Santaella Astucias Do Design
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Lucia Santaella
Astcias do design
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cumprir a funo para a qual foi projetado, ao mesmo tempo em que apreciado
visualmente (Braga 2010, p. 20; ver tambm Silva e Pachoarelli, orgs., 2011).
Os fundamentos bsicos da Bauhaus, funcionalistas e racionalistas, ganharam
notoriedade como princpios do design, especialmente porque os parmetros, por eles
institudos na produo, auxiliavam na validao da profisso do designer. Isso, contudo,
no deveria levar equalizao do design tout court com esses princpios, como pensam
alguns. Ao contrrio, no decorrer do sculo XX, o design passou a adquirir uma
diversidade de facetas, algumas complementares, outras antagnicas ao funcionalismo.
Tendncias complementares, por exemplo, encontram-se nos anos 1950-60 na Hochschle
fr Gestaltung, de Ulm, conhecida como Escola Superior da Forma. Nela, os princpios
racionalistas tiveram continuidade na valorizao da boa forma, dos padres visuais, da
proporo, dos sistemas de coordenadas que, na sua coeso, devem ser capazes de
expressar coerentemente um contedo. A proposta dessa Escola era promover a
superao da diviso entre belas artes e artes aplicadas. Contribuio similar se encontrava
tambm no Swiss/International Style of Design que no se limitava ao design grfico. O
famoso arquiteto Le Corbusier, por exemplo, tido como parte desse estilo que se
espalhou por todo o mundo da arte e do design. Para seus adeptos, o design deve estar
fundado em princpios racionais, alcanados por meio de um esprito cientfico. Para eles,
designers esto mais perto dos comunicadores do que dos artistas, pois a beleza no se
constitui em exclusivo princpio que guia o design. Buscavam a simplicidade nas
estruturas modulares, na clareza e geometrizao.
Nos anos 1970, os movimentos de contracultura, com seus protestos e aspiraes de
mudanas, bateram de frente no racionalismo anglo-saxo. O design aderiu, ento, ao
psicodelismo, esttica hippie e punk como evidncia de participao poltica com a
bandeira de subverso do status quo. Da segunda metade dos anos 1970 em diante, o ps-
moderno foi tomando conta de todos os estilos nas artes, da arquitetura s artes plsticas,
da msica ao cinema, penetrando tambm no territrio do design. A diluio de quaisquer
fronteiras tempo-espaciais, especialmente das dicotomias funcionalistas entre forma e
funo, trouxe a valorizao da retrica visual, do ornamento, colagem, ilustrao, da
fotografia e da tecnologia (Harvey, 1993).
Atualmente, assiste-se a uma ampliao considervel do campo e das preocupaes
do design. Qual o papel do design na produo capitalista e nas extravagncias do
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Pode-se afirmar que a noo de design est implicitamente presente em uma pluralidade
dos escritos flusserianos. Esse o caso, por exemplo, do texto sobre O gesto de fazer
(Flusser, 1994, p. 49-67) que funciona como um embrio para os seus escritos sobre
design. No fazer, as mos tm encontro marcado com a materialidade bruta que o fazer
visa transformar em objeto. O material bruto ope resistncia presso produtora, uma
resistncia que apresenta variaes em grau e qualidade. Por isso, cada objeto possui uma
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astcia que lhe prpria e com a qual elude o esforo das mos para impor-lhe fora
um valor (p. 59). Cada objeto exige uma estratgia e um mtodo distintos: fora para
alguns, mimo para outros, assim como existe aquele objeto que preciso burlar. s na
medida em que as mos investigam seu objeto, em que exploram seu segredo, que so
capazes de dar-lhe uma forma. Uma vez investigado o objeto e descoberto seu segredo,
ento as mos tambm descobrem seu prprio segredo, a saber, a sua habilidade,
descoberta que resulta da luta das mos diante da astcia do objeto.
Mais importante nesse texto de Flusser, no que concerne ao design, especialmente
para a noo de design como projeto, encontra-se naquilo que fica implcito acerca do
poder das mos sobre o pensamento, ou seja, o modo como, no gesto do fazer, as mos
realizam a pragmtica do pensamento. Quando os objetos acabam por se transformar em
extenses simplificadas e mais eficazes das mos, esto dando corpo ao projeto que,
alimentado no pensamento, encontra sua forma prtica no mundo.
