2013 LuisClaudioRochaHenriquesMoura
2013 LuisClaudioRochaHenriquesMoura
2013 LuisClaudioRochaHenriquesMoura
Universidade de Braslia
Instituto de Cincias Humanas
Departamento de Histria
Programa de Ps-Graduao em Histria
Banca:
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AGRADECIMENTOS
RESUMO
Esta tese dedica-se anlise das ideias de nao produzidas, entre as dcadas de 1830
e 1850, na Argentina, Brasil e Chile, ilustrando essas representaes por meio de uma
abordagem comparada de obras de trs intelectuais sul-americanos: Juan Bautista Alberdi
(1810-1884), Jos Incio de Abreu e Lima (1794-1869) e Andrs Bello (1781-1865). Desta
forma, temos como principal foco compreender as representaes e propostas dos trs
pensadores no concernente s suas ideias de nao, visando a confront-las. Para isto
procuramos, inicialmente, compreender o ambiente intelectual e poltico ao qual cada
produo estava relacionada, pelo recurso abordagem dos contextos encontrados na
Argentina, no Brasil e no Chile ao longo do perodo demarcado. Na dcada de 1830
principiava um momento ecltico de transio poltica e intelectual, no qual o Estado nacional
dava incio sua formao, que se completaria apenas na segunda metade do sculo XIX, e o
romantismo comeava a se fazer presente. Visando ainda a uma maior compreenso do
momento de produo dos textos estudados, acompanhamos os itinerrios de vida dos
personagens em questo.
Alberdi, Abreu e Lima e Bello, como de costume poca, em um misto entre homens
polticos e intelectuais, foram atores envolvidos nas disputas de projetos nacionais referentes
aos novos Estados que estavam se estabelecendo naquele momento. Os textos analisados
foram produzidos em ambientes de disputas, estando, portanto, ligados a objetivos
pragmticos, ao elaborarem representaes de passado, estabelecidas em uma conjuntura
prpria, com propostas de futuro. Intencionavam contribuir na constituio das novas
comunidades polticas pela indicao de ideias de povo, estado cultural, governo, herana
colonial e propostas de identidades. Nos discursos estudados e nos ambientes abordados,
foram encontrados temas e leituras que passariam a constituir as produes historiogrficas de
meados do sculo XIX, preocupadas com a edificao de nacionalidades.
ABSTRACT
This dissertation endeavors an analysis of the ideas of nation produced between the
decades of 1830 and 1850 in Argentina, Brazil and Chile. We aim to study their
representations under a comparative perspective of three South American intellectuals [Juan
Bautista Alberdi (1810-1884), Jos Incio de Abreu e Lima (1794-1869) and Andrs Bello
(1781-1865)], by observing how these ideas arise in chosen works they authored. Thus, we
primarily focus on representations and proposals of these three thinkers with regard to their
ideas of nation, aiming to confront them. In a first moment we attempted to understand the
intellectual and political environment to which each production relates by recurring to the
approach of the surroundings during the mentioned period as found in Argentina, in Brazil
and in Chile. In the 1830s, romanticism began to be seen while an eclectic time of political
and intellectual transition was begining. Then, the nation state started to be built, in a process
which would be completed only in the second half of the nineteenth century. Similarly,
intending a better grasp of the time during which the studied texts were conceived, we
furthermore retraced the life itineraries of these characters.
Alberdi, Abreu e Lima and Bello, as usual during that epoch, mixing political and
intellectual identities, were political actors involved in the disputes of national projects
referred to the new states that were establishing themselves at the time. The texts were created
in a conflictual environment and are, therefore, tied to pragmatic purposes that elaborated
representations of the past, established in a particular conjuncture with propositions for the
future. They intended to contribute to the constitution of new political communities foremost
through the indication of certain ideas of people, cultural state, government, colonial heritage
and identities plans. The discourses that were studied presented various themes and
interpretations historiographic productions of the mid XIXth century concerned with the
building of nationalities.
RESUMEN
Esta tesis se propone analizar las ideas de nacin que se produjeron, entre las dcadas
de 1830 y 1850, en la Argentina, el Brasil y Chile, ilustrando dichas representaciones a travs
de un enfoque comparado de obras de tres intelectuales suramericanos: Juan Bautista Alberdi
(1810-1884), Jos Incio de Abreu e Lima (1794-1869) y Andrs Bello (1781-1865). De esta
forma, nuestro foco principal consiste em comprender las representaciones y las propuestas de
los tres pensadores en lo concerniente a sus ideas de nacin, con vistas a contrastarlas. Para
realizar este estudio, procuramos, en un primer momento, comprender el ambiente intelectual
y poltico con el que estaba relacionada cada una de las producciones, centrndonos en los
contextos encontrados en la Argentina, el Brasil y Chile en el periodo demarcado. En la
dcada de 1830 vea la luz un momento eclctico de transicin poltica e intelectual, en el que
el Estado nacional daba inicio a su formacin, que se llegara a completarse tan solo en la
segunda mitad del siglo XIX, y en el que el romanticismo empezaba a hacerse presente. De la
misma manera, para entender con ms profundidad el periodo de produccin de los textos
estudiados, acompaamos los itinerarios de vida de los personajes en cuestin.
Alberdi, Abreu e Lima y Bello, como era costumbre en aquel entonces, en una mezcla
entre hombres polticos e intelectuales, constituyeron actores polticos implicados en las
disputas de proyectos nacionales referentes a los nuevos Estados que se estaban estableciendo
en aquel momento. Los textos surgieron en ambientes de disputas, por lo que se relacionan
con objetivos pragmticos, al elaborar representaciones de pasado, establecidas en una
coyuntura propia, con propuestas de futuro. Tenan la intencin de contribuir a la constitucin
de las nuevas comunidades polticas mediante la alusin a ideas de pueblo, estado cultural,
gobierno, herencia colonial y a propuestas de identidades. En los discursos estudiados, se
encontraron temas y lecturas que pasaran a formar parte de las producciones historiogrficas
de mediados del siglo XIX, preocupadas por la edificacin de nacionalidades.
SIGLAS
SUMRIO
Siglas IX
INTRODUO 01
A pesquisa que se apresenta aqui tem por objetivo contribuir abordagem das ideias
de nao que foram produzidas nos atuais Estados nacionais da Argentina, Brasil e Chile entre
1830 a 1860. Utilizando referenciais da Histria das Ideias e nos guiando por orientaes
metodolgicas provenientes da historiografia comparada, procuramos compreender quais os
significados atribudos s concepes de nao em trs personagens eleitos para ilustrar a
produo da poca nos pases indicados. A partir de ambientes intelectuais especficos,
ligados aos trs Estados no perodo em questo, conjuntamente ao itinerrio biogrfico de
cada personagem, esboamos o contexto da produo das obras discutidas neste estudo. Nesta
perspectiva, escolhemos recorrer a textos produzidos por Juan Bautista Alberdi (1810-1884),
Jos Incio de Abreu e Lima (1794-1869) e Andrs Bello (1781-1865).
A opo por trabalhar com a representao de nao de forma comparativa, assim
como a seleo dos intelectuais, foram construdas considerando meu percurso acadmico
dentro de minha formao como historiador. Em 2003, momento da concluso do curso de
graduao, desenvolvi uma pesquisa na rea da Histria Poltica em que foi abordada a
participao de Jos Incio de Abreu e Lima nas lutas de emancipao da Amrica andina e
da construo dos novos Estados naquela regio, onde esteve atuando entre 1819 e 1830.1
Levado por Abreu e Lima, tomei maior contato com alguns dos problemas que envolveram as
independncias no noroeste da Amrica do Sul: as guerras de emancipao, as guerras civis e
os problemas produzidos na segunda metade da dcada de 1820 referentes concretizao da
fragmentao da regio, impulsionados por distintos projetos nacionais e formando novas
entidades polticas.
Meu interesse sobre este pensador, porm, no se encerrou em dita monografia. Em
2006, como dissertao de mestrado, desde a perspectiva terica da Histria das Ideias,
desenvolvi uma anlise das obras historiogrficas do autor, produzidas entre 1826 e 1844.2 A
escolha desse perodo e desse tema me levou a trabalhar com a Gr Colmbia e com o
Imprio do Brasil, como tambm me intensificou o contato com o tema das representaes da
1
MOURA, Lus Cludio. Abreu e Lima: um elo entre o Brasil e a Amrica Andina. Departamento de Histria.
Instituto de Cincias Humanas. Universidade de Braslia. Braslia. Monografia de Curso de Graduao, 2003.
Orientada por Prof. Dr. Geralda Dias Aparecida.
2
MOURA, Lus Cludio. Abreu e Lima: uma leitura sobre o Brasil. Departamento de Histria. Programa de
Ps-graduao em Histria. Instituto de Cincias Humanas. Universidade de Braslia. Braslia. Dissertao de
Mestrado, 2006. Orientada por Prof. Dr. Geralda Dias Aparecida.
2
3
Concebemos as representaes como esquemas mentais constitudos socialmente que contribuem para a
racionalizao e interpretao da realidade que nos cerca. Baseamos-nos nas propostas de Serge Moscovici, uma
de cujas definies pode ser acompanhada na seguinte passagem: as representaes que ns fabricamos duma
teoria cientfica, de uma nao, de um objeto, etc. so sempre o resultado de um esforo constante de tornar
comum e real algo que incomum (no-familiar), ou que nos d um sentimento de no-familiaridade. E atravs
delas ns superamos o problema e o integramos em nosso mundo mental e fsico, que , com isso, enriquecido e
transformado. Depois de uma srie de ajustamentos, o que estava longe, parece ao alcance de nossa mo; o que
era abstrato torna-se concreto e quase normal. Ao cri-los, porm, no estamos sempre mais ou menos
conscientes de nossas intenes, pois as imagens e idias com as quais ns compreendemos o no-usual
(incomum) apenas trazem-nos de volta ao que ns j conhecamos e com o qual ns j estvamos familiarizados
h tempo e que, por isso, nos d uma impresso segura de algo j visto (dj vu) e j conhecido (dj connu)
MOSCOVICI, Serge. Representaes Sociais: Investigaes em Psicologia Social. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007,
p. 58.
3
independncia daquele pas, com o qual atraiu a ateno de pesquisadores em relao a esse
personagem, principalmente no Brasil e na Venezuela.4
Abreu e Lima apresenta uma trajetria de vida e uma produo intelectual bastante
singulares, que agregam valor sua obra. Esse pernambucano foi um dos poucos brasileiros a
lutar nas guerras de emancipao da Amrica hispnica, inclusive com produo intelectual
destacada sobre os eventos ocorridos na dcada de 1820.5 No Brasil, atuou constantemente na
vida poltica e intelectual, interessado por distintos temas, dos quais fez parte a histria e a
reflexo sobre a nao.
Portanto, ao considerar este percurso, que atesta a singularidade de seu perfil e sua
reduzida presena na histria nacional como um pensador de vanguarda que foi, encontramos
um dos pontos de relevncia deste projeto, que se prope a aprofundar o conhecimento sobre
esse intelectual com a anlise de determinadas obras de sua autoria. Outro aspecto que refora
esta justificativa remete para a possibilidade de se pesquisarem as ideias de Abreu e Lima
dentro de uma perspectiva mais abrangente, atravs da histria comparada, na qual se
selecionam, como parmetros, pensadores influentes no continente sul-americano.
A escolha dos outros dois intelectuais tambm devedora do interesse em abordar
temas discutidos durante o mestrado: aspectos da formao das naes e os nacionalismos no
incio do sculo XIX. Durante a elaborao da dissertao requerida para a obteno do ttulo
de Mestre, na qual abordei a produo historiogrfica de Abreu e Lima, deparei-me com
questes que me pareceram historiograficamente relevantes e merecedoras de estudos mais
aprofundados para a compreenso da discusso acerca da formao dos Estados nacionais
americanos. Os temas que envolviam estas questes faziam parte das constantes polmicas
encontradas na Amrica em debates oitocentistas sobre as ideias de Estado, nao, raa,
4
Esta no foi a primeira vez que representantes da Venezuela promoveram a memria de Abreu e Lima no
Brasil. J havia acontecido nas comemoraes do centenrio da independncia em 1922 com o embaixador
Diego Carbonell, em 1969 nas comemoraes do centenrio de nascimento de Abreu e Lima com o embaixador
Elbano Provenzano Heredia e em 1981 com o presidente Luis Herrera Campns. Consultar: CARBONELL,
Diego, Um here brasileiro da guerra Gran-Colombiana de Emancipao, in ABREU E LIMA, Jos Incio de.
Resumen Histrico de la ltima dictadura del libertador Simon Bolvar. Rio de Janeiro: empre. Ind. Editora O
Norte, 1922. LIMA SOBRINHO, Barbosa, Centenrio da Morte do General Jos Incio de Abreu e Lima, in
Revista do Instituto Geogrfico e Brasileiro. Volume 283, abril-junho, Departamento de Imprensa Nacional
Rio 1969, pp. 169-184. LIMA SOBRINHO, Barbosa, Prefcio, in ABREU E LIMA, Jos Incio de. O
Socialismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. ABRAMSON, Pierre-Luc. Las utopas sociales en Amrica
Latina en el siglo XIX. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1999, p. 161. MENDIBLE ZURITA, Alejandro,
El brasileo Abreu E Lima: su vigencia como General de Bolvar, in TF, Caracas, vol. 24, n. 94, abr. 2006.
Disponvel em: <http://www2.scielo.org.ve/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0798-
29682006000200007&lng=es&nrm=iso> (acessado em 11/03/2013).
5
CHACON, Vamireh. Da Confederao do Equador Gr-Colmbia (1796-1830): escritos polticos e
manifestos de Mundrucu. Braslia: Senado Federal, 1983. De acordo com este trabalho, na Amrica andina
conhecida a presena de apenas cinco brasileiros durante o perodo das lutas pela independncia.
4
6
SILVA, Helenice R., A Histria Intelectual em questo, in LOPES, Marco Antnio. Grandes nomes da
histria intelectual. So Paulo: Contexto, 2003.
5
histria e que houvessem sido produzidos entre 1830 e 1860, e, ainda, que tivessem estado em
outros pases americanos, alm de terem sido relativamente contemporneos.
Isso no parecia ser uma tarefa difcil; porm, apenas quando sistematizadas as
possibilidades efetivas da construo do trabalho, que nos demos conta de que, com tantas
variveis, se restringia bastante o nmero de possibilidades de obtermos um tipo ideal.
Tivemos cuidado, ainda, em pensar na viabilizao do acesso ao material historiogrfico atual
com presena dos temas a problematizar nos trs pases, ou diretamente voltado sobre a
produo dos autores escolhidos; e, por fim, no acesso s obras dos personagens
protagonistas. Foram analisados, como possveis pases e intelectuais alvo, embora tenham
sido finalmente dispensados: Otero Mariano (1817-1850), do Mxico, Manuel Maria Madiedo
(1818-1888), da Colmbia, Jos Victorino Lastarria (1817-1888) e Benjamn Vicua
Mackenna (1831-1887), ambos do Chile e, da Argentina, Vicente Fidel Lpez (1815-1903) e
Bartolom Mitre (1821-1906).
Aps as correspondentes pesquisas e comparaes, foram selecionados o tucumano
Juan Bautista Alberdi e Andrs Bello, o qual, apesar de venezuelano, se mudou para o Chile
em 1829, onde se naturalizou e atuou no campo poltico e acadmico, ficando assim definidos
a Argentina e o Chile como objetos de comparao. Fazia parte dos critrios de escolha a sua
experincia de vida, que, nos dois, coincidia no fato de terem participado politicamente e
produzido estudos sobre a questo nacional entre 1830 e 1860. Ambos os personagens foram
tidos, ento, como bons referentes comparativos.
Elegemos, tambm, esse interregno devido ao carter da produo intelectual e ao
estado em que se encontravam as naes ibero-americanas naquele momento. Em relao aos
Estados, temos ainda, no perodo indicado, diversas questes quanto consolidao e
formao, pela unidade ou fragmentao, de novas entidades polticas e soberanas. Em suma,
parece-nos um perodo rico para discutir a representao da nao, por causa da pouca
definio do que era o termo, o que era a produo referente histria e ao passado, e as
condies que se encontravam as novas entidades polticas.
Acompanhar os ambientes intelectuais na Regio do Prata, no Imprio do Brasil e na
Repblica do Chile essencial para a discusso das ideias de nao, uma vez que trabalhamos
com obras produzidas em contextos especficos, marcados por projetos de futuro em litgio.
As instituies de ensino, de memria e de produo cultural estavam reorganizando-se ou
surgindo nos novos pases que se constituam, atuando em conjunto com o Estado,
fomentadas por suas elites. As letras de carter nacional estavam iniciando suas primeiras
6
produes, ainda sem muita definio dos campos dos saberes modernos no tocante
especializao de reas e disciplinas, sendo esse um momento inicial de impulso produo
nacional. A influncia das ideias do exterior, sua leitura americana e adaptao s naes que
surgiam foram distintas, considerando as caractersticas encontradas ou eleitas em cada
entidade poltica que se tornaria nacional.
Ao cotejar as experincias dessas trs vidas, podemos compreender melhor os perfis
individuais, ambientes polticos e culturais mais abrangentes at questes especficas de cada
um dos pases estudados. Pem-se em questo o sentido das obras e de sua produo, o
combate poltico, as influncias e alinhamentos, as possibilidades aquelas que foram
eleitas e as que foram esquecidas, ou ao menos deixadas para trs. Como afirmamos, a
seleo dos personagens foi, ento, realizada considerando fatores de contemporaneidade e de
participao poltica e intelectual, e pelo fato de todos trs terem escrito sobre as ideias de
nao. Entretanto, dividem tambm outra caracterstica: a de no serem lembrados, ou
selecionados em nossos recortes acadmicos, como historiadores. So apontados, de maneira
justaposta, como jornalistas, polticos, militares, professores, mas muito pouco tomados
atualmente por historiadores, independentemente de suas influncias nas historiografias
estudadas.
Este o cenrio constitudo para alcanar um conhecimento de ideias de nvel regional
e para aprofundar o conhecimento do pensamento de um autor pouco analisado, como foi
Abreu e Lima. Atravs da abordagem comparada, ao serem focalizados personagens
referenciais atuantes, defensores de projetos nacionais de destaque, com influncia em seus
pases, em distintos nveis, pretende-se observar o quanto esses discursos e projetos se
aproximaram ou se distanciaram no tocante s ideias de nao. Dita formulao permite
comparar estas perspectivas no mundo hispnico e luso-americano, pelo reconhecimento de
influncias externas, internas e mtuas, e estudar a circulao de pensamentos, em demandas
regionais e locais, entre a Argentina, o Brasil e o Chile.
A escolha da figura do intelectual porta-voz das ideias de nao resultou essencial para
o desenvolvimento desta pesquisa. O lugar de memria encontrado nos trs personagens
bem diferente, com distintos status referentes contribuio na construo da nao. E essa
situao no se deu apenas em suas naes de origem, mas tambm naquelas em que
estiveram e para as quais contriburam em algum momento de suas vidas. Tanto Abreu e
Lima quanto Bello so relacionados aos seus pases de origem e aos de adoo. Ambos
ligados Venezuela, Bello por origem e Abreu e Lima por adoo. Por sua vez, Alberdi est
7
vinculado Argentina, ao Uruguai e ao Chile, por haver vivido e contribudo tambm aos dois
pases anteriores em sua construo identitria. Em todos eles tm lugares de memria
distintos, seguindo diferentes tradies, algumas mais prximas, como, por exemplo, o espao
dado ao militar em alguns pases e o lugar dos homens de letras, em outros.
Reconhecemos as disparidades entre os trs intelectuais, tanto no tocante ao volume e
importncia atribuda sua produo, quanto pelo lugar que cada um ocupa na memria
nacional e internacional. A diferena entre a produo relativa vida e s obras de Alberdi e
Bello, em comparao com Abreu e Lima, imensa. A publicao de seus escritos, seja em
vida ou pstuma, tomou dimenses variadas na circulao das ideias produzidas por eles. Essa
caracterstica torna possvel que o campo referente a Alberdi e Bello, em constante circulao,
tenha mais possibilidades de inovao do que aquele relativo ao brasileiro, uma vez que seus
textos so estudados continuamente.
Devido s diferenas no que toca ao interesse e produo historiogrfica que cada
um desses trs personagens suscita, em vida ou aps a morte, o impacto da anlise ecoa de
forma distinta sobre cada um deles. As inovaes na interpretao das obras do argentino e do
chileno podem ter emergido de forma mais intensa pela constncia no tempo, ao ter se
efetuado em maior medida entre os historiadores atuais, reformulando-se pelos seus temas,
mtodos e interesses, do que pela leitura e divulgao de novos documentos. Abreu e Lima,
ao contrrio, devido a sua secundarizao, possibilita estudos novos e fornece documentos
pouco estudados, ou mesmo inditos no meio especializado.
Espero haver justificado, depois da exposio dos perfis intelectuais de Abreu e Lima,
Alberdi e Bello, sua eleio neste estudo como personagens porta-vozes de discursos
americanos, em comparao relativa a determinados aspectos polticos e culturais.
Acreditamos que a pesquisa comparada permite verificar influncias intelectuais e propostas
elaboradas nas distintas realidades acerca dos temas que pretendemos abordar, ao estabelecer
os pontos comuns e as divergncias produzidas em cada realidade material e intelectual,
sempre considerando, em nossa narrativa, as variveis tempo e espao na produo das ideias
desses trs Estados americanos.
Alm de Alberdi e Bello terem preenchido os requisitos apresentados anteriormente,
seus pases de atuao poltica e intelectual, Chile e Argentina, contriburam de maneira
relevante para reforar a escolha por analis-los. Um dos motivos diz respeito histria
relativamente comum desses pases do cone sul. O outro refere-se ao fato de representarem
regies administrativas distintas da Amrica hispnica. Alberdi o porta-voz da experincia
8
vivida no Vice-reino do Prata e Bello, o representante da trajetria de um pas que era uma
capitania geral ligada ao Vice-reino da Nova Granada, com o qual se abordam, conjuntamente
ao Brasil, trs regies distintas das ex-colnias ibero-americanas.
Considerando o itinerrio de vida e de produo intelectual dos personagens, o perodo
escolhido e nossos objetivos, delimitamos os escritos analisados neste trabalho, que julgamos
que nos permitem acessar a compreenso das representaes de nao. Trabalhamos,
prioritariamente, sem excluir outros escritos, com os textos a seguir indicados. Da produo
de Alberdi, abordamos Fragmento preliminar al estudio del Derecho7 de 1837 e Bases y
puntos de partida para la organizacin poltica de la Repblica Argentina,8 publicado em
1852. Em busca da ideia de nao em Abreu e Lima, trabalhamos com o Bosquejo histrico,
poltico e literrio do Brasil,9 lanado em 1835 e Compendio da Histria do Brazil,10 de
1843. Para acessar as ideias de Belo, escolhemos Principios de derecho de Gentes11 de 1832,
o Discurso pronunciado en la instalacin de la Universidad de Chile,12 de 1843 e uma srie
de artigos publicados no jornal El Araucano em 1848, sendo eles: Modo de escribir la
Historia,13 Modo de estudiar la Historia,14 Constituciones15 e Memoria sobre el servicio
personal de los indgenas y su abolicin.16
Em busca das representaes de nao, desenvolvemos um estudo organizado em
quatro captulos, dispostos segundo a seguinte estruturao: tema e mtodos, ambientes
intelectuais, biografias dos personagens e anlises das ideias de nao constante nas obras
indicadas. Em nosso primeiro captulo, Debates e percursos: nao e historiografia em uma
7
ALBERDI, Juan. B., Fragmento preliminar al estudio del derecho, in Obras Completas de J. B. Alberdi.
Tomo I, Buenos Aires: La Tribuna Nacional, 1886, pp. 99-256.
8
ALBERDI, Juan. B., Bases y puntos de partida para la organizacin poltica de la Repblica Argentina Obras
Completas de J. B. Alberdi. Tomo III, Buenos Aires: La Tribuna Nacional, 1886, pp. 371-580.
9
ABREU E LIMA, J. I. Bosquejo histrico, poltico e literrio do Brasil. Cidade de Nictheroy: Tipografia de
Rego e Comp., 1835.
10
ABREU E LIMA, J. I. Compendio da Historia do Brazil. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert,
1843a. Em dois tomos. ABREU E LIMA, J. I. Compendio da Historia do Brazil. Rio de Janeiro: Eduardo e
Henrique Laemmert, 1843b. Tomo nico.
11
BELLO, Andrs, Pincipios de Derecho Internacional, in Obras Completas de Andrs Bello. Tomo X
[Derecho Internacional I]. Caracas: La casa de Bello, 1981, pp. 3-409. BELLO, Andrs. Principios de derecho
de gentes. Madri: Imprenta de Fuentenebro. Librera de la viuda de Calleja e hijos, 1844. Utilizaremos esta
segunda edio ampliada em relao 1 edio de 1832.
12
BELLO, Andrs, Discurso pronunciado en la instalacin de la Universidad de Chile, el 17 de septiembre de
1843, in Obras Completas, tomo XXI [Temas Educacionales I], Caracas: Fundacin Casa de Bello, 1982, pp. 3-
21.
13
BELLO, Andrs, Modo de escribir la Historia, in Obras Completas de Andrs Bello. Tomo XXIII [Historia
y Geografa]. Caracas: La casa de Bello, 1981, pp. 229-242.
14
BELLO, Andrs, Modo de estudiar la Historia, in op. cit., pp. 243-252.
15
BELLO, Andrs, Constituciones, in op. cit., pp. 253-262.
16
BELLO, Andrs, Memoria sobre el servicio personal de los indgenas y su abolicin, in op. cit., pp. 307-
322.
9
perspectiva comparada das ideias, optamos por trazer duas discusses principais: teoria e
mtodo, relativos ao campo da histria comparada, e questes pertinentes s ideais de nao.
Procuramos apontar a existncia de uma longa relao entre a historiografia e a formao da
nao, ambas vinculadas desde o incio do sculo XIX, abordando problemas relativos ao seu
estudo. Discutimos tambm questes pertinentes historiografia comparada, em seu
desenvolvimento e modelos de abordagem, visando elaborao de referncias para o
presente estudo e chamando a ateno para a sua relao com o campo do nacional.
No captulo dois A nao pelas letras: ambientes intelectuais e primeiros esforos,
procuramos contextualizar o estudo no que tange a questes ligadas ao ambiente intelectual e
poltico das trs naes na primeira metade do sculo XIX, considerando sua importncia
sobre as obras produzidas em cada pas. Foram apresentadas as influncias das novas ideias
que chegavam Amrica ibrica, a construo de um novo momento de edificao da nao
em sua relao com o Estado, atravs, por exemplo, de instituies de ensino propostas ou
renovadas aps as independncias. Abordamos movimentos importantes para a produo
intelectual como a Generacin de 37 na regio do Prata, a Sociedad Liderria de 1842 no
Chile e o Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro no Brasil. Aps tratarmos do
estabelecimento de ambientes em cada nao, discutimos a produo historiogrfica dos trs
pases na primeira metade do sculo XIX.
Em Referenciais de vida: formao intelectual e atuao poltica, acompanhamos
Alberdi, Abreu e Lima e Bello em momentos de suas vidas que norteiam nosso debate a
respeito da formao intelectual, alinhamentos ideolgicos e conjunturas polticas que nos
ajudam a contextualizar o momento de produo de seus escritos. Ao seguir a biografia desses
personagens, fornecemos tambm mais elementos sobre o ambiente poltico e intelectual das
naes abordadas pela apresentao de novos aspectos que envolvem as publicaes de suas
produes.
Por ltimo, em Comparando ideias: Alberdi, Abreu e Lima e Bello, analisamos as
ideais de nao contidas nos textos anteriormente indicados. Como preldio da discusso,
retomamos os debates que envolvem a questo nacional e procuramos compreender a
natureza pragmtica das publicaes estudadas. Nesse sentido, os captulos dois e trs so
apoios oportunos compreenso da anlise das obras. Buscamos, primeiramente, encontrar
nos discursos definies conceituais sobre as ideias de nao. No entanto, como essas so
restritas, apoiamo-nos nas representaes do termo, analisando ideias constitutivas da
delimitao do prprio conceito de nao, que envolve vocbulos como povo, sistema de
10
CAPTULO I
1
BLOCH, Marc, Pour une histoira compare des societs europennes, in Mlanges historiques, vol. 1, Paris:
S.E.V.P.E.N., 1963, p. 49. A histria comparada, mais fcil de conhecer e de utilizar, animar com seu esprito
os estudos locais, sem os quais nada pode, mas que, sem ela, a nada chegariam. Em uma palavra, deixemos, por
favor, de produzir eternamente de histria nacional para histria nacional, sem nos compreendermos. A
traduo nossa.
12
atualidade. A historiografia e a nao possuem uma relao ntima que vem se desenvolvendo
desde o incio do sculo XIX e produzindo influncias mtuas e marcantes, ainda hoje
observveis. As maneiras pelas quais esse tema foi abordado e desenvolvido foram diversas e
apresentam uma historicidade e marcas especficas durante os dois sculos em questo. A
nosso ver, os temas que circulam em torno das ideias de nao e historiografia permitem
acessar o passado a partir de perspectivas terico-metodolgicas que so apresentadas neste
captulo.
2
ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. So Paulo: Cia da Letra. 2008. MUSSY, Lus G. de
(Editor). Balance historiogrfico chileno. El orden del discurso y el giro crtico actual. Santiago: Ediciones
Universidad Finis Terrae, 2007.
3
Sobre a relao que vem se mostrando frutfera entre histria e outros campos do saber, ver: BURKE, Peter.
Histria e teoria social. So Paulo: Editora UNESP, 2002.
4
DIEHL, Astor Antnio. Cultura historiogrfica: memria, identidade e representao. So Paulo: Edusc,
2002, p. 13.
5
Sobre algumas mudanas historiogrficas ocorridas no sculo XX e ainda vigentes, ver: BURKE, Peter. A
escola dos Annales (1929 1989): a Revoluo francesa da historiografia. So Paulo: Fundao Editora da
13
UNESP, 1997. AGUIRRE ROJAS, Carlos. Antonio. Uma histria dos Annales (1921 2001). Maring: Eduem,
2004. JENKINS, Keith. A Histria repensada. So Paulo: Contexto, 2005.
6
HUNT, Lynn. A Nova Histria Cultural. So Paulo, Martins Fontes, 1992.
7
MALERBA, Jurandir. A histria na Amrica Latina. Ensaio de crtica historiogrfica. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2009.
8
Idem. Para Malerba, em meados do sculo XX d-se incio na regio a criao e ampliao de cursos de
graduao e de ps-graduao em Histria, o qual produziu um processo de profissionalizao, ainda
incompleta, da historiografia no continente. Esta profissionalizao da disciplina, por vez, contribuiu para as
mudanas terico-metodolgicas que vieram a surgir.
14
se recorre para sua anlise. Desde a modernidade oitocentista, o interesse pela questo
nacional passou a ser integrante aos estudos histricos. No incio do sculo XIX, as
circunstncias relacionadas criao de novos Estados, na Europa e na Amrica,
direcionaram a investigao sobre o tema. Alm das transformaes sociopolticas, houve
tambm mudanas terico-metodolgicas que afetaram a produo historiogrfica daquele
momento. O avano do romantismo e a criao de instituies educacionais, escolas,
academias, faculdades, universidades, centros de pesquisas e arquivos contriburam
positivamente para a promoo do estudo do passado, preferencialmente quele voltado aos
Estados-nao que recm se criavam. De maneira mais sistematizada, a partir da segunda
metade do sculo XIX, foram concebidas ideias a respeito de uma produo simblica de
valores nacionais, essenciais para a construo das novas entidades. A historiografia
participou com ativa contribuio, em um mundo de avano do letramento, pela sua fixao
privilegiada como produtora de saber nas academias e Estados que, ento, se constituam.
Neste percurso, diversos conceitos de nao foram propostos e discutidos,
tangenciados por leituras proferidas desde distintos campos ideolgicos e por vezes marcadas
por questes referentes a conflitos imediatos que demandavam resolues fronteirias. Em
1882, em um ambiente de discusso sobre as naes e os nacionalismos alimentado pelas
guerras franco-prussianas (1870-1871), em disputa pela Alscia-Lorena, Ernest Renan (1823-
1892) em sua clebre conferncia pronunciada na Sorbonne Quest-ce quune nation?,9
defendeu uma proposta que se baseava na vontade do povo na escolha de seu destino
nacional. Renan rejeita as ideias correntes da poca em estabelecer a nao em bases raciais,
lingusticas, religiosas, geogrficas, para efetivar uma abordagem culturalista e mais
democrtica. Defendia que a nao envolve operaes intelectuais que acionam vivncias e
desejos, com dimenses de passado presente e futuro. Para Renan:
9
RENAN, Ernest, O que uma nao?, traduo e introduo de Renato Mello, in Caligrama. Belo
Horizonte, n. 4, dez. 1999, pp. 139-180. Disponvel em:
<http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&source=web&cd=5&ved=0CFAQFjAE&url=http%3A%2F%2
Fwww.periodicos.letras.ufmg.br%2Findex.php%2Fcaligrama%2Farticle%2Fdownload%2F381%2F334&ei=vFs
xUYPxL4ie8gT8xYGQDQ&usg=AFQjCNHFTgdkd2SAeuT-I9E14qsB-sDM8A&bvm=bv.43148975,d.eWU>
(acessado em 01/03/2013).
15
A nao autodeterminada e de traos coletivos defendida por Renan no era a que ele
encontrava formada na poca de sua conferncia e nem no passado, pois considerava que a
violncia fora um elemento presente j nas origens das naes. Essa imposio de ideias de
nao tambm podia ser encontrada nas narrativas e na construo da memria nacional, com
a seleo intencional de histrias e de silncios que constituiriam seu passado. Segundo este
autor:
10
RENAN, Ernest, op. cit., pp. 159-160. Consultar tambm: RENAN, Ernest, Que uma nao?, traduo e
introduo de Angela Alonso e Samuel Titan Jr., in Plural. Sociologia, So Paulo: Universidade de So Paulo,
n. 4, 1 semestre, 1997, pp. 154-175. Disponvel em:
<http://www.fflch.usp.br/ds/plural/edicoes/04/traducao_1_Plural_4.pdf> (acessado em 01/03/2013).
11
RENAN, Ernest, op. cit. p. 147.
12
BARMAN, Roderick J. Brazil: The Forging of a Nation, 1798-1852. Stanford University Press, 1988.
13
HOBSBAWM. Eric. Naes e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1990.
14
SHUMWAY, Nicolas. A Inveno da Argentina: Histria de uma idia. So Paulo: Editora da Universidade
de So Paulo; Braslia: Editora UnB, 2008.
16
Ela imaginada porque mesmo os membros das mais minsculas das naes
jamais conhecero, encontraro, ou sequer ouviro falar da maioria de seus
companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da comunho
entre eles. [...] Na verdade, qualquer comunidade maior que a aldeia
primordial do contato face a face (e talvez mesmo ela) imaginada. As
comunidades se distinguem no por sua falsidade/autenticidade, mas pelo
estilo que so imaginadas. [...] Imagina-se a nao limitada porque mesmo a
maior delas, que agregue, digamos, um bilho de habitantes, possui
fronteiras finitas, ainda que elsticas, para alm das quais existem outras
15
HOBSBAWM. Eric, op. cit. Consultar tambm: HOBSBAWM, Eric. A era dos Extremos: o breve sculo XX:
1914-1991. So Paulo: Companhia das Letras, 1995.
17
16
ANDERSON, Benedict, op. cit., pp. 32-34.
18
ptria embrionria e incipiente, mesmo antes da formao da nao, no seu rol de histrias
nacionais.17
Nesse novo mundo letrado e com a valorizao de um conhecimento advindo de
instituies de ensino, as cincias passaram a ocupar um lugar relevante na constituio dos
discursos formadores das novas naes. Dessa maneira, concomitantemente ao surgimento
dos Estados nacionais no Novo e no Velho Continente, principalmente sob a influncia do
engajamento produzido pelo romantismo e posteriormente por pressupostos metodolgicos e
de cientificidade de meados dos oitocentos, a historiografia passou a ocupar um lugar mais
relevante dentro das ferramentas utilizadas na construo dos Estados-nao no mundo
ocidental. A relao existente entre Estado-nao e historiografia nacional vem se
desenvolvendo a partir de determinado contexto social e intelectual do mundo ocidental e com
o avano do capitalismo, pelo menos desde meados do sculo XIX. Naquele mundo em franca
modernizao, o avano das instituies de ensino e de pesquisa foi essencial para imbuir nos
cidados de cada uma das diferentes ptrias um conjunto de signos, de preferncia
homogneo, que os ligasse legal e sentimentalmente ao Estado e nao qual pertenciam.
Na Amrica ibrica,18 nas primeiras dcadas do sculo XIX, inicialmente em um
ambiente conflituoso ps-independncia e, posteriormente, com a conquista de alguma
17
HOBSBAWM. Eric. Naes e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade, 1990. COLMENARES,
Germn. Las convenciones contra la cultura: ensayos sobre la historiografa latinoamericana del siglo XIX.
Medelln: La Carreta Editores, 2008. WEHLING, Arno. Estado, Histria, Memria: Varnhagen e a construo
da identidade nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. EUJANIAN, Alejandro C., Crtica y poder en los
orgenes de la historiografa argentina, in CANCINO TRANCOSO, Hugo & SIERRA, Carmen de. Ideas,
cultura e historia en la creacin intelectual latinoamericana, siglos XIX y XX. Quito. Abya-Ayala, 1998.
Disponvel em:
<http://repository.unm.edu/bitstream/handle/1928/11759/Ideas%20cultura%20e%20historia%20en%20la%20cre
aci%C3%B3n.pdf?sequence=1> (acessado em 05/09/2011).
18
Teremos cuidado, para no incorrermos em um anacronismo, na utilizao do termo Amrica Latina, uma vez
que esse bastante recente. No processo de construo e fixao deste conceito, h dois importantes marcos
referenciais, um no sculo XIX e outro no XX. A ideia da origem do termo oitocentista foi construda em
meados do sculo XX, quando se afirmava que a denominao lAmrique latine tinha sido usada por primeira
vez por Michel Chevalier em 1836, e reforada pelas intenes imperialistas da Frana em 1860. No entanto,
dita leitura, baseada no expansionismo francs, vem sendo contra-argumentada com referenciais novos que
indicam que a origem do termo ocorreu no prprio continente. Nessa perspectiva, Chevalier, em 1836, no
haveria cunhado o termo, apenas constatado caractersticas de uma poro da Amrica que era latina, sem uma
ideia sistematizada sobre o termo em questo. Desde o incio da dcada de 1850, um uso mais prximo e
sistematizado de um conceito de Amrica Latina estava sendo cunhado por intelectuais hispano-americanos,
como o dominicano Francisco Muoz del Monte, os chilenos Santiago Arcos e Francisco Bilbao, e
principalmente o colombiano Jos Maria Torres Caicedo. Recentemente, aps a Segunda Guerra, em 1948, o
termo ganhou aderncia interna, com o surgimento da Comisso Econmica para a Amrica Latina e Caribe -
CEPAL. O outro momento relevante para o reforo da denominao ocorreu aps o ano de 1959, com a
Revoluo Cubana. Ver: PHELAN, L John, El origen de la Idea de Latinoamrica, in Ideas en torno de
Latinoamrica. Mxico: Universidad Nacional Autnoma de Mxico, 1986. BRUIT, Hctor, A inveno da
Amrica Latina, in ANPHLAC. Anais Eletrnicos do V Encontro da ANPHLAC. Belo Horizonte, 2000.
<http://anphlac.org/upload/anais/encontro5/hector_bruit.pdf> (acessado em 04/12/2012). ARDAO, Arturo.
Amrica Latina y la latinidad. Mxico: Universidad Nacional Autnoma de Mxico, 1993. QUIJADA, Mnica,
19
Sobre el origen y difusin del nombre Amrica Latina (o una variacin heterodoxa en torno al tema de la
construccin social de la verdad), in Revista de Indias, vol. LVIII, n. 214, 1998. Disponvel em:
<http://digital.csic.es/bitstream/10261/9354/1/Monica_Quijada_Sobre_el_nombre_America_Latina1998%5B1%
5D.pdf> (acessado em 27/12/2012).
19
ALTAMIRANO, Carlos (Dir.). Historia de los intelectuales en Amrica Latina. La ciudad letrada, de la
conquista al modernismo. Buenos Aires: Katz Editores, 2008, p. 9.
20
escolha de uma abordagem cultural no campo da Histria das Ideias 20 tem uma explicao
que advm da prpria ligao entre a formao da nao e a produo intelectual do sculo
XIX. Exemplos que ilustram o processo pelo qual essas ideias foram tomando concretude
naquele contexto podem ser encontrados em obras como as dos franceses Jules Michelet e
Franois Guizot, dos chilenos Diego Barros Arana e Benjamn Vicua Makenna, dos
argentinos Vicente Fidel Lpez e Bartolom Mitre, ou dos brasileiros Francisco Adolpho de
Varnhagen e Capistrano de Abreu, para no citarmos os nossos trs autores.
Mais recentemente, sobretudo a partir das reflexes tericas e metodolgicas da
dcada de 1980, a nao e o nacionalismo constituram-se em tema central de renomadas
obras da historiografia contempornea. Entre esses trabalhos, vale mencionar escritos como os
de Ernest Gellner, Eric Hobsbawm, Benedict Anderson, Hans-Joachim Knig, Germn
Colmenares, como tantos outros que imprimiram importncia produo simblica,
formao e produo intelectual, circulao de ideias, conscincia nacional e aos
nacionalismos como elementos relevantes na criao da nao e do Estado nacional.
Diante da conjuno desses indicadores terico-metodolgicos, diacrnicos e
dialgicos, uma vez que historiadores atuais estudam historiadores do sculo XIX, decidimos
elaborar um estudo comparado de questes ligadas construo das representaes da nao
na Argentina, no Brasil e no Chile em meados do sculo XIX, utilizando a anlise da
produo intelectual dos pensadores selecionados. Pretendeu-se aqui analisar o espao de
experincia desses pases sul-americanos, para examinar discursos fundacionais de
identidades em disputa no interior de distintos projetos nacionais, carregadas com ideais
imediatos e com horizontes de expectativas diferentes.21
relevante salientar, ainda, que essas representaes de nao so constituies
histricas que estavam em fase de construo, no podendo ser tomadas como expresses
acabadas de cada nacionalidade. Esses conjuntos de ideias, em decorrncia do tempo e das
mudanas estruturais e conjunturais de cada pas, sofreram alteraes de interesses e
direcionamentos que afetaram as dinmicas polticas, econmicas, sociais e intelectuais que
ento conquistavam, ou perdiam espao, na Argentina, Brasil e Chile. Ditos percursos
20
Em relao ao histrico do desenvolvimento da disciplina na Amrica Latina e quanto s crticas Histria
das Ideias, em contraponto com uma Histria Intelectual, ver: EZCURRA, Mara Polgovsky, La historia
intelectual latinoamericana en la era del giro lingstico, in Nuevo Mundo Mundos Nuevos. Disponvel em:
<http://nuevomundo.revues.org/60207> (acessado em 02/11/2012). Ezcurra indica o incio da Histria das Ideias
na Amrica Latina com os trabalhos produzidos no Mxico pelo filsofo espanhol Jos Gaos e seu aluno
Leopoldo Zea.
21
KOSELLECK, Reinhart. Future Past. On the semantics of historical time. Cambridge: Cambridge University
Press, 1985.
21
atingem um sentido mais amplo e delimitado quando seus contornos so inseridos nos debates
junto s escolas de pensamento, aos demais intelectuais, aliados ou inimigos em disputa em
cada projeto nacional.
22
Assim como ocorrre com o conceito de nao, o de nacionalismo tambm apresenta diversas definies,
fixadas no tempo, no espao e de contexto ideolgico. O nacionalismo na Amrica Latina, novamente seguindo a
tendncia da discusso de nao, foi pouco abordado como objeto acadmico no tocante a compreenso do tema
e de suas diferentes manisfestaes no cotinente, apesar da presena de estudos sobre o assunto desde 1980. Ver:
PAMPLONA, Marco Antonio; DOYLE, Don H. (orgs). Nacionalismo no Novo Mundo. Rio de Janeiro: Record,
2008, pp. 18-28.
23
HOBSBAWM, Eric, op. cit., p. 19. No mundo atual podemos verificar a fora do nacionalismo como fator
importante para a construo nacional se olharmos, por exemplo, o Estado nacional espanhol, ou plurinacional,
constantemente contestado e em contnuo conflito em seu interior, com as reivindicaes de algumas de suas
regies para se constiturem como novos Estados nacionais, como nos casos do Pas Basco (Euskal Herria) e da
Catalunha. A regio do Curdisto, formada por aproximadamente 26 milhes de curdos, que requerem
comunidade internacional a formao de um Estado nacional, est dividida em diversos pases: Turquia, Iraque,
Ir, Sria, Armnia e Azerbeijo.
22
24
RICUPERO, Bernardo. O romantismo e a idia de nao no Brasil (1830 1870). So Paulo: Martins Fontes,
2004. COLMENARES, Germn, op. cit.
25
GELLNER, Ernest. Nations and Nationalism. Nova York: Cornell University Press, 1983.
26
HOBSBAWM, Eric, op. cit., pp. 14-23.
27
GUERRA, Franois-Xavier. Modernidad e independencias. Ensayos sobre las revoluciones hispnicas.
Mxico: Fondo de Cultura Econmica, Editorial Mapfre, 1993. Ver tambm: KOSELLECK, Reinhart, op. cit.
23
28
GUERRA, Franois-Xavier, A nao moderna: nova legitimidade e velhas identidades, in JANCS, Istvn
(org.). Brasil: Formao do Estado e da Nao. So Paulo: Hucitec; Iju: Editora Uniju, 2003, pp. 35, nota de
rodap n. 4.
29
Todos os dicionrios da RAE podem ser consultados em: <http://ntlle.rae.es/ntlle/SrvltGUILoginNtlle>.
24
Tais acepes seguem as mesmas durante o sculo XVIII, sem apresentar mudanas
profundas no conceito. Desde sua primeira publicao, o verbete no foi modificado at 1791,
em que foi acrescentado um componente a mais em relao ao termo. Nesse ano, e em ltimo
lugar na microestrutura do verbete, veio o seguinte acrscimo, agora no Diccionario de la
lengua castellana compuesto por la Real Academia Espaola, reducido para un tomo para su
ms fcil uso: De nacion. mod. adv. Con que se da a entender la naturaleza de alguno, o de
donde es natural.32 At a edio de 1822 no houve novas modificaes para o significado
da palavra, existindo apenas mudanas na forma da apresentao, pois as trs acepes
iniciais foram concentradas em uma.
Em 1832, surgiu uma novidade que indica uma transformao rumo a um sentido mais
poltico, coletivo e territorializado do termo. Nesse ano, vemos surgir a ideia de uma nova
relao, com a insero da seguinte frase junto s definies anteriores: Conjunto de los
habitadores en alguna provincia, pas reino.33 Em 1852, dita frase foi modificada, com o
qual se direcionou o significado do termo tambm ao lugar ou entidade poltica. Tem-se,
assim, a seguinte redao: Conjunto de los habitadores en alguna provincia, pas reino, y
el mismo pas reino.34
Contudo, foi somente em 1869 que alteraes mais significativas foram processadas.
Nessa edio, a definio usada pela Real Academia Espanhola passou a designar uma
concepo ligada poltica e soberania como fundamentos da ideia de nao. No ento
30
Essa uma referncia ao poema pico quinhentista de Alonso Ercilla, La Araucana, em que so exaltadas as
qualidades guerreiras e nobres do povo mapuche, que se tornaria um mito da formao da prpria nacionalidade
chilena. No decorrer do sculo XIX, as representaes sobre os povos indgenas foram variando entre sua
exaltao e negao, prevalecendo a ltima.
31
Real Academia Espaola. Diccionario de lengua castellana, en que se explica el verdadero sentido de las
voces, los proverbios o refranes, y otras cosas convenientes al uso de la lengua. Tomo IV. Madri: Imprenta de la
Real Academia Espaola, 1734, p. 644. Esta primeira edio lanou um dicionrio com base no que denominou
autoridades, baseando o conhecimento exposto na citao de escritos de autores, especialmente do chamado
Sculo de Ouro espanhol, o XVII.
32
Real Academia Espaola. Diccionario de la lengua castellana compuesto por la Real Academia Espaola,
reducido para un tomo para su ms fcil uso. Madri: viuda de Joaqun Ibarra, 1791, p. 584.
33
Real Academia Espaola. Diccionario de la lengua castellana por la Real Academia Espaola. Madri:
Imprenta Real, 1832, p. 505.
34
Real Academia Espaola. Diccionario de la lengua castellana por la Real Academia Espaola. Madri:
Imprenta Nacional, 1852, p. 471.
25
Diccionario de la lengua castellana por la Real Academia Espaola, a nova ideia era
apresentada da seguinte forma:
As edies se sucedem at que, por fim, chega a publicao de 1925, que trouxe uma
novidade significativa desde as modificaes inseridas na edio de 1869. O conceito passou
a abranger questes culturais e tnicas entre os elementos que o caracterizam e o definem.
Pela primeira vez, apareceu no dicionrio o idioma como questo constitutiva de uma nao.
Para a entrada nacion, encontramos no Diccionario de la lengua Espaola a definio a
seguir:
35
Real Academia Espaola. Diccionario de la lengua castellana por la Real Academia Espaola. Madri:
Imprenta de Don Manuel Rivadeneyra, 1869, p. 531.
36
Real Academia Espaola. Diccionario de la lengua espaola. Madri: Calpe, 1925, p. 842. interessante notar
que neste ano h uma mudana no nome do dicionrio, deixa de ser apresentado como lngua castelhana e
passa a sustentar o termo lngua espanhola, substituindo a denominao de uma regio do Estado (Castela) por
uma denominao mais nacional.
