Devoção Negra. Santos Pretos e Catequese No Brasil Colonial
Devoção Negra. Santos Pretos e Catequese No Brasil Colonial
Devoção Negra. Santos Pretos e Catequese No Brasil Colonial
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ISSN 1677-1222
Introduo
A Igreja, no perodo colonial, teve um projeto catequtico para os negros? Como a devoo
aos Santos Pretos Carmelitas Elesbo e Efignia foi introduzida, promovida e apropriada
pelos negros na Colnia? Qual a fora simblica dessa devoo?
Anderson Jos Machado de Oliveira responde essas e outras questes na sua tese de
doutorado junto ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal
Fluminense (UFF), publicada em livro com o ttulo Devoo negra: santos pretos e
catequese no Brasil colonial.
Para Oliveira, o tema central deste livro um estudo da importncia do culto dos santos no
Brasil colonial, tendo como foco o culto a Santo Elesbo e a Santa Efignia (p. 25).
* nio Jos da Costa Brito professor do Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio da PUC-SP e
lder do Grupo de Pesquisa O Imaginrio Religioso Brasileiro.
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Os Carmelitas
Os primeiros carmelitas chegaram Colnia em 1580, na armada de Frutuoso Barbosa que
atracou em Pernambuco com a misso de expulsar os franceses da Paraba.
A Ordem Carmelita fundada no incio do sculo XIII no Monte Carmelo, na atual Israel, e
rapidamente se instalou na Europa. Em 1247 tornou-se uma ordem de vida ativa, como as
ordens mendicantes (Dominicana/Franciscana), e passou a dedicar-se pastoral das
massas urbanas, propagando a devoo ao escapulrio de Nossa Senhora.
Instalada, em Portugal desde 1251, s se expandiu no sculo XVI, tornando a viver uma
nova onda expansionista no perodo da Restaurao. Nesse tempo, a Igreja e os conventos
das ordens religiosas na Colnia se multiplicaram e se enriqueceram.
Frei Jos Pereira de Santana, nascido em 1694 na Candelria, Rio de Janeiro, filho de
Simo Pereira de S e Ana Bocan, testemunhou, vivenciou e marcou esse processo.
Na sociedade do Antigo Regime imperava uma rgida hierarquia social, cristalizada pela
reiterao dos estigmas. Entre as profisses estigmatizadas pode-se enumerar as de
ourives, barbeiro, marinheiro, comerciante e os ofcios mecnicos em geral. O acesso
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Depois dos primeiros estudos no Colgio dos Jesutas, no Rio de Janeiro, ainda muito jovem
entrou para a Ordem do Carmo. Ordenou-se com 24 ou 25 anos e doutorou-se em Coimbra
(1725).
Como hagigrafo e cronista, era porta-voz da Ordem do Carmo. A Crnica dos Carmelitas
da antiga e regular observncia nestes Reinos de Portugal, Algarves e seus domnios, em
quatro volumes, escrita entre 1740 e 1745, ilustra bem sua viso de mundo e seu mtodo de
trabalho. A reconstruo da tradio e mitologia herica carmelita se fez por apropriaes.
Ao realizar esta[s] apropriao[es] o autor afirmava que a Ordem estivera presente nos
momentos-chaves da histria da Pennsula e de Portugal (p. 83).
A catequese
Entre os inmeros desafios assumidos pela Igreja na Cristandade encontrava-se o da
catequese dos homens de cor. Para enfrent-lo, a Igreja promoveu o culto aos Santos
Negros.
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A Ordem do Carmo envolveu-se profundamente com esse projeto, respaldada pelo livro
escrito por Frei Jos Pereira de Santana intitulado Os Dois Atlantes de Etipia. Santo
Elesbo, Imperador XLVII da Abissnia, Advogado dos perigos do mar & Santa Efignia,
Princesa da Nbia, Advogada dos incndios dos edifcios e publicado em 1735.
Na anlise do texto hagiogrfico de Frei Jos, Oliveira, tendo presente ser ele carregado de
sentido e intencionalidade, procurou mostrar a relao estreita entre o culto aos santos, os
textos hagiogrficos e a ao evangelizadora e reformadora da Igreja (p. 98).
A narrativa hagiogrfica, ao longo da Histria da Igreja, conheceu vrios gneros - Ata dos
Mrtires, Vida dos Santos, com nfase na biografia e nas virtudes -, acompanhando o culto
aos santos, seu processo de clericalizao e concentrao de poder nas mos do papa.
Para a hagiografia crist, os santos so um modelo a ser imitado pelos fiis. Desde a mais
tenra infncia eles vivem uma vida virtuosa, praticando as virtudes crists da humildade,
castidade, temperana e caridade.
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Elesbo e Santa Efignia de Atlantes da Etipia, associando ainda a eles a imagem do sol
e da lua.
Frei Jos Pereira de Santana apresentou Santo Elesbo e Santa Efignia como carmelitas,
inventando tradies, consciente de que essa identificao traria benefcios para a Ordem,
ampliando seu papel na cristandade colonial.
Nos textos clssicos sobre os santos na Igreja Catlica, como a Vida dos Santos de Butler
(1756-1759), a Acta Sanctorum (sculo XVII), o Martirolgico Romano (1584), o Catalogus
Sanctorum e a Legenda urea (sculo XIII), no h nenhuma referncia a algum vnculo
entre os santos e a Ordem do Carmo. No entanto, Frei Jos recorria, desse modo, a dados
de histrias passadas, apropriando-se das mesmas e relendo-as sob a tica dos anseios da
Ordem do Carmo (p. 147).
