Pelo Sertão, de Afonso Arinos

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PELO SERTO
HISTORIAS E PAIZAGENS
Companhia Typographloa do Brazll - Rua dos Iuvalldos, 9S

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AFFONSO ARINOS

pelo ~ertao
*
HISTORIAS E PAIZAGENS

# , ) , #. :.. : . .. :
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~ f ., ~ : .,.: ~ ... : V ... : f) (1

RIO DE JANEIRO
LAEMMERT & C . - Rua do Ouvidor, 88
Casaa llllaes em 8. PAULO e RECIFE

IB9B

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........... ....... ............... .,..
O livro que ora se apresenta ao publico
devia ter sido publicado ha cerca de tres
annos. O leitor descobrir nelle falta de
unidade, quer na maneira ou na execuo,
quer no estylo propriamente.
A razo disto que os contos foram es-
criptos em pocas diversas, num periodo
que medeia t;rH:i-t; 0,s ,19 e. os.J!J imnos.
Os primeirci~: i.lat&m '.'de",,,gs& ~( .~!l<}; os
ultimos, de ' r~s .' .. , : ,. - , , .
Vo estas p~avm . <gui:>!. de mra ex-
plicao prelimina::-para '>rkr.t'lr o critico
no julgamento da bt11a: NL faremos pro
logo, porque cremos no que disse o velho
escriptor portuguez:
"So os prologos antecipado remedio
aos achaques dos livros, porque andam
sempre de companhia os erros e as des-
culpas.~

......,.-.......
D'OP EXCH 1 FEB i904

B.kAZU.d:>l.81.. NA.O.
.: : .::. : .... .. .: ... .....: .: ::.
....... ... .......'. . ..... : :: :
~
....

. . . . .. .. ...
.:.. .. .... :. ......:....... ..
~

. .
=-- ~:~...:.... ~:~r~~ ..:

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INDICE

P.iGS,
Assombramento
A Cadeirinha 47
Burity Perdido. 59
A Esteireira 65
Manuel Lucio . . 83
Paizagem Alpestre, . . . . 97
Desamparados. . . . . . . . . . 107
A Velhinha. . . . . . 113
A Fuga , . . . . . . . . , . , . 123
O Contractador dos Diamantes . 135
Joaquim Mironga 157
Pedro Barqueiro. . . . . . 181

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ASSOMBRAMENTO
HISTORIA DO SERTO
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EIRA do caminho das tropas, num
} [
aboleiro grande, onde cresciam
a canella d'ema e o pu santo,
havia uma tapra. A velha casa assobra-
dada, com grande escadaria de pedra le-
vando ao alpendre, no parecia desampa-
rada. O viandante a avistava de longe com
a capella ao lado e a cruz de pedra lavrada,
ennegrecida, de braos abertos, em prece
contricta para o co . Naquelle escampado
onde no ria ao sol o verde escuro das
mattas, a cr embaada da casa suavisava
mais ainda o verde esmaiado dos campos.
E quem no fosse vaqueano naquelles
stios iria, sem duvida, estacar deante da
grande porteira escancarada, inquirindo
qual o motivo por que a gente da fazenda

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4 ASSOMBRAMENTO

era to esquiva que nem ao menos appare-


cia janella quando a cabeada da madri-
nha da tropa, carrilhonando frente dos
lotes, guiava os cargueiros pelo caminho
afra.
Entestando com a estrada, o largo
rancho de telha, com grandes esteios de
aroeira e moires cheios de argollas de
ferro, abria-se ainda distante da casa con-
vidando o viandante a abrigar-se nelle.
No cho havia ainda uma trempe de pedras
com vestgios de fogo e, d'aqui e d'acol,
no terreno acamado e liso, espojadouros
de animaes vagabundos.
Muitas vezes, os cargueiros das tropas,
ao darem com o rancho, trotavam para l,
esperanados de pouso, bufando, atrope-
lando-se, batendo uns contra os outros
as cobertas de couro cr; entravam pelo
rancho a dentro, apinhavam-se, giravam
impacientes espera da descarga, at que
os tocadores a p, com as longas toalhas
de crivo enfiadas no pescoo, falavam a
mulada, obrigando-a a ganhar o cami-
nho.
Porque seria que os tropeiros, ainda em
risco de forarem as marchas e aguarem

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ASSOMBRAMENTO 5

a tropa, no pousavam ahi ? Elles bem


sabiam que, noite, teriam de despertar,
quando as almas perdidas, em penitencia,
cantassem com voz fanhosa a encommen-
dao . Mas o cuyabano Manuel Alves,
arrieiro atrevido, no estava por essas
abuses, e quiz tirar a scisma da casa mal
assombrada.
Montado em sua mula queimada fron-
taberta, levando adestro seu macho crioulo
por nome <<Fidalgo, - dizia elle que
tinha corrido todo este mundo, sem topar
cousa alguma, em dias de sua vida, que
lhe fizesse o corao bater apressado, de
medo. Havia de dormir szinho na tapra
e ver at aonde chegavam os receios do
povo.
Dito e feito.
Passando por ahi de uma vez, com sua
tropa, mandou descarregar no rancho com
ar decidido. E emquanto a camaradagem,
meio obtusa com aquella resoluo ines
perada, saltava das sellas, ao guizalhar
das rosetas no ferro batido das esporas;
e os tocadores, acudindo de c e de J,
iam amarrando nas estacas os burros,
divididos em lotes de dez, Manuel Alves,

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6 ASSOMBRAMENTO

o primeiro em desmontar, quedava-se de


p, recostado a um moiro de brana.
chapo na cora da cabea, cenho carre-
gado, faca na apparelhada de prata, cor-
tando vagarosamente fumo para o cigarro.
Os tropeiros, em vai-vem, empilhavam
as cargas, resfolegando ao peso. Contra o
costume, no proferiam uma jura, uma
exclamao ; s, s vezes, uma palmada
forte na anca de algum macho teimoso.
No mais, o servio ia-se fazendo e o Ma-
nuel Alves continuava quieto.
As sobrecargas e os arrochos, os buaes,
a penca de ferraduras, espalhados aos
montes ; o surro da ferramenta aberto e
para fra o martello, o puxavante e a
bigorna ; os embornaes dependurados ;
as bruacas abertas e o trem de cozinha
cm cima de um couro ; a fila de cangalhas
de suadouro para o ar, beira do rancho
-denunciaram ao arrieiro que a descarga
fra feita com a ordem do costume, mos-
trando tambem que rapaziada no repu-
gnava acompanhai-o na aventura.
Ento, o arrieiro percorreu a tropa, cor-
rendo o lombo dos animaes para exami-
nar as pisaduras; mandou atalhar sovela

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ASSOMBRAMENTO 7

algumas cangalhas, assistiu raspagem


da mulada e mandou, por fim, encostar a
tropa acol, fra da beira do capo, onde
costumam crescer as hervas venenosas.
Dos camaradas o Venancio lhe fra ma-
lungo de sempre. Conheciam-se a fundo,
os dous tropeiros, desde o tempo em que
puzeram o p na estrada pela primeira vez,
na ra da fumaa, em trinta e tres. Davam
de lngua s vezes, nos seres do pouso,
um pedao de tempo, emquanto os outros
tropeiros, sentados nos fardos ou esten-
didos sobre os couros, faziam chorar a ty-
ranna com a toada doida de uma cantilena
saudosa.
Venancio queria puxar a conversa para
as cousas da tapra, pois viu logo que o
Manuel Alves, ficando ahi, tramava al-
guma das delle.
- O macho lionanco est meio sentido
da viagem, s Manuel.
- Nem por isso. Aquelle couro n'agua.
No com duas distancias desta que elle
afrouxa.
- Pois olhe : no dou muito para elle
urrar na subida do morro.
- Este? no fale !

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8 ASSOMBRAMENTO

- Inda malhando nesses carrascos cheios


de pedra, ento que elle se entrega de
todo.
-Ora!
- Vossemec bem sabe : por aqui no
ha boa pastaria; accresce mais que a tropa
deve andar amilhada. Nem pasto, nem
milho na redondeza desta tapra. Tudo
que sahirmos d'aqui, topamos logo um
catingai verde. Este pouso no presta ; a
tropa amanhece desbarrigada, que um
Deus-nos-acuda.
- Deixe de poetagens, Venancio ! Eu
sei c.
- Vossemec pde saber, eu no duvido;
mas na hora da cousa feia, quando a tropa
pegar arriar a carga pela estrada, um
vira-tem-mo, e, - Venancio p'r'aqui, Ve-
nancio p'r'acol.
Manuel deu um muchocho. Em seguida,
levantou-se de um surro onde estivera
assentado durante a conversa e chegou
beira do rancho, olhando para fra . Can-
tarolou umas trovas e, voltando-se de
repente para o Venancio, diise :
- Vou dormir na tapra. Sempre quero
ver sea bocca do povo fala verdade uma vez.

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ASSOMBRAMENTO 9

- Hum, hum ! est ahi ! Eia, eia, eia 1


- No temos eia, nem peia l Puxe para
fra minha rde.
- J vou, patro. No precisa falar duas
vezes.
E d'abi a pouco, veiu com a rde cuya-
bana bem tecida, bem rematada por longas
franjas pendentes.
-Que que vossemec determina agora?
-V l tapra emquanto dia e arme
a rde na sala da frente. Emquanto isso,
aqui tambem se vai cuidando no jantar.
O caldeiro preso rabicha grugrulhava
ao fogo; a carne secca chiava no espeto
e a camaradagem, rondando beira do
fogo, lanava s vasilhas olhares avidos e
cheios de angustias, na anciosa espectativa
do jantar. Um, de passagem, atiava o
fogo, outro carregava o ancorote cheio
d'agua fresca; qual corria a lavar os
pratos de estanho, qual indagava pressu-
roso se era preciso mais lenha.
Houve um momento em que o cozinheiro,
atucanado com tamanha officiosidade, ar-
remangou aos parceiros, dizendo-lhes:
- Arre 1 tem tempo, gente 1 Parece que
vocs nunca viram feijo. Cuidem de seu

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10 ASSOMBRAMENTO

que fazer, se no querem sahir d'aqui a


poder de tio de fogo 1
Os camaradas se afastaram, no que-
rendo turrar com o cozinheiro em mo-
mento assim melindroso.
Pouco depois, chegava o Venancio, ainda
a tempo de servir o jantar ao Manuel Alves.
Os tropeiros formavam roda, agacha-
dos, com os pratos em cima dos joelhos e
comiam valentemente.
- Ento? perguntou Manuel Alves ao
seu malungo.
- Nada, nada, nada 1 Aquillo por l,
nem signal de gente.
- Uuai ! esturdio 1
- E vossemec pousa l mesmo?
- Querendo Deus, szinho, com a fran-
queira e a garrucha, que nunca me atrai-
oaram.
- Sua alma, sua palma, meu patro.
Mas ... o diabo 1
- Ora 1 pelo buraco da fechadura no
entra gente, estando bem fechadas as
portas. A resto, se fr gente viva, antes
della me jantar eu hei de fazer por almo-
ai-a. Venancio, defunto no levanta da
cva. Voc ha de saber amanh.

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ASSOMBRAMENTO li

- Su 'alma, sua palma, eu j disse, meu


patro; mas, olhe, eu j estou velho, tenho
visto muita cousa e, com ajuda de Deus,
tenho escapado de algumas. Agora, o que
eu nunca quiz foi saber de negocio com
sombrao. Isso de cousa do outro mundo,
p'r'aqui mais p'r'alli -terminou o Venan-
cio, sublinhando a ultima phrase com um
gesto de quem se benze.
Manuel Alves riu-se, e, sentando-se numa
albarda estendida, catou uns gravetos do
cho e comeou a riscar a terra, fazendo
cruzinhas, traando arabescos . A cama-
radagem, reconfortada com o jantar abun-
dante, tagarellava e ria, bulindo de vez
em quando no guampo de cachaa. Um
delles ensaiava um rasgado na viola ; e
outro - namorado talvez - encostado ao
esteio do rancho, olhava para longe, enca-
rando a barra do co de um vermelho enfu
maado e falando baixinho, co'a voz tre-
mente, sua amada distante .

li
Ennoitra-se o escampado, e com elle
o rancho e a tapra. O rolo de cra, ha

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12 ASSOMBRAMENTO

pouco acceso e pregado ao p-direito do


rancho, fazia uma luz fumarenta. Embaixo
da tripea, o fogo estalava ainda. De longe
vinham ahi morrer as vozes do sapo-
cachorro, que latia, l', num brejo afastado,
sobre o qual os vagalumes teciam uma
trama de luz vacillante. De c se ouvia
o resfolegar da mulada, pastando espa-
lhada pelo campo. E o sincerro da madri-
nha, badalando compassadamente aos
movimentos do animal, sonorisava aquella
grande extenso erma.
As estrellas, em divina faceirice, furta-
vam o brilho s miradas dos tropeiros,
que, tomados de languor, banzavam, esti-
rados nas caronas, apoiadas as cabeas nos
serigotes, com o rosto voltado para o co.
Um dos tocadores, rapago do Cear,
pegou a tirar uma cantiga. E pouco a
pouco, todos aquelles homens errantes,
filhos dos pontos mais afastados desta
grande patria, suffocados pelas mesmas
saudades, unificados no mesmo sentimento
de amor independencia, irmanados nas
alegrias e nas dres da vida em commum,
responderam em cro, cantando o estri-
bilho. A principio, timidamente: as vozes
ASSOMBRAMENTO

meio veladas deixaram entreouvir os sus-


piros; mas, animando-se, animando-se,
a solido foi se enchendo de melodia, foi
se povoando de sons dessa musica espon-
tanea e simples, to barbara e to livre de
regras, onde a alma sertaneja solua ou
geme, campeia victoriosa ou ruge trai-
oeira-irm gemea das vozes das fras,
dos roncos da cachoeira, do murmulho
suave do arroio, do gorgeio delicado das
aves e do tetrico fragor das tormentas. O
idyllio ou a luta, o romance ou a tragedia
viveram no relevo extraordinario desses
versos mutilados, dessa linguagem brn-
tesca da tropeirada.
E, emquanto um delles, rufando um
sapateado, gracejava com os companhei-
ros, lembrando os perigos da noite nesse
ermo - consistorio das almas penadas -
outro, o Joaquim Pampa, l das bandas
do sul, interrompendo a narrao de suas
proezas na campanha, quando corria
cola da bagualada, girando as bolas . no
punho erguido, fez calar os ultimos par-
ceiros que ainda acompanhavam nas can-
tilenas o cearense peitudo, gritando-lhes :
-Ch, povo 1 T chegando a hora 1

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14 ASSOMBRAMENTO

O ultimo estribilho :
Deill& eaw o Jacar :
A laga ha de 1ecear 1
expirou maguado na bocca daquelles
poucos, amantes resignados, que espera-
vam um tempo mais feliz, onde os cora-
es duros das morenas ingratas amolle-
cessem para seus namorados fieis:
Deill& eaw o Jacar :
A taga ha de eecear !
O tropeiro apaixonado, rapazinho esguio,
de olhos pretos e fundos, que contemplava
absorto a barra do co ao cahir da tarde,
estava entre estes; e quando emmudeceu a
voz dos companheiros ao lado, elle con-
cluiu a quadra com estas palavras, ditas
em tom de f profunda, como se evocasse
maguas longo tempo padecidas :
Rio Preto ha de dar vn
T p'ra cachorro puear !
- T chegando a hora !
- Hora de que, Joaquim?
- De apparecerem as almas perdidas.
Ih! vamos accender fogueiras em roda do
rancho.
Nisto, appareceu o Venancio, cortan-
do-lhes a conversa.

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ASSOMBRAMENTO

- Gente ! o patro j est na tapra.


Deus permitta que nada lhe acontea. Mas,
vocs sabem : ninguem gosta deste pouso
mal assombrado .
- Escute, tio Venancio. A rapaziada
deve tambem vigiar a tapra. Pois ns
havemos de deixar o patro szinho ?
- Que se ha de fazer? Elle disse que
quer ver com seus olhos, e havia de ir s,
porque assombrao no apparece sino
a uma pessoa s que mostre coragem.
-O povo conta que mais de um tro-
peiro animoso quiz ver a cousa de perto;
mas, no dia seguinte, os companheiros
tinham de trazer defunto para o rancho,
porque dos que dormem l no escapa
nenhum.
- Qual, homem, isso tambem no! Quem
conta um conto accrescenta um ponto ; eu
c no vou me fiando muito na bocca do
povo; por isso que._eu no gosto de pr
o sentido nessas cousas.
A conversa tornou-se geral e cada um
contou um caso de cousa do outro mundo.
O silencio e a solido da noite, realando
as scenas phantasticas das narraes de ha
pouco, filtraram nas almas dos parceiros

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16 ASSOMBRAMENTO

menos corajosos um como terror pela im-


minencia das apparies.
E foram-se amontoando a um canto do
rancho, rentes uns com os outros, de
armas aperradas alguns, e olhos esbu-
galhados para o indeciso da treva; outros,
destemidos e gabolas, diziam alto :
- C por mim, o defunto que me tentar
morre duas vezes, isto to certo como sem
duvida - e espreguiavam-se nos couros
estendidos, bocejando de somno.
Subito, ouviu-se um gemido agudo, for
tssimo, atroando os ares como o ultimo
grito de um animal ferido de morte.
Os tropeiros pularam dos togares, pre-
cipitando-se confusamente para a beira do
rancho.
Mas o Venancio acudiu logo, dizendo :
- At ahi vou eu, gente! Dessas almas
eu no tenho medo. J sou vaqueano
velho eposso contar. So as antas sapa-
teiras, no cio. Disso a gente ouve poucas
vezes, mas ouve. Vocs tm razo : faz
medo.
E os pachydermes, ao darem com o
fogo, dispararam, galopando pelo capo
a dentro.

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ASSOMBRAMENTO 17

III

Manuel Alves, ao cahir da noite, sen-


tindo-se refeito pelo jantar, endireitou para
a tapra, caminhando vagarosamente.
Antes de sahir, descarregou os dous canos
da garrucha num cupim e carregou-a
de novo, mettendo em cada cano uma
bala de cobre e muitos bagos de chumbo
grosso. Sua franqueira apparelhada de
prata, levou-a tambem, enfiada no correo
da cintura. No lhe esqueceu o rlo de
cra, nem um mao de palhas. O arrieiro
partira calado. No queria provocar a curio-
sidade dos tropeiros. L chegando, pe-
netrou no pateo pela grande porteira es-
cancarada.
Era noite.
Tacteando com o p, reuniu um mlho
de gravetos seccos e, servindo-se das palhas
e da binga, fez fogo. Ajuntou mais lenha,
arrancando pus de crcas velhas, apa-
nhando pedaos de taboa de peas em
runa, e com isso formou uma grande fo-
gueira. Assim allumiado o pateo, o arrieiro
accendeu o rlo e comeou a percorrer as
18 ASSOMBRAMENTO

estrebarias meio apodrecidas, os paies,


as senzalas em linha, uma velha officina
de ferreiro com o folle esburacado e a bi-
gorna ainda em p.
- Quero ver si tem alguma cousa escon
dida por aqui. Talvez alguma cama de
bicho do matto.
E andava pesquizando, escarafunchando
por aquellas dependencias de casa nobre,
ora desbeiadas, sitio preferido das lagar
tixas, dos ferozes lacraus e dos caran-
gueijos cerdosos. Nada, nada: tudo aban
donado 1
- Senhor 1 porque seria? inquiriu de si
para si o cuyabano ; e parou porta de
uma senzala, olhando para o meio do pateo,
onde uma caveira alvadia de boi espceo,
fincada na ponta de uma estaca, parecia
ameaai-o com a grande armao aberta.
Encaminhou para a escadaria que levava
ao alpendre e que se abria em duas es-
cadas, de um lado e de outro, como dous lados
de um triangulo, fechando no alpendre,
seu vertice. No meio da parede e erguida
sobre a sapata, uma cruz de madeira negra
avultava ; aos ps desta, cavava-se um
tanque de pedra, bebedouro do gado da

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ASSOMBRAMENTO 19

porta, noutro tempo. Manuel subiu caute-


loso e viu a porta aberta com a grande
<!Chadura sem chave, uma tranca de ferro
cahida e um espeque de madeira atirado
a dous passos no assoalho.
Entrou. Viu na sala da frente sua rde
armada e no canto da parede, embutido
na alvenaria, um grande oratorio com
portas de almofadas entreabertas. Subiu a
um banco de recosto alto, unido parede,
e chegou o rosto perto do oratorio, pro-
curando examinai-o por dentro, quando
um morcego enorme, alvoroado, tomou
surto, ciciando, e foi pregar-se ao tecto,
donde os olhinhos redondos piscaram amea-
adores.
- Que l isso, bicho amaldioado?
Com Deus adeante e com paz na guia,
encommendando Deus e a Virgem Maria ...
O arrieiro voltou-se, depois de ter mur-
murado as palavras de esconjuro, e, cer-
rando a porta de fra, especou-a com fir-
meza. Depois, penetrou na casa por um
corredor comprido, pelo qual o vento corria
veloz, sendo-lhe preciso amparar com a
mo espalmada a luz vacillante do rlo.
Foi dar na sala de jantar, onde uma mesa

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20 ASSOMBRAMENTO

escura e de rodaps torneados, cercada


de bancos esculpidos, estendia-se, vasia
e negra.
O tecto de estuque, oblongo e escanti-
lhado, rachra, descobrindo os caibros e
rasgando uma nesga de co por uma
frincha do telhado. Por ahi corria uma
gotteira no tempo das chuvas e, embaixo,
o assoalho pdre ameaava tragar quem
se approximasse despercebido. Manuel
recuou e dirigiu-se para os commodos do
fundo. Enfiando por um corredor que pa-
recia conduzir cozinha, viu, ao lado, o
tecto abatido de um quarto, cujo slho
tinha no meio um montculo de escombros.
Olhou para o co e viu, abafando a luz
apenas adivinhada das estrellas, um bando
de nuvens escuras, roldando. Um outro
quarto havia junto deste, e o olhar do
arrieiro deteve-se, acompanhando a luz do
rlo no brao esquerdo erguido, sondando
as prateleiras fixas na parede, onde uma
cousa branca luzia. Era um caco velho de
prato antigo. Manuel Alves sorriu para
uma figurinha de mulher, muito colorida,
cuja cabea apparecia ainda pintada ao vivo
na porcellana alva.