26
por via da construo de smbolos, bandeiras, mapas, esteretipos, origens, canes, literatura,
elementos esses constitutivos das identidades locais.
Sua trajetria no dicionrio da RAE no demonstra que as inferncias historiogrficas
so falhas. A compreenso e incorporao lexicogrfica tardia, ou uma definio conceitual
do fenmeno, parecem no o ter acompanhado como acontecimento social e poltico, como
ao formadora de imaginrio contemporneo, produzindo e sendo influenciada por aes e
ideologias em determinados espaos histricos.
No dicionrio da RAE, o surgimento do verbete nacionalismo, em comparao com o
conceito de nao, separado por um longo intervalo de tempo. A primeira palavra apareceu
apenas na edio de 1869 e com uma definio que podemos considerar, aos olhos de hoje,
como pouco elaborada, relacionada ao campo dos sentimentos ligados terra de origem. A
reflexo da poca teve como sua primeira acepo o conceito adjunto: El apego de los
naturales de una nacin ella propia y cuanto le pertenece.37
Aps um longo percurso, em um momento de constantes transformaes na
cartografia e na poltica da Europa, a entrada mostra estar acompanhando as demandas sociais
em voga no momento. No ano de 1925, o verbete em questo apresentou uma alterao que
avanou na construo do que viria a significar a palavra, incluindo um sentido doutrinrio e
de uma provvel influncia freudiana. Nesse ano, apareceu a seguinte proposta para a
definio de nacionalismo: Apego de los naturales de una nacin a ella propia y a cuanto le
pertenece. Doctrina que exalta en todos los rdenes la personalidad nacional completa, o lo
que reputan como tal los partidarios de ella.38
Em terras vizinhas, em Portugal, os dicionrios tambm apresentam, logicamente,
modificaes para a compreenso do que seria uma nao. Vejamos o verbete lusitano
presente na que considerada a primeira iniciativa para a construo de um dicionrio
moderno da lngua portuguesa, organizado pelo padre Rafael Bluteau (1638-1734) entre os
anos de 1712 a 1728 e constitudo em sua totalidade por 10 volumes. No tomo publicado em
1728, deparamo-nos no Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico,
com a seguinte proposta de conceitualizao de nao em forma de verbete:
Nao. Nome collectivo, que se diz da Gente, que vive em alguma grande
regio, ou Reyno, debaixo do mesmo Senhorio. Nisto se differena nao de
povo, porque nao compreende muitos povos, & assim Beires, Minhotos,
37
Real Academia Espaola. Diccionario de la lengua castellana por la real Academia Espaola. Madri:
Imprenta de Don Manuel Rivadeneyra, 1869, p. 531.
38
Real Academia Espaola. Diccionario de la lengua espaola. Madri: Calpe, 1925, p. 842.
27
Outro trabalho em portugus que nos permite verificar as modificaes sofridas pelo
conceito de nao aquele reconhecido de fato como o primeiro dicionrio moderno da
lngua, o Diccionario da Lingua portugueza recompilado dos vocabularios impressos ate
agora, e nesta segunda edio novamente emendado e muito acrescentado, por Antonio de
Moraes Silva, publicado em 1789. A obra, escrita pelo lexicgrafo natural do Rio de Janeiro
como consta no subttulo, foi lanada pela primeira vez na cidade de Lisboa e manteve
reedies durante os sculos XIX e XX, circulando em Portugal e no Brasil.40
A segunda edio, considerada mais prxima de um formato definitivo, apareceu em
1813 com alteraes. Esse trabalho, que viria a ocupar um lugar significativo na lexicografia
dos dois lados do Atlntico, alcanou relevante importncia para a lngua portuguesa
moderna. Quanto ao verbete nao, apresentado inicialmente pela obra no ano de 1789, esse
vai se repetir em sua segunda edio, sem modificaes. A definio de Moraes tambm no
se diferencia muito da proposta oferecida por Bluteau. Diz Moraes: NAO, s. f, A gente de
hum paiz, ou regio, que tem linguas, leis e governo a parte: v. g. a Nao Franceza,
Hespanhola, Portugueza. Gente de nao i. e. descendentes de judeos, christos novos.
Raa, casta, espece, Prestes.41
O termo nacionalismo foi foco do interesse lexicogrfico, assim como em
castelhano, em um momento posterior s definies do conceito de nao. No entanto, a
39
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico. Coimbra: Collegio
das Artes da Companhia de Jesus, 1728, pp. 658-659. Disponvel em: <http://www.brasiliana.usp.br/pt-
br/dicionario/1/na%C3%A7%C3%A3o> (acessado em 30/09/2012).
40
Sobre o assunto, consultar: VERDELHO, Telmo, O dicionrio de Morais Silva e o incio da lexicografia
moderna, in Histria da lngua e histria da gramtica acta do encontro. Braga, Universidade do Minho /
ILCH, 2003, pp. 473-490. Disponvel em: <http://clp.dlc.ua.pt/Publicacoes/Dicionario_Morais_Silva.pdf>
(acessado em 30/09/2012). A proposta de Antnio Moraes implicou uma reforma significativa do trabalho do
padre jesuta Rafael Bluteau, ao conter transformaes relevantes, e modificar sua estruturao e forma de
apresentao. Houve, por um lado, uma reduo significativa da obra de Bluteau por meio da retirada de
milhares de entradas; isto , da macroestrutura da obra. Moraes reduziu tambm a forma de apresentao dos
verbetes, a microestrutura. Diversas entradas temticas, filosficas, de sinnimos e de explicaes de diversas
naturezas deram lugar a uma entrada com significados diretos e de carter monolngue. O autor optou ainda por
realizar inseres de outros milhares de palavras que estavam ausentes na obra de Bluteau. A obra popularizou-
se ainda mais em 1806, quando se lanou o Novo Diccionario da Lingua Portugueza, monolngue, de tamanho
reduzido, de uso prtico e porttil, voltado inicialmente aos estudantes.
41
MORAIS, Antnio Silva. Diccionario da lingua portugueza - recompilado dos vocabularios impressos ate
agora, e nesta segunda edio novamente emendado e muito acrescentado, por Antonio de Moraes Silva. Tomo
2. Lisboa: Oficinal de Simo Thaddeo Ferreira, 1789, p. 107. Disponvel em: <http://www.brasiliana.usp.br/pt-
br/dicionario/edicao/2> (acessado em 30/09/2012). Diccionario da lingua portugueza recompilado dos
vocabularios impressos at agora, e nesta segunda edio novamente emendado, e muito acrescentado, por
Antonio de Moraes Silva. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813. Na edio de 1835 do trabalho de Morais, o
termo nao no muda seu significado.
28
referncia no dicionrio da lngua portuguesa foi registrada bem mais tarde do que no
correspondente da lngua espanhola. Nem no trabalho pioneiro do jesuta de 1728, nem nas
publicaes de Moraes de 1789, pretensa reforma sobre o Bluteau, ou na segunda edio do
dicionrio vinda luz em 1813 e na quarta publicao da obra no ano de 1835, h entrada ou
referncias ao termo. Tampouco encontramos referncias ao conceito de nacionalismo na obra
de outro autor americano, Luiz Maria Pinto, promotor do Diccionario da lingua Brasileira
lanado em 1832.42
Nesse intervalo de tempo, podemos verificar as transformaes ocorridas nos verbetes
apresentados durante o sculo XIX. Observamos que a ideia construda em torno da
representao da nao, posta em comparao entre as duas lnguas, surgiu inicialmente de
forma mais abrangente em portugus do que em espanhol, com apresentao de mais de um
ncleo constituinte. Assim, nos dicionrios brasileiro e portugus comentados, a entrada para
nao se registra desde sua origem lexicogrfica de modo mais amplo. A apresentao
primeira j inclui referncias relacionadas s bases formadoras dos elementos de identidade
que sero parte integrante da representao moderna de nao. No entanto, se se acompanha o
desenvolvimento oitocentista na lngua castelhana, constata-se que o termo foi crescendo em
complexidade ao longo das sucessivas edies e terminou concretizando-se, ainda no sculo
XIX, em uma definio mais completa do que em portugus no tocante s matrizes
identitrias nacionais, ao serem ampliadas as referncias do conceito.
Quando abordamos os primeiros trinta anos do sculo XIX, processos de
transformao como o avano do capitalismo, o fim do Antigo Regime e as independncias
podem ter sido consideravelmente rpidos e profundos no que tange a suas mudanas. Em
contraposio, as modificaes encontradas nos verbetes dos dicionrios analisados parecem
tmidas se comparadas com os processos observados nos conturbados campos poltico,
econmico e social. Nessas esferas das sociedades ibero-americanas, para o caso do
nacionalismo, os eventos parecem ter se desenvolvido de forma mais clere que a
concretizao em propostas lexicogrficas da capacidade de se produzir um conceito em
forma de verbete dicionarizado a partir de um amplo elemento vivenciado na nova
organizao social.
42
PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionrio da lingua Brasileira. Ouro Preto: na Typographia de Silva, 1832.
Disponvel em: <http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/02254100#page/1/mode/1up> (acessado em
30/09/2012). O conceito de nao igual ao disponibilizado por Morais. A obra publicada em 1832 apresentava
praticamente o mesmo texto de Moraes para o verbete nao.
29
Se lenta foi a entrada nos dicionrios das formas nacin e nacionalismo, no o foi
menos a de americano. Ausente da primeira edio do Dicionrio de Autoridades, da RAE,
o verbete correspondente apareceu apenas em 1770, no primeiro e nico tomo (letras A-B) de
uma frustrada edio atualizada da obra, projeto cuja continuidade foi abandonada em favor
da edio lanada em 1780 em um s volume, da qual se retiraram os exemplos de uso
provenientes das autoridades. nesse solitrio volume da edio de 1770 que foi inserida,
por primeira vez pela RAE, uma entrada para a voz americano: El natural de Amrica lo
que pertenece ella.43
Em relao a identidades de dimenses geograficamente mais reduzidas, argentino
que ingressara na produo lexicogrfica da instituio em 1843 44 passou a incluir
acepes referidas a elementos identitrios apenas em 1869: El natural de la Repblica
Argentina, sea Provincias Unidas del Rio de la Plata. No caso de chileno o chileo, a
acepo que encontramos define como: El natural de Chile lo perteneciente aquel pas,
isso aconteceu em 1852.45 J brasileo estava presente nos dicionrios da RAE desde 1780,
como: Lo perteneciente al Brasil, y el natural de all.46
Esses verbetes, independentemente de suas datas de passagem a unidades
lexicogrficas, so indicativos da existncia, entre os habitantes da Amrica, de
reconhecimentos identitrios de pertencimento subdivididos em relao colonizao. De
fato, alm da condio de americano, era comum os cidados da poca denominar-se como
ingleses americanos, espanhis americanos ou portugueses americanos. Lus Cludio
Villafae Santos considera que esse reconhecimento foi matria de uma identidade pr-
43
Real Academia Espaola. Diccionario de la lengua castellana compuesto por la Real Academia Espaola.
Segunda impresin corregida y aumentada. Tomo primero. A-B. Madri: Joachn Ibarra, 1770, p. 222. Os
dicionrios de Bluteau, de 1728, de Moraes em 1789 ou de Pinto, de 1832, no apresentam entradas para o
vocbulo americano.
44
Real Academia Espaola. Diccionario de la lengua castellana por la Real Academia Espaola. Madri:
Imprenta de D. Francisco Mara Fernndez, 1843, p. 63. Temos a seguinte definio: Lo que es de plata, lo
parece. Argenteus.
45
Real Academia Espaola. Diccionario de la lengua castellana por la Real Academia Espaola. Madri:
Imprenta Nacional, 1852, p. 214.
46
Real Academia Espaola. Diccionario de la lengua castellana compuesto por la Real Academia Espaol,
reducido para un tomo para su ms fcil uso. Madri: Joachn Ibarra, 1780, p. 12. Em relao definio
identitria de argentino, brasileiro e chileno, no h entradas nos dicionrios de Bluteau (1728), de Moraes
(1789) ou de Pinto (1832).
30
nacional, sobretudo quando alinhados os sentimentos s ptrias locais, porm sem considerar
que j seriam referenciais das naes formadas posteriormente.47
De acordo com Franois-Xavier Guerra, em sua anlise historiogrfica sobre o
desenvolvimento das ideias sobre os nacionalismos, a possibilidade da existncia de um
nacionalismo americano, em um determinado momento da histria do continente, coaduna
elementos que refletem a complexidade do fenmeno nacional na Amrica hispnica durante
o desenrolar dos conflitos de independncia. Para o autor, em uma primeira poca, varivel
segundo os pases, Amrica inteira foi considerada como nao: uma nao americana em
luta contra a nao espanhola. Guerra problematiza ainda a construo dessa ampla
identidade nacional frente ao outro, considerando que a identidade americana era certa e
unitria apenas em relao com a Espanha peninsular e nesse sentido foi muito operativa
durante a guerra de Independncia.48 A unidade inicial era assim constituda com o auxlio
de um inimigo comum, e de elementos e projetos coletivos americanos, na poca superiores
aos mecanismos locais que levariam fragmentao da Amrica hispnica em Estados
nacionais.
Logo aps as lutas de independncia, o referido sentimento nacional comum foi
suplantado, no sem conflitos e esforos, e se metamorfoseou ou foi substitudo por
identidades mais locais. Guerra considera ainda que os reinos e as cidades, as quais
funcionavam como cidades-estado durante o perodo colonial, reassumiram sua soberania,
passando ento a adquirir uma nova dinmica poltico-administrativa e de constituio de
identidades. Na passagem de um modelo para o outro, ocorreu um processo de imploso das
frmulas identitrias mais amplas, como as representadas como sditos e partes integrantes da
monarquia espanhola ou/e pela ideia de uma suposta americanidade. 49 Somando argumentos
em favor da existncia de ligaes pr-nacionais vinculadas a tradies coloniais diversas,
Alfredo Jocelyn-Holt Letelier entende que: El liberalismo y el nacionalismo todava suscitan
lealtades histricas fuertemente arraigadas y las transformaciones que tienen lugar entre
1810 y 1830 tienden en general a justificar dichas lealtades.50
Diante da possibilidade da existncia de um nacionalismo antes da nao moderna,
pelo menos dois referenciais metropolitanos significativos reforam a ideia de um sentimento
47
SANTOS, Lus Cludio V. O Brasil entre a Amrica e a Europa: o Imprio e o interamericanismo (do
Congresso do Panam Conferncia de Washington). So Paulo: Editora UNESP, 2004.
48
GUERRA, Franois-Xavier. Modernidad e independencias. Ensayos sobre las revoluciones hispnicas.
Mxico: Fondo de Cultura Econmica, Editorial Mapfre, 1993, pp. 347-349.
49
Ibidem.
50
JOCELYN-HOLT LETELIER, Alfredo. La independencia de Chile. Tradicin, modernizacin y mito. Madri:
Editorial MAPFRE, 1992, p. 44.
31
51
Sobre a histria da Argentina, ver: GANDA, Enrique de. Historia poltica de Argentina: poca de Rosas.
Primera Parte. Buenos Aires: Claridad, 1994. GOLDMAN, Noem (coord.). Nueva Historia argentina.
Revolucin, Repblica, Confederacin (1806-1852). Tomo III, Buenos Aires: Editora Sudamericana, 1998.
HALPERN GONGHI. Tulio. Proyecto y construccin de una Nacin: 1846-1880. Buenos Aires: Emec
Editores, 2007. QUESADA, Mara Senz. La Argentina. Historia del pas y de su gente. Buenos Aires:
Debolsillo, 2006. VZQUEZ-RIAL, Horacio. La formacin del pas de los argentinos. Buenos Aires: Javier
Vergara Editor, 1999.
32
52
SHUMWAY, Nicolas, op. cit., pp. 280 e 370.
53
Esse territrio era uma Governao, chamada tambm de Reino de Chile. Do ponto de vista administrativo,
organizava-se em torno da Audincia, inicialmente em Concepcin (1565-1575), mas que depois passaria a se
desenvolver em Santiago, desde 1609.
54
COLLIER, Simon; SASTER, William F. Historia de Chile, 1808-1994. Cambridge: Cambridge University
Press, 1998, p. 33. Sobre a histria chilena, ver tambm: GONGORA, Mario. Ensayo histrico sobre la nocin
de Estado en Chile en los siglos XIX y XX. Santiago: Editora Universitaria, 13 ed., 2003. EYZAGUIRRE,
Jaime. Historia de as instituciones polticas y sociales de Chile. Santiago de Chile: Universitaria, 2001.
COUYOUMDIAN, Ricardo. Chile. Crisis imperial e independencia. Tomo I, Madri: Fundacin MAPFRE,
2011. JOCELYN-HOLT LETELIER, Alfredo, op. cit.
33
unidade regional e se constituram sobre a ptria chica, a Amrica portuguesa forjou-se pela
negao das localidades e pela afirmao de uma unidade anterior.55
Das razes desses movimentos distintos, fazem parte ainda os dois caminhos
percorridos pelas coroas espanhola e portuguesa nas guerras napolenicas.
Aps a invaso do territrio portugus pelas tropas de Napoleo, que resultou na
transferncia da corte de Lisboa para o Rio de Janeiro em 1808, o Vice-reino passou a ocupar
novos espaos nas relaes de poder com a metrpole. A mudana permitiu a criao de
novas instituies deste lado do Atlntico que influenciaram a vida na colnia. Por exemplo,
surgiram a partir de 1808 instituies modernizadoras como a Escola de Medicina, a Imprensa
Rgia, o Banco do Brasil e o Jardim botnico, a Biblioteca Real. 56 Politicamente, em 1815,
houve uma mudana de status derivada da elevao do Vice-reino a Reino Unido a Portugal e
Algarve.57 Assim, a centralizao do poder nas mos da corte transmutada, ou reforando os
limites e os representantes designados pelas coroas, a fora da comunidade, conjuntamente
com a compreenso de uma experincia e histria em comum, reforaram as ideias da
existncia de nacionalismos americanos que estavam surgindo antes das naes.58
Em relao ao estabelecimento dos poderes locais, as antigas cidades que tinham sido
sede da Capitania e do Vice-reino transformaram-se aps as independncias em capitais
nacionais. Semelhante status no foi conquistado da mesma forma e nos mesmos perodos.
Rio de Janeiro tornou-se capital do Imprio independente j em 1822, com contestaes at a
dcada de 1860,59 e Santiago em 1810, com poucas querelas quanto ao assunto. No caso de
Buenos Aires, o processo foi conflituoso e o reconhecimento definitivo como capital nacional
ocorreu somente em 1862, apesar da maior parte do tempo a cidade ter exercido um papel
central na regio.
55
Sobre as identidades construdas na Amrica na transio para a modernidade, ver: PIMENTA, Joo Paulo
Garrido, Portugueses, americanos, brasileiros: identidades polticas na crise do Antigo Regime luso-
americano, in almanack brasiliense, So Paulo, n. 03, maio 2006. Disponvel em:
<http://www.almanack.usp.br/neste_numero/n01/index.asp?tipo=artigos&edicao=3&conteudo=126> (acessado
em 20/08/2006).
56
SCHWARZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil 1870 a
1930. So Paulo: Companhia das Letras, 1993.
57
HOLANDA, Srgio Buarque de. Histria geral da civilizao brasileira. O Brasil monrquico. Tomo II, 2
volume, 1978. SKIDMORE, Thomas. Uma histria do Brasil. So Paulo: Paz e Terra, 1998. MOTA, Carlos
Guilherme (org). Viagem incompleta: a experincia brasileira (1500-2000). So Paulo: Editora SENAC, 2000.
58
ENRIQUEZ, Lucrecia, Da monarquia repblica: o Chile na Amrica (primeira metade do sculo XIX), in
PAMPLONA, Marcos; STUVEN, Ana Maria (orgs). Estado e nao no Brasil e no Chile ao longo do sculo
XIX. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.
59
Durante algum tempo houve contestao sobre a manuteno da capital no Rio de Janeiro, com propostas de
interiorizao ou mesmo mudana para outras provncias litorneas. Em 1960, o projeto de mudana da
administrao central, defendido desde a poca de Pombal, foi realizado construindo Braslia e transformando-a
na nova capital do pas.
34
60
SANTOS, Lus Cludio V., op. cit., p. 67. Santos, refletindo sobre o Brasil, afirma que o Imprio, por sua vez,
negou sua condio de americano em benefcio da elaborao de uma identidade relacionada s ideias de
civilizao, ordem e estabilidade que as elites compreendiam que estavam vinculadas Europa, distinguindo o
pas dos anrquicos vizinhos americanos.
35
pasado sino tambin por imposicin del gnero para el cual la construccin de la identidad
nacional es su funcin primera.61
Outro elemento que se soma a esses debates refere-se s identidades duplicadas e
construdas, dado que os homens que neles participaram pertenciam, pelo menos
ideologicamente, ao espao local e aos dois continentes, o qual influa na substituio da
antiga identidade imperial pela nova, nacional. Nessa elaborao, havia a ideia de uma
identidade dupla dentro da qual se somavam uma identidade americana e uma identidade
local, a das patrias chicas ou dos pases particulares. Tratava-se de comunidades e identidades
constitudas em sua percepo, sobretudo, por meio de combinaes espaciais. Existia, ento,
a possibilidade de ser portugus americano e paulista ao mesmo tempo, assim como,
paralelamente, espanhol americano e caraquenho.62
De acordo com Joo Paulo Garrido Pimenta, na Amrica portuguesa as identidades
coletivas do Brasil ou dos Brasis foram construdas de maneiras semelhantes, em uma
rede entre diversos interlocutores. A identidade, no caso do Imprio portugus, dava-se de
acordo com quem identificava quem ou conforme cada um se auto-identificava frente aos
outros, luso-americanos ou estrangeiros.63 Um portugus pernambucano s era concebido
dessa forma frente a um portugus paulista, j que, por outra perspectiva, o mesmo era visto
como sendo um portugus ou portugus da Amrica, em contraste com um holands ou outro
europeu. Dita identidade luso-americana foi transformando-se gradativamente desde 1808,
com a chegada da famlia real portuguesa colnia. Aps os eventos polticos da
independncia em 1822, os termos braziliense e, por fim, brasileiro passaram a denominar o
natural das terras da ex-Amrica portuguesa.64
Essa viso sobre o processo histrico que estava tendo lugar vinha sendo concebida
intelectualmente desde antes do estabelecimento das historiografias que surgiram a partir dos
Estados nacionais. De acordo com Karen Macknow Lisboa, o tema suscitou grande interesse
nos escritores viajantes que estiveram na primeira metade do sculo XIX no continente.
Diversos desses viajantes contriburam para a elaborao de ideia de uma identidade nacional
61
ARNOUX, Elvira Navaja de. Los discursos sobre la nacin y el lenguaje en la formacin del estado (Chile,
1842 1862). Estudio glotopoltico. Buenos Aires: Santiago Arcos Editor, 2008, p. 45.
62
FAUSTO, Boris; DEVOTO, Fernando. Brasil e Argentina. Um ensaio de histria comparada (1852-2002).
So Paulo: Editora 34, 2004, p. 30.
63
Sobre a construo da identidade frente alteridade, ver: GEERTZ, Clifford. O saber local. Ensaios de
antropologia interpretativa. Rio de Janeiro: LTC, 1989. TODOROV, Tzvetan, A Conquista da Amrica: a
questo do outro. So Paulo: Martins Fontes, 2010. MORSE, Richard M. O espelho de Prspero: culturas e
idias nas Amricas. So Paulo: companhia das Letras, 1988.
64
PIMENTA, Joo Paulo Garrido, op. cit.
36
conceituao das naes, dos nacionalismos e da civilizao americana, a formao dos novos
Estados, os mecanismos de pertencimento/excluso ou a aceitao de formas de governo,
somente para citar algumas questes relativas ao tema.
Nesse amplo leque de possibilidades terico-metodolgicas referentes nao e aos
nacionalismos, foram desenvolvidos trabalhos em quantidade relevante dentro de distintos
campos da historiografia que se filiaram a diferentes escolas de pensamento. O interesse em
relao nao esteve presente em diversas pocas e propostas, fazendo-se constar ao menos
desde o iluminismo, passando pelo romantismo, positivismo, marxismo, Annales,
estruturalistas e culturalistas, todas elas empreendendo esforos na abordagem histrica e
conceitual do tema. Houve estudiosos que optaram por uma abordagem que possibilitasse
postulaes mais ligadas lngua (principalmente na Europa); outros preferiram guiar-se pela
definio do territrio, pela identificao nacional atravs da histria e da literatura, pela
etnia, pelo papel da comunicao em massa, ou por combinaes desses fatores. H diversos
temas que vm servindo de fio condutor da pesquisa histrica sobre o conceito e o papel da
nao e dos nacionalismos nas mentes de homens de outrora e de hoje.
Nas Cincias Humanas e Sociais, vm-se desenvolvendo trabalhos que confirmam as
possibilidades mltiplas de abordagem desses objetos. Para exemplificarmos algumas dessas
opes terico-metodolgicas, podemos indicar como Norbert Elias associa o controle e
modificaes das pulses, observados atravs dos costumes dirios durante os sculos e
internalizados no processo civilizador, s necessidades requeridas para a edificao do
Estado.70 Outro exemplo que remete para as multiplicidades de estudo sobre os temas
discutidos refere-se ao trabalho de Clifford Geertz sobre a construo representacional de
formao do Estado e seus aparatos polticos atravs da ao simblica. Essa ao
representacional, executada atravs de imensos funerais pblicos de autoridades, em que so
observados papis precisos para seus atores e acontecimentos rituais coletivos, servia de base
para a manuteno do Estado teatro balins do sculo XIX, o Negara.71
Para finalizar nossos exemplos, trazemos uma das ideias guia creditadas neste estudo
acerca da importncia da cultura escrita e escolar, sobretudo em nosso caso no que diz
respeito ao papel da intelectualidade, da historiografia e da memria nacional. Escolhemos
esta abordagem pelo mundo das letras, inspirados nos trabalhos de Gellner, Hobsbawm e
Anderson, que no concebem a formao das naes da mesma maneira, mas apontam para
caminhos prximos. A crtica de Hobsbawm a Gellner demonstra o centro da discordncia
70
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Vol. 2, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
71
GEERTZ, Clifford. Negara: o estado teatro no sculo XIX. Rio de Janeiro: Bertrand, 1991.
39
metodolgica com seu colega em relao ao fato de conceber a construo da nao vista de
cima:
Por essa razo as naes so, do meu ponto de vista, fenmenos duais,
construdos essencialmente pelo alto, mas que, no entanto, no podem ser
compreendidas sem ser analisadas de baixo, ou seja, em termos das
suposies, esperanas, necessidades, aspiraes, e interesses das pessoas
comuns, as quais no so necessariamente nacionais e menos ainda
nacionalistas. Se eu tenho uma crtica sria ao trabalho de Gellner sobre
sua preferncia pela perspectiva da modernizao pelo alto, o que torna
difcil uma ateno adequada viso dos de baixo.72
Nesse sentido, recordamos as contribuies de Benedict Anderson com sua teoria das
comunidades imaginadas, impulsionadas por um nacionalismo, alinhando-o no a ideologias
polticas conscientemente adotadas, mas aos grandes sistemas culturais que o precederam, e a
partir dos quais ele surgiu, inclusive para combat-los. Esse nacionalismo inicial, delimitado
posteriormente, contribuiu com elementos formadores das novas naes, como as lnguas e os
textos, que passaram a atingir uma funo e patamares novos no incio do sculo XIX, com o
avano do que Anderson chamou de capitalismo editorial.73
Nas ltimas dcadas do sculo XX, a continuidade e o apreo por esses estudos vm se
reciclando e se expandindo dentro das academias.74 Em uma breve avaliao sobre o que
estava se elaborando sobre o tema, Eric Hobsbawm, tendo como referncia principalmente
trabalhos produzidos na Inglaterra, afirma que entre 1968 e 1988 houve um incremento da
ateno do historiador pela questo da forja da nao. Dos estudos destacados por esse
autor, mencionaremos alguns como: Language Problems of Developing Countries (Nova
York, 1968); The Formation of National in Western Europe (Princeton, 1975), com Charles
Tilly (org.); Nations before Nationalism (Chapel Hill, 1982), de John Armstrong; Imagined
Communities (Londres, 1983), de Benedict Anderson; Nations and Nationalism (Oxford,
1983), de Ernest Gellner; The Invention of Tradition (Cambridge, 1983), de Eric Hobsbawm e
Terence Ranger (orgs.).75
72
HOBSBAWM. Eric, op. cit. pp. 19-20.
73
ANDERSON, Benedict, op. cit., p. 39. Os grandes sistemas citados aqui por Anderson so a comunidade
religiosa e o reino dinstico.
74
GUERRA, Franois-Xavier, op. cit.
75
HOBSBAWM. Eric, op. cit. Sobre as discusses em torno dos temas referentes nao e sua ligao ao
mundo simblico do imaginrio, ver: SANTOS, Afonso Carlos Marques dos, Nao e histria: Jules Michelet e
o paradigma nacional na historiografia do sculo XIX, in Revista de histria. So Paulo, n. 144, jul. 2001.
Disponvel em: <http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-
83092001000100005&lng=pt&nrm=iso> (acessado em 09/11/2012).
40
76
KNIGHT, Alan, Pueblo, poltica y nacin, siglos XIX y XX, in URN, Vctor Manuel Uribe; MESA, Lus
Javier Ortiz (orgs), op. cit., p. 372.
77
Na segunda traduo brasileira do livro, h a adio de um novo captulo denominado Pioneiros crioulos.
78
ANNINO, Antonio, Las ocultas paradojas del V Centenario, in PLASENCIA DE LA PARRA, Enrique
(org.). La invencin del Quinto Centenario. Mxico: INAH, 1996.
79
GERBI, Antonello. O Novo Mundo. Histria de uma polmica (1750-1900). So Paulo: Companhia das
Letras, 1996.
41
em anlise das propostas da reconhecida Generacin del 37, aponta para o carter, por vezes
contraditrio, de seu discurso. Shumway entende que Domingo Faustino Sarmiento, Esteban
Echeverra e Juan Bautista Alberdi, embora criticassem o posicionamento dos unitrios por
sua imitao da Europa, apontavam em seus escritos para uma repetio dos mesmos
modelos, porm mirando-se em exemplos como a Alemanha, a Frana e a Inglaterra, e
negando a tradio espanhola.80
A importao de ideias do velho continente Amrica tambm foi alvo de
investigaes por parte de Germn Colmenares em Las convenciones contra la cultura,81 que
indica a seu ver uma aparente incompatibilidade entre as teorias importadas de uma Europa
capitalista e industrial, e uma realidade local diferenciada em cada nao americana em
formao.82
Independentemente de qual fosse o modelo ou o sentido usado para a palavra nao
e de como ela foi vivenciada, o que podemos indicar que, entre 1770 e 1830, dito termo era
um dos conceitos essenciais nos discursos polticos revolucionrios relacionados liberdade e
identidade americanas. Na Amrica ibrica, a construo da nao imaginada constituiu
caminhos prprios, traados com os elementos valorizados/esquecidos em cada novo espao
poltico nacional.83 Aps o processo de emancipao poltica, superadas as lutas de
independncia e a necessidade de afirmar a autonomia frente a um Estado colonizador
europeu, o discurso sobre a identidade nacional vai circular disseminadamente entre as elites
intelectuais na poro ibrica do continente. Com o incio da construo do que virar a ser o
Estado nacional, ir surgir tambm a necessidade de se elaborar uma nao com identidade
especfica, como comunidade imaginada. E a historiografia, assim como a ampliao do
sistema educacional e da alfabetizao, sero ento pilares da construo das mitologias
nacionais.
80
SHUMWAY, Nicolas, op. cit., pp. 209-211.
81
COLMENARES, Germn, op. cit.
82
Podemos tambm, em oposio leitura de Colmenares, seguindo outra viso do problema, considerar que
estas ideias estavam dentro das perspectivas dos interesses dos intelectuais americanos que visavam ampliar o
capitalismo e suas relaes no continente.
83
ARNOUX, Elvira Navaja de. op. cit., p. 51. ARNOUX, Elvira Navaja de, Discurso pedaggico y discurso
poltico en la construccin del objeto Nacin Chilena. El Manual de Historia de Chile de Vicente Fidel Lpez,
1845, in Cuadernos Recienvenido. So Paulo: Universidade de So Paulo, n. 25, 2010. Disponvel em:
<http://dlm.fflch.usp.br/sites/dlm.fflch.usp.br/files/00%20Recienvenido%2022.pdf> (acessado em 27/12/2012).
42
84
GOLDMAN, Noem (coord.). Lenguaje y Revolucin: conceptos polticos clave en el Ro de la Plata, 1780-
1850. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2008, p. 13. Segundo a autora, at a formao da gerao de 1837, a
produo de tratados polticos, literrios e filosficos era bastante escassa para a anlise semntica na Argentina.
85
GUERRA, Franois-Xavier, A nao moderna: nova legitimidade e velhas identidades, in JANCS, Istvn
(org.). Brasil: Formao do Estado e da Nao. So Paulo: Hucitec; Iju: Editora Uniju, 2003, pp. 34-35.
86
CHAMI, Pablo A., Nacin, identidad e independencia en Mitre, Levene y Chiaramonte. Buenos Aires:
Prometeo Libros, 2008. CHIARAMONTE, Jos Carlos. Nacin y Estado en Iberoamrica. El lenguaje poltico
en tiempos de las independencias. Buenos Aires, Editorial Sudamericana, 2004.
87
GUERRA, Franois-Xavier, op. cit. p. 34. Embora Guerra afirme ser o verbo nascor o timo de nao, sua
origem etimolgica remete para a forma latina natio, -onis, documentada, por exemplo, em Marco Tlio Ccero,
que afirma, nas Filpicas: Omnes nationes servitutem ferre possunt: nostra civitas non potest (Todas las
naciones pueden sobrellevar la servidumbre; nuestra ciudad, no). CICERN, Marco Tulio. Filpicas.
Barcelona, Planeta, 1994, pp. 158-159. Disponvel em: <http://historiantigua.cl/wp-
content/uploads/2011/07/Ciceron-Marco-Tulio-Filipicas-bilingue.pdf> (acessado em 08/03/2013).
88
Para acompanhar o percurso de mutao da palavra nao, ver: CID, Gabriel; DUJISIN, Isabel Torres,
Conceptualizar la identidad: patria y nacin en el vocabulario chileno del siglo XIX, pp. 23-51, in CID,
Gabriel; FRANCISCO, Alejandro San (edit.). Nacin y Nacionalismo en Chile: Siglo XIX. Vol. 1, Santiago:
Centro de Estudios Bicentenario, 2009. Para outras consideraes acerca de conceitos no sculo XIX na
Amrica, consultar: SEBASTIN, Javier Fernndez (Director). Diccionario poltico y social del mundo
43
iberoamericano. La era de las revoluciones, 1750-1850, [Iberconceptos-I]. Madri: Fundacin Carolina, 2009.
Disponvel em: <http://www.iberconceptos.net/wp-content/uploads/2012/10/DPSMI-I-bloque-NACION.pdf>
(acessado em 20/02/2013).
89
CHIARAMONTE, Jos Carlos, op. cit., pp. 50-55.
90
HOBSBAWM, Eric, op. cit.
44
Alan Knight, por sua parte, concebeu o problema de maneira muito distinta da
elaborada por Chiaramonte. Considera o nacionalismo como um forte elemento para a
construo da nao. Tambm no comparte a ideia do surgimento do Estado-nao aps a
Revoluo Francesa, ao entender que este processo mais longo e tem suas razes na Idade
Mdia. Knight v o patriotismo como uma relao existente entre o indivduo e sua ptria, que
remete aos atos pelos quais esse defende a sua soberania. O nacionalismo cultural seria, por
sua vez, o brao direito do patriotismo e do nacionalismo.94 Este autor considera, ainda, ter
ocorrido um surgimento concomitante entre a nacionalizao das populaes e a forja dos
Estados nacionais.
91
ANDERSON, Benedict, op. cit.
92
KNIGHT, Alan, op. cit., pp. 376-377.
93
CHIARAMONTE, Jos Carlos, pp. 19-20.
94
KNIGHT, Alan, op. cit., pp. 376-377.
45
95
GUERRA, Franois-Xavier. Modernidad e independencias. Ensayos sobre las revoluciones hispnicas.
Mxico: Fondo de Cultura Econmica, Editorial Mapfre, 1993.
96
Embora no oferea uma definio explcita, seno uma exemplificao e descrio indireta, Shumway
entende que, ainda que se trate de produtos to artificiais quanto as fices literrias, so necessrias para dar
aos indivduos um sentido de nao, de povo, uma identidade coletiva e um objetivo nacional. Essa
necessidade, que leva, por exemplo, a obedecer as leis com uma coero mnima, concebida como positiva,
pois nada promove tanto as reformas como o esforo para que a realidade coincida com a fico-diretriz.
SHUMWAY, Nicols, op. cit., pp. 17-18.
97
Idem, p. 25.
98
Idem, pp. 26-29.
46
99
HALPERN DONGHI, Tulio. Proyecto y construccin de una Nacin: 1846-1880. Buenos Aires: Emec
Editores, 2007.
100
Estamos nos referindo Biografia de Belgrano, publicada em Galera de Celebridades Argentinas, de Juan
Mara Gutirrez, reeditada como Historia de Belgrano y de la independencia argentina (1876-1877) e como
Historia de San Martn y de la emancipacin sudamericana, em 1890.
101
QUIRS, Pilar Gonzlez Bernardo de. Civilidad y poltica en los orgenes de la Nacin Argentina: las
sociabilidades en Buenos Aires, 1829-1862. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econmica, 2008. Nesse trabalho,
Quirs aborda a importncia dos espaos de sociabilidade, como cafs, pulperias e sales de leituras, mostrando
como ali se construam e se debatiam projetos nacionais para um futuro pas que se formava.
47
Segundo Pilar Gonzlez Bernaldo de Quirs, a ideia de nao argentina esteve ligada
ao momento de independncia e encarnou um momento poltico, a forma do novo sujeito
carregado de soberania. Essa construo, devido identidade criolla de pertencimento
nao espanhola, constituiu-se em problema, no apenas no Rio da Prata, mas em toda a
Amrica. No entanto, no Rio da Prata fundou-se a comunidade poltica, mesmo esta no tendo
conseguido tomar uma forma. Nas duas primeiras dcadas aps a Revoluo de Maio,
formaram-se quatro assembleias constituintes fracassadas: em 1813, de 1816 a 1819, de 1824
a 1826 e em 1828. Uma nova carta magna seria elaborada apenas aps a queda de Rosas, com
a Constituio da Confederao Argentina em 1853, porm desfeita com a separao de
Buenos Aires, que elaborou uma Constituio prpria em 1854. Depois de novos
enfrentamentos entre a cidade portenha e a Confederao da Argentina, conseguiu-se instituir
um projeto que estabelecia a unidade nacional em 1862. Neste sentido, a ideia de nao no
Rio da Prata se deslocou do Estado para a sociedade e s representaes construdas pelas
elites intelectuais.102
O momento de construo poltica na Argentina pode ser analisado luz dos cenrios
das diferentes pocas. A primeira dcada ps-independncia foi marcada por sucessivas
tentativas de estabelecer uma nova ordem institucional. Apesar da tomada de poder pelos
patriotas de Buenos Aires em 1810 sem nenhuma participao das vrias provncias,
governadas por Audincias e Intendncias , a independncia poltica foi declarada somente
em 9 de julho de 1816 no Congresso de Tucumn, com a criao das Provncias Unidas do
Rio da Prata.103 A Constituio finalizada apenas em 1819, embora nunca tenha entrado
em vigor era de carter nacionalista e fora pensada para ser adaptvel a um regime
monrquico, representando a opinio da maioria da elite revolucionria, at 1820, em favor
de uma monarquia constitucional, com o estabelecimento de um monarca de origem inca ou
europeu. No entanto, com o acirramento das desavenas, os federalistas no participaram da
iniciativa e nenhum pas estrangeiro reconheceu a entidade instituda. A instabilidade pode ser
observada tambm na sucesso de governos que se estabeleceram em dez anos: trs juntas
(1810-1811), dois triunviratos (1811-1814) e seis diretores supremos (1814-1820). Em 1820,
102
Idem, pp. 31-32.
103
As demais provncias deixaram de enviar representantes para o congresso, por no aceitar a hegemonia da
cidade portenha. O Paraguai, desde os primeiros movimentos de independncia, como propunha Jos Gaspar
Rodrguez Francia, no aceitava qualquer poder alm do que considerava serem suas prprias fronteiras. A
Banda Oriental, Corrientes, Misiones, Entre Ros e Santa Fe, que formavam a Liga Federal, sob a liderana de
Artigas, tambm rejeitaram as propostas bonaerenses. No entanto, outras provncias como Mojos, Charcas e
Chiquitos, pertencentes ao Alto Peru, que possua vrias outras provncias, enviaram representantes. Iniciou-se
assim, uma grande indefinio, que se prolongaria por vrias dcadas, das fronteiras geogrficas subentendidas
pelos nomes Argentina ou Provncias Unidas.
48
na batalha de Cepeda, as Provncias Unidas da Amrica do Sul104 foram vencidas pelas tropas
do litoral, com o qual desapareceu, novamente, um governo central. Em 1821, as antigas
provncias deram espao a treze provncias independentes.105
Aparentemente, as primeiras discordncias a essa tendncia centralista da cidade
portenha foram registradas no Alto Peru, na provncia de Charcas, onde prevaleceu a oposio
s pretenses da revoluo de maio, inclusive com movimentos de reincorporao ao vice-
reino do Peru. Desde os primeiros momentos, todas as regies recusaram a tutela de Buenos
Aires, reagindo, inclusive pelas armas. Posteriormente, outras regies os atuais Paraguai,
Uruguai e parte da Bolvia tambm questionaram o poder poltico de Buenos Aires, com
um olhar que dava j contornos gerais ao que seriam os Estados nacionais contemporneos.
Estes movimentos distintos tornam a questo nacional na Argentina mais complexa
quanto s suas origens, papis e significados. Segundo Oscar Tern, o conceito de nao que
surgiu imediatamente no vice-reinado da Prata bem distinto do conceito moderno. Como nas
outras Juntas que surgiram, em 1810 esteve presente em Buenos Aires a defesa da monarquia
espanhola, em nome de uma nao, acorde com o artigo 1 da Constituio de Cdiz de 1812,
segundo o qual la Nacin espaola es la unin de todos los espaoles de ambos
hemisferios. Nesse sentido, j antes de 1810, Mariano Moreno utilizara la categora nacin
agrupando al conjunto de los pueblos espaoles, tanto europeos como americanos.106 A
Junta, no plano territorial, entendia que a ela correspondia a defesa daquilo que estava,
poca, dentro dos limites do vice-reinado da Prata, os atuais Argentina, Uruguai, Paraguai e
Bolvia. O termo argentino que fora utilizado em 1602, no poema La Argentina de Del
Barco, para designar apenas aos habitantes de Buenos Aires, criollos ou espanhis foi-se
modificando, de modo que esta designao regional passou a ser ampliada.107 Assim, a nao,
concebida nos escritos de Mariano Moreno produzidos nos primeiros momentos da
Revoluo de Maio, apresenta um sentido inicial que seria abandonado.
Em Buenos Aires, no congresso constituinte, o tema da nao voltou a ser discutido,
tomando como uma de suas referncias as reflexes vindas da universidade, onde era
104
O nome Provincias Unidas del Ro de la Plata foi usado de 1811 at 1816, quando foi suplantado por
Provincias Unidas en Sud-Amrica, usado na Declarao de Independncia de 1816 e na Constituio de 1819.
Essa troca foi efetuada para dar a possibilidade de a regio ser integrada pelas provncias do Alto Peru, do
Paraguai e da Banda Oriental. Ver: SOUTO, Nora; WASSERMAN, Fabio, Nacin, in GOLDMAN, Noem
(coord.), op. cit., p. 87.
105
MYERS, Jorge, A revoluo de independncia no Rio da Prata e as origens da nacionalidade argentina
(1806-1825), in MADER, Maria Elisa; PAMPLONA, Marco A. (orgs), Revolues de independncia e
nacionalismos nas Amricas: Regio do Prata e Chile. So Paulo: Paz e Terra, 2007, p. 77.
106
TERN, Oscar. Historia de las ideas en la Argentina. Diez lecciones iniciales, 1810-1980. Buenos Aires:
Siglo Veintiuno Editores, 2010, p. 51.
107
Ibidem.
49
108
SOUTO, Nora; WASSERMAN, Fabio, op. cit., p. 88.
109
Ibidem.
110
VZQUEZ-RIAL, Horacio, op. cit.
50
dos enigmas mais recorrentes de nossa histria, pois no acredita poder ser entendida mais
como to segura a ideia de que o Estado brasileiro teria constitudo a nao.111
Richard Graham, ao analisar a questo da construo da nao no Brasil, aponta para o
desenvolvimento da perspectiva terica qual Jancs se referia a respeito da questo
nacional. Graham traou o caminho desenvolvido pela historiografia brasileira, pela
abordagem de leituras que se fixaram sobre distintos elementos como construtores de um
Estado nacional. Em relao s precedncias que envolvem o nacional, indica que Jos
Honrio Rodrigues j apontava a existncia de uma historia nacional antes da independncia,
por estar o desejo da unidade nacional j presente naquela poca. Honrio Rodrigues seguia,
assim, a historiografia criada no Instituto Histrico e Geogrfico de Brasil (IHGB), que
alimentara, desde seu incio, a ideia de uma pr-existncia da nao, anterior formao do
pas, desde os tempos coloniais. Por sua vez, em relao precedncia ou no do Estado sobre
a nao, Srgio Buarque de Holanda afirma que a unidade nacional foi constituda por meio
do Estado.112
De maneira geral, segundo Graham, depois da independncia as elites, num primeiro
momento, propuseram maior autonomia local, tendo-o feito alguns de seus membros com
mpetos republicanos. Entretanto, frente aos conflitos que surgiam e desorganizao
imperante, passaram a defender uma unidade sob a monarquia e a instaurao de um governo
centralizado. A efervescncia das camadas mais pobres e dos escravos parecia ameaar mais
as elites locais do que um governo centralizado na provncia do Rio de Janeiro. Com uma
monarquia constitucional e a instituio de um governo nacional, as elites locais comearam a
exercer seu papel dentro de uma perspectiva de pas, a qual era, ao mesmo tempo, local e
nacional. Esta situao levou o Estado a construir uma nao com a unidade brasileira.113
Para Chiaramonte, no Brasil a questo tambm se colocava, como na Argentina, em
termos de um Estado que estava edificando a nao, relacionada naquele com a manuteno
da monarquia. No caso do Brasil, acredita o autor, a soluo monrquica foi uma estratgia
das elites que aspiravam a formar um Estado centralizado, temendo que a instaurao da
repblica levasse fragmentao da unidade, se que ela existia, claro. Assim, a
111
JANCS, Istvn (org.), op. cit.
112
GRAHAM, Richard, Construindo uma nao no Brasil do sculo XIX: vises novas e antigas sobre classe,
cultura e Estado, in Revista Dilogos, vol. 1, n. 5, 2001. Disponvel em:
<http://www.dhi.uem.br/publicacoesdhi/dialogos/volume01/vol5_mesa1.html#_ednref38> (acessado em
22/01/2013).
113
Idem.
51
114
CHIARAMONTE, Jos Carlos, pp. 73-75.
115
MOTA, Carlos Guilherme, Ideias de Brasil: formao e problemas (1817-1850), in MOTA, Carlos
Guilherme (org.), op. cit., pp. 197-237.
116
CID, Gabriel; FRANCISCO, Alejandro San (edit.), op. cit., pp. XIV-XV. Estes autores consideram que o
ponto de partida dos estudos contemporneos sobre a nao no Chile teve seu incio em 1981 com Mario
Gngora, partindo da perspectiva que o Estado formou a nacionalidade. Esta nacionalidade estatal havia sido
composta pela ao nas reas de educao, na realizao das festas nacionais e na produo de smbolos
chilenos. GONGORA, Mario. Ensayo histrico sobre la nocin de Estado en Chile en los siglos XIX y XX.
Santiago: Editora Universitaria, 13 ed., 2003.
52
1836 e 1839; continuao, a guerra naval contra a Espanha, de 1864 a 1866; a seguir, a
guerra do Pacfico, que durou de 1879 a 1883, vivida como guerra nacional; e, por fim, a
guerra civil de 1891.117
Segundo Ricardo Krebs, na segunda metade do sculo XVIII, existia nas classes
letradas chilenas um apego patritico natureza, sendo a beleza de sua terra um tema comum
nos atores locais. Esta crena possua um significado poltico, pois gerava um valor especfico
nico. Segundo suas representaes, os efeitos positivos de um clima ameno e equilibrado
influenciariam a formao dos habitantes locais, como argumentaram Aristteles e
Montesquieu, produzindo homens de carter moderado. O isolamento geogrfico tambm
contribuiu para a formao de uma identidade, com uma ideia territorial prpria presente j no
incio da dcada de 1810, formando um futuro Estado-nao independente.118
Jorge Pinto Rodrguez cr, igualmente, que o sentimento nacional iniciado no Chile no
final do sculo XVIII pelas elites locais fomentou a formao do Estado, que levaria, por sua
vez, constituio da nao. Para este autor, a nao poltica havia surgido da ao da
nao cultural. Esse nacionalismo viu a luz da mo de jovens que viajavam para a Europa
com o objetivo de estudar e que, desde o velho continente, em um clima de saudosismo e
melancolia, produziam imagens mticas sobre seu territrio e sua populao.119
Esses sentimentos possuam uma funo didtica a respeito da ptria. A formao da
conscincia sobre ela atravs da leitura e das produes literrias tem, entre seus
representantes, algumas obras de Andrs Bello, que contriburam para a formao do cidado
das novas naes. Para Jos Ramos, a funo didtica se expressa desta forma:
117
GNGORA, Mario. Ensayo histrico sobre la nocin de Estado en Chile en los siglos XIX y XX. Santiago de
Chile: Editorial Universitaria, 2010, pp. 59, 66, 71.