A funo primordial do texto hagiogrfico era a de divulgar os atributos e milagres dos santos
responsveis pela devoo e pela dimenso catequtica do culto. A narrativa de Frei Jos
Pereira de Santana atende a essa finalidade, ao apresentar Santo Elesbo como advogado
das boas viagens e protetor contra os perigos do mar, e Santa Efignia como advogada
dos incndios e protetora contra os perigos do fogo. Atributos densos de simbolismo, tanto
para a cultura portuguesa como para a africana.
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No contexto de uma pastoral do medo, a narrativa da morte tinha um peso especial: nesta
revelava-se no s a vida santa do morto como os desgnios de Deus. Frei Jos aproveitou a
potencialidade pedaggica desse momento para mostrar a resignao, a submisso de
Santo Elesbo e Santa Efignia a Deus e Igreja, como tambm para expressar a
preocupao com os ritos fnebres, muitas vezes celebrados de modo pouco ortodoxo pelos
africanos.
Sem dvida alguma o trabalho de Frei Jos Santana Pereira deu grande impulso devoo.
Ao escrever sobre os santos, o fez dentro de seu horizonte cultural muito erudito. Seu texto
foi destinado, principalmente, ao clero, responsvel por evangelizar os fiis.
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O autor no considera
Na ampla pesquisa iconogrfica realizada pelo autor foram encontradas mais imagens de
Santa Efignia do que de Santo Elesbo, na sua maioria do sculo XVIII. Aps a anlise,
afirma:
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Ressignificaes da devoo
A devoo, ao se estruturar e difundir, confirmou a eficcia do projeto catequtico formulado
pela Ordem do Carmo e abriu possibilidades para as mais diversas apropriaes da figura
do santo. Estamos diante de um complexo processo em construo de coeso de grupo,
cuja identidade se construa atravs do estabelecimento do contraste.
Gradualmente, Santo Elesbo e Santa Efignia se tornaram santos negros pelo papel
protetor por eles desempenhado. A devoo floresceu no espao das irmandades. As
irmandades de Santo Elesbo (Rio), Santa Efignia (Mariana) so do Setecentos.
No sculo XVIII, o culto aos dois j est consolidado. Para o autor, a devoo desempenha
um papel fundamental na construo de identidade mais abrangente do grupo em questo
(p. 267).
passou a ser visto como no como uma unidade natural/pura, mas sim como
uma unidade que dotada de uma cultura, empreende um processo de
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Em Minas h uma clivagem tnica envolvendo crioulos e africanos e africanos entre si, mas
constata-se, tambm, uma mtua reverncia pela devoo dos outros, diferentemente do
que acontecia no Rio. A vivncia de determinadas experincias explica essa diversidade. Em
Minas, experincias traumticas de fome, como nas secas de 1697-1698, 1701 e 1702,
levaram os irmos a economizar para enfrentar futuras adversidades. Constata-se, pois,
uma apropriao reveladora de uma relativa autonomia das irmandades diante do esforo de
padronizao da Igreja.
Nesse processo de apropriao, a devoo a Santa Efignia teve forte recepo por parte
dos negros. Os registros de bito; a toponmia nas cidades (Rio de Janeiro, So Paulo); a
proliferao dos juzes por devoo; e o quadro de receitas das irmandades comprovam
esse dado saciedade.
Como explic-lo? Uma primeira explicao, segundo Oliveira, passa pela associao da
figura feminina de Santa Efignia ao culto de Maria, to presente na Colnia. Uma segunda,
mais consistente, relaciona-se com o processo de construo da memria africana no Brasil,
baseado na comparao da atuao das mulheres na frica e no Brasil e na preservao
dos valores culturais. Assim,
Observaes pontuais
Anderson de Oliveira, em Devoo Negra, resgata a histria de Frei Jos Pereira de
Santana, dos carmelitas, de Santo Elesbo e Santa Efignia, assim como da catequese e
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devoo dos negros e negras, tendo como farol, como fio condutor, o livro Os dois Atlantes
de Etipia.
Resgate que passa por um refinado dilogo entre a Histria Cultural e a Histria Religiosa,
no qual o autor deixa transparecer sua conaturalidade com as duas vertentes
historiogrficas, pois as articula e as distingue no tempo certo, dando ao texto um tom
dialtico e harmnico. Inscreve novas variveis na compreenso da catequese, da devoo
e da religiosidade dos homens de cor, convidando seus leitores a realizarem autnticos
deslocamentos. Passar de uma compreenso linear da catequese, que a via como simples
dominao, para uma percepo de suas profundas incidncias na sociedade colonial;
deixar de compreender a devoo como dissimuladora para v-la como geradora de
identidades individuais e grupais; e passar de uma religiosidade superficial para uma
vivncia religiosa profunda, que possibilita o encontro simblico de deuses africanos e
santos catlicos.
Oliveira reitera inmeras vezes o papel ativo da Igreja como ntima colaboradora e
mantenedora da ordem escravista, mas no esquece de sinalizar a relativa autonomia dos
negros na apropriao do Catolicismo.
o culto dos santos, no Brasil colonial, foi muito mais do que uma expresso da f
catlica e sim um todo complexo que permite ao historiador compreender uma
srie de injunes sociais, polticas e culturais que assinalaram o processo de
colonizao da Amrica portuguesa (p. 323).
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Alm do belo material iconogrfico e dos inmeros quadros que sistematizam preciosos
dados colhidos nos arquivos, o livro produzido em cuidadosa edio - captura o leitor logo
no incio ao colocar em pauta a instigante questo da culpabilizao da Igreja Colonial pela
superficialidade do catolicismo entre os negros.
Devoo Negra: santos pretos e catequese no Brasil colonial tem j um lugar de destaque
na rica produo historiogrfica brasileira. Seu destino ser um livro de consulta ao qual os
pesquisadores retornaro com frequncia e interesse sempre renovado.
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