia seguinte a outra enfermeira me chamou e disse
386
B. A. S., depoimento citado.
387
Ferdinando Piske, depoimento citado.
388
A. C. A. P., depoimento citado.
146
“olha, você fala a língua deles?”, eu digo “falo sim”. “Então vai lá, conversa
com ele, porque ele está lá tão sozinho, né, precisa de um pouco de
animação”. Então fui lá conversar com ele. [...]389
Walter Carlos Hertel registrou em seu diário diversas ocasiões em que atuou como
intérprete. Por exemplo:
[...] Nós fomos em seguida lá para recolher o corpo, e não achamos mais. Só
achamos cinco dias depois, quando houve um ataque na cidade de
Castelnuovo. Ele estava em outro local, coberto por uma manta, um
cobertor. A gente conhecia as manhas da Alemanha, então o comandante
dele pegou um sabre e passou assim, por baixo do corpo dele. Primeiro nas
pernas, e ali ele já sentiu uma resistência. E depois aqui embaixo, na altura
do coração. Eles tinham enterrado duas minas debaixo dele. E cortaram o
389
Gerd Emil Brunckhorst, depoimento citado.
390
A. C. A. P., depoimento citado. Sobre os combates em Montese: [...] eles atiravam muito, a artilharia.
Morteiro e bombas [em Montese].
391
Arnoldo Müller, depoimento citado. [...] Eles eram perigosos... Ixi! Ah, se encontravam nossos
brasileirinhos, era quem mais podia. Eles matavam mesmo... Eles eram perigosos. Como mencionado no
capítulo 2, o depoente destaca também crueldades feitas contra as mulheres italianas. 2005.
147
[...] eu vi um matar uma enfermeira, no front. A gente estava alerta, era uma
patrulha que eu estava comandando. Estava alerta, e tinha uma enfermeira
andando por cima da linha. De repente um tiro, da minha patrulha, um tiro...
Bam! Na enfermeira... “Quem foi o cachorro?”, um negrinho lá do Rio de
Janeiro: “Fui eu”. “Mas como que vai me matar uma enfermeira, da Cruz
Vermelha?” – “Vai lá ver que enfermeira é”. Depois que terminou o
combate... Era um soldado alemão, andando por cima das linhas inimigas
minando o terreno. Com a maleta da Cruz Vermelha, cheia de minas, e
enterrava. Fazia o negócio e enterrava as minas.393
[...] Aqueles que eram da juventude hitlerista eram uma praga para a gente
interrogar! Uma ocasião eu estava em uma casa bombardeada [...] e o Major
Comandante do 1º Batalhão do 11 RI, e aí veio um prisioneiro. A pé, trouxe
um prisioneiro. [...] Ele entrou, olhou para mim, olhou o major, o major era
baixinho. Olhou assim “Heil Hitler!”. O major levantou “O que esse
desgraçado está pensando? Esse cachorro pensa que está na casa dele?”. E
começou a rodear ele. [...] Como um monstro! E aí eu digo para ele se
identificar, para apresentar a identidade. Ele: “Perdi – Ich habe verloren”. Aí
“Diga para ele se identificar para a gente... O nome dele como é?”... “Ich
habe vergessen – Esqueci”... [...] Disse o major assim: “Entregue esse
cachorro para a polícia!”. [...] É duro, duro... E no fim, quando o cara vinha,
eu dizia “Pode mandar ele embora porque esse aí é da juventude hitlerista,
não fala nada, nem o nome”. [...]394
392
Ferdinando Piske, depoimento citado. O assunto é mencionado também por José Alves da Silva: (2001, p.
193) Após a conquista de Monte Castelo, foram encontrados insepultos sob a neve, vários cadáveres de
brasileiros sob os quais os alemães colocaram armadilhas que foram desativadas pelo Pelotão de minas, para
que seus corpos pudessem ser sepultados condignamente no nosso Cemitério de Pistóia”.
393
B. A. S., depoimento citado.
394
Id.
148
monte de feno, mataram ele a bordoadas, e é o que ele merecia. Porque não
era um soldado, era um assassino. E isso foi um fato que me marcou muito
na Itália, que eu vi lá. [...]395
Lá na Itália? A gente via o que fizeram na Itália com as moças, lá. [...]
Tentavam até queimar criança dentro dos forno quente. Mas eram tudo...
Filha da puta... Deixavam preso, assim, com fuzil e coisa em cima pra tu
mexer lá, tinha bomba lá. [...] deixava o fuzil encostado, botava relógio em
cima [...]... Depois tu mexia ali, estourava a bomba em cima de você, lá
perdia o braço. Lá eles tinham cerca de arame farpado pra nós não passar.