118
KREBS, Ricardo. Orgenes de la conciencia nacional chilena, pp. 3-22, in CID, Gabriel; FRANCISCO,
Alejandro San (edit.), op. cit.
119
RODRIGUEZ, Jorge Pinto, El orden, el progreso y los mapuches. Algunos dilemas del Estado, in CID,
Gabriel; SAN FRANCISCO, Alejandro. Nacin y Nacionalismo en Chile. Siglo XIX. Vol. 2, Santiago: Ediciones
Centro de Estudios Bicentenario, 2009.
120
RAMOS, Jos (org.), Andrs Bello: anotaciones para una potica del paraso perdido, in BELLO, Andrs.
Antologa Esencial. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2011, p. XI.
53
De acordo com Gabriel Cid e Isabel Torres Dujisin, a nao no Chile j estava
vinculada ideia de Estado desde a dcada de 1820, firmando-se em 1830 com a Constituio
de 1833, onde a ideia de nao adquiriria uma concepo poltica, iniciando tambm uma
discusso cultural. Este processo pode ser percebido pela constatao da multiplicao da
presena do adjetivo nacional aplicado s novas instituies do Estado.121 Esta mudana de
perspectiva teve como um dos pontos de inflexo a vitria na guerra contra a Confederao
Peru-boliviana (1835-1839), com uma retomada do mito do guerreiro araucano pr-hispnico
presente na cultura chilena.122
Nesse pas, a auto-percepo de uma excepcionalidade honrosa na construo da
nao chilena, em comparao com as demais regies da Amrica hispnica, nas palavras de
Alberdi, constituiu-se em uma importante ideia para a articulao do discurso nacional, desde
a segunda metade do sculo XIX. A Argentina, por sua parte, tambm produziu
posteriormente uma autoimagem vitoriosa e de excepcionalidade, principalmente aps a
dcada de 1860, que se intensificou com os progressos materiais e institucionais alcanados a
partir da dcada de 1880. Para Tulio Halpern Donghi, essa excepcionalidade da Argentina em
direo nao foi iniciada com os escritos da gerao de 37. 123 O Brasil gerou, igualmente,
discursos positivos sobre sua singularidade, exaltando a natureza, sua grandeza e a monarquia,
discursos esses difundidos na literatura, na histria e nas artes.124
No Chile, o ambiente de construo cultural da nao se expandiu na dcada de 1840,
sendo o interesse pela discusso sobre a cultura nacional uma das caractersticas da gerao
que se formou em torno da Sociedad Literaria em 1842. Um dos seus principais lderes, Jos
Victorino Lastarria, neste sentido, indagava sobre o estado da literatura e propunha uma
anlise da histria do pas em que se articulassem o seu discurso sobre a literatura e a
nacionalidade, contribuindo construo de uma comunidade cultural que se estabeleceria e
difundiria na dcada de 1850. Um dos pontos defendidos pela gerao chilena de 42 foi o
ataque herana espanhola. Constantemente buscou-se elaborar uma nova identidade
nacional em contraponto com o passado colonial. A histria da nao foi colocada no centro
121
Para acompanhar o percurso de mutao da palavra nao, ver: CID, Gabriel; DUJISIN, Isabel Torres,
Conceptualizar la identidad: patria y nacin en el vocabulario chileno del siglo XIX, pp. 23-51, in CID,
Gabriel; FRANCISCO, Alejandro San (edit.). Nacin y Nacionalismo en Chile: Siglo XIX. Vol. 1, Santiago:
Centro de Estudios Bicentenario, 2009.
122
CID, Gabriel; DUJISIN, Isabel Torres, op. cit.
123
HALPERN DONGHI, Tulio, op. cit.
124
DIEHL, Astor Antnio. A cultura historiogrfica brasileira: do IHGB aos anos 1930. Passo Fundo: Ediupf,
1998. RICUPERO, Bernardo. O romantismo e a ideia de nao no Brasil (1830-1870). So Paulo: Martins
Fontes, 2004.
54
125
CID, Gabriel; FRANCISCO, Alejandro San (edit.), op. cit., pp. XXII-XXIII.
55
passaram por um processo que se edificou de acordo com avanos e retrocessos derivados das
condies locais.
No Chile, v-se um aparato moderno constitudo com maior organicidade na dcada
de 1830. No Brasil, com a manuteno da monarquia, o Estado sofreu um desmonte menor e
uma reorganizao menos profunda, pelo qual manteve mais continuidades na sua reforma
das que ocorreram nos pases hispano-americanos. Na Argentina, os problemas na
constituio de uma unidade nacional, que apresentou at a dcada de 1860 diversas formas
pr-nacionais, em geral conflitantes, permitiram a gerao, por vezes, de Estados efmeros ou
de mais de um Estado no atual territrio argentino. Independentemente de terem sido, na
Amrica emancipada, Estados fracos ou fortes, mais liberais ou mais conservadores, com
maior amplitude de atuao ou mais localistas, acreditamos que estavam constitudos antes e
aps as independncias e que j estavam relacionados, ab initio, s concepes de nao.
A ideia de um nacionalismo, ou, como diz Hobsbawm utilizando um termo
controverso, de um protonacionalismo estava presente nos projetos das elites locais antes
das independncias. No nos posicionamos a respeito de sua origem, nem do seu momento
inicial do seu aparecimento. Esse nacionalismo em formao, de fato, tornar-se- estabelecido
apenas na segunda metade do sculo XIX, porm seu incio ocorre dcadas antes. No entanto,
entendemos que, nas dcadas de 1830, 1840 e 1850, houve intensos esforos voltados
nacionalizao dos novos Estados e dos respectivos povos advindos da modernidade. Provas
destes interesses por uma questo nacional, amplamente difundidos na Amrica ibrica, foram
a preocupao pelo incentivo de uma produo literria local e pela definio de
ordenamentos jurdicos para os respectivos Estados, assim como o fato de o tema da nao ter
surgido nos ambientes intelectuais como foco nas discusses sobre a organizao dos pases
que se formavam.
Um problema presente neste mundo letrado consistiria no contedo das ideias de
nacionalidade. Quais eram os contedos que davam forma nao? Estavam definidos em
quais bases? Dando ouvidos ao que nos apontam nossos interlocutores do sculo XIX, com o
que nos deparamos na poca com propostas a ser realizadas, projetos, contedos
programticos para um futuro imediato. O que temos so constataes de ausncia de traos
definidos que indiquem as qualidades ou as caractersticas que conformavam cada nao
naquela poca. Encontramos, isso sim, uma crena na existncia de uma nacionalidade que
faltava ser definida, ao menos intelectualmente. Tratava-se de edificar as bases sobre as quais
se poderia imaginar uma comunidade especfica. Por isso, os conselhos de diversos
56
intelectuais para que os jovens escrevessem, se debruassem sobre o pas, para que
esquecessem a Europa. Esse processo de reflexo sobre a nao nacionaliza o Estado com seu
aval e incentivo, ao tempo que estabelece, ele prprio, uma ideia de nao.
A busca da ampliao do entendimento das especificidades e generalidades dos
nacionalismos produz, atravs da comparao, uma viso no nvel local e outra, no regional.
Essa possibilidade metodolgica promove o aprofundamento na histria singular de cada pas
atravs do mtodo comparativo, observando diferenas e afinidades entre os diversos projetos
que se pretendia construir no Cone Sul.
126
HERODOTO. Histria. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1988.
127
HARTOG, Franois. Os antigos, o passado e o presente. GUIMARES, Jos Otvio (org.). Braslia:
Universidade de Braslia, 2003.
57
128
MAIER, Charles S., La historia comparada, in Studia Historica Historia Contempornea, vol. 10-11,
1992-93, p. 12.
129
TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na Amrica: leis e costumes de certas leis e certos costumes polticos
que foram naturalmente sugeridos aos americanos por seu estado social democrtico. So Paulo: Martins
Fontes, 2005. Tocqueville e Gustave de Beaumont partiram da Frana para os Estados Unidos em abril de 1831,
onde viajaram por nove meses, com o objetivo de analisar e produzir um trabalho sobre o sistema prisional
daquele pas.
130
MAIER, Charles S.,op. cit., p. 13. MARX, Karl. O 18 Brumrio e Cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1997.
131
BUSTAMANTE, Regina; THEML, Neyde, Histria Comparada: olhares plurais, in Revista de Histria
Comparada. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, vol. 1, n. 1, jun/2007. Disponvel em:
<http://www.hcomparada.ifcs.ufrj.br/revistahc/artigos/volume001_Num001_artigo003.pdf.> (acessado em
58
10/08/2010). O estudo comparativo entre as naes e a construo de suas identidades no vem chamando a
ateno apenas de historiadores, mas tambm dos demais cientistas sociais, que analisam o tema atravs de
elementos que julgam constitutivos das identidades nacionais. Um bom exemplo desta tendncia o trabalho da
antroploga Rita Laura Segatto, que estuda de forma comparada, principalmente a regio do Prata e o Brasil,
quanto a aspectos religiosos e polticos encontrados na construo da nao e da identidade de ambos os
mbitos. SEGATO, Rita. L. La Nacin y sus otros: raza, etnicidad y diversidad religiosa en tiempos de polticas
de la identidad. Buenos Aires: Prometeo Livros, 2007. Outro trabalho, tambm ligado antropologia, : LEITE,
George de Cerqueira (org.). Regio e nao na Amrica Latina. Braslia: Editora Universidade de Braslia; So
Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.
132
FAUSTO, Boris; DEVOTO, Fernando, op. cit.
133
BURKE, Peter. Histria e teoria social. So Paulo: Editora UNESP, 2002, p. 41. BURKE, Peter. A Escola
dos Annales (1929-1989), a Revoluo francesa da historiografia. So Paulo: Fundao Editora da UNESP,
1997.
134
HINTZE, Otto, The Formation of States and Constitutional Development, in GILBER, Felix (ed.), The
Historical Essays of Otto Hintze. New York: Oxford University Press Huntington, 1984.
135
MAIER, Charles S., op. cit.
136
FAUSTO, Boris; DEVOTO, Fernando, op. cit., p. 09.
59
137
CASTRO, Celso (org.). Evolucionismo Cultural textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2005, pp. 67-99.
138
No final do sculo XIX e incio do XX, surgiram trabalhos que abordavam questes sobre a aplicao de um
mtodo comparativo. Entre eles, esto: DURKHEIM, mile. As regras do Mtodo sociolgico. So Paulo:
Martins Fontes, 2007. WEBER, Max. Metodologia das cincias sociais. So Paulo: Cortez; Campinas: Editora
da Universidade Estadual de Campinas, 1992. BOAS. Franz, As limitaes do mtodo comparativo da
antropologia, in Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
139
PRADO, Maria Ligia Coelho, Repensando a histria comparada da Amrica Latina, in Revista de Histria,
n. 153, 2, 2005, pp. 11-33.
140
BURKE, Peter. Histria e teoria social, p. 40.
60
141
FAUSTO, Boris; DEVOTO, Francisco, op. cit., p. 10.
142
MAIER, Charles S., op. cit., p. 13. Entre os estudos comparativos mais conhecidos de Marc Bloch esto Os
reis taumaturgos. So Paulo: Companhia das Letras, 1993 e A Sociedade Feudal. Lisboa: Edies 70, 1987.
143
FAUSTO, Boris; DEVOTO, Francisco, op. cit., p. 12.
144
PRADO, Maria Ligia Coelho, op. cit., pp. 13-14.
145
BLOCH, Marc, Pour une histoire compare des socits europennes, pp. 16-40.
61
146
Idem, pp. 16-17. [F]azer escolhas, no seio de um ou de vrios meios sociais diferentes, de dois ou mais que
parecem, primeira vista, apresentar certas semelhanas entre eles, descrever as curvas de suas evolues ,
constatar as semelhanas e diferenas e, na medida do possvel, explicar umas e as outras. Assim, duas condies
so necessrias para que haja, historicamente falando, uma comparao: certa semelhana entre os fatos
observados claro e certa dessemelhana entre os ambientes em que so produzidos. A traduo nossa.
147
FAUSTO, Boris; DEVOTO, Francisco, op. cit., p. 13.
62
Na verdade, Bloch questionava uma teleologia dos Estados nacionais como campos
naturalizados, pr-natos, do fazer historiogrfico. Para esse autor, era possvel e comum
produzir anacronismos, uma vez que os estudos so centrados nas bordas dos territrios
nacionais modernos, mas usam instituies polticas, legais ou econmicas de um passado no
qual elas ainda no existiam na forma nacional.
Anachronisme d'abord et des plus vidents: par quelle aveugle foi dans une
sorte de vague prdestination historique a-t-on pu tre conduit attribuer
ces tracs une signification quelconque, une existence prenata, si j'ose dire,
avant le moment exact o le jeu complexe des guerres et des traits les fixa?
Erreur de fond aussi, et qui subsiste, alors mme que, par une mthode en
apparence plus rigoureuse, on fait choix de divisions politiques,
administratives ou nationales contemporaines des faits qui forment l'objet de
la recherche: car o a-t-on vu que les phnomnes sociaux, quelque poque
que ce soit, aient unanimente arrt leur developpement aux mmes limites,
qui seraint, avec prcision, celles des dominations politiques ou des
nationalits?149
148
BLOCH, Marc, op. cit., p. 44. [O] ensino mais claro e talvez o mais imperativo que ns d a histria
comparada que est na hora, de fato, de considerar a quebra daqueles compartimentos topogrficos
desatualizados em que pretendemos enclausurar as realidades sociais: eles no medem o contedo que nos
esforamos em inserir neles. A traduo nossa.
149
Idem, p. 46. Em primeiro lugar, um anacronismo dos mais evidentes: por qual cega f em certa vaga
predestinao histrica algum poderia ser levado a atribuir a esses vestgios uma significao qualquer, uma
existncia pr-nata, ouso dizer, anterior ao momento exato em que o jogo complexo das guerras e dos tratados os
fixou? tambm um erro fundamental, e que continua subsistindo, apesar de que, por um mtodo aparentemente
mais rigoroso, sejam feitas escolhas de divises polticas, administrativas ou nacionais contemporneas dos fatos
que compem o objeto de pesquisa: porque onde se viu que os fenmenos sociais, a qualquer tempo, tenham
parado unanimemente seu desenvolvimento nos mesmos limites, que seriam, com preciso, os das dominaes
polticas, ou das nacionalidades?. A traduo nossa.
63
153
Bustamante e Theml indicam as seguintes referncias: HAUPT, H. G., O lento surgimento de uma Histria
Comparada, in BOURTIER, J; JULIA, D. (orgs.), Passados recompostos; campos e canteiros da Histria. Rio
de Janeiro: Editora UFRJ/ Editora FGV, 1998, pp. 205-216.
154
BUSTAMANTE, Regina; THEML, Neyde, Histria Comparada: olhares plurais, in Revista de Histria
Comparada, jun/2007. Louis Davill e Lucien Febvre publicam seus artigos na Revue de Synthse Historique,
respectivamente, em 1913 e 1924.
65
teleologa del desarrollo econmico que habra debido haber superado el conflicto de clase y
haber condenado los conceptos del marxismo. Entre os representantes de dita vertente
reconheceu-se Walt W. Rostow, com sua obra The Stages of Economic Growth, lanada em
1960. Esse estudo foi considerado como um Manifesto anticomunista e etapista, que previa
passar primeiro por regimes autoritrios compreendidos como de direita, antes de chegar
construo de uma sociedade desenvolvida materialmente. Na mesma dcada, em 1966,
surgiu The Dynamics of Modernization, A Study in Comparate History, de autoria de Cyril
Black, com sua proposta de encontrar um processo de desenvolvimento para diversas
sociedades.155
Os esforos no campo de um trabalho comparado passaram a ocorrer de forma
coletiva e organizada, principalmente interessados no desenvolvimento de uma historiografia
ligada economia e poltica, articulada em um projeto em vrios volumes intitulado Studies
in Political Development, que foi patrocinado a partir de 1954 pelo Comit para la Poltica
Comparada del Consejo para las Investigaciones de Ciencias Sociales. Outro estudo,
balizado pelas mesmas ideias e guiado por diversas comparaes no mbito do nacional,
apareceu em 1975, dirigido tambm por Black, sob o ttulo The Modernization of Japan and
Russia.156
De acordo com Charles Maier, a partir dos anos 1960 a teoria da modernizao acabou
cedendo espao para uma historia comparada cujo interesse comeou a se centrar no Estado,
impulsionada pela ateno dada s questes polticas. Um trabalho influente e propagador
dessa nova perspectiva foi The European Administrative Elite, publicado por John Armstrong
em 1973, em que eram comparadas Inglaterra, Frana, Prssia e Rssia desde um marco
econmico e estatal. Logo se percebia a importncia e a frequncia da presena dos Estados
nacionais nos estudos comparados, como em The Formation of States in Western Europe, de
Charles Tilly (1975), e Dimensions of States-Formations and Nation Building, do cientista
social noruegus Stein Rokkan.
O interesse renovado pelo Estado tambm influenciou a historiografia comparada de
orientao marxista. Um dos principais ttulos a aparecer foi o conhecido trabalho de Perry
Anderson, Lineages of the Absolutist State (1974), que analisa a sociedade absolutista desde
um ponto de vista de uma evoluo etapista. Esse interesse sobre o Estado no demorou em
tomar uma nova perspectiva, com a adeso de um novo tema para a anlise comparada: a
revoluo. Para Maier, a contribuio mais importante aos estudos comparativos sobre a
155
MAIER, Charles S., op. cit. p. 20.
156
Idem, p. 22.
66
revoluo foi a obra de Barrington Moore, Social Origins of Dictatorship and Democracy:
Lords and Peasant in the Making of the Modern World (1966). Barrington analisou a
construo dos Estados modernos considerando como nica via a revoluo camponesa157 e
reconhecendo trs possibilidades de se chegar democracia ou ditadura no mundo
contemporneo: a revoluo burguesa, com a democracia liberal, a revoluo autoritria
conduzindo ao fascismo, ou a revoluo camponesa em direo ao comunismo.158
Houve ainda trabalhos em que a relao de poder se desloca do Estado e da economia
para o indivduo, considerando os sujeitos sociais como o elemento central a ser estudado
comparativamente dentro da revoluo. Pode-se citar como exemplo o livro de Eric
Hobsbawm Primitive Rebels (1956), uma anlise interessada na compreenso de possveis
formas arcaicas de luta sociais. Em 1969, apoiado nos atores sociais como sujeitos das
anlises, Eugene Genovese produziu um importante estudo, World the Slaveholders Made,
centrado na reflexo sobre a escravido. Mais precisamente focou-se na relao entre escravo
e escravocrata, considerando-os dentro do quadro do avano do capitalismo. Em States and
Social Revolutions, publicado em 1979, Theda Skocpol abordou, desde uma perspectiva
internacional, as revolues na Frana, Rssia e China, centrando o foco no papel das
estruturas sociais nos processos revolucionrios.
A terceira tendncia apontada por Maier, a qual considerava dominante nos Estados
Unidos, foi a tocquevilliana, interessada na comparao nacional utilizada para compreender
o prprio pas. Louis Hartz produziu duas obras nas quais os valores liberais e as
caractersticas do desenvolvimento estado-unidenses eram comparados com outros pases.
Uma delas apareceu em 1954 sob o ttulo The Liberal Tradition in America, vinculada
Histria das Ideias, e a outra, The Founding of New Societies, dez anos mais tarde,
comprometida com uma anlise utilitarista.
Na mesma linha, porm em uma perspectiva mais crtica ao pas, surgiram estudos que
refletiam sobre a escravido, principalmente em comparao com a Amrica Latina. Em
1949, Frank Tannenbaum lanava Slave and Citizen: The Negro in the Americas, e Herbert
Klein, comparando a escravido na Virginia e em Cuba, publicou Slavery in the Americas em
1967. Esses estudos compreendiam que a instituio da escravido havia sido mais branda nos
pases de colonizao ibrica, pelo qual advogavam pela existncia de certa justeza em terras
latinas. Em discordncia com essa viso, a de uma escravido mais branda na Amrica Latina,
h estudos, como os de Carl Degler, Neither Black nor White, de 1971, em que se abordaram
157
Idem, p. 24.
158
PRADO, Maria Ligia Coelho, op. cit., p. 21.
67
159
GEERTZ, Clifford, op. cit.
160
SAID, Edward W. Orientalism. New York: Pantheon, 1978. Para a leitura em portugus: SAID, Edward W.
Orientalismo: o Oriente como inveno do Ocidente. So Paulo: Companhia das Letras, 1990.
161
GEERTZ, Clifford. [1983], Centros, reis e carisma: reflexes sobre o simbolismo do poder, in O saber
local. Petrpolis: Vozes, 1998.
162
SKOCPOL, Theda; SOMERS, Margaret, The Uses of Comparative History in Macrosocial Inquiry, in
Comparative Studies in Society and History, vol. 22, n. 2, 1980.
68
165
PRADO, Maria Ligia Coelho, op. cit., pp. 26-27. A autora indica alguns trabalhos relevantes sobre a
crtica/renovao da histria comparada: GRUZINSKI, Serge, Les mondes mls de la Monarchie catholique et
autres connected histories, in Annales HSS, n. 1, janvier-fvrier 2001; SUBRAHMANYAM, Sanjay,
Connected histories: notes towards a reconfiguration of early modern Eurasia, in LIEBERMAN, Victor (Ed.).
Beyond Binary Histories. Reimagining Eurasia to c. 1830. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1999;
CHAKRABARTY, Dipesh. Provincializing Europe. Postcolonial thought and historical difference. Princeton:
Princeton University Press, 2000.
166
PURDY, Sean, A Histria Comparada e o desafio da transnacionalidade, in Revista de Histria
Comparada. Rio de Janeiro: Programa de Ps-graduao em Histria Comparada/UFRJ, ano 6, vol. 6, n. 1.
2012.
70
americano que privilegia anlises mais amplas, com tendncia s generalizaes, por vezes se
sentando em questes-problema.167
Na tica de Lgia Maria Coelho Prado, a historiografia latino-americana, assim como a
europeia, tem promovido constantes estudos comparativos, apesar de manter tambm uma
baixa frequncia, se considerado o nmero de pesquisas e de publicaes que surgem. A
perspectiva comparada tambm no uma novidade metodolgica no continente, pois est h
muito presente. De acordo com a autora, h trabalhos que remontam primeira metade do
sculo XX, como Las conquistas de Canarias y Amrica, publicado por Silvio Zavala em
1935, que teceu uma reflexo de forma comparada sobre a conquista nas ilhas Canrias e na
Amrica.168 Temos tambm outros trabalhos, como o ensaio Siete ensayos de interpretacin
de la realidad peruana,169 publicado em 1928 pelo peruano Jos Carlos Maritegui, que
investigou os problemas do Peru na Amrica Latina em uma perspectiva marxista.
Nas dcadas de 1960 e 1970, os estudos comparados no continente estiveram sob o
domnio das generalizaes e das cincias sociais, com a hegemonia da teoria da
dependncia, em sua preocupao com o atraso e o subdesenvolvimento latino-
americanos.170 A transposio de modelos tericos tambm foi constante nas historiografias
dessas dcadas, com a busca por situaes-problema na regio em comparao com o modelo
europeu.171
As generalizaes costumavam ser promovidas em bases geogrficas, territoriais,
considerados grandes blocos comparativos, para produzir estudos que cotejavam Amrica
Latina e Estados Unidos, ou Amrica Latina e Espanha, em grande parte em relao a temas
polticos, diplomticos, militares e demogrficos. Segundo Stanley J. Stein, nos anos de 1960,
esses temas, e tambm as questes terico-metodolgicas, foram mudando em direo aos
campos da histria social, econmica e intelectual. Encontramos, entre as obras da primeira
167
FAUSTO, Boris; DEVOTO, Francisco, op. cit., p. 19.
168
PRADO, Maria Ligia Coelho, op. cit., p. 22. Consultar: ZAVALA, Silvio. Las conquistas de Canarias y
Amrica. Las Palmas: Cabildo Insular de Gran Canaria, 1990.
169
MARITEGUI, Jos Carlos. Siete Ensayos de interpretacin de la realidad. Venezuela: Biblioteca
Ayachucho, 2007.
170
Na Argentina, o Instituto de Desarrollo Econmico y Social, com sua revista Desarrollo Econmico, Revista
de Ciencias Sociales, foi um dos principais produtores destes trabalhos. Cf. FRAPICCINI, Alina Marcela Marta,
Revista Desarrollo Econmico: Economa, Sociedad e Historia, tres ejes para tres dcadas de historiografa
argentina, in ALMEIDA, Jaime de. Caminhos da Histria da Amrica no Brasil. Tendncias e contornos de
um campo historiogrfico. Braslia: ANPHLAC, 1998, pp. 33-49.
171
PRADO. Maria Ligia Coelho, op. cit., p. 24.
71
etapa, trabalhos como o artigo Simpsons The Encomienda in New Spain and Recent
Encomienda Studies, lanado em 1954 por Robert Chamberlain.172
Segundo a argumentao de Stein, na segunda metade do sculo XX, alm de um
interesse dos Estados Unidos pela Amrica Latina, deu-se uma mudana tambm na
predileo de historiadores acerca das pocas histricas, passando da colnia ao perodo ps-
independncia, da constituio e concretizao de novos Estados modernos americanos. Essa
fragmentao do objeto de estudo requereu outra forma de organizar as pesquisas e outras
perguntas a serem feitas.173
Em artigo de 1982, Comparative approaches to Latin America History, John
French, Julia Viuela e Magnus Mrner traam campos preferenciais construdos pelos
estudos histricos e encontram temas comuns, como escravido, relaes raciais, imigrao,
fronteiras e urbanizao. Apesar do aparecimento de novos temas, as generalizaes seguem
na pauta dos estudos comparativos sobre o continente.174
Carl Solberg, na esteira de Boris Fausto e Fernando Devoto, vem praticando
investigaes na rea da imigrao e nacionalismo na Argentina e no Chile desde o
lanamento, em 1970, de Immigration and Nationalism. Argentina and Chile, 1890-1914.
Dezessete anos mais tarde publicou The Prairies and the Pampas: Agrarian Policy in Canada
and Argentina, sobre a questo agrria na Argentina em comparao com o Canad.175
Na Argentina, o desenvolvimento da historia comparada tambm ocorreu com a crtica
limitao dos estudos territorialidade do Estado nacional. A inteno de investigar novos
temas, a procura de enxergar por outro ngulo acontecimentos histricos, levou os
historiadores argentinos a lanar questes sobre as regies do pas, em uma variedade de
temas, constituindo anlises sobre histria regional e local.176 Essa modificao no objeto da
histria ocorreu simultaneamente a outros estudos europeus e norte-americanos na dcada de
172
STEIN, Stanley J., Historiografa Latinoamericana: balance y perspectivas, in Historia Mexicana, vol. 14,
n. 1 (Jul.-Sep.), 1964, pp. 1-41. O autor indica as obras: CHAMBERLAIN, Robert. Simpsons The
Encomienda in New Spain and Recent Encomienda Studies. HAHR, XXXIV, may, 1954, pp. 238-250.
MAURO, Frdric. Mxico y Brasil: dos economas coloniales comparadas, in Histria Mexicana, X, n. 40,
1954, pp. 571-585.
173
STEIN, Stanley J., op. cit.
174
FRENCH, John; MORNER, Magnus; VIUELA, Julia Fawaz de, Comparative Approaches to Latin
American History, in Latin American Research Review, vol. 17, n. 2, 1982, pp. 55-89.
175
FAUSTO, Boris; DEVOTO, Fernando, op. cit., p. 19. SOLBERG, Carl. Immigration and Nationalism.
Argentina and Chile, 1890-1914. Austin: University of Texas Press, 1970. SOLBERG, Carl. The Prairies and
the Pampas: Agrarian Policy in Canada and Argentina. Stanford: Stanford University Press, 1987.
176
Segundo Susana Bandieri, a historiografia regional est bem consolidada na Argentina, embora menos
desenvolvida do que no Mxico, Venezuela, Cuba e Brasil. MARTINS, Maria C. Bohm, A histria regional e a
historiografia argentina: entrevista com Susana Bandieri, in Historia Unisinos, 12(1), Janeiro/Abril, 2009.
72
1970, decnio aps o qual se abriu mais um perodo equivalente considerado relevante no
campo historiogrfico no pas.
Para a historiadora Sandra Fernndez, dois autores merecem destaque na historiografia
regional e comparada da Argentina daquele momento: Jorge Baln, em 1978, com Una
cuestin regional en la Argentina: burguesas provinciales y el mercado nacional en el
desarrollo agroexportador, e Mario Cerutti, um ano depois, com Contribuciones recientes y
relevancia de la investigacin regional sobre la segunda parte del siglo XIX en Mxico.177
Na perspectiva dos estudos comparados sobre a Argentina e o Brasil, foram
publicados, sobretudo, trabalhos que abordam questes acerca de temas como o populismo e
as ditaduras militares.178 Entre os mais conhecidos sobre a poca do populismo, para citar
alguns exemplos, temos Francisco Weffort, com Origens do sindicalismo populista no Brasil:
a conjuntura do ps-guerra, publicado em 1973; Vargas e Pern: as dimenses econmicas
do populismo no Brasil e na Argentina, de 1994, de autoria de Thomas Skidmore, e Multides
em cena: propaganda poltica no varguismo e no peronismo, de Maria Helena Capelato, do
ano de 1998. Em relao aos regimes autoritrios, podemos apontar Las derechas: The
Extreme Right in Argentina, Brazil and Chile, 1890-1939, produzido por Sandra McGee, e
Sob o signo da nova ordem, de Jos Luis Bendicho Beired, ambos de 1999.179
Mais recentemente observamos na Argentina a criao de um grupo interessado em
estudar a histria de forma comparativa, sob a denominao de Red Internacional Marc Bloch
177
BALN, Jorge, Una cuestin regional en la Argentina: burguesas provinciales y el mercado nacional en el
desarrollo agroexportador, in Desarrollo Econmico 69, 1978. BALN, Jorge. Urbanizacin regional y
produccin agraria en Argentina: Un anlisis comparativo, in Estudios del CEDES, vol. 2 n. 2, 1979.
CERUTTI, Mario, "Contribuciones recientes y relevancia de la investigacin regional sobre la segunda parte del
siglo XIX en Mxico", in Boletn Americanista n. 37, 1985, pp. 29-48. CERUTTI, Mario, El gran norte
oriental y la formacin del mercado nacional en Mxico a finales del siglo XIX, in Revista de Historia, n. 4,
1987. Sobre o assunto, ver: FERNANDEZ, Sandra, El revs de la trama. Contexto y problemas en torno a la
historia regional y local, in BANDIERI; Susana, BLANCO, Graciela y BLANCO Mnica (Coord.). Las
Escalas de la Historia Comparada. Tomo 2: Empresas y empresarios. La cuestin regional. Buenos Aires: Mio
y Dvila, 2008. Ver tambm: CARBONARI, Rosa Mara, De como explicar la regin sin perderse en el intento.
Repasando y repensando la Historia Regional. Histria UNISINOS, vol. 13, n. 1, jan-abr. 2009, pp. 19-34.
Disponvel em:
http://www.unisinos.br/publicacoes_cientificas/images/stories/Publicacoes/historiav13n1/19a34_art02_carbonari
.pdf (acessado em 03/09/2012).
178
A produo historiogrfica comparada entre Brasil e Argentina constitui-se como relevante rea dos estudos
comparativos desses pases. Nas academias argentinas e brasileiras encontram-se artigos, dissertaes e teses,
que, independentemente dos temas postos em comparao, analisam algum problema terico entre as duas
naes.
179
FAUSTO, Boris; DEVOTO, Fernando, op. cit., p. 19. WEFFORT, Francisco, Origens do sindicalismo
populista no Brasil: a conjuntura do ps-guerra, in Estudos Cebrap, n. 4, 1973, pp. 65-105. CAPELATO,
Maria Helena. Multides em cena: propaganda poltica no varguismo e no peronismo. Campinas: Papirus, 1998;
MCGEE, Sandra. Las derechas: The Extreme Right in Argentina, Brazil and Chile, 1890-1939. Stanford;
Stanford University Press, 1999; BEIRED, Jos Luis Bendicho. Sob o signo da nova ordem. So Paulo: Edies
Loyola, 1999; SKIDMORE, Thomas, Vargas e Pern: as dimenses econmicas do populismo no Brasil e na
Argentina, in O Brasil visto de fora. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994, pp. 203-252.
73
180
BONAUDO, Marta; REGUERA, Andrea; ZEBERIO, Blanca (Coords.). Las Escalas de la Historia
comparada. T. I. Dinmicas sociales, poderes polticos y sistemas jurdicos. Buenos Aires: Mio y Dvila
Editora, 2008. HEINZ, Flvio (org.). Experincias nacionais, temas transversais: subsdios para uma histria
comparada da Amrica Latina. So Leopoldo: Oikos, 2009. Esto envolvidas nesse projeto a Universidad
Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires, Universidad Nacional del Comahue, Universidad Nacional
de Rosario, Universidad Nacional de Quilmes, Universidad Nacional de Jujuy, a UNISINOS do Brasil e a
Universidade de Toulouse, na Frana.
181
PRADO, Maria Ligia Coelho, op. cit., pp. 11-33.
182
Na concepo de Amrica Latina do colombiano Torres Caicedo, na dcada de 1860, o Brasil, por ser uma
monarquia e por manter a escravido, estava excludo.
183
BONFIM, Manuel. O Brasil na Amrica. Caracterizao da Formao Brasileira. Rio de Janeiro: Topbooks,
1997.
184
BUARQUE DE HOLLANDA, Srgio. Razes do Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1995.
185
BUARQUE DE HOLLANDA, Srgio. Viso do Paraso. Os motivos ednicos no descobrimento e
colonizao do Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 2010.
74
186
O primeiro encontro foi em Tandil, na Argentina, com a Universidad Nacional del Centro como anfitri. Em
2008, ocorreu o segundo encontro em Porto Alegre, no Brasil, sediado na Pontifcia Universidade Catlica do
Rio Grande do Sul. O terceiro ocorreu em San Salvador de Jujuy, sendo sede a Unidad de Investigacin de
Historia Regional, da Universidad Nacional de Jujuy, na Argentina.
187
O LabConeSul integrante da Red Internacional Marc Bloch de Estudos Comparados en Histria. Europa-y
Amrica Latina.
75
188
PAMPLONA, Marcos; STUVEN, Ana Maria (orgs.). Estado e Nao no Brasil e no Chile ao Longo do
sculo XIX. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. PAMPLONA, Marco A.; STUVEN, Ana Maria (Orgs. ). Estado y
Nacin en Chile y Brasil en siglo XIX. Santiago: Ediciones Universidad Catlica de Chile, 2010.
189
Sobre esta ideia ver: FAUSTO, Boris; DEVOTO, Fernando. Brasil e Argentina. Um ensaio de histria
comparada (1852 2002). So Paulo: Editora 34, 2004. PRADO, Maria Ligia Coelho. Amrica Latina no sculo
XIX: Tramas, Telas e Textos. So Paulo: Editora Universidade de So Paulo, 2004. PAMPLONA, Marcos;
STUVEN, Ana Maria (orgs.). Estado e Nao no Brasil e no Chile ao Longo do sculo XIX. Rio de Janeiro:
Garamond, 2010. CARMONA, Carmen Balart; SIEWIERSKI, Henryk (orgs.). Heranas e desafios na Amrica
Latina: Brasil-Chile. Braslia: Universidade de Braslia, Oficina Editorial do Instituto de Letras: Plano Editora,
2003. ALMEIDA, Jaime de (org.). Caminhos da Histria da Amrica no Brasil. Tendncias e contornos de um
campo historiogrfico. Braslia: ANPHLAC, 1998.
76
focada mais nas questes comuns, a discusso quanto possibilidade de existncia de uma
identidade sul-americana que supere as fronteiras das naes.
Dessa forma, visamos a estudar o papel das representaes de nao produzidas em
meados do sculo XIX na Argentina, Brasil e Chile, possuindo como referncia ao assunto
concepes e propostas encontradas em obras de nossos autores. Trata-se, assim, de esmiuar
as ideias existentes por trs, ou diretamente, nas representaes de um passado, de uma
memria, mas, tambm, o olhar firme para um futuro novo, do desejo de um ser imaginado,
vivenciado, no tocante criao de uma nao e de um Estado.
Jos DAssuno Barros190 aponta uma srie de requisitos para empreender um estudo
a partir do campo comparativo como um mtodo elaborado. Esse autor considera que uma
histria com um mltiplo campo de observao, que tem que se perguntar o que observar e
como observar. Pressupe fazer analogias, encontrar ausncias e presenas, identificar
semelhanas, diferenas, perceber variaes, buscar um padro de variao, comparar
realidades, sempre com ateno para no incorrer em anacronismos ou produzir leituras
foradas sobre as realidades a serem comparadas.
O autor ainda afirma que, para um bom desenvolvimento de estudos comparados,
necessrio estabelecer campos de trabalho ou de observao bem delineados. As realidades
nacionais, caso elas sejam o foco da pesquisa, propiciam uma melhor delimitao do tema a
ser abordado, pois tm suas bases j admitidas por antecipao,191 embora se reconhea que
o objeto de estudo uma construo ideal, terico-metodolgica, do historiador.
Contribuindo discusso sobre o estudo comparado, Bustamante e Theml fazem
ponderaes sobre o perigo de incorrer em deslizes metodolgicos ligados comparao e
sugerem caminhos mais eficientes anlise. Assim:
190
BARROS, Jos D'Assuno, "Histria Comparada - da contribuio de Marc Bloch constituio de um
moderno campo disciplinar", in Histria Social (Revista da Unicamp), vol.13, 2007, pp. 7-21. Disponvel em:
<http://ning.it/igoCy1> (acessado em 20/02/2011).
191
Idem, p. 13.
192
BUSTAMANTE, Regina; THEML, Neyde, op. cit.
78
Al menos hasta mediados del siglo XX, la concepcin del hombre de letras
como apstol secular, educador del pueblo o de la nacin, fue seguramente
el ms poderoso de esos modelos que encarnaban en ejemplos dignos de
admirar como de imitar. El prototipo se forj en la cultura de la ilustracin y
les proporcion a nuestros ilustrados una imagen de su papel social. El
discurso americanista se entreteji tempranamente con esa representacin de
los hombres de saber y en el panten de las personalidades del continente
aadi, junto a los hroes de la emancipacin los Libertadores, a los
hroes del pensamiento.193
193
ALTAMIRANO, Carlos (Dir.), op. cit., p. 16.
194
No consideraremos como obras referentes s historiografias apenas o que foi tradicionalmente reconhecido
como tal, por vezes reproduzindo o corpo histrico oficial e mitolgico construdo convencionalmente.
Pensaremos tambm como as obras escolhidas para anlise circularam e contriburam para a formao de um
conjunto de textos cientficos e mitolgicos para a identidade nacional, e influenciando a posteriormente a
historiografia cnone que se formaria.
79
dterminer, non seulement en gros, que deux objets ne sont pas pareils, mais
encore besogne infiniment plus difficile, mais aussi beaucoup plus
interessante par quels caractres prcis ils se distinguent, suppose
videmment, comme premire dmarche, qu`on les contemple tour tour.195
195
BLOCH, Marc, op. cit., p. 31. Determinar, no s grosso modo, que dois objetos no so o mesmo, como
tambm tarefa esta infinitivamente mais difcil, mas tambm muito mais interessante quais os caracteres
concretos que os diferenciam, implica, evidentemente, como primeiro passo, que ambos sejam contemplados um
aps o outro. A traduo nossa.
196
Sobre a relao da histria com outras disciplinas consultar: BARROS, Jos DAssuno, Histria
Comparada: atualidade e origens de um campo disciplinar, op. cit., pp. 279-315.
197
PRADO, Maria Ligia Coelho, op. cit. p. 19. A autora utiliza por base para essa discusso: GREW, Raymond,
The case for comparing histories, in The American Historical Review, vol. 85, n. 4, 1980.
80
198
BOHOSLAVSKY, Ernesto; ORELLANA, Milton Godoy, Ideas para la historiografa de la poltica y el
Estado en Argentina y Chile, 1840-1930, in Polis [On-line], 19 / 2008, Disponvel em:
<http://polis.revues.org/3827; DOI: 10.4000/polis.3827> (acessado em 02/12/2012). O texto a que o autor se
refere : CAVIERE FIGUEROA, Eduardo; ALJOVN DE LOSADA, Cristbal (eds.). Chile-Per. Per-Chile.
1820-1920. Desarrollos polticos, econmicos y culturales. Valparaso: Ediciones Universidad Catlica de
Valparaso, 2005.
199
FAUSTO, Boris; DEVOTO, Fernando, op. cit. p. 19.
81
ser essas precisamente as diferenas que conduzem a perguntas relevantes para o estudo.
Assim como outros autores, Stuven e Pamplona, considerando as questes acima, observam
que:
200
PAMPLONA, Marcos; STUVEN, Ana Maria (orgs.). Estado e Nao no Brasil e no Chile ao longo do
sculo XIX, pp. 09-10.
82
historiografia, a partir de instituies de ensino e pesquisa. Outros, por sua vez, ainda que
tratem dos temas da histria e das ideias hegemnicas constitudas sobre as identidades
nacionais, no so considerados como um trabalho produzido no campo da historiografia
oficial, ao estarem mais relacionados atualmente literatura, poltica, cincias sociais, direito
e at ao jornalismo.
Nos textos escolhidos para a anlise, as ideias de nao so destacadas e comparadas,
seguindo um conjunto de problemas relacionado s construes das identidades nacionais.
Chamamos de conjunto de problemas temas compartilhados pelas trs naes enquanto ideias
fundadoras dos mitos nacionais produzidos historicamente. Esto entre eles temas que so
acionados quando se busca uma definio da questo nacional, como o sistema de governo,
raa e etnia, territrio, lngua, ambiente intelectual, sistema educacional, passado comum,
entre outros aspectos a que se alude quando se busca a definio de um conceito de nao.
Confrontaremos diversos aspectos relativos ao contedo interno que cada termo tomou
no discurso dos trs intelectuais. Procuramos observar como as discusses foram construdas
sobre quais bases legitimadoras, a forma de governo adotada, monarquia ou repblica,
centralizao ou federao, pelucones e pipiolos,201 liberais e conservadores, projetos de
incluso ou excluso de povos indgenas ou de negros e mulatos, livres ou escravos, o papel
das novas naes no mundo, heranas e projees de futuro, ou mesmo a prpria construo
do homem livre (branco ou mestio), local e internacionalmente. Verificar-se- ainda, em
linhas gerais, como foram articulados aspectos da historiografia, as periodizaes propostas, o
que foi destacado e o que foi esquecido, autores, obras, influncias externas e internas.
Nos trs pases existem elementos significativos suficientes de uma herana comum
ibrica, dividindo processos sincrnicos de independncia, criao do Estado nacional,
concretizao dos Estados nacionais e o compartilhamento de um mesmo ambiente macro
intelectual (transatlntico). Temos assim, em um primeiro momento, um ambiente poltico e
econmico mais geral, no perodo colonial at as independncias, para posteriormente, com a
fragmentao em novos Estados, ocorrer um reforo de uma identidade prpria nacional e
com especificidades locais.
Desse ambiente geral, aps estabelecer a existncia das questes comuns,
investigamos as especificidades dos discursos de cada personagem, de modo a evitar cair no
deslize comum de produzir leituras generalizadas sobre os temas. Buscaremos adiante analisar
termos constituintes das identidades nacionais em um determinado espao nacional e de um
201
Pelucones era o nome dado aos conservadores chilenos. Os liberais eram chamados de pipiolos.
83
O discurso, em ltima instncia, nossa matria prima mais palpvel para a realizao
de um estudo sobre a nao. Dispondo de um consistente acervo textual, temos que considerar
algumas questes pertinentes ao devir da palavra no tempo. Compreende-se esta como uma
abordagem discursiva, no campo da Histria das Ideias, que implica uma preocupao com a
202
PIMENTA, Joo Paulo Garrido, op. cit.
84
intencionalidade relativa ao momento quando o discurso foi produzido, como tambm uma
ateno ao seu significado na poca de sua produo.203
Os estudos no campo das ideias, h muito difundidos no campo historiogrfico em
busca da anlise do ser humano e da sociedade, procuram acessar as experincias do passado
por meio da produo intelectual, em seus mais diversos modos de apresentao, utilizando,
sobretudo, textos escritos. Como expresso da cultura, as obras e as ideias produzidas
possuem tempo e espao determinados. Embora possam ser mais particulares ou mais
universais, so discursos datados, representantes de um imaginrio especfico. Essas
produes intelectuais constituem representaes de realidades prprias, com seus
significados conjunturais e estruturais, permeados pelo pensamento e pelas aes, caso
compreendamos que existam diferenas entre um e outras.
Jrn Rsen, ao pensar sobre teorias da historiografia, afirma que: pode-se falar de um
processo de teorizao com respeito s experincias do passado, no qual estas aparecem como
histria significativa: as ideias, como perspectivas orientadoras da experincia do passado, so
teorizadas como quadro de referncia da interpretao histrica.204
Pensando a respeito de umas das possveis formas historiogrficas, Chartier expressa a
seguinte opinio sobre as maneiras de compreender o que designa uma dessas configuraes,
que a Histria Intelectual. Para esse autor, dita construo historiogrfica entendida como
a histria das condies prprias que tornam possveis, de diversas maneiras de acordo com
os tempos, a prtica filosfica, e, finalmente, as reconstituies histricas que pretendem
estabelecer o sentido dos textos em relao ao seu contexto de produo e recepo.205
Entre as teorizaes orientadoras, costuma-se dar espao singular ao contexto e
inteno nos quais os textos foram lanados e recebidos, que so essenciais para a traduo
do que foi dito em seu momento de apario. Maria do Rosrio Gregolin ressalta que:
Baronas acena para o fato de que toda leitura uma produo de sentidos realizada de um
lugar histrico-cultural, e que , portanto, um recorte determinado pela histria da leitura e
pela mentalidade de um momento histrico.206 preciso historicizar o discurso quando da
203
A Histria das Ideias vem sofrendo diversas crticas nas ltimas dcadas, produzindo um dilogo constante
com o que se firmou como Histria Intelectual. Ver: SKINNER, Quentin, Meaning and Understanding in the
History of Ideas, in History and Theory n. 1, 1969, pp. 3-53.
204
RSEN, Jrn. Reconstruo do passado. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 2007, p. 15.
205
CHARTIER, Roger, Uma crise da Histria? A Histria entre narrao e conhecimento, in PESAVENTO,
Sandra J. Histria e Histria Cultural. Belo Horizonte: Autntica, 2003, p. 123.
206
GREGOLIN, Maria do Rosrio, Apresentao: olhares oblquos sobre o sentido no discurso, in
GREGOLIN, Maria do Rosrio; BARONAS, Roberto (orgs.). Anlise do Discurso: as materialidades do
sentido. So Carlos: Claraluz, 2001, p. 15.
85
No basta falar para ser autor. A assuno implica uma insero do sujeito
na cultura, uma posio dele no contexto histrico-social. Aprender a se
representar como autor assumir, diante das instncias institucionais, esse
papel social na sua relao com a linguagem; constituir-se e mostrar-se
autor.208
207
ORLANDI, Eni Pulcinelli. As formas do silncio. No movimento dos sentidos. 5 ed., Campinas: Ed. da
UNICAMP, 2002, p. 20.
208
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Anlise de discurso: princpios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2003, p. 76.
209
ORLANDI, Eni Pulcinelli. As formas do silncio. No movimento dos sentidos, p. 25.
86
completa quando um leitor o insere na ordem da histria,210 dessa maneira recebendo toda
uma tradio construda ao longo do tempo.
A comparao de ideias atravs de obras escritas, sobretudo de autores
contemporneos entre si, permite que o historiador, alm de dialogar e indagar
individualmente cada autor estudado atravs de seus textos, fornea ainda a possibilidade de
os intelectuais abordados dialogarem entre si, trazendo luz opinies mais prximas ou
distantes, produzidas em contextos e intenes prprias. o momento de buscar a
compreenso do discurso em seus diferentes nveis de fala, de procurar o significado do texto
dentro de uma rede de relaes e a intencionalidade do discurso, como indica Quentin
Skinner.211
A comparao de obras, em busca de novos sentidos criados pelo contraste dos
dilogos entre os textos de distintos pensadores, possibilita uma abordagem mais ampla e
relativa das ideias de um determinado momento e em determinado espao. A abordagem do
mundo atravs da cultura escrita permite, por sua vez, uma anlise do ambiente e dos
discursos, produtos e produtores de pistas necessrias compreenso das representaes (e
eles mesmos representaes) sociais e polticas presentes no texto.212
Seguindo esta introduo terica, buscamos realizar nossos estudos em harmonia com
as perspectivas apresentadas. No as tomamos como um corpo rgido e exato, mas como um
horizonte de intenes que balizam mais uma proposta entre tantas possveis. Pretendemos
analisar as representaes de nao empreendidas nas obras especficas de Alberdi, Bello e
Abreu e Lima, membros de uma elite intelectual americana que, aps as independncias das
antigas ex-colnias ibricas, contriburam para a formao da nao e do Estado, com
discursos que impulsionaram a construo mitolgica de uma identidade determinada.
***
210
GREGOLIN, Maria do Rosrio, op. cit., p. 60.
211
Entrevista de Quentin Skinner, in PALLARES-BURKE, Maria Lcia Garcia. As muitas faces da histria.
Nove entrevistas. So Paulo: UNESP, 2000, p. 320.
212
RAJAGOPALAN, Knavillil, A construo de identidades e a poltica de representao, in FERREIRA, L.
& ORRICO, E, G, D. (orgs.). Linguagem, Identidade e Memria Social novas articulaes, novas fronteiras.
Rio de Janeiro: DP & A, 2002, pp. 45-53.
87
1
ALVES, Castro, O livro e a Amrica, in Poetas Romnticos Brasileiros, vol. I, So Paulo: Editora Lumen,
s/ano.