Outra fonte que subsidia a concepo flusseriana de design aquela que se encontra
na sua mxima do mundo codificado de que resulta, por incluso, a codificao de toda
experincia. Sem processos de codificao, o design no poderia se realizar, pois a criao
de um artefato, quando d forma matria, assim o faz pela mediao de conceitos e
cdigos especficos e apropriados. Ao concretizar uma possibilidade de uso, o artefato se
faz modelo e informao. Cardoso (2007, p. 13) lembra aqui o exemplo, que Flusser
menciona em algumas ocasies, de uma alavanca em operao. Quando a vemos
funcionando, no mais possvel olhar para qualquer vara de madeira ou metal, sem que
ela nos lembre do seu potencial para ser aplicado com a mesma finalidade. graas ao
conceito que tal funo e significado so adquiridos por aquilo que no passava de um
pedao de madeira.
H inmeras outras passagens nos escritos de Flusser em que surgem menes
implcitas concepo de design. No que vem a seguir, entretanto, irei me limitar aos
textos que exibem essa designao no seu ttulo. Em Sobre a palavra design (Flusser,
2007, p. 181), Flusser comea com a explorao etimolgica da palavra, colocando nfase
no sentido de propsito, plano, inteno, meta. Surpreendentemente, chama ateno para
um sentido que, de fato, est contido na etimologia da palavra, mas do qual ningum ou
poucos se apossam: design significa tambm esquema maligno, conspirao, ou seja,
significados relacionados com astcia e fraude, o que rebate no significado verbal de
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tramar algo, simular, proceder de modo estratgico. Isso leva sntese de que o designer
, portanto, um conspirador malicioso que se dedica a engendrar armadilhas (ibid., p.
182).
Na sua ressonncia com mecnica e mquina, mecanismo, do grego mechos, design,
como o prprio nome diz, designa algo que tem por objeto enganar, portanto, constitui-
se em uma armadilha, assim como mquina um dispositivo de enganao.
Associativamente, esse contexto leva a tcnica, do grego techn. Flusser no explora a esse
termo at as suas correlaes com poiesis e episteme, uma extenso que me parece
oportuna, antes de se mencionar a traduo de techn por ars, em latim. Isto porque,
compreender a relao entre arte e tcnica, que est pressuposta na noo contempornea
de design, pressupe recuperar as distines e complementaridades, que vm do grego,
entre epistme, techn e poisis. Epistme denota conhecimento, o verdadeiro conhecimento,
diferente da opinio, o conhecimento das causas que so necessariamente verdadeiras.
Implica a mistura entre cincia e saber e envolve o esforo racional para substituir a
opinio, doxa, que o conhecimento acerca do contingente. Divide-se em praxis, techn, e
theoria. Techn refere-se habilidade, arte de produzir, no sentido de mtodo envolvido
na produo de um artefato, de um objeto, ou seja, o know how, o saber fazer. Para os
gregos, a techn significava no apenas as atividades e competncias do arteso, mas
tambm as artes da mente e as belas artes. Por isso, estava indissoluvelmente ligada
poisis, essncia do agir, fazer como criao, dar forma, o que d sentido ao fazer, o
sentido ltimo da techn que transfigurada pela poisis. Desde muito cedo, a palavra techn
foi ligada palavra epistme, sendo ambas modos de nomear, cada uma a sua maneira, a
prpria ideia de conhecimento. Disso se pode concluir que a importncia e o papel
decisivo da techn no residem simplesmente no fazer ou na manipulao dos meios, pois,
inseparvel de poisis e epistme, techn forma de criao e forma de conhecimento.
Desde os gregos muita coisa mudou no modo como o binmio da arte e da tcnica
passou a ser compreendido. No mais entrelaado aos sentidos de epistme e de poisis, o
campo semntico de techn estreitou-se, enquanto romanticamente o significado de poiesis,
concebida como processo criador, passou a ser sobrevalorizado. tambm para essa
problemtica que Flusser chama ateno quando afirma que, embora design, mquina,
tcnica, ars (arte em latim) e Kunst (arte em alemo) estejam intimamente relacionados,
desde a Renascena, essas relaes foram sendo crescentemente negadas, dividindo a
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com a frase acima que Flusser se enderea para outras concepes possveis de design,
entre elas, a de forma no sentido de modelo a que o fenmeno submetido para poder
ser controlado, justamente o que os cdigos computacionais realizam quando criam
formas sintticas, eternas, mas, paradoxalmente, nem por isso, imutveis, pois so formas
algoritmicamente manipulveis (ibid., p. 192).