[...] Deixavam o jipe lá, com bomba, tudo. Se tu fosse entrar num jipe
daquele pra tu ver, dentro assim, com um fuzil encostado... Olha, eu vou te
dizer! Raça desgraçada que tinha lá! O alemão.396
Walter Carlos Hertel registrou em seu diário impressões muito negativas sobre certos
prisioneiros. Eis um exemplo:
[...] Ele foi considerado o leão da FEB. [...] Ele era 2º sargento, foi indicado
duas vezes para ser promovido a tenente, por ato de bravura. E uma tarde ele
saiu para comandar uma patrulha, dia 12 de abril de 45, e eu digo para ele
“Max, a bala não trás o letreiro sai da frente. Tu foi indicado duas vezes já
para ser promovido a tenente por ato de bravura. Vai para o Brasil. Não
395
Lot Eugênio Coser, depoimento citado.
396
Sebastião Ribeiro Duarte, depoimento citado.
149
Até depois da guerra eu falei com muitos soldados alemães e eles também
falaram que eles também não tinham nada contra nós, eles também não
queriam guerrear contra nós. Mas eles também foram obrigados, né? Quem é
militar, já viu, tem muita ordem, é obrigado a executar...398
Ervino Riffel que se sentiu em situação semelhante à dos prisioneiros com quem
conversou, terminada a guerra. Relatou o que disse um deles: “Nós perdemos a guerra, vocês
ganharam, mas... vocês têm que trabalhar igual a nós, também...”. Aí a gente deu um cigarro
para eles, que eles não tinham mais cigarros...399 Gerd Emil Brunckhorst descreve o
prisioneiro alemão com quem conversou no hospital como um garoto de uns 18, 19 anos. O
diário de Walter Carlos Hertel, embora em outros momentos destaque a crueldade dos
alemães, também menciona dificuldades enfrentadas por seus inimigos. Sobre um prisioneiro
que interrogou, relata:
Ele era nato [...] em Colonia, 36 anos, pae de 6 filhos e também pretendia
passar o front em Massa. Ele tinha sido condenado a 2 anos de prisão pelos
alemães porque dormira uma noite com a mulher fora do acampamento na
ocasião que ela foi visitá-lo. Tinha também um aviso do governo alemão de
18-7-44 que pedisse à mulher se dedicar mais ao trabalho do que aos filhos,
caso contrário o governo seria obrigado a afastar os filhos dela [...]
Se em um momento afirma que não se vê alemão e a turma está doidinha para dar
tiros, noutro ressalta que seu amigo Bacaro continua, depois de uma grappa, chorando por
ter matado tedescos que provavelmente tem filhos e mulher na Alemanha. Se o mencionado
episódio da descoberta do sepultamento de soldados brasileiros por alemães com as inscrições
397
B. A. S., depoimento citado.
398
Arnoldo Müller, depoimento citado. 2009.
399
Ervino Riffel, depoimento citado.
150
de “três heróis brasileiros”, para Manoel Antonio Linhares e para Nilson Vasco Gondin
representa uma prova da valentia dos brasileiros, para Ferdinando Piske – ao contrário –
demonstra como, nessa ocasião, os alemães foram “decentes”:
[...] quando nós fomos tomar Castelnuovo deles, nós achamos três
sepulturas. Tinha uma cruz e estava escrito em alemão “Três heróis
brasileiros”. Nós tínhamos sido substituídos, e o décimo pelotão foi lá,
mandou uma patrulha, e eles devem ter matado os três e enterrado. Mas eles
foram descentes! Achavam que os três eram heróis. Muito bacana, não é?400
[...] E também, depois das lutas, quando eles foram avançando – eu não
presenciei, mas meus amigos contam, e a história conta – que chegaram num
local, e ali tinha uma cruz. Uma cruz. E os alemães sepultaram três, agora
em alemão já esqueci como é que era... Morreram ali, e não quiseram deixá-
los assim, ao relento, e sepultaram. E os alemães escreveram na cruz “Aqui
jaz três heróis brasileiros”. [...]401
Ao que parece, por meio do contato mais direto com os prisioneiros durante os
interrogatórios, e da própria vivência em campo de batalha, os expedicionários descendentes
de alemães tiveram percepções que se distinguem daquelas de quem não esteve envolvido na
guerra, de quem somente conheceu as imagens divulgadas pelas propagandas ou ouviram ecos
das dificuldades inerentes do confronto com o inimigo: conheceram soldados que, como eles,
eram sujeitos a ordens e enfrentavam uma série de dificuldades.