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ASSOMBRAMENTO 2l

Um zunido de vento impetuoso, con-


stringido na fresta de uma janella que
olhava para fra, fez o arrieiro voltar
o rosto de repente e proseguir o exame
do casaro abandonado. Pareceu-lhe ouvir
nesse instante a zoada plangente de um
sino ao longe. Levantou a cabea, estendeu
o pescoo e inclinou o ouvido, alerta : o
som -continuava, zoando, zoando, pare-
cendo ora morrer de todo, ora vibrar ainda,
mas sempre ao longe.
- E' o vento, talvez, no sino da ca-
pella.
E penetrou num salo enorme, escuro.
A luz do rlo, tremendo, deixou no cho
uma resteaavermelhada. Manuel foi adeante
e esbarrou num tamborete de couro, tom-
bado ahi. O arrieiro foi seguindo, acom-
panhando uma das paredes. Chegou ao
canto e entestou com a outra parede.
-Acaba aqui, murmurou.
Tres grandes janellas no fundo estavam
fechadas.
- Que haver aqui atraz? Talvez o ter-
reiro de dentro. Deixe ver.
Tentou abrir uma janella, que resistiu.
O vento, fra, disparava, s veze:>, reboando

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22 ASSOMBRAMENTO

como uma vara de queixadas em rodo-


moinho no matto.
Manuel fez vibrar as bandeiras da janella
a choques repetidos. Resistindo ellas, o
arrieiro recuou e, de brao direito esten-
dido, deu-lhes um empurro violento. A ja-
nella, num grito estardalhaante, escan-
carou-se e uma rajada rompeu por ella a
dentro latindo qual matilha enfurecida;
pela casa toda houve um tatalar de portas,
um ruido de reboco que ci das paredes
altas e se esfarinha no cho.
A chamma do rlo apagou-se lufada
e o cuyabano ficou s, babatando na treva.
Lembrando-se da binga, sacou-a do
bolso da cala ; collocou a pedra com gei to
e bateu-lhe o fuzil: as scentelhas saltavam
para a frente impellidas pelo vento e apa-
gavam-se logo. Ento, o cuyabano deu
uns passos para traz, apalpando, at tocar
a parede do fundo. Encostouse nella e foi
andando para os lados, roando-lhe as
costas, procurando o entrevo das janellas.
Ahi, acocorou-se e tentou de novo tirar
fogo: uma faiscazinha chamuscou o isqueiro
e Manuel Alves soprou-a delicadamente,
alentando-a com carinho; a principio, ella

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ASSOMBRAMENTO

animou-se, quiz alastrar-se, mas de repente


sumiu-se. O arrieiro apalpou o isqueiro,
virou-o nas mos e achou-o humido :
tinha-o deixado no cho, exposto ao se-
reno, na hora em que fazia a fogueira no
pateo e percorria as dependencias deste.
Metteu a binga no bolso e disse:
- Espera, diaba, que tu has de seccar
com o calor do corpo.
Nesse entrementes, a zoada do sino
fez-se ouvir de novo, dolorosa e longinqua.
Ento, o cuyabano pz-se de gatinhas
atravessou a faca entre os dentes e marchou
como um felino, subtilmente, vagarosa-
mente, de olhos arregalados, querendo
varar a treva. Subito, um ruido estranho
fel-o estacar, arripiado e encolhido como
um jaguar que prepara o bte.
No tecto soaram uns passos apressados de
tamancos pracatando e uma voz rouquenha
pareceu proferir uma imprecao.O arrieiro
assentou-se nos calcanhares, apertou o ferro
nos dentes e puxou da cinta a garrucha;
bateu com o punho cerrado nos feixos da
arma, chamando a polvora aos ouvidos, e
esperou. O ruido cessra ; s, a zoada do
sino continuava, intermittentemente.

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ASSOMBRAMENTO

Nada apparecendo, Manuel tocou para


deante, sempre de gatinhas ; mas, desta vez,
a garrucha, aperrada na mo direita, batia
no cho a intervallos rhythmicos, como a
ungula de um quadrupede manco. Ao
passar junto ao quarto detecto esboroado,
o cuyabano !obrigou o co e orientou-se.
Seguiu, ento, pelo corredor afra, apal-
pando, cosendo-se com a parede. Nova-
mente parou, ouvindo um farfalhar distante,
um sibilo como o da refega no buritizal.
Pouco depois, um estrepito medonho
abalou o casaro escuro e a ventania -
alcata de lobos rafados- investiu uivando
e passou disparada, estrondando uma
janella. Sahindo por ahi, voltaram de novo
os austros furentes, perseguindo-se, pre-
cipitando-se, zunindo, gargalhando sarcas-
ticamente pelos sales vasios.
Ao mesmo tempo, o arrieiro sentiu no
espao um arfar de azas, um soido aspero
de ao que ringe e, na cabea, nas costas,
umas pancadinhas assustadas .. Pelo es-
pao todo resoou um psiu, psiu, psiu,
psiu... e um bando enorme de mor-
cegos sinistros torvelinhou no meio da ven-
tania.

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ASSOMBRAMENTO

Manuel foi impellido para a frente cor-


rimaa daquelles mensageiros do negrume
e do assombramento. De musculos cris-
pados num comeo de reaco selvagem
contra a allucinao que o invadia, o
arrieiro alapardava-se, erriando-se-lhe os
cabellos ; depois, seguia de manso, com
o pescoo estendido e os olhos accesos,
assim como um sabujo que negaceia.
E foi rompendo a escurido caa desse
ente maldito, que fazia o velho casaro
falar ou gemer, ameaai-o ou repellil-o,
num conluio demonaco com o vento, os
morcegos e a treva.
Comeou a sentir que tinha cahido num
lao armado talvez pelo maligno. De vez
em quando, parecia-lhe que uma cousa lhe
arrepellava os cabellos e uns animalculos
desconhecidos perlustravam seu corpo em
carreira vertiginosa. No mesmo tempo, um
rir abafado, uns cochichos de escarneo
pareciam acompanhai-o de um lado e de
outro.
- Ah l vocs no me ho de levar assim-
assim, no l exclamava o arrieiro para o
invisvel. Pde que eu seja ona presa na
arataca. Mas eu mostro 1 eu mostro 1
ASSOMBlitAMENTO

E batia com fora a coronha da garrucha


no slo ecoante.
Subito, uma luz indecisa, coada por al-
guma janella proxima, fel-o vislumbrar
um vulto branco, esguio, similhante a
uma grande serpente, colleando-se, sa-
cudindo-se. O vento trazia vozes estranhas
das socavas da terra, misturando-se com os
lamentos dosino,mais accentuados agora.
Manuel estacou com as fontes latejando,
a guela constricta e a respirao curta.
A bocca semi-aberta deixou cahir a faca: o
folego. a modo de um sedenho, penetrou-
lhe na garganta secca, sarjando-a e o
arrieiro roncou como um barro acuado
pela cachorrada. Correu a mo pelo slho
e agarrou a faca; metteu-a de novo entre
os dentes, que rangeram no ferro; engati-
lhou a garrucha e apontou para o monstro:
uma pancada secca do co no ao do ou-
vido mostrou-lhe que a sua arma fiel o
trahia. A escorva cahira pelo cho e a gar-
rucha negou fogo. O arrieiro arrojou contra
o monstro a arma traidora e gaguejou em
meia risada de louco :
- Mandingueiros do inferno 1 Botaram
mandi nga na minha arma de fiana 1

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ASSOMBRAMENTO 27

Tiveram medo dos dentes de minha gar-


rucha 1Mas vocs ho de conhecer homem,
sombraes do demonio 1
De um salto, arremetteu contra o ini-
migo ; a faca, vibrada com mpeto feroz,
ringiu numa cousa e foi enterrar a ponta
na taboa do assoalho, onde o sertanejo,
apanhado pelo meio do corpo num lao
forte, tombou pesadamente.
A queda assanhou-lhe a furia e o arrieiro,
erguendo-se de um pulo, rasgou numa fa.
<Zada um farrapo branco que ondulava no
~r; deu-lhe um bote e estrincou nos dedos
um como tecido grosso. Durante alguns
momentos, ficou no logar, hirto, suando,
rugindo.
Pouco a pouco, foi correndo a mo cau-
telosamente, tacteando aquelle corpo es-
tranho que seus dedos arrochavam: era
um panno, de sua rde talvez, que o Ve-
nancio armra na sala da frente.
Neste instante, pareceu-lhe ouvir chascos
de mofa nas vozes do vento e nos asso-
vios dos morcegos ; ao mesmo tempo per-
cebia que o chamavam l dentro - Ma-
nuel, Manuel, Manuel -em phrases tarta-
mudeadas. O arrieiro avanou como um

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ASSOMBRAMENTO

possesso, dando pulos, esfaqueando som-


bras que fugiam.
Foi dar na sala de jantar, onde, pelo
rasgo do telhado, pareciam descer umas
frmas longas, esvoaando, e uns vultos
alvos, em que por vezes pastavam chammas
rapidas, danavam-lhe deante dos olhos
incendidos.
O arrieiro no pensava mais. A respi-
rao se lhe tornra estertorosa ; horrveis
contraces musculares repuxavam-lhe o
rosto e elle, investindo as sombras, uivava:
- Traioeiras 1 eu queria carne para
rasgar com este ferro 1eu queria osso para
esmigalhar num murro 1
As sombras fugiam, estloravam as pa-
redes em ascenso rapida, illuminando-lhe
subitamente o rosto, brincando-lhe um mo-
mento nos cabellosarripiados, ou danando-
lhe na frente. Era como uma chusma de me-
ninos endemoninhados a zombarem delle,
puxando-o d'aqui, beliscando-o d'acol,
aulando-o como a um co de rua.
O arrieiro dava saltos de tigre, arre-
mettendo contra o inimigo nessa luta phan-
tastica: rangia os dentes e parava depois,
ganindo como a ona esfaimada a que se

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ASSOMBRAMENTO 29

escapa a presa. Houve momento em que


uma chora demonaca se concertava ao
redor delle, entre uivos, guinchos, risadas
ou gemidos. Manuel ia recuando e aquelles
circulos infemaes o iam estringindo; as
sombras giravam correndo, precipitando-se,
entrando numa porta, sahindo noutra, es-
voaando, rojando no cho ou saracoteando
desenfreiadamente.
Um longo soluo despedaou-lhe a gar-
ganta num ai sentido e profundo e o
arrieiro deixou cahir pesadamente a mo
esquerda espalmada num portal, justamente
quando um morcego que fugia amedron-
tado lhe deu uma forte pancada no rosto.
Ento, Manuel pulou novamente para
deante, apertando nos dedos o cabo da
franqueira fiel; pelo rasgo do telhado
novas sombras desciam e algumas, quedas,
pareciam dispostas a esperar o embate.
O arrieiro rugiu :
- Eu mato, eu mato, mato 1- e acom-
metteu com furia de allucinado aquelles
entes malditos. De um salto foi cahir no
meio das frmas impalpaveis e vacillantes;
um fragor medonho se fez ouvir; o assoalho
pdre cedeu e um barrote, ruido de cupins,

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ASSOMBRAMENTO

baqueou sobre uma cousa que se desmo-


ronava em baixo da casa. O corpo de Ma-
nuel, tragado pelo buraco que se abriu,
precipitou-se e tombou l em baixo. Ao
mesmo tempo, um som vibrante de metal,
um tilintar como o de moedas derra-
mando-se pela fenda de uma frasqueira
que se racha, acompanhou o baque do
corpo do arrieiro.
Manuel, l no fundo, ferido, ensanguen
tado, arrastou-se ainda, cravando as unhas
na terra como um ururu golpeado de
morte ; em todo o corpo estendido com o
ventre na terra perpassava-lhe amda uma
crispao de luta ; sua bocca proferiu ainda
- eu mato! mato 1 ma ... - e um si-
lencio tragico pesou sobre a tapra.

IV

O dia estava nasce-no-nasce e j os tro-


peiros tinham pegado na lida. Na meia
luz, crepitava a labareda em baixo do cal-
deiro, cuja tampa, impellida pelos vapores
que subiam, rufava nos beios de ferro
batido. Um cheiro de matto e de terra

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ASSOMBRAl\tENTO 31

orvalhada espalhava-se com a virao da


madrugada .
Venancio, dentro do rancho, juntava ao
lado de cada cangalha o couro, o arrocho
e a sobrecarga. joaquim Pampa, fazendo
cruzes na bocca aos bocejos frequentes,
por impedir que o demonio lhe penetrasse
no corpo, emparelhava os fardos, guian-
do-se pela cr dos tpes cozidos quelles.
Os tocadores, pelo campo afra, cavam
um para outro, avisando o encontro de
algum macho fujo. Outros, em rodeio,
detinham-se no logar em que se achava
a madrinha, vigiando a tropa.
Pouco depois, ouviu-se o tropel dos
animaes demandando o rancho . O sin-
cerro tilintava alegremente, espantando
os passarinhos, que se levantavam das
touceiras de arbustos, voando apressados.
As urs, nos capes, solfojavam au
rora, que principiava de tingir o co e
manchar de purpura e ouro o capinzal
verde.
- Eh ! gente 1 o orvalho 'st cortando.
ta 1 Que tempo tive briquitando
co'aquelle macho pelintra . Diabo o
leve 1 Aquillo proprio um gato : no faz

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ASSOMBRAMENTO

bulha no matto e no procura as trilhas,


por no deixar o rasto.
- E a andorinha ? Isso que mu-
linha desabotinada 1 Sopra de longe que
nem um bicho do matto e desanda na
carreira. Elia me ogerizou tanto, que
eu soltei nella um mataco de pedra, de
que ella havia de gostar pouco.
A rapaziada chegava beira do rancho,
tangendo a tropa.
- Que da giribita? Um trago bom
para cortar algum ar que a gente apanhe.
Traze o guampo, Aleixo.
- Uma hora frio, outra calor, e
vocs vo virando, cambada do diabo 1-
gritou o Venancio.
- Largue da vida dos outros e v cuidar
da sua, tio Venancio 1 Por fora que ha-
vemos de querer esquentar o corpo : em-
quanto ns, nem bem o dia sonhava de
nascer, j estavamos atolados no ca-
pinzal molhado, vossemec tava ahi na
beira do fogo, feito um cachorro velho.
- T bom, t bom 1 No quero muita
conversa commigo, no. Vo tratando de
chegar os burros s estacas e de suspen
der as cangalhas. O tempo pouco, e o

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ASSOMBRAMENTO

patro chega de uma hora para outra.


Fica muito bonito, si elle vem encontrar
essa synagoga aqui ! E por falar nisso,
bom a gente ir l. Deus grande 1 mas
eu no pude fechar os olhos esta noite 1
Quando ia querendo pegar no somno, me
vinha mente alguma que pudesse suc-
ceder a s Manuel. Deus grande !
Logo-logo, o Venancio chamou pelo
Joaquim Pampa, pelo Aleixo e mais o Jos
Paulista.
- Deixamos esses meninos cuidando do
servio e ns vamos l.
Nesse instante, um molecote chegou com
o ~af. A rapaziada cercou-o. O Venancio
e seus companheiros, depois de terem em-
borcado os cuits, partiram para a ta-
pra .
Logo sahida, o velho tropeiro refle-
ctiu um pouco e disse alto :
- E' bom ficar um aqui tomando conta
do servio. Fica voc, Aleixo .
Seguiram os tres, calados, pelo campo
afra, na luz suave da ante-manh. Con-
centrados em conjecturas sobre a sorte
do arrieiro, cada qual queria mostrar-se
mais sereno, andando lepido e de rosto
3

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14 . ASSOMBRAMENTO

tranquillo ; cada qual, porm, escondia do


outro a angustia do corao e a fealdade
do prognostico.
Jos Paulista entoou uma cantiga que
acaba neste estribilho :
A barra do dia ah1 vem 1
A.barra do sol tambem,
A.11

E l foram, cantando todos tres, por


espantar as maguas.
Ao entrarem no grande pateo da frente,
deram com os restos da fogueira que
Manuel Alves tinha feito na vespera. Sem
mais detena, foram se barafustando pela
.escadaria do alpendre, em cujo topo a
porta de fra lhes cortou o passo. Expe
rimentaram-n'a primeiro. A porta, forte-
mente especada por dentro, rinchou e no
cedeu.
Forcejaram os tres e ella resistiu ainda.
Ento, Jos Paulista correu pela escada a
baixo e trouxe ao hombro um cambo,
no qual os tres pegaram e, servindo-se
delle como de um ariete, marraram com
a porta. As hombreiras e a verga vibra-
ram aos choques violentos, cujo fragor se

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ASSOMBRAMENTO

foi avolumando pelo casaro a dentro em


roncos profundos.
Em alguns instantes, o espeque, esca-
pulindo do logar, foi arrojado no meio do
slbo. A calia que cabia encheu de peque-
nos torres esbranquiados os chapos
dos tropeiros-e a porta escancarou-se.
Na sala da frente deram com a rde
toda estraalhada.
- Mu, mu, mu 1- exclamou o Ve-
nancio, no podendo mais contet-se ; os
outros tropeiros, de olhos esbugalhados,
no ousavam proferir uma palavra. Apenas
apalparam com cautela aquelles farrapos
de panno, malsinados, com certeza, ao con-
tacto das almas do outro mundo.
Correram a casa toda juntos, arquejando,
murmurando oraes contra maleficios.
- Gente, onde estar s Manuel? Vocs
no me diro por amor ele Deus? excla-
mou o Venancio.
Joaquim Pampa e Jos Paulista cala-
vam-se, perdidos em conjecturas sinis-
tras.
Na sala de jantar, mudos, um em frente
do outro, pareciam ter um conciliabulo
em que smente se lhes communicassem
ASSOMBRf\MENTO

os espiritos ; mas, de repente, creram


ouvir pelo buraco do assoalho um gemido
estertoroso. Curvaram-se todos; Venancio
debruou-se, sondando o poro da casa.
A luz, mais diaphana, j allumiava o
terreiro de dentro e entrava pelo poro :
o tropeiro viu um vulto estendido.
- Nossa Senhora ! Corre, gente, que s
Manuel est l em baixo estirado !
Precipitaram-se todos para a frente da
casa, Venancio adeante. Desceram as es-
cadas e procuraram o porto que dava
para o terreiro de dentro. Entraram por
elle afra e, embaixo das janellas da sala
de jantar, um espectaculo estranho depa-
rou-se-lhes :
O arrieiro, ensanguentado, jazia no cho
estirado; junto de seu corpo, de envolta
com torres desprendidos da abobada
de um forno desabado, um chuveiro de
moedas de ouro luzia.
- Meu patro ! S Manuelzinho ! Que
foi isso ? Olhe seus camaradas aqui. Meu
Deus! que mandinga foi esta? E a ourama
que allumia deante de nossos olhos? !
Os tropeiros acercaram-se do corpo do
Manuel, por onde passavam tremores
ASSOMBRAMENTO 37

convulsos. Seus dedos encarangados es-


trincavam ainda o cabo da faca, cuja la-
mina se enterrra no cho ; perto da nuca
e presa pela go11a da camisa, uma moeda
de ouro se lhe grudra na pelle.
- S Manuelzinho ! Ai, meu Deus! p'ra
que caar historias com cousas do outro
mundo! Isso mesmo obra do capeta,
porque anda dinheiro no meio. Olha esse
ouro, Joaquim 1 Deus me livre!
- Qual, tio Venancio, disse por fim o
Jos Paulista. Eu j sei a cousa. J ouvi
contar casos desses. Aqui havia dinheiro
enterrado e, com certeza, nesse forno que
est com a bocca virada para o terreiro.
Ahi que est a cousa. Ou esse dinheiro
foi mal ganho, ou porque, o certo que
almas dos antigos donos desta fazenda
no podiam socegar emquanto no to-
passem um homem animoso para lhe
darem o dinheiro, com a condio de
cumprir por inteno dellas alguma pro-
messa, pagar alguma divida, mandar dizer
missas; foi isso, foi isso! E o patro
homem mesmo 1 Na hora de ver a som-
brao, a gente precisa de atravessar a
faca ou um ferro na bocca, p'r'amor de
ASSOMBRAMENTO

no perder a fala. No tem nada, Deus


grande 1
E os tropeiros, certos de estarem deante
de um facto sobrenatural, falavam baixo
e em tom solemne. Mais de uma vez per-
signaram-se e, fazendo cruzes nQ ar, man
davam o que quer que fosse - e para as
ondas do mar ,. ou para as profundas,
onde no canta gallo, nem gallinha.
Emquanto conversavam, iam procurando
levantar do cho o corpo do arrieiro, que
continuava a tremer; s vezes batiam-
se-lhe os queixos e um gemido entrecor-
tado lhe rebentava da garganta.
- Ah! patro! patro!Vossemec,homem
to duro, hoje tombado assim 1 Valha-nos
Deus! So Bom-Jesus do Cuyab 1 olha s
Manuel, to devoto seu 1-gem ia o Venancio.
O velho tropeiro, auxiliado por Joaquim
Pampa, procurava com muito geito le-
vantar do cho o corpo do arrieiro, sem
magoai-o. Conseguiram levantai-o nos bra-
os, tranados em cadeirinha e, antes de
seguirem o rumo do rancho, Venancio
disse ao Jos Paulista:
- Eu no pego nessas moedas do capeta.
Si voc no tem medo, ajunta isso e traz.

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ASSOMBRAMENTO

Paulista encarou algum tempo o forno


esboroado, onde os antigos haviam en-
terrado seu thesouro. Era o velho forno
para quitanda. A ponta do barrote que o
desmoronra estava afincada no meio dos
escombros. O tropeiro olhou para cima e
viu, no alto, bem acima do forno, o buraco
do assoalho por onde cahira o Manuel.
- E' alto devras ! Que tombo ! disse
de si para si. Que ha de ser do patro?
Quem viu sombrao fica muito tempo
sem poder encarar a luz do dia. Qual!
esse dinheiro ha de ser de pouca ser-
ventia. Para mim eu no quero: Deus
. me livre; ento que eu tava pegado
com essas almas do outro mundo 1 Nem
bom pensar.
O forno estava levantado junto de um
pilar de pedra, sobre o qual uma viga de
aroeira se erguia, supportando a madre.
De c se via a fila dos barrotes esten-
dendo-se para a direita at ao fundo es-
curo.
Jos Paulista principiou a catar as
moedas e encher os bolsos da cala ;
depois de cheios estes, tirou do pescoo
seu grande leno de cr e, estendendo-o
ASSOMBRAMENTO

no cho, o foi enchendo tambem; dobrou


as pontas em cruz e amarrou-as forte-
mente. Escarafunchando os escombros do
forno, achou mais moedas e com estas
encheu o chapo. Depois partiu, seguindo
os companheiros que j iam longe, con-
duzindo vagarosamente o arrieiro.
As nc::voas volateantes fugiam impel-
lidas pelas auras da manh; ss, alguns
capuchos pairavam, muito baixos, nas
depresses do campo, ou adejavam nas
cupolas das arvores. As sombras dos dous
homens que carregavam o ferido traaram
no cho uma figura estranha de monstro.
Jos Paulista, estugando o passo, acom-
panhava com os olhos o grupo que o
precedia de longe.
Houve um instante em que um p de
vento arrancou ao Venancio o chapo da
cabea. O velho tropeiro voltou-se viva-
mente ; o grupo oscillou um pouco, con-
certando nos braos o ferido ; depois,
pareceu a Jos Paulista que o Venancio
lhe fazia um aceno : apanhasse-lhe o
chapo.
Ahi chegando, Jos Paulista arriou no
cho o ouro, pz na cabea o chapo de

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ASSOMBRAMENTO 41

Venancio e, levantando de novo a carga,


seguiu caminho afra.
A' beira do i-ancho, a tropa bufava, es
carvando a terra, abicando as orelhas,
relinchando, espera do milho que no
vinha. Alguns machos malcriados entra-
vam pelo rancho a dentro, de focinho
estendido cheirando os embornaes.
A's vezes, ouvia-se um grito - toma
diabo! - e uqi animal espirrava para o
campo tacada de um tropeiro.
Quando l do rancho se avistou o grupo
onde ia o arrieiro, correram todos. O co-
zinheiro, que vinha do olho d'agua com
o odre s costas, atirou com elle ao cho
e disparou tambem. Os animaes j amar-
rados, espantando-se; escoravam nos ca-
brestos. Bem depressa a tropeirada cercou
o grupo. Reuniram-se em m, proferiram
exclamaes, benziam-se, mas logo alguem
lhes impoz silencio, porque voltaram
todos, recolhidos, com os rostos con-
sternados .
.O Aleixo veiu correndo na frente para
armar a rde de tucum que ainda restava.
Foram chegando e jos Paulista chegou
por ultimo. Os tropeiros olharam com
ASSOMBRAMENTO

estranheza a carga que este conduzia; nin-


guem teve, porm, coragem de fazer uma
pergunta: contentaram-se com interroga-
es mudas. Era o sobrenatural, ou era
obra dos demonios. Para que saber mais?
No estava naquelle estado o pobre do
patro ?
O ferido foi collocado na rde, havia
pouco armada. Um dos tropeiros chegou
com uma. bacia de salmoura ; outro, cor-
rendo do campo com um molho de arnica,
pisava a planta por extrahir-lhe o sueco.
Venancio, com um panno embebido, ba-
nhava as feridas do arrieiro, cujo corpo
vibrava, ento, fortemente.
Os animaes olhavam curiosamente para
dentro do rancho, afilando as orelhas.
Ento, Venancio, com a physionomia
decomposta, numa apojadura de lagrimas,
exclamou aos parceiros :
- Minha gente !aqui, neste deserto, s
Deus Nosso Senhor 1 E' hora, meu povo!
E ajoelhando-se de costas para o sol que
nascia, comeou a entoar um - Senhor
Deus, ouvi a minha orao e chegue :i
vs o meu clamor 1 - E trechos de psal-
mos que aprendera em menino, quando

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ASSOMBRAMENTO 43

lhe ensinaram a ajudar a missa, affiora-


ram-lhe bocca.
Os outros tropeiros foram se ajoelhando
todos atraz do velho parceiro, que parecia
transfigurado. As vozes foram subindo,
plangentes, desconcertadas, sem que nin-
guem comprehendesse o que dizia. Entre-
tanto, parecia haver uma ascenso de
almas, um appello fremente in excelsis, na
fuso dos sentimentos desses filhos do
deserto. Ou era talvez a propria voz do
deserto mal ferido com as feridas de seu
irmo e companheiro, o fogoso cuyabano.
De feito, no pareciam mais homens
que cantavam: era um s grito de an-
gustia, um appello de soccorro, que subia
do seio largo do deserto s alturas infinitas
-Meu corao est ferido e secco como a
herva.. . Fiz-me como a coruja, que se
esconde nas solides 1. Attendei propicio
orao do desamparado e no desprezeis
a sua supplica ..
E assim, em phrases soltas, ditas por pa
lavras no comprehendidas, os homens
errantes exalaram sua prece com as vozes
robustas de corredores dos escampados.
Inclinados para a frente, com o rosto

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44 ASSOMBRAMENTO

baixado para terra, as mos batendo nos


peitos fortes, no pareciam dirigir uma
orao humilde de pobresinhos ao manso
e compassivo jesus, sino erguer um
hymno de glorificao ao Agios lschiros,
ao formidavel Sllnctus, Sanctus, Dominus
Deus Sabaoth.
Os raios do sol nascente entravam quasi
horisontalmente no rancho, acclarando as
costas dos tropeiros, esflorando-lhes as
cabeas com fulguraes tremulas. Parecia
o proprio Deus formoso, o Deus forte das
tribus e do deserto, apparecendo num
fundo de apotheose e lanando uma mi-
rada, do alto de um portico de ouro, l
muito longe, quelles que, prostrados em
terra, chamavam por Elle.
Os ventos matinaes comearam a soprar
mais fortemente, remexendo o arvoredo
do capo, carregando feixes de folhas que
se espalhavam no alto. Uma ema, abrindo
as azas, galopava pelo campo . . . E os tro-
peiros, no meio de uma inundao de luz,
entre o canto das aves despertadas e o
resfolegar dos animaes soltos que iam
fugindo da beira do rancho, derramavam
sua prece pela amplido immensa.