89
suficiente apenas criar uma identidade nacional, era necessrio que a ideia e um sentimento de
pertencimento fizessem parte de um imaginrio comum, nacional, que deveria ser ampliado s
demais classes e segmentos sociais localizados dentro dos limites legais de cada novo Estado,
formando uma comunidade imaginada, segundo Benedict Anderson.2
Dita comunidade seria formada por ideias, pertencentes a tempos pretritos e presentes
nao, por diversas tradies, algumas inventadas outras retomadas, por vezes
teleologicamente, com aspectos de continuidades e rupturas, com base nas quais se conceberia
o que diversos autores denominaram nacionalismo. Esses nacionalismos, por sua vez, foram
os principais responsveis pela construo de um conjunto de mitos nacionais, dando
suporte ideia de edificao de um novo Estado nacional que se formaria.
A forja de um conjunto nacional de conhecimentos, atrelados a sentimentos, precisava
de um meio de comunicao para atingir o maior nmero possvel de cidados. Os meios que
serviram a esses objetivos com grande efetividade foram os letrados, mais especificamente a
imprensa e as instituies de ensino e pesquisa, que entraram em profcua expanso e
consolidao a partir da segunda metade do sculo XIX na Amrica ibrica. O avano do
capitalismo no continente contribua para a tarefa, uma vez que ditas instituies eram
necessrias modernidade do sistema americano.
Neste trabalho, abordamos aspectos do meio intelectual atuante na Argentina, Brasil e
Chile, relacionados com a produo relativa compreenso e construo de questes
selecionadas para a constituio sociocultural de cada pas entre 1830 a 1860. Discutimos esse
momento e essas ideias luz da contribuio oferecida por textos que consagravam uma
identidade sobre o passado, sobre o presente e que apontavam para ideias de um futuro
nacional, constitudas a partir de organizaes culturais e estabelecimentos de ensino surgidos
em um ambiente de transio do neoclassicismo ao romantismo, com uma historiografia
produzida, na maioria das vezes, em instituies ligadas ao Estado.
2
ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. So Paulo: Companhia das Letras, 2008.
90
3
BUSHNELL, David, "A Independncia da Amrica do Sul Espanhola", in BETHELL, Leslie (org). Histria da
Amrica Latina. So Paulo: Universidade de So Paulo, 2001. LYNCH, John. Las Revoluciones
Hispanoamericanas, 1808-1826. Barcelona: Editorial Ariel, 1989.
4
GUERRA, Franois-Xavier. Modernidad e independencias. Ensayos sobre las revoluciones hispnicas.
Mxico: Fondo de Cultura Econmica, Editorial Mapfre, 1993. Para ver mais sobre o assunto, indicamos
consultar o captulo IX Mutaciones y victoria de la nacin.
5
HOBSBAWM, Eric. A Era das Revolues: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 309.
91
6
KNIG, Hans-Joachim, Nacionalismo: un problema especfico de la investigacin histrica de procesos de
desarrollo, in URN, Vctor Manuel Uribe; MESA, Luis Javier Ortiz (orgs). Naciones, gentes y territorios.
Ensayos de historia e historiografa comparada de Amrica Latina y el Caribe. Medelln: Editorial Universidad
de Antioquia. Universidad Nacional de Colombia, 2000.
7
Para Benedict Anderson, a produo romntica em solo americano comea a ter suas primeiras publicaes no
segundo decnio do sculo XIX. Este autor considera que o primeiro romance latino-americano foi El
periquillo Sarniento, de 1816, do mexicano Fernandez de Lizardi, onde a crtica nacionalista ao domnio
espanhol est presente em meio s aventuras do heri. ANDERSON, Benedict, op. cit., p. 61.
8
OVIEDO, Jos Miguel. Historia de la literatura hispanoamericana. 2 Del Romanticismo al Modernismo.
Madri: Alianza Editorial, 2007.
92
A ilustrao que chegou regio do Prata, assim como o era na Espanha, podia ser
considerada como um projeto de modernizao cultural limitada, com uma separao menos
severa entre a igreja, Estado e ambiente intelectual, se comparada com o carter que a
ilustrao assumiu na Inglaterra, na Frana ou nos Estados Unidos. A ilustrao na regio do
Rio da Prata reforou-se em 1776 com a criao do vice-reino, com as modernizantes
reformas bourbnicas e com o avano das letras. Nas bibliotecas particulares, apesar da
proibio metropolitana para alguns livros, encontrava-se um grande nmero de autores
iluministas. As instituies de ensino, como o Real Colegio de San Carlos e a universidade,
possuam em seu programa tais obras e homens dispostos a discuti-las, porm mantendo um
forte dogma catlico e uma estrutura escolstica enfraquecida, mas ainda enraizada em sua
cultura.11
Nas primeiras duas dcadas do sculo XIX, foram postas no Prata as bases iniciais
para o desenvolvimento de um ambiente cientfico e vernculo. O clima revolucionrio e a
contribuio de novas doutrinas em circulao promoveram a apario de um circuito
intelectual propcio formao de uma realidade renovada. Nessa poca surgiram as
primeiras associaes de cunho cientfico, como a Escuela de Matemtica (1810), o Instituto
Mdico (1813) e a Sociedad de Ciencias Fsicas y Matemticas (1822). Foram fundadas
novas instituies, como a Biblioteca Pblica (1810), o Museo de Historia Natural (1812) e a
9
CUARN, Beatriz Garza, Identidad, lengua y literatura, 1820-1870, in VZQUEZ, Josefina Z. (coord.).
Historia General de Amrica Latina. La construccin de las naciones latinoamericanas, 1820-1870. Tomo VI.
Paris: Unesco; Madri: Trotta, 2003, pp. 595-612.
10
VILLEGAS, Abelardo, De la Ilustracin al Romanticismo en Latinoamrica, in VAZQUEZ, Josefina Z., op.
cit., pp. 522-533. Villegas considera que um dos primeiros romnticos foi Simon Bolvar, devido a seu
patriotismo, sua ao de valorizao dos aspectos americanos e sua educao, recebida de Simn Rodrguez.
11
TERN, Oscar. Historia de las ideas en la Argentina. Diez lecciones iniciales, 1810-1980. Buenos Aires:
Siglo Veintiuno Editores, 2010. No incio do sculo XIX, circulavam peridicos como Telgrafo Mercantil,
Semanario de Agricultura, Industria y Comercio e Correo de Comercio, por onde circulavam ideias ilustradas.
93
12
PERAZZI, Pablo, Ciencia, cultura y nacin: la recepcin del darwinismo en la Argentina decimonnica,
Nuevo Mundo Mundos Nuevos. Disponvel em: <http://nuevomundo.revues.org/61993> (acessado em
02/12/2012).
13
WEINBERG, Flix. El Saln Literario de 1837. Buenos Aires: Librera Achete, [1958] 1977, pp. 17-18.
94
No obstante el ttulo que lleva esta Memoria, el lector no busque mas en ella
que un corto nmero de apuntaciones sobre Tucuman mirado por el lado
fsico y moral de su belleza. En una residencia de poco mas de dos meses, y
con objetos muy diferentes, apenas tuve tiempo para ensayar rpidamente un
objeto sobre el cual tengo esperanza de volver con mas lentitud en otra
oportunidad. As, pues, ni el naturalista, ni el historiador, ni el poeta mismo,
cuya pluma parece que yo hubiera usurpado, tiene que reclamarme una sola
14
ECHEVERRA, Esteban, Los Consuelos, in Obras Completas de D. Esteban Echeverra. Tomo III, Buenos
Aires: Imprenta y librera de Mayo, 1871, p. 12. Na verso lanada por Echeverra, este texto apareceu como
nota de rodap. Nesta edio, aparece antes dos textos, sob o ttulo Notas del autor de Los Consuelos.
95
15
ALBERDI, Juan B., Memoria Descriptiva sobre Tucuman, in Obras Completas de Juan Bautista Alberdi.
Tomo I, Buenos Aires: Imprenta de La Trina Nacional, 1886, p. 59.
16
WEINBERG, Flix, op. cit., pp. 22-23.
17
Idem, pp. 25-28.
96
Manuel Jos Quiroga de la Rosa lanava ento a Tesis sobre la naturaleza filosfica del
derecho, em que ressaltava a necessidade dos jovens em completar o processo de
independncia iniciado em 1810, e se encaminhar civilizao, olhar convergente, como se
ver, com o apresentado por Alberdi no Fragmento preliminar. Tambm em 1837 apareceu
outro marco referencial para a literatura nacional que se constitua, La Cautiva, de Echeverra,
presente no volumem de Rimas.
A poltica nas Provncias Unidas do Rio da Prata sofreu mudanas com o
estabelecimento de governo autoritrio que duraria at por quase vinte anos. Em 1835, Rosas
assumiu o poder com faculdades extraordinrias e logo iniciou as perseguies aos
professores da universidade. Em janeiro de 1836, a ingerncia na universidade recaa sobre os
estudantes, que s poderiam se graduar caso fosse comprovada a sua adio causa da
Federao do governo rosista.18
Em 1837, surgiu a Generacin de 37, formada em sua maioria por estudantes do
departamento de Direito da Universidade de Buenos Aires,19 em meio aos sucessivos
governos de Juan Manuel de Rosas. Foi o primeiro movimento intelectual a se preocupar com
temas da nacionalidade, envolvidos nos projetos de nao para regio. Essa gerao, tambm
chamada de Nueva Generacin, tem como caracterstica intelectual a formao educacional,
ocorrida aps a independncia em instituies modernizadas, pela filiao ao romantismo e o
combate ao autoritarismo do governo de Rosas.
A gerao de 37 foi sendo formada pelos estudantes da universidade e por alguns
professores, como Vicente Fidel Lpez (1815-1903). Em 1833, este grupo organizou
primeiramente a Asociacin de Estudios Histricos y Sociales, que estabelecia que cada
sbado um scio ficaria responsvel por apresentar uma dissertao sobre um tema escolhido
com antecedncia. Aos poucos, as prprias reunies e os temas discutidos comearam a
incomodar setores mais conservadores da provncia. Com o avano do governo de Rosas, que
se estabilizava, e com ele da censura e a represso, seus membros resolveram dissolver a
associao em 1835, porm sem pr termo aos estudos iniciados nela.20
18
QUESADA, Mara Senz. La Argentina. Historia del pas y de su gente. Tomo I. Buenos Aires: Debolsillo,
2006. GANDA, Enrique de. Historia poltica de Argentina: poca de Rosas. Primera Parte. Buenos Aires:
Claridad, 1994. ROMERO, Jos Luis. Breve Historia de la Argentina. Buenos Aires: Fondo de Cultura
Econmica, 2011.
19
Weinberg aponta que eram formados grupos de estudos entre os jovens, sendo a casa de Miguel Can,
frequentemente, um destes pontos. Estes ncleos foram os antecedentes da Generacin de 37. WEINBERG,
Flix, op. cit.
20
Idem, p. 34.
97
21
Marco Sastre estudou na Universidade de Crdoba e na Universidade de Buenos Aires, porm no concluiu os
estudos. Escreveu romances, tratados de gramtica e ortografia, e esteve comprometido com o desenvolvimento
do sistema educacional no Uruguai e na Argentina.
22
Sastre estabeleceu um sistema de consultas pagas em seu estabelecimento, sob a forma de quatro planos: por
dia, por semana, por ms e por trimestre.
23
WEINBERG, Flix, op. cit., pp. 44-45. Esses sales eram centros de sociabilidade das elites que contriburam
para a circulao e formao de ideias na Buenos Aires do incio do sculo XIX. Segundo Pilar Quirs, [e]l
discurso asociacionistas es utilizado con frecuencia por elites culturales y polticas para pensar el lazo social;
la asociacin es concebida por ella como una forma de pedagoga cvica mediante la cual el ciudadano hace el
aprendizaje de la cosa pblica, constitutiva de la comunidad. Consultar: QUIRS, Pilar Gonzlez Bernardo de.
Civilidad y poltica en los orgenes de la Nacin Argentina: las sociabilidades en Buenos Aires, 1829-1862.
Buenos Aires: Fondo de Cultura Econmica, 2008, p. 37.
24
Por volta dessa poca, j havia diversos exilados devido s perseguies do governo rosista. No ato da
inaugurao, Miguel Can estava em Montevidu.
98
formas que estos elementos deben de recibir bajo las influencias particulares
de nuestra edad y nuestro suelo. Sobre lo primero es menester escuchar la
inteligencia europea, mas instruida y mas versada en las cosas humanas y
filosficas que nosotros. Sobre lo segundo no hay que consultarlo nadie,
sin nuestra razn y observacin propia. As nuestros espritus quieren una
doble direccin extranjera y nacional, para el estudio de los dos elementos
constitutivos de toda civilizacin: el elemento humano, filosfico, absoluto;
y el elemento nacional, positivo, relativo.25
Esta gerao que se identificava no discurso de Alberdi iniciou seus trabalhos com a
inteno de desenvolver as letras e a cultura em Buenos Aires. Encontramos, nos planos de
trabalho que constavam no texto de organizao do Saln, alguns dos objetivos que a
associao deveria desenvolver: se formar un fondo para costear la impresin de toda obra
original, ensayo, traduccin o composicin en prosa o en verso, que se consideren dignas de
ver la luz pblica; y para establecer premios.26 Nem todas as propostas conseguiram ser
levadas a termo. A entidade tentou lanar um jornal, El Semanario de Buenos Aires, que no
saiu do prospecto. Entretanto, parte do grupo teve mais xito e, sob a direo de Alberdi e
com a colaborao de diversos membros da entidade, editou a revista La Moda, gacetn
semanal de msica, poesa, literatura y costumbres, cuja publicao, apesar de no fazer
crticas diretas a Rosas, foi encerrada em 1838.
Com o desenrolar das reunies e edies, o Saln foi entrando em conflito com
rosistas e com alguns membros da gerao da independncia. A censura sobre a organizao
intensificou-se, levando ao afastamento gradual de integrantes e forando o encerramento das
atividades, em janeiro de 1838. Tambm houve conflitos internos ao grupo, por causa de
posicionamentos polticos e afiliaes ideolgicas, o que levou ao afastamento de alguns de
seus membros.
Mesmo consideradas as dificuldades em manter os debates, nem todos encerraram as
atividades; houve quem, ao contrrio, intensificasse o combate. Em junho de 1838, foi
fundada uma organizao clandestina, a Asociacin de Mayo, com influncias do socialismo
romntico, cuya presidncia foi ocupada por Echeverra e que contava com Alberdi e com
Gutirrez como integrantes da direo. Essa organizao terminaria por formar a Asociacin
de la Joven Generacin Argentina, um de cujos principais objetivos residia na ao poltica e
que se baseara na formao de grupos europeus nacionalistas e revolucionrios, inspirados no
25
ALBERDI, Juan B., Discurso pronunciado el da de la apertura del Saln Literario, in Obras Completas de
Juan Bautista Alberdi. Tomo I, Buenos Aires: Imprenta de La Trina Nacional, 1886, pp. 265-266.
26
WEINBERG, Flix, op. cit., p. 61.
99
2.1.2 O Chile
Na Amrica hispnica, do outro lado das cordilheiras dos Andes, desenvolveu-se uma
situao poltica muito prxima da regio do Prata no que se refere ao processo de
emancipao e s primeiras dcadas de guerras civis. No entanto, esta configurao mudaria a
partir da dcada de 1830 com a centralizao do Estado, ao ser alcanada certa estabilidade
poltica e social. Em relao ao quadro intelectual, a situao no Chile era mais favorvel do
que a da Argentina ou a do Brasil, com o fortalecimento das instituies de ensino e com
considervel circulao de estrangeiros no pas.
Na Capitania do Chile, aps 1810, as guerras civis foram intensas e predatrias, o qual
prejudicou a reorganizao do Estado. Esse perodo, que durou at 1830, teve a
predominncia do grupo liberal denominado pipiolos. A historiografia chilena que se firmaria
aps 1830 referiu-se a esse perodo como de anarquia ou de ensaio de organizao
poltica, por haver se caracterizado por uma instabilidade poltica e por frequentes mudanas
de governo. Esse tempo foi marcado por tentativas de estabelecer constituies influenciadas
pelo federalismo estadounidense e por um ambiente liberal. A insatisfao de setores da
sociedade fez os conservadores pelucones empreender uma ofensiva poltico-militar contra os
27
No discurso de abertura, Echeverra leu as consignas que direcionavam a ao da associao, sintetizadas em
quinze palavras simblicas: Asociacin; Progreso; Fraternidad; Igualdad; Libertad; Dios; centro y periferia
de nuestra creencia religiosa; el cristianismo, su ley; el honor y el sacrificio, mvil y norma de nuestra conducta
social; Adopcin de todas las glorias tanto individuales como colectivas de la Revolucin; Menosprecio de toda
reputacin usurpada e ilegtima; Continuacin de las tradiciones progresivas de la Revolucin de Mayo;
Independencia de las tradiciones retrgradas que nos subordinan al antiguo rgimen; Emancipacin del
espritu americano; Organizacin de la patria sobre la base democrtica; Confraternidad de principios; Fusin
de todas las doctrinas en un centro progresivo; Abnegacin de las simpatas que puedan ligarnos a las dos
grandes facciones que se han disputado el podero durante la Revolucin. Estas palavras foram os elementos
bsicos para a produo do Dogma Socialista em 1846. ECHEVERRA, Esteban. Obras Completas de D.
Esteban Echeverra. Tomo 4, Buenos Aires: Imprenta y Librera de Mayo, 1873, p. 119.
28
WEINBERG, Flix, op. cit., pp. 112-113.
100
liberais, coordenada por Diego Portales, que levou o grupo conservador ao poder aps a
batalha de Lircay, em 1830. O estabelecimento de um governo centralizado e desptico
alcanou sua expresso mxima na administrao de Joaqun Prieto (1831-1841), com a
aprovao da Constituio de 1833, que deu maior estabilidade poltica e econmica ao pas
por meio de um presidencialismo republicano autoritrio.29 Apesar do conservadorismo, o
novo mandatrio investiu no estabelecimento de instituies de ensino e na promoo
cultural. A partir de 1830, o governo chileno passou a incentivar a imigrao de intelectuais
europeus e americanos, principalmente argentinos, para desenvolver as letras no pas. Entre os
europeus, veio um grande nmero de franceses, que influram na vida intelectual chilena.
Encontramos, assim, o naturalista Cludio Gay, o mdico Lorenzo Sazi, o pintor Raymond
Monvoisin, o gelogo Amadeo Pisis e o arquiteto Franois Brunet de Baines. De outras
nacionalidades chegaram o polaco Ignacio Domeyk, que trabalhou com orografia, geografia,
mineralogia e educao; o alemo Rodulfo Phillipi, que estudava botnica; os espanhis
Antonio Gorbea, que era matemtico, e os impressores e editores Santos Tornero e Narciso
Desmadryl; os pintores Mauricio Rugendas, de origem alem, e o italiano Alejandro Cicarelli.
Entre os americanos, aportaram os argentinos Bartolom Mitre, Domingo Faustino Sarmiento,
Domingo Oro, Gabriel Ocampo, Juan Bautista Alberdi,30 Juan Mara Gutirrez e Vicente
Fidel Lpez, alm de outros exilados. Da Colmbia veio Juan Garca del Ro e, da Venezuela,
chegaram Andrs Bello31 e Simn Rodrguez, sendo o penltimo um referencial quanto ao
desenvolvimento intelectual e institucional do Chile.
Podemos ter uma pequena ideia de como se encontrava o Chile em 1829 com a breve
descrio que Andrs Bello faz do pas ao chegar de Londres. Em carta datada de 20 de
agosto, enviada para seu amigo Jos Fernndez Madrid, escrevia:
29
GAZMURI, Cristin R. La historiografa chilena (1842-1970). Tomo I. Santiago de Chile: Centro de
Investigaciones Diego Barros Arana, 2006, pp. 42-47.
30
Alberdi permaneceu no Chile de 1844 at 1854.
31
Bello chegou ao Chile em 1829, onde permaneceu at sua morte, em 1865.
101
como Carlos e Juan Bello, filhos de Bello, Francisco Bilbao, Salvador Sanfuentes e Manuel
A. Matta. Ocupou-se da direo Jos Victorino Lastarria, importante intelectual e professor do
renomado Instituto. A inteno da instituio consistia em promover o debate sobre as
questes locais e combater a herana espanhola, a partir do modelo da produo intelectual
francesa. A grande polmica que envolveu a Sociedad Literaria surgiu com a discusso a
respeito do idioma castelhano e seus usos. Dela participaram nomes como Vicente Fidel
Lpez, Salvador Sanfuentes, Jos Joaqun Vallejo e Domingo Faustino Sarmiento. No
entanto, a organizao teve uma vida breve, pois suas atividades foram encerradas em agosto
de 1843.35
A produo intelectual francesa repercutiu no Chile, trazendo a literatura romntica
desse pas europeu ao centro das atenes da instituio, como tambm propiciando o contato
com teorias sociais liberais que alimentariam a reflexo e a ao poltica. Com a irrupo da
revoluo francesa de 1848, os reflexos no Chile foram sentidos no tocante filiao
socialista que seus jovens assumiam. Livros de diversos autores chegaram ao pas, como os
dos socialistas utpicos Charles Fourrier, Hugues-Flicit Robert de Lamennais, Luis Blanc e
Robert Owen. Entre os seus mais animados leitores estavam Francisco Bilbao e Santiago
Arcos, que, influenciados por eles, fundaram em 1850 a Sociedad de La Igualdad,36 na
inteno de preparar o povo chileno para a tomada de seus direitos.
Em comparao com a Argentina e o Brasil, a produo romntica chilena surgiu em
um momento posterior, por volta de meados do sculo. Um de seus mais renomados escritores
foi Alberto Blest Gana (1830-1920). Como escritor, inicialmente cultivou versos e publicou
artigos de costumes em diversas revistas, embora tenha como principal mrito aparecer como
fundador do romance no Chile, com obras que combinam traos romnticos e realistas, como
os apresentados em Martn Rivas (1862), onde realizou uma anlise da sociedade chilena de
meados do sculo.
Na dcada de 1830 a 1840, a Repblica do Chile viu um incremento substancial na
vida cultural do pas. A juventude que saa das novas instituies de ensino produziu uma
srie de trabalhos que buscavam compreender e, ao mesmo tempo, construir uma identidade
chilena. Com a presena dos intelectuais estrangeiros, foi possvel manter o contato com
35
Idem, p. 106. Ver tambm: STUVEN. Ana Mara, La generacin de 1842 y la conciencia nacional chilena,
in Revista de Ciencia Poltica, Vol. IX, n. 1, 1987.
36
Cristin Gazmuri indica que diversos dos membros destas sociedades passariam a tornar-se personagens
importantes da vida poltica chilena, ocupando cargos de deputados, senadores, ministros e presidentes da
Repblica. GAZMURI, Cristin R., op. cit., p. 50.
103
38
MARTINS, Wilson. Histria da Inteligncia Brasileira. 3 ed., vol. II, So Paulo, 2001, pp. 45-46 e 55-56.
39
Idem, p. 57. Segundo Martins, vieram na misso Jean-Baptiste Debret (pintor), Nicolas Taunay (pintor),
Auguste Taunay (escultor), Grandjean de Montigny (arquiteto), Franois Ovide (professor de mecnica), Simon
Pradier (gravador) e Franois Bonrepos (escultor, ajudante de Taunay).
40
Segundo Anderson, j no primeiro quartel do oitocentos a historiografia se estabeleceu como disciplina. De
acordo com este autor, a funo da lngua escrita via imprensa foi relevante, porm no nica, para a formao
dos pases americanos. No entanto, como ele adianta, isso no significa que houvesse uma ligao direta entre
lngua e Estado nacional, uma vez que observamos a fragmentao da Amrica hispnica em diversas repblicas.
O Brasil figura como uma exceo, pois nele coincide a unidade territorial com a lingustica, no tocante ao
portugus. ANDERSON, Benedict, op. cit., 2008, pp. 82-83.
105
43
ABREU E LIMA, J. I. Bosquejo histrico, poltico e literrio do Brasil. Cidade de Nictheroy: Tipografia de
Rego e Comp., 1835, p. 72.
44
Minerva Brasiliense, jornal de Sciencias, Letras e Artes. N. 1, Rio de Janeiro: na Typographia de J. E. S.
Cabral, 1843, p. 112.
107
O amor do paiz, e o desejo de ser til aos seus concidados foram os nicos
incentivos, que determinaram os auctores desta obra a uma empresa que,
exceptuando a pouca gloria, que caberlhes pde, nenhum outro proveito lhes
funde.
Ha muito reconheciam elles a necesidade de uma obra peridica, que,
desviando a atteno publica, sempre vida de novidades, das dirias e
habituaes discusses sobre cousas de pouca utilidade, e o que mais, de
questes sobre a vida privada dos cidados, os acostumasse a reflectir sobre
objectos do bem comum, e de gloria da patria.
Tal o fim a que se propoem os auctores desta Revista, reunindo todas as
suas foras para apresentar em-um limitado espao concideraes sobre
todas as matrias, que devem merecer a seria atteno do Brasileiro amigo
da gloria nacional.46
45
Minerva Brasiliense, jornal de Sciencias, Letras e Artes. n. 4, Rio de Janeiro: na Typographia de J. E. S.
Cabral, 1843, p. 7.
46
Nitheroy: Revista Brasiliense. Sciencias, Lettras e Artes. Tomo I, n. 1, Paris: Dauvin et Fontaine, Libraires,
1836, p. 6.
47
GUIMARES, Lcia Maria Paschoal, Liberalismo Moderado: postulados ideolgicos e prticas polticas no
perodo regencial (1831-1837), in GUIMARES, Lcia Maria Paschoal; PRADO, Maria Emlia (orgs). O
liberalismo no Brasil Imperial: origens, conceitos e prticas. Rio de Janeiro: UERJ, 2001, pp. 103-126.
108
50
ROMERO, Jos Luis. Las ideas polticas en Argentina. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econmica, [1956]
2010, p. 130.
51
A obra de Echeverra foi publicada no exterior, e, como se afirmou, em um momento posterior (1846). Porm,
h que ressaltar que fora gerada, como o prprio autor afirma em sua introduo, nas discusses feitas pelos
membros da Asociacin de Mayo em 1837. Deve se recordar, tambm, que Echeverra permaneceu na Argentina
at 1839.
111
escolas e passaram a produzir o material intelectual requerido para a forja das naes ibero-
americanas. Para Benedict Anderson, nesse momento tratava-se de criar, sobretudo por meio
de textos, de convenes, smbolos e rituais, as bases para uma comunidade imaginada. Dessa
maneira, em num primeiro momento, a coletividade que se imagina (neoclssica) como nao
se reduziu praticamente s elites que redigiram e juraram constituies polticas, fundando
repblicas/monarquia aristocrticas/oligrquicas. Algumas dcadas depois, essas
comunidades passariam a ser imaginadas/construdas sob o signo do romantismo, procurando
incluir as identidades de seu povo respectivo e suas caractersticas nacionais.52
Era necessrio, ainda, inculcar nesse mesmo povo uma srie de conhecimentos e
sentimentos que o fizesse sentir pertencente a uma determinada nao. Em boa medida, as
instituies educacionais, os peridicos e os livros foram importantes ferramentas utilizadas
na edificao nacional. No entanto, para isso era preciso levar as ideias das elites s classes
mdias, ampliando o sistema educacional e o mundo letrado. Dita expanso ocorreu, embora a
passos lentos. Os esforos do incio do sculo estavam longe de ideias mais progressistas de
defesa da universalizao da alfabetizao e do aumento de estudantes nas universidades.
52
ANDERSON, Benedict, op. cit., pp. 84-106.
112
instituies de ensino foram criadas e outras, renovadas.53 Assim aconteceu com a abertura da
Escola Normal Superior e o Museu Nacional de Histria Natural (1794), a Escola
Politcnica (1795) em Paris e a Universidade de Berlim (1806-1810), que viria a ser o modelo
de universidade seguido mundialmente.54
A expanso do ensino e da cultura letrada podia ser verificada em diversas partes do
mundo ocidental. Em sua peregrinao pelos Estados Unidos entre 1831 e 1832, Alexis de
Tocqueville (1805-1859) ficou surpreso pela amplitude que o sistema educacional atingira,
veiculando saberes que foram internalizados por grande parte da populao. Segundo
Tocqueville, ao comentar sobre o pas visitado, a instruo primria est ao alcance de todos;
a instruo superior quase no est ao alcance de ningum. Alm dessa universalizao da
educao fundamental, Tocqueville apontava o papel utilitarista que era dado ao ensino
formal no pas em questo:
53
VESURI, Hebe, La ciencia en Amrica Latina, 1820-1870, in VZQUEZ, Josefina, Z., op. cit., pp. 537-
553. Vesuri considera que os pases no europeus adotaram variantes del modelo de ciencia europea como
componentes del proceso de incorporacin al concierto de las naciones soberanas. HOBSBAWM, Eric, op. cit.
pp. 151-158.
54
Idem, p. 303.
55
TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na Amrica: leis e costumes de certas leis e certos costumes polticos
que foram naturalmente sugeridos aos americanos por seu estado social democrtico. So Paulo: Martins
Fontes, 2005, pp. 61, 355.
56
ANDERSON, Benedict, op. cit., p. 112, nota de rodap n. 11. Essa nota de Anderson contrasta com a
afirmao mais geral de Hobsbawm, que deixa em aberto a possvel influncia dos sistemas escolar, incluindo o
superior, fora da Europa oitocentista, no que toca ao avano do nacionalismo. Conforme a anlise do segundo, o
papel dos 6 mil estudantes universitrios existentes na Frana em 1789 teria sido nfimo, mas estratgico; j,
por volta de 1830, (nobody could possibly overlook such a number of young academics), ningum poderia
ignorar tal nmero de jovens universitrios, em traduo nossa. Tratava-se de 19 mil estudantes no lyce
francs em 1842, 20 mil colegiais na Rssia imperial (que contava com uma populao de 68 milhes de
habitantes), totalizando, provavelmente, 48 mil universitrios em toda a Europa em 1848. HOBSBAWN, Eric J.
The Age of Revolution 1789-1848. Nova York: Vintage Books, 1996, p. 135. Em termos de percentagens, os 6
113
ensino superior na Amrica ibrica era uma realidade desde os tempos de colnia. Algumas
delas tinham adquirido uma importncia considervel, como no caso do centro universitrio
de Charcas, onde se formou boa parte da intelligentsia platina e andina. Aps as
independncias, a necessidade de expandir os nacionalismos, em grande parte fruto das
concepes das elites, foi central edificao de entidades que promovessem as
caractersticas nacionais e pregassem o sentimento identitrio nacional. Dessa forma, o papel
das instituies de ensino e pesquisa resultou fundamental nos pases americanos. Na
Amrica, diferentemente da Europa, como postulam Hobsbawm e Anderson, a lngua de fato
no foi uma questo problema na formao das naes. No entanto, a criao de uma tradio
e de um passado, em meio a rupturas com as antigas metrpoles, teve uma relevncia notvel
nos meios acadmicos, sobretudo neste estudo entre intelectuais chilenos e argentinos.
De maneira geral, no mundo transatlntico a educao foi uma atividade que cresceu
consideravelmente a partir do final do sculo XVIII, e cuja importncia foi cada vez mais
reconhecida. Na Amrica ibrica, o sistema educacional no conseguiu se expandir de forma
imediata aps os processos de emancipao, sobretudo por causa dos conflitos daquelas
dcadas, que produziram um empobrecimento na chegada da ilustrao ao continente,
reforado pela escassez de estabelecimentos, livros e profissionais. A organizao de um
sistema educacional nos pases americanos resultou, portanto, uma tarefa difcil, com idas e
vindas, e que demorou vrias dcadas para se estruturar.57
mil estudantes franceses em 1789 correspondem a um 0,024% de sua populao, poca de 25 milhes de
pessoas. Com ascenso mdio anual de 0,27%, at 1815, e de 0,59% at 1845, em 1842 os 19 mil estudantes do
lyce equivaliam a uns 0,061% de uma populao, de, aplicadas as percentagens, 30.848.515 habitantes. Pelo
menos em termos relativos, tal nmero, embora tenha triplicado, no era to destoante assim entre 1789 e
1842. PIERENKEMPER, Toni. La industrializacin en el siglo XIX. Revoluciones a debate. Madri: Siglo XXI
de Espaa Editores, 2001, p. 72. Quanto ao Brasil, Antnio Carlos Pereira Martins afirma que [a]t o final do
sculo XIX existiam apenas 24 estabelecimentos de ensino superior no Brasil com cerca de 10.000 estudantes.
MARTINS, Antnio Carlos Pereira, Ensino superior no Brasil: da descoberta aos dias atuais, So Paulo: Acta
Cir. Bras., vol. 17, supl. 3, 2002, p. 1. Acompanhando agora a questo demogrfica, Tarcsio Rodrigues Botelho
traa um levantamento que abrange desde uma populao estimada em 2,4 milhes de pessoas na Amrica
portuguesa em 1808, passando por 3,6 milhes de habitantes em 1818, 3.960.866 de pessoas em 1823, 7.677.800
em 1854, at o Recenseamento Geral do Imprio, em 1872, que apurou um total de 9,97 milhes de
brasileiros. Assim, como elemento de comparao meramente ilustrativo, a percentagem de estudantes
brasileiros no nvel superior no final do sculo XIX, luz dos dados anteriores, poderia rondar os 0,1%.
BOTELHO, Tarcsio Rodrigues, Populao e espao nacional no Brasil do sculo XIX, in Cadernos de
histria, Belo Horizonte: Editora PUC-Minas, vol. 7, n. 8, 2005, pp. 74, 77-79.
57
WEINBERG, Gregorio, Educacin y Sociedad, in Historia general de Amrica Latina. La construccin de
las naciones latinoamericanas, 1820-1870. Paris: Unesco; Madri: Trotta, 2003.
114
Na Amrica ibrica, aps 1808, iniciou-se uma transio gradual do Estado colonial,
em direo ao Estado moderno e nacional. Para a formao dessa entidade, advento da
modernidade, precisava-se construir uma srie de mbitos que permitissem que o novo Estado
cumprisse com seu papel soberano. Nessa direo, em um primeiro momento buscou-se erigir
um aparato administrativo centralizado e uma ideia internalizada de identidade coletiva. O
novo modelo administrativo, que unia a ideia de nao com a organizao de um Estado,
precisava se constituir, com vistas a estabelecer e ampliar seu raio de ao. Para a
concretizao do Estado, que visava a ser nacional, era preciso dar foras aos nacionalismos
da primeira metade do sculo XIX pela expanso do aparato estatal e o desenvolvimento de
instituies que ampliassem as ideias de nao. Entre os diversos representantes do Estado, as
instituies educacionais, promotoras da padronizao de uma ideia de nao, tiveram uma
forte importncia nos pases ibero-americanos.58 Assim, embora os nacionalismos fossem
centrais para a construo do Estado, as instituies estatais foram essenciais para a
internalizao e expanso das identidades nacionais e de um sentimento de pertencimento.
Dos trs pases discutidos, o Chile foi o que primeiro conseguiu centralizar o Estado e
tambm organizar seu sistema de ensino, na metade inicial daquele sculo. Apesar das
divergncias no interior das classes dominantes, liberais e conservadores estavam de acordo
em dedicar importantes esforos para a educao e a expanso da cultura escrita em seu
territrio.59 No Chile, mesmo com a centralizao precoce do Estado, apenas em 1842 surgiu
uma universidade moderna, porm sob o signo dos novos tempos. No entanto, as instituies
secundrias j estavam funcionando, desde a primeira dcada, dentro de uma perspectiva
modernizante. Por sua vez, na Argentina, ainda com a tardia centralizao do Estado, a
universidade moderna surgira com mais de 20 anos de antecedncia, em 1821, com a criao
Universidad de Buenos Aires, na mesma dcada em que se renovaram as instituies
secundarias. Finalmente, no Brasil, ainda com a manuteno de uma maior estabilidade
poltica, a universidade enfrentou grande resistncia das elites no processo de independncia,
surgindo apenas faculdades na dcada de 1820. Nas escolas secundrias e academias, deu-se
uma renovao com o Seminrio de Olinda, e com a inaugurao da Academia Militar, em
1811, e do Colgio Pedro II, aberto em 1837 no Rio de Janeiro.
58
OZLAK, Oscar. La formacin del Estado argentino. Buenos Aires: Emec, 2009. Ozlak d preferncia
anlise da construo do Estado argentino no avano e na organizao econmica e administrativa do Estado,
alcanada com a estabilidade poltica do pas, iniciada na dcada de 1860 e relacionada internacionalizao da
economia capitalista no continente latino-americano.
59
ARNOUX, Elvira Narvaja de, op. cit.
115
60
PRADO, Maria Lgia Coelho. Amrica Latina no Sculo XIX: Tramas, Telas e Textos. So Paulo, Editora
Universidade de So Paulo, 2004, p. 94.
61
A perda de espao da Igreja no est restrita apenas ao nvel intelectual e ideolgico, recaindo tambm sobre
suas posses na pennsula e na Amrica ibrica. No entanto, esse processo no ficou restrito Igreja catlica, ao
fazer parte das transformaes que a propriedade sofreu na era moderna. As terras e os bens eclesisticos
passaram por um processo de apropriao pelas monarquias a partir do sculo XV, que se intensificou com as
reformas ilustradas em meados do sculo XVIII e com a formao dos Estados nacionais no incio do sculo
XIX. Sobre o assunto, ver: PRIEN, Hans-Jrgen & MARTNEZ DE CODES Rosa Mara (orgs.), El Proceso
Desvinculador y Desamortizador de Bienes Eclesisticos y Comunales en la Amrica Espaola Siglos XVIII y
XIX, in CUADERNOS DE HISTORIA LATINOAMERICANA, n. 7, Ridderkerk: Ridderprint; AHILA,
Asociacin de Historiadores Latinoamericanistas Europeos, 1999. Disponvel em:
<http://gustavo.netne.net/Libros/AHILA/Cuaderno-07.pdf> (acessado em 17/02)2013).
62
WEINBERG, Gregorio, op. cit., p. 574.
63
BUCHBINDER, Pablo. Historia de las universidades argentinas. Buenos Aires: Sudamrica, 2010.
116
64
TERNAVASIO, Marcela. Las reformas rivadavianas en Buenos Aires y el Congreso General, pp. 159-198,
in GOLDMAN, Noem (coord.). Nueva Historia argentina. Revolucin, Repblica, Confederacin (1806-1852).
Tomo III. Buenos Aires: Editora Sudamericana, 1998.
65
Na Amrica hispnica, a imprensa se fez presente simultaneamente ao processo de colonizao. Em 1535
chegou ao Mxico a primeira imprensa e, em 1581, em Lima comearam as atividades de imprenso.
117
funcionavam como uma faculdade nos moldes da Universidade de Coimbra, reformada por
Pombal. A instituio tinha por fim formar sacerdotes e, em menor nmero, leigos. Nela
aprendiam-se, como curso menor, grego, hebraico e retrica, com a durao mnima de um
ano, e no curso maior, de trs anos, estudava-se filosofia.66
Um dos passos iniciais para a modernizao do ensino na colnia portuguesa foi dado
na provncia de Pernambuco, com a presena do Seminrio de Olinda. Tinha sido proposto
pelo bispo Azeredo Coutinho, um liberal que havia estudado letras e filosofia na Universidade
de Coimbra. Aquela instituio foi pioneira no Brasil, do ponto de vista educativo, ao estar
entre os primeiros estabelecimentos de ensino a romper com a tradio jesutica e a oferecer
uma formao moderna. Aps um perodo sem funcionar, o Seminrio foi reaberto em 1800 e
comeou a oferecer uma formao onde se mesclavam o modelo jesutico e as propostas mais
inovadoras e modernizantes. Essa instituio resultou, assim, um dos principais representantes
na colnia das novas ideias incorporadas educao formal ps-reformas pombalinas.67
Depois de 1808, comeou a surgir uma srie de novos estabelecimentos formativos. O
primeiro foi a Academia Real Militar no Rio de Janeiro, em 1810; em seguida vieram os
cursos jurdicos, em 1827, em So Paulo e Olinda, e as Faculdades de Medicina, em 1832, em
Salvador e no Rio de Janeiro. Segundo Prado, a universidade tardou a surgir no Brasil, por
existirem diversos setores liberais e, posteriormente, sobretudo aps 1870, positivistas,
contrrios ao surgimento de tal instituio, por consider-la arcaica, elitista e pouco produtiva
com seus bacharis. Os positivistas brasileiros eram adeptos da criao de cursos tcnicos e
profissionalizantes, com escolas politcnicas como a do Rio de Janeiro, lanada em 1874, e a
de So Paulo, cujas atividades se iniciaram em 1893.68
A influncia das novas formas de organizao sobre o ensino no Brasil pode ser
sentida na proposta de Abreu e Lima, que em 1819 se incorporara, em Angostura, aos
exrcitos independentistas liderados por Bolvar. Sua passagem pela Academia Real Militar
no Rio de Janeiro imprimiu forte presena no projeto educativo ofertado aos patriotas em
Angostura (ver captulo III). Desde as pginas do jornal revolucionrio Correo del Orinoco, o
pernambucano props, em 03 de junho de 1820, a organizao de escolas para a formao de
militares, com relevantes bases cientficas modernas.
66
SAVIANI, Demerval, Histria das ideias pedaggicas no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2011.
67
ALVES, Gilberto Luiz. O Pensamento Burgus no Seminrio de Olinda: 1800-1836. Ibitinga, SP: 1993.
68
PRADO, Maria Lgia Coelho, op. cit., pp. 106-8, 111.
118
69
MORENO, Gerardo Rivas (Editor). Correo del Orinoco. Bogot: edio fac-simile, 1998, p. 262.
70
SAVIANI, Demerval, op. cit., p. 120.
119
71
Idem, pp. 124-125.
72
Idem, pp. 130-133.
73
WEINBERG, Gregorio, Educacin y Sociedad, in VZQUEZ, Josefina, op. cit., p. 593.
74
SAVIANI, Demerval, op. cit., 2011, p. 118. WEINBERG, Gregorio, op. cit
120
de um nvel superior ensina ao de nvel inferior. No era articulado em nveis seriados, pelo
qual permitia que se formassem simultaneamente crianas e adultos. Esse mtodo teve boa
acolhida na Amrica ibrica devido falta de estrutura e de profissionais na rea de educao,
problemas que, nos primeiros anos aps a independncia, se intensificariam. A situao levou
aceitao do mtodo por diversos pases, como Argentina, Brasil, Chile, Colmbia, Mxico
e Uruguai, apenas para exemplificar aqueles onde teve melhor acolhida. Entretanto, o sistema
no atingiu os resultados pretendidos.75
A modernizao do ensino chileno ocorreu na primeira dcada do sculo XIX. Em
1813, criou-se o Instituto Nacional, a partir da fuso de quatro instituies educacionais
coloniais e com o apoio de intelectuais ilustrados, como Juan Egaa e Camilo Henrquez,
dessa forma convivendo traos clssicos e modernos. Com a restaurao espanhola, a
instituio foi fechada em 1818, para novamente ser reaberta com o progresso dos liberais de
OHiggins, de forte postura anticlerical. As disciplinas oferecidas no estabelecimento eram o
latim, o francs e o ingls, filosofia, direito, economia poltica, matemtica, teologia e
medicina. O Instituto serviu de modelo para a criao de outros estabelecimentos em La
Serena e Concepcin. Durante a administrao do presidente Francisco Antonio Pinto (1827-
1829), iniciou-se em 1827 a abertura de um instituto em Talca. Em 1829, surgiram duas
instituies em Santiago que eram abertamente concorrentes: o Liceo de Chile, de cunho mais
liberal, e o Colegio de Chile, onde estudavam membros das famlias mais conservadoras e
cujo diretor era Bello.76
Andrs Bello, um dos principais impulsionadores do sistema educacional no pas,
considerava que educao era algo essencial para o estabelecimento da repblica, pois, uma
vez que no havia rei, resultava necessrio que os homens tivessem virtude para manter o
sistema democrtico de governo. A forma de alcanar dita virtude passava pela instruo,
tanto primria, para as massas, quanto de nvel universitrio, para a elite.77
Visando a melhorar as condies educacionais, foi criada, em 1842, a Escuela Normal
de Santiago, a primeira na Amrica do Sul, dirigida por Domingo Faustino Sarmiento. Esse
foi um passo importante, visto que se pretendia atender a falta de professores que atingia, no
s o Chile, mas a Amrica ibrica de forma geral, em um modelo viria a ser seguido por
75
WEINBERG, Gregrio, Modelos educacionais no desenvolvimento histrico da Amrica Latina, in RAMA,
Germn et al. Desenvolvimento e Educao na Amrica Latina. So Paulo: Cortez Editora, 1983.
76
EYZAGUIRRE, Jaime. Historia de las instituciones polticas y sociales en Chile. Santiago de Chile:
Universitaria, [1967] 2011, pp. 86-87.
77
JAKSIC. Ivn A. Andrs Bello: La pasin por el orden. Santiago: Universitaria, 2010, pp. 175-176.
121
vrios pases americanos.78 O sanjuanino, durante toda sua vida, esteve envolvido com
questes pedaggicas, promovendo a edificao de estabelecimentos de ensino e refletindo
sobre o processo educativo. Pesquisou tais questes em muitos pases e escreveu diversas
obras acerca desses temas, como Educacin popular, Educacin comm e Las escuelas: base
de la prosperidad y de la Repblica en los Estados Unidos.79
2.2.2 As universidades
82
BUCHBINDER, Pablo, op. cit., pp. 31-32. Segundo este autor, personagens importantes como Jos Mara Paz,
Damacio Vlez Sarsfield, Gaspar Rodrguez de Francia, Juan Ignacio Gorriti e Manuel Derqui se formaram na
instituio na virada do XVIII para o XIX. Inicialmente era permitido o ingresso de mestios propiciando
alguma mobilidade social. No final do sculo XVIII a elite criolla avanou contra o costume pedindo a
comprovao da pureza de sangre. Posteriormente, em 1786, proibiu tambm a entrada de ilegtimos, e em 1844
o governo proibiu a entrada de membros que no fossem das elites.
123
85
FAVERO, Maria de Lourdes de Albuquerque. Universidade do Brasil: das origens construo. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 2010.
86
Idem.
87
PRADO, Maria Lgia Coelho, op. cit., pp. 111-116.
125
Instituto Nacional aps um conflito com esta instituio. Na ocasio, seu reitor, Manuel
Montt, utilizou-se da fora poltica para obrigar ao encerramento das atividades da antiga
universidade, em 1839.
Em poucos anos, apareceria uma nova instituio com tendncias modernas. A
proposta para a Universidade do Chile, fundada em 1843 durante o perodo controlado pelos
conservadores (1830-1860), traria novidades ao ser repensada dentro de uma perspectiva
nacional, republicana e a partir do Estado nacional. Esta nova universidade tinha o papel de
civilizar o pas e de desenvolver as cincias e as letras, que imprimiriam o rumo moral ao
Chile, assim como previra seu primeiro reitor, Andrs Bello.88
Bello, assim como Sarmiento e Juan Mara Gutirrez, esteve presente nas reflexes e
iniciativas de promoo da educao na Amrica hispnica. Seu discurso pronunciado na
inaugurao da Universidad de Chile pode ser considerado um marco no concernente s
novas propostas de organizao do ensino superior. No ato da inaugurao, seu primeiro reitor
declarava os objetivos esperados com a nova instituio:
A universidade no foi o nico aparato educacional oficial criado pelo Estado chileno.
Entretanto, seu espao dentro do corpo estatal mereceu destaque considerando as aes
direcionadas para a constituio de um sistema de formao, uma vez que ela comeou a
exercer um papel central na organizao de todos os nveis educacionais, ao ser responsvel
por pensar desde o ensino primrio, ao secundrio e superior, como tambm pela seleo e
aprovao dos livros adotados nas escolas. Ditas funes estavam muito prximas quelas que
cabiam s universidades europeias de meados do sculo XIX.90
88
Idem, pp. 95-96.
89
BELLO, Andrs, Discurso pronunciado en la instalacin de la Universidad de Chile, el 17 de septiembre de
1843, in Obras Completas, tomo XXI [Temas Educacionales I], Caracas: Fundacin Casa de Bello, 1982, pp. 3-
21.
90
ARNOUX, Elvira Narvaja de, op. cit., p. 40.
126
Segundo Maria Lgia Coelho Prado, a universidade que surgia dentro da perspectiva
nacional tinha que se pensar como parte do Estado e a seu servio, alm de como
representante das ideias elitistas que dominavam o pensamento de intelectuais da poca. O
labor da nova universidade, de acordo com seus idealizadores, deveria estar destinado
formao das elites culturais e dos futuros dirigentes do pas, pelo qual a grande maioria da
populao estava excluda do acesso educao superior. Deveria ser, ainda, uma instituio
agente do progresso, de novas propostas e da negao da ordem anteriormente estabelecida. A
universidade chilena foi formada dentro de uma concepo moderna de ensino, cuja ideia de
educao como modo de civilizar a sociedade recm-sada do mundo colonial expressava-se
na perspectiva de pensar a nao como parte do mundo ocidental civilizado, aberto s
conquistas universais, mas procurando adapt-las ao Chile.91
Fazia parte do elenco de conflitos surgidos pela relao entre o novo e o velho sistema
de ensino aquele derivado da transferncia de poder da Igreja para o Estado. A universidade
colonial, de velhas bases frente aos avanos dos mtodos e das cincias, representava tambm
a Igreja e sua forma de pensar, consideradas pelos liberais da poca como formas arcaicas. A
universidade de 1843 exercia como representante do ensino moderno, agente do progresso e
de negao da escolstica. Por todo o sculo, sua presena continuou na gesto do sistema
educacional chileno.