Tanto João Carturano como Sebastião Ribeiro Duarte, que haviam demonstrado fortes
sentimentos contrários à população de comunidades alemãs durante a juventude no Brasil,
disseram que os descendentes de alemães dessas localidades que integraram a FEB eram
brasileiros. Milton Fonseca relatou sobre a atuação de alguns teuto-brasileiros, considerados
muito corajosos:
[...] Nós temos muitos companheiros de origem alemã, que falavam bem o
alemão que aproveitaram a oportunidade para trazer frutos para nós. [...] eles
iam em patrulhas e o que eles faziam? O que nós não tínhamos coragem de
fazer e eles faziam. [...] uns dois ou três ficavam reunidos assim e falavam
tudo em alemão [...] bem alto. O alemão estava escondido lá para pegar nós
e dizia assim “Ah tem gente presa lá nossa lá!” e vinham assim na frente e
nós prendíamos eles [...] E assim que nós tivemos o sargento Max Wolff que
é aqui do Paraná, foi considerado o maior herói da FEB, teve treze patrulhas.
Ele nunca veio sem trazer quatro, cinco, seis! [...] ele chegou, viu uma casa
lá assim e disse assim: “Olha pessoal, vocês deixem que eu vou naquela casa
lá e eu chego perto e eu dou um jeito se tiver alguém lá”. [...] Quando ele
[Max Wolff] falou assim de longe, de fora, ele [o alemão] não respondeu
nada, ficou lá só esperando. Aí ele [Max Wolff] meteu o pé na porta [...] e
entrou. Quando ele entrou ele levou um tiro – TÁA! – um tiro e caiu morto.
Os outros companheiros que eram da patrulha dele – soldados, cabos, ... –
ouviram o tiro e “Pegaram o Max Wolff!” [...]403
Uma crônica de Rubem Braga, de 17 de abril de 1945, ressalta o mesmo tipo de ação:
402
Manuil Goethel Piegas, depoimento citado.
403
Milton Fonseca, depoimento citado.
152
do mesmo depoente sobre situações vivenciadas na Itália sugerem seu medo constante em ser
apontado como traidor. É o caso de suas lembranças a respeito de quando foi hospitalizado
para tratar de ferimentos ocasionados em Montese, no início de dezembro de 1944:
[...] Posso dizer de boca cheia, que lutei lado a lado com os descendentes de
germânicos, vendo muitos deles tombar com as armas nas mãos. Eles deram
á pátria o que possuíam de mais precioso, suas próprias vidas [...] (SILVA,
2001, p. 205-206)
Nota-se o grande contraste com o que emite sobre a opinião mantida a respeito dos
teuto-brasileiros – entre outros grupos – com quem conviveu no Exército no Brasil:
alemão que a gente não entende. É o dialeto Hunsrück,404 como dizem. Então
é muito difícil, a gente não consegue entender. [...]
[...] O Benno, por exemplo. O Benno era [...] Intérprete. Eu mexia com ele.
[Eu dizia que] Ele falava em alemão com os alemães, e os alemães ficavam
olhando para ele, não entendiam o que ele dizia. De brincadeira. Porque ele
fala o alemão gramatical, o Benno [...]405
404
Dialeto falado na região de Hunsrück, situada no sudoeste da Alemanha. O depoimento de B. A. S. já foi
citado.
405
Manuil Goethel Piegas, depoimento citado.
406
Arnoldo Müller, depoimento citado. 2009.
407
Adolfo José Klock, depoimento citado.
408
Arnoldo Müller, depoimento citado. 2005.
409
Arnoldo Müller, depoimento citado. 2009.
155
[...] os mais agitados eram os baianos... veio uma comitiva de baianos, até
civis ainda, que também foram incorporados conosco para formar o 5º
Escalão... Eles eram muito safados, porque muito jogadores, jogavam dia e
noite! Até a roupa do corpo eles empatavam no jogo, onde eles podiam estar
jogando, eles jogavam, embaixo da terra... [...] Só tinha um rapaz muito
bom, um baiano estudante de medicina. Ele era um homem certinho, era um
bem branquinho assim, os outros eram tudo moreno assim, mais morenos
como são os baianos assim em geral... [...]410
Opinião diferente, contudo, foi expressa por Manuil Goethel Piegas, que não vivia em
comunidade alemã, e que, tendo comandado alguns expedicionários nordestinos, emite sobre
eles uma avaliação positiva:
[...] Agora, antes de ser transferido [de Nápoles] eu tive uma experiência que
também me tocou muito fundo, quando no segundo dia de nossa
permanência nos reunimos num acampamento e a bandinha que acompanhou
410
Id.