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ASSOMBRAMENTO 45

Subito, Manuel, soerguendo-se num es-


foro desesperado, abriu os olhos vagos
e incendidos de delrio. A mo direita
contrahiu-se, os dedos crisparam-se como
se apertassem o cabo de uma arma
prompta a ser brandida pa luta ... e seus
labios murmuraram ainda, em ameaa
suprema- eu mato! ... mato!. .. ma ... >

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A CADEIRINHA
~

cA Estevam Lobo.
j
1
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W:UELLE
" A~ida
fundo de sa<dstia, CS<on-
ou arredada como si fra uma
imagem quebrada cuja ausencia do altar o
decoro do culto exige, encontrei a cadeirinha
azul, forrada de damasco cr de ouro velho.
Na frente e no fundo, dois pequenos paineis
pintados em madeira com traos finos e
expressivos. Representava cada qual uma
dama do antigo regimen. A da frente, ves-
tida de seda branca, contrastava a alvura
do vestido e o tenue colorido da pelle
com o negrume dos cabellos repuxados
em trunfa alta e o vivo carmim dos"labios;
tinha um ar desdenhoso e fatigado de fi.
dalga elegante para quem os requintes da
etiqueta e galanteios dos sales so j
coisas velhas e comezinhas. A outra, mais
antiga ainda, trazia as melenas em cachos
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' A CADEIRINHA

artisticos sobre as fontes e as pequeninas


orelhas; um leque de marfim semi-aberto
comprimia-lhe os labios rebeldes que que-
riam expandir-se num riso franco ; os
olhos grandes e negros tinham mais pai-
xo e mais alma. Esta contemporanea de
La Valliere, que o artista anonymo per-
petuou na madeira da cadeirinha, no se
parecia muito com aquella meiga victima
da rgia concupiscencia; ao contrario, um
certo arregaado das narinas, uma ponta
de ironia que lhe voejava na commissura
da bocca breve e energica-tudo isso mos-
trava estar ali naquelle painel represen-
tada uma mulher meridional, ardente e
vivaz, prompta ao amor apaixonado ou
luta odienta. Aquelles mesmos bicos alvos
de renda que, acompanhando a curva do
decote, pareciam recortar o moreno jam-
beado daquelle collo de sultana, os mes-
mos bicos de renda estavam a dizer, sobre
o doce pallor amorenado do collo, que a
dama dos olhos ardentes tinha escondidas
no canto dos labios a doura da ambrosia
e a peonha da serpente.
Sem querer acrescentar mais ao j dito
sobre as damas, perguntava de mim para

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A CADEIRINHA

mim si o pintor do seculo passado, ao tra-


ar com tanta correco e finura os dois
retratos de mulher, transmittindo-lhes em
cada cabello do pincel uma chamma de
vida, no estaria realmente diante de dois
especimens raros de filhos de Eva, de duas
heroinas que por serem de comedia ou de
opera nem por isso deixam de o ser da vida
real?
- Quem sabe si a Fontanges e a Mon-
tespan?
- Qual ! impossivel !
- lmpossivel, no! porque a cadeirinha
podia perfeitamente ter sido pintada em
Frana e era at mais natural crl-o ; por-
quanto a finura das tintas e a correco
dos traos pareciam indicar um artista das
grandes crtes da poca.
E assim, em taes conjecturas, puz-me a
examinar mais detidamente o velho e deli-
cado vehiculo, reliquia do seculo passado,
sobrevivendo no sei porque na sacristia
da igreja de um modesto arraial mineiro.
Os vres, conformes moda bizarra do
tempo, terminavam em cabeas de drages
com as fauces abertas e sanguentas e os
olhos com uma expresso de ferocidade
A CADEIRINHA

estupida. O forro de cima formava um pe-


queno doce! de throno senhorial; e o ouro
velho do damasco que alcatifava tambem
os dois assentos fronteirios no tem igual
nas casas de modas de agora.
Qual das matronas de Ouro Preto, ou
das cidades que como esta alcanam mais
de um seculo, no ter visto, ou pelo me-
nos ouvido falar com inslstencia, quando
meninas, nas cadeirinhas conduzidas por
lacaios de libr, onde as mooilas e as
damas de outr'ora se faziam delicadamente
transportar?
Quem no far reviver na imaginao
uma das scenas galantes da cortezia antiga
em que, atravs da portinhola crtada de
caprichosos lavores de talha, passava um
rostozinho enrubecido e dois olhos de vel-
ludo a pousarem de leve sobre o cavalleiro
de espadim com quem a mysteriosa dama
cruzava na passagem ?
Tambem, pobre cadeirinha, l terias
o teu dia de caiporismo : havia de chegar
a hora em que, em vez dos saltos verme-
lhos de um sapatinho de setim calando
um pezinho delicado, teu fundo fosse cal-
cado pela chancra esparramada de alguma

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A CADEIRINHA

cetacea obesa e tabaquista. Como havia


de gemer ento a alcatifa de damasco cr
de ouro velho revoltada contra similhante
profanao :-alguma mulata velha e alen-
tada, apreciadora da mcha ou do rolo,
a refocilar-se na cadeirinha, espalhando a
toucinheira das nadegas num dos assen-
tos fronteirios 1
Nem foram desses os teus peiores dias,
saudosa cadeirinha 1 J pelos annos de
tua velhice, quando, como agora, sobrevi-
vias ao teu bello tempo passado, quando,
perdidos teus antigos donos, alguem se
lembrou de carregar-te para a sacristia da
igreja, no te davam outro servio que no
o de transportares, como esquife, cadaveres
de anjinhos pobres ao cemiterio, ou simi-
lhante s macas das ambulancias milita-
res, o de conduzires ao hospital feridos ou
enfermos desvalidos.
Que cruel vingana no toma aquella
poca longnqua por lhe teres sobrevivido!.
Coisa inteiramente fra da moda, o con-
traste flagrante que formas com o mundo
circumdante uma prova evidente de tua
proxima eliminao, velha cadeirinha
dos tempos mortos 1

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54 A CADEIRINHA

Mas, assim a vida : as especies, como


os indivduos, vo desapparecendo ou se
transformando em outras especies e em
outros indivduos mais perfeitos, mais com
plicados, mais aptos para o meio actual,
porm muito menos grandiosos que os
passados. Que figura faria o elephante de
hoje, resto exotico da fauna terciaria, ao
lado do megatherio? A de um filhote
deste. E no emtanto, bem cedo, talvez nos
nossos dias, desapparecer o elephante,
por j estar em desharmonia com a fauna
actual, por constituir j aquelle doloroso
contraste de que falamos acima e que o
primeiro symptoma da proxima eliminao
do grande pachyderme. Parece que o pro-
gresso marcha para a disperso, a desag
gregao e o formigamento. Um grande
organismo tomba e se decompe e vai for
mar uma innumeravel quantidade de seres
vidos de vida. A morte, essa grande illu
so humana, o inicio daquella disperso,
ou antes a fonte de muitas vidas. B que
grande consoladora 1
Lembra-me ter visto, ha tempos, um
octogenario de passo tropego e cara ra-
pada passeiando em trajes domingueiros a

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A CADEIRINHA 55

pedir uma caricia ao sol. Dirigi-lhe a pa-


lavra e detivemo-nos largo espao a falar
dos costumes, das coisas e dos homens do
outro tempo. Nisso surprehendeu-nos um
magote de garotos que escaramuou ove
lho a vaias. O pobre do ancio j ia se-
guindo seu caminho quando o abordou a
meninada; no apressou o passo nem per-
deu aquella serenidade de quem j tinha
domado as furias das paixes com o ven-
cer os annos. Vi-o ainda voltar-se com o
rosto engelhado numa risada tristssima,
a comprida japona abanando ao vento
e dizer, em tom de convico profunda:
Ai dos velhos, si no fosse a morte !
Parecia uma banalidade. mas no era sino
o appello supremo, a prece fervente que
esse exilado fazia a Deus para que puzesse
termo ao seu exilio, onde elle estava
fra dos seus amigos, dos seus costumes,
de tudo quanto lhe podia falar ao co-
rao. O proprio aspecto da terra no era o
mesmo que no seu tempo, porque tambem
os riachos mudam de leito, as grandes
arvores tombam e o solo se rasga em
fundos precipcios aco pertinaz das
chuvas.

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A CADEIRINHA

Porque, pois, a pobre cadeirinha, esse


mimo de graa, esse traste casquilho, essa
fiel companheira da vida de sociedade, da
vida palaciana, da vida de crte com seus
apuros e suas intrigas, suas vinganas pe-
queninas, seus amores, para que sobrevive
e porque a no poz em pedaos um brao
robusto empunhando um machado bem-
fazejo? Ao menos evitaria esse dolorosis-
simo ridiculo, essa exposio indecorosa
de nudez de velha !
J tiveste dias de gloria, cadeirinha de
outros tempos 1 Pois bem : desapparece
agora, vae ao fogo e pede que te reduza a
cinzas 1 E' mil vezes preferivel a essa deca-
dencia em que te achas e at mesmo
hypothese mais lisongeira de te perpetu-
arem num museu. Deves preferir a paz do
anniquilamento gloria de figurares numa
colleco de objectos antigos, exposta
curiosidade dos papalvos e s lorpas con-
sideraes dos burguezes, mofada e tris-
tonha. Morre, desapparece, que talvez -
porque no? - a tua dona mais gentil,
aquella para quem tuas alcatifas tinham
mai.s delicada caricia ao receber-lhe o cor
pinho mimoso, aquella que rescendia um

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A CADEIRINHA 57

perfume longnquo de roseira do Chiraz,


talvez te conduza para alguma regio ideal,
dourada e fugidia, inaccessivel aos ho-
mens .
Desapparece,anniquila-te, ou foge, cadei-
rinha 1 L, naquella manso bemaventu-
rada, pegaro teus varaes, no lacaios de
libr, mas alvos mancebos de vestes bri-
lhantes e olhar atrevido. Estes conduziro
atravs de nuvens a creatura feiticeira que
encantou o seu tempo e que deixou im-
pressa no taboado de teu fundo, cadei-
rinha de outras ras, como uma caricia
eterna. a lembrana do contacto de um p
taful, caladinho de setim.

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BURITY PERDIDO
~
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~A
i:;~~a
..
palmeira solitaria, testemu-
sobrevivente do drama da
conquista, que de magestade e de
tristura no exprimes, veneravel eponymo
dos campos!
No meio da campina verde, de um verde
esmaiado e merencoreo, onde tremeluzem
s vezes as florinhas douradas do alecrim
do campo, tu te ergues altaneira, levan-
tando ao co as palmas tesas, -velho guer-
reiro petrificado em meio da peleja!
Tu me appareces como o poema vivo de
uma raa quasi extincta, como a cano
dolorosa dos soffrimentos das tribus, como
o hymno glorioso de seus feitos, a narra-
o commovida das pugnas contra os ho-
mens de alm!
Porque ficaste de p, quando teus coevos
j tombaram ?

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62 BURITY PERDIDO

Nem os rapsodistas antigos, nem a lenda


cheia de poesia do cantor cego da Illiada
commovem mais do que tu, vegetal ancio,
cantor mudo da vida primitiva dos sertes!
Atalaia grandioso dos campos e das
mattas - junto de ti pasce tranquillo o
touro selvagem e as potrancas ligeiras,
que no conhecem o jugo do homem.
So teus companheiros, de quando em
quando, os patos pretos que arribam aris-
cos das lagoas longinquas em demanda de
outras mais quietas e solitarias, e que
dominas, velha palmeira, com tua figura
erecta, quda e magestosa como a de um
velho guerreiro petrificado.
As varas de queixadas bravios atraves
saro o campo e, ao passarem junto de ti,
talvez por causa do ladrido do vento em
tuas palmas, rodomoinham e rangem os
dentes furiosamente, como o rufar de tam-
bres de guerra.
O corsel lubuno, pastor da tropilha,
sombra de tua fronde, sacode vaidosamen-
te a cabea para arrojar fra da testa a
crina basta do topete, que lhe encobre a
vista ; relincha depois, nitre com fora
appellidando a favorita da tropilha, que

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BURITY PERDIDO

morde o capim mimoso da margem da


laga.
Junto de ti, noite, quando os outros
animaes dormem, passa o canguss em
monteria; quando volta, a carne da pra
lhe ensanguenta a fauce e seu andar mais
lento e ondulante.
Talvez passassem junto de ti, ha dous
seculos, as primeiras bandeiras invasoras;
o guerreiro tupy, escravo dos de Pirati-
ninga, parou ento extatico deante da ve-
lha palmeira e relembrou os tempos de
sua independencia, quando as tribus no-
madas vagavam livres por esta terra.
Poeta dos desertos, cantor mudo da na-
tureza virgem dos sertes, evoh 1
Geraes e geraes passaro ainda, antes
que sque esse tronco pardo e escamoso.
A terra que te circumda e os campos
adjacentes tomaram teu nome, eponymo,
e o conservaro.
Se algum dia a civilizao ganhar essa
paragem longinq'ua, talvez uma grande
cidade se levante na campina extensa que
te serve de scco, velho Burity Perdido.
Ento, como os hoplitas athenienses cap-
tivos em Syracusa, que conquistaram a

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BURITYPERDIDO

liberdade enternecendo os duros senhores


narrao das proprias desgraas nos ver-

sos sublimes de Euripedes, tu impedirs,


poeta dos desertos, a propria destruio,
comprando teu direito vida com a poe-
sia selvagem e dolorida que tu sabes to
bem communicar.
Ento, talvez, uma alma amante das len-
das primvas, uma alma que tenhas mo-
vido ao amor e poesia, no permittindo
a tua destruio, far com que figures em
larga praa, como um monumento s gera-
es extinctas, uma pagina sempre aberta
de um poema que no foi escripto, mas
que referve na mente de cada um dos
filhos desta terra.

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A EST EIRE IRA
~

cA joo ~odrigues Guio.

o;9 ,tized by Goog le


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HECIA no serto,
Era uma mulata de estatura
guiar, cheia de corpo, cadeiras
largas e braos grossos. Tremiam-lhe as
nadegas a seu passo forte. Trazia sempre
cabea um leno de cr, atado junto
nuca, deixando pender as duas pontas, que
substituiam as tranas. Ostentava invaria-
velmente o collo de nhamb, descoberto,
apparecendo os seios duros, saltitantes,
presos no bico pela renda da camisa alva .
Cercava-lhe o pescoo um collar grosseiro,
pesado, de grandes contas de ouro massio.
Das orelhas pendiam-lhe brincos grandes,
tambem de ouro, em frma de meia lua.
Tinha a pelle macia e a carnadura cheia
do vio que transudavam seus labios ver-
melhos, sempre humidos. As linhas do

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68 A ESTEIREIRA

rosto, correctas que eram, representavam


no conjuncto de seu corpo o cunho da raa
caucasiana. Esse conjuncto alliava graa
da europa a sensual indolencia das filhas
d'Africa.
Era provocadora - a mulata l
Chamavam-lhe Esteireira, por causa do
pai, empregado no officio de fazer esteiras
de taquara.
Lavadeira eximia, pela praia do Lontra,
sobre o brilhante cascalho, estendia ella
sua roupa, de alvura to nitida, que, ao
vel-a pela manh no coradouro, dirieis um
sendal de geada cabida durante a noite.
Encontramol-a muita vez, de saia arre-
gaada, mettida n'agua at aos joelhos, cur-
vada sobre uma grande pedra, na qual
batia as peas de roupa, depois de mergu-
lhai-as no corrego.
Anna Esteireira gostava de um rapaz
conhecido por Philippinho,diminuitivo por
que sempre foi tratado, por ser de baixa
estatura. Era um pardo de peito largo e
saliente, sobre o qual assentava um pes-
coo de anta. Sua cabelleira preta e en-
crespada sustentava um leve chapo de
palha de burity, e da ilharga esquerda

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A ESTEIREIRA

pendia-lhe um grosso e pesado faco, preso


a um cinturo de sola.
Andava sempre em mangas de camisa e
de calas arregaadas, maneira de cal
es; camisa e calas abotoadas por uns
grosseiros botes de chifre, fabricados
mesmo na terra.
Esse mestio era objecto de perseguio
e busca da policia local.
De genio atrevido e despreoccupado,
arredio a toda especie de trabalho, Philip-
pinho estava ao pintar para companheiro
do Besouro, do Pedro Barqueiro, do Lucas
e outros terriveis bandidos que infestaram
as regies banhadas pelos rios Urucuya,
Somno e Preto.
Mais de uma vez, o cabo Mariano,
frente de um pugillo de bons soldados,
dra, cara cara, com Philippinho, arremet-
tendo todos em massa contra elle. Mas o
endemoninhado mulato era mais destro no
pulo do que o canguss ; riscava com o
faco as fardas aos soldados, e, dando um
assobio agudo, desapparecia em qualquer
toua de arbustos nas immediaes. No
era ta que o mulherio o julgava como
tendo trato com o Sujo.

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A ESTEIREIRA

De uma vez, foi a causa da morte de um


subdelegado. Corrra na cidade que o Phi-
lippinho andava fazendo suas tropelias
mesmo intra muros, e alguem foi s pres-
sas avisar ao Manuel Loureno, subdele-
gado que ento era. Estava este acabando
de jantar, mas saltou presto da mesa para
o lombo de um cavallo amarrado porta.
Sai em corrida disparada para o logar onde
o tigre se havia entoe ado; no o alcanou,
porm, que uma apoplexia lhe arrancou a
vida no cumprimento do dever.
J Philippinho estava encantoado, depois
de ter por centenares de vezes querido
romper o circulo em que o fechra o cabo
Mariano.
- Desta vez ests na unha, moleque,
disse o gigantesco soldado.
De facto, cahira; mas, astucioso que era,
mudou de tactica para a resistencia, vendo
que do emprego da fora s mal poderia
advir-lhe. Entregou os punhos s algemas,
manso como um cordeiro, deixando-se le-
var casa da auctoridade policial para ahi
soffrer o inquerito.
Crime visivel e grave no o commettra
elle, que alguem dissesse. Era turbulento,

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A ESTEIREIRA

mas no fizera morte, nem roubo. Te-


miamno e atiravam sua conta toda
escalada em casa alheia durante a noite,
qualquer pancadaria na sombra dos beccos
e viellas. Provas no havia; entretanto,
sabendo Philippinho do conceito de que
gosava, vivia foragido.
Ahi, nas proprias barbas da auctoridade,
desenvolveu a Esteireira uma arenga em
defesa do seu 'Bem, em que, com os seios
descobertos, inflados de canao e ira (cor-
rra da praia ao saber do que se passava),
fazia largos gestos com os lindos braos
ns, bronzeados, humidos e bordados por
uma renda de espuma.
Tinha desviado para si a atteno; e os
soldados, confiando na postura humilde
de Philippinho, limpavam a testa, resfo-
legantes, deixando-o solto na sala, pois j
estava algemado.
Imperceptivelmente, elle se afastava at
porta e, voltando-se de repente, entra a
correr pela rua acima.
Tomaramlhe a deanteira .
No largo, podia elle desenvolver toda a
sua destreza; e, embora algemado, deitou

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A ESTEIREJRA

por terra dous soldados que, destacados,


topou no caminho.
Fugiu.
No prenderam a Esteireira, que dahi a
pouco, em doce entrevista, conversava o
mestio nas cercanias da casa do pae
della, ao longe, j tardezinha.
Juntos e esquecidos do que se passra-
to grande era o amor que os ligava e cur
tos os momentos de que dispunham para
as falas temas e as mutuas confidencias -
quedaram-se muito tempo.
Ao despedir-se do mulato, Anna, pu
xando-o pelos dedos e fixando nos delle
seus grandes olhos negros, queimados de
zelos, perguntou-lhe se no era exacto ter
elle dado umas bichas de ouro Candinha
do Fundo e estar inclinado a gostar della.
Philippinho negou tudo, affirmando que
o seu 'Bem era ella, Anna; que sempre gos-
tou della e affrontava os perigos que ella
bem sabia, para vir vel~ cidade. Se isso
no era prova, que mais queria ?
Ella acreditou, ou fez que acreditou, pois
no tocou mais nisso.
Afagou a cabelleira basta do mulato e,
fugindo ao abrao deste, disse-lhe, certa

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A ESTEIREIRA

distancia, com o brao elevado e o indi-


cador da mo direita apontando para o ar,
como quem quer dar uma ordem e ao
mesmo tempo ameaar pelo no cumpri-
mento desta :
- Olhe 1 Depois d'amanh, quero vel-o
no Lageiro de Cima. Esteja junto daquella
lobeira da margem do corrego, depois que
eu tiver apanhado a roupa do coradouro.
Adeus.
E virou-lhe as costas, num movimento
rapido, sahindo a correr.
O mulato contemplou-a at desapparecer;
depois, descanando numa perna, tirou de
traz da orelha uma grossa palha, alisou-a
com o faco e, picando um pouco de fumo
que tirou do bolso da cala, fez um ci-
garro. Accendeu-o na binga e, vagarosa-
mente, foi descendo a trilha estreita, que,
como uma cobra-coral, colleava um bos-
quezinho de goiabeiras, embaixo das quaes
os gravats eriavam as folhas compridas,
duras, bordadas de espinhos.
O crepusculo abrandava pouco e pouco
a claridade do dia. Sua luz tbia vinha ba-
nhando suavemente a terra; e to branda
que-obra invisvel de mysterioso pintor-

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74 A ESTEIREIIU.

parecia haver um pincel occulto, passando


delicadamente pelo espao e carregando
manso e manso as cres, como se a mo
que o detinha quizera fazer, na tela de
crystal desse claro dia sertanejo, um fundo
azul escuro.
Atravessado o pequeno bosque, Philip-
pinho sahiu num vasto campo, e, descendo
sempre, foi ter praia do corrego, j frou
xamente alumiada pelas estrellas. Seme-
lhava de longe, na profuso do cascalho
claro, onde se destacavam os seixos es
curos, uma colossal rde de pesca exten
dida ao sereno.
O corrego defluia mrmuro e harmo-
nioso - doce pratica, qurulo idyllio, ou,
talvez, bem travada porfia de accrdes,
na crte da Mi d'Agua.
Philippinho vadeou o Lontra e, subindo
o morro fronteiro, desappareceu.