Em 1879, dois ex-alunos da universidade e reconhecidos historiadores, influenciados
pelo crescimento das correntes positivistas, Diego Barros Arana (1830-1907) e Miguel Luis
Amuntegui (1828-1888), durante os esforos destinados a mudar o curriculum das escolas,
escreveram a lei de educao secundria e superior, pela qual se institucionalizava o ensino
das cincias e se propunha o fim da educao religiosa. Estes projetos no foram bem vistos
pelo clero e chegaram a provocar uma reorganizao das foras intelectuais da Igreja. Ao
sentir-se atacada frente ao avano do ensino laico reforado pela chegada do positivismo, a
reao da Igreja catlica foi forte, tendo conseguido concretizar seu combate com a fundao
da Pontifcia Universidade Catlica do Chile, no ano de 1888.92
Nos trs pases, verificamos uma ampliao do sistema educacional pelos novos
Estados-nao em constituio. A historiografia em cada um desses pases cuidou de
responder s questes locais, ligadas identidade nacional, que se colocavam naquele
momento. Compartilharam ferramentas e horizontes tericos prximos, que, por meio das
91
PRADO, Maria Ligia Coelho, op. cit., p. 99.
92
Idem, p. 100.
127
leituras locais, das realidades histricas e dos anseios polticos, produziram modelos
historiogrficos e civilizacionais cujas marcas se deixam sentir ainda nos dias atuais.
2.2.3 O IHGB
93
MAGNOLI, Demtrio. O corpo da ptria: imaginao geogrfica e poltica externa no Brasil (1808-1912).
So Paulo: Moderna, 1997, p. 96.
94
IGLSIAS, Francisco. Os historiadores do Brasil: captulos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira; Belo Horizonte: UFMG, IPEA, 2000, p. 61.
95
DIEHL, Astor Antnio. A cultura historiogrfica brasileira: do IHGB aos anos 1930. Passo Fundo: Ediupf,
1998.
128
96
MARTINS, Wilson, op. cit., p. 231.
97
Idem, p. 239.
98
Idem, p. 134. Ver tambm RICUPERO, Bernardo. O romantismo e a ideia de nao no Brasil (1830 1870).
So Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 91.
129
99
BARBOSA, Janurio da Cunha, Discurso, in Revista do Instituto Historico e Geographico do Brazil. Tomo
I, 3 Ed., Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, [1839] 1908, p. 10.
100
IGLSIAS, Francisco, op. cit., p. 23.
101
Idem, p. 63. Ver tambm SCHWARCZ, Lilia M., op. cit.
102
ALTAMIRO, Carlos (Dir.). Historia de los intelectuales en Amrica Latina. La ciudad letrada, de la
conquista al modernismo. Buenos Aires: Katz Editores, 2008, pp. 175-176.
103
RICUPERO, Bernardo, op. cit., p. XXXVI.
130
104
JOCELYN-HOLT, Alfredo, Balance historiogrfico y una aproximacin al canon, in MUSSY, Luis G. de
(Editor). Balance historiogrfico chileno. El orden del discurso y el giro crtico actual. Santiago: Ediciones
Universidad Finis Terrae, 2007, pp. 33-34.
105
Ercilla se alistou na expedio contra os araucanos, participando diretamente dos conflitos entre 1557 e 1759.
A escrita de seu poema, iniciada ainda em terras americanas, levou produo de um dos mais importantes
relatos da conquista e teve grande aceitao na Amrica e Europa.
106
Idem, pp. 35, 39.
131
jesuta madrilenho Diego de Rosales (1601-1677), que chegou ao pas em 1629. Rosales, que
como jesuta se voltou ao estudo dos povos araucanos (mapuches), escreveu em 1674 uma das
primeiras obras sobre a regio, sob o ttulo de Historia general del reino de Chile. Flandes
Indiano. No entanto, esse trabalho foi publicado apenas entre 1877 e 1878 pelo historiador
Benjamn Vicua Mackenna.
Outro destacado jesuta foi o padre Juan Ignacio Molina (1740-1829), que contribuiu
construo de um passado e a uma possvel precocidade do nacionalismo chileno com
Compendio de la Historia Geogrfica, Natural y Civil del Reyno de Chile (1776) e Ensayo
sobre la Historia Natural del Reino de Chile (1782), em que traz um estudo pioneiro da fauna
e da flora do pas. Alm de se preocupar com aspectos naturais do Chile, Molina defendeu os
interesses americanos e rebateu com veemncia as ideias iluministas acerca da inferioridade
da natureza local, como tambm manifestou publicamente sua simpatia pela independncia do
pas. Em 1787, publicou ainda o Ensayo sobre la Historia Civil del Reino de Chile. A ampla
difuso de sua obra se viu potencializada pelas tradues para o alemo, francs, russo e
ingls, no incio do sculo XIX.107
No Brasil, Francisco Iglesias props organizar a historiografia relativa ao pas,
desenvolvida desde a colnia, em trs momentos. Um primeiro perodo abrangeria de 1500
at 1838, estendendo-se da chegada dos portugueses no perodo colonial at a formao do
IHGB, ponto de partida para a historiografia escrita em perspectiva nacional. No interregno
em questo, os trabalhos se caracterizariam por ser crnicas de viajantes, missionrios ou
administradores lusitanos. Eram mais histrias locais, com nfase na natureza e sem uma
viso global do que seria o conjunto do futuro Brasil.108
Faz parte ainda das primeiras incurses por terras tropicais a Histria da provncia de
Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil, de Pero Magalhes de Gndavo, de 1573,
trabalho que Iglsias considera mais um texto de propaganda para atrair imigrantes, ligado
essencialmente apresentao da natureza, do que um texto historiogrfico. Avaliado por este
autor como o que de melhor se produziu sobre a nova terra no primeiro sculo de
colonizao, foi o Tratado descritivo do Brasil em 1587, de Gabriel Soares de Sousa, cuja
divulgao teve lugar apenas em 1851, por iniciativa de Adolfo de Varnhagen.109
107
LVAREZ ARREGUI, Federico, El debate del Nuevo Mundo, in PIZARRO, Ana (org.). Amrica Latina:
palavra, literatura e cultura. vol. 2, Emancipao do Discurso. So Paulo: Memorial; Campinas: Unicamp,
1994, pp. 53-55.
108
IGLSIAS, Francisco, op. cit.
109
Idem, p. 27-28.
132
110
Idem.
111
Idem, pp. 31-33.
112
Idem.
133
pases quentes.113 Esta ideia provm do pensamento ilustrado do sculo XVIII, que afirmava
a inferioridade americana, especialmente com a difuso das obras de Buffon e De Paw.
Na dcada de 1830, apareceram estudos que exotizavam o Brasil, como o de Jean-
Baptiste Debret, Voyage Pittoresque et Historique au Brsil, publicado em 1834. Debret
viveu no pas entre 1816 e 1831. Muitos desses trabalhos eram voltados para um pblico de
fora do pas, buscando torn-lo conhecido positivamente no exterior. A propaganda era
destinada a incentivar imigrao branca e europeia, principalmente italiana e alem. Tratava-
se, alm de atrair mo de obra s plantaes brasileiras, de contribuir para o
embranquecimento da populao do pas. No Brasil, essa ideia ganharia espao
principalmente na segunda metade do sculo XIX, com o avano das teorias raciais do Conde
de Gobineau, um dos representantes do darwinismo social. Outra obra importante no contexto
apresentado foi Voyage Pittoresque au Brsil, de Joo Mauricio Rugendas, que viveu entre
1821 e 1825 no pas. Nas dcadas seguintes, a tendncia dos trabalhos dos naturalistas
consistiu em explorar a natureza. O trabalho de Spix e Martius, que j era referncia nessa
mesma linha, foi ampliado. Em 1843, Spix lanou a Flora Brasiliensis, em que dividia o
Brasil de acordo com sua vegetao e relevo.114
Editavam-se tambm por brasileiros estudos sobre a Amrica portuguesa, porm com
caractersticas particularistas e locais. Em 1804 apareceu Principios de economia poltica e,
em 1818, era publicada a Memria dos benefcios polticos do governo de El-Rei Nosso
Senhor D. Joo VI, ambas de Jos da Silva Lisboa, futuro visconde de Cairu. Outro exemplo,
com caractersticas regionalistas, era constitudo pelas obras Memrias histricas e polticas
da provncia da Bahia, em seis volumes editados entre 1835 a 1852, de Incio Acioli
Cerqueira e Silva, e Compndio das eras da provncia do Par, por Antnio Ladislau
Monteiro de Baena, publicado em 1838.115
Na Argentina, e com apoio do Estado, a importncia da histria nacional foi relevante
desde os primeiros movimentos que levaram independncia poltica na Amrica ibrica.
Horacio Vzquez-Rial considera que, para a futura Argentina, a escritura de la historia
nacional se inicia por decisin del Primer Triunvirato, em 1812, com uma historia
filosfica preocupada com a memria dos heris da ptria. A preocupao de se construir
uma memria oficial, embora com um espao nacional ainda por se definir, logo trouxe
frutos. Em 1817, Gregorio de Funes, reitor da Universidade de Crdoba, publicou o Ensayo
113
MARTINS, Wilson, op. cit., p. 133.
114
MAGNOLI, Demtrio, op. cit., p. 106. Ver SCHWARCZ, Lilia M., op. cit.
115
IGLSIAS, Francisco, op. cit., pp. 52-53.
134
116
VZQUEZ-RIAL, Horacio. La formacin del pas de los argentinos. Buenos Aires: Javier Vergara Editor,
1999, pp. 20-21.
117
JOCELYN-HOLT, Alfredo, op. cit., pp. 33-34.
118
MARTINS, Wilson, op. cit., p. 54.
135
surgiram estudos nacionais, produzidos por brasileiros e tambm por uma minoria estrangeira.
O IHGB foi o responsvel, durante o restante do sculo XIX, pela produo oficial da
memria da nao brasileira em formao. Seu principal representante, Francisco de Adolfo
de Varnhagen, marcou a produo do Instituto, sobretudo a partir de 1854, com a publicao
dos diversos volumes da Histria Geral do Brasil.119
Mesmo que, como foi visto, desde o incio da colonizao tivessem sido produzidos
diversos trabalhos com foco na Amrica, uma mudana substancial da historiografia
americana s se registrou em finais do sculo XVIII e, sobretudo, nas primeiras dcadas do
XIX, ao abandonar uma abordagem filosfica ligada s concepes iluministas, em favor da
histria metdica, do romantismo e, posteriormente, do positivismo, com forte apelo ao
mtodo, ideologia e institucionalizao.
Esse modelo metodolgico de produo historiogrfica, que transitou entre o Novo e o
Velho Continente, se firmou e se modelou primeiramente na Europa, tendo se constitudo
como uma disciplina na segunda dcada do sculo XIX. Para Benedict Anderson, nessa poca
a Histria como disciplina j ocupava um lugar de destaque nas instituies de ensino
europeias. Em 1810 estabeleceu-se a primeira ctedra acadmica de histria na Alemanha, na
Universidade de Berlim. A segunda academia a elevar a Histria ao nvel de disciplina, agora
em 1812, se localizou na Frana, na Sorbonne.120 Na Amrica, o espelho europeu feito, com
prataria local, serviu de molde s instituies e escolas de pensamento que foram erigidas na
primeira metade dos oitocentos.
Considerando a produo e circulao de ideias, a historiografia transatlntica, que se
fora transformando desde o declnio do Antigo Regime e o incio do sculo XIX, acumulava
distintas influncias intelectuais que coexistiram durante certo perodo. De acordo com Arno
Wehling, as vertentes historiogrficas das primeiras dcadas deste sculo reduziam-se a cinco.
Uma delas remete para a histria-fico, com forte influncia do sculo XVIII, compreendida
como obra de arte e que daria diretrizes para a construo do romance histrico no
romantismo, tendo Walter Scott como seu principal representante. A crnica histrica era
119
WEHLING, Arno. Estado, Histria, Memria: Varnhagen e a construo da identidade nacional. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
120
ANDERSON, Benedict, op. cit., p. 265. Segundo Anderson, j no primeiro quartel do oitocentos a
historiografia se estabelece como disciplina.
136
outro dos modelos de escrita histrica, com ampla preocupao narrativa e com apelo
tradicional. A retrica histrica tambm fazia parte do elenco de modelos encontrados nas
primeiras dcadas oitocentistas, apesar de seu procedimento ter sido colocado em questo j
desde o Renascimento e de seu pouco comprometimento com as evidncias documentais. Por
fim, completa a srie a filosofia da histria, de origem iluminista, com a intencionalidade de
formular leis para o mundo social, ou de encontrar a racionalidade subjacente s aes
humanas. Pelo esgotamento desses modelos, mas ainda influenciada pela construo das
cincias sociais, a historiografia do sculo XIX enveredou rumo a um modelo mais
sistemtico e emprico, com forte apelo documental e arquivstico.121
Nas primeiras dcadas do sculo XIX, a historiografia, assim, mudava seu mtodo de
trabalho, dando maior nfase documentao. A obra Monumenta germaniae historica, de
1826, resultou, ento, modelo para diversos pases, e Leopold Von Ranke (1795-1886), o novo
grande expoente.122 Na cidade de Frankfurt, em 1819, fora criada a Sociedade para o
Conhecimento da Antiga Histria Alem, que serviria de modelo para outras instituies
europeias. Na Frana, o ministro e historiador Franois Guizot iniciava em 1835 a coleo
Documents indits relatifs lhistoire de France. Na Rssia, comeou em 1841 a publicao da
coletnea completa de anais russos e, em Portugal, por meio da Academia Real das Cincias,
editava-se desde 1856 a Portugaliae monumenta historica, com Alexandre Herculano.123 Essas
iniciativas e diversas obras paralelas deram incio a uma produo historiogrfica mais prxima
s ideias cientficas, com mtodos e tcnicas modernas que passavam a fazer parte do trabalho
do historiador.
Durante a primeira metade do sculo XIX, segundo os argumentos de Arno Wehling,
o interesse pela cultura histrica (de influncia alem) se expandiu juntamente com a
ampliao dos lugares de memria (de influncia francesa), fato que contribuiu
valorizao da histria como disciplina e sua utilizao como base para a construo da
sociedade e da identidade nacionais. Esse quadro mental, que abrangia a Europa e a Amrica,
contou assim com temas como patriotismo, nacionalismo, tradies e romantismo poltico,
como balizadores da construo da memria social das novas naes. A relao entre
pragmatismo histrico ilustrado e um ambiente poltico liberal, articulados dentro de um novo
121
WEHLING, Arno, op. cit., pp. 27-28.
122
HOBSBAWM, Eric, op. cit., p. 309.
123
IGLSIAS, Francisco, op. cit., p. 43.
137
124
WEHLING, Arno, op. cit., pp. 30-31.
125
HOBSBAWM, Eric, op. cit., pp. 308-310.
126
MUSSY, Luis G. de (Editor), op. cit. Ver tambm IGLSIAS, Francisco, op. cit.
138
Ganda chama a ateno para o carter no profissional dos trabalhos produzidos por
Alberdi e Sarmiento. Ambos no tinham por costume visitar arquivos e documentos, como
em meados do sculo Bartolom Mitre tomou por hbito. Faziam uma historiografia na qual
se convertiam eles mesmos em documentos y testimonios. No entanto, com algum exagero,
aquele autor considera que, sem os textos de Alberdi, Mitre e Sarmiento, os historiadores
posteriores no teriam como explicar o conflito entre Buenos Aires e as provncias do
interior.129
Em geral, esses primeiros historiadores tambm foram, com frequncia, testemunhas
dos acontecimentos sobre os quais escreviam, ou inclusive estiveram vinculados ou tinham
participado dos eventos relatados. Dita caracterstica constitua um status privilegiado, mas
tambm supunha uma dificuldade na hora da produo de uma anlise mais distanciada.
Mesmo com a procura de imprimir cientificidade em sua produo, ocorria uma mistura entre
o poltico e o intelectual, to comum no sculo XIX. Essa rede de relaes e a vivncia dos
acontecimentos estudados marcou o processo de construo historiogrfica. Nas duas
Amricas catlicas, a histria contempornea foi por vezes deixada de lado ou amenizada, de
acordo com algum acontecido ou obra relativa a personagens ainda vivos. Colmenares
considera esta ubicacin geracional como marcante entre os historiadores nascidos nas trs
primeiras dcadas oitocentistas, com a utilizao da memria e filtros propositais.130
127
PRADO, Maria Lgia Coelho. Amrica Latina no Sculo XIX: Tramas, Telas e Textos. So Paulo, Editora
Universidade de So Paulo, 2004, p. 167.
128
APONTE, Isaias Garcia. Andrs Bello. Contribucin al estudio de la historia de las ideas en Amrica.
Panam: Universidad de Panam, 1964, p. 20.
129
GANDA, Enrique de, op. cit., pp. 435-436.
130
COLMENARES, Germn, op. cit., pp. 69-70.
139
A perspectiva anterior pode ser aplicada tambm ao Brasil e ao Chile, no que se refere
produo histrica da primeira metade do sculo XIX. Contudo, o mesmo no poderia ser
afirmado acerca da segunda metade, quando arquivos e documentos j haviam ganhado certa
organizao.
As relaes pessoais surtiram efeitos tambm sobre a pesquisa documental. Apesar
dos esforos em meados do sculo XIX para se organizar os arquivos, nas dcadas iniciais da
historiografia metdica o acesso documentao era em grande parte estabelecido pela
liberao concedida, ou no, a cada indivduo. No caso da independncia, a questo resultava
bem delimitada. Resultou comum o uso de dirios pessoais, polticos e militares,
correspondncia privada e entrevistas pessoais. O acesso aos documentos pressupunha a
anuncia de personagens ou familiares. Esse procedimento, somado s questes pessoais,
afetava tanto a segurana metodolgica quanto a leitura da documentao, um procedimento
que gradualmente ocupa espao no fazer historiogrfico.132
Em termos gerais, nos primeiros historiadores nacionais encontramos uma formao
liberal e com forte influncia francesa e romntica europeia. No entanto, alm dessas
influncias externas, os pensadores americanos se influenciaram, tambm, mutuamente.
Diversos desses intelectuais se conheciam, por vezes estudaram, militaram ou trabalharam
juntos, em seus pases ou no exterior, por motivo de formao, de negcios ou de exlio
131
MADERO, Roberto. La historiografa entre la repblica y la nacin: el caso de Vicente Fidel Lpez. Buenos
Aires: Catlogos, 2005, p. 08.
132
COLMENARES, Germn, op. cit., pp. 74-76. A primeira biografia de Andrs Bello, escrita por Amuntegui,
contou com entrevistas e acesso documentao promovida por Bello. AMUNTEGUI, Miguel Luis. Vida de
Don Andrs Bello. Santiago de Chile: Impreso por Pedro G. Ramrez, 1882.
140
poltico. O debate sobre as obras que se publicavam era constante na imprensa, e a edio e
consumo de livros aumentava com o crescimento das instituies educacionais. As trocas de
informaes, por correspondncia, foram constantes e com apreciaes, sugestes e crticas
mtuas referentes aos trabalhos realizados.
Bartolom Mitre manteve uma longa correspondncia com seus colegas chilenos, em
especial com Benjamn Vicua Mackenna e Diego Barros Arana, a qual possibilitou ao ltimo
a leitura da obra do colombiano Jos Manuel Restrepo (1781-1863). O peruano Paz Soldn
citava Mitre e Vicua Mackenna, e os artigos da revista El Repertorio Americano (1826-
1827) publicada em Londres pelo colombiano Juan Garca del Ro e Andrs Bello.133 Este
ltimo escreveu, tambm, de Londres a Restrepo sobre o impacto local de sua Historia de la
Revolucin de la Repblica de Colombia (1827), publicada em Paris. Ou ainda quando, no
final de sua vida, Bello trocava cartas com Varnhagen, ento residente em Santiago, onde
discutiam qual seria a melhor grafia original para o nome de Amrico Vespuccio, uma vez
que as denominaes divergiam entre Amrigo e Amerrigo.134 provvel tambm que Abreu
e Lima tenha conhecido o trabalho de Restrepo durante sua permanncia na Amrica andina
(1819-1830), assim como as Meditaciones Colombianas (1829), de Juan Garca del Ro.
Tambm recebeu no final de sua vida, em 1868, a autobiografia do venezuelano Antonio Paz.
As historiografias chilena e platina devido aos relevantes fatos de dividirem histrias
comuns, de contarem com um passado colonial hispnico compartilhado (lngua, religio,
sistema administrativo, poltico), como tambm com personagens que atuaram tanto no Chile
como na Argentina possuem caractersticas muito prximas. A influncia de pensadores
argentinos exilados no Chile e no Uruguai, em fuga do governo ditatorial de Juan Manuel
Rosas, que se estendeu entre 1829 e 1852, sentiu-se de maneira intensa na vida poltica e
intelectual chilena. Conforme mencionado, a partir de 1837, exilados como Bartolom Mitre,
Domingo Faustino Sarmiento e Juan Bautista Alberdi contriburam para o que Germn
Colmenares chamou de intimidades de las historias nacionales, pelo fato de terem levado
suas experincias e discusses do Saln Literario de 1837, em Buenos Aires, para a Sociedad
Literaria de 1842, no Chile. Posteriormente aconteceu o contrrio, com o exlio de Barros
Arana e Vicua Mackenna em Buenos Aires em 1859, onde aproveitaram para trocar
133
COLMENARES, Germn, op. cit., pp. 28-29.
134
Carta de Bello a Varnhagen em 25 de outubro de 1864; Carta de Varnhagen a Bello em julho de 1865. Estas
cartas encontram-se em JAKSIC, Ivn, op. cit.
141
137
COLMENARES, Germn, op. cit., pp. 14-15.
138
RICUPERO, Bernardo, op. cit.
139
Ver SHWARCZ, Lilia M., op. cit. ABRAMSON, Pierre-Luc. Las utopas sociales en Amrica Latina en el
siglo XIX. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1999.
140
COLMENARES, Germn, op. cit. preciso lembrar que, na maioria dos casos, com a independncia foi
abolido o trfico negreiro e criadas leis como a do ventre livre que previam a abolio gradual e definitiva
em mdio prazo. Os pases que mais tardiamente aboliram a prtica da escravido foram o Brasil em 1888, Cuba
1886 e os Estados Unidos, na regio sul do pas, em 1863.
143
141
GERBI, Antonello. O Novo Mundo. Histria de uma polmica (1750-1900). So Paulo: Companhia das
Letras, 1996. Consultar tambm: LVAREZ ARREGUI, Federico, El debate del Nuevo Mundo, in
PIZARRO, Ana (org.). Amrica Latina: palavra, literatura e cultura. vol. 2, Emancipao do Discurso. So
Paulo: Memorial; Campinas: Unicamp, 1994, pp. 35-66.
142
COLMENARES, Germn, op. cit., p. 23.
143
GUIMARES, Manoel Lus Salgado, Nao e Civilizao nos Trpicos: o Instituto Histrico e Geogrfico
Brasileiro e o Projeto de uma Histria Nacional, in Estudos Histricos 1. Caminhos da Historiografia. Rio de
Janeiro: Vrtice, 1988, pp. 5-27.
144
DIEHL, Astor Antnio, op. cit., p. 41.
145
RICUPERO, Bernardo, op. cit., p. XXVIII.
144
Ricupero considera ainda que o romantismo que se constituiu na Amrica ibrica seria
de terceira mo, uma vez que teria chegado aqui principalmente a vertente francesa, que foi
influenciada pelo romantismo alemo. As modificaes impressas no romantismo deram lugar
a situaes diferentes das europeias, pois no Novo Mundo o confronto entre os modelos
iluministas e romnticos era mais tmido. Aqui esta diferena no remeteria tanto para a forma
de compreender o mundo, mas de represent-lo.146
Em relao s disputas referentes aos campos das ideias na Amrica, Ricupero fornece
uma informao de interesse, quando caracteriza o conflito entre as duas correntes de
pensamento no Chile e as alternncias de posicionamento em terras brasileiras. Para esse
autor:
Referindo-se regio platina, Ricupero considera que existiu uma diferena de filiao
intelectual entre as partes divergentes nessa rea, apesar de seu interesse comum na
civilizao. Contrapunham-se, de um lado, os unitarios, mais ligados ilustrao, e, do
outro, posicionavam-se os pertencentes Nueva Generacin, filiados ao romantismo.148 No
concebemos essa diviso de maneira to clara, tanto quanto pureza das ideias, nem sua
variao temporal em diversos personagens da regio. O prprio Alberdi, como outros
membros da Nueva Generacin, esteve de incio ao lado de Rosas, como vrios segmentos da
sociedade daquela regio no princpio de seu governo.149
De acordo com Ricupero, as diferenas entre romnticos e neoclssicos no Chile, em
comparao com Argentina e Brasil, estavam relacionadas com a concretizao, mais recente
ou tardia, da centralizao poltica e a criao do Estado-nao. Assim, em sua anlise:
150
RICUPERO, Bernardo, op. cit., p. XXXVI. Na segunda metade do sculo XIX, os trs pases mudam sua
viso em relao herana ibrica, reaproximando-se dela.
151
Idem, p. XIX.
152
Idem, p. 47. Segundo o autor, o costumbrismo era un sustituto literario de la novela, en la cual los conflictos
de una sociedad ms compleja liberaban la energa de un hroe que, tras las peripecias de una lucha, acababa
estrellndose o reconcilindose con esa sociedad.
153
COLMENARES, Germn, op. cit.
146
Martius, campe do concurso promovido pelo IHGB sobre como se deveria escrever a histria
do Brasil, tinha forte apelo a uma abordagem e anlise do cotidiano, com sua indicao aos
historiadores brasileiros para que dessem espao ao processo da mescla de raas presente no
pas.
Para Alejandro Eujanian, o estabelecimento da historiografia e dos estudos literrios
na Argentina ocorreu de maneira relacional, dentro do processo de construo das duas
disciplinas, que compartilhavam uma crtica ao rosismo e o civismo republicano.
Precisamente, o que se estabeleceu na Argentina foi uma crtica literria que, baseada na
pesquisa e recopilao de documentos, pretendia reconstruir a histria na literatura. Dessa
forma paralela historiografia, a crtica literria priorizou uma ideia de unidade e
continuidade da colnia. A grande diferena entre uma e outra residia no mtodo, pois a
historiografia como disciplina especializada utilizava sua cientificidade documental para
estabelecer as bases de seus escritos. Esses aspectos continuaro at a chegada do naturalismo
ao pas, por volta da dcada de 80 do sculo XIX.154
No Brasil, apesar de ter-se dado um pouco mais tarde, houve tambm uma relao
fecunda entre a historiografia e a literatura. Tal como foi necessrio criar uma histria e uma
literatura nacional para uma nao argentina, simultaneamente, o mesmo aconteceu no Brasil,
onde o desafio foi assumido por escritores romnticos que consideravam estar fundando as
bases intelectuais brasileiras, principalmente durante o Segundo Reinado.155
Assim, considerando esta imbricao entre literatura, crnica e historiografia, um
aspecto digno de observao, ligado ainda ao nacional, remete para a reduo que por muito
tempo se fez das historiografias americanas, restringindo-as escrita oficial da histria, sob a
guarda dos Estados-nao que se formavam. Selecionar unicamente as obras surgidas a partir
de meados do sculo XIX como marcadores do incio da historiografia argentina, brasileira ou
chilena implica incorrer em uma delimitao terico-metodolgica bastante estrita daquilo
que seria a historiografia produzida at ento nos trs pases. Inicialmente, em todos eles,
houve uma produo de crnicas e registros, cartas de petio, documentos enviados
metrpole, textos diversos destinados a informar s coroas sobre os novos territrios.156
Optamos, portanto, por considerar produo historiogrfica no s as obras produzidas dentro
154
EUJANIAN, Alejandro C., Crtica y poder en los orgenes de la historiografa argentina, in CANCINO
TRANCOSO, Hugo; SIERRA, Carmen de (orgs.). Ideas, cultura e historia en la creacin intelectual
latinoamericana, siglos XIX y XX. Quito: Abya-Ayala, 1998. Disponvel em:
<http://repository.unm.edu/bitstream/handle/1928/11759/Ideas%20cultura%20e%20historia%20en%20la%20cre
aci%C3%B3n.pdf?sequence=1> (acessado em 05/09/2011).
155
RICUPERO, Bernardo, op. cit., pp. 85-86.
156
JOCELYN-HOLT, Alfredo, op. cit., pp. 33-34.
147
do meio profissional das academias dos trs pases em questo, fato esse que impediria incluir
parte da produo existente, uma vez que a historiografia moderna nesses pases surgiu em
meados do sculo XIX.
Em relao historiografia mais prxima aos mtodos cientificistas de meados do
sculo, na Argentina, no Brasil e no Chile a construo desse campo do saber se verificou
dentro de um quadro geral que, contudo, no deixou de manter suas especificidades. Em
especial no que diz respeito ao local de origem da produo da historiografia de cada pas, no
Chile a Universidade viria ser o veculo que promoveria sua efetivao; j nas Provncias
Unidas do Prata, teria lugar um desenvolvimento ligado inicialmente s associaes literrias
e, posteriormente, Universidade; e, no caso do Brasil, os Institutos Histricos, seguindo o
modelo do IHGB, fariam o papel de promotores da escrita do passado nacional.157
Nos trs pases investigados, a historiografia com contornos mais acadmicos
apareceria mais tarde do que na Europa, por volta de 1850, e atravs de estabelecimentos de
ensino e pesquisa ora distintos, ora semelhantes aos daquele lado do Atlntico. O ambiente
intelectual e o sistema educacional foram reconstitudos/erguidos na primeira metade do
sculo XIX. Para o requerido capitalismo editorial de Anderson como fomentador dos
nacionalismos americanos, fez-se necessrio construir novos espaos para a formao
intelectual e nacional dos habitantes da regio.
157
SCHWARCZ, Lilia M., op. cit. O Instituto Arqueolgico e Geogrfico Pernambucano foi fundado em 1862 e
o Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo surgiu em 1894, contudo com um carter bastante mais regional
que seu predecessor, pelo qual terminou contribuindo para o projeto inicial do IHGB de reforar os estudos e
arquivos de carter local.
148
158
COLMENARES, Germn, op. cit., p. 11.
159
JOCELYN-HOLT, Alfredo, op. cit., p. 43.
160
GAZMURI, Cristin R. La historiografa chilena (1842-1970). Tomo I. Santiago de Chile: Centro de
investigaciones Diego Barros Arana, 2006, p. 56.
149
maior expoente, j que, mesmo sem ser historiador de formao, contribuiu com afinco ao
estabelecimento da historiografia como disciplina de acordo com sua viso, de grande rigor
metodolgico, balizada pelo mtodo crtico filolgico. Desde Londres, os estudos ligados a
tal mtodo marcaram seus trabalhos e os dos historiadores da primeira gerao, estudos esses
ligados ao mtodo positivo e ao romantismo, alm de caracterizados pela sua dedicao
filologia.161 De fato, o olhar favorvel a considerar efetiva a participao de Bello no fazer
historiogrfico resulta bastante difundida entre aqueles que se interessam em estudar a
formao da disciplina naquele pas. Comentando a biografia de Andrs Bello produzida por
Ivn Jaksic, Simon Collier afirma que segundo la opinin del ms ilustre de los
historiadores chilenos de hoy en da, Don Sergio Villalobos, la influencia de Bello marc
por un siglo el carcter de la historiografa chilena.162
A institucionalizao da disciplina desde a universidade permitiu que a historiografia
chilena produzisse uma grande quantidade de trabalhos significativos. Jocelyn-Holt entende
ter se dado, de modo convergente, uma srie de circunstncias que levaram a histria a
exercer uma hegemonia no mundo intelectual no sculo XIX, a qual se viu reforada com o
aparecimento de grandes historiadores como Vicua Mackenna, Barros Arana e os irmos
Miguel e Luis Amuntegui. A criao de um pblico leitor de histria, a centralidade do
ensino de histria no currculo nacional, o historicismo e a relao entre o romance e a
histria, contriburam para o destaque da disciplina no Chile.163
Nesse pas, o desenvolvimento da historiografia no campo universitrio foi encarado
por seus executores como um servio pblico. A disciplina assumiu uma formatao
estabelecida desde a Lei Orgnica da Universidade, que definia a implementao dos estudos
histricos em cinco vias. Essas estratgias definiam-se pela elaborao de memrias anuais,
convocatrias para concursos com a mesma periodicidade, discursos de incorporao s
faculdades, biografias dos membros acadmicos falecidos e memrias de graduao.164
Entre 1844 e 1850, a Universidade do Chile apresentou treze memrias que poderiam
discorrer sobre qualquer tema, desde que alinhadas com uma histria metdica. Os
parmetros para o desenvolvimento foram explicitados no artigo 28 da referida Lei Orgnica,
onde rezava que se pronunciar (anualmente) un discurso sobre algunos de los hechos ms
161
GAZMURI, Cristin R., Influencias sobre la historiografa chilena: 1842-1970, in MUSSY, Luis G., op.
cit., p. 75.
162
COLLIER, Simon, La pasin por el orden, una odisea intellectual in Anales de la Universidad de Chile n.
15, 2003. Disponvel em: < http://www.anales.uchile.cl/index.php/ANUC/article/viewArticle/3400/3307>
(acesso: 17/03/2013). Ver tambm: JAKSIC, Ivn, op. cit., pp. 14-15.
163
JOCELYN-HOLT, Alfredo, op. cit.
164
GAZMURI, Cristin R. La historiografa chilena (1842-1970). Tomo I, p. 60.
150
165
Idem, pp. 60-61.
166
JOCELYN-HOLT, Alfredo, op. cit., p. 41. Ver tambm: GAZMURI, Cristian, Influencias sobre la
historiografa chilena: 1842-1970, in MUSSY, Luis G., op. cit., pp. 75-84.
167
LASTARRIA, Jos Victorino. Investigaciones sobre la influencia social de la conquista i del sistema
colonial de los espaoles en Chile. Santiago: Imprenta del siglo, 1844.
168
Idem, p. 8.
151
pelo mtodo filolgico, com importncia dada aos fatos, s datas, s fontes e pesquisa. Alm
disso, os estudos tambm se destacavam pelo seu rigor e pela determinao de coletar
documentos em arquivos espanhis, americanos e chilenos.173
Na Argentina, uma discusso semelhante de Bello e Lastarria aconteceu entre
Vicente Fidel Lpez e Bartolom Mitre, entre 1881 e 1882, por meio das pginas de
peridicos. O embate teve incio com as crticas de Lpez, que havia escrito Historia de la
Repblica Argentina. Su origen, su revolucin y su desarrollo poltico hasta 1852 (1883 a
1893, em 10 tomos) a Historia de Belgrano y de la Independencia Argentina, relanada pela
terceira vez por Mitre, essa vez ampliada e com alteraes. A polmica entre uma histria
documental ou filosfica marcou, assim, a historiografia argentina. A disputa, ligada a
linhagens historiogrficas Guizot e Michelet tambm levou ao debate de
posicionamentos polticos contemporneos no fazer historiogrfico.174
A relao da escrita do passado com a poltica estivera presente no Chile, de modo
bastante ntido, desde os primeiros trabalhos. O golpe de Estado de 1830, promovido pela
oligarquia mercantil representada por Diego Portales, estabeleceu um governo autoritrio,
centralizador e excludente. Para Gabriel Salazar, a historiografa que surgiu nesse momento
no pudo menos que hacer realizando un doble trabajo de legitimacin: en lo inmediato
exaltando el patriotismo en la independencia de Espaa y, en lo estratgico, legitimando y/o
deslegitimando la instauracin del rgimen estatal mercantil en 1830.175 O perodo liberal
do governo dos pipiolos, estabelecido entre 1823 a 1830, foi, ento, avaliado pelos
historiadores de maneira parcial, como, mais tarde, tampouco se posicionariam
imparcialmente frente aos pelucones conservadores que se mantiveram no poder de 1830 a
1860.
A obra de Diego Barros Arana, formada por vrios volumes e que abarca diversos
perodos da histria chilena, constitui um exemplo das relaes de poder existentes na escrita
da histria. Barros Arana, filho de um influente comerciante e congressista ligado
Constituio de 1833, associado a Portales, construiu uma historiografia condescendente com
o governo em vigor e criticou os adversrios liberais. Gabriel Salazar chamou a ateno para a
questo da parcialidade ou imparcialidade das anlises do autor daquela que considera como a
primeira histria geral do pas, Historia de Chile. Na obra de Barros Arana, h um contraste
173
Idem, p. 51.
174
MADERO, Roberto. La historiografa entre la repblica y la nacin: el caso de Vicente Fidel Lpez. Buenos
Aires: Catlogos, 2005.
175
SALAZAR, Gabriel, Historiografa chilena siglo XXI: transformacin, responsabilidad, proyeccin, in
MUSSY, Luis G. de (Editor), op. cit., pp. 117-118.
153
176
Idem, pp. 118-119.
177
Idem, pp. 118-120. Salazar aponta alguns nomes que seguiram estas tendncias de reproduo de uma
memria oficial, utilizando a viso de Barros Arana nos manuais chilenos. Temos entre eles: Ramn
Sotomayor Valds (1830-1903), Francisco Antonio Encina (1874-1965), Jaime Eyzaguirre (1908-1968), Alberto
Edwards Vives (1874-1932) e Gonzalo Vial Correa (1930-2009).
178
GUIMARES, Lcia Maria Paschoal. Debaixo da Imediata Proteo de Sua Majestade: o Instituto Histrico
e Geogrfico Brasileiro (1838-1889). RIHGB, Rio de Janeiro, 156 (388): jul.-set., 1995.
154
179
MARTIUS, Karl Friedrich Von, Como se deve escrever a Histria do Brasil, in Revista Trimensal de
Histria e Geografia ou Jornal do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. Rio de Janeiro, tomo 6, 1844, pp.
381-403.
180
Publicou tambm outro livro com uma viso geral de Brasil. ABREU E LIMA, Jos Incio de. Sinopse ou
deduco chronologica dos factos mais notveis da histria do Brasil. Pernambuco: na Typ. M. F. de Faria,
1845.
181
ABREU E LIMA, Jos Incio de. Compndio da Histria do Brasil desde o seu descobrimento at o
magestoso acto da coroao e sagrao no Sr. D. Pedro II. Tomo I. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique
Laemmert, 1843a, p. V-VI. Sobre essas questes, ver captulo 4 deste trabalho.
182
VARNHAGEN, Adolpho, Primeiro Juzo submetido ao Instituto Histrico e Geographico Brasileiro pelo
seu scio Francisco Adolpho de Varnhagen, acerca do Compendio da Historia do Brasil pelo Sr. Jos Igncio de
Abreu e Lima, in Revista Trimensal de Histria e Geografia ou Jornal do Instituto Histrico e Geogrfico
Brasileiro, tomo VI, 1843, pp. 60-83.
183
ABREU E LIMA, J. I. Resposta do General J. I. de Abreu e Lima ao Cnego Janurio da Cunha Barbosa ou
anlise do primeiro juzo de Francisco Adolfo de Varnhagen acerca do Compndio da Historia do Brazil.
Pernambuco: na typographia de M. F. de Faria, 1844.
155
184
Para ver mais sobre o Compndio e a polmica com Varnhagen, consultar: MOURA, Lus Cludio R. H. de.
Abreu e Lima: uma leitura sobre o Brasil. Braslia: Universidade de Braslia, Departamento de Histria,
Dissertao de Mestrado, 2006. Orientada por Pof. Dr. Geralda Dias Aparecida.
185
ROMERO, Slvio. Histria da literatura brasileira. Rio de Janeiro, vol. 24-A da coleo Documentos
Brasileiros da livr. Jos Olympio Editora, tomo II e V, 7 edio, 1980, p. 187. Romero, considerado
conservador, em seu livro definiu Abreu e Lima como um Patriota Liberal.
186
MOTA, Carlos Guilherme. A ideia de revoluo no Brasil e outras ideias. So Paulo: Globo, 2008, p. 425.
187
Varnhagen era filho de pai alemo e me portuguesa. Nasceu em Sorocaba (SP), mas viveu apenas at os sete
anos de idade no pas. Aproveitando o posto de diplomata, fez pesquisa no Paraguai, Nova Granada, Equador,
Chile, Espanha, Portugal e ustria.
156
1624 a 1654; e Histria da independncia do Brasil, finalizada em 1875, mas lanada apenas
em 1916.188
Em Histria geral do Brasil, Varnhagen criou um modelo para explicar a trajetria
nacional. Como conservador que era, contribuiu para reforar preconceitos, ao condenar
constantemente os indgenas, embora tambm produzisse etnografia e lingustica americana.
Defendeu a escravido e repreendeu os movimentos em busca de emancipao como os
quilombos e levantes negros, em uma legitimao constante da dominao racial. Adepto da
monarquia, venerava a figura de Pedro II. Foi um defensor da ordem e possua averso aos
movimentos mais progressistas. Varnhagen condenou em seus escritos os movimentos
autonomistas ou de independncia ocorridos no Brasil, deixando de lado a imparcialidade
cientfica esperada. Reconhecia o processo de espoliao da colonizao, porm era pr
Portugal, enfatizando uma continuidade na histria brasileira.
O palco central da produo historiogrfica do Brasil de meados do sculo XIX foi o
IHGB e sua revista, cujo principal protagonista foi Varnhagen. No entanto, alm da produo
na capital do imprio e com uma viso geral de nao, houve diversos outros autores e obras
que marcaram a historiografia brasileira da poca. Podemos citar, entre eles, o trabalho de
Francisco Muniz Tavares, Histria da revoluo de Pernambucana, de 1840, sobre um
movimento do qual participou diretamente; Histria do movimento poltico que no ano de
1842 teve lugar na provncia de Minas Gerais, do cnego Jos Antnio Marinho, e Histria
da fundao do Imprio brasileiro, de 1808 a 1825, distribuda em sete volumes lanados
entre 1864 a 1868, do jornalista e poltico Joo Manuel Pereira da Silva.
A historiografia argentina da primeira metade dos oitocentos, assim como a do Brasil e
a do Chile, iniciaram-na estudiosos no profissionais e ligados vida poltica da regio. Mara
Senz Quesada aponta que a construo da histria oficial daquele pas foi obra de
determinado grupo de intelectuais e polticos, que elegeram pontos de partida factuais e
acontecimentos especficos dos que tiveram lugar nas antigas provncias espanholas do Rio da
Prata durante as lutas pela emancipao da metrpole. A partir dos fatos selecionados,
produziram a narrao do relato histrico constitutivo de uma unidade nacional.189
Inicialmente, como j foi dito, a historiografia argentina surgiu a partir de demandas
polticas da construo do Estado-nao, como a relativa ao enfrentamento entre rosistas e
liberais, e a tocante questo da diviso entre Buenos Aires e as provncias. A primeira
gerao ps-independncia, sada do Colegio de Ciencias Morales e da Universidad de
188
Para acompanhar o trabalho de Varnhagen, ver: WEHLING, Arno, op. cit.; IGLSIAS, Francisco, op. cit.
189
QUESADA, Mara Senz, op. cit.
157
Buenos Aires, aceitou a tarefa de pensar a nao que se estava formando naquela regio. Esse
grupo de jovens, nascidos na regio do Prata, veio a ser conhecido como Generacin de 37.190
As produes dos intelectuais dessa gerao, que posteriormente assumiriam
importantes cargos polticos e posies intelectuais de destaque Bartolom Mitre e
Sarmiento chegaram presidncia , tm como foco inicial a anlise dos males que
provocavam a barbrie. Aps refletir sobre os problemas do pas, procuravam remediar tais
problemas por meio de frmulas, de fices-diretrizes, que levariam a nao em direo ao
progresso e civilizao.191
Desde a dcada de 1830, a historiografia argentina produziu suas fices-diretrizes
para a formao de uma futura nao unificada. Mesmo com o carter tardio em relao aos
outros dois pases, na Argentina,192 seja antes, seja aps a unificao das provncias com a
antiga capital do vice-reino, o caminho percorrido foi semelhante. Entre os trabalhos
pioneiros que se destacaram na historiografia argentina da poca, encontramos Historia de
Belgrano, de autoria de Bartolom Mitre, editado pela primeira vez em 1857, cujo autor
passou a ser considerado o pai da historiografia desse pas.
A produo da identidade da nao argentina, de acordo com Shumway, em seu
aspecto mais ligado historiografia, tem desde o incio, na dcada de 1830, uma dicotomia
presente em suas anlises. Surgiram, assim, duas correntes historiogrficas produtoras de
fices-diretrizes opostas. Uma, ligada a Buenos Aires, era mais elitista, europeizada e
centralista; a civilizao, para o grupo de 37. J a outra, ligada s provncias, apresentava
caractersticas de pensamento americanista, nativista, populista e federalista, e foi vista como
a barbrie.193 Nessa perspectiva, temas como o da construo da nao, da identidade, do
territrio, da lngua, da etnicidade, da raa, da religio ou da lngua so elementos
constitutivos essenciais da produo histrica elaborada em meados do sculo XIX. Trata-se
de temas que perpassam por essa rede discursiva e que remetem para reflexes relativas
direo e ao sentido dos entes que estavam se constituindo, tendo como norte a Europa e os
Estados Unidos.
A discusso entre civilizao ou barbrie, vinculada obra de Sarmiento, era
caracterstica dos dirigentes hispano-americanos na etapa da organizao dos Estados
190
SHUMWAY, Nicols, op. cit., pp. 178-179. RICUPERO, Bernardo, op. cit., p. 208.
191
SHUMWAY, Nicols, op. cit., pp. 157, 158, 197.
192
Aproximadamente at a dcada de 1860, prevaleciam denominaes que apontavam para uma federao e
no para uma nao centralizada. O nome Argentina surgiu oficialmente na Constituio de 1826 que nunca
foi aplicada e se estabeleceu sob Rosas (Confederao/Federao Argentina). O termo Repblica da Argentina
s foi oficializado na dcada de 1860.
193
SHUMWAY, Nicols, op. cit., p. 277.
158
nacionais.194 Ainda que a polmica estivesse mais ligada, culturalmente, a Facundo Quiroga e
aos pampas e seus personagens na construo nacional da Argentina, a unitrios e federalistas,
Maria Ligia Coelho Prado considera que a questo extrapola as fronteiras desse pas. A obra
de Sarmiento, inicialmente com o ttulo Civilizacin i barbarie. Vida de Juan Facundo
Quiroga. Aspectos fsicos, costumbres, i bitos de la Repblica Argentina, lanada em 1845
no Chile, um clssico do pensamento poltico latino-americano.195 Prado afirma que a obra
vlida para toda sociedade latino-americana, pois suas ideias, imagens e smbolos so
elementos compartilhados amplamente, por exemplo, pelos contemporneos brasileiros.196 A
anlise de Beatriz Cuarn refora a posio de Prado, ao entender que o texto de Sarmiento
foi o topo do romantismo hispano-americano. Facundo representa um texto bem elaborado
com descries da regio e do homem local, constituindo-se como um rico ensaio de
geografia humana que busca explicar os problemas sociais do pas. Tratava-se de uma crtica
a Rosas e s guerras civis que tinham lugar em todo o continente.197
Apesar da histria relativa concepo eurocntrica do progresso que deveria ser
abraada pela Amrica, as realidades polticas e os objetivos pretendidos por Sarmiento, se
comparados com a produo historiogrfica brasileira capitaneada pelo IHGB e Varnhagen,
apresentam questes paradoxalmente distintas. Para Prado, a questo se organiza no seguinte
formato:
194
ARNOUX, Elvira Narvaja de, op. cit., p. 71.
195
comum que diversos historiadores tenham dificuldade de enquadrar a produo de Sarmiento, como
romance, biografia, historia ou sociologia. Ver VILLEGAS, Abelardo, op. cit.
196
PRADO, Maria Ligia Coelho, op. cit., p. 152. A autora destaca que o livro ainda pouco conhecido, tendo
sua primeira traduo aparecido apenas em 1923.
197
CUARN, Beatriz Garza, Identidad, lengua y literatura, 1820-1870, in VZQUEZ, Josefina, op. cit., pp.
595-612
198
PRADO, Maria Ligia Coelho, op. cit., p. 168.
159
civilizados, bem pela religio, pela escola ou pelas leis polticas. 199 Colmenares considera
que, com uma rpida procura pelos textos historiogrficos do sculo XIX, logo se encontra
uma hostilidad manifiesta hacia lo ms autctono americano que denota um
distanciamento do historiador do continente em relao prpria realidade.200 A presena
dessa ideia atingia inclusive personagens com vises antagnicas sobre o modelo de nao a
ser construda, at aqueles que buscavam uma especificidade de nao que implicava uma
valorizao de elementos locais, como no caso de Alberdi, que proferiu a mxima gobernar
es poblar em seu clebre Bases y puntos de partida para la organizao nacional, de 1852,
que serviria de base para a Constituio argentina de 1853.
Na Argentina, o surgimento tardio de uma historiografia mais especializada na
segunda metade do sculo XIX , com seu status de cientificidade, poderia, atravs do
realismo de sua anlise, ter contribudo ou mesmo direcionado os caminhos pelos que
enveredou a construo da unidade nacional, ainda em discusso.201 Para Alejandro Eujanian,
a constituio da historiografia argentina como campo profissional possui dois momentos
importantes e distintos. O primeiro ocorreu em 1846, quando surgiu a crtica historiogrfica
no debate entre Bartolom Mitre e Dalmacio Vlez Sarsfield (1800-1875), respectivamente
futuros presidente da nao e ministro da fazenda. O debate, veiculado por meio da imprensa,
circulou em torno dos erros e acertos produzidos no processo de independncia e,
principalmente, sobre a figura do general Manuel Belgrano.
Fernando Devoto considera que o marco inicial da historiografia argentina moderna
ocorreu com a combinao entre erudio, mtodo filolgico-crtico e esquemas gerais. Esse
autor considera a Historia de Belgrano, de Bartolom Mitre, publicada em 1857 e amparada
por preceitos liberais e pelo romantismo, a obra modelo da historiografia argentina de meados
do sculo. O trabalho de Mitre, baseado na pesquisa documental, esteve, porm, longe da
aplicao dos postulados positivistas europeus, pois a corrente s chegaria Argentina pouco
tempo depois.202
199
RICUPERO, Bernardo, op. cit., pp. 79, 80.
200
COLMENARES, Germn, op. cit., pp. 49, 56.
201
EUJANIAN, Alejandro C., op. cit.
202
DEVOTO, Fernando J., A histria e as cincias sociais na profissionalizao da historiografia argentina.
Tempo Social, So Paulo, v. 21, n. 2, 2009. Disponvel em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0103-
20702009000200006> (acessado em 05/11/2011). Devoto considera que o positivismo comeou a parecer na
Argentina na dcada de 1860, suprimindo as antigas referncias como o romantismo e a histria filosfica, e
permanecendo com forte influncia sobre a historiografia do Rio da Prata at o fim da segunda dcada do sculo
XX. Alberdi um dos primeiros intelectuais da regio a apontar mudanas na escrita da histria, com crticas ao
trabalho de Mitre, p. 110.
160
203
SHUMWAY, Nicols, op. cit., pp. 279-280.
204
OVIEDO, Jos Miguel, op. cit.
205
EUJANIAN, Alejandro C, op. cit. Este autor justifica comear sua anlise na segunda metade do sculo XIX,
por considerar que no existe, na primeira metade dos oitocentos, uma historiografia de fato.
206
DEVOTO, Fernando J., op. cit.
207
EUJANIAN, Alejandro C., op. cit., p. 206.
161
3. O fim deste Instituto ser alm dos que forem marcados pelos seus
regulamentos, colligir e methodisar os documentos historicos e geographicos
interessantes historia do Brazil.
9. O Instituto abrir correspondencia com o Instituto Histrico de Pariz, ao
qual remetter todos os documentos da sua installao; e assim tambem com
outros da mesma natureza em naes estrangeiras: e procurar ramificar-se
nas provncias do Imperio, para melhor colligir os documentos necessrios
historia e geographia do Brazil.209
211
Biblioteca Americana o Miscelnea de Literatura, Artes y Ciencias. Caracas: Edicin de la Presidencia de la
Repblica, Edio Fac-smile, 1972, pp. VI, VII.
212
RODRIGUES, Jos Honrio. Teoria da Histria do Brasil Introduo Metodologia. 3a ed. So Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1969, p. 125. Ver: GUIMARES, Manoel Lus Salgado, op. cit.
213
GUIMARES, Lcia Maria Paschoal, Debaixo da Imediata proteo se Sua Majestade: o Instituto Histrico
e Geogrfico Brasileiro (1838-1889), in RIHGB, Rio de Janeiro, 156 (388): jul. set. 1995.
214
KARNAL, Leandro. Histria na sala de aula: conceitos, prticas e propostas. So Paulo: Contexto, 2003.
DIEHL, Astor Antnio. Cultura historiogrfica brasileira: memria, identidade e representao. So Paulo:
EDUSC, 2002.
163
colonial como corpo constitutivo das histrias modernas, por ser visto como violento e alheio
cultura criolla.217 Somente com as independncias reconheceriam uma historia
verdadeiramente moderna.
Os heris nacionais tambm foram construdos dentro das disputas no campo da
historiografia e da representao, levando a escolhas e incluses de personagens em cada pas.
Com a opo de desenvolver uma srie de estudos sobre o perodo heroico das
independncias, elegeu-se falar tambm sobre os grandes homens formadores das ptrias,
fossem eles caudilhos, intelectuais ou monarcas. Essa histria possua status, seja pelo fato de
ter sido desenvolvida de dentro dos novos Estados, seja por ter sido escrita pelos prprios
homens das elites, ou tambm pela importncia dada ao passado naquele momento. Falou-se
ento em poder, via Estado e figuras polticas. A histria poltica, do Estado, dos grandes
homens e o papel da histria mestra da vida, j mencionado, constituem caractersticas
bsicas desta poca.218
Assim como na Europa, os historiadores ibero-americanos adotaram as convenes
das narrativas heroicas referentes construo nacional. Essas narrativas envolviam dois
aspectos centrais, que eram a ao e o heri. Dito interesse, somado ao valor dos documentos
e entrevistas, contribuiu para a elaborao de biografias de personagens polticos, sobretudo
da independncia. Constituem exemplos delas Historia de San Martn, de Mitre, a Histria de
Belgrano (1887), os diversos trabalhos que Benjamn Vicua Mackenna escreveu sobre
OHiggins e Portales, a Histria Geral do Brasil219 de Varnhagen, com o culto ao imperador
ou o Resumen Histrico, com as reverncias prestadas por Abreu e Lima a Bolvar, como fez
com os Imperadores Pedro I e Pedro II no Compendio de Histria do Brasil. A histria dos
grandes homens criava personagens e feitos extraordinrios, representantes de elementos de
217
Idem, pp. 58-59.
218
FALCON, Francisco, Histria e poder, in CARDOSO, Ciro Flamarion, & VAINFAS, Ronaldo. Domnios
da Histria: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
219
O Bolvar descrito por Abreu e Lima em meados da dcada de 1820 assemelha-se ao perfil dos heris ibero-
americanos do sculo XIX. Bolvar descrito como prueba del civismo ms apurado, portador de buena f,
dotado de consciencia, principios, excesiva indulgencia, entre outras caractersticas. ABREU E LIMA,
Jos Incio. Resumen Histrico de la ltima dictadura del Libertador Simn Bolvar. Rio de Janeiro: Empre.
Ind. Editora O Norte, 1922. ABREU E LIMA, Jos Incio de. Compndio da Histria do Brasil desde o seu
descobrimento at o magestoso acto da coroao e sagrao no Sr. D. Pedro II. Tomo I. Rio de Janeiro:
Eduardo e Henrique Laemmert, 1843. Alberdi, por sua vez, criticava a concepo dos heris e a sua
supervalorizao nos processo de independncia e construo nacional, considerando tais feitos como um
processo coletivo e no pessoal. Ver: ALBERDI, Juan B., Grandes y pequeos hombres del Plata, in Obras
Completas. Buenos Aires: La tribuna Nacional, 1886, pp. 193, 269, 287.
165
220
COLMENARES, Germn, op. cit., pp. 81-86. PRADO, Maria Ligia Coelho, op. cit., pp. 30-32. A autora
aponta ainda para a mudana que ocorre, devido a transformaes polticas e intelectuais, sobre a memria e a
participao destes personagens nas lutas de independncia e na construo dos novos Estados.
221
SHUMWAY, Nicols, op. cit., pp. 247-250.
222
Idem, pp. 218, 219.
166
223
WEINBERG, Flix. El Saln Literario de 1837, pp. 66, 67.
224
ARNOUX, Elvira Narvaja de, op. cit.
225
RICUPERO, Bernardo, op. cit.
167
226
GUIMARES, Manoel Lus Salgado, op. cit., pp. 5-27.
227
MARTIUS, Karl Friedrich Von, pp. 381-403.
228
No Chile, como recorda Gerbi, a defesa da natureza contras as ideias europeias foi realizada pelo padre Juan
Ignacio Molina. Foi expulso como jesuta em 1767, dirigindo-se Itlia, onde publicou Compendio de la historia
geogrfica, natural y civil del reino de Chile, de 1776, uma verso aumentada, Ensayo sobre la historia natural
de Chile, de 1782, e uma segunda em 1810. relevante, em relao historiografia romntica, sua filiao com
Johann Gottfried von Herder, que via a Amrica mais positivamente por acreditar na unidade do gnero humano
e no progresso unilinear da civilizao. GERBI, Antonello, op. cit., pp. 170-173; 218-221.
229
Idem, p. 282. Ver SCHWARCZ, Lilia, M., op. cit.
168
230
HOBSBAWM, Eric, op. cit., pp. 154-156.
169
coletivo de cada ptria. com este esprito que o primeiro manual escolar chileno, Manual de
Istoria de Chile, publicado em 1845, apoiado pelo Estado e com intuito de dar forma ao pas e
s novas geraes, foi escrito pelo argentino Vicente Fidel Lpez. Para Elvira Narvaja de
Arnoux, em relao configurao representacional da nao:
Do outro lado da cordilheira do Andes, aps a vitria dos liberais unitrios, o ainda
incipiente sistema educacional argentino passou a contar com a disciplina de histria e
publicaes prprias. Na regio do Prata, as escolas e os textos formativos foram
considerados entre os principais difusores da histria ptria e para a formao dos cidados.
Os primeiros livros se publicaram para os Colegios Nacionales e para as Escuelas Normales,
abertos nas principais cidades do pas. Tratava-se de Historia argentina (1492-1820), de Luis
Domnguez, editado em 1861, e Compendio, de Juana Manso de Noronha, publicado no ano
de 1863, ambos os autores fugidos do governo de Rosas e de filiao liberal. 232
Os esforos de construo identitria, concentrados na produo de um passado
comum, se viram disseminados nas escolas argentinas da segunda metade do sculo XIX. A
historiografia se desenvolveu, para alm de com a preocupao com produzir investigaes
sobre o passado local, objetivando tambm, sobretudo aps a intensificao da imigrao
europeia entre as dcadas de 1860 e o incio do sculo, o interesse de constituir uma escola
nacional e de contedo nacional. Foi necessrio substituir o estudo das histrias de outras
naes, como a alem e a italiana, parte do currculo escolar ainda em 1890 em Esperanza, na
provncia de Santa F, pela histria nacional.233
No Brasil, ainda sem ter havido uma migrao to intensa como no caso argentino, os
manuais passaram a ser produzidos somente na dcada de 1840. No caso concreto dos
manuais de histria, surgiram dentro de instituies financiadas por representantes do Estado,
231
ARNOUX, Elvira Narvaja de, op. cit., p. 35. Ver tambm: ARNOUX, Elvira Narvaja de, Discurso
pedaggico y discurso poltico en la construccin del objeto Nacin Chilena. El Manual de Historia de Chile de
Vicente Fidel Lpez, 1845, in Cuadernos Recienvenido. So Paulo: Universidade de So Paulo, n. 25, 2010.
Disponvel em: <http://dlm.fflch.usp.br/sites/dlm.fflch.usp.br/files/00%20Recienvenido%2022.pdf> (acessado
em 27/12/2012).
232
QUESADA, Mara Senz, La enseanza de la historia y la identidad. Disponvel em:
<http://scholar.googleusercontent.com/scholar?q=cache:Wcgy84Z-xlAJ:scholar.google.com/&hl=pt-
BR&as_sdt=0,5> (acessado em 05/09/2011).
233
QUESADA, Mara Senz, op. cit.
170
grande parte de dentro do IHGB, com o intuito de realizar um servio ptria. Muitos deles
serviram por dcadas para a formao dos estudantes brasileiros.234
O primeiro a ser utilizado nos colgios do imprio foi Resumo de Histria do Brasil
at 1828 de Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde. No era um trabalho original, resultando
ser uma compilao do Resum de lHistoire du Brsil, lanado em 1822 pelo francs
Fernand Denis. Em 1841, o livro foi adotado no Colgio Pedro II, pelo qual passou a ser
seguido pelas demais instituies secundrias do Imprio. Em 1850, o Compndio da Histria
do Brasil235de Abreu e Lima substituiu o manual de Bellegarde, sendo utilizado at 1862.
Nesse mesmo ano, foi substitudo por Lies de Historia do Brazil para uso dos alunos do
Imperial Colgio Pedro II, de Joaquim Manoel de Macedo, membro do IHGB e professor da
instituio de ensino.236
Os livros eram produzidos pelos integrantes do IHGB e destinavam-se aos estudantes e
professores. Essas obras, que buscavam explicar um Brasil geral, com uma unidade e de uma
continuidade com a nao portuguesa, voltavam-se criao de um sentimento ptrio e uma
viso nacional do pas. Eram dedicados aos jovens brasileiros, com o qual mostravam um
carter distinto em relao aos manuais argentinos, voltados padronizao de saberes de
imigrantes.
Era a nao pelas letras.
***
234
GASPARELLO, Arlete Medeiros, Historiografia, didtica e pesquisa no ensino de Histria, in X Encontro
Regional de Histria ANPUH_RJ. Histria e Biografias Universidade do Estado do Rio de Janeiro 2002.
Disponvel em: <http://www.anpuh.uepg.br> (acessado em 15/06/2005).
235
Compndio da Historia do Brazil, desde o seu descobrimento at o magestoso acto da coroao e sagrao
no Sr. D. Pedro II. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1843b. Edio em um volume.
236
GASPARELLO, Arlete Medeiros, op. cit. Ver tambm: MATTOS, Selma Rinaldi de. Para formar os
brasileiros: o compndio da histria do Brasil de Abreu e Lima e a expanso para dentro do Imprio do Brasil.
So Paulo. Universidade de So Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de
Letras Clssicas e Vernculas. Tese de doutorado, 2007. Prof. Dr. Maria Ligia Coelho Prado.
171
um perfil bastante consoante naquele momento: membros das elites, atuavam sob uma mistura
de poltico e intelectual, comprometidos com os nacionalismos oficiais. O brasileiro Abreu e
Lima participou na emancipao da Gr Colmbia e na construo do Estado brasileiro. O
venezuelano Andrs Bello iniciou seus servios patriticos em seu pas em 1810, continuou
em Londres, onde residiu entre 1810 e 1829, e depois no Chile, a partir de 1829. Por sua vez,
o argentino Juan Bautista Alberdi esteve entre os que buscaram construir um Estado
argentino, tendo influenciado tambm com suas ideias o Chile e o Uruguai.
CAPTULO III
REFERENCIAIS DE VIDA:
FORMAO INTELECTUAL E ATUAO POLTICA
1
ABREU E LIMA, J. I. O Socialismo. Recife: Typographia Universal, 1855, p. 75.
2
SHUMWAY, Nicolas. A Inveno da Argentina: Histria de uma ideia. So Paulo: Editora da Universidade de
So Paulo; Braslia: Editora da UnB, 2008, p. 178.
173
Dito papel mltiplo, presente na Amrica ibrica, aproxima a constituio jurdica dos
novos Estados, da formao das caractersticas identitrias das naes emergentes. Carlos
Altamirano traa deste modo um perfil amplo desse tipo de intelectual e de sua atuao:
3
ALTAMIRANO, Carlos (Dir.). Historia de los intelectuales en Amrica Latina. La ciudad letrada, de la
conquista al modernismo. Buenos Aires: Katz Editores, 2008, p. 9.
174
Durante sua vida, Alberdi incumbiu-se de levar a efeito uma contnua produo
intelectual, em que abordou uma srie de temas diversos e de modalidades variadas da
expresso escrita. Publicou trabalhos sobre msica, literatura, moda, teatro, histria, filosofia,
e autobiografias, mas principalmente teve seu nome associado gerao romntica argentina
e ao direito. Escreveu para distintos peridicos, sendo o jornalismo uma atividade permanente
em sua vida. Editou livros, peas e tratados, pelos quais obteve reconhecimento ainda em
vida. Sua imponente produo foi recorrentemente (re)publicada. Aps a morte de Alberdi, as
edies da sua obra contriburam para reafirmar o impacto social de seus trabalhos e
reforaram seu espao na historiografia moderna e contempornea, sobretudo argentina. Em
1886, surgiram os 8 tomos das Obras Completas, Escritos pstumos de Juan Bautista Alberdi,
com um total de 16 volumes publicados entre 1895 e 1901, e as Obras seletas, com 18 tomos,
sados luz em 1920.4
Alberdi reconhecido como importante pensador do cone sul-americano,
extravasando seu campo de atuao para alm de sua ptria. Participou ativamente da vida
poltica e intelectual na Argentina, como tambm no Uruguai, no Chile e na Frana, pases
onde esteve exilado. Devido s suas atuaes polticas, iniciadas no governo de Juan Manuel
de Rosas, teve que residir a maior parte da vida no exterior, por exlio forado ou voluntrio.
Esteve vivendo na Repblica Argentina apenas at o ano de 1839, quando deixou Buenos
Aires e se dirigiu ao Uruguai. Desse ano em diante, voltou a residir em seu pas natal apenas
por um breve perodo, na dcada de 1870. Porm, escolheu a familiar Paris para terminar seus
dias, em 1884.
5
Para acompanhar a vida de Alberdi utilizamos principalmente os seguintes trabalhos: ALBERDI, Juan. B.
Obras Completas. Buenos Aires: La tribuna Nacional, 1886. PELLIZA. Mariano. A. Alberdi, su vida y sus
escritos. Buenos Aires: Imprenta y Librera de Mayo, 1874. CACURI, Vicente P. Alberdi. Buenos Aires, 1910.
Mayer, Jorge. Alberdi y su tiempo. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1973. TERN, Oscar. Juan Bautista Alberdi.
Poltica y sociedad en Argentina. Venezuela: Fundacin Biblioteca Ayacucho, 2005. ULLOA, Alejandro
(Coord.). Juan Bautista Alberdi: El pensador de la libertad. Buenos Aires: Planeta, 2009. PAREDES, Daniel
Alfredo, op. cit.
6
ALBERDI, Juan B., Mi vida privada. Que se pasa toda en la Repblica Argentina, in Palabras de un ausente
y otros escritos ntimos. Prlogo de Carlos Pez de la Torre. Buenos Aires: Emec, 2010, p. 166.
7
Entre os muitos escritos de Alberdi, temos ao menos quatro de cunho autobiogrfico. So eles: Memoria
descriptiva sobre Tucuman de 1834; Impresiones de viajes, escrito entre junho de 1843 e abril de 1844; Mi vida
privada, produzido em 1871, e Palabras de un ausente, publicado na Frana em 1874. Os ltimos dois estudos
foram produzidos dentro de um contexto de autodefesa, frente s acusaes e polmicas que havia vivenciado
durante sua vida, principalmente com Domingo Faustino Sarmiento. As defesas giravam em torno da sua longa
vida fora da Argentina e de seu posicionamento quanto ao conflito com o Paraguai (1865-1870). Ao criticar as
aes da Repblica Argentina na guerra, foi acusado publicamente, por seus desafetos e pelo governo, de traidor
da ptria. Esta literatura, apontada por lida Lois como escrituras del yo e de autoficcin, idealizadas de um
personagem pblico e marcada pelas conjunturas que afligiam um Alberdi maduro, so defesas referentes a um
passado, mas que miravam um futuro desejado sua memria. Ver LOIS, lida, Autobiografa y autoficcin en
la escritura del ltimo Alberdi, in Aletria: Revista de estudos de Literatura. Imagens do escritor. Vol. 20, n. 2,
maio-agosto, 2010. Disponvel em:
<http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_pgs/Aletria%2020/n%202/01-Elida%20Lois.pdf> (acessado
em 13/08/2012).
176
fui a menudo objeto de los carios del grande hombre.8 E foi graas a essa rede de alianas
que o jovem Alberdi conseguiu uma bolsa estudantil no Colegio de Ciencias Morales de
Buenos Aires, o qual o levou rumo ao universo das letras.9
A referida instituio de ensino, assim como a Universidade, ambas recm criadas por
Bernardino Rivadavia, ento ministro de governo bonaerense, faziam parte das intenes da
nova administrao em modernizar Buenos Aires. Tambm era o desejo de Rivadavia e
daquele governo recompor as relaes entre as provncias do interior e Buenos Aires. As
novas instituies de ensino, alm de preparar as elites para a administrao do Estado, teriam
o papel de promover um dilogo, e mesmo um ethos comum de formao liberal, no seio das
tendncias regionais das fragmentadas ex-Provncias Unidas do Rio da Prata. Pretendendo
reproduzir uma elite ilustrada em todos os territrios maneira da elite bonaerense, concebeu
seis bolsas de estudos para cada provncia do Interior.10 Entre os estudantes escolhidos para
ingressar no curso do colgio bonaerense, que na poca era preparatrio para a entrada na
Universidade de Buenos Aires, estava Alberdi, pela provncia de Tucumn. Sua indicao
teve a aceitao facilitada pelo contato e laos de parentesco com o ento governador da
provncia, Juan Lpez.11
Em 1824, com o estabelecimento do Congresso Nacional, Rivadavia foi empossado
como o primeiro presidente daquele pas que se formava, cargo que exerceu entre fevereiro de
1826 e junho de 1827. Com o incio do conflito como o Imprio do Brasil pela Banda
Oriental, Rivadavia, que havia ocupado os cargos de Ministro da Guerra do Triunvirato
estabelecido em 1811 e o de Ministro de Governo e Relaes Exteriores da provncia de
Buenos Aires, onde empreendera com sucesso suas reformas rivadavianas, foi nomeado pelo
Congresso como presidente. Os desgastes da guerra e o carcter fortemente unitrio da
Constituio vigente contriburam para sua renncia ao cargo e para a dissoluo do
Congresso, em 1826. As negociaes com o pas vizinho tornaram-se escndalos polticos por
apontarem para a integrao da Banda Oriental s terras brasileiras. Todavia o principal
motivo de sua queda foi o forte contedo centralista da Constituio promulgada, o qual
8
ALBERDI, Juan B., op. 165.
9
PIGNA. Felipe (coord.). ALBERDI, Juan, B. / Cartas Quillotanas. SARMIENTO. Domingo Faustino / Las
ciento y unas. Buenos Aires: Emec, 2011.
10
Sarmiento tambm procurou ingressar no Colegio de Ciencias Morales, porm por motivos financeiros, no
pode mudar-se para Buenos Aires. Este fato o sanjuanino o tomou como grande desgosto e amargura, como pode
ser verificado em sua autobiografia. SARMIENTO, Domingo, F. Recuerdos de Provincia. Caracas: Biblioteca
Ayacucho, [1850] 1997.
11
O pai de Alberdi faleceu em 1822 e seu irmo Felipe, que em breve assumiria cargos pblicos em Tucumn,
foi designado como seu tutor.
177
desagradou s provncias federalistas. Foi em meio a essa agitao social, interna e externa,
que Alberdi viveu seus primeiros anos na capital.
Logo no incio, apenas aps trs meses de ingresso no colgio, em novembro de 1825,
com dificuldades de adaptao disciplina rgida e por motivos de sade ligados vida diria
na instituio, abandonou os estudos pelo que chamou de sofrimentos em Mi vida privada.
Com a autorizao de seu irmo mais velho, seu tutor aps a morte do pai, conseguiu ser
dispensado do colgio e arranjou um emprego em uma loja, em frente instituio.
Embora houvesse abandonado os estudos, continuou em contato com os antigos
colegas de classe, futuros integrantes do que a historiografia argentina chamaria de gerao
romntica argentina. Logo Alberdi se envolveu nas leituras e discusses com seus
companheiros estudantes e, no mesmo ano, procurou voltar instituio. Seu retorno foi
possvel devido ao apoio e interveno, junto ao colgio, do representante da provncia no
congresso, o deputado de Tucumn Alejandro Heredia.12
Em Buenos Aires, Alberdi dedicou-se mais msica e aos sales do que aos estudos,
sendo assduo frequentador das tardes e noites portenhas. Devido aos seus talentos musicais,
passou a frequentar as tertlias de Mara Snchez de Thompson, importante figura da
sociedade de Buenos Aires.13 Em sua citada autobiografia justificou o apego aos bailes e
festas por razes de sade, pois, como indicao mdica, tinham lhe sido recomendados ar
livre e bailes. Nas palavras de Alberdi: [e]ste mtodo, seguido fielmente, sent tan bien a mi
salud, que de rgimen medicinal se convirti casi en un vicio mi aficin a la vida de los
salones y fiestas. se fue el origen de mi vida frvola en Buenos Aires, que me hizo pasar por
estudiante desaplicado.14
Depois de ter concludo os estudos no Colegio de Ciencias Morales, deu incio ao
curso de Direito na Universidade. Contudo, no abandonou o interesse pela msica, nem suas
apresentaes musicais.15 Uma prova da permanncia de sua dedicao msica foi expressa
em duas de suas primeiras publicaes, em 1832. A primeira intitulou-se El espritu de la
12
Em Mi vida privada, Alberdi descreve a proximidade com Heredia e a preocupao do caudillo com os seus
estudos. Segundo Alberdi, no retorno ao colgio, que na ocasio estava de frias, el seor Heredia, para que yo
no perdiese tiempo, quiso darme l mismo las primeras lecciones de gramtica latina. ALBERDI, Juan B., op.
cit., p. 170.
13
ULLOA, Alejandro (Coord.). Juan Bautista Alberdi: El pensador de la libertad. Buenos Aires: Planeta, 2009,
pp. 13,15.
14
ALBERDI, Juan B., op. cit., p. 171.
15
Alberdi compunha e tocava violo, flauta e piano. Em 1832 escreveu El espritu de la msica. Ver PIGNA.
Felipe (coord.), op. cit. De acordo com Mariano Pelliza, a paixo e a habilidade perante a msica foram
constantes na vida de Alberdi. Ver PELLIZA. Mariano. A. Alberdi su vida y sus escritos. Buenos Aires:
Imprenta y Librera de Mayo, 1874.
178
msica a la capacidad de todo el mundo e a segunda, Ensayo sobre el mtodo nuevo para
aprender a tocar el piano.16
O ambiente universitrio resultou essencial para a formao romntica e o
posicionamento poltico que tiveram Alberdi e seus companheiros estudantes. Na instituio,
as disputas entre liberais e conservadores tambm se refletiam nas aulas e na organizao
acadmica. Professores como Diego Alcorta, titular em Filosofia, e seu propagado liberalismo
serviram de guias para muitos estudantes ou mesmo curiosos no matriculados, mas
interessados em suas aulas.17
O Colgio e a Universidade permitiram que Alberdi ingressasse no ambiente
intelectual de Buenos Aires para alm dos limites institucionais. Os laos de amizade entre os
estudantes foram fundamentais para a construo dos movimentos liberais anti-rosistas que
pautariam as discusses do sculo XIX na Argentina.18 Miguel Can e sua famlia exerceram
uma forte influncia na vida intelectual de Alberdi, como tambm nas de outros jovens
estudantes da dcada de 1830. Alm de se sentarem juntos no primeiro banco, Alberdi, aps o
colgio onde vivia ter sido fechado abruptamente em 1830, recebeu a hospitalidade de Can,
que o convidou para morar na casa de seus avs. A famlia Can era referncia nas leituras
liberais da capital. Alberdi recordar com gratido essa relao, considerando que [e]sa casa
y esa familia fueron mi verdadero colegio, no de ciencias o teoras Morales, sino, lo que es
mejor, de costumbres y de ejemplos Morales.19
Alberdi ingressara inicialmente na Universidade de Buenos Aires, mas s concluiu o
curso de Direito na Universidade de Crdoba em 1834. A deciso foi tomada por dois
motivos: a possibilidade de adiantar o trmino de seus estudos universitrios e o fato de no
ter que jurar em nome de Rosas, o qual era requisito para a obteno do ttulo na instituio
bonaerense. A ditadura de Rosas havia se tornado cada vez mais repressora e intransigente
contra as vozes crticas ao seu governo. Assim, a Universidade, com grande quantidade de
opositores, sofreu diversas intervenes do governo. Entre as ingerncias esteve a publicao
do Decreto de 27 de janeiro de 1836 que, de acordo com Flix Weinberg, exigia do candidato,
como requisito ao ttulo, haber sido obediente y sumiso a las autoridades y adicto a la causa
16
ALBERDI, Juan. B. Obras Completas. Tomo I. Buenos Aires: La tribuna Nacional, 1886.
17
WEINBERG, Flix. El Saln Literario de 1837. Buenos Aires: Librera Achete, [1958] 1977, p. 112-3.
18
Manuel Rosas assumiu pela primeira vez o poder entre 1829 e 1832, concentrando poderes extraordinrios.
Aps breve intervalo distante do governo, reassumiu o poder em 1834, ficando at 1852. Ver QUESADA, Mara
Senz. La Argentina. Historia del pas y de su gente. Tomo I, Buenos Aires: Debolsillo, 2006, pp. 307-311.
19
ALBERDI, Juan B., Mi vida privada. Que se pasa toda en la Repblica Argentina, p. 172. Ver WEINBERG,
Flix, op. cit. No testamento elaborado em 1879 Alberdi ainda mostra sua gratido pela hospitalidade que
recebeu da famlia Can. Ver PAREDES, Daniel Alfredo, op. cit., p. 60.
179
20
WEINBERG, Flix, op. cit., pp. 15-16.
21
Seu irmo Felipe, na ocasio, exercia o cargo de conselheiro do governador de Tucumn. Ver PELLIZA.
Mariano, op. cit., p. 15.
22
ALBERDI, Juan B., op. cit., p. 178.
23
Idem.
24
ALBERDI, Juan B., Memoria descriptiva de Tucumn, in ALBERDI, Juan B. Palabras de un ausente y
otros escritos ntimos. Buenos Aires: Emec, 2010, p. 150.
180
25
Segundo Alberdi, devido provncia ser composta por uma maioria de mulheres, possuidoras de um carter
melanclico, o estilo romntico faria ali mais sucesso do que nas outras provncias.
26
Idem, p. 179.
181
27
Idem, pp. 181-182. Em 1838, Esteban Echeverra escreveu o que considerado por diversos autores como o
primeiro conto romntico escrito no Prata, El Matadero. No entanto, esta no foi a primeira obra literria de
Echeverra com aspectos romnticos. Em 1832 j havia publicado Elvira o la novia del Plata, e ainda Los
consuelos, de 1834. Os trabalhos de Echeverra passaram quase no momento de sua produo histria
argentina. Em 3 e 4 de outubro de 1837, Gutirrez, nas pginas do jornal da capital Diario de la tarde,
considerava a importncia da sua obra para a poesia nacional. Ver WEINBERG, Flix, op. cit., pp. 19, 20, 31.
28
Idem, pp. 23-5.
182
poca de publicao, pois suscitou controvrsias nas duas margens do Prata 29 e, ainda hoje,
segue sendo alvo de recorrentes reflexes. Foi escrito antes de Rosas ter estabelecido seu
carter autoritrio, a pouco de se efetivar o rompimento por parte de seus antigos partidrios.
O texto trouxe uma das primeiras propostas sobre qual o modelo de pas que deveria se
construir depois de que se houvesse ultrapassado a fase de desorganizao causada pelas
guerras civis que se seguiram independncia. Acreditava, ou desejava Alberdi, que naquele
momento os perodos de conflito desapareceriam com a instituio de um governo liberal e
representativo de todas as provncias.
Flix Weinberg, cem anos aps a edio do Fragmento preliminar, indicou que
considera esse escrito como uno de los documentos capitales de esa etapa cultural, como
uma obra de destaque e de pioneirismo em relao formao nacional da Argentina. Para
Weinberg, o que Alberdi prope para o futuro da regio lo que interesa, el cual desde el
campo de la historia, de la poltica y de la filosofa del derecho, apunta a la integracin de
una filosofa para llegar a la nacionalidad.30
Por sua vez, Shumway julga o Fragmento preliminar como um documento
interessante para o conhecimento a respeito do pensamento de Alberdi, pelo motivo de o texto
ter sido escrito poucos meses antes do estabelecimento da Gerao de 37. Shumway destaca
ainda que entende que nesse texto existem ideias individuais, distintas do grupo da Gerao,
alm de ideias de que o prprio Alberdi se distanciou por um perodo. Para compreender a
importncia que o autor atribui ao escrito, leamos sua avaliao: o Fragmento foi o ensaio
mais significativo sobre a identidade da Argentina desde os textos de Mariano Moreno
escritos dcadas antes.31
Do ponto de vista da construo cultural da sociedade argentina, com esforos
voltados s identidades prprias, tendo em mente a sua organizao jurdica, Oscar Tern
reconhece em Alberdi seu grande iniciador romntico, seguindo as propostas de Echeverra.
Assim, o modelo apresentado como aquele a ser seguido era o da Europa; porm, a realidade
local deveria ser o elemento constitutivo para a construo da nacionalidade, sem a imposio
da lei sobre a sociedade.32
29
PELLIZA, Mariano. A., op. cit., p. 18.
30
WEINBERG, Flix, op. cit., p. 29.
31
SHUMWAY, Nicolas, op. cit., p. 169. Enrique Ganda considera que o Fragimento Preliminar at aquele
momento, 1994, havia sido mal interpretado por seus comentaristas. GANDA, Enrique de. Historia poltica
de Argentina: poca de Rosas. Primera Parte. Buenos Aires: Claridad, 1994, p. 482.
32
TERN, Oscar. Historia de las ideas en la Argentina. Diez lecciones iniciales, 1810-1980. Buenos Aires:
Siglo Veintiuno Editores, 2010, p. 92.
183
Estudiar el derecho bajo el poder ilimitado, era un poco arduo. En ese libro
yo califiqu el poder ilimitado, como el poder de Satans, bajo el gobierno
omnmodo de Rosas, pero no sin tomar precauciones naturales de inmunidad
en favor de mi persona y del libro. Lo dediqu al general Heredia, cosa que,
de paso, era un deber moral de mi parte. Heredia, como federal, era mirado
con amistad por Rosas. En el Prefacio, pararrayo del libro, hice concesiones
al sistema federal, y al jefe temido de nuestra democracia federalista.
Segue Alberdi, mais adiante: [a] Rosas le repet el calificativo de grande hombre,
que le daba todo el pas. Todo esto no impidi que Rosas recibiese informes de mi libro,
amenazantes para mi seguridad.33
O trecho anterior traz no apenas a contextualizao da elaborao do estudo, mas
tambm uma justificativa quanto ao seu posicionamento daquela poca, como ainda ao
tratamento que viria a receber na contemporaneidade dos escritos da memria. De fato, desde
ento, apareciam-lhe acusaes de ter sido aliado de Rosas e demasiado brando nas crticas ao
governo em 1837.
Esse ano resultou frutfero no tocante produo intelectual e poltica de Alberdi.
Junto a outros jovens letrados, fundou na livraria de Marcos Sastre o Saln Literario,
ambiente em que os liberais anti-rosistas se encontravam e discutiam projetos de Estado e de
nao para a Confederao Argentina. Era o incio da Gerao marcada pela construo do
Estado nacional argentino, responsvel por criar os mitos nacionais e reconhecida por muitos
estudiosos como continuadora das obras dos Revolucionarios de Mayo. Na ocasio, Alberdi
pronunciou um discurso inaugural da instituio, sob um ttulo bastante esclarecedor a
respeito dos objetivos a que se destinava: Doble armona entre el objeto de esta institucin
con una exigencia de nuestro desarrollo social: y de otra exigencia con otra general del
espritu humano.34
Alberdi considerado, conjuntamente com Esteban Echeverra, um dos nomes mais
importantes da Generacin de 37, que, como vimos, foi influenciada pelo romantismo
33
ALBERDI, Juan B., op. cit., pp. 183-184.
34
WEINBERG, Flix, op. cit., pp. 57 e 60. Poucos dias depois da inaugurao do Saln Literario, foi publicado
um folheto contendo os discursos inaugurais de Sastre, Alberdi e Gutirrez, sob o ttulo Discursos pronunciados
el da de la apertura del Saln Literario, fundado por Don Marcos Sastre.
184
35
Idem, p. 49.
36
Idem, pp. 27-28.
37
RICUPERO, Bernardo. O romantismo e a idia de nao no Brasil (1830-1870). So Paulo: Martins Fontes,
2004, pp. 210-218, 226-228, 258-259.
38
Idem, pp. 210-218, 226-228, 258-259.
185
sobre a histria recente e que buscava narrar um momento da fundao da ptria ligado aos
eventos de 1810.39
Ainda no ano de criao do Saln, sob o pseudnimo Figarillo, comeou a publicar a
revista La Moda, gacetn semanal de msica, poesa, literatura y costumbres, um semanrio
que durou 23 volumes, cujo ltimo nmero foi publicado em 27 de abril de 1838. A revista,
dirigida por Alberdi e Rafael Jorge Corvaln, tentava no entrar em atrito direto com Rosas,
principalmente em seu incio, com poucas crticas e com diversos artigos sobre
comportamentos e banalidades.40 La Moda chegava inclusive a trazer em suas pginas a
consigna rosista Viva a federao!. Alm disso, no semanrio os elogios a Rosas foram
constantes ao longo de toda sua existncia.41 No entanto, apesar dos esforos da revista em
no entrar em confronto com o governo de Rosas, logo os desencontros seriam maiores e
irreconciliveis.
Diversos companheiros do Saln colaboraram com os exemplares da revista,
difundindo na regio do Prata o romantismo literrio e autores modernos. Weinberg
caracterizou da seguinte maneira as ideias em voga contidas na revista e defendidas por seus
colaboradores: Difunden todos ellos el romanticismo literario no el excntrico
misantrpico o de nostalgias feudales sino el filosfico, moralista, progresivo, militante,
libertario y las doctrinas humanitarias y sociales, particularmente el sansimonismo.42
Porm, toda a atividade protagonizada pelos jovens da Generacin de 37 no agradou
a Rosas. Devido s perseguies, o Saln anunciou seu fechamento em janeiro de 1838, com
o qual se encerrou, tambm, a publicao do semanrio La Moda. Contudo, as ameaas no os
fizeram resignar-se com a situao e fundaram, em junho do mesmo ano, a sociedade secreta
Asociacin de Mayo, com Echeverra como presidente e Alberdi e Gutirrez como integrantes
da direo.
Com aproximadamente 35 jovens, o extinto Saln cedia espao Asociacin de la
Joven Generacin Argentina, que procuraria manifestar-se dessa vez mais pelas aes do que
39
PRADO, Maria Lgia Coelho. Amrica Latina no Sculo XIX: Tramas, Telas e Textos. So Paulo, Editora
Universidade de So Paulo, p. 167.
40
Posteriormente, em 1938, foram publicados em Buenos Aires os textos da revista em um nico volume,
homnimo ao peridico mensal. Ver OVIEDO, Jos Miguel. Historia de la literatura hispanoamericana. Madri:
Alianza Editorial, 2007. Alberdi adotou o pseudnimo de Figarillo, inspirado no escritor espanhol Mariano Jos
de Larra (1809-1837), que assinava como Fgaro seus textos crticos Espanha e seus costumes. De acordo com
Bernardo Ricupero, dentre os 88 artigos que apreceram na revista, em relao sua autoria, temos os seguintes
nmeros: 48 de Alberdi, 10 de Rafael J. Corvaln, 5 de Carlos Tejedo, 4 de Juan Mara Gutirrez, alm dos
escritos por Demetrio Pea e Jacinto Pea. RICUPERO, Bernardo, op. cit., p. 215.
41
WEINBERG, Flix, op. cit., p. 102. No final de 1837, a crena de Alberdi no governo de Rosas levou ao
afastamento gradual com Echeverra que, desde 1830, j manifestava sua oposio ao caudilho.
42
Idem, pp. 99-100.
186
43
Idem, pp. 112-113.
44
PRADO, Maria Ligia Coelho Prado, op. cit., pp. 78-79.
45
ALBERDI, J. B., op. cit., p. 187.
46
ALBERDI, Juan B., Palabras de un ausente, in ALBERDI, Juan B., op. cit., p. 10-11.
47
RICUPERO, Bernardo, op. cit., p. 225.
187
48
ALBERDI, Juan B., Mi vida privada. Que se pasa toda en la Repblica Argentina, p. 189.
49
PELLIZA. Mariano. A. op. cit., p. 24.
50
Idem, pp. 130-131.
51
ALBERDI, Juan B., Ideas para un curso de filosofa contempornea, in Ideas en torno de Latinoamrica.
Vol. 1 Mxico: Universidad Nacional Autnoma de Mxico, 1986.
188
52
GANDA, Enrique de, op. cit., pp. 460-463. Segundo este autor, o bloqueio anglo-francs no ocorreu devido
ao bloqueio navegao do rio Paran, como indicam alguns estudos. Os franceses pediam reciprocidade
diplomtica aos seus cidados e os ingleses queriam que cessasse a interveno no Uruguai. O motivo de fato
seriam ento as intervenes no Uruguai, sendo a navegao livre apenas um pedido dos pases europeus.
Ganda sustenta tambm que no houve uma aliana formal entre franceses, ingleses e unitrios.
53
Lavalle, desde a derrota contra os federais em 1829 havia se retirado da vida pblica. Alberdi escreveu
algumas cartas ao general explicando a importncia de sua participao no ataque a Rosas. Lavalle aceitou o
empreendimento e comandou a tropas que saram desde a ilha Martn Garca. Aps sofrer diversas derrotas, o
conflito se encerrou com a vitria de Rosas em 1841. Em outubro daquele ano, Lavalle morreu em Jujuy, sua
terra natal, fugindo dos exrcitos federais.
54
ALBERDI, Juan B., Palabras de un ausente, in Palabras de un ausente y otros escritos ntimos, p. 11.
189
Na Europa, Alberdi passou por Gnova, Turim e Genebra. Porm, foi em Paris que se
estabeleceu durante a maior parte dos meses que residiu no velho continente. Ainda sem haver
se envolvido em atividades polticas ou laborais nessa cidade, Alberdi no deixou de realizar
duas longas entrevistas com San Martn. Do encontro surgiu, em 1843, o breve texto El
general San Martn.56
Assim, impossibilitado de voltar Confederao Argentina, ou a Montevidu, sitiada
pelas tropas de Rosas, Alberdi optou por dirigir-se ao Chile. Em 1843, devido ao bloqueio a
Montevidu, muitos exilados argentinos resolveram cruzar a cordilheira para se fixarem em
uma repblica mais segura. Novamente, Alberdi se encontrava em terras estrangeiras, repletas
de compatriotas e companheiros polticos que lutavam contra o governo de Rosas. Entre os
compatriotas do novo exlio estavam Juan Mara Gutirrez, Bartolom Mitre e Domingo
Faustino Sarmiento.
O clima poltico chileno era propcio para os exilados do Rio da Prata durante o
governo do General Manuel Bulnes, que havia servido sob as ordens de San Martn e que
compartilhava algumas das ideias modernas defendidas pela Associao de Maio. O governo
de Bulnes, naquele momento, buscava modernizar o Estado chileno e pretendia aproveitar o
capital intelectual estrangeiro que se encontrava no pas para alcanar seus objetivos. Em
pouco tempo, os jovens da regio do Prata entraram na vida intelectual e poltica do Chile,
participando da imprensa, da construo do Estado e das disputas vigentes, por vezes com
integrantes da gerao chilena de 1842.
Alberdi chegou ao Chile em abril de 1844, onde viveu ao todo por 10 anos. Residiu
em diversas cidades. Porm, ao contrrio da maioria de seus compatriotas, no se fixou em
Santiago, mas na beira do mar, em Valparaso. Diferente tambm de alguns companheiros do
Prata, Alberdi no encontrou emprego na administrao pblica, mesmo com sua boa relao
com a presidncia de Bulnes. Atuou profissionalmente como advogando, alcanado
considervel prestgio na profisso. Em 1844, Alberdi escreveu e publicou um volume
biogrfico sobre ele, Biografia del general Don Manuel Bulnes, presidente de la Repblica de
55
PELLIZA, Mariano, op. cit., p. 29.
56
ALBERDI, Juan B., El general San Martn, in Obras Completas. Tomo II. Buenos Aires: La Tribuna
Nacional, 1886, pp. 333-341.
190
57
ALBERDI, Juan B., Biografa del general Don Manuel Bulnes, presidente de la Repblica de Chile.
Valparaso, in Obras Completas. Tomo II, Buenos Aires: La Tribuna Nacional, 1886, pp. 413-474.
58
ALBERDI, Juan B., Memoria sobre la conveniencia y objeto de un Congreso General Americano, in Obras
Completas. Tomo II. Buenos Aires: La Tribuna Nacional, 1886, pp. 389-414.
59
QUESADA, Mara Senz, op. cit., pp. 318-322.
60
Idem, pp. 333-336.
191
61
TERN, Oscar, op. cit., pp. 94 e 104.
192
vrios intelectuais. Houve tambm o esforo em tornar o trabalho conhecido nas demais
provncias e em Buenos Aires, que o viu publicado no peridico El Nacional. O prprio
Urquiza, simptico s ideias apresentadas, promoveu uma nova edio da obra para ser
difundida no Litoral.62 No Chile tambm houve difuso e discusso das propostas de Alberdi.
O estudo no demorou a ser aprovado e se transformou em base para a nova Constituio que
estava sendo discutida no Congresso de 1852 e que viria a ser finalizada no ano seguinte.
Enquanto possuam um inimigo comum, Rosas, os membros da Gerao de 1837
tinham mantido certa unidade. Com a subida do ex-colaborador do caudillo de Buenos Aires
ao poder, as questes referentes ao como e ao aonde se queria chegar, ao papel de Buenos
Aires e s diferenas de projeto de Estado e governo foram vividas como polmicas pelos
intelectuais liberais vencedores. Urquiza no tardou em causar diferentes reaes entre os
antigos opositores de Rosas, como Sarmiento e Mitre, que estavam preocupados com o papel
assumido pelo caudilho de Entre Ros.
Sarmiento demonstrava grande descontentamento com o rumo da poltica de Urquiza,
em sua tentativa de unir federais e unitrios. Em julho de 1852, decepcionado com o novo
governo, Sarmiento retornou ao Chile para desde ali fazer a oposio contra o recm
instaurado regime. Fundou ento, em Santiago, Del otro Club, concentrando os demais
exilados, crticos do governo estabelecido e das ideias defendidas por Alberdi.
Entre as censuras que os opositores ao governo central, cuja sede se encontrava na
provncia do Paran, lanavam contra o proponente central do projeto nacional, estavam as
lembranas de como Alberdi havia sido complacente com os caudillos e com o prprio Rosas,
que, em seu Fragmento preliminar, e na poca da publicao, fora apontado como promissor
governante.63
Alberdi e Sarmiento iniciaram a polmica por causa de temas relativos aos foros
poltico e pessoal. Segundo Shumway, Sarmiento no haveria tido a recepo nem ocupado o
lugar de que se julgava merecedor dentro da campanha contra Rosas, nem na instalao do
novo governo. Urquiza no o havia nomeado oficial de combate, como esperava, e sim
cronista oficial da campanha. J com a instalao do novo governo, seria contemplado com
cargos mais importantes. Outro ponto, que gerava o descontentamento de Sarmiento, remetia
62
Esta edio de 1853, lanada pela imprensa da provncia de Paran, acrescentada com um prlogo escrito por
Urquiza.
63
SHUMWAY, Nicolas, op. cit., p. 232.
193
para o fato de no haver sido dado maior espao ao seu ensaio poltico Argirpolis64 dentro da
construo do novo pas.65
Diferentemente de seu ex-aliado em terras chilenas, Alberdi dava apoio ao novo
governo, que por sua vez reconhecia o trabalho por ele empreendido. Dita distino se
concretizou em convites composio da nova administrao. No entanto, Alberdi decidiu
por no aceder a cargos pblicos. Urquiza nomeou o tucumano como Encarregado de
Negcios da Confederao perante o governo chileno, mas Alberdi recusou o posto. Gutirrez
tambm incentivava inutilmente seu amigo a integrar-se ao grupo no poder, candidatando-se
como deputado de Tucumn junto ao novo Congresso. Suas negativas se devem ao fato de
Alberdi acreditar que, desde o Chile, e sem o exerccio de cargos pblicos, seria mais fcil
compreender os problemas polticos que aconteciam na Confederao.
Em Palabras de un ausente, Alberdi descreve o posicionamento de Sarmiento e
aponta sua avaliao desfavorvel ao do governo como derivada apenas do seu interesse em
assumir cargos de governo em Buenos Aires. Trinta anos depois do lanamento de Facundo e
das crticas de Alberdi obra, o assunto ainda produzia atritos e alimentava rancores antigos.
Nas memrias, a leitura da obra apresentada com ironia:
Essa diferena em relao aceitao ao novo governo abriu espao para uma
discusso entre Sarmiento e Alberdi, veiculada em terras chilenas por meio da imprensa. Em
pouco tempo, o clima amigvel tornou-se insustentvel. Em julho, Sarmiento elogiava o
Fragmento Preliminar publicado por Alberdi, mas, no fim do ano, atacava publicamente o
apoio dado a Urquiza.
A situao poltica construda aps a queda do governo de Rosas no criou uma
unidade ou arrefeceu os nimos entre os grupos representantes do centralismo e do
64
Neste texto, de incio publicado anonimanete em 1850, Sarmiento prope a unio da Confederao Argentina
com o Estado Oriental do Uruguay e com o Paraguay seguindo o modelo dos Estados Unidos e formando uma
confederao. Esta cidade, Argirpolis, situada na ilha de Martn Garca, seria a capital dos Estados
Confederados do Rio da Prata.
65
Idem, pp. 225 e 227.
66
ALBERDI, Juan B., Palabras de un ausente, in Palabras de un ausente y otros escritos ntimos, p. 27.
194
67
PAGLIAI, Lucila, Escribir la pasin desde el intelecto, in ALBERDI, Juan. B. La gran polmica nacional.
Juan Bautista Alberdi y Domingo F. Sarmiento. Buenos Aires: Leviatn, 2005, pp. 19-23.
68
SARMIENTO, Domingo, F. Recuerdos de Provincia. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1997.
195
Pensado en 1844, ese libro vio la luz en Chile en 1845. Toda la civilizacin
que su autor conoca, hasta entonces, la haba visto en la Punta de San Luis,
en el San Juan del tiempo de Quiroga y Aldao, y en el Chile de aquel tiempo,
con tanto candor descrito por su espiritual escritor Sanval el ao pasado
solamente. El que a esa circunstancia aadiera el de no haber frecuentado
colegio ni universidad alguna, no era bastante ttulo para que conociese
mejor la civilizacin que la barbarie. Cuando menos lo era conocer
igualmente las dos cosas, y as se explica sin duda que el Facundo se titulase
al mismo tiempo Civilizacin y barbarie. Para tratarlas bien, era preciso ser
docto en ambas facultades.69
69
ALBERDI, Juan B., op. cit., p. 42.
196
Em fevereiro de 1853, Urquiza era eleito pelo Congresso, reunido em Santa Fe, como
primeiro presidente da Confederao, agora com sede na cidade de Paran. Em julho do
mesmo ano, Alberdi foi designado para exercer uma misso diplomtica na Europa. Buscando
o reconhecimento da Confederao Argentina e apresentando-a como o nico governo
legtimo, dirigiu-se Europa e aos Estados Unidos. Em 1855, partiu como ministro
plenipotencirio da Confederao em busca do apoio da Frana, Gr Bretanha, Vaticano e
Espanha. Antes de aportar ao Velho Mundo, passou pelos Estados Unidos e conseguiu uma
entrevista com o presidente Franklin Pierce, em que defendeu a legitimidade do governo que
representava. O governo de Buenos Aires, por sua vez, fazia o mesmo na Europa, com o
envio de seu representante plenipotencirio Mariano Balcarce.
Em 1856, Alberdi obteve sucesso em sua misso arregimentando o reconhecimento da
Inglaterra e da Frana. J em 1859, conseguiu o reconhecimento da Espanha para o novo
governo. Em suas justificativas de ausente, Alberdi considerava que [c]umpl esa misin,
firmando en Madrid en 1860 el tratado de reconocimiento, que lleva mi nombre, legible al
travs del que lo suplanta.72 No mesmo ano produz, ainda, um folheto que trata diretamente
70
Sobre a polmica, ver: PAGLIAI, Lucila, Escribir la pasin desde el intelecto, op. cit. Consultar tambm:
TERN, scar, op. cit.
71
PELLIZA, Mariano. A., op. cit., p. 181.
72
ALBERDI, Juan B., op. cit., p. 12.
197
73
HALPERN DONGHI, Tulio. Proyecto y construccin de una Nacin: 1846-1880. Buenos Aires: Emec
Editores, 2007, pp. 31-33.
74
PIGNA, Felipe (coord.), op. cit., p. 10.
198
75
Idem, p. 12.
199
produo intelectual concernente sua vida e obra. Ocupa um espao social secundrio no
que tange ao interesse acadmico e a seu papel nos imaginrios brasileiro e venezuelano.
Alguns de seus textos alcanaram grande circulao em meados do sculo XIX, obtendo
diversas reedies, inclusive no sculo XX e no atual. Foi lido nos colgios do Imprio, ao
integrar os currculos escolares com um manual de histria. Escreveu tambm como
jornalista, explicitando sua opinio pela imprensa ao longo de sua vida, como redator de
diversos jornais.
A poltica e a relao com as letras foram constantes em sua trajetria biogrfica. Foi a
participao de sua famlia nos movimentos autonomistas no nordeste brasileiro que o levou
como exilado aos Estados Unidos e ao ingresso no exrcito de independncia bolivariano em
1819. Como patriota nas lutas pela independncia e, posteriormente, como partidrio de
Bolvar, participou de batalhas e das aes militares durante os treze anos em que esteve na
regio. Escreveu textos polticos e histricos, atuou no Correo del Orinoco e na imprensa ps-
independncia. Foi fiel ao projeto unitrio de Bolvar at 1830, com a retirada do Libertador.
No Brasil, defendeu as coroas de D. Pedro I e D. Pedro II, entendendo-as como
necessrias manuteno da unidade nacional. Isso no o impediu de participar de
movimentos autonomistas como a Revoluo Praieira. Foi membro honorrio do Instituto
Histrico e Geogrfico Brasileiro entre 1939 e 1843, e contribui aos primeiros esforos
sistematizados para criar uma historiografia nacional. Publicou sobre diversos temas, como
histria, poltica, socialismo, liberdade religiosa, economia e medicina, e manteve ativa sua
produo at 1869, ano em que faleceu. Como personagem brasileiro, apresenta um perfil
singular por transitar intensamente no mundo das ideias e da poltica nas Amricas hispnica
e portuguesa nas primeiras demandas de construo das naes, em meados do sculo XIX.
76
Para acompanhar em mais detalhes a vida de Abreu e Lima, indicamos alguns trabalhos: PEREIRA DA
COSTA, F. A. Dicionrio biogrfico de Pernambucanos clebres. [Fac-smile da edio de 1882] Recife:
Fundao de Cultura Cidade do Recife, 1981. BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario
Bibliographico Brazileiro. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 4 Vol., [1895] 1970. CHACON,
Vamireh. Abreu e Lima: general de Bolvar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. MOURA, Lus Cludio R. H. de.
200
Incio Ribeiro de Abreu e Lima (1768-1817), quem, depois de seus estudos no convento de
Goyana no Recife, completou sua formao no curso de teologia na Universidade de
Coimbra. Em seguida mudou-se para Roma, onde ampliou seus estudos, sendo ordenado
sacerdote. No entanto, no continuou na carreira eclesistica, pois abandonou os votos para
exercer, desde 1807, a profisso de advogado em Recife. Conhecido como padre Roma,
passou historiografia brasileira por haver participado em Pernambuco da Revoluo de
1817, da qual foi um de seus lderes.
Abreu e Lima estudou no Seminrio de Olinda, onde recebeu uma formao de cunho
liberal. A instituio, pioneira na Amrica portuguesa, resultou uma das principais
representantes na colnia das novas ideias incorporadas educao ps-reformas pombalinas.
Aps um perodo sem funcionar, o Seminrio foi reativado em 1800 e passou a oferecer uma
formao em transio entre a antiga educao jesutica e as cincias naturais, porm com um
carter modernizante. Havia uma sobreposio de disciplinas clssicas como a Retrica,
Filosofia, Gramtica e Teologia com herdeiras iluministas baseadas nas Cincias Naturais
e na Matemtica.77 Abreu e Lima aprendeu tambm latim e francs com seu pai, reconhecido
poliglota.
A historiografia voltada ao estudo da direo ideolgica e influncia terica do
Seminrio de Olinda costuma reconhec-lo como um dos primeiros estabelecimentos de
ensino a romper com a tradio jesutica no Brasil e a oferecer uma formao moderna. As
leituras e debates de clssicos ilustrados e autores liberais so atrelados por estudiosos aos
movimentos contestatrios ordem imperial ocorridos em Pernambuco. Tornou-se comum
estabelecer o relacionamento da Revoluo de 1817 e da Confederao do Equador, de 1824,
com a participao de professores e estudantes do seminrio. O Padre Roma e Abreu e Lima,
docente e egresso da instituio, respectivamente, se enquadram no perfil definido em
diversos estudos.
Depois de haver cursado seus estudos em Olinda, Abreu e Lima dirigiu-se em 1812 ao
Rio de Janeiro para ingressar na Academia Real Militar. Entrou como soldado da oitava
Companhia do Regimento de Artilharia da Guarnio da Praa de Pernambuco e, uns quatro
anos mais tarde, obteve a patente de capito de artilharia e o ttulo de professor de
Matemtica. Na Academia, cursou trs anos de Matemtica e um do curso militar.
Abreu e Lima: uma leitura sobre o Brasil. Braslia: Universidade de Braslia, Departamento de Histria,
Dissertao de Mestrado, 2006. Orientada por Pro. Dr. Geralda Dias Aparecida. BRUNI, Srgio. O mui
desassossegado Senhor General: a vida de Jos Incio de Abreu e Lima. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.
77
ALVES, Gilberto Luiz. O Pensamento Burgus no Seminrio de Olinda: 1800-1836. Campo Grande: Editora
UFMS, 2001.
201
78
Para informao mais detalhada sobre a formao na Academia Real Militar e a vida militar de Abreu e Lima,
ver: BENTO, Cludio Moreira, Abreu e Lima, o brasileiro que foi general de Simon Bolvar Traos de seu
perfil militar, in Revista a Defesa Nacional, n. 725, mai/jun 1986, pp. 91-116.
79
PEREIRA DA COSTA, F. A., op. cit.
80
TAVARES, Francisco Muniz. Histria da revoluo de Pernambuco em 1817. Recife: Imprensa Industrial,
[1840] 1917.
81
Sobre a participao do Padre Roma na Revoluo de 1817, ver: CARVALHO, Gilberto Vilar de. A liderana
do clero nas revolues republicanas (1817-1824). Petrpolis: Vozes, 1979. TAVARES, Francisco Muniz, op.
cit.
202
sua ptria. Enfim, tanta resignao. Era o meu pai quem me animava, porque
eu parecia inconsolvel. Uma mo de ferro me arrancava o corao. Meu
pranto e minha dor comoviam a todos que se achavam presentes.82
Abreu e Lima foi um dos poucos brasileiros a lutar nas guerras de emancipao da
Amrica hispnica, inclusive com singular produo intelectual sobre os eventos que tiveram
lugar na dcada de 1820. Em sua biografia consta ainda a concesso de patentes militares, em
cuja hierarquia atingiu a de general em 1830, e de importantes cargos administrativos nos
governos da Gr Colmbia, como Chefe de Estado Maior em Madalena no perodo de 1827
at 1831.
A atividade intelectual esteve presente nas primeiras aes executadas por Abreu e
Lima nos exrcitos rebeldes. Enquanto estava na Filadlfia, fez contato com o revolucionrio
e intelectual venezuelano Juan Germn Roscio, que assumiria o cargo de diretor do Correo
del Orinoco no lugar de Francisco Antonio Zea e que levaria Abreu e Lima para Angostura.
82
ABREU E LIMA, Jos Incio de. Compendio da Historia do Brazil, desde o seu descobrimento at o
magestoso acto da coroao e sagrao no Sr. D. Pedro II. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert,
volume II, 1843a, p. 284.
83
PEREIRA DA COSTA, F. A., op. cit.
84
Atuais Ilhas Virgens.
85
MONTENEGRO, J. Arturo, Carta Importante, in Revista do Instituto Arqueolgico e Geogrfico
Pernambucano, n. 48-50, janeiro, Recife, 1896, pp. 25-30.
203
Mi primer pensamiento fue ofrecer al Exmo. Sr. Presidente un plan para una
escuela Matemtica e militar que acompaase al Exrcito semejante la que
establecieron los Franceses en el campo de Bologne, cuando armada contra
la Europa toda la Francia no podia sostener los alumnos de la Escuela
Politechnica ; pero el tiempo, el lugar, y demas circunstancias eran entonces
desventajosas mi proyecto, y yo desesper de l.
Oficiales facultativos son, como en todas partes, necesarios en
Colombia. Esta naciente repblica necesita de exrcitos de operacin, y de
fuerzas estacionarias, y tanto estas, como aquellos no pueden ser brillantes, y
respetables, si les faltan Ingenieros, y artilleros, bien instruidos. Unos
cuerpos de esta clase no se forman en pocos dias ; pero un poco de
resolucion y firmeza venceria dificultades, y abreviaria el curso ordinario de
la empresa. Propongo pues mis ideas, tales, cuales me las sugiere mi
decidido inters por la Causa.87
Nos anos seguintes, servindo aos exrcitos comandados por Bolvar, participou de
diversas disputas militares e polticas na Amrica andina. Em territrio granadino,
venezuelano, peruano e equatoriano, acumulou vitrias e obteve prestgio ao lado de
influentes lderes regionais. Durante esse perodo, participou do crculo ntimo de amizade de
Simn Bolvar, Jos Antonio Pez, Francisco de Paula Santander, Carlos Soublette e Mariano
Montilla. Tambm colaborou com ideias, atravs do uso de sua pena a favor dos Estados que
recm surgiam, em defesa do projeto centralizador e unitrio de Bolvar.
Em uma carta enviada ao general Paz no final de sua vida, em 1868, bastante
conhecida pelos estudiosos do personagem, Abreu e Lima descreve seu percurso na regio,
indicando suas ligaes naquela dcada:
86
CHACON, Vamireh. Abreu e Lima: general de Bolvar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. De fato, no Correo
del Orinoco existe ao menos um artigo em que Abreu e Lima relata claramente sua vida e seus planos naquela
regio. Ver ainda: CHACON, Vamireh. Da Confederao do Equador Gr-Colmbia (1796-1830): escritos
polticos e manifestos de Mundrucu. Braslia: Senado Federal, 1983.
87
MORENO, Gerardo Rivas (editor). Correo del Orinoco. Bogot: Edio Fac-smile, 1998, p. 262.
204
88
Antonio Pez, aps breve passagem no Rio de Janeiro em julho de 1868, em direo a Buenos Aires, deixou
para Abreu e Lima uma carta e uma cpia de sua autobiografia que seria publicada no ano seguinte. Abreu e
Lima, que na ocasio no se encontrava na cidade, respondeu carta de Pez, que foi levada a Buenos Aires pelo
cnsul argentino em Pernambuco. Inicialmente a carta foi reproduzida em Buenos Aires em La Revista de
Buenos Aires, Historia Americana Literatura y Derecho. Ao VI, n. 66, tomo XVII. Buenos Aires, pp. 162-171.
No Brasil, sua primeira publicao ocorreu no Dirio de Pernambuco de 20 e 21 de maro de 1874.
Posteriormente, esta carta foi reproduzida em diversos trabalhos, entre eles: AZPRUA, Ramn. Biografa de
hombres notables de Hispano Amrica. Caracas, 1877. CHACON, Vamireh, op. cit. Ricardo Alberto Rivas
considera que a carta testamento tem uma intencionalidade projetada ao futuro, procurando estabelecer sua
verso entre os acontecimentos durante e ps a independncia na regio andina. Para Rivas, "La carta dirigida a
Pez es una autoevaluacin positiva con la finalidad de difundir una imagen de prcer derrotado por
circunstancias conspirativas, minimizando las diferencias de momento que lo haban alejado del General
venezolano, adems de recordar hechos y personas comunes como escenario de reconciliacin." RIVAS,
Ricardo Alberto, "Abreu e Lima, Pez y la lite argentina", in Cuadernos CIHS, ano 3 n. 4, Universidad
Nacional de La Plata, 1998. Disponvel em:
<http://www.memoria.fahce.unlp.edu.ar/art_revistas/pr.2714/pr.2714.pdf> (acessado em 12/04/2011).
89
Entre os episdios de conflito que o assunto envolve, est seu desentendimento com Antonio Leocadio
Guzmn, em parte por via de peridicos, em parte com duelos fsicos. Aps uma agresso armada contra
Guzmn, Abreu e Lima foi condenado e teve que cumprir pena na priso entre 1825 e 1826, na Venezuela.
205
considerado hoje uma das primeiras obras historiogrficas sobre o pas.90 Abreu e Lima
afirmou ter conhecido Henderson e ter recebido a obra de mos do prprio intelectual ingls.
Quase vinte anos aps o lanamento do livro, Abreu e Lima, em um de seus livros a respeito
das discusses historiogrficas, relembrou sua opinio em torno da obra.91 Sobre a Histria
do Brazil de um dos primeiros brazilianistas, considerava que notasse nella muitos erros de
historia e geografia, e muita m vontade aos Brazileiros, os quaes tratava como selvagens.92
Sua constante atuao intelectual na Amrica hispnica esteve relacionada
conjuntura poltica em que se encontrava inserida a regio. Foi em 1826 que Abreu e Lima
escreveu seu primeiro trabalho como intelectual a servio da Gr Colmbia. Surgiu a pedido
de Santander, que o encarregara de realizar um estudo que envolvia a definio dos territrios
fronteirios entre a repblica colombiana e o imprio brasileiro. Ainda naquele ano, entregava
a encomenda a Santander, sob a denominao de Memria sobre os limites entre o Brasil e a
Repblica da Colmbia. O estudo foi recusado pelo ento presidente da Confederao, por ser
considerado contrrio s instrues indicadas. O destino da Memria foi o seu arquivamento,
no existindo nenhuma publicao desse trabalho, pioneiro no que diz respeito constituio
do corpo da nao da Repblica da Colmbia.93
Tambm a pedido, porm em um contexto de conflitos polticos, surgiu o que
podemos considerar a principal obra de Abreu e Lima na Amrica andina. O trabalho que
circulou primeiro disperso em jornais e panfletos na Amrica e na Europa, por volta de
1828 a 183094 fora elaborado entre 1826 e 1828 a pedido de Bolvar, para defend-lo das
acusaes de ditador que circulavam pela Europa entre intelectuais liberais, promovidas por
americanos exilados como Santander e europeus renomados como Benjamin Constant.95
Aps a elaborao, o estudo deveria ser enviado ao Abade de Pradt, que estava desde
1824 fazendo a defesa de Bolvar na Europa e que ficaria responsvel pela publicao do
material produzido por Abreu e Lima. Diego Carbonell indica que o trabalho contribuiu para
90
IGLSIAS, Francisco. Os historiadores do Brasil: captulos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira; Belo Horizonte: UFMG, IPEA, 2000.
91
ABREU E LIMA, J. I. Resposta do General J. I. de Abreu e Lima ao Cnego Janurio da Cunha Barbosa ou
Analyse do primeiro juzo de Francisco Adolpho Varnhagen acerca do Compendio da Historia do Brazil.
Recife, Pernambuco: Tipographia de M. F. de Faria, 1844, p. 49.
92
provvel que Abreu e Lima tenha elaborado um texto crtico sobre o trabalho de Henderson. Ao abordar o
tema em 1844, indicou que na poca tinha feito uma analyse e refutao da tal historia, e a dediquei ao General
Santander, Vice-Presidente encarregado do Poder Executivo. Ibidem.
93
Ibidem.
94
CHACON, Vamireh, op. cit., p. 105.
95
ABREU E LIMA, J. I. Resumen Histrico de la ltima dictadura del libertador Simon Bolvar. Comprobada
con documentos. Rio de Janeiro: Editora O Norte, 1922.
206
reforar as posies do Abade, que, em janeiro de 1829, se encontrava em intenso debate nas
pginas do peridico Courrier Franais.96
Dos textos elaborados pelo pernambucano durante sua permanncia nas repblicas
vizinhas, apenas o volume lanado em 1922 foi publicado, sob o ttulo de Resumen Histrico
de la ltima dictadura del libertador Simn Bolvar. Comprobada con documentos. O
exemplar foi produzido a partir de uma colaborao estabelecida entre a Venezuela e o Brasil,
na ocasio da comemorao do centenrio da independncia brasileira. Esse livro pode ser
considerado sua mais importante produo intelectual durante o perodo de permanncia na
Amrica andina, e um de seus primeiros estudos editados no campo da histria. Resulta uma
obra singular, pois no se conhecem trabalhos histricos da autoria de outros brasileiros
presentes no processo de emancipao da Amrica andina.97
No incio da dcada de 1830, a situao poltica da Gr Colmbia se diferenciava
bastante daquela encontrada por Abreu e Lima nas lutas de independncia em 1819. Bolvar
havia perdido poder e vindo a falecer. A unidade gr-colombiana havia se fragmentado e
Abreu e Lima era visto como um inimigo da ptria, que se estabelecia em trs novos Estados
nacionais: Equador, Nova Granada e Venezuela. O posicionamento poltico do pernambucano
o levou a deixar a Nova Granada em agosto de 1831, quando um decreto presidencial foi
expedido expulsando todos os oficiais estrangeiros que lutavam pela unidade da Gr
Colmbia.98 Banido, partiu para uma temporada nos Estados Unidos e na Europa. Retornou
ao Brasil em meados de 1832, pouco depois da abdicao de Pedro I, ocorrida em 7 de abril
de 1831. Durante sua estadia no continente europeu, encontrou-se com o monarca exilado,
reforando sua convico a respeito da importncia da instituio da monarquia para a
manuteno da ordem e da unidade territorial brasileira.
96
CARBONELL, Diego, La personalidad de Abreu y Lima, in ABREU E LIMA, J. I., op. cit., p. CII.
97
Entre outros trabalhos realizado por estrangeiros vinculados luta pela independncia da Amrica espanhola
esto o do irlands Daniel OLeary, que escreveu Memrias de OLeary, em diversos volumes, e a memria do
francs Lus Peru de Lacroix, autor de Dirio de Bucaramanga. LACROIX, Luis Peru de. Dirio de
Bucaramanga. Vida pblica y privada del Libertador Simon Bolvar. Madri: Editorial Amrica, 1924.
98
A historiografia colombiana e provavelmente tambm a venezuelana e a equatoriana classifica esses
personagens como membros ou aliados da ditadura militar do general Urdaneta, que derrubou o governo legal e
legtimo deixado por Bolvar em mos de civis; os golpistas tentaram convencer Bolvar a retomar o poder, mas
ele se recusou. Este pas se separa da Repblica de Colmbia em 1831, seguindo o que haviam feito a Venezuela
e Quito no ano anterior. O novo pas chamou-se Repblica de Nova Granada. O nome Colmbia s voltou a ser
usado, agora referido quela nao, a partir de 1863 (Estados Unidos de Colmbia) e, finalmente, Repblica de
Colmbia, em 1886.
207
O regresso capital do Imprio teve lugar ainda em 1832, quando logo iniciou suas
atividades polticas e intelectuais envolvendo-se nas disputas que se desenrolavam em funo
da organizao nacional. Abreu e Lima retornou ao Brasil em um momento de grande
agitao poltica e social, o chamado perodo regencial (1831-1840).99
A queda de D. Pedro foi causada pela insatisfao com os rumos centralistas e
autoritrios tomados pelo imperador. A situao levou diversos setores a contestar o reinado
vigente, o qual levou os conflitos imprensa, ao Parlamento, s sociedades secretas, aos
quartis, e tambm gerou presses populares na corte. Foi esse um perodo em que houve
considervel participao popular, com diversos levantes, revoltas autonomistas e provncias
se separando do imprio.100 Por vezes considerado pela historiografia como uma primeira
experincia republicana, tambm foi o momento de maior convulso social entre as partes
integrantes da antiga colnia portuguesa na Amrica. A caracterstica de instabilidade e os
conflitos levaram Jos Murilo de Carvalho a comparar o perodo regencial com o tumultuado
perodo que a Amrica hispnica sofreu entre 1810 e 1825.101
Nas disputas polticas na capital fluminense, organizou-se a aliana de dois grupos,
Exaltados e Moderados, que resultou relevante no processo que conduziu abdicao do
imperador, em 7 de abril. No entanto, as diferenas polticas apareceram no incio do novo
governo, pelo qual foi desfeita a associao e os moderados assumiram o poder na corte. Estes
ltimos, mais prximos s leituras de John Locke, Guizot e Benjamin Constant, buscavam
reformas mais limitadas, como a diminuio do poder do imperador, o estabelecimento de
maiores poderes aos deputados e a garantia do cumprimento de direitos civis previstos na
Constituio. Aqueles, por sua vez, estavam mais prximos de um liberalismo que pretendia
reformas polticas e sociais mais profundas, como a adopo de um regime republicano
federativo, o fim gradual da escravido e a promoo da cidadania poltica e civil aos
99
Sobre o perodo regencial, ver: WERNET, Augustin. O perodo Regencial (1831-1840). So Paulo: Histria
Popular, 1997. GUIMARES, Lcia Maria Paschoal, Liberalismo Moderado: postulados ideolgicos e prticas
polticas no perodo regencial (1831-1837), in GUIMARES, Lcia Maria Paschoal & PRADO, Maria Emlia
(orgs.). O liberalismo no Brasil Imperial: origens, conceitos e prticas. Rio de Janeiro: Revan, UERJ, 2001, pp.
103-126. BASILE, Marcelo, O laboratrio da nao: a era regencial (1831-1848), in GRINBERG, Keila;
SALLES, Ricardo. O Brasil Imperial. Vol. 2: 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2009, pp. 53-
119.
100
Entre as principais revoltas regenciais, podemos citar: a Setembrada, em 1831 no Maranho e Pernambuco; a
Cabanada em Pernambuco e Bahia no ano de 1832 a 1835; a Conspirao do Pao em 1833 na corte; as
Carneiradas de 1834 a 1835 tambm em Pernambuco; a Cabanagem no Par de 1835 a 1840; a Farroupilha de
1835 a 1840 no Rio Grande do Sul e Santa Catarina; a Sabinada entre 1837 e 1838 na Bahia e a Balaiada no
Maranho e Piau, de 1838 a 1841.
101
CARVALHO, Jos Murilo de (coord.). A construo nacional 1830-1889. Vol. 2. Rio de Janeiro: Objetiva,
2012, pp. 20-21.
208
102
BASILE, Marcelo, op. cit.
103
MOREL, Marcos, Restaurar, Fracionar e Regenerar a nao: o Partido Caramuru nos anos 30, in JANCS,
Istvn (org.). Brasil: Formao do Estado e da Nao. So Paulo: Hucitec; Ed. Uniju; Fapesp, 2003, pp. 407-
430.
104
Segundo Basile, em 1835 a composio poltica se deu incio, desfazendo-se os trs grupos para se dividirem
em dois, regressistas e progressistas, que se definiriam aps 1837. BASILE, Marcelo, op. cit., pp. 63-64.
105
Marcos Morel sustenta que a denominao restauradores fora dada pelo grupo poltico adversrio e estava
carregada de ideologia pertencente ao contexto dos conflitos polticos da dcada de 1830. Este denominao
passou a influenciar a historiografia brasileira, considerando que o grupo reivindicava o retorno do imperador
direo do Estado. MOREL, Marcos, op. cit.
106
MARTINS, Wilson. Histria da Inteligncia Brasileira. So Paulo, 3 ed., vol. II, 2001, pp. 201-203.
Segundo Wilson Martins, a poltica parlamentar no foi diferenciada quanto orientao poltica, pois houve
medidas conservadoras em governos liberais, e liberais em governos conservadores da dcada. Foram estes trs
grupos as bases para os futuros Partido Conservador, Partido Liberal e Partido Republicano.
107
A Torre de Babel citada em: SOUZA, Otvio Tarqunio de. Evaristo da Veiga. Companhia Editora
Nacional, Brasiliana, vol. 157, 1939, p. 216; SODR, Nelson Werneck. Histria da Imprensa no Brasil. 4 ed.
Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p. 123; ABREU E LIMA, J. I. Resposta do General J. I. de Abreu e Lima ao
Cnego Janurio da Cunha Barbosa ou Analyse do primeiro juzo de Francisco Adolpho Varnhagen acerca do
Compendio da Historia do Brazil, p. 25. Nesse livro, Abreu e Lima fala sobre o jornal e sua opo poltica pelo
retorno de Pedro I. O Jornal Torre de Babel era publicado por Abreu e Lima na Colmbia, pouco antes de sua
expulso.
209
imperador. A Sociedade era formada basicamente por militares,108 alguns deles antigos
companheiros seus da Academia Real Militar ou do regimento em que serviu na capital
fluminense. A instituio fora criada com o objetivo de combater a Sociedade Defensora da
Liberdade e Independncia Nacional.
Fundada em 1831 pela faco mais moderada, faziam parte dos criadores de A
Sociedade Defensora renomados personagens do jogo poltico, como Antnio Borges da
Fonseca (1808-1872), Evaristo da Veiga (1799-1837), Manuel Odorico Mendes (1799-1864)
e Limpo de Abreu (1798-1883). Em torno dela, organizou-se o ncleo dos moderados,
participantes dos ataques que tinham levado queda de Pedro I. Desse grupo, foi constitudo
o centro poltico que assumiria o poder, tornando-se a sustentao poltica da Regncia.109
Abreu e Lima, ao participar da Sociedade Conservadora, converteu-se em adversrio
poltico de importantes intelectuais, como o cnego Janurio da Cunha Barbosa (1780-1846),
na altura j um intelectual conhecido, a cuja produo pertencia o livro Parnaso Brasileiro,
ou Coleo das Melhores Poesias do Brasil, Tanto Inditas Como j Impressas, de 1829, que
elaborava um esboo de uma futura literatura nacional.110
Evaristo da Veiga, outro membro de A Sociedade Defensora, era um destacado
jornalista e ator poltico, com relevante liderana entre os liberais moderados que
argumentavam a favor de uma monarquia constitucional. Embora possussem
posicionamentos distintos no tocante figura do imperador, ambos haviam participado dos
movimentos que culminaram com o exlio de D. Pedro.
Nas disputas polticas daquele momento, Evaristo da Veiga foi um personagem
central, apesar de sua morte prematura em 1837. Inicialmente trabalhou com o pai como
livreiro, para depois fundar sua prpria livraria em 1827. A casa de livros do jornalista passou
a ser frequentada por diversos polticos e intelectuais de expresso, tornando-se um dos
lugares de sociabilidade na capital. Francisco Iglsias cita, entre os aliados e frequentadores
da livraria, nomes de relevo para a poltica do imprio, como Diogo Feij (1784-1843),
Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850), Sales Torres Homem (1812-1876), Tefilo
Otoni (1807-1869) e o ingls John Armitage (1807-1856).111
108
BUARQUE DE HOLANDA, Srgio. Histria geral da civilizao brasileira. O Brasil monrquico. Tomo II,
2 volume, 4 edio. Rio de Janeiro So Paulo: Difel, 1978, p. 26.
109
GUIMARES, Lcia Maria Paschoal, op. cit. pp. 109, 124-129.
110
MARTINS, Wilson, op. cit., pp. 175-176.
111
IGLSIAS, Francisco. Os historiadores do Brasil: captulos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira; Belo Horizonte: UFMG, IPEA, 2000, p. 57.
210
A diferena da maioria dos panfletos e peridicos da poca, que costumavam ter uma
vida breve, o jornal de Evaristo da Veiga, Aurora Fluminense, foi editado durante um perodo
relativamente longo, de dezembro de 1827 a dezembro de 1835.112 No entanto, Evaristo no
participava da vida poltica do imprio apenas como jornalista. Entre os anos de 1828 e 1836,
ocupou cargos polticos no Rio de Janeiro. Como representante da Provncia de Minas Gerais,
foi eleito para sucessivos mandatos como deputado na Assembleia Geral do Imprio. Wilson
Martins comenta a relao entre a atividade por meio da imprensa e a ao poltica,
ponderando que o jornalismo era ento simples prolongamento da atividade poltica,
carregado de personalismos e ofensas pessoais.113 Evaristo tambm foi o responsvel por
peridicos que divulgavam as ideias da Sociedade Defensora e por O Homem e a Amrica,
publicados entre 1831 e 1833.
Pouco tempo mais tarde de seu regresso ao Rio de Janeiro, quando Abreu e Lima se
aproximou do grupo dos caramurus, identificou Evaristo da Veiga como um dos seus
principais inimigos, conforme possvel acompanhar pela imprensa em 1833. O embate
poltico entre ambos foi veiculado publicamente pelos jornais A torre de Babel e Aurora
Fluminense.114 Segundo Fernanda Andrade, nas folhas de seu jornal, Abreu e Lima no
argumentava simplesmente pela volta de Pedro I, como era colocada a questo por seus
opositores e reforada pela historiografia nacional produzida posteriormente. De fato, o
pernambucano no considerava o imperador um tirano absolutista, pois lutava pela
manuteno da ordem monrquica e da famlia real no poder como forma essencial de dar
continuidade unidade territorial.115 A presena do sistema e de uma monarca era
considerado o modo de evitar uma possvel fragmentao da ex-colnia, hiptese cuja
concretizao havia presenciado Abreu e Lima na Gr Colmbia com o surgimento de
diversos Estados.116
112
Ibidem.
113
MARTINS, Wilson, op. cit., p. 128. Ver tambm SODR, Nelson Werneck, op. cit.
114
ANDRADE, Fernanda C. A medida da liberdade: a imprensa da corte no perodo regencial (1831-1833). Rio
de Janeiro. PUC-RIO, Departamento de Histria, 2006. Orientada por Ilmar Rohloff de Mattos. O objetivo dessa
dissertao abordar a discusso entre A torre de Babel e o Aurora Fluminense.
115
A morte prematura de D. Pedro, em setembro 1834, acabou com quaisquer intenes do regresso do
imperador ao trono brasileiro.
116
ABREU E LIMA, J. I., op. cit., p. 25. Respondendo s acusaes de Janurio da Cunha, Abreu e Lima
reconstri o passado sobre seu envolvimento com as ideias a respeito do regresso do Imperador da seguinte
maneira: Fui eu tambm o primeiro, que, em 1832, ao voltar minha ptria, horrorisado pelo cynismo, pela
impudencia com que se calumniava torpemente o Sr. D. Pedro I. de gloriosa memria, alcei a voz, e oppus uma
barreira de bronze contra semelhante torrente de iniqidade. Sim, Sr. Padre Janurio, eu fui o redactor da
TORRE DE BABEL; eu fui o primeiro que, depois do que chamais o vosso glorioso 7 de abril, gritei uma
faco immoral e comrrompida Parai e ella parou: eu fui o primeiro que gritei Ingratido infmia e o
povo me ouviu.
211
117
Para consultar sobre uma participao mais constante de Abreu e Lima na imprensa brasileira, ver: PAIM,
Leandro Burgallo. A nao como possibilidade: imprensa e manuais didticos na difuso da identidade
nacional no Brasil oitocentista. Universidade de So Paulo, Departamento de Histria, dissertao de mestrado,
2009. Orientada por Miriam Dolhnikoff.
118
BITTENCOURT, Feij. Os Fundadores. Rio de Janeiro: Instituto Histrico, Imprensa Nacional, 1938, p.
189. De acordo com Bittencourt, o acontecimento explicitado na pea envolvia as seguintes questes: uma
sedio militar que tenta se apoderar da Vila Real da Praia Grande. frente dos insurrectos est o general Abreu
e Lima, que pensa em repor o conselheiro Jos Bonifcio no alto cargo de tutor de Pedro II. Conseqncia: a
queda da Regncia e do ministrio. Propagar-se-ia ento por todas as provncias o sistema de Jacupe e de
Panelas, nico que podia realizar no Brasil a igualdade dos senhores de engenho e dos soldados.
119
ABREU E LIMA, J. I. Bosquejo histrico poltico e litterario do Brasil. Cidade de Nictheroy: Tipografia de
Rego e Comp., 1835.
212
CA DEMOCRTICA:
Seguida
De outra analyse de Projecto de Deputado RAFAEL
DE CARVALHO, sobre a separao da Igreja Bra-
sileira da SANTA SEDE APOSTLICA.
120
FREYRE, Gilberto. Um engenheiro francs no Brasil. 2 ed., Rio de Janeiro, 1960. CHACON, Vamireh.
Histria das Idias Socialistas no Brasil. Rio de Janeiro, 1965.
121
BOSI, Alfredo, Cultura, in CARVALHO, Jos Murilo de (coord.), op. cit., pp. 225-285.
213
embora no tenham sido veiculados exclusivamente pelos jornais citados, foram conhecidos
como a Polmica da Minerva Brasiliense, pertencendo aos primeiros movimentos dos anos
iniciais do romantismo no Brasil.122
Nelson Werneck Sodr traou uma linha em que apresenta o desenvolvimento do
incio da elaborao de uma historiografia e os primeiros esforos da construo da literatura
nacional, vinculados a uma perspectiva romntica. Nela, Abreu e Lima consta entre os
intelectuais pioneiros na formao da identidade nacional. Segundo a narrativa de Sodr, o
Brasil passava a desenvolver na poca uma histria literria e o esboo de crtica j surgiram
com o ensaio de Gonalves de Magalhes, prosseguindo com o trabalho de Abreu e Lima,
mas com Francisco de Adolfo de Varnhagen, na introduo ao Florilgio da Poesia
Brasileira que veem a luz as letras brasileiras.123
Ainda acompanhando Sodr, quando cita Silvio Romero sobre a relao da imprensa
com as novas influncias literrias:
122
COUTINHO, Afrnio, Os problemas da nacionalidade e originalidade da Literatura Brasileira, in Revista
Iberoamericana vol. XXXIV, n. 65, janeiro-abril 1968.
123
SODR, Nelson Werneck. Histria da Literatura Brasileira. 3 ed., Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1960, p.
210.
124
Idem, p. 211. A obra que Sodr indica : ROMERO, Silvio. Histria da Literatura Brasileira, 5 Ed., 5 vols.,
Rio de Janeiro, 1954, p. 865, III.
214
Lima.125 Na condio de scio honorrio, estava Abreu e Lima envolvido nos primeiros
esforos de construir uma histria para a nao, atividade que abordou com a proposta de
elaborar uma periodizao para a incipiente historiografia brasileira fomentada pelo Instituto.
Conforme mencionado, Abreu e Lima comeou a participar do IHGB em 1839 como
Membro Honorrio, convidado pela instituio. O convite foi relatado por Abreu e Lima da
seguinte maneira:
130
Minerva Brasiliense, n. 2, de 15 de novembro de 1843, in ROMERO, Slvio. Histria da Literatura
brasileira. 5 volume, Rio de Janeiro: J. Olympio; Braslia, 1980, p. 1604.
131
Idem.
132
ABREU E LIMA, J. I. Compendio da Historia do Brazil, desde o seu descobrimento at o magestoso acto da
coroao e sagrao no Sr. D. Pedro II. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1843b. Edio em um
volume.
133
Bellegarde nasceu em Portugal em 1802 e veio para o Brasil na migrao portuguesa de 1808. Serviu na
Academia Real Militar no Rio de Janeiro. A servio do governo brasileiro, foi Europa em 1825. Em Portugal
se graduou em engenharia e geografia. No Rio de Janeiro, Bellegarde trabalhava como responsvel das obras de
engenharia, pontes e canais.
216
da Histria do Brasil, at, em 1862, ser substitudo por Lies de Historia do Brazil para uso
dos alunos do Imperial Colgio Pedro II, de Joaquim Manoel de Macedo, professor do
Colgio e tambm membro do IHGB.134
Apesar do sucesso posterior de seu manual nos colgios do imprio, em 1844 o
episodio junto ao IHGB levou Abreu e Lima a pedir seu desligamento da instituio. No
mesmo ano retornou ao Recife, onde continuou suas atividades polticas e intelectuais. Havia
j algum tempo mostrava seu interesse em retornar provncia e participar junto de seus
irmos da vida poltica local, e tinha chegado o momento.
Abreu e Lima morou na capital do imprio entre os anos de 1832 a 1844, quando
decidiu voltar a Recife e se afastar da poltica exercida na corte, ocupando-se mais da poltica
pernambucana. Na capital de sua provncia natal, assim como fizera das outras vezes, se
dedicou a atividades jornalsticas e aos debates polticos. Viveu na cidade at seu falecimento
em 1869, sem se afastar da vida pblica.
No retorno a Recife, em 12 de junho de 1844, Abreu e Lima no teve dificuldades em
entrar na vida poltica, uma vez que tinha como aliados seus irmos e antigos companheiros
do Seminrio de Olinda e de seu pai. Regressara tambm em razo de sua vontade de
participar do processo eleitoral para a composio da Cmara. Assim, nas eleies daquele
ano candidatou-se ao cargo de deputado geral pela sua provncia natal, juntamente com seu
irmo Lus Roma, que concorria como candidato a deputado de provncia. Obteve uma
votao pouco expressiva, ficando em ltimo lugar no pleito. Com esse baixssimo resultado,
os laos de Abreu e Lima com os liberais locais ficaram enfraquecidos, j que eles haviam
desenhado um cenrio eleitoral distinto daquele que se concretizou.
Mesmo descontente com o julgamento negativo sua obra pelo IHGB, Abreu e Lima
no se afastou do campo historiogrfico. Sua produo relacionada histria do Brasil
continuou durante os anos seguintes, com a publicao de obras que provavelmente devem ter
sido iniciadas ainda durante sua participao no Instituto. Em 1845 editou um trabalho
134
GASPARELLO, Arlete Medeiros, Historiografia didtica e pesquisa no ensino de Histria, X Encontro
Regional de Histria ANPUH. Histria e Biografias. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, 2002. Disponvel em: http://www.rj.anpuh.org/conteudo/view?ID_CONTEUDO=312 (acessado em
10/11/2012). MATTOS, Selma Rinaldi de. Para formar os brasileiros: o compndio da histria do Brasil de
Abreu e Lima e a expanso para dentro do Imprio do Brasil. So Paulo. Universidade de So Paulo. Faculdade
de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Letras Clssicas e Vernculas. Tese de doutorado,
2007.
217
semelhante ao Compendio, porm mais descritivo, preocupado com datas e de carter factual,
intitulado Sinopse ou Deduo Cronolgica dos Fatos mais Notveis da Histria do Brasil.135
Em 1846, surgiu um novo trabalho, Histria Universal, que um estudo que uma linha
histrica de desenvolvimento da antiguidade at a era moderna.136
Desde o Rio de Janeiro, Abreu e Lima estava em contato com os liberais de
Pernambuco, dos que fazia parte seu irmo Lus Incio Ribeiro Roma, alm de destacados
protagonistas dos acontecimentos polticos da dcada de 1840, como Urbano Sabino Pessoa
de Melo e Nunes Machado. Lus Ribeiro estava envolvido diretamente com o grupo praieiro.
Era o proprietrio e editor do Dirio Novo,137 peridico que foi marcado pela presena do seu
irmo j no ano do retorno ao Recife. O jornal foi de grande importncia ideolgica ao
movimento de 1848, fazendo oposio ao veculo ideolgico conservador Dirio de
Pernambuco.
No ano de 1848, segundo Pierre-Luc Abramson, movimentos sociais, com influncia
da Primavera dos Povos surgida na Europa, se espalharam por todo o continente ibero-
americano, transformando-se em uma revoluo atlntica. No entanto, Abramson no
considera que os movimentos tenham sido iguais em ambas as margens do oceano; as
condies sociais encontradas eram distintas e produziram questes diferentes. Assim:
135
ABREU E LIMA, J. I. Sinopse ou deduco chronologica dos factos mais notveis da histria do Brasil.
Pernambuco: na Typ. M. F. de Faria, 1845.
136
ABREU E LIMA, J. I. Histria Universal. Rio de Janeiro: Laemmert, 1846.
137
A localizao do Dirio Novo na Rua da Praia deu nome revoluo de 1848.
138
ABRAMSON, Pierre-Luc. Las utopas sociales en Amrica Latina en el siglo XIX. Mxico: Fondo de Cultura
Econmica, 1999, p. 78.
218
139
CHACON, Vamireh, op. cit.
140
FREYRE, Gilberto, op. cit.
141
O pseudnimo de Figueiredo se explica pelo fato de ser mulato e ter traduzido o Cours dhistoire de la
Philosophie, de Victor Cousin, para a lngua portuguesa em 1843.
142
ABRAMSON, Pierre-Luc, op. cit., pp. 166-169. QUINTAS, Amaro. O sentido social da Revoluo Praieira.
Recife: Massangana, 1982, p. 98.
143
MOREIRA, Aluizio Franco. As polticas e outras idias de dois Quarante-huitards pernambucanos (Abreu
e Lima e Antnio Pedro Figueiredo). Recife: Universidade Federal de Pernambuco. Departamento de Histria.
Centro de Filosofia e Cincias Humanas. Dissertao de Mestrado, 1986. Orientador: Prof. Dr. Antonio Paulo de
Moraes Rezende.
219
talvez da opposio, em cujo subttulo apresenta uma amostra interessante sobre as crenas e
alianas polticas de Abreu e Lima. Abaixo do ttulo encontramos os seguintes dizeres:
Esse peridico foi produzido em Recife entre maio e outubro de 1848, e foi apontado
por Quintas como um dos peridicos mais srios e doutrinrios do seu tempo.145 Publicou
tambm um livro com influncias dessas teorias, sob o ttulo sugestivo de A Cartilha do
Povo.146
No entanto, no ficou apenas no campo revolucionrio das ideias e tomou parte dos
tumultos polticos registrados poca em sua provncia natal. Participou dos movimentos que
levaram ecloso da Revoluo Praieira (1848-1850). Esteve ainda envolvido na redao e
publicao do Dirio Novo, sobretudo com a morte de seu irmo, ferido em 1848. A
revoluo em Pernambuco aconteceu por diversos fatores de cunho poltico e social. Entre os
fatores polticos estava o afastamento do liberal Presidente da Provncia, Antnio Pinto
Chichorro da Gama (1800-1887), por D. Pedro II, que empossou a seguir o ex-regente Arajo
Lima, ligado aos setores conservadores de Pernambuco. A Revoluo Praieira teve tambm
uma forte participao de base popular, que pedia o sufrgio universal e apresentava uma
grande influncia das ideias socialistas que chegavam ao continente. Amaro Quintas,
refletindo sobre os motivos que levaram revoluo, considera que a Praieira foi mais uma
resultante desse estado de desequilbrio econmico-social, dessa insatisfao existente no
meio da massa, do que mesmo um movimento provocado por causas meramente polticas.147
Com a derrota do movimento, Abreu e Lima foi preso, condenado como cabea de
rebelio priso perptua e enviado para a ilha de Fernando de Noronha. Em agosto de
1849, apresentou recurso ao julgamento e foi absolvido em junho de 1850. O fato de ter sido
inocentado se deu por o jri entender que seu envolvimento ocorrera apenas pela atuao nos
jornais Dirio Novo e A Barca de So Pedro, no havendo ele participado dos levantes
144
ABREU E LIMA, J. I. A Barca de So Pedro, n. 01, 25 de maio de 1848. Todos os nmeros esto
disponveis para consulta no sitio do Instituto Abreu e Lima. Disponvel em:
<http://www.institutoabreuelima.com.br/wp-content/uploads/2011/04/A-Barca-de-S%C3%A3o-Pedro-25-de-
Maio-de-1848.pdf> (acessado em 08/12/2012).
145
QUINTAS, Amaro, op. cit., p. 115.
146
ABREU E LIMA, J. I. A Cartilha do Povo. Pernambuco, na Typ. da Viva Roma & Filhos. 1849.
147
QUINTAS, Amaro, op. cit., p. 30.
220
148
ABREU E LIMA, J. I., Apontamentos sobre a Ilha de Fernando de Noronha, in Revista do Instituto
Archeolgico Geogrfico Pernambucano, no. 38, [1857] 1890.
149
ABREU E LIMA, J. I. O Socialismo. Recife: Typographia Universal, 1855.
150
ABRAMSON, Pierre-Luc, op. cit., pp. 160, 164.
151
CHACON, Vamireh. Abreu e Lima: general de Bolvar, p. 210. Sobre Abreu e Lima e o socialismo, ver
SOBRINHO, Barbosa Lima, Prefcio, in ABREU E LIMA, J. I. O Socialismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1979.
152
ABREU E LIMA, J. I., Trabalho do Exmo. Sr. General Jos Ignacio de Abreu e Lima, in BANDEIRA,
Antonio Herculano de Souza. Reforma Eleitoral. Eleio Direta. Recife: Typographia Universal, 1862.
221
dos christos.153 Essa peleja levou proibio pela igreja de Abreu e Lima ser sepultado em
solo catlico. Seu corpo foi recebido pelo Cemitrio dos Ingleses em 1869.154
Este foi Abreu e Lima: um personagem de biografia romanesca e um intelectual
engajado na construo da nao brasileira, contribuindo e circulando com suas ideias pelos
campos do romantismo e socialismo de meados do sculo XIX. Sua produo no passou
despercebida e diversos autores renomados da literatura e da historiografia brasileiras tm
destacado a qualidade de suas obras. Entre esses estudiosos encontram-se Slvio Romero,
Otvio Tarqunio de Souza, Nelson Werneck Sodr, Gilberto Freyre, Honrio Rodrigues,
Barbosa Lima Sobrinho e Carlos Guilherme Mota. Esses seus comentaristas consideram que a
produo intelectual do pernambucano apresenta qualidade considervel e que deveria ser
melhor explorada. na inteno de contribuir para a ampliao desses estudos que nos
debruamos neste trabalho sobre o pensamento de Abreu e Lima.
153
ABREU E LIMA, J. I. As Bblias falsificadas ou duas respostas ao Sr. Cnego Joaquim Pinto de Campos.
Recife, typ. Comercial, 1867. ABREU E LIMA, J. I. O Deus dos judeos e o Deus dos christos. Pernambuco, na
Typ. Commercial, 1867.
154
Sobre o conflito, ver: FILHO, Andrade Lima; PEREIRA, Nilo. O Bispo e o General. Recife: Editora
Universitria, 1975.
155
Existe uma grande quantidade de estudos biogrficos sobre Andrs Bello. Citando apenas estudiosos
venezuelanos interessados em Bello, Jos Ramos indica que: [e]n Venezuela esa bibliografa cuenta con
nombres como los de Arstides Rojas, Luis Correa, Edoardo Crema, Fernando Paz Castillo, Mario Briceo-
Iragorry, Mariano Picn Salas, Angel Rosenblat, Pedro Pablo Barnola, Arturo Uslar Pietri, Rafael Caldera,
Pedro Grases, Oscar Sambrano Urdaneta, entre otros. RAMOS, Jos (org.), Andrs Bello: anotaciones para
una potica del paraso perdido, in BELLO, Andrs. Antologa Esencial. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2011,
p. VII. Para a comemorao do bicentenrio de nascimento de Bello, uma equipe internacional produziu um
relevante material sobre o venezuelano. Durante quatro anos, reunidos em congressos anuais, estes
pesquisadores produziram uma coleo organizada em: Bello y Caracas (1979); Bello y Londres (1980-81), 2
tomos; Bello y Chile (1981), 2 tomos, e Bello y Amrica Latina (1982), publicados pela Fundacin La Casa de
Bello.
222
General de Venezuela. Sua me, Ana Antonia Lpez, a despeito de no haver ocupado cargos
ou escrito obras, esteve muito presente na vida do filho, mesmo com a distncia fsica.156
Bello residiu em Caracas at 1810, cidade onde, desde 1802, exercia certa influncia
intelectual e poltica. Logo no incio do processo de independncia, partiu para Londres junto
a Simn Bolvar e Luis Lpez Mndez em busca de apoio ingls revoluo americana.
Permaneceu na capital inglesa at 1829, onde deu continuidade sua vasta formao
intelectual.
Aps 19 anos na Inglaterra, dirigiu-se em 1829 ao Chile, onde viveu at o ano de sua
morte, em 1865. Ocupou posies importantes no governo desse pas e impulsionou o
desenvolvimento das instituies educacionais. Alm de pensar a Universidade do Chile em
1842, marcou presena em diversos campos do saber, como a literatura, gramtica, direito,
lingustica, cincias naturais e histria. Influenciou a historiografia local ao institucionalizar a
Histria como um campo universitrio, caracterizado pelo liberalismo como ideologia e pelo
positivismo como mtodo. Marcados pela formao oferecida pela instituio, da saram
relevantes historiadores chilenos, antes citados, como Benjamn Vicua Mackenna, Diego
Barros Arana e Miguel Luis Amuntegui.
Bello est ligado fortemente ao estudo das lnguas, em especial o espanhol. Debateu a
questo lingustica relacionada identidade americana e ao uso padronizado, temas sobre os
quais editou trabalhos como Gramtica de la lengua castellana destinada al uso de los
americanos, de 1847. Produziu igualmente importantes obras jurdicas, como, em 1832,
Principios de derecho de jentes e o Cdigo Civil, adotado em 1857. H ainda outra grande
preocupao de Bello, a educao, exposta no Discurso de inauguracin de D. Andrs Bello,
rector, Santiago de Chile, pronunciado em 1842. Na rea da literatura, encontramos o
Compendio de la historia de la literatura e Opsculos literarios y crticos, publicados en
diversos peridicos desde el ao 1834 hasta 1849, lanados em 1850.
Dos trs personagens escolhidos neste trabalho, Bello constitui aquele que dispe da
maior produo intelectual o de maior presena continental, como tambm o mais estudado.
Desde o sculo XIX, na Amrica e na Europa, porm principalmente na Venezuela e no
Chile, apareceram diversos trabalhos sobre sua biografia e sua produo acadmica. Recebeu
reconhecimento como intelectual ainda em vida, sobretudo em sua etapa chilena. Depois de
156
Para acompanhar a biografia de Bello, indicamos AMUNTEGUI, Miguel Luis. Vida de don Andrs Bello.
Santiago de Chile: Impreso por Pedro G. Ramirez, 1882. CALDERA, Rafael. Andrs Bello. Caracas: Editorial
Dimensiones, [1935] 1981. JAKSIC. Ivn A. Andrs Bello: La pasin por el orden. Santiago de Chile:
Universitaria, 2010.
223
sua morte, sua biografia e obra entraram como assunto central para a histria das ideias no
continente. Na srie dos principais elementos de reconhecimento de sua contribuio,
encontra-se a biografia Vida de Don Andrs Bello, surgida em 1882 das mos do historiador
Miguel Luis Amuntegui.157 Um ano antes, tambm no Chile, comeara a publicao das
Obras Completas de don Andrs Bello, cujos 15 volumes terminaram de ser editados em
1893.158
Andrs Bello viveu por 29 anos em Caracas, onde iniciou seus estudos at completar a
formao de bacharel. Esse foi o local onde comearam, ainda, sua vida profissional e seu
envolvimento com a poltica, embora se dedicasse menos a essa ltima do que quela. Os
anos de Caracas so considerados anos de formao, de uma vida tranquila e de saudosas
recordaes. Durante o tempo que permaneceu no exlio, no deixou de manifestar o afeto por
sua terra natal, sobretudo em cartas e poemas que o acompanharam at seus derradeiros dias
no Chile.
A inteligncia de Bello foi ressaltada por seus contemporneos e bigrafos, que
enfatizaram o surgimento precoce desse trao de sua personalidade j em sua infncia. Em
Caracas, frequentou por anos a biblioteca do convento de La Merced, onde aprendeu
gramtica, latim e literatura, reservando ateno aos clssicos latinos, especialmente Horcio
e Virglio. Na instituio eclesistica, seguiu seus estudos at 1796, quando deixou o
convento, aps a morte de seu educador, frei Cristbal de Quesada. Na ocasio do
falecimento do frade, dedicava-se ao estudo do Latim, preparando em colaborao com o
religioso a traduo do livro V da Eneida.
No ano seguinte, iniciou sua formao superior na Real y Pontificia Universidad de
Caracas, em plena poca de transio dos contedos educacionais. Apesar da reforma
pedaggica empreendida por Carlos III nas universidades americanas, com uma renovao
157
AMUNTEGUI, Miguel Luis, op. cit. Em 1854, Amuntegui, em parceria com seu irmo, havia publicado
um primeiro esboo sobre a biografia de Bello.
158
BELLO, Andrs. Obras completas de don Andrs Bello. Santiago de Chile, 1881-1893 (15 volumes).
BELLO, Andrs. Obras completas. Segunda edio. Santiago: Universidad de Chile, 1930-1935 (9 tomos,
inacabada). Na Venezuela foram publicadas: BELLO, Andrs. Obras completas. Caracas: Ministrio da
Educao, 1951-1981 (24 volumes). BELLO, Andrs. Obras completas. Fundacin La Casa de Bello. Caracas,
1981-1984 (26 volumes). Para acompanhar uma produo detalhada sobre a vida e obra de Bello ver o prlogo
de Ivn Jaksic: JAKSIC, Ivn A., op. cit.
224
antiescolstica,159 a fora da herana de tantos anos seguira presente. Na poca de Bello, essa
ao modernizante fora, ainda, mais lenta e pouco eficaz no avano de uma nova literatura e
de disciplinas de cincias. A Universidade de Caracas manteve o ensino de influncia
clssica, com a presena notvel de disciplinas como a Filosofia, a Teologia e o Direito, sem
deixar de acompanhar o movimento de modernizao. Alm de matrias de reas das
humanidades, Bello estudou Lgica, Aritmtica, lgebra e Geometria, como disciplinas
preparatrias para as aulas de Fsica Experimental, campo no qual se destacou e em que
recebeu dois prmios.160 Ganhou tambm destaque em outras reas. Obteve, assim, o prmio
de traduo latina, no curso de Retrica em 1796, e o prmio de Ortografia em um concurso
pblico em 1797. No ano seguinte, resultou vencedor ao prmio de Filosofia Natural.161
Concomitantemente dedicou-se aos estudos de lnguas, iniciados pelo francs e, a
seguir, pelo ingls. Fez a leitura no idioma original de obras de autores eminentes como
Descartes, Leibniz, Berkeley, Locke e Condillac. Em relao aos dois ltimos autores, Bello
abordou mais de perto suas obras. Em concreto, traduziu An Essay Concerning Human
Understanding, de John Locke, e defendeu em 1800 a tese Slo el anlisis tiene eficacia para
producir ideas claras y exactas,162 baseada nas ideias de Condillac.
Foi durante os anos de estudo na universidade que entrou em contato com a prtica
pedaggica. Nesse tempo, trabalhou ministrando aulas particulares. Um dos seus alunos,
Simn Bolvar, dois anos mais jovem que Bello, recebeu aulas de Literatura e Geografia entre
1797 e 1799, quando o futuro Libertador se trasladou Europa com o fim de completar seus
estudos. Muitos anos mais tarde, em 1829, no incio da construo dos novos Estados, Bolvar
lembrava Bello em carta: Yo conozco la superioridad de este caraqueo contemporneo
mo: fue mi maestro cuando tenamos la misma edad; y yo le amaba con respeto.163
Em 1800, Bello graduou-se como bacharel em Artes, conquistando certo prestgio
entre colegas e professores. Aps formar-se, matriculou-se no curso de Direito, que
posteriormente abandonou para ingressar nos estudos em Medicina. Porm, no houve como
prosseguir com esse ltimo curso, a cuja concluso precisou renunciar. Entretanto, o fato mais
significativo para Bello nessa poca remete para o contato direto com a produo de
conhecimento, onde as novas cincias formavam o corpo terico-metodolgico que entravam
159
Sobre a escolstica, ver captulo II.
160
APONTE, Isaas Garca. Andrs Bello. Contribucin al estudio de la historia de las ideas en Amrica.
Panam: Universidad de Panam, 1964, p. 34.
161
JAKSIC, Ivn, op, cit., p. 39.
162
O ttulo original em latim Vim habet sola analysis claras exactasque ideas gignendi.
163
BOLVAR, Simn, Carta de Bolvar a Fernndez Madri, Quito, em 27 de abril de 1829, in Cartas del
Libertador, tomo VII, Venezuela, 1969, pp. 127-128.
225
164
Em uma expedio ao monte vila, ao norte de Caracas, Bello, que era integrante da explorao, no
conseguiu finalizar a escalada. Talvez por isso Humboldt tenha sugerido aos pais que o jovem estudasse menos e
cuidasse mais da sade.
165
Segundo Jaksic, Bello escreveu e traduziu cerca de 70 poemas, 10 deles produzidos na Venezuela. JAKSIC,
Ivn A., op. cit., p. 53. Em Caracas, faziam parte da vida cultural das elites encontros promovidos por anfitries
entre seus pares. Bello participou dos sales na casa dos Uztriz e de Bolvar aps seu regresso da Europa, onde
o primeiro dos trs provavelmente proclamava seus escritos neoclssicos.
166
JAKSIC, Ivn A., op. cit., p. 43.
226
meio de uma misso cientfica nomeada pelo rei Carlos IV. A imunizao da populao
contra varola teve forte impacto social e poltico, ressoando como positivo para o governo e
para Bello. O avano anual da campanha resultou considervel. O nmero de pessoas
vacinadas aumentou de 25.000, no primeiro ano, para 104.700, em 1808. Bello, no final do
ano seguinte, foi nomeado Oficial Mayor da Capitania Geral da Venezuela.
Diferentemente do que aconteceu em importantes centros administrativos e
comerciais, como o Mxico ou Lima, Capitania Geral da Venezuela a imprensa chegou
apenas no incio do sculo XIX. Em 24 de outubro de 1808 circulou o primeiro nmero do
jornal La Gaceta de Caracas, considerado o primeiro peridico impresso nesse territrio.
Nele, correspondeu a Bello o papel de redator desde o primeiro nmero at sua partida para a
Inglaterra.167 De acordo com Jaksic, durante os dezoito meses que esteve frente da redao
do jornal, o posicionamento da publicao era antinapolenico e leal ao reinado de Fernando
VII.168
A situao se modificou com o avano e ampliao das lutas que se iniciaram na
pennsula ibrica e que se estenderam Amrica. Entre 1810 e 1812, a Venezuela alcanou
um lugar central de difuso das ideias de independncia. Surgiram diversos peridicos, com o
objetivo de informar sobre os acontecimentos peninsulares, como El Semanario de Caracas,
publicado entre 1810 e 1811, ou o Patriota de Venezuela, promovido pela Sociedad
Patritica e um dos primeiros peridicos patriticos.169 Concretizou-se tambm a ideia de
lanar uma revista mais voltada para o interesse cientfico e cultural, com campos para
cincias naturais, literatura, teatro, histria e geografia da Venezuela. Podemos recordar
tambm o projeto da revista El Lucero, organizada por Bello e Francisco Iznardi, que, no
entanto, no avanou alm do prospecto. Na biografia daquele, aparece tambm como sob sua
responsabilidade a publicao do primeiro livro impresso no pas, Calendario manual y gua
universal de forasteros en Venezuela para el ao de 1810, em suas 64 pginas constava um
Resumen de la historia de Venezuela.
A sorte de Bello enveredou a partir de ento por um caminho que causaria forte
impacto em sua vida e que o levaria a assumir responsabilidades polticas no exterior. Em 15
de julho de 1808, com a chegada oficial das notcias sobre os avanos das tropas de Napoleo
e a renncia de Carlos IV, que deu lugar a Jos Bonaparte, foi convocada uma assembleia em
167
As primeiras informaes sobre os acontecimentos na pennsula ibrica chegaram a Caracas em julho de
1808, com dois exemplares do Times de Londres enviados ao capito geral Juan de Casas, que os passou para
Bello traduzir.
168
JAKSIC, Ivn A., op. cit., p. 49.
169
APONTE, Isaias, op. cit., pp. 40-41.
227
A maior parte de sua vida, Bello permaneceu distante de seu lugar de nascimento,
onde residiu apenas os primeiros 30 anos. A pecha de exilado, que o acompanhou na
Inglaterra e no Chile e se fez presente em sua obra potica, levou Arturo Uslar-Pietri (1906-
2001) a oferecer uma leitura na qual adjetivava o nome do caraquenho de Andrs Bello, El
desterrado.172
Os 19 anos vividos na Gr Bretanha resultaram essenciais para sua formao
intelectual por ter colocado Bello em contato com intelectuais da Europa e de outras regies
da Amrica.173 Nos incios da estadia na Inglaterra, hospedados por Francisco Miranda, o trio
acima mencionado Bello, Bolvar e Lpez Mndez travou contatos com diversos
intelectuais e polticos. A casa de Miranda havia se tornado uma espcie de quartel general de
patriotas, inclusive aps ele ter-se dirigido a Caracas em 1810. Foi l que Bello conheceu o
militar argentino Jos de San Martn, particpe da maonaria inglesa, e onde contribuiu para a
formao da loja manica Caballeros Racionales, de que tomou parte. Aproveitou tambm
para desfrutar das possibilidades que lhe oferecia a bem conceituada biblioteca de Miranda.
170
Bello era contra o rompimento com o Imprio Espanhol, deixando de ser favorvel manuteno da
integridade no incio da dcada de 1820. Nesta poca, era tambm favorvel a uma monarquia constitucional
como forma de governo para os novos Estados americanos.
171
Bello conheceu Miranda em 1810 em Londres e foi um defensor de seu comprometimento com a
independncia. Um dos motivos do distanciamento entre Bello e Bolvar foram as opinies divergentes sobre
Miranda.
172
USLAR-PIETRI, Arturo, Andrs Bello, El desterrado, in ZEA, Leopoldo (comp.). Ideas en torno de
Latinoamrica. Volume II, Mxico: Universidad Nacional Autnoma de Mxico, 1986, pp. 890-900.
173
ZUBIRA, Ramn, Presencia y vigencia de don Andrs Bello, in Thesaurus. Tomo XXXVII n. 1 (Janeiro-
abril), 1982.
228
Apesar dos ganhos intelectuais conseguidos nos primeiros anos em que representou a
Junta Patritica na Europa, a poca de Londres considerada pela historiografia como um
tempo de dias difceis. As privaes financeiras iniciaram-se ainda em 1810 e tornaram-se
mais severas com o retrocesso sofrido pelos patriotas e com o avano realista em 1812. A
perda de poder fez os emissrios patriotas no mais serem reconhecidos em Londres como
representantes de um Estado em formao. Em 1813, frente ao fracasso da Primeira Repblica
estabelecida em Caracas, Bello solicitou s autoridades espanholas que o inclussem dentro da
anistia geral, pensando em regressar para a Venezuela ou em trasladar-se para outra regio da
Amrica espanhola.
A situao financeira de Bello, que no era confortvel, se agravou aps o casamento
em 1814 com a inglesa Mary Ann Boyland (1794-1821). As dificuldades tornaram-se mais
agudas com o nascimento dos filhos, o primeiro deles ocorrido em 1815.174 Em agosto desse
mesmo ano, por causa das restries econmicas que vinha sofrendo em Londres, dirigiu-se
ao governo de Cundinamarca com um pedido de ajuda para viajar Bogot. No entanto, a
carta no chegou ao destino. Antes de receber alguma resposta, Bello buscou apoio nas
Provincias Unidas del Ro de la Plata, solicitando que fosse mantida uma ajuda financeira
que lhe havia sido concedida em 1814, em considerao ao trabalho prestado quele Estado
em Londres. Requisitou tambm permisso para viajar a Buenos Aires, pedido esse que foi
rapidamente contemplado pelo governo do Ro de la Plata.
Aps recorrer a seus contatos, conseguiu uma ajuda monetria do governo britnico.
Porm, Bello sabia que era passageira e que precisava obter formas de sustentar a famlia. Na
ausncia de um emprego que lhe remunerasse o suficiente, trabalhou auxiliando trabalhos
intelectuais, como aconteceu em 1815 e 1816, quando ajudou seu compatriota Manuel Palacio
Fajardo a organizar um livro sobre os acontecimentos da independncia, publicado em
Londres sob o ttulo Outline of the Revolution in Spanish America, no ano de 1817. Ofereceu
seus servios tambm ao neogranadino Jos Mara del Real, em seus assuntos de
representao de Nova Gramada. Nesse ano conseguiu, via Jos Mara Fagoaga, um mexicano
exilado na Inglaterra, o encargo da British and Foreing Bible Society, que havia solicitado
uma reviso de uma traduo para o espanhol da Bblia.175
174
A vida particular de Bello, no tocante famlia, foi marcada pela tristeza de diversas perdas. Sua primeira
esposa, Mary Ann, com quem teve trs filhos, faleceu jovem, em 1821. Seus filhos foram Carlos Eusebio
Florencio (Londres, 1815- Santiago, 1854), Francisco Jos Manuel (Londres, 1817 Santiago, 1845) e Juan
Pablo Antonio (1820, Londres 1821, Londres). Ver: JAKSIC, Istvn, op. cit., p. 291.
175
Sobre os exilados hispano-americanos em Londres ver: MARTINEZ, Manuel Ortuo, Hispanoamericanos
em Londres a comienzos del siglo XIX, in Espacio, Tiempo Y Forma, Serie V, Historia Contempornea, 1999,
229
Ministrar aulas foi outra das solues que Bello encontrou para enfrentar os percalos
financeiros. Em outubro de 1816, por interveno de seu amigo espanhol-irlands Juan Mara
Blanco White, frequentador do crculo liberal londrino, recebeu o pagamento por haver sido
preceptor dos filhos de William Richard Hamilton, que ocupava o cargo de Indian Secretary
of State. Em funo do pagamento, Bello melhorou provisoriamente sua condio na
Inglaterra, enquanto buscava regressar a terras americanas. Perante a precariedade da
situao, Bello apresentou ao governo britnico, e seu pedido foi logo atendido, uma
requisio solicitando apoio para manter-se na Inglaterra.
Mesmo com dificuldades financeiras, Bello manteve a disciplina dos estudos e
procurou aproveitar o que o pas lhe oferecia. Em 1816 comeou a frequentar a Biblioteca do
Museu Britnico, onde iniciou diversas pesquisas, como o estudo sobre o Cantar del Mio Cid,
que comeou em 1817 e que viria a resultar o mais destacado dentro da sua produo
filolgica. Nessa biblioteca conheceu o filsofo James Mill, famoso na poca. Atravs dele,
teve acesso aos escritos de Jeremy Bentham e conheceu, ainda criana, John Stuart Mill.
James Mill encarregou Bello de decifrar os manuscritos de Jeremy Bentham, os quais eram
quase ininteligveis.
Foi durante os anos que frequentou o Museu Britnico que Bello estudou com
profundidade a evoluo das lnguas romnicas e a histria da lngua castelhana. De acordo
com Jaksic, os estudos de Bello nesse tempo formaram a base de sua produo em filologia,
literatura e gramtica, como tambm em direito civil, histria e filosofia. Seus escritos da
poca de pesquisas na biblioteca do museu se publicaram, em sua maioria, postumamente.
As primeiras obras da juventude de Bello foram concebidas antes das revolues do
incio do sculo XIX, baseadas no pensamento ingls e francs do sculo XVIII. Entretanto,
Bello se manteria atualizado quanto s mudanas ideolgicas e paradigmticas que vieram
com o sculo XIX. Levando em conta essa formao, Aponte afirma que Bello pode ser
considerado como a ltima sntese importante do pensamento entre as luzes do fim das
colnias e a ascenso do pensamento burgus do comeo das naes. O classicismo dos
primeiros escritos de Bello no se estagnou ao ir sendo misturado, pouco a pouco, com novas
leituras.176
A educao, como j se viu, fez parte do elenco dos temas de interesse de Bello. Em
setembro de 1820, escreveu uma carta em resposta a Antonio Jos de Irisarri, encarregado da
delegao chilena em 1820 e que logo se transformaria em amigo pessoal, indagando sobre a
possibilidade de aplicar o mtodo Bell ou Lancaster, com os quais concordava, mas com
crticas, para difundir a educao no Chile.177 A carta de Bello trazia ao amigo as seguintes
colocaes:
Por el mtodo indicado, en cada ciudad pueden establecer dos o tres escuelas
con una capacidad de 150 a 200 alumnos, y en el supuesto que la enseanza
durase un ao, tendremos que dos escuelas pueden dar 300 o 400 nios que
sepan leer, escribir y contar; tres establecimientos de esta naturaleza con una
dotacin de 150 muchachos, daran 450, lo que en cinco aos significara
2.250. [] Para no dar demasiada extensin a esta carta, citar el principal y
del cual se desprenden todos los dems: los monitores, como se llama a los
estudiantes ms preparados y encargados de esear a sus condiscpulos, no
estn ni pueden estar preparados para instuirlos; lo que saben, fuera de saber
leer, escribir y contar, lo entienden mal o lo comprenden muy
deficientemente. La enseanza en este caso queda confiada a la memoria de
los mismos monitores que repiten imperfectamente lo que han odo, con lo
cual, lejos de avanzar hacia el desarrollo del espritu de crtica de los
jvenes, este sistema, procedimiento o plan, lo dificulta por todo extremo.178
177
Ver: SANTOS, Eduardo; WEINBERG, Gregrio (orgs). Andrs Bello. Recife: Fundao Joaquim Nabuco,
2010.
178
Carta de Bello a Irisarri em 11 de setembro de 1820, in Obras Completas de Andrs Bello. Tomo XXII
[Temas educacionales 2], Caracas: Fundacin Casa de Bello, 1982, pp. 613-615.
231
Essa opinio em parte se devia s guerras civis e disputas polticas na Amrica ps-
independncia, que agudizou a percepo de uma fragilidade poltica para a implementao
de um sistema como a Repblica, ao considerar-se a monarquia como uma forma de
organizao mais adequada estabilidade em pases to novos, carentes de populaes
instrudas e com poucas virtudes cvicas. De fato, nem todas as regies estavam libertas do
domnio espanhol, nem o destino do continente estava decidido.
Na dcada de 1820 a situao comeava a se alterar, tornando-se mais favorvel aos
americanos. Entre os motivos da reviravolta temos as cortes liberais estabelecidas na Espanha
naquele ano, o que fez os hispano-americanos ganharem fora e o rei Fernando VII governar
sob a Constituio de 1812. Houve tambm o reconhecimento pelos Estados Unidos da
independncia da Amrica hispnica, que se reforaria com o avano dos patriotas sobre as
tropas realistas, que chegaram a 1824 com praticamente todo o continente liberto do governo
espanhol. Esses acontecimentos levaram os patriotas americanos a reconfigurar seu lugar de
atuao em Londres. Alm dos progressos polticos na Inglaterra, deu-se tambm um avano
cultural, que visava a difundir uma imagem positiva do continente pela Europa. A esse
respeito, Bello esteve envolvido diretamente com diversos projetos, tanto na parte poltica
quanto na cultural.
Em Londres, Bello fundou duas grandes revistas: Biblioteca Americana o Miscelnea
de Literatura, Artes y Ciencias e El Repertorio Americano. A primeira delas, de 1823,
apoiada por Una Sociedad de Americanos, foi produzida em companhia de Juan Garca del
Ro, Luis Lpez Mndez, Pedro Creutzer e Augustn Gutirrez Moreno, entre outros. Na
apresentao da revista, dedicada Al Pueblo Americano no primeiro tomo e Al Gobierno de
179
BELLO, Andrs. Obras Completas de Andrs Bello. Tomo XXV [Epistolario 1], Caracas: Fundacin Casa
de Bello, 1984, pp. 93-94. Ver tambm: JAKSIC, Ivn A. op. cit., p. 79.
232
180
A revista apresenta-se como dedicada aos americanos, colombiano, al arjentino, al peruano, al chileno, al
mejicano, afirmando que no h predileo de nenhum povo em suas pginas. O Brasil no aparece. BELLO,
Andrs. CALDERA, Rafael (org.). Biblioteca Americana o Miscelnea de Literatura, Artes y Ciencias. Caracas:
Edicin de la Presidencia de la Repblica, 1972, p. V.
181
Ibidem.
182
Bello publicou sobre temas dos mais diversos. Para ter uma ideia de tal variedade, temos alguns ttulos
assinados por ele: Magnetismo terrestre, Palmas americanas, Cordillera de Himalaya, Sobre la diferencia
genrica entre las varicelas y las viruelas, Cultivo y beneficio del camo, e Alocucin a la poesia.
183
CALDERA, Rafael (org.), op. cit.
184
Em relao produo historiogrfica, Bello se mantinha em contato com a Amrica. Em setembro de 1826,
escreveu a Jos Manuel Restrepo informando-o sobre os efeitos da primeira edio da Historia de la Revolucin
de Colombia nos meios intelectuais em Londres.
233
O ano de 1826 resultou importante para a organizao dos novos Estados, como a
realizao do Congresso do Panam com representantes plenipotencirios da Amrica
Central, Colmbia, Peru e Mxico. Estiveram ausentes a Argentina e o Chile, mas contou-se
com observadores enviados pela Inglaterra e a Holanda. O delegado dos Estados Unidos
chegou aps o termino do encontro, que fracassou na tentativa de estabelecer uma unidade
entre as naes hispano-americanas.
Simn Bolvar, que havia alcanado vitrias decisivas, como a de Ayacucho (1824),
voltou a Bogot em 1827 para reassumir a presidncia e dar prosseguimento a seus projetos.
Bolvar regressou aps sua ingerncia nos assuntos polticos peruanos e bolivianos ter sido
rejeitada localmente. No retorno capital gr-colombiana, tentando evitar a ruptura da
Venezuela com o governo central de Bogot, passou o primeiro semestre de 1827 em Caracas
antes de assumir a presidncia, de fato, em julho.
Na Inglaterra, a situao de Bello continuava vulnervel. Frente s dificuldades
financeiras, escreveu ao amado Libertador em carta datada de 21 de dezembro de 1826,
requisitando ajuda:
185
ALDUNATE, Arturo Fontaine, Andrs Bello, Formador de opinin pblica, in Estudios Pblicos, n. 8,
1982, p. 25.
186
Os filhos deste casamento foram: Juan Enrique Teodoro (Londres, 1825-Nova Iorque, 1860), Andrs Ricardo
(Londres, 1826-Santiago, 1869), Ana Margarita Vicenta (Londres, 1827-Santiago, 1851), Jos Miguel Bello
(Londres, 1828-Santiago, 1830); os prximos filhos nascem em morrem em Santiago: Luisa Isabel (1831-1862);
Mara Ascensin del Rosario (1832-1852); Dolores Isabel (1834-1843); Manuel Jos Anselmo (1835-1875);
Josefina Victoria (1836-1911); Eduardo Benjamn (1838-1875); Emilio Felipe Mara (1845-1875); Francisco
Jos Luis (1846-1887). Dois dos filhos do casal morreram ao nascer. Ver: JAKSIC. Ivn A., op. cit., pp. 291-
292.
234
Na carta, Bello, alm de descrever sua situao, explicava ter havido um retrocesso de
sua posio, ocasionado pela chegada de um novo representante. Pouco tempo depois de
Bello ter sido nomeado interinamente como Encarregado de Negcios da Legao da
Colmbia, Jos Fernndez Madrid, poeta e poltico neogranadino, era nomeado
definitivamente ao cargo que Bello ocupava. Embora o caraquenho tivesse sido prejudicado
pela nomeao de Jos Fernndez Madrid, logo floresceu entre eles uma admirao mtua por
causa do interesse comum pelas letras.
Apesar das reclamaes de Bello, Bolvar no respondeu positivamente. Em carta de
16 de junho de 1827, escrevia ao seu querido amigo:
Algum tempo mais tarde, em setembro de 1828, Bolvar, que havia retornado
presidncia e suspendido a Constituio exercendo a ditadura, designaria Bello como Cnsul
Geral em Paris e Ministro Plenipotencirio na Corte de Portugal. Entretanto, seu antigo
preceptor no aceitou os cargos, pois intencionava regressar Amrica, como assim o fez em
poucos meses.
Por indicaes de seu amigo Irisarri e de Egaa, Bello fora aceito pelo Chile entre os
pensadores estrangeiros que o governo do pas que arrebanhava para construir as instituies
da moderna nao. Em setembro, o Cnsul Geral do Chile em Londres comunicou a Bello a
deciso do presidente chileno, Francisco Antonio Pinto, de custear a viagem dele e de sua
187
BELLO, Andrs, op. cit., pp. 225-226. Ver: BOCAZ, Lus. Andrs Bello, una biografa cultural. Santaf de
Bogot: Convenio Andrs Bello, 2000.
188
BOLVAR, Simn, in BELLO, Andrs, op. cit., pp. 337-338.
235
189
Mndez, alm de amigo de Bello, reconhecia sua importncia para o trabalho em Londres. Na ocasio do
convite a Bello pelo Chile, Mndez escreveu a Bolvar: Parece que algunos amigos del senr Bello le han
escrito de Chile, ofrecindole su proteccin en aquel pas. En mi concepto la prdida del seor Bello debe ser
muy sensible a Colombia, porque tenemos muy pocos hombres que renan la integridad, talento e instruccin
que distinguen a Bello. BOCAZ, Lus, op. cit., p. 128.
190
Segundo Bocaz, o governo aprovou a indicao de Egaa, ordenando que, satisfecho el gobierno de las
aptitudes de este sujeto, desea ver realizada sus aspiracin, para cuyo efecto se compromete a costearle su viaje
a Chile, y a colocarle, luego que llegue al pas, en un destino anlogo a sus conocimientos, y que su dotacin no
baje de mil quinientos pesos, que es la que disfrutan los oficiales mayores. Idem, p. 129.
191
Boa parte da produo de Bello circulou em um primeiro momento em forma de jornais e, posteriormente, foi
organizada em livros, sendo essa uma prtica comum na poca.
192
JAKSIC, Ivn A., op. cit., p. 129.
193
GAZMURI, Cristin R. La historiografa chilena (1842-1970). Tomo I (1842-1920). Santiago de Chile:
Centro de investigacin Diego Barros Arana, 2006, p. 47.
194
COLLIER, Simon; SATER, William F. Historia de Chile, 1808-1994. Madri: Cambridge University Press,
1998.
236
entanto, aps a subida ao poder do conservador Diego Portales,195 Bello no perdeu espao no
Estado, pois circulava entre ambos os grupos.
De fato, Bello estava mais propenso a um governo conservador com que se evitassem
maiores mpetos revolucionrios que pudessem levar desorganizao do pas. Jaksic faz a
seguinte anlise sobre as preferncias e pragmatismo poltico de Bello:
195
Portales foi o caudilho mais poderoso nesta dcada, at seu assassinato em 1837. Sua influncia no foi
exercida por meio do cargo de presidente, seno pelo acumulo de diversos cargos relevantes no governo.
196
JAKSIC, Ivn A., op. cit., p. 134.
197
Idem, p. 29.
237
sua vida, Bello esteve relacionado com a educao, quer como estudante, como professor,
como terico da educao ou como funcionrio pblico. Dita caracterstica aparece na anlise
Jos Ramos, que afirma que seus textos no se separaram da preocupao educacional:
Andrs Bello, el poeta, el hombre de letras. Es difcil tratar esta faceta, strictu senso,
separadamente de una finalidad didctica que, segn el consenso de la crtica bellista,
expresa el ms autntico significado de su obra.198
Seu primeiro bigrafo, um de seus alunos durante o perodo em que oferecera aulas
em sua casa, Lus Amuntegui, recordava ao professor como algum realmente interessado
em cultivar o conhecimento entre os jovens chilenos:
Para Bello, a tarefa educativa tinha com fim ltimo a felicidade individual, ligada ao
progresso e prosperidade social. O acesso educao era uma questo poltica e uma
obrigao do Estado, ao menos no campo do primrio. Bello deu relevante ateno s
instituies de ensino, preocupando-se com os diversos nveis de escolarizao, procurando
desenvolver escolas primrias, secundrias e a universidade. Desde sua chegada ao Chile,
defendeu a expanso da educao primria para toda a populao. Ela deveria ser mais ampla
do que ler, escrever e fazer contas, como pensavam muitos de seus contemporneos.
Acreditava que nela deveriam estar contidas disciplinas como Astronomia, Geografia e
Constituio Poltica, que levassem compreenso do mundo e do universo, dos direitos e
198
RAMOS, Jos (org.), Andrs Bello: anotaciones para una potica del paraso perdido, in BELLO, Andrs.
Antologa Esencial. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2011, p. XI.
199
AMUNTEGUI, Miguel Luis, op. cit., pp. 345-346.
238
deveres polticos. Para ele, uma maneira de melhorar, ampliar e uniformizar o ensino primrio
consistiria na criao de escolas que formassem professores. Dito profissional, escasso no
Chile da poca, precisava ter uma formao adequada para desenvolver o trabalho, tanto com
a populao urbana quanto com a rural.200
Os posicionamentos polticos e intelectuais de Bello no foram acolhidos
uniformemente pela elite letrada de ento. Em 1830, iniciou-se uma polmica entre Bello e
Jos Joaqun de Mora, um liberal espanhol residente no Chile desde 1828, que logo de sua
chegada participara de forma relevante na redao da Constituio liberal daquele ano. A
discusso principiou por causa das posies polticas antagnicas entre dois colgios. Um
deles era o Colegio de Santiago, fundado com apoio de Portales e das famlias conservadoras
do Chile; o outro, o Liceo de Chile, com tendncia liberal. Mora, ao discursar no Liceo de
Chile, criticou a influncia francesa na Amrica. No Colegio de Santiago, a maioria dos
professores eram franceses e Bello, como seu diretor, sentiu-se atingido, pelo qual respondeu
a Mora.
A polmica com Mora influenciou positivamente a opinio de Portales sobre Bello,
que passou a convidar o venezuelano a uma grande quantidade de comisses e trabalhos para
o governo. Isso pde se observar j em setembro de 1830, com a sua nomeao como
membro da comisso encarregada de examinar um projeto e um regulamento para o Instituto
Nacional.201
Bello participou da reformulao da instituio, principalmente na rea do Direito,
disciplina que redesenhou com a volta ao ensino do Direito Romano. Alm de diretor, foi
professor. Ministrou disciplinas de Direito, Latim, Gramtica Castelhana e Literatura, at
1843. Ainda em setembro de 1830, foi nomeado diretor da seo de notcias estrangeiras e da
de letras e cincias, do jornal El Araucano, cargo que exerceu at 1850. Esse jornal foi seu
palco principal de combate para a discusso de diversas questes nacionais e internacionais,
alm de divulgar constantemente trabalhos estrangeiros.202
200
OCAMPO LONDOO, Alfonso, Andrs Bello, educador, Thesaurus, Tomo XXXVII, n. 2, maio-agosto,
1982, pp. 385-394.
201
Esta instituio tornar-se-ia um forte referencial na formao dos jovens chilenos, uma vez que em 1832 o
Colgio de Santiago fechou, pelo qual Bello passou a ministrar classes em sua casa.
202
No peridico se encontrava uma grande quantidade de temas, entre eles alguns introduzidos por artigos
traduzidos por Bello. Ver ALDUNATE, Arturo Fontaine, op. cit., p. 35. Numerosa es la lista de los artculos de
El Araucano que corresponden a traducciones o a originales debidos a la pluma de Bello. Hay un paralelo entre
Napolen y Cromwell; un homenaje a la memoria de Simn Bolvar; el comentario de un libro de
Chateaubriand que da pie para disertar sobre el horror que deben inspirar las revoluciones; un largo ensayo
britnico sobre la mutabilidad de los gobiernos; consideraciones de estadsticas y su aplicacin a Chile,
publicadas en 1835; numerosos artculos acerca de proyectos legislativos y jurisprudencia; un extracto del viaje
de mster Everest a Noruega, Suecia y Laponia; la nueva revelacin sobre la muerte del capitn Cook; el
239
Junto ao El Araucano, onde foi constante formador de opinio pblica, Bello escreveu
tambm em El Museo de Ambas Amricas (1842), El Crepsculo (1843), La Revista de
Santiago (1848 a 1855) e El Museo (1853). O embate pelas letras foi costume por toda a vida,
na busca de tornar pblicas suas ideias. Aldunate entende que [l]a accin formadora de
opinin se refleja en toda la labor periodstica del maestro. [] Con stos alza una
verdadera ctedra pblica en la prensa. En tal ejercicio peridico el sabio contribuye como
nadie a moldear el estilo de la cultura superior chilena en el siglo XIX.203
O campo do Direito foi amplamente explorado por Bello, no apenas na produo de
obras que interessassem ao nascente Estado chileno, como tambm na preocupao de formar
estudantes versados em conhecimento jurdico para atuar junto ao Estado. Em 1832 publicou
Principios de derecho de gentes,204 referente ao Direito internacional, tendo havido
posteriormente duas reedies corrigidas por Bello, nos anos de 1844 e 1864, alm de
diversas edies em outros pases. A importncia desse trabalho remete afirmao do
Direito de todos os Estados, independentemente de sua forma de organizao ou do seu
poderio internacional, em busca de construir uma legitimidade internacional para as novas
naes americanas. A boa recepo do trabalho resultou corrente em toda a Amrica, pelo
qual se converteu no principal texto no incio da formao jurdica das relaes internacionais
na Amrica hispnica.205
Em 1833, encarregou-se de redatar a reforma da Constituio de 1828, fato que
agradou a Portales, pela inclinao de Bello construo de um Estado com um executivo
forte. Bello participou, ainda, da construo da Constituio de 1833, que representava bem a
tendncia dos pelucones, que estavam no poder.206 A carta magna chilena criava uma
repblica com um executivo forte, centralizado e autoritrio, e com um sistema censitrio
bastante restrito, que privilegiava uma ordem hierrquica. Por outra parte, o governo
anlisis de la expedicin del capitn Ross al nororiente de Amrica; otro relato traducido sobre las ruinas de
Balbek , famoso lugar de turismo cultural del Lbano; una narracin de viajes de Stephens por Amrica Central;
datos sobre geografa de la extremidad sur de Amrica, Tierra del Fuego y el Estrecho de Magallanes, hechos
en el viaje de los buques Adventure y Beagle; diversas notas sobre Panam.
203
Idem, p. 28.
204
BELLO, Andrs. Principios del derecho de gentes. Valparaso: Imprenta El Mercurio, [1832] 1844.
205
TARAZONA, Liliana Obregn, Construyendo la regin americana: Andrs Bello y el derecho
internacional, in Revista de Derecho Pblico, n. 24, marzo de 2010, pp. 6586. Disponvel em:
<http://derechopublico.uniandes.edu.co/index.php?option=com_revista&view=inicio&idr=0&lang=es>
(acessado em 19/12/ 2012).
206
Em novembro de 1835, Bello recebeu o ttulo de Bacharel em Sagrados Cnones y Leyes pela Universidad de
San Felipe. Ele solicitou o reconhecimento de seus saberes por meio de avaliaes. Este novo ttulo dava mais
legitimidade aos trabalhos em que participava nas reformas jurdicas chilenas da dcada de 1830.
240
207
GAZMURI, Cristin R., op. cit., pp. 4647.
208
A censura sobre a imprensa durou at 1878.
209
ALDUNATE, Arturo Fontaine, op. cit., p. 29.
210
Idem, p. 32. O autor indica que o texto saiu no El Araucano, n. 441, 8 de fevereiro de 1839.
241
211
SANTOS, Lus Cludio V. G. O Brasil entre a Amrica e a Europa: o imprio e o interamericanismo (do
Congresso do Panam Conferencia de Washington). So Paulo: Editora UNESP, 2004, pp. 86-90.
212
A Confederao Peru-boliviana foi um Estado formado por Peru e Bolvia, de breve vida, entre 1836 a 1839,
sob a presidncia do boliviano Andrs de Santa Cruz. Portales considerava a Confederao uma ameaa ao
Chile, pelo qual forou a guerra at derrotar seus inimigos e conseguir sua separao em 1839.
213
O ensino superior no pas estava paralisado desde 1839, com o fechamento da Universidad de San Felipe.
214
ZUBIRA, Ramn de, op. cit., p. 13.
242
215
JAKSIC, Ivn A., op. cit., p. 176.
216
BELLO, Andrs, Discurso pronunciado en la instalacin de la Universidad de Chile, el 17 de septiembre de
1843 in Obras Completas. Tomo XXI (Temas Educacionales I), Caracas: Fundacin Casa de Bello, 1982, pp.
3-21. O discurso foi publicado diversas vezes em peridicos, iniciando ainda em 1843 no El Araucano como
tambm nos Anales da universidade, sendo o primeiro em 1846.
217
Na definio de Ricardo Krebs, temos: El as llamado Estado Portaliano es, segn la Constitucin de
1833, una repblica popular representativa; sin embargo, de hecho es, bajo forma republicana, una
restauracin del gobierno autoritario y centralizado de la Monarqua espaola. KREBS, Ricardo, Orgenes
de la conciencia nacional chilena, in GABRIEL, Cid; SAN FRANCISCO, Alejandro. Nacin y Nacionalismo
en Chile. Siglo XIX. Vol. 2, Santiago: Ediciones Centro de Estudios Bicentenario, 2009, p .18.
243
Em meio aos atritos com Domingo Fautino Sarmiento, Bello exporia sua posio com
mais um trabalho, Anlisis ideolgico de los tiempos de la conjugacin castellana, escrito
ainda em Caracas e publicado em Valparaso em 1841. Nos artigos de 5 de fevereiro e de 3 de
junho, publicou em El Araucano elementos centrais de suas ideias literrias, ao apresentar
uma sntese do romantismo e do classicismo.
Bello e Sarmiento, embora coincidissem na dedicao pedaggica, discordavam sobre
os sistemas que deveriam ser adotados pelas naes americanas.218 Bello defendia uma
proposta semelhante ao modelo educacional napolenico, como aquele que Bernardino
Rivadavia havia implementado nas Provncias Unidas do Rio da Prata em 1821, onde a
instituio de ensino superior era central e responsvel pelo desenvolvimento dos demais
nveis de formao. Sarmiento entendia que era preciso iniciar o processo pela base da
populao, em funo do qual julgava ser necessrio que a educao primria fosse a ao de
maior importncia, promovendo, em um primeiro momento, a generalizao desse nvel de
instruo.219
No discurso pronunciado com motivo da inaugurao da universidade, Bello expusera
os elementos educacionais que perpassavam essa discusso:
218
Bello procurou integrar o ensino dos pases hispano-americanos. Em novembro de 1843, como reitor, dirigiu-
se em carta aos encarregados pela educao em diversas naes (Bolvia, Mxico, Peru e Venezuela),
convidando-os ao estabelecimento de um intercmbio na rea de educao.
219
PUIGGRS, Adriana, Andrs Bello, o humanista latino-americano, pp. 71-87, in STRECK, Danilo R.
(org.). Fontes da pedagogia latino-americana: uma antologia. Belo Horizonte: Autntica Editora, 2010.
244
220
BELLO, Andrs, op. cit.
221
Lastarria foi influente poltico e intelectual chileno que ocupou cargos de deputado, diplomata e duas vezes
ministro. Como intelectual esteve, assim como Bello, procurando constituir uma literatura e histria nacional,
porm com propostas distintas. Lastarria participou ativamente das repercusses da revoluo europeia de 1848
no Chile entre 1848 e 1852. Abramson considera que Lastarria encarna(va) a ala derecha del movimiento
igualitarista chileno. Ms doctrinario liberal y terico del federalismo que socialista. Ver ABRAMSON, Pierre-
Luc, op. cit., p. 104. Para ver mais sobre esta polmica, consultar o captulo II.
245
222
JOCELYN-HOLT, Alfredo, Balance historiogrfico y una aproximacin al canon, pp. 31-74, in MUSSY,
Lus G. de (Editor). Balance Historiogrfico Chileno. El orden del discurso y el giro crtico actual. Santiago:
Ediciones Universidad Finis Terrae, 2007, p. 41. Ver tambm: GAZMURI, Cristian, Influencias sobre la
historiografa chilena: 1842-1970, in MUSSY, Luis G., op. cit., pp. 75-84.
223
COLMENARES, Germn. Las convenciones sobre la cultura: ensayos sobre historiografa
hispanoamericana del siglo XIX. Medelln: La Carreta Histrica, 1968, pp. 33-44.
224
GAZMURI, Cristin R. La historiografa chilena (1842 -1970). Tomo I (1842-1920), Santiago de Chile:
Centro de Investigacin Diego Barros Arana, 2006, pp. 78-79.
225
JAKSIC, Ivn A., op. cit., pp. 183-185.
246
la lengua castellana destinada al uso de los americanos,226 da qual apareceram em vida cinco
edies, todas com diversas e intensas modificaes. Em 1848, veio luz Cosmografa o
descripcin del universo conforme a los ltimos descubrimientos. Em 1850, publicou as duas
primeiras partes do curso de Histria da Literatura, que sairiam sob o ttulo Literatura
Antigua del Oriente y Literatura Antigua de la Grecia. Em julho editou parte da traduo do
Sardanpalo de Byron. Em novembro, tamanha a importncia de suas obras, foi nomeado
membro honorrio da Real Academia Espaola, passando em 1861, com a criao de uma
nova categoria, a membro correspondente.
A atuao na construo do sistema educacional chileno tambm seguiu com diversos
progressos nessas duas dcadas. Bello, visando a melhorar o ensino secundrio, apresentou
em 1850 um projeto para organizar os planos de estudos elaborados para o Instituto Nacional,
composto pela Faculdade de Humanidades e revisado pelo Conselho Universitrio. Nesse
ano, como reitor, procurou formas de ampliar o acesso ao sistema educacional, escrevendo as
indicaes ao Conselho Universitrio para organizar as escolas noturnas no pas. Em julho de
1853, por sua iniciativa, o Conselho Universitrio ofereceu um prmio ao melhor livro que
abordasse a influncia da generalizao da instruo primria sobre a sociedade. Em
novembro de 1860 foi promulgada a lei orgnica que regeria a instruo primria no Chile,
preparada pela Faculdade de Humanidades que presidia Bello.
Em 1860, trabalhou para a formao da Biblioteca Hispano-Americana de Santiago.
Fez contato com a Repblica de Nova Granada para a aquisio de livros, recebendo ajuda de
Manuel Anczar. Pediu auxlio tambm a Juan Mara Gutirrez, ao qual solicitou que se
encarregasse de adquirir livros em Buenos Aires para a Biblioteca. Em novembro de 1861,
recomendou ao governo que comprasse a biblioteca de Benjamn Vicua Mackenna, que
estava venda, para compor o acervo da Biblioteca Nacional. Os livros de Mackenna
somavam em torno de 1.500 volumes e eram em sua maioria dedicados a temas americanos.
No campo jurdico, sua grande obra viria no final da dcada. Em 1857 entrou em
vigncia o Cdigo Civil de la Repblica de Chile, sendo essa a principal contribuio poltica
e de maior amplitude social proposta por Bello quele pas. Essa tarefa iniciou-se
oficialmente em 1834, com o pedido do ministro Portales a Bello para que redigisse um
cdigo civil para o pas. No entanto, nessa dcada, o projeto no avanou, em parte por causa
do assassinato de Portales em 1837 e da guerra com a Confederao Peru-boliviana, que
transcorreu at 1839. No ano seguinte, Bello props a formao de uma comisso, com
226
Publicou em abril de 1847 uma segunda edio da Gramtica Latina, composta em sua primeira verso em
1838 por seu filho falecido prematuramente uns meses antes, Francisco Bello.
247
integrantes da Cmara e do Senado, para redatar o cdigo. Na ocasio foi formada uma
comisso com os senadores Andrs Bello e Mariano Egaa, e os deputados Manuel Montt,
Ramon Luis Irarrzaval e Juan Manuel Cobo. Aps muita discusso e colaborao de juristas,
parlamentares e estudiosos, o Cdigo Civil foi apresentado ao Congresso, que o aprovaria em
1856, tornando-o efetivo no ano seguinte, em meio ao segundo mandato de Manuel Montt.227
Durante sua estadia no Chile, Bello teve uma frutfera relao com o Estado
portaliano, entrando poucas vezes em conflito com o poderoso ministro chileno. O pior caso
nesse sentido teve lugar pouco antes de explodir o conflito entre o Chile e a Confederao
Peru-boliviana, em 1836. Ao contrrio de Portales, Bello era a favor da paz e tentava evitar
que a guerra fosse declarada. O caso era relativamente grave, visto o histrico dos inimigos
de Portales, e Bello chegou a considerar a possibilidade de ter que deixar o Chile. E,
conforme afirmamos, fora essa aproximao da poltica conservadora chilena que levaria Jos
Victorino Lastarria a construir a imagem de um Bello conservador e tradicionalista que
marcaria a gerao chilena que surgiria na dcada de 1840.228
A produo de Bello foi constante, inclusive nos seus ltimos anos de vida, em que
esteve dedicado principalmente aos estudos. Sua sade, que havia algum tempo vinha se
deteriorando, pioraria em 1857, ao perder o movimento das pernas, com o qual necessitava de
outra pessoa para locomover-se. Esse fato fez que se dedicasse ainda mais aos estudos,
passando longos perodos lendo, escrevendo e ditando em sua biblioteca. Com a sade cada
vez mas deteriorada, em junho de 1863 apresentou sua demisso ao cargo de Reitor. Em 15
de outubro de 1865, aps agravamento do seu estado, morreria Andrs Bello em Santiago, aos
84 anos.229
As obras e as contribuies polticas de Bello esto ligadas Amrica hispnica, pois
abarcam contribuies diretas ou indiretas em uma parte significativa dos pases que se
formaram aps a queda do imprio espanhol. O interesse na produo de Bello foi encontrado
j desde suas primeiras produes em solo caraquenho, mas ele se expandiu e permanece
ainda hoje. A frequncia dos estudos sobre o intelectual apresenta tamanha implantao que
existe uma denominao especfica para os especialistas em sua vida e obra, os bellistas. Sua
memria resulta constantemente revisitada, como tambm reforada com os muitos
227
JAKSIC, Ivn A., op. cit., pp. 215-220.
228
Idem, pp. 157-158.
229
No dia seguinte sua morte, foi aprovado o primeiro projeto para publicar suas obras completas pelo
Conselho da Universidade do Chile em sesso extraordinria. Ver: URDANETA, Oscar S., El Epistolario de
Andrs Bello, in Obras Completas. Tomo XXV [Epistolario 1], p. CXXV.
248
***
A anlise das ideias de Juan Bautista Alberdi, Jos Incio de Abreu e Lima e Andrs
Bello que remetiam nao na Argentina, no Brasil e no Chile em meados do sculo XIX o
foco deste captulo. Partimos de que esses intelectuais, conscientes do papel que empreendiam
naquele momento de reorganizao da sociedade, concebiam a nao como uma categoria
central de seus projetos, direcionados