411
Manuil Goethel Piegas, depoimento citado.
412
Arnoldo Müller, depoimento citado. 2005.
156
[...] Eu era intérprete, e foi cair um prisioneiro Coronel Schirmer. Rudolf von
Schirmer. Eu interrogando ele, [...] perguntei “sabes meu nome?”, diz ele
“Não”. Apresentei minha identidade, aí ele... Ih, começou a chorar: “Por que
nós, que somos parentes, temos que ficar brigando uns contra os outros”. Eu
digo “Por dois motivos: você é alemão, defende a sua pátria, eu sou
brasileiro, defendo a minha”. [...] dali ele foi para o campo de concentração,
nunca mais tive notícia dele. [...]414
Houve, contudo, algumas menções que apontam que nem todos se sentiam assim.
Adolfo José Klock refere-se a mais de um caso:
Tinha um chamado Lázaro, um loiro, aquele desertou lá e foi pro lado dos
alemão. Quando terminou a guerra aí acharam ele lá com os alemão. O
sobrenome não sei. Bem loiro ele era. Ele servia junto com nós, ele veio
daqui, era da nossa Cia., aqui de Itajaí. [...] Mas não foi só esse Lázaro, teve
mais um outro que desertou lá. Depois, quando terminou a guerra, acharam
eles lá no outro lado.415
[...] Eu vou contar uma história... Aqui de Corupá tinha um cidadão de nome
Larsen. [...] É, Larsen, da família Larsen. Eu estou dizendo isso – eu não vi,
mas um amigo meu, que era junto com ele, na linha de frente me contou.
Faleceu já, era o Angelo Vicente. Ele disse que esse Larsen dizia assim: “Eu
um dia vou passar para o lado de lá. Eu vou com eles lá, eu sou alemão”. O
Angelo dizia “Olha, tu não faz isso, rapaz! Deixa de ser bobo! Isso não se
faz! Isso é coisa de traidor!”. “Eu vou! Eu vou!”. Um dia o Angelo me disse:
“Sumiu, o Larsen! Sumiu! Onde é que está o Larsen?”. Muito bem, passou,
não apareceu mais [...].416
413
Gerd Emil Brunckhorst, depoimento citado.
414
B. A. S., depoimento citado.
415
Adolfo José Klock, depoimento citado.
416
Fridolino Kretzer, depoimento citado.
157
[...] Ah! Tinha um, sabe, você não conhece, ele é o meu Vice-Presidente aqui
[da Associação Nacional dos Veteranos da FEB/Seccional Blumenau],
ontem ainda esteve comigo aqui... Aquele cara, sabe, só torcia mesmo [pela
Alemanha]... Não tinha amizade quase com ninguém... Ele queria ser
alemão. Até depois da guerra, veio pra cá, deu baixa, foi direitinho para a
Alemanha, não sei por quê,... [...] Ele era um rapaz bem inteligente, mas é
que ele torcia muito para... ele era contra nós... [...] Um alemão que tem
entre nós é ele. É o Edgar Kielwagen [...].417
Foi esse comentário que despertou o interesse em entrevistar Edgar Kielwagen, cujo
nome não figurava na lista anteriormente feita por Arnoldo Müller indicando, a pedido da
autora, nomes para a realização de outras entrevistas. Depois de desencorajar o contato com
esse veterano da FEB que supostamente se considerava alemão – [...] ele está meio surdo já,
está meio bobo já, coitado... [...] ele não sabe, não se lembra de nada... – Arnoldo Müller
atenciosamente forneceu seu telefone.
A entrevista com Edgar Kielwagen começou com a uma declaração espontânea: Lutar
contra os meus parentes na Alemanha não era justo [...].418 Contudo, ao longo da conversa,
entremeada por muitas pausas, o depoente não tocou mais no assunto, mesmo quando foi
incentivado. Enfatizou o bom relacionamento de sua família com “gente de origem
portuguesa” e não teceu comentários sobre seus sentimentos na guerra.
417
Arnoldo Müller, depoimento citado. 2009.