No dia seguinte, hora marcada, estava


o mulato em cima do barranco, ao p da
lobeira da margem do corrego, no logar
chamado Lageiro de Cima.
Anna appareceu nesse dia, como sempre,
asseiada, com a saia de uma limpeza sem

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A ESTEIREIRA 75

par. Trazia nos olhos um brilho extranho;


seus olhares pareciam ferir como os espi-
nhos dos gravats, sobre os quaes ella
extendia algumas vezes a roupa.
E' que o ciume lhe trabalhra a alma
todo o tempo decorrido desde a vespera.
Andra assumptando e chegou conclu-
so de que o escolhido de seu peito a tra-
hira com a Candinha do Fundo.
- Onde esteve hontem, perguntou ex-
abrupto, depois que me deixou ?
- Voc est caoando, Anna; pois onde
que eu vou quando a deixo? No para
o meu rancho, l para os lados do Espirito
Santo?
- Mas voc passou no Gorgulho e esteve
em casa de Sinh 'Anna, tanto que quiz cin-
zar Val, porque voc bem sabia que
ella vinha me contar quem l esteve a
brincar com a Candinha.
- Eia, eia, eia 1 J Anna comea? Olhe 1
Quer saber de uma cousa ? Diga Val
que venha sustentar isso minha vista ;
ella ha de saber para que que tat
cava-. Se voc pega com essas bobagens,
eu me vou embora, e j.
A ESTEIREIRA

Continuaram ainda a dialogar com ce1 to


azedume.
Anoa era orgulhosa. Amava a Philippi
nho, julgando-o todo seu, della s. Reco
nhecia-sc uma mulata honesta, trabalha
deira e bonita; no era para qualquer uma
regateira lhe tomar o noivo.
Entretanto, eram il'\undados seus re-
ceios.
Quando sahiu daquelle Jogar, comeou
a banzar, procurando um meio de se vr
livre da pretensa rival. E no cerebro en-
candecido da mulata principiou a crepitar
uma labareda de idas ferozes, filhas do
seu sangue e da sua educao. A tenra e
voluptuosa mulatinha cedera o passo
urucuyana selvagem-canguss farejando
um novilho para os filhotes famintos.

Ao amanhecer do outro dia, toda blan


diciosa, convidava a Candinha a dar um
pulo Contagem, para trazerem uns cajs
que Ambrosina lhe promettera. A outra
tornou que no haviam de ir ssiohas.
- Alli to perto ? Que tem isso ? Vamos
no mouro de papai; um cavallinho muito

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A ESTEIREIRA 77

bom e d garupa. Antes do sol alto l es-


taremos.
Acceito o convite, partiram as duas, de
boa harmonia, conversando descuidosas.
Depois de uns tres quartos de hora de
marcha, Anna, sem que a companheira o
percebesse, saca de uma navalha e, vibran-
do-a com mo rapida e firme, corta a ca-
rotida infeliz companheira, que estava
unida a si, abraada sua cintura, na ga-
rupa do animal. Cahiram ambas, e Anna,
no querendo que na estrada houvesse
grande marca de sangue, encostou os la-
bios ao logar de onde irrompia aos caches,
e, carnivora esfaimada, chupou, chupou
por muito tempo, carregando, depois, o
corpo da desventurada para bem longe,
onde um desses precipicios, cavados pelas
enxurradas, recebeu-o no fundo de sua
fauce.
No foi mais Contagem, nem voltou
cidade. Desse Jogar mesmo sahiu procura
de Philippinho, desvairada, fustigando o
animal, bracejando como os selvagens no-
ctivagos de que fala um romancista, quando
pilhados pela luz do dia. O pello finis-
simo, imperceptivel quasi, que lhe cobria

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A ESTEIREIRA

os braos como poeirazinha de ouro fosco,


erira-se todo, arripiando-se como cerdas
de caetet. Os olhos negros, desmedida-
mente abertos, parecendo olharem atravs
de um vo de sangue, tinham a expresso
ao mesmo tempo pvida e feroz de marr
bravia perseguida pela matilha.
Assim galopou at ao Esprito Santo,
onde o tugurio de Philippinho se erguia
quasi beira do corrego, mesmo junto de
um perau. As aguas tinham ahi uma collo-
rao escura, carregada ainda pela sombra
dos ingazeiros, cujos ramos se debruavam
para dentro do poo, mergulhando nelle
as vagens cheias da plpa doce e branca,
que as curumats vinham beliscar.
Deparando-se-lhe o mulato, a pouca dis-
tancia do seu tugurio, sentado tranquilla-
mente sombra de uma arvore, a tecer
chapos com a sda do burity, Anna gri-
tou-lhe de longe que a seguisse, que fu-
gisse com ella, pois nada mais a prendia
quella terra.
Estupefacto com o seu apparecimento
naquellas paragens, Philippinho no lhe
poude comprehender as palavras. Entre-
tanto, ella, arquejante, com os labios

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A ESTEJREIRA 79

tintos de sangue e o olhar torvo, ejacu-


lava:
- Monte l Vamos para as Trahyras, que
os soldados querem prendei-o !

Muitos dias depois, na grande estrada


real das Trahyras, uma escolta de caval-
laria de policia, armada de revlveres e
espadas, encalava criminosos.
Anna e Philippinho eram tenazmente
perseguidos.
O cadaver da Candinha fra descoberto,
e a fuga dos dous amantes, ligada a mil
outros indicios, os havia indigitado como
auctores do crime.
A solido das selvas, a perspectiva do
perigo a cada passo, as fadigas das jor-
nadas e vigilias, transfundiram numa
aquellas duas almas. O noivado desses
dous rebentos opulentssimos da exube-
rancia tropical se havia celebrado como o
do jaguar, no meio das mattas, voz me-
lancolica dos jas, sombra densa de uma
imburana.
A escolta, com o Mariano frente, foi
topar os fugitivos na estreita ponte sobre
o rio Trahyras.

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80 A ESTEIREIRA

Philippinho, ao dar com os soldados,


antes de chegar ponte, encostouse ao
tronco de uma arvore e esperou o assalto,
acuado como tigre prestes a empolgar a
presa.
Os dous tinham vindo a p.
Mariano deu-lhes voz de priso.
Philippinho no respondeu.
O cabo e seus companheiros desmonta-
ram, marchando em seguida sobre o mu-
lato, em cujo brao robusto refulgia a la-
mina de um faco, sua unica arma.
A poucos passos de Philippinho, fizeram
alto os soldados, e Mariano intimou-os a
se renderem, aos dous foragidos. Philipi-
nho deu um salto para a frente, ao mesmo
tempo que se ouviam estampidos de tiros.
Dous corpos tombaram pesadamente, e
os soldados recuaram, vendo o Mariano
varado pelo faco de Philippinho, que ca-
valgava o valente soldado, estendido de
costas. O mulato, debruado sobre o corpo
do soldado, mordia-o, esfaqueava-o, mis-
turando com o delle o sangue da propria
ferida .
Anna saltra, rangendo os dentes, qual
canella rui'Va.

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A ESTEIREIRA 81

Defrontando os outros soldados, ella dra


costas a Philippinho e Mariano, cujos
corpos se haviam como que misturado nas
convulses da agonia.
Anna estava desarmada ; mas, com o
busto inclinado para deante e os dedos das
mos recurvados como garras, prompta se
achava para a defesa.
Novo estampido se ouviu.
A rapariga levou a mo ao seio e no
poude sopitar um grito terrvel, um rugido
antes, que ecoou pela matta.
Recuou dous passos e tombou, ao travs,
sobre os corpos de Philippinho e Mariano.
Um bando de gralhas do cerrado, de plu-
magem azul escura, passou alto, desferindo
seu grito intercadente, longo, mais simi-
lhante a uma gargalhada.
Ao longe, na orla do campo, perdizes
piavam tristemente.
A' beira da matta, num chavascal de
cambabas, duas juritys, que os tiros ha-
viam amedrontado, arrulhavam co.m ter-
nura. aconchegando-se.

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1

.J.
1

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MANUEL LUCIO
~

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BALHADO de dores, com a ruga
a fronte aprofundada pelo pensar
xo - refolho onde descobria o
observador talvez a magua dorida, a tenso
do espirito em desfibrar um sentimento
radicado - era ainda elegante como um
joven xque beduino, no seu pallr amore-
nado, na morbidez do olhos pardo-escuros,
na vibratilidade do corpo esbelto e no
lucto negro dos cabellos.
Vagava pelos campos- campeiro que
era-em seu pangar fogoso como um
mustang do Mexico, aulando-lhe, s com
o retinir das esporas de ferro batido, o ar-
dor na perseguio do touro selvagem at
dentro dos algares que abeiram o rio. E
assim cavalgado, com o chapo de couro
macio ourelado de marroquim e cheio de
86 MANUEL LUCIO

bordaduras na copa; o jaleco estreito e


curto, deixando a descoberto o talim ama-
rellento de onde pendia o terado robusto;
as amplas botas de couro de sucury- era
casquilho, devras, o filho de Jos Paes,
deste que, havia l annos, se mettera com
outros bandeirantes at quellas regies
que o rio das Almas banha.
Ainda no havia cessado a faina desco-
bridora dos arrojados aventureiros, e o seio
da terra gemia fundo com o zum-zum desse
formigueiro, que se alastrava no sub-solo,
procura das folhas preciosas do ouro.
Abriamse porticos giganteos nas fraldas
das serranias, arcadas magestosas se ras-
gavam, e uma luta pica travava-se ahi
entre estes heroes obscuros e a rigidez im-
penetravel das fragas - temerosa, perseve-
rante, cheia de heroismo essa peleja, onde
os tites eram homens como ns outros,
desapparecendo esquecidos, apenas lem-
brado o seu porfiar constante pelos des-
pojos cheios de magnitude que se nos
deparam nas viagens pelo interior.
J, ento, uma aldeia se ia formando, iam
se estabelecendo os mais ricos e uma ou
outra fazenda - tal a de que vamos falar

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MANUEL LUCIO

-erguia-se ridente entre as campinas


alfombradas - branca, ouriada de cruzes
na capellinha rustica e nos curraes, seme-
lhcrndo na perspectiva azul alguma nu ca
pitanea pojada no remanso de uma bahia.
Uns coqueiros de indai, uma gamelleira
arrochando com suas raizestentaculos os
moires, a frente da casa alpendrada, o
oratorio de cr nebulenta na sala de jantar
um pouco escura, bancos grosseiros de
madeira com altos recostos,-tudo austero,
meio claustral, at o leno de seda que, lan-
ado maneira de capuz de burel, emmol
durava um rostozinho mosarabe, sadio e
fresco como o dessas hebras juvenis que
trazem os pintores em suas tlas sobre o
grande exodo do Egypto.

O sr. guarda-mr das minas, Vasco Anto-


nio Fernandes, sua esposa Emerenciana de
jesus Correia Fernandes e sua filha unica,
D. Barbara - a Barbinha -, segundo o ha-
bito antigo, estavam reunidos no alpendre,
de palito bocca os velhos, saboreando o
pospasto de ha pouco, hora em que os va-
queiros, revezando-se de dia em dia, trazem

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88 MANUEL LUCIO

ao curral as manadas de vaccas e os lotes


de eguas a serem inspeccionados pelo dono.
Uma nuvem pulverulenta ergueu-se ao
longe, no carreiro que cintava a encosta
como um talabarte polyphemico, e o bando
resfolegante de animaes appareceu d'ahi _
a pouco, pinoteando, relinchando, com os
olhos esbrazeados, de tropel pela porteira
a dentro.
Mais atraz, tangendo de longe a cava-
lhada, vinha o Manuel Lucio, a cavallo, de
lao garupa e um bacamarte atravessado
sobre o bico da sella.
-Que do Camura?
- Ficou no logradouro.
- Meu cavallo no o vejo nunca, retru
cou a Barbinha; nem sei se essa gente
trata delle.
-Espirrou do lote quando eu juntava os
outros, e eu s no podia ter mo em todos
ao mesmo tempo, tomou o campeiro.
- E' assim sempre.

Tendo vindo no bando de Vasco Fernan-


des, ao tempo da expanso dos filhos de
Piratininga, ligra-se-lhe para sempre Jos

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MANUEL LUCIO

Paes, at que, morrendo accidentalmente,


deixou ainda criana o filho aos cuidados
d0 amigo.
Criado em meio desse labutar, tendo ainda
nas veias o clido sangue de sertanista,
intelligente e activo, porm taciturno, cap-
'tra Manuel Lucio Paes a inteira confiana
do guarda-mr; administrava-lhe a fazenda
com dedicao e fazia o servio de cam-
peiro, que, no emtanto, estimado pelos
proprios fazendeiros e seus filhos, os quaes
no julgam indigno de si o correr os cam-
pos, varar os boqueires e taboleiros, de
lao garupa, ferro em punho.
Nos seus vinte e tres annos, a alma
se lhe desabotora generosa e austera,
aferrada aos antigos principios de honra
cavalheiresca, de um melindre delica-
dissimo.
Insultado, por dez que fosse, julgava-se
obrigado a tomar desforra alli mesmo.
Professava um respeito religioso por
tudo quanto lhe vinha dos ascendentes -
usos e palavras, factos e aces. Os ami-
gos de seu pae eram os seus proprios, e
julgava-os um prolongamento da pessoa
querida que j levra a morte.

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MANUEL LUCIO

Na defenso e cuidados da fazenda do


guarda-mr, diria como D. Joo de Cas
tro - por uma pedra da fortaleza d'El
Rey, arriscaria um filho.
Altivo, orgulhoso, mas timido nos mo-
dos, no soffria seu orgulho que alguem
o achasse ridiculo, a elle, Manuel: eis por-
que era taciturno, pouco amaneirado e
cheio dessa original timidez, onde por
fora havia desconfiana.
As vezes, quando o embalava o rhythmo
cadencioso da marcha a cavallo nas longas
excurses pelo campo, cantarolava a meia
voz, com os olhos perdidos no espao, uma
trovaz.inha do Serto :
Morena, meu bem, morena,
Morena de meu amor!
Porque assim voc me engana
A fingir-me esse rigor?
E soffria-o Manuel Lucio; torturava-se
por introverso, analysando sua vida de
uns annos para c, desfibrando os senti-
mentos radicados, distendendo-os, como
se quizesse com o duro plectro de sua ana-
lyse ferir as cordas dessa gusla suspirosa.
Tirava, em suas excogitaes, o apparelho

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MANUEL LUCIO 91

da ferida para examinai-a com o bisturi de


um raciocnio feroz; encadeando os factos,
revolvia-os, escalpellava-os, e a (crida se
aggravava, e accentuava-se a dr moral,
e a alma, constringida, porejava o sro de
um soffrer cruciante.
Criado ahi, no meio dessa natureza selva-
tica, crescido ao sopro de um ar purssimo,
robustecido com os habitos tonificantes do
sertanejo, livre como o enorme espao
despovoado por onde podia bater a pata
de seu corcel, e que, fora de ser grande,
lhe parecia indefinido, no podia deixar de
ser independente, pois no encontrava tro-
peo sua liberdade, seno no que lhe
viera enraizado por herana, temperamento
e educao -e isso era o respeito, a obe-
diencia a seu pae, pessoa deste prolon-
gada na daquelle que amra e venerra
em vida.
Quando se lhe desabrochou a mocidade,
to cheia de louania, era natural que lhe
rebentasse no seio o amor, como no favo
maduro da jatahy o delicado mel.
Prendera-o a filha do guarda-mr, com
seu rostozinho mosarabe, fresco e vioso,
seus olhos buliosos como dous ptrinhos

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MANUEL LUCIO

bravos, o nariz um pouco recurvado e os


labios finos, seu tanto arqueados, trazendo
a um canto estampada como que a expres-
so de um desprezo eterno.
A expresso de um desprezo eterna ! Por
elle, para elle? Ignorava-o. Amai-o-ia ?
No era crivei. - E' um s-no-s sober-
ba ., dizia elle. - <e E eu ,., pensava, es-
tou como quem passa um fundo grotto
sobre o tronco da umbaba que a ventania
derribou: ora pendo p'r'aqui, ora p'r'alli,
nutando no ar, procurando o equilbrio,
e assim at vencer a perigosa pinguela,
vingando a barranca opposta. Mas esta,
no a encontro, por desgraa!
<e Dizer-lhe tudo ... e que pensaria ella ?
Apodava-me de especulador. O pae tem-
me confiana ; mas, confessar-lhe. . . e o
ridculo do dia seguinte, quando ella sou-
befse ? No sei ; nunca me deu provas ;
no posso tentar sem passar por doido
para uns, atrevido para a outra. E' o
diabo! No posso! E, no emtanto ...
Qual, no era nada; estou treslendo.
Mas ... "
E o orgulho, o amor, a altivez, a dedica-
o aos princpios, como quatro guerreiros
MANUEL LUCIO 93

esforados, mediam-se, mediam-se, antes


de travar-se a luta .


Houve um levantamento de mineiros
- indios e negros, insuflados por alguns
despeitados contra o guarda-mr; rixas
que sempre houve, e muitas, no corao
do Brazil ; ferozes lutas de famintos que
eram, mas da auri sacra fames.
Avisado logo, aprestou-se Vasco Fer-
nandes para a defesa, pois a gente vinha
alvorotada.
Manuel Lucio, com vinte companheiros,
postou-se em uma crca, no flanco es-
querdo da casa, junto dos paies, corte-
lhos e celleiro, onde mais damno poderiam
fazer os amotinados. A casa estava em ar-
mas, o alpendre transformado em baluarte,
e uma descarga de mosquetaria recebeu
os assaltantes.
Depois de fogo parte parte, um bando
destes consegue metter-se no pail pelos
rombos que fizeram na parede a machado.
Manuel Lucio estava na outra extre-
midade, sustentando o embate do grosso

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94 MANUEL LUCIO

do grupo que para ahi se destacra a


occupar-lhe atteno. Subito, comearam
as balas a varejar a casa da fazenda, arre-
bentando algumas janellas lateraes. Abri-
gados no paiol, que s da parte de fra
era murado, sendo a frente interior for-
mada de vigas de pus a pique unidas,
pelas frinchas do madeirame assestaram
as armas e faziam um estrago terrvel.
Tendo j arrebentado janellas com suc-
cessivas descargas de clavinote, iam reti-
rar-se lanando fogo ao paiol para cahirem,
o
depois, sobre grupo de Manuel Lucio,
quando surge este do lado esquerdo dos
sitiantes entrincheirados, rompe um lado
do madeiramento com dous negros robus-
tos e d sobre os indios que ahi estavam,
deitando por terra tres a golpes de terado
e obrigando os outros a evacuarem o paiol
pela abertura que haviam praticado na pa-
rede de fra.
No meio da luta, recebe um tiro, que o
prostrou em terra mal ferido. A custo, le-
vantou-se, ordenou rapido a tapagem do
rombo com couros e pedras e no poude
mais continuar no posto, sendo, ento, con-
duzido a braos para o corpo da fazenda.