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Outro dilema encontra-se nas duas faces do design como progresso e obstruo.
Como superar a obstruo em prol do seu outro lado? Objetos de uso so algo mais do
que objetos, ou seja, so mediaes, eles so tanto objetivos quanto intersubjetivos, no
apenas problemticos, mas dialgicos. Isso significa que, no processo de criao dos
objetos, comparece a questo da responsabilidade, o que permite falar de liberdade no
mbito da cultura. A responsabilidade a deciso de responder por outros homens.
uma abertura perante os outros. Quando decido responder pelo projeto que crio, enfatizo
o aspecto intersubjetivo, e no o objetivo, no utilitrio que desenho. E se dedicar mais
ateno ao objeto em si, ao configur-lo em meu design (ou seja, quanto mais
irresponsavelmente o crio), mais ele estorvar meus sucessores e, consequentemente,
encolher o espao de liberdade na cultura. (ibid., p. 195)
A questo da liberdade constitui-se em um dos leitmotifs da obra flusseriana. Desde a
Filosofia da caixa preta, Flusser (1985) transcendia a anlise dos aparelhos e meios tcnicos
em geral para o campo da cultura na busca de uma alternativa vivel de existncia em
liberdade que encontra no homo ludens sua figura conceitual privilegiada. o jogo, figura
crtica da criao, que surge como alternativa possvel na busca pela liberdade
subvertendo o automatismo dos aparatos culturais (Baio, 2013).
Assim tambm, do dilema entre obstruo e progresso, Flusser extrai algumas
concluses que iluminam criticamente as produes de objetos de uso que servem apenas
ao consumo pelo consumo, cuja exacerbao produz o esquecimento da nica forma de
progresso que aquela que segue na direo dos homens. De resto, tem-se a um
esquecimento tal que leva a entender o design responsvel como algo retrgrado. Flusser
antecipa uma brecha de luz na produo de objetos de uso imateriais, como programas de
computador e redes de comunicao, quando permitem que sejam percebidos os outros
homens que esto por trs desses designs, tornando visvel sua face meditica,
intersubjetiva e dialgica. Isso resultaria em um cdigo tico do design que, longe de se
impor na forma de preceitos prvios, brotaria dos procedimentos de conduta em ato.
O mais admirvel texto de Flusser sobre design aquele em que, sob o ttulo de
Design como teologia (ibid., 206-213), proposto que, para o design do futuro, seria
necessrio confrontar o conceito ocidental de design com noes orientais. Quando
observamos como as formas surgem entre as mos de um oriental, como por exemplo, os
ideogramas escritos com pincel, flores de papel ou os gestos ritualsticos e ao mesmo
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tempo leves, naturais, da cerimnia do ch, no se trata, em nenhum desses casos, de uma
forma que se impe sobre algo amorfo (como seria a ideia ocidental), mas, ao contrrio,
fazer surgir de si mesmo e do mundo circundante uma forma que abarque ambos, ou
melhor, uma forma de imerso no no-eu do papel, do pincel, da tinta, do ritual.
Enquanto no Ocidente o design revela um homem que interfere no mundo, no Oriente
ele muito mais o modo como os homens emergem no mundo para experiment-lo.
Para este ltimo, o design esttico, no legtimo sentido que este tem de experiencivel
e, no dizer de C. S. Peirce, o que tem de admirvel.
No momento em que o cdigo alfanumrico, que dominou na cincia ocidental,
especialmente desde Gutenberg, perder sua hegemonia para o cdigo digital dos
computadores, este que, em princpio, apresenta semelhanas com os cdigos orientais,
pode-se esperar que transformaes substanciais se ponham a caminho no Ocidente. O
que se busca, portanto, uma aproximao esttica com a vida, de que a cincia ocidental
nos alijou. Mas no essa uma hiptese ousada, aventurosa?, pergunta Flusser. Ele
mesmo responde que seu texto deve ser lido como ensaio, isto , como a tentativa de
formular uma hiptese. E no so as hipteses as formulaes mais criativas e
inovadoras do esprito humano? No esto nelas as iluminaes que se responsabilizam
pelas grandes descobertas na arte e tambm na cincia? Se confiarmos nisso, , portanto,
mister aguar nossa escuta para Flusser e para as suas hipteses explicativas.
Referncias
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