418
Edgar Kielwagen, depoimento citado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A alta sociedade dos alemães aqui tinha uma raiva muito grande quanto aos
expedicionários porque nós fomos lutar contra os alemães, eram alemães de
coração mesmo, eles amavam os alemães... Mas, o que vai se fazer, né? Nós
não tínhamos culpa... Nós fomos convocados, nós já morávamos aqui, nós
também éramos descendentes de alemães, mas fomos obrigados a lutar
contra eles... É a ordem... O que vai se fazer? Quando um país declara guerra
contra o outro, você é obrigado a lutar. Então, sabe, eles não gostaram da
gente... Eles até... não queriam até dar emprego. Assim, muitos
expedicionários nossos [...] morreram na cachaça porque não conseguiram
um emprego aqui... Porque a maior parte veio assim da lavoura, eles não
419
Arnoldo Müller, depoimento citado. 2009.
160
Dois ex-combatentes que não são descendentes de alemães mas também vivem em
Blumenau também perceberam tais sentimentos, embora demonstrem menos ressentimentos
com a situação. Sebastião Ribeiro Duarte mencionou: [...] tem alguns que eram meio
fascistas, mas a gente não dá bola [risos]. Para João Carturano, reflexos desse tipo de
sentimento fazem-se presentes na não colaboração da prefeitura local com a seccional da
associação de veteranos da FEB:
[...] Blumenau aqui, Blumenau é fascista... Então nós estamos aí com uma
associação e eles são incapazes de ajudar. Quando Dalto dos Reis era
prefeito [entre 1983 e 1988], pegavam a associação e davam a sala. Quando
entrou aquele Kleinübing,421 cortou tudo. [...].
[...] Eu tenho certeza que todos esses de origem, todos tinham uma dorzinha.
Tinham, tinham. É, tenho certeza. Todos eles, porque a gente percebia
quando vinha para essas regiões. Para nós, soldados, eles olhavam assim,
esses alemães. E a maioria não sabia falar português, era um monte de
alemão, né... E ali se sentiu muito. [...]
Segundo Ferdinando Piske, que morava em Jaraguá do Sul, SC: [...] Nós sofremos
depois aqui. Aqui tem até hoje. Tem gente que vira a cara para nós. [...] Porque nós fomos
matar os nossos irmãos de sangue na Itália. [...] imagina, irmãos de sangue. Prosseguiu,
enfatizando seus deveres enquanto cidadão brasileiro: [...] eles ficaram magoados. Porque
eles acharam que nós falávamos alemão e estávamos indo lá matar alemães. Mas não é: eu
sou um cidadão brasileiro, fui matar um alemão que agrediu o meu país [...]. De acordo com
o depoente, sua família compreendia sua situação, inclusive sua irmã, que era tão indignada
com as proibições de falar alemão.
B. A. S., que vive há anos em Novo Hamburgo-RS, também destacou que se considera
brasileiro ao relatar a interação com a população da cidade:
420
Id.
421
A referência pode ser a Vilson Pedro Kleinübing, que foi prefeito de janeiro de1989 a abril de 1990, ou a seu
filho, João Paulo Kleinübing, que assumiu a prefeitura entre janeiro de 2005 e dezembro de 2008 e foi reeleito
para o mandato 2009-2012.
161
para a Alemanha combater seus patrícios?”. Mas olha, muito eu ouvi isso! E
isso me doía muito. Porque, afinal de contas, eu sou brasileiro. E sou
brasileiro, muito mais brasileiro do que qualquer um que é brasileiro. Porque
meu último ano de serviço aqui em Novo Hamburgo, eu como chefe do
Serviço Militar, eu expedi 600 memorandos para a indústria e comércio de
Novo Hamburgo, para hastearem bandeira na Semana da Pátria. [...] Era uma
coisa linda! [...]
esse aspecto, se consideradas as teorias de Norbert Elias e John Scotson (2000), tornaram-se
outsiders tanto para parte do grupo de “brasileiros”, quanto para parte do grupo de “alemães”.
O pressuposto marxista de que a consciência de classe é forjada no próprio desenrolar das
lutas de classes, pode também ser aplicado na compreensão dos diversos sentimentos
identitários dos pracinhas, forjados no confronto dos papéis sociais que exerceram.
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FONTES DOCUMENTAIS
ENTREVISTAS REALIZADAS
ACERVOS PESQUISADOS
Atividades
Cidades onde Integração à
Nome do Ano de Cidade onde É descendente Língua Educação Estudou em escola Religião da profissionais Posto Principais tarefas Escalão de embarque, Depois da FEB:
viveu antes da FEB: convocado
depoente nasc. nasceu de alemães? materna formal pública ou privada? família antes ocupado na FEB RI, Batalhão, Cia militar ou civil?
FEB ou voluntário?
da FEB