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MANUEL LUCJO 95

Entretanto, a polvora de c era em grande


quantidade, e os assaltantes, desanimados
com a tenaz resistencia, abandonaram a
empreza, deixando crca de trinta mor-
tos no campo.
**
Tres dias depois- incendia-lhe o corpo
a febre-cahira a fazenda no estado de quie-
tao costumeira, e a justia barbara da-
quelles tempos e logares havia chamado
a si os villes revis.
Manuel Lucio desvairava; e s vezes,
entre o leve sussurro das casas onde ha
doentes graves, entre o ciciar das vozes
segredando-se, o canto estridulo de um
gallo a espaos e o ladrido de um co ao
viandante que se approxima, o ferido can-
tarolava, em seu delrio, a trovazinha
sertaneja:
Morena, meu bem, morena,
Morena do meu amor l
Porque assim voc me engana
A fingir-me esse rigor ?
Morreu.
E depois, muito depois, quando, pelo car-
reiro que cintava a encosta ao longe, soava

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MANUEL LUCIO

magoada a voz de um vaqueiro que se re-


colhia, dizendo - morena, meu bem, mo-
rena ! - os olhos da Barbinha, buliosos
como dous ptrinhos bravos, amorteciam-
se, como se passra deante delles a aza
branca de uma saudade, ou o msto cre-
pusculo de um remorso.
PAIZAGEM ALPESTRE
~
A Augusto de Lima

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GUEM pde, ninguem que tenha
lma sensivel aos espectaculos da
natureza ou poesia das ras j
mortas, poder deixar de recolher-se, de
concentrar-se em fundas cogitaes ou cm
caroaveis devaneios, ao vingar a grande
vertebra do Espinhao e seguir por ella
afra, numa estrada que lembra aquella
outra de quatrocentas leguas, feita no
Per, sob as Incas.
L no alto, a gente sente-se meio des
prendida da terra e- no sei se por alguma
lei psychologica o espirito se alargue e o
orgulho augmente proporo das emi-
nencias vencidas-o certo que um frenesi
de subir, de arrancar das nuvens o segredo
de alguma cousa extranha se apodera de
ns : a muitas vezes humilde e fatigada

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100 P AJZAGEM ALPESTRE

montaria se transforma em hippogrypho e


estamos j a correr o risco de uma queda
pelo despenhadeiro, quando os ventos es-
touvados nos arrebatam o chapo brutal-
mente, punindo-nos por os termos surpre-
hendido l onde elles encalam uns aos
outros, como alegres folies, brincando em
liberdade, ou concertam socapa as teme-
rosas investidas .
Ento, os olhos vem; e quem Xavier de
Maistre chama simplesmente E/la, desce
manso habitual e consente que os sentidos
transmittam as impresses do exterior.
A principio, uma sensao de vacuo, uma
ida de pramo nos confunde e atemorisa;
depois, uma symphonia extranha, ouvida
vagamente, vinda de longes ignorados, nos
acaricia os nervos, arripiando levemente
a pelle; pouco a pouco, as cousas exte-
riores vo tomando uma frma, quasi ideal
ainda : o perfil de uma montanha longn-
qua mal se esboa, confundida com a des
filada de um exercito, de bandeiras desfral-
dadas, com elephantes em marcha, cobertos
de xaireis pendentes e bambolins de ouro.
A vegetao dos morros distantes parece
as cerdas arrepelladas de algum monstro

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PAIZAGEM ALPESTRE 101

e as cascatas, serpentes enormes de dorso


luzente, que vo descendo preguiosamente
a desalterar-se no rio que corre em baixo.
Mas um cavalleiro assoma num coto-
vllo da estrada; o gado que pasta alli por
perto se assusta e foge; os gavies que
voavam baixo libram-se aos ares ; uma
centena de passarinhos, animados pelo nu-
mero, os escarmentam a bicadas, e o cavallo
relincha ao avistar o outro.
A phantasia despede-se de ns; foge na
aza do gavio que frecha os ares corri-
maa dos passarinhos.
- Como vai, amigo ?
- Bom, para o servir, patro.
-Ainda que mal pergunte, no estare-
mos errados ? E' este o caminho do arraial ?
- Estrada batida, meu patro; no tem
errada: seguir toda a vida.
-Adeus 1 Obrigado.
- No seja por isso. At vista, se Deus
quizer.
Um toque nos chapos e esporas nos ca-
vallos; os cavalleiros se afastam para lados
oppostos. Um cigarro acceso e umas fuma-
as puxadas cadencia da marcha pela
estrada.
102 PAIZAGEM ALPESTRE

Logo depois, a cavalgadura comea a va-


cillar num terreno pedregoso, de pedras
rolias.
A estrada corre meia encosta e, de um
lado e de outro, v-se a natureza convulsio-
nada ; enormes penhas escuras, espalha-
das a cavalleiro do caminho, parecem avan-
ar ameaadoras ; algumas j ruiram no
meio de horroroso fracasso e outras cami-
nham lentamente, para ganhar impulso que
as precipite no algar, ao fundo. Pequenos
troncos enfezados, retorcidos, parecem em
desespero aos approxes da lucta pavorosa.
Nas soturas das rochas, pelas brchas dos
lanantes, escorrem teimosos fios d'agua,
que vo delindo a rigidez dos blcos e fil-
trando-lhes no imo a furia com que arre-
mettem uns contra os outros.
- Pobres troncos enfezados que debalde
vos contorceis de angustia na previso de
vosso proximo estraalhamento ! Em vo
clamais soccorro na vossa compostura tra-
gica e muda 1 Ninguem vos arrancar dahi.
Quem mandou o vento trazer o germen de
que sahistes ? Quem vos mandou agarrar-
vos vida to tenazmente, e espalhardes
as raizes e as mergulhardes no subsolo
PAIZAGEM ALPESTRE 103

e caardes, com mil boccas famelicas, no


fundo dessa terra ingrata, um pouco de
seiva para essa vida mesquinha ?
Os lichens e os fetos bravos riem-se das
pobres arvores amedrontadas; trepam pela
escama dos penedos, agarram-se a elles
como insectos damninhos e viam e trium-
phamedesafiam a irados petreos monstros,
certos de que, ainda quando esmagados,
crescero de novo, de novo recebero o or-
valho da noite.
A estrada vai tombando aos poucos. Os
seixos rolios augmentam e os filetes
d'agua, recuando, fugindo, contornando
esta pedra, vingando ess'outra, depois de
formarem poas, vo se ajuntando aos
poucos para fazerem as nascentes dos
grandes rios.
- Quanta perseverana, quanto obstaculo
vencido, que trabalho insano, incalculavel,
pequeninas gottas, para vos reunirdes aos
poucos, permeando as grossas camadas de
terra, tecendo - animalculos invisveis -
uma trama delicada e bem composta, que
se vai enredando cada vez mais compacta,
at que o ultimo torro se dila e possais
cantar ao Sl o hymno glorioso de uma

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104 PAIZAGEM ALPESTRE

victoria to bem pelejada! E' de ver-se


ento o murmurio alegre com que os rega-
tos se formam e as fontes claras retoiam,
pompeando ao sol o seu dorso prateado 1
Prodigiosa fora de attraco que chama
de c e de l aquellas duas cellulas imper-
ceptveis e as vai levando at ao oceano,
onde, mais tarde, quem sabe se o sol no
as vai buscar, cheias de saudades dos mon-
tes e da lucta 1
Neste ponto a montaria, bufando, procura
I
um chafariz de compridas lages de pedra -
afincado no barranco da estrada. L-se uma
inscripo:
MDCC ..
Governando estas minas
Dom . . ........
O fez
Por munificencia d'El-Rey
E bem
Dos
Povos da Capitania


Eis-nos chegados ao fundo da bocaina.
Na encosta acclive, chamalotando o verde
do capinzal, casinholas de paredes barreadas 1

j
1'

~
1
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PAIZAGEM ALPESTRE I05

soltam pelos suspiros do telhado tenues


columnas de fumo. As bananeiras abrem
suas palmas, onde melros negros afinam
as gargantas para uma enthusiastica ou-
vcrtura. Uma mancha de um verde mais
tenro denuncia as terras cultivadas e as
plantaes. Vamos nos acercando e desco
brimos l, curvados sobre a terra fecunda,
uma fila de enxadeiros.
Cantam.
Que toada sentida! Tambem soffrem
esses homens robustos, sob cujas mos a
terra geherosa se desentranha em fructos e
para quem os melros modulam seus trenos?
e Pomba do matto seu ninho
Dentro da moita escondeu ;
- O gavio os filhotes
L mesmo dentro comeu !
Meu corao socegado
Dentro do peito batia;
De l mesmo foi tirado
E posto aos ps de Maria 1
De que serve, passarinho,
Ter azas e pennas ter,
Se l em cima nos ares
Gavio vai te comer?
105 PAIZAGEM ALPESTRE

Meu corao quiz voar


Quiz fugir qual passarinho . . .
Tu viraste gavio
E comeste o pobrezinho !
- Ai mulher ! ai gavio !
Dae-me um outro corao !
O rhythmo choroso magoou-me o peito
e eu entrei a scismar ...
Subito, chilros, pipilos e pios estridentes
do-me accordo de mim : e eu vi nos ares,
fugindo arremangado ao passaredo em
chusma, o gavio traioeiro.
As avezinhas, aos centos, esvoaavam
sobre o abutre, bem alto, no azul .. .
Vingavam-se, os pequeninos...

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DESAMPARADOS
~
J
1

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r no chapado extenso que chan-
ra as cumiadas da grande cor-
dilheira das Vertentes; naquelle
ponto dos limites entre Minas e Goyaz
em que o dorso da serra parece morder
as . nuvens baixas e aprumar-se para abrir
leito ao remansado Paranahyba.
Passava como peregrino por aquellas pa-
ragens ermas, to cheias de soedade e de
belleza, cuja contemplao levanta o esp-
rito indagao dos grandes problemas
cosmogonicos.
O vento cabriolava pelas campinas soli-
tarias, carregando pannos de neblina, que
se afunilavam, extendiam-se em amplos
. mantos de arminho roagantes, ou voeja-
vam ao longe, na commissura do horizonte,

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110 DESAMPARADOS

quaes brancos albornozes numa escapada


de cavalleiros do deserto.
Pelas fraldas dos morros, cingindo-os,
bordando os valles, em cujo fundo se espre-
guiavam p1es somnolentos, o buritizal
erguia suas verdes frondes, to lavadas
pelas chuvas e to brilhantes, que se affigu-
ravam magestoso gorjal de pedras finas.
Ahi, neste quadro grandioso, em que
tudo era magestade e pujana na natureza,
deparou-se-nos caminheiro singular, mo-
fino e rachitico, mal coberto por um esbu-
racado chapo de palha e uns farrapos de
algodo encardido, que estavam a calhar
naquella pelle cheia de lividez.
Era uma pobre creatura incompleta, inse-
xual, nem menino, nem homem, cujo rosto
chupado tinha uma expresso de contrasta-
dora alegria, nos labios descarnados que
nem podiam se unir, nos olhos pequenos e
admirativos que nos esguardavam como a
cousas exoticas.
- Um bandeira ! bandeira 1- gritou o
misero e, espigando-lhe a estatura exigua,
levantou a cabea, abrindo os braos em
meno de quem quer abraar. De seu
magro pescoo desceram sobre a pelle do

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DESAMPARADOS 111

peito adusto e arrepanhado rosarios e


bentinhos.
- e T l o bandeira! -acabou assim de
exprimir o que queria dar a conhecer ao
viajor, que eu era, pela mesma meno de
abrao, e apontou, depois, para a fralda do
morro onde balouavam as frondes do bu-
ritizal. Tinha visto um grande tamandu.
Depois, deu uma gargalhada e continuou
pela estrada afra, tartamudeando pala-
vras, cortandoas com risadas extravagan-
tes, que mais pareciam vozes animaes.
Acompanhei vagarosamente aquelle ente
mirrado, to contente na sua insciencia, to
forte na sua nenhuma fora, que mais se
annullava deante da natureza pujante e
infinita que o circumdava.
Perdizes piavam tristemente pelo campo
chorando o tempo em que viveram nas mat-
tas, onde abundam os fructos e cantam as
fontes crystallinas. Conta a lenda que d'ahi
as expelliram as jas numa guerra cruel,
cuja memoria umas e outras conservam
no seu pio lamentoso ou no inolvidado
desafio.
Mudo, no meio do escampado, e compa
decendo aquella miseria humana, eu seguia

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112 DESAMPARADOS

com os olhos os movimentos daquelle ente


sem ventura, inquerindo por que motivo as
feras o haviam poupado em suas monterias
ou os coriscos no meio das tempestades.
Foi ento que o idiota, dando pulos de
contente, mostrou no meio de uma mouta
um casal de pequenas perdizes quasi im-
plumes, pipilando, batendo uma na outra
os ctos das azinhas.
O ninho estava desamparado beira da
estrada e tambem o tinham poupado as
enxurradas, em torrentes, nesse tempo de
grandes chuvas, e as raposas em sua ronda
da noite.
Tambem os mesquinhos e desamparados
encontram caricioso aconchego no seio
largo da natureza infinita.

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A VELHINHA
~

cA jos <Braga.

8
.
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~DO,
u:~ j no me lembra; mas (o;
tempo que vai longe.
Passeiava uma tarde por uma rua soli-
taria de pequena cidade em ruinas. Ao de-
frontar uma casinha de gelosias abertas,
mergulhei o olhar indiscreto nas paredes
interiores, onde me pareceu divisar tlas
antigas- magnificas talvez - esquecidas
alli, ou, melhor, poupadas profanao de
algum adlo pela providencia bemfazeja
de uma lembrana querida que ellas re-
presentassem.
Nesta nossa terra, onde as tradies to
depressa se apagam, to cedo se esquecem
as velhas usanas, - o encontro, muito
raro, de algum objecto antigo tem sempre
para mim alguma cousa de delicado e
commovente. Moveis ou tlas, papeis ou

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116 A VELHINHA

vestuarios-na sua physionomia esmaecida,


no seu todo de d - elles me falam ao
sentimento como uma musica longnqua e
maviosa, onde se contam longas historias
de amor, ou se referem dramas pungentes
de no sabidas lutas e miserias.
O esprito se compraz, ento, no tecer uma
trama de romance ou de tragedia, em que
cada um dos velhos objectos vive na vida
de mil personagens evocados ; uma longa
estrada, sinuosa e branca, se rasga para
o paiz do sonho, e a alma, seguindo-a,
deixa embalar-se, como Leilah, ao som de
guslas, ou plangente harmonia das bal-
ladas.
O certo que, ao perscrutar as paredes
escuras de uma pobre salinha, pela janella
aberta sobre a rua, no s tlas descolo-
ridas, como um antigo cravo, primoroso na
fabrica, incrustado de bronze e ornado de
finos lavores de talha na madeira negra -
me prenderam de todo a atteno.
- Restos de uma grandeza extincta ! que
triste fadario vos impelliu ao casebre mes-
quinho de quem, por certo, vos no co-
nhece a historia nem o valor> Cravo cente-
nario ! que languida aafata ou melindrosa

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A VELHINHA 117

sinh-moa esflorou o marfim de teu teclado


desfiando o rhythmo grave de uma dana
solarenga, ou, a furto, a denguice feiticeira
de um fado villo ?
Isto pensando, aderguei a uma pequena
porta ao lado, cuja aldraba a mo ergueu
involuntariamente. Neste ponto, o sonho
comeado interrompeu-se e eu, descon-
certado, verifiquei a indiscreo daquelle
passo. Nova reflexo succedeu a esta:
um pouco daquelle fatalismo a que o gran-
de Loyola entregou a soluo do primeiro
problema de sua vida de peccador j re-
dempto e de seareiro de Deus no grande
agro do mundo.- Ora, se c vieram ter
meus passos, no ser sem alguma funda
causa ignota. Entremos.
Bati algum tempo e, no acudindo al-
guem de dentro, entrei sem mais cerl
monia. Puz-me a examinar um quadro a
oleo com uma velha moldura de madeira
envernisada; representava dom Joo V
quando infante, na posio e na edade.
Era uma criana loura, de rosto vivo, ves-
tida de camisola de seda branca com uma
larga faixa azul ; tinha na mo esquerda,
a modo de menino Deus, um orbe, e, na

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118 A VELHINHA

direita, um sceptro de marfim. A um lado,


sobre uma grande almofada de velludo cr
de granada, fulgia o escudo d'armas dos
Braganas.
Passei ao cravo e admirei a perfeio do
puro estylo Luiz XV, artificioso, arrebi-
cado, mesureiro, revelando no bem acabado
da minucia, no trabalhado do pormenor,
as mil regras da etiqueta do tempo.
Na grande taboa inteiria do fundo, sob o
teclado, avultava um bello corpo de Bac-
cho, coroado de pampanos, trazendo nas
costas, em frma de manto regio, uma
grande pelle de tigre. Aos cantos, anjinhos
anafados, com cintos de rosas cahindo-lhes
nos quadris rolios, abraavam os fustes
de columnazinhas e tocavam com os pol-
legares estendidos as folhas do acantho,
como se esforando por colhei-as.
Um leve ruido fez-me voltar o rosto e
ver, ento, emmoldurada pelas hombreiras
da porta, ao fundo, uma extranha figura de
mulher, vestida de algodo muito branco,
com o torso pendido a uma dr intensa,
sopitada a custo, e a physionomia can-
ada, emmurchecida, repuxada de ru-
gas, onde mal se advinhavam os olhos

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A VELHINHA 119

sem brilho, quasi inexpressivos, a no


ser um qu muito fugaz de carinho, que
nelles boiava ainda como uma flr despren-
dida da haste e j quasi fenecida, flu-
ctuando na supedicie de um lago dormente.
Meio admirado, meio constrangido,. por
ter penetrado, sem mais nem menos, na-
quella casa desconhecida, dirigi-me para
a mulher e balbuciei :
- Perdoe-me a confiana. Tinha andado
muito pela cidade e estava com uma
sde Bati; no vendo gente, entrei assim
mesmo. Perdoa-me a confiana, no ?
- Sente-se, nhonh ; vou buscar a
agua - disse-me ella com voz trmula,
e sahiu, querendo fazer-se pressurosa, ar-
rastando pelo cho as chinellas de couro.
Ao voltar sobre os passos para entrar no
interior da casa, pareceu abafar um gemi-
do.. . E l foi, apoiando-se s paredes do
corredor, sempre curvada, premida sem-
pre por uma dr que seus labios no di-
ziam, mas seu aspecto nos contava de
modo a fazer pena.
Sentei-me num catre grosseiro, mesqui-
nho, cujo assento era um tecido de couro
cr, destoando do cravo, to elegante, to

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120 A VELHINHA

aristocratico, que at evocava requintes de


luxo e de galanteria numa crte j morta.
A mulher demorou-se um pouco, po-
lindo, talvez, o crystal de um velho copo
ha longo tempo fra do uso.
Quando voltou, corri ao seu encontro, por
evitar-lhe alguns passos mais, e, emquanto
bebia, demorei a vista sobre aquelles res-
tos venerandos de uma -quem o sabe? -
talvez extincta belleza.
-Agradou-lhe aquillo? perguntou-me,
apontando para o cravo. Foi da casa de
meu sinh,
- Mas que dos filhos ou dos netos
de seu sinh? Elles no quizeram ficar
com isso?
- Elle no deixou filhos- accrescentou
a velha com voz sumida.
- Ah ! no deixou filhos ...
Ella abanou a cabea e ficou alguns mo-
mentos de olhos abertos, vagos, vagos . ..
Eu, fingindo no perceber sua commo-
o, levantei a cabea: deparou-se-me,
ento, dependurado num torno de ma-
deira, um chapo de homem.
- Mas a senhora tem um filho, no ?
Seu filho faz-lhe companhia, no assim,

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A VELHINHA 121

minha tia? Est trabalhando fra com


certeza.
Do tamborete de couro onde se tinha
sentado, a velha surprehendeu-me o olhar;
levantou os olhos tambem, mas baixou-os .
logo, escondendo o rosto nas mos.
Esteve assim muito tempo . . . Depois,
como que continuando um periodo j co-
meado, disse:
- Coitado 1 assim desamparado ... nin-
guem sabe! ... Nem o consolo de um lo-
gar bento .. .
-Como!?
Ella fez-me um gesto, e por elle compre-
hendi que seu filho era louco. Depois,
quasi por monosyllabos, me fez compre-
hender que o desventurado, sua unica ale-
gria, apesar de enfermo da mais triste das
enfermidades, - desapparecera de casa ha-
via mais de dez annos, sem que se soubesse
at ento de seu destino. Era crena de
todos que fra arrastado pela corrente do
rio ou tragado por algum boqueiro da
serra. - E acabou-se tudo! -accrescen-
tou. e Nem mais esperana, nem nadai
Depois, apanhou a barra da saia e nella
tentou afogar o pranto.
122 A VELHINHA

- Que pagina sentida escrevestes, in-


terpretes do corao humano, que da mais
do que a s vista desse velho pergaminho
mudo, engelhado no rosto da velhinha !
Essa dr infinda e resignada, essa dr des-
amparada e humilde naquelle despojo hu-
mano, mais dolorosa do que a do mytho
immortal de Prometheu.
Tomei insensivelmente uma das mos
da velhinha e beijei-a como a de uma me
venerada.
O cravo ancio e o quadro do rei infante,
representando as passadas grandezas, di-
ziam como, atravs dos seculos, vencen-
do-os, sobrepujando suas glorias,-alguma
cousa innominavel, mas sempiterna, pde
encontrar-se occulta na prece de um mi-
sero, ou no corao de uma velhinha.
Cheguei a saber ento qual a causa ignota
que me guira os passos inconscientes
pobre casa de gelosias abertas.
E - no me envergonho de contalo -
sahi daquella casa com os olhos marejados
de lagrimas.

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A FUGA
FRAGMENTO DE UM CONTO HISTORICO

cA cAurelio Pires .
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estradas barrentas, no meio dos
~ :Lu~idos do temporal desfeito, quando
a ventania disparava pelos campos
em arranco de boiada, e, topando o capoo
alm, constringia-o na medonha luta, ou-
via-se, ao esmorecer das vozes do trovo,
um tilintar de correntes, cadenciado, rhy-
thmico, acompanhando o estrupido de pas-
sos fortes.
O viandante tresmalhado, ou o vaqueiro
que se recolhia a deshoras, ebrio, das de-
licias do batuque, fugiria apavorado, jul-
gando ver no som das correntes arrastadas
a penitencia de alguma alma penada, -
quem sabe se a do pobre Tristozinho,
espancado ha tempos, brutalmente, alli
mesmo, beira do rio, quando de volta da

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12 A FUGA

casa de Paquinha, procurava desamarrar a


cana para a travessia ?
O tilintar das correntes, cadenciado,
rhythmico, fugia, a pouco e pouco, pela
estrada afra, abafado a espaos pelo gl:
gl das enxurradas, que, sopitadas nos cal-
deires do caminho, estancavam, reunindo
foras para se derramarem depois impe-
tuosas, assoberbantes, pelos sulcos dos
carros de bois at ao longe, ao grande rio.
Dous condemnados da Extraco, escra-
vos renos, confiscados a seus donos pela
Real Fazenda, aproveitando-se da tempes-
tade, fugiam da rancharia, junto de uma
gupiara beira do corrego, onde eram obri-
gados a trabalhar para El-Rei, como gals,
no servio da minerao de diamantes.
Percebida a fuga, foi dado o alarma,
pouco depois, ao som rouco de corneas
buzinas, e a fora de drages avanou
confusamente, dando descargas para aqui,
para acol; mas recuou logo, pela impro-
ficuidade da perseguio nessa noite tor-
mentosa.
Os dous fugitivos porfiavam por metter
aos sabujos grande espao em meio.
- No aguento mais, Isidoro!

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A FUGA 127

- Agarra-te a meu hombro e vamo-nos


embora. Olha que os fulares no tardam.
- Valha-me, Senhora da Abbadia !
- No esmoreas, Bento. Estou te des-
conhecendo. No pareces o mesmo cabra
que aquelle dia tirou a scisma do macho
ruo, no terreiro da Cacimba.
- De-me tanto o peito, que me responde
c nas costas. E que descarga damnada !
Os judeus me metteram uns dous balasios
aqui no brao e na perna. Foi Deus que
no os deixou acertar em logar mortal.
Por cima de tudo, a pontada, esse demo-
nio de pontada perto da maminha, desta
banda . . .
A marcha dos fugitivos enfraquecia. J
no era o mesmo pisar forte, seguido do
ranger dos grilhes.
Abeiravam, ento, o Jequitinhonha, cuja
presena era indicada pelo estuar das aguas
em plena cheia. Ouviam j o som caver-
noso do rio, rolando formidavelmente, no
meio dos ribombos causados pelas grandes
arvores, arrancadas a custo pela furia da
corrente, precipitando-se no abysmo das
aguas com gritos despedaados dos ramos
e raizes.
128 A FUGA

Dentro do capoo, denunciado aos tredos


c:iminhantes por um grau mais intenso de
sombra, tomaram folego, pavidos, baixando
instinctivamente a cabea com a sensao
da grande massa negra, informe, que lhes
pairava em cima. No pandemonio de sons
e movimentos que se adivinhavam no bojo
da atra escuridade, presentiam lutas su-
premas de troncos contra os estires da
borrasca, inundaes de ninhos, dramas
tragicos de animaes silvestres mortos pela
quda dos galhos e outros arrastados pelas
enxurradas; uivos entrecortados de onas
abrigadas nas lapas alcanadas pelas aguas,
junto aos filhotes ainda aquecidos pelo
calor materno; berros de sucurys desper-
tando do somno costumeiro com as notas
vibrantes e sonoras da tempestade.
Isidoro carregava j seu companheiro,
arcando ao peso, roncando de esforo a
cada passo, incocto, titubiante, no meio da
estrada.
O vaqueano sentiu perto o rio e, nortean-
do-se ao clarear dos relampagos, entrou
esquerda, por uma trilha de anta, que con-
duzia a uma grande rocha beira d'agua,
seu pesqueiro habitual em outros tempos.

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A FUGA 129

Acocorou-se ahi com o pobre do compa-


nheiro, que nem falava mais. Suspirando
longamente, quedou-se, resignado, es-
pera da madrugada.

Serenou a tormenta.
E, j na meia claridade da ante-manh,
uma sensao subita de frio principiou de
invadir os miseros. Era a grande massa
d'agua, farrusca, ameaadora, que grim-
pava a pedra, traioeiramente, como um
jacar que se arrasta, subtil e feroz, na
algidez repellente de sua pelle escamosa,
querendo pilhar a presa durante o somno.
Espessa camada de neblina cobria toda a
superficie do rio, montando, da flr das
aguas, pelas barranceiras acima, aos ramos
mais altos do matto frondejante. O tope do
arvoredo rasgava no alto o denso vo cin-
zento, que se esfarrapava, prendendo nas
pontas da galhada longas flammulas bran-
cas, arfando serenamente s auras matu-
tinas.
Os tons rxos do co iam cedendo a uma
colorao de ouro tenuissima, que se accu-
mulava ao longe, na barra do horizonte,
onde o rio, num prestito triumphal de
9 '

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130 A FUGA

pequenas ondas marulhosas, parecia per-


der-se no espao illimitado.
Longas fitas de ouro e purpura cairela-
vam o co na commissura do rio, sobre-
pondo-se parallelamente, at se afogarem
no plago de nimbus que refluia de onde
se arqueava o firmamento.
- Eh l! companheiro! Esperta e vamos
embora, batendo matto pela beira do rio.
Olha que enchente! Vigia: se ns cochi-
lamos mais um bocadinho, a agua nos
papava.
E, meio estarrecido da longa quietao
e do frio, Bento estremunhou, distendendo
os braos com gritos de dr das feridas.
- Assim, com esse inferno de corrente
pesada, eu quasi no me posso mexer -
disse Bento, batendo o queixo, apertando
no corpo o timo de baeta j meio enxuto.
Isidoro lembrou-se, ento, da lima finis-
sima que lhe dera, ha tempos, o Chico J ulic,
e de que se no pudera servir na precipi-
tao da fuga. Comeou a serrar vigorosa-
mente o annel de ao que rxeara o torno-
zelo de seu pobre companheiro. Depois,
prendendo num gancho de ferro pendente
do cinturo de sola toda a corrente, que

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A FUGA 131

lhe subiu do p pela perna acima, ex-


clamou:
- Vamos ganhar a estrada! E, suspen-
dendo o companheiro por baixo dos braos:
- Corpo duro 1 Ns j desnorteamos os
fulares, que andaram bestando pelo matto.
A chuva apagou os rastros, mas elles podem
andar farejando por ahi; eu deixo para limar
minha corrente na venda do Chico Julio .
Iam comear a marcha, quando estacaram
de chfre, estremecendo, com o estrepito
de um corpo que cabia pesadamente na
agua. Assumptaram algum tempo, mas ou-
viram logo outro ruido egual e, no longe,
duas ou tres capivaras que se precipitavam
no rio, assustadas com a presena de taes
franduleiros nos seus dominios.
Tranquillisados, partiram, numa farfa-
lhada de folhas molhadas e de taquaras
que se quebravam, assustando as jas,
fazendo os nhambs occultar as cabeci-
nhas no meio das folhas, levantando para
o ar o uropygio coberto de frouxeis.
Queriam atravessar o rio a nado, fra de
porto frequentado, onde podessem ser vis-
tos, mas a fraqueza de Bento fel-os hesitar
deante da impetuosidade da corrente.

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A FUGA

Encontrando, alfim, um espraiado, onde a


enchente, sem a constrico de barrancos,
podia pavonear suas foras, avassalando
pacificamente, sem tropeo, os descampados,
os fugitivos derribaram algumas piteiras,
j meio seccas, cujas hastes se erguiam,
ainda rectas e altaneiras, das touas em
redor, e, jungindo-as fortemente com cips
em grossos travesses de taquaruss, im-
provisaram uma jangada.
Isidoro encontrou, arrancada pela ven-
tania da vespera, uma folha de coqueiro,
cujo talo lhe serviu de remo.
- Encommenda a alma a Deus e vamos
embora. Tu no tens alguma orao contra
enchente? Esta jangada muito leve e nos
aguenta, mas no por muito tempo, por-
que a pita encharcando afunda sob o peso.
Segura bem, rapaz 1
Cavalgaram a jangada e fizeram-se ao
largo, demandando um portozinho na outra
margem, muito embaixo.
Bento acurvou o busto, azindo fortemente
a estiva.
Ao ganhar o fio da corrente, a jangada
foi fortemente impellida para baixo e Isi-
doro comeou a lutar a grandes remadas,

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A FUGA 133

para approximar-se da margem opposta.


Ento, jangada e tripolantes se confundi-
ram, se unificaram, semelhando, no movi-
mento que se lhes percebia, o dorso mos- .
queado de um suruby, retouando ao sabor
da correnteza.
Quasi no se lhe notava a marcha, mas
sentia-se que um esforo vivo e intelligente,
terrivel e heroico, lutava contra a fora es-
magadora da natureza omnipotente.
Conseguiram vingar o portozinho, que
era antes um bebedouro de animaes.
Sahindo d'agua, tiraram os chapos de
couro e puzeram as mos, levantando os
olhos aos cos, em profundo reconheci-
mento pela salvao ; j no temiam os
fulares, nem os tiros de renas.
A jangada que tinham abandonado l foi,
boiando sempre, topar uma grande arvore
esgalhada, fluctuando tambem. Outros
ramos se lhe foram juntar e mais uns res-
tos de macgas e garranchadas, que for-
maram um batel selvagem, todo franjado
de espumas pardas, no qual pousava s
vezes um martim-pescador, soltando gritos
estridentes, n'uma alacridade de victoria e
de fartura.
A FUGA

O sol illuminou, ainda baixo e frio, o


campo de batalha da vespera; beijou, r~ve
rente, numa caricia de vassallo humilde, a
face do rio, que pompeava seu poderio,
ostentando os despojos da lia com os
bosques marginaes e rolando sempre, no
meio de um como ave! triumphator ! da
natureza.
Do outr.o lado, lobrigavam-se ainda, pe-
queninas, amesquinhadas, as figuras dos
fugitivos.
Esses primeiros raios do sol no levante,
esbatendo suas cabeas, aquecendo seus
corpos meio entorpecidos e alquebrados de
soffrimento e de fadiga, pareciam ter uma
caricia de amor e piedade para os mise-
randos, um resplendor de victoria para os
lutadores.
Abril, de 94.

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O CONTRACTADOR
DOS DIAMANTES
EPISODIO DO SECULO XVIII
Fragmento

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RIA acceso o festim. Pompeava
Felisberto Caldeyra, na larga ge-
erosidade de fidalgo venturoso e
manirroto, a riqueza deslumbradora do
contracto que havia celebrado com a Real
Fazenda para a extraco dos diamantes,
dentro do territorio da Demarcao, nas
Minas Geraes.
A nobreza do Tijuco, nos sales da casa
do Contracto, galeava, fazendo refulgir,
intensa luz de centenas de bugias em aran-
delas de custoso lavor, o brilho fascinante
das sedas e da variegada pedraria.
Pairava ainda no ar, preguiosa ins-
pirao dos convivas, o cheiro estimulante
de condimentos e de iguarias, vindo das
salas interiores, onde se podera ouvir, ao

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..,
1

J
1)8 O CONTRACTADOR DOS DIAMANTES

1
tilintar dos copos entrebatendo-se, o gar-
galhar de dous ou tres gastronomos obsti-
nados, que lambiscavam ainda a um canto 1

da mesa, teimosos em disputarem sobre a


superioridade deste ou daquelle prato, de )
mais este ou aquelle vinho, quando j os
outros convivas se haviam espalhado pelos
sales, formando grupos aqui e acol,
bocejando alguns, falando animadamente.
outros, levipedes, de faces rubras, aos
1
stos de um xerez ancio, ou de um ma-
deira longo tempo sopitado em garrafas
]
poentas.
Para os fundos da casa, estrupidando no
cho duro das cozinhas, algazarreavam 1
pretos em continuo vai-vem, num leva-e- j
traz de pratos e bandeijas. I

Junto aos sales da frente, numa ante-


camara, musicos afinavam instrumentos;
e um conviva joven, sacudindo a cabea, 1
meneiando o corpo, marcava muito attento
uma valsa figurada, ancioso pela hora j
appetecida em que podesse cingir o corpo
airoso de Cotinha Caldeyra e, sorvendo-lhe :1
o perfume do cabello de cr alambreada,
'
da boquinha breve e vermelha, doudejar
pela sala, tendo fremitos de goso ao sentir j
'~
~.

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O CONTRACT ADOR DOS DIAMANTES 139

a presso macia daquelles seios peque-


ninos sobre a casaca de velludo degollada.
A pouco e pouco se enchiam os sales.
Attrahidos pela musica, onde sobre-
sahiam as notas graves de um fagote dul-
oroso, cortadas pelo som vibrante de um
cymbalo triangular, accorriam damas e ca-
valheiros; e as modorrentas matronas, em
quem a febre sybaria punha um peso nas
palpebras, alongavam os pescoos e agu-
avam os olhares curiosos.
D. Branca de Almeida Lara, mulher de
Felisberto Caldeyra, animava os convi-
dados, procurando organizar as contra-
danas.
- Senhor Luiz Camacho, auxilie-me
neste mistr. Vossa merc que chegou do
Reino, depois de viajar pela Europa, deve
trazer novidades aos tijuquenses.
- Sempre a seu servio, D. Branca.
A esbelta senhora percorreu a sala, pa-
rando acol, dirigindo uma amabilidade
a este, um cumprimento quella, sempre
grave e magestosa na cauda roagante de
seu vestido verde-claro, de frente cr de
rosa. Cingia-lhe o pescoo alvo e redondo
um rico afogador de pedraria, turvando a

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140 O CONTRACTADOR DOS DIAMANTES

vista, que subia um pouco para se abrigar


na caraminhola de seda branca, rematando
no cocar de plumas roscas e verdes, que
prendia delicada trama de ouro.
D'ahi a pouco, apresentava o salo um
aspecto de crte da poca.
Do tecto alto, oitavado, com frescos de
um dos artistas que a fama dos diamantes
attrahiu ao Tijuco, pendiam dous grandes
lustres de crystal, onde as velas de cr for-
mavam irisaes cambiantes. Aclaradas
pela fulgurao da luz, destacavamse no
tecto figuras mythologicas: a Aurora, toda
purpura, em aurea quadriga tirada por
corceis brancos pinoteando sobre nuvens;
Venus, semi-na, na concha que arras-
tavam sobre as ondas golfinhos ligeiros;
Orpheu puxando da flauta querulas en-
deixas, tal a expresso do rosto.
Felisberto Caldeyra entrou ao lado do
intendente.
A cabea do contractador alou-se e sua
figura erecta amesquinhou o corpo alque-
brado e doentio do Dr. Francisco Moreira
de Mattos. As cabeas empoadas de ambos
e os folhos brancos, de artificiosas rendas,
contrasta.ado com a severidade das casacas

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O CONTRACTADOR DOS DIAMANTES 141

de velludo verde-garrafa, punham em seus


rostos inteiramente barbeados uma bran-
cura de cra.
O contractador, sustendo a marcha para
percorrer com os olhos o salo, pousou de
leve a sinistra sobre o punho emperlado
do espadim.
O intendente tirou do bolso do longo
collete de setim, com botes de ouro, uma
boceta de rap, cuja tampa tinha um brazo
d'armas em relevo; colheu delicadamente,
com a pontinha do indicador e do pollegar,
uma pitada e, acurvando o busto, sorveu-a
ruidosamente.
- Vossa merc, senhor contractador,
sabe dar um tal realce a seus festins que
me lembra, mal comparando, o senhor rei
D. Joo V, que Deus guarde.
- So bondades de vossa senhoria,
senhor intendente. Pouco se pde fazer
nestas alturas; mas, com a ajuda de Deus,
vai-se remando. Que novas tem vossa se-
nhoria da frota do Reino ? Ando receioso
que pela ultima frota lhe cheguesuccessor.
Penso que Sua Magestade no quer privar
por mais tempo a Villa do Principe de seu
ouvidor. E quando me lembro de que, em

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142 O CONTRACTADOR DOS DIAMANTES

todo o tempo decorrido da morte do inten-


dente Moutoso, vossa senhoria tem sabido,
embora interinamente, honrar essa alta
magistratura com tanta clemencia, cordura
e zelo pelo real servio, temo pelo dia de
amanh ; cousa boa no dura.
- No me colhe de surpreza a nova,
qualquer que seja ; prestes estarei: sempre
- pola ley, polo rey.
Cortou-lhes o dialogo, entrementes, a
vozinha garrula de Cotinha, exclamando :
-Titio e o senhor intendente ho de
danar o menuete 1
- 11 To achacado que sou, menina I

tossiu o Dr. Francisco Moreira. Seja tudo


pelo amor de Deus t
- << e das moas, accrescentou Coti
nha. Ora, vamos l, senhor intendente;
V. S. teve seu tempo no reino, c nos che-
gou a fama E o titio que tire a sombra
que lhe afeia o rosto disse, voltando-se
para Felisberto.
E correu, a graciosa rapariga, atraves-
sando a sala, onde os saltos vermelhos, en
trevistos no colher o vestido, mal tocaram.
Pouco depois, mesurada e gentilmente,
com o brao erguido em ligeiro ademane,

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O CONTRACTADOR DOS DIAMANTES 143

danava o menuete. Na trunfa alta, rebri-


lhava aos lustres, ao pleno accesos, um
como toucado de perolas com delicado ar-
tificio de ouro. O justilho de nobreza, des-
arrugado, cingia-lhe estreitamente a cinta,
inflando-lhe o busto ; em grossas pregas
arqueadas cabia-lhe dos quadris a sobre-
saia de chamalote claro, dando um tom
suavssimo ao azul do vestido.
O enthusiasmo foi ganhando os sales.
D'aqui e d'acol fugia um bravo do peito de
um cavalheiro ao gracil movimento de sua
dama. Ringiam as sedas, tremulavam as
scintillas das gemmas, retiniam bainhas de
espadins na contradana; de envolta com
perfumes de aguila e benjoim, evolava-se a
poeira subtil e, com ella, um cheiro huma-
no, que aguava os sentidos. Apertavam-se
pontinhas de dedos, e palavras de amor,
entrecortadas, sussurrantes, murmuravam
os namorados, que a marca da dana ap-
proximava uns dos outros.
Uma nuvem, porm, negrejava ao longe.
O semblante de Felisberto contrahia-se s
vezes; errou a contradana e jogou ao dis-
parate nas respostas a seus interlocuto
res. Uma dama chegou a corar porque o

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144 O CONTRACTADOR DOS DIAMANTES

contractador pareceu fitar longo tempo sua


gargantilha de ouro e as bellas arrecadas
pendentes das orelhas, sob os canudos
sobrepostos do cabeilo frisado ns fontes.
A crte... el-rei. . . o general. . . E mais
o insuccesso de seu irmo Joaquim Cal-
deyra na minerao do rio Claro 1 Presen-
timentos ... presentimentos..
E emquanto nessa noite de 1 de setembro
de 1751,anniversario de D. Branca de Lara,
a nobreza e o povo do Tijuco - cabea do
famoso e grande districto diamantino -
aqueIIa nos sales, este pelas ruas do sum-
ptuoso arraial, celebravam a ventura do
Caldeyra opulento, do mineiro atrevido
que trouxera a abastana ao Tijuco, que
levra o consolo a muita lagrima e cuja
mo pesada cahira impiedosa sobre muitos
maleficios-o contractador pensava na frota
a chegar, nas ordens que trazia; e o ouro,
os diamantes, os amigos, a familia, a patria,
turvavam-se, immergiam no negror de um
sonho mu, feral appario desse mor-
cgo temeroso, que em longos surtos, de
grandes azas espalmadas, se entrepunha a
Caldeyra e luz de sua at ento boa es-
trella.

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O CONTRACTADOR DOS DIAMANTES 145

Ouviu-se de repente um borborinho no


salo. Senhoras e cavalheiros abriam es-
pao a um espectaculo delicioso, pouco
visto na poca. Os canaps arqueados, com
figuras de anjinhos talhadas na madeira
do recosto e garras de drago nos ps, es-
talaram ao peso das damas que se sen-
tavam, roando a sda dos vestidos no
damasco amarello do movei. As cadeiras
de grande espaldar foram arrastadas para
junto das paredes. Cotinha e Luiz Ca-
macho, o joven conviva de que se falou no
principio, gyravam numa valsa, dana to
amada depois por Goethe, que Camacho
apprendera em sua viagem Allemanha. E
quando j canados, rubros e victoriosos,
descabiam num canap ao lado, vozes gri-
taram - muito bem! - e D. Pulcheria
Dias, velha brejeirona, pegava na ponta
dos dedos de Cotinha, pedindo-lhe s, um
bocadinho s, da sarabanda, que descan-
aria depois .
- Ora! Pede josephina, que sabe
tambem!
- Que isso, Cotinha? Que tem dan -
ares um bocadinho, s para vermos? De-
pois que daqui sahiu Diego Suarez, que
10

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146 O CONTRACTADOR DOS DIAMANTES

nol-a ensinou, eu nunca mais a dancei,


exclamou Josephina. A sarabanda, mestre
Vicente! gritou ella ao mestre Cla musica.
E compassadamente, em lentos bambo-
leios, ao som de castanholas, Cotinha des-
lisou, levantando-se nas pontas dos ps e
pousando de leve sobre os saltos, no meio
da faiscao das luzes, arfando o seio
tenro, entreabrindo, no resfolegar, as pe-
talas sanguneas da bocca.
Ao longe, numa sala de dentro, fervia
um fandango ao som de chiquechiques.
Um novato tocava sstros e um rapazola
moreno, da terra, requebrando o corpo,
cantava viola - o estribilho - mulata,
seu bem sou eu 1

Dentre a multido que se acotovellava


na frente da casa do Contracto, ponteando
de negro a rea illuminada, emergiu um
vulto, que se encaminhou para a portaria,
branquejando-lhe no trage mal distincto o
boldri dos drages d'el-rci.
- Da parte de S. Ex. o general, bra-
dou elle .
Dous ou tres negros, de libr agaloada
de prata e sapatos amarellos com fivelas

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O CONTRACTADOR DOS DIAMANTES 147

de chrysolithas, acudiram ao brado e rece-


beram o papel que devia ser entregue ao
Dr. Ouvidor intendente.
Resmungava o Dr. Francisco Moreira,
fungando e gemendo do esforo que fizera
em danar o menuete de etiqueta, quando
lhe trouxeram s mos, discretamente, o
officio. Recolheu-se logo ao escriptorio do
contractador, a quem puxou pela aba da
casaca, avisando do occorrido.
Cotinha, desconfiando, correu das salas
e, tendo l deixado D. Branca, collou o
ouvido fechadura da porta do gabinete,
trancada por dentro.
O contractador discutia irritaclo. A com-
municao noticiava a chegada do conde
de Bobadella Villa do Principe e sua
proxima entrada no Tijuco. Estava ache-
gar o novo intendente Sebastio de An-
drade Castro e Lanes. Urgia o tempo.
O conde-governador e capitogeneraldevia
fazer sua entrada d'ahi a dous dias. A com-
municao inclua uma lista enorme de
denunciados, que deviam ser logo presos,
alguns dos quaes eram condemnados ao
extermnio do territorio da demarcao,
como traficantes, outros ao confisco dos

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148 O CONTHACTADOR DOS DIAMANTES

bens, por defraudadores da Real Fazenda,


como contrabandistas de diamantes.
Luiz Camacho seria exterminado como
traficante. por no ter tido prvia licena
escripta de entrar no territorio e no ter
occupao certa. O marido de D. Pul-
cheria Dias teria seus bens confiscados
como contrabandista.
- Isso no se ha de darl bradava Felis-
berto ao intendente amedrontado. Seria a
vil ta destes povos. Denuncias cobardes! Es-
poliaes iniquas ! Pois se eu, tendo direito
de requerer o confisco dos contrabandistas
em meu proveito, denunciando-os ao inten-
dente, nada requeri a vossa senhoria?! ...
No 1 Tenho os povos da Demarcao a
meu lado. Provarei ao conde de Bobadella.
- Entretanto, senhor contractador, terei
de fazer as prises. At aqui tenho ouvidos
amoucos s oppresses, aos bandos rigo-
rosos e vexatorios. A propria portaria de
15 de outubro do anno passado, no a fiz
registrar. Com a chegada do conde gover-
nador, agora, nada mais se pde fazer; no
mais protelaes.
E continuaram...:. o intendente acobar-
dado, tmido, deante da proxima chegada

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O CONTRACTADOR DOS DIAMANTES r49

do general, na imminencia das minuciosas


devassas, das prises, do tronco, do exter-
mnio ; o contractador, chamejando-lhe os
olhos ascuas de ira, mostrava-se disposto
a resistir s vexaes dos povos.
Fra, no salo mais proximo, D. Pul-
cheria Dias, levada pelo arrastamento
da festa, dava grandes risadas, ouvindo
de uma dama bisbilhoteira anecdotas e
aventuras picarescas de certa senhora, de
quem j se falava bocca pequena.
Luiz Camacho, de p no meio do salo,
ostentava, em movimento vaidoso, sua mus-
culosa perna esquerda em ligeira flexo;
e a meia de seda perola, as ricas fivelas, o
broslado de ouro da golla de sua casaca
davam um tom aulico s narrativas que
fazia roda attenta de moas curiosas das
cousas do Reino, dos costumes e modas de
ultramar.
Cotinha, junto porta interior do ga-
binete, estremecia s palavras do contra-
ctador e do intendente; no seu corpo ner-
voso passava uma crispao de raiva. Cha-
mou pelo tio, a principio baixinho, depois
num crescendo imperioso.
O contractador abriu-lhe a porta, e o
150 O CONTRACTADOR DOS DIAMANTES

intendente, todo constrangido e formali-


sado, procurou disfarar a estranheza que
lhe causava a impertinencia da moa em
querer desvendar segredos de Estado.
- Senhor intendente, minha sobrinha
um homem. Meu irmo e socio, que a esta
hora cura em Goyaz dos negocios do Con-
tracto, pde perfeitamente ter, por bocca
de sua filha mais velha, um voto ou um
parecer nas nossas graves resolues. >
A moa, meio pallida, de brao direito es-
tendido, apoiava-se nas pontas dos dedos
secretria de cabina, com gavetas de
segredos. Do intendente s apparecia, na
cadeira escura de couro de Cordova, com
uma aguia bicpite talhada na comprida
espalda, sua cabelleira branca, sombreando
arrugada fronte descabida.
- Ento? ficam todos calados, porque o
senhor intendente me toma por menina,
cabecinha de vento? Ouvi tudo e nada me
surprehende; estamos, os da familia, ha-
bituados a lutar e a vencer.
-A senhora sua sobrinha, senhor con-
tractador, talvez das longas praticas com
Luiz Camacho, ande imbuida das idas
hereticas de um tal Voltaire, da crte de

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O CONTRACTADOR DOS DIAMANTES 151

Frana. E' menina nova, de imaginao


ardente. Cuidado! A rca e o fuso so
talvez remedio.
- Engana-se, mui senhor meu. Ella
assistiu, ainda criana, luta que, com
meus tres irmos Conrado, Sebastio e
Joaquim, sustentei em Goyaz contra a pre-
potencia e o arbtrio dos exactores regios.
E saiba mais vossa senhoria que quem
herda no furta.
A's palavras do intendente, Cotinha sal-
tou como jandaia ferida, prompta a usar
das garras.
- Meu tio ha de se oppr clamo-
rosa injustia do general, acontea o que
acontecer. No queremos isso! No que-
remos!
E o contractador, com o olhar cheio de
brandura e carinho para esse rebento de
promettedora florao familia Caldeyra;
com esse olhar cheio de meiguice, onde se
divisava, emtanto, a chamma da energia
viril, da vontade tenaz, disse sobrinha
brandamente:
- Deixa estar. Nossos amigos nada
soffrero. Um dia, talvez no esteja muito
longe, os filhos da colonia opprimida

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152 O CONTRACT ADOR DOS DIAMANTES

ho de ter seus ministros e seus ge-


neraes.
Cotinha, inflammada com essa aspirao
de independencia, expressa a meio pelo
contractador, arrancou da cabea, num
gesto atrevido, as perolas da coifa, a gar-
gantilha que afogava seu pescoo de mar-
more e, arrojando-as aos ps do inten-
dente, clamou :
- e Eis o que quer el-rei, eis o que
querem a crte e o general : o ouro e
o diamante destas terras, as riquezas
destes povos. Tomem 1 Carreguem 1 A
influencia dos Caldeyras inspira receios
conservao da Colonia; seus grandes
cabedaes despertam cubia e inveja. Mas
deixem-se estar os Srs. ministros d'el-rei 1
Com os Caldeyras ho de se avir!
E, soluando convulsamente, murmu-
rava phrases entrecortadas :
- Espoliadores! .. malvados! ... Trafi-
cante, Luiz Camacho l ? com certeza a filha
de algum valido d'el-rei usou desse meio
para vingar-se do desprezo que lhe votou
Luiz ... temem que tome esposa na co-
lonia .. E de faces rubras, molhadas do
pranto, amarrotando o vestido, torcendo

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O CONTRACTADOR DOS DIAMANTES I')J

nas mos pequenas a cambraia delica-


dissima do leno, continuava chorando :
- Papae me falou muita vez nas mu-
lheres de Piratininga, no querendo re-
ceber seus maridos, seus filhos ou seus
noivos, emquanto estivesse inulta a af-
fronta que receberam dos emboabas. O ge-
neral ha de vr 1 Sentarei roca, sim,
senhor intendente, fiarei para me vestir
at cobrarmos foras para expellir daqui
esses judeus, com o favor de Nossa Se-
nhora!
Nisto, o velho intendente, exploso da
dr nessa menina varonil, nesse esprito
altivo, um pouco amollecido talvez com o
amor que o queria avassallar, deixou o
gabinete do contractador, dizendo:
- No vo estranhar nossa ausencia
nos sales, sr. contractador.
Felisberto acompanhou-o, cerrando a
porta sobre Cotinha.
Depois, chamou de parte o gerente das
minas e disse-lhe que se fizesse prestes a
seguir para as gupiaras; puzesse toda a
gente que trabalhava prompta para o que
dsse e viesse.
- Ho de se avir commigo 1murmurou

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J
1

154 O CONTRACTADOR DOS DIAMANTES

entre dentes. E voltando-se para o gerente,


recommendou:
-Bocca calada e toda a precauo, para
no despertar suspeitas. Falaremos depois
que aqui no lagar proprio.
- e Quem sabe, disse de si para si, se te-

remos a reproduco do levante das Casas


de Fundio? Os drages d'el-rei no me
amedrontam.
Na sala, soava o fagote um trecho de im-
pressionadora melodia. A sociedade do
Tijuco folgava. Que lhe importava a che-
gada subitanea de um drago, com um
officio para o intendente? Havia no Tijuco
toda uma companhia desses soldados.
Tratava-se, com certeza, de alguma nova
faanha dos garimpeiros contra as tropas
reaes.
Felisberto Caldeyra atravessou a sala
com um semblante sereno, no meio da turba
de cavalheiros e de damas. Parece at que
dirigiu um gracejo a um velho amigo da
1
familia, batendo-lhe com a mo no hombro.
Ao passar junto de uma saccada, olhou
para fra, distrahido.
No horisonte, um violeta esmaiado, com
J
velilhos de nuvens brancacentas, fazia

.;
.1
J
O CONTRACT ADOR DOS DIAMANTES 15 5

fundo ao resplendor de Vesper. As vozes


dos pares, na contradana, casavam-se no
ar em cro alegre e brando.
O contractador scismava... . Longe,
muito longe, como que do seio da estrella
do Pastor, parecia palpitar uma aza branca,
acenando-lhe com a libertao de sua terra.
Seu rosto contrahiu-se, avincou-se-lhe a
fronte, e a mo direita, pesada e energica,
apertou, num movimento involuntario, o
punho do espadim. Arqueou o brao,
ergueu a cabea ameaadora e lanou um
soberbo olhar de desafio a inimigos impal-
paveis, que pareciam avanar na sombra .
Nesse momento, um listro vermelho,
na banda do levante, esgarando o co e
afugentando um rebanho de nuvensinhas
brancas, pz-lhe na cabea um relevo de
batalhador de outras ras - cavalleiro es-
forado e rostido do sol das pelejas.
E sonhou, um instante, que, frente de
soldados, pugnava pela emancipao da
colonia e libertao da patria.

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JOAQUIM MIRONGA
TYPO DO SERTO

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L estava querendo sumir, quando
encostei a porteira. Pulei da sella
amarrei no moiro o ruo pedrez
- bicho malcriado, reparador, mas de esp-
rito. No lombo desse pago eu comia doze
leguas, de uma assentada. Olhei a frente da
casa, puz a mira no alpendre e no vi nin-
guem.- Uai, Joaquim, ahi tem cousa! -
Entrei bem subtil, reparando d'uma banda
e outra.
Patro velho, na hora em que eu estava
arreiando o pedrez, tinha chegado perto
de mim, dizendo: -Olha l, Mironga, no
me vs sahir um perrengue 1
- Perrengando , perrengando , meu
branco, eu entrei l dentro. Vossemec
ha de vr, com o favor de Deus.

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IO JOAQUIM MIRONGA

- Olha o caf, Joaquim, sem te cortar a


conversa-disse um caboclo meo, de cha-
po de couro e sugigla. E estendeu o
cuit fumarento, onde parecia ainda bor-
bulhar o liquido.
Na varanda da frente, a gente do retiro
estava reunida para ouvir o Joaquim. Era
tempo de vaquejada e todo o dia havia um
caso novo, uma chifrada de marruaz, uma
passagem bem feita com algum garrote
bravo. A varanda era comprida, defenden-
do-a do mu tempo a grande cimalha,
apoiada em columnas de madeira lavrada.
Presas a estas, duas ou tres rdes, tecidas
de sda de burity, embalavam o somno
da camaradagem, que ruminava o jantar
depois de um dia fadigoso, em que o gado
na verdade dra que fazer.
Demais, esse gado de beira rio Preto no
era caoada. E nesse dia, no cerrado do
Periquito, os vaqueiros toparam uma rez
alevantada, que fez o diabo.
Mas o Joaquim no era homem de ficar
quieto assim, de barriga para o ar, como
qualquer ti ao sol. Era preciso animar a
rapaziada na vespera de qualquer traba-
lho mais difficil.

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JOAQUIM MIRONGA 161

Para o dia seguinte, o patro tinha mar-


cado uma campeao no cerrado do Ga-
rapa, onde havia um cambabal de metter
medo. E as rezes velhacas sovertiam-se l
dentro, que s mesmo o capta podia com
ellas.
Quando ia ficando lusco-fusco, o povo
campeiro chegava para a banda de fra,
atiava o fogo e pegava a contar casos, a
passar em revista os successos da vida de
cada um.
Mironga, vaqueiro meio maduro, era
respeitado por sua justa fama e pelo con-
ceito de que gosava junto do patro.
- << Como ia dizendo, encostei a porteira
ao batente e entrei subtil.
pateoestava soturno. Nem viva alma.
Isso no tempo das guerras bravas da ra
de quarenta e dous. Patro velho andava
amoitado. Amoitado um modo de dizer,
porque elle dormia, l de vez em quando,
num rancho de palmito no meio do mato,
mas zanzava de uma banda para outra o
dia inteiro, sem perder de vista a casa do
retiro onde estava a familia. Eu no lhe
deixava a costella : vivia rente com elle
para o que dsse e viesse, porque, Deus
lI
162 JOAQUIM MIRONGA

louvado, nunca me desprezou, e ns da


familia servimos at morte a gente do
patro, isso desde meus velhos.
e Quando entraram l na cidade as for-
as do defunto coronel Joaquim Pimentel
para agarrarem os rebeldes, patro velho
teve aviso. Elle era homem de opinio e
no fugia assim com dous arrancos. E de-
mais disso, a patra estava chegadinha a
ter menino, esse pedao de moo que vo-
cs vem aqui hoje-S Nco.
Um dia, ns j tinhamos jantado na
fazenda e eu tinha descido para o quarto
dos arreios, quando, na estrada que vem
da Barra da Egua, olhando pelo caminho
afra, eu enxerguei uns cavalleiros che-
gando devagar, como quem no conhecia
bem o logar e desconfiava de alguma
cousa. Subi arriba e mostrei os cavalleiros
ao patro.
- Aquillo no seno escolta e para
prender vossemec.
Para que falei, meu Deus 1 foi uma
trabusana levada em casa. A patra tomou
um susto muito grande e desandou a cho-
rar; as mucamas tranavam pelos quartos,
correndo.

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JOAQUIM MIRONGA 163

Com pouca duvida, accenderam o crio


bento junto da imagem do menino Jesus e
a patra tirou reza, acompanhada das
mucamas e dos negrinhos. Patro velho
no sahiu do alpendre. Gritou pelos com-
panheiros e pela negrada.
- Hoje dia 1 - disse eu c commigo.
Tudo quanto era clavinote, trabucos e
bacamarte sahiu para fra. Qual, gente 1
nem eu gosto de lembrar desse tempo 1
11 S moo, S Juca, filho mais velho do
patro, ainda no tinha, a bem dizer, nem
buo de barba. Era espigadinho e animado.
Eu sei quanto me custava ter mo nesse
menino nos dias de vaquejada. No havia
garrote que elle no quizesse esperar na
ponta da vara, nem cavallo chucro de que
elle no quizesse tirar a nica. Ia j bei-
rando pelos dezeseis annos, mas no mos-
trava.
e Oh! meu S. Sebastio, advogado dos

afflictos ! quando me acde lembrana


essa ra amaldioada, sinto a modo de um
travo na boca.
Resfolegou forte o Mironga e, tirando
o cigarro da fita do chapo, bateu fogo,
puxando fumaa.
164 JOAQUIM MIRONGA

A camaradagem, mudando de posio e


concertando-se nos logares, murmurava :
- Esse Joaquim da pelle, da pelle do
diabo 1 Elle j tem visto cousas !
Vocs sabem, continuou o Joaquim,
que a frente da fazenda, alm dos muros
de pedra, tinha o cercado feito com to-
radas de madeira de lei. Aquella segu-
rana toda era por no deixar o gado
romper, quando investisse, na arrancada.
Valeunos Deus que era assim. Estivemos
engambellando a escolta um dia e metade
de uma noite, debaixo de fogo. A solda-
desca era toda de cavallaria, mas no era
gente curraleira e, por isso, no conhecia
nossas batidas. No foi custoso mitrar
quelles diabos. E esse rio Preto-bem eu
gsto delle! - foi a nossa salvao. Elle
passa nos fundos da fazenda, fechando
uma manga de ptros separados das eguas.
Anoitecemos e no amanhecemos na
fazenda. Com o escuro, ganhamos uma
trilha pela manga abaixo-eu, patro, pa-
tra, meninos, mucamas, toda a gente de
dentro; os campeiros e os negros ficaram
entretendo a soldadesca, rebentando as
pipocas toda a hora.

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JOAQUIM MJRONGA

Voc lembra, Pio, daquella cana em


que o patrosinho caou anta rio abaixo?
- Ora ! pois ento ! ?
- e Foi nella mesmo que estivemos pas-
sando o povo para a outra banda, eu no
varejo e Bazilio no remo. Quando che-
gmos do outro lado, adeus escoltai No
havia ponte, nem vu. Se elles quizessem
nos perseguir haviam de atravessar o rio
a nado, ou, quando no, rodear as cabe-
ceiras, porque as nossas canas ficaram
muito bem escondidas do outro lado .
Ganhmos, sem maior novidade, a bar-
ranca fronteira e pousmos num retiro da
outra banda, a duas leguas do rio.
- At elles passarem tambem, temos
tempo-dizia commigo.
S moo s Juca, desde a hora da sa-
bida, ficou meio esturdio, sempre de cara
fechada. Elle tinha teimado. muito com o
patro velho, querendo ficar. Dizia que
aquelles demonios de caramurs no ha-
viam de tomar conta da fazenda assim, com
dous tiros e meio. Mas o patro ficou brabo
com elle e no lhe tirou mais os olhos de
cima at passarmos o rio. O patro sabia
que o mocinho no era brinquedo e que,

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1
I JOAQUIM MIRONGA

se no lhe tivesse mo, era bem capaz de


voltar para a fazenda a puxar briga com
os caramurs da escolta. J
Arranchamos no retiro, e a familia toda 1
1
acommodou-se como Deus foi servido. O
patro estava acostumado a lidar sempre
e aproveitou o tempo para cuidar da cria-
o empastada naquella redondeza.
Nisto, as cousas principiaram a apertar.
A gente que tinha ficado do outro lado
do rio tomou conta da fazenda, depois de
uma resistencia grande. Quem poude fu-
gir, fugiu; o restante que no morreu na
briga ficou agarrado pela escolta. Os la-
dres do inferno j tinham carneado muita
rez boa da fazenda e acabado com a capa-
daria do chiqueiro. Essas cousas chegaram 1
ao conhecimento do patro e o fizeram
ficar irado. A patra ia tendo mo nelle
todo o dia, porque elle virava, mexia,
d'aqui p'r'alli, e falava sempre em acabar
1
com aquillo de uma vez, morrendo ou ,
1

dando uma lico quelles excommun-


gados.
Ha muita gente traioeira neste mundo,
como vocs sabem. Um desalmado desses,
que Nosso Senhor j chamou a si-Deus

1
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JOAQUIM MIRONGA 167

te perde !-deu denuncia do retiro onde


estava o patro. Com pouca duvida, ns
soubemos que na Tapra, a umas quatro
leguas do retiro, estava se ajuntando um
magote de caramurs para virem prender
o patro. Esses diabos tinham uma sde
na gente do patro, porque diziam que elle
fra o rebelde mais destemido destas bei-
radas.
Patro ficou dasatinado de raiva. Quiz
por toda lei dar caa aos caramurs, mas
a patra ficou de tal modo, que ns esta-
vamos vendo a hora em que ella cabia
para traz, morta. Por isso, o patro no
teve outro remedio seno ir tenteando,
como Deus ajudava. Vendo que ns era-
mos cercados de uma hora para outra e
que uma desgraa ia acontecer, elle me
chamou a um canto e disse :
-Joaquim, eu fiz teno de no cahir
nas unhas daquelles diabos e no ir parar
na cadeia. Mas as cousas esto muito
feias. Se no fosse a dona ... Olha: dis-
fara de qualquer geito e entra na Tapra,
assim como quem vai de passagem. As-
sumpta bem e apanha as tenes delles.
V quantos so, se esto bem armados ..

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168 JOAQUIM MIRONGA

Tu no s tolo e sabes bem o que eu quero.


Precisamos saber o que elles pretendem,
para ns podermos desmanchar a espar-
rella ..
- Vossemec me conhece, meu amo.
Fique socegado. Eu arranjo as cousas.
A conversa ficou ahi.
Commigo no se precisa de muita ex-
plicao.
1
Corri ao quarto e tirei minha capanga,
minha companheira velha. Puz dentro j
della polvora, chumbo grosso e uma bu-
cha de paulista. Num bolsinho de dentro,
guardei um pedao de fumo e palhas. -
'
Estou prompto -ia dizer, quando dei
com os olhos no Moyss, meu clavinote,
que dormia enferrujado no canto. Pareceu-
me que o pu de fogo falava - e tambem
quero ir,Joaquim. " - Eu lhe fiz a vontade.
e Areiei a arma bem areiadinha, limpei-
lhe os ouvidos, puz uma pedra nova em
baixo do co e carreguei-a. Alli por perto
havia um jambeiro com fructas; apanhei
uma e, depois de escorvar bem a arma,
joguei o jambo para o ar, l em cima,
metti a arma cara e fiz fogo : a fructa
espatifou-se toda.

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JOAQUIM MIRONGA 16g

-Est bom, s Joaquim, disse com-


migo, voc est meio turuna na pontaria 1
Isto que serve.
Amarrei o clavinote nos coldres da
sella, apertei bem o pedrez, corri os olhos
no peitoral e na retranca, passei por cima
da sella um pellego bom e apertei de novo
o pedrez com a sobre cinxa.
De arma de fogo eu no gosto muito,
mas minha vara de vaqueiro, minha vara
de derribar, peior do que uma azagaia,
essa eu no deixo ! Desembainhei o ferro
da ponta e dei uma chuada num portal.
O ferro estava firme e amollado.
Esse arranjo todo pouco durou.
Apalpei, por ultimo, meu rosario do
pescoo e pulei no lombo do pedrez.
- 't:ta, mundo ! Chegou a hora !
- S moo s Juca andava farejando
esse negocio e me atormentou muito para
eu contar a conversa que tive com o patro.
Rondou sempre por perto de ns, para ver
se apanhava qualquer cousa. O menino
mordia os beios, arrancava os cabellos,
esbravejava, fazia tudo para saber, porque
elle queria ter uma embarruada com os
caramurs. Eu nunca vi mocinho assim.
170 JOAQUIM MIRONGA

Uma cousa me dizia que esse menino


ia fazer alguma.- Hei de ir! hei de ir!-
falava elle, com os dentes cerrados, ba-
tendo com a mo direita fechada na palma
1
da mo esquerda. 1

-Hei de ir I '
- e Vossemec no vai nhonh, porque
meu amo no quer .
e Elle desconversou e sumiu. 1
1

Quando eu j estava longe, ouvi um


tropel de cavallo atrs de mim. Era s 1
moo que vinha num cavallinho castanho
carta, corredor que nem um veado. O
mocinho vinha debruado p'ra frente, de
'
redea bamba e o cavallo parecia que roava
a barriga no cho na corrida.
No eu sahir, s moo j tinha o cavallo
prompto, escondido. Ganhou o rasto e
bambeou as rdeas. No foi preciso mais
nada.
- Ora j se viu ! Virgem Nossa Se-
nhora, como que est para ser? 11
-No tem nada, Joaquim, vamos em-
bora. Eu te mostro que j sou duro.
C dentro, ocorao me pulou de ale-
gria, de ver a disposio do menino . '
Carreguei-o nestes braos e era a minha 1

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JOAQUIM MIRONGA 171

menina dos olhos. e Oral l se avenha! o


que ha de ser tem muita fora, pensei
eu; no tive culpa da vinda delle. Se elle
veiu, porque gosta devras deste mulato
velho.>
- Est bom, nhonh, vossemec agora
me ha de ouvir. Quando chegarmos Ta-
pra, quem entra primeiro sou eu. Vosse-
mec fica amoitado alli por perto. Se os
homens me prenderem ou me matarem,
vossemec percebe logo, porque isso no
demora. Ento, vossemec d de rdeas
p'ra trs e toca a bom tocar at chegar
casa, para avisar a meu amo.
- Has de ver que eu j sou duro, Joa-
quim. Vamos embora>.
e Com pouca duvida entramos em terra
da Tapra.
- Pde ter algum espia por ahi, meu
patrozinho. Vamos cortar pelo cerrado
afra e ganhar a estrada que vem da Boa-
Vista; enganamos os diabos, porque elles
ficam pensando que somos viandantes
sabidos do Vo.
Assim fizemos.
e Antes de confrontarmos com a fazenda
da Tapra, eu fiz s moo entrar num
1]2 JOAQUIM MIRONGA

capozinho de matto e ficar abi amoitado.


De l elle via a casa e o curral da frente.
e Entrei, como j contei, sem vr nin-
guem. Subi a escada e gritei :-0' de casa!
- Uma porta abriu-se e um caboclo de
beio rachado appareceu, respondendo :
- O' de fra ! Entra e vem tomar congo-
nha, que est no cuit -.
e Entrei e vi na sala de fra passante de
vinte pessoas; uns agachados, outros de p,
os homens estavam resmungando baixo.
Pelas paredes havia muita arma depen-
durada nos trnos. Os homens me repa-
raram de baixo p'ra cima, de cima p'ra
baixo, me estudando.
-e Ainda que mal pergunte, quem
voc, rapaz? disse com mu modo um su-
jeitinho bexigoso, com os cabellos j pin-
tando.
- e Eu sou Manoel Joo, para o servir.
Assisto no Vo, perto do arraial de Mor-
rinhos e vou buscar um sal cidade. Ve-
nho vindo escoteiro, mas o carro vem
atrs e deve chegar nestes dous dias.
- Voc no sabe que estamos em guer-
ra e que aqui no passa gente sem minha
licena?"

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JOAQUIM MIRONGA 173

-Mas, meu patro, manda quem pde.


No estou fra disso.
- e E se eu te segurar aqui ?
- < Pde que fique seguro ; mas hei de

porfiar por sahir e - quem porfia mata


caa.
e Eu fiquei activo, correndo os olhos nos
homens e chegando devagarinho para a
porta. J tinha na mente o jogo que havia
de fazer com aquelles diabos.
O homem esteve, esteve, esteve ....
Depois, encruzou as pernas em ri ba do
banco onde estava sentado e disse :
- e Tu sabes alguma cousa desses chi-

mangos por ahi ?


- e Meu patro, eu sou de longe; estou
muito fra disso. Tenho ouvido rosnar
uma cousa e outra, mas no ponho sentido
em falas e ditos do povo.
e Mal tinha acabado de dizer isso, quando
appareceu de repente na porta um fula ma-
gricella, por nome Anselmo. Esse desaver-
gonhado tinha trabalhado junto commigo
uns dias, numa arribada de gado, quando
eu fui levar uma boiada do patro Pra-
tinha. O diabo me encarou um bocado,
depois disse:
174 JOAQUIM MJRONGA

-e Aqui, joaquim? Voc j largou o 'l


sargento-mr (era meu patro)? Que diabo
de cousa traz voc c ? >
e No foi preciso mais nada. S Chico
Duarte, capito daquelles jagunos, gritou
logo: .'
!
- e Ento, maroto, tu querias me lograr,
eim ? Pga esse cabra ahi, minha gente !
e A cousa ferveu logo.
e Anselmo fez meno de me agarrar
num pulo.
1
e Eu tinha deixado meu clavinote amar-
~
rado nos coldres e a vara de ferro en-
costada l fra. Voei logo porta. Quando
Anselmo me quiz abotoar, juntei-o pelos
peitos e num empurro mandei-o parede.
Isso tudo foi assim-zs! Pulei pela escada
abaixo e ganhei a sella do pedrez. O ma-
tungo estremeceu debaixo dos arreios e,
bufando forte, largou na carreira. Cur-
vei-me sobre o pescoo do animal e gritei-
lhe ao ouvido- e upa, meu pedrez 1 salva
teu dono! Bichinho fiel ! A porteira no
era alta e elle voou por cima della, cahindo
do outro lado.
e Nisto, as pipocas rebentaram da frente
da casa. A noite ia fechando, e os homens,

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JOAQUIM MIRONGA 175

atirando das janellas e do alpendre meu


vulto que fugia, erraram fogo. Eu virei a
cara para traz e acenando-lhes com a mo,
gritei :-At logo, meu povo!
e Ahi, uma buzina tocou forte da banda
da casa, dando alrta. Os caramurs ti-
nham gente na tocaia, pela redondeza, vi-
giando; acudiram logo.
e A lua, na barra do co, alumiou um
vulto de cavalleiro que crescia para mim,
na carreira. E mais outro e outro.
" Um cavalleiro, cruzando na minha
frente, gritou :
- " Pra, ladro, que eu te fao comer
terra j 1,.
e Eu torci o cavallo, colhi a vara de fer-
ro e peguei o homem pela volta da p.
Elle deu um urro e escangotou. Seu ca-
vallo, desgovernado, correu p'r'uma banda.
No vi se o homem cahiu, mas gostou pouco
da chuada. Cheguei as esporas no vasio
do pedrez e joguei-o para a frente, dis-
parada. - Que de s moo ? que ser
delle? onde estar agora? - Topei um re-
domoinho de cavalleiros deante de mim.
Chegando mais perto, vi que eram s dous
que pelejavam e ouvi a voz de s moo

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176 JOAQUIM MIRONGA

s Juca, dizendo:- Cheguem, caramurs


do inferno 1,. Meu cavallo passou rente do
delle e eu piquei com o ferro a anca do
castanho carta, que extendeu por alli fra
com s moo, na horinha mesma em que
echoava um tiro de bacamarte.
<<No meio do tropel da corrida, me pare-
ceu ouvir perto de mim um gemidozinho.
Olhei para os lados e vi s moo empare-
lhado commigo.- No nada-pensei.
E corremos e corremos obra de meia
legua.
e Adeante, num escampado - ninguem
nos perseguia mais-eu olhava s moo e
reparava que s moo estava calado. No
extranhei muito ...
. e A lua subia, e pela beira dos capes, os
peixe-fritos cantavam . . .
e Mais adeante, na descida de um cor-
rego, eu voltei para s moo e disse em
tom de brinquedo :
- Esteve feia a cousa, eim ? Mas ns
no somos caoada de ninguem.
- E'11-disse elle co' a vozinha su-
mida.
e No subir um tpe, me pareceu que elle
esbarrou o cavallo.

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JOAQUIM MIRONGA

- e Que que vossemec tem?


- Nada.
- Ento, toque o animal.
" E fomos indo ...
" D'ahi a pouco,elleandava penso p'r'um
lado, meio envergado, como quem estava
curtindo uma dr muito grande.
Eu, achegando-me para elle, disse :
- Conta, meu sinhsinho, conta a seu
mulato velho o que vossemec est sen-
tindo.
Elle endireitou o corpo logo, respon-
dendo:
- Nada, Joaqujm. Eu no te disse que
era duro ?n
Fomos embora.
Com pouco, alcanou-nos um p de
vento bravo. As folhas e os gravetos do
cho subiam em revoada; nossos cavallos,
abicando as orelhas p'ra frente, levantaram
as cabeas e rincharam forte .
Tinhamos de dobrar um serrote por
uma ladeira esperta; no meio, um murun-
d fazia a trilha acotovellar para dar pas-
sagem aos cavalleiros. Quando o animal
de s moo torceu de repente, para voltear
o murund, eu vi s moo cambalear. Dei
12
JOAQUIM MIRONGA

um arranco e amparei-lhe o corpinho fran-


zino, puxando-o fra dos arreios e sentan-
do-o no cabeo de minha sella. O casta-
nho, solto, correu na frente.
< Quando s moo debruou sobre mim,
falou-me com uma voz que nunca mais
.i
'I
me sahiu dos ouvidos e me corta at hoje
1
o corao-< Est doendo, Joaquim!. .. >
Eu me apeguei com Senhora da Abbadia
do Muquem e bradei alto:
-Santo do co ! tem d de ns ! >>
S moo deu mais um gemidozinho,
muito fraco. Parecia um carneirinho novo,
sem mi, que vai querendo morrer por falta
de leite e de calor ...
Neste ponto, a voz do velho campeiro
tornou-se profunda como a das enxurradas 1

que tombam, gula abaixo, nos socaves ~I


da serra.
Nenhum campeiro mais recostado.
Todos, de p, apertavam-se ao redor do
Mironga, estendidos os pescoos, os sem-
blantes mal assombrados pintando-lhes os ~I
sentimentos da alma.
- Quando eu segurei s moo por baixo
dos braos para tirai-o da sella, senti as
mos molhadas. Apalpei e reconheci que
1

j
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JOAQUIM MIRONGA 179

no podia ser suor. Tirei fogo e vi minha


mo direita vermelha de sangue ! ..
Erecto no meio dos companheiros, o
capataz daquelles homens bravios tinha o
semblante demudado e a voz entrecortada
pelos offegos do largo peito hirsuto.
O fogareiro acceso avermelhava aquelles
rostos, que formavam circulo ao redor do
Mironga ; todos mudos, attentos, como os
guerreiros das tribus barbaras ouvindo ao
chefe valente as peripecias dolorosas da
peleja recem-ferida.
- Excommungados, malditos caramu-
rs 1 Ficaram satisfeitos os demonios e no
buliram mais com o patro ..
Fra, na orla do campo, os guars fa-
mintos uivavam dolentemente, do meio
da sombra.
O velho campeiro no falava mais.
A's interrogaes de tantos olhares, de
tantas boccas semi-abertas, Joaquim Mi-
ronga respondeu com estas ultimas pala
vras, apontando para o co recamado de
estrellas:
- L, naquelle campo azul, junto com os
anjos, pastorando o gado mido ...

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PEDRO BARQUEIRO
TYPO DO SERT O

cA Coelho Netto.

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LHE CONTO - dizia-me o Flor,


~ u~uasi ao chegarmos Cruz de
Pedra. Naquelle tempo eu era
franzinozinho, maneiro de corpo, ligeiro de
braos e de pernas. Meu patro era avalen-
toado, temido e tinha sempre em casa uns
vinte capangas, rapaziada de ponta de dedo.
Eu tinha uma meia legua, trochada de
ao, que era meu osso da correia. E, con-
certando o corpo no lombilho, soltou as
redeas mula ruana, que era boa estra-
deira. Inclinou-se para um lado, debru-
andose sobre a cxa, e apertou na unha
do pollegar o fogo do cigarro, puxando
uma baforada de fumo.
11 Estavamos, um dia, divertindo-nos com

os ponteados do Ado, viola. Eu estava


recostado sobre os pellegos do lombilho,

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184 PEDRO BARQUEIRO

estendidos no cho. A rapaziada toda em


roda. Pouco tnhamos que fazer e passa-
va-se o tempo assim.
Eis se no quano entra o patro, com
aquelles modos decididos, e, voltando-se
para um moo que o acompanhava, disse :
Para o Pedro Barqueiro bastam estes me-
ninos ! apontando-me e ao Paschoal com
o indicador; no preciso bulir nos meus
peitos largos. O Flor e o Paschoal do-me
contadocrioulo aqui, amarrado a sedenho.
Para que mentir, patrozinho? o corao
me pulou c dentro, e eu disse commigo -
estou na unha ! O Paschoal me olhou com
o rabo dos olhos. Parece que o patro nos
queria experimentar. Eramos os mais novos
dos camaradas, e nunca tnhamos servido
seno no campo, juntando a tropa espa-
lhada, pegando algum burro sumido. Eu
. tinha ouvido falar sempre no Pedro Bar-
queiro, que um dia apparecra na cidade
sem se saber quem era, nem donde vinha.
Cheguei uma vez a conhecei-o e falmo-
nos. Que boa pea, patrozinho ! Crioulo
retinto, alto, troncudo, pouco falante e des-
empenado. Cada tronco de brao que nem
um pedao de aroeira.

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PEDRO BARQUEIRO 185

Estou com elle deante dos olhos, com .


aquella roupa azuleja, tingida no Barro
Preto ; atravessado cinta um ferro com-
prido, afiado, alumiando sempre, maior que
um faco e menorzinho do que uma es-
pada.
Esse negro mettia medo de se ver, mas
era bonito. Olhava a gente assim com ar
de soberbo, de cima para baixo. Parecia ter
certeza de que, em chegando a encostar a
mo num cabra, o cabra era defunto. Nin-
guem bulia com elle, mas elle no mexia
com os outros. Vivia seu quieto, em seu
canto. Um dia, pegaram a dizer que elle era
negro fugido, escravo de um homem l
das bandas do Carinhanha. Chegou aos
ouvidos do patro esse boato. Para que
chegou, meu Deus 1 O patro no gostava
de ver negro, nem mulato de pra. Queria
que lhe tirassem o chapo e lhe tomassem
a benam.
D'ahi, ainda contavam muita valentia
do Barqueiro, nome que lhe puzeram por
ter vindo dos lados do rio S. Francisco.
Essas historias esquentavam mais o patro,
que eu estava vendo de uma hora para
outra extripado no meio da rua, porque

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186 PEDRO BARQUEIRO

era homem de chegar quando lhe fizessem


alguma.
Tanto eu como Paschoal tnhamos me-
do de que o patro topasse Pedro Bar-
queiro nas ruas da cidade.
Subiram de ponto esse nosso receio e
a ira do patro, quando se soube de uma
passagem do Pedro, num batuque, em
casa de Maria Nova, na rua da Abbadia.
Chegra uma precatoria da Pedra dos
Angicos e o juiz mandou prender a Pedro.
Deram crco casa onde elle estava na
noite do batuque. Ah l meu patrozinho !
o crioulo mostrou ahi que canella de ona
no assobio. No dizer que estivesse
muito armado, nem por isso: s tinha o tal
ferro, alumiando sempre; e com esse ferro
deu pancas.
Quando cercaram a casinha e lhe de-
ram voz de priso, o negro fechou a cara e
ficou feito um jacar de papo amarello.
Deu frente porta da rua e encostou-se a
uma parede. Maria Nova estava perto e
me disse que elle cochichou uma orao,
apertando nos dedos um bentinho, que
branquejava na pelle negra de sua peitaria
lustrosa.

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PEDRO BARQUEIRO

Chegaram a entrar a casa tres homens


da escolta, e todos tres ficaram estendidos.
Pedro tinha orao, e muito boa orao
contra arma de fogo, porque Jos Pequeno,
caboclinho atarracado, ao entrar, escanca-
rou no negro o pingulo de um clavinote
e fez fogo. Pedro Barqueiro caminhou
sobre elle na fumaa da polvora e, quando
clareou a sala, Jos Pequeno estava escor-
nado no cho como um boi sangrado.
Dous rapazinhos quizeram chegar ainda
assim, mas Pedro Barqueiro descadeirou
um e pz as tripas de fra a outro, que
escaparam, verdade, mas ficaram l no
cho gemendo por muito tempo.
D'ahi para c, Pedro evitava andar pela
cidade, onde s apparecia de longe em
longe, e noite. Mas todo o mundo tinha
medo delle e vivia adulando-o.
Um dia, como j lhe contei, appareceu
l em casa um moo pedindo auxilio a meu
patro para agarrar o negro. Era mesmo
escravo, o Barqueiro; mas ha muitos annos
vivia fugido. J lhe disse que o patro
queria tirar o topete ao valento, e,
para isso, escolheu pobre de mim e Pas-
choal.
/
188 PEDRO BARQUEIRO

- Que dizes, Flor? fallou o patro rin-


do-se.
- Uai, meu branco, vossemec man-
dando, o negro vem mesmo, e no sedenho.
- Quero ver isso.
- Vamos embora, Paschoal 1
Quando amos a sahir, o patro bateu-
me no hombro e, voltando-se para o moo,
disse muito firme : Pde prevenir a es-
colta para vir buscar o Barqueiro aqui, de
tarde. Ho de dar duzentos mil ris a estes
meninos.
Desci ao quarto dos arreios, passei a
mo na meia legua e no faco e apertei a
correia cinta.
Paschoal j estava na porta da rua, asso.
biando. Tinha por costume, nos momentos
de aperto, assobiar sempre uma trova, que
diz assim:
Na matta de Josu
Ouvi o mutum gem;
Elle geme assim :
Ai-r-u, hum 1air 1
Quando Paschoal me viu, soltou uma
risada.
- Ests doido, rapaz! gritou-me.
- Porque?

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J
PEDRO BARQUEIRO 1&)

- Queres mesmo enfrentar com o Pedro


Barqueiro? ... Elle faz de ns passca. A
cousa se ha de fazer de outro modo.
Paschoal tinha tento e eu sempre tive
f nelle. Era um cabritozinho mitrado. Sa-
bia-lhe cada ida ... Mandou-me guardar a
meia legiia e o faco. Depois, foi venda,
escolheu anzes de pesca e veiu para casa
encastoal-os. Eu, nem bico 1Ajudei a acabar
o servio, certo de que Paschoal tinha al-
guma na mente.
- Deixa a cousa commigo, ajuntava elle.
Isso ainda era cedo ; o sol estava umas
tres braas de fra, no tempo dos dias gran-
des. L por casa madrugavamos sempre,
para ir ao pasto e trazer os animaes de trato.
- Vamos fazer uma pescaria, disse-
me o Paschoal. Alli para os lados do Bap-
tista, perto de um baruzeiro grande, ha um
poo, onde as curumatans e os pius so
como formigas. O rancho do Pedro Bar-
queiro fica perto. Elle mora s e eu conheo
bem ologar. Pela astucia, havemos de pren-
dei-o. Quando eu gritar-segura, Flor! -
tu agarras o negro, mas, segura rente J,.
E fomos. Nessa hora me veiu bastante
vontade de fugir ao perigo, de ir passear,

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19J PEDRO BARQUEIRO

porque tinha como certo succeder-nos al-


guma. Que J Flor! - disse de mim
para mim : Um homem para outro. E,
depois, o Paschoal no me deixava nas
embiras. Quando descemos o Gorgulho e
fomos virando para o lado do corrego, fi-
quei meio sorumbatico. Nesse tempo, eu
andava arrastando a aza Emilia, filha do
Jos Carapina. Era uma rxa bonita de-
vras, e no estava muito longe de me
querer. Posso dizer mesmo que na vespera
olhou muito para mim, ao passar com a saia
de chita sarapintada de vermelho, umas chi-
nellas novas de cordovo amarello. Ah! que
peitinho de ja, patrozinho 1 empinado,
redondo, macio como um couro de lontra.
Com o devido respeito, patrozinho, eu
estava na peia, enrabichado, e foi nesse
mesmo dia que ella me deu esta cinta de
l, tecida por suas mos, que guardo at
hoje. Ai! rxada minhapaixo-pensava
eu - como hei de morrer assim, fazendo
cruz na bocca ? O diabo da ida me ataran-
tou pelo caminho e cheguei a dar tremenda
topada numa pedra, no meio da estrada.
Curvei-me sobre a perna, agarrei o p
com as mos e estive assim danando sem

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PEDRO BARQUEIRO

querer, um pedacinho de tempo. Dep0is,


levantei a cabea. Paschoal sentra num
barranco e encarava para mim, rindo. Le-
vantei a cabea e olhei para cima, assump-
tando. No co galopavam umas nuvens
escuras, a modo de um bando de queixadas
rodando pelo campo.
Um vento as pero passava, arrancando
do genipapeiro as fructas maduras, que es-
borrachavam no cho assim-pof !-espan-
tando as juritis que andavam esgaravatando
a terra e comendo grozinhos. Duas serie-
mas guinchavam, esguelavam. Depois, vi
que estavam brigando-me lembra como
se fosse hoje-e uma avanav para outra
dando pulinhos, sacudindo as azas, com o
cocuruto arripiado e os olhos em fogo. O
corao pareceu dizer-me outra vez- olha,
Flor, o que vais fazer. Nesse entretanto,
o Paschoal, que me encarava sempre do
ponto onde estava sentado, gritou-me:
- E5queceste a cabea nalgum logar ?
Vamos embora, que vai tardando j.)>
Fiquei descochado; cahi em mim e fui
marchando disposto. D'ahi em deante, fui
brincando com o Paschoal, que era muito
divertido e tinha sempre um caso a contar.

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PEDRO BARQUEIRO

Chegando em baixo, arregamos as calas


e descemos o corrego, cada um com seu
anzol na vara, ao hombro.
Era preciso que ninguem desconfiasse
do nosso conluio para prendermos o Pedro
Barqueiro.
Ahi, quasi que tinhamos esquecido o
perigoso mandado, to differente andava a
conversa com as caoadas do Paschoal.
Para encurtar a historia, patrozinho,
achmos Pedro Barqueiro no rancho, que
s tinha tres divises : a sala, o quarto
delle e a cozinha.
Quando chegmos, Pedro estava no
terreiro debulhando milho, que havia co-
lhido em sua rocinha, alli perto.
- Vocs por aqui, meninos? Olhem 1vo
alli quelle poo, para baixo da cachoeira.
Tem l uma lage grande e de cima della
vocs podem fazer bichas com os pius.
- Louvado seja Christo, meu tio ! ))
havia dito o Paschoal, e nisto o imitei.
- Se quizerem comer uma carne assada
ao espeto, tirem um naco; est na fumaa,
por cima do fogo, uma boa manta. Olhem
a faca ahi na sala, se vocs no tm algum
caxerenguengue. >)

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PEDRO BARQUEIRO 193

Paschoal entrou e viu recostado a um


canto da parede o ferro alumiando. Pegou
nelle, sahiu pela porta da cozinha e escon
deu-o numa restinga, ao fundo. Depois, me
assobiou, eu acudi e fui procurar a lazarina
de Pedro - boa arma, de um s cano,
verdade, mas comedeira.
- Ha alguma ja por aqui, tio Pedro ?
perguntou Paschoal.
- Nem uma, nem duas, um lote dellas.
Se voc quer experimentar minha arma, v
l dentro e tire-a. No errando a pontaria,
voc traz agora mesmo uma ja.
- Quero matar um passarinho para fazer
isca, meu tio.
- Pois v, menino.
<< E Paschoal descarregou a arma.
<< Pedro tinha-se levantado e falava com
Paschoal do vo da porta de entrada.
<<Era hora.
Paschoal me fez um signalzinho, eu dei
volta e entrei pela porta do fundo para
agarrar o Barqueiro pelas costas. A combi-
nao era essa. Emquanto Paschoal o foi
entretendo, eu fui chegando soturno, e
quando elle gritou - segura! -eu pulei
como uma ona sobre o negro desprevenido.
13

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PEDRO BARQUEIRO

Conheci o que era homem, patrozinho 1


Saltando-lhe nas costas, dei-lhe um abrao
de tamandu no pescoo. Mas o negro no
pateteou, e, mergulhando commigo para
dentro da sala, gritou:
- Nem dez de vocs, meninos 1Ah1 se
eu soubesse ... 11
Patrozinho, eu sei dizer que o negro
me sacudiu para cima como um touro bravo
sacode uma garrocha. Mas eu via que, se
o largasse, estava morto, e arrochei os
braos.
- Chega, Paschoal ! gritei.
- <1 Eu quero manobrar de fra. Animo!
Segura bem que ns amarramos o negro.
Que tirada de tempo! O negro, s vezes,
abaixava a cabea, dando de ppa, e mi-
nhas pernas danavam no ar, tocando quasi
o tecto do rancho. Lutmos, lutmos, at
que Paschoal poude metter um tolete de
pu entre as canellas do Pedro, de modo
que elle cambaleou e cahiu de bruos. Ns
dous pulmos em riba delle. Eu, trium-
phante,gritava: Conheceu, crioulo? Negro
homem? Elle era teimoso, porque dizia
ainda: Nem dez de vocs, meninos 1 Ah 1
se eu soubesse ...
PEDRO BARQUEIRO 195

Paschoal trazia bandoleira um em-


bornal para carregar peixe e veiu dentro
delle escondida uma corda de sedenho,
cumprida e forte.
O Barqueiro estava no cho; e foi pre-
ciso ainda fazermos bonito para amarrai-o.
Agora, puxe na frente, seu negro ! -
gritou-lhe o Paschoal.
Haviamos juntado os braos delle nas
costas e apertmos com vontade. Ficou
completamente tolhido.
Eu ia segurando a ponta do sedenho e
levava o negro na frente. Mesmo assim,
houve uma hora em que elle me deu um
tombo, arrancando de repente a correr. Por
seguro, a corda estava-me enrolada na mo
e eu no a larguei. Nesse instante, Pas-
choal tinha corrido atraz delle e lhe descar-
regado na nuca um tremendo murro, que o
fez bambear um pouco e me deu tempo de
endurecer o corpo e segurar firme a corda.
O Barqueiro, depois que sahiu do ran-
cho, no piou.
Chegmos casa de tarde e o negro ia
no sedenho.
- Eu no disse, gritava o patro muito
contente, que s bastavam esses dous

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196 PEDRO BARQUEIRO

meninos para o Barqueiro? Est ahi o


negro.D
E o povo corria para ver, e a frente da
casa do patro estava estivada de gente.
Recebemos os duzentos mil ris.
Tinha-me esquecido de contar-lhe que
eu fizera uma promessa Senhora daAbba-
dia, de levar-lhe ao altar uma vela, se vol-
tasse so e salvo. Cumpri a promessa no
dia seguinte e arranjei uma festinha para a
noite. Queria um p para estar com a
Emilia.
Comprei um trancelim de ouro para
aquella rxa de meus peccados e um chale
azul. Ella era esquiva. Fez muito momo
nessa noite, e no me quiz dar nem uma
boquinha, com o devido respeito ao patro-
zinho.
Sahda casa de Jos Mendes, onde dei a
festa, quando os gallos estavam amiu-
dando.
A estrella d'Alva, no co escuro, parecia
uma gara lavando-se na laga. O orvalho
das vassouras me molhou as pernas e eu
estremeci um bocadinho. Entrei num becco
que ia sahir na rua de Traz, onde eu ento
morava.
PEDRO BARQUEIRO 197

la meio avexado e peguei a banzar.


Emilia ! Emlia do corao ! porque me
amofinas com esse pouco caso? E desandei
a cantar, bem chorada, esta cantiga:
T trepado no pu,
De cabea p'ra baixo,
Com as azas cabidas
Gavio de pennacho !
Todo o mundo tem seu bem,
S pobre de mim no tem 1
Ai ! gavio de pennacho 1
De repente, pulou um vulto deante de
mim. Quem havia de ser, patrozinho? Era
o Pedro Barqueiro em carne e osso. Tinha,
no sei como, desamarrado as cordas e es-
capado da escolta, em cujas mos o patro
o havia entregado.
O ladro do negro tinha orao at
contra sedenho 1
Sem me dar tempo de nada, o Barqueiro
me agarrou pela golla e me sugigou. Le-
vantou-me no ar tres vezes, de brao teso,
e gritou-me :
Pede perdo, cabrito, desvergonhado,
do que fizeste hontem, que te vou man-
dar para o inferno 1 Pede perdo j I

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198 PEDRO BARQUEIRO

A gente precisa de ter um bocado de


sangue nas veias, patrozinho, e um ho-
mem um homem! Eu no lhe disse pu
nem pedra. Vi que morria, criei animo e
disse commigo que o negro no me havia
de pr o p no pescoo.
" Exigiu-me elle, ainda muitas vezes, que
lhe pedisse perdo, mas eu no respondi.
Ento, elle foi me lev;mdo nos braos at
uma pontezinha que atravessava uma pe-
rambeira medonha. A bocca do buraco es-
tava escura como breu e parecia uma bocca
de sucury querendo me engulir. Suspen-
deu-me arriba do guarda-mo da ponte e
balanou meu corpo no ar. Nessa hora,
subiu-me um frio pelos ps e um como
formigueiro me passeou pela regueira das
costas at nuca; mas minha bocca ficou fe-
chada. Ento, o Barqueiro, levantando-me
de novo, me pousou no cho, onde eu bati
firme .
O dia estava querendo clarear. O negro
olhou para mim muito tempo, depois
disse :
-Vai-te embora,cabritinho, tu s o unico
homem que tenho encontrado nesta vida!
Eu olhei para elle, pasmado.

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PEDRO BARQUEIRO

Aquelle pedao de crioulo cresceu-me


deante dos olhos, e vi - no sei se era o
dia que vinha raiando-mas eu vi uma luz
esturdia na cabea de Pedro.
Desempenado, robusto, grande, de
brao estendido, me pareceu, mal compa-
rando, o Archanjo So Miguel sugigando
o Maligno. At claro elle ficou nessa hora 1
Tirei o chapo e fui andando de costas,
olhando sempre para elle.
Veiu-me uma cousa na garganta e
penso que me ia faltando o ar.
Insensivelmente, estendi a mo. As la-
grimas me saltaram dos olhos, e foi cho-
rando que eu disse :
- Louvado seja Christo, tio Pedro!
Quando cahi em mim, elle tinha des-
apparecido.
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7111111, por Ma.--}~*M
Um volume broohtlQ..,.. ~""'"'"-'e
Uni dito, rioament.e en4llj'*~BI

No pr/o:

o M/88/0llARIO, por Inglez de Souza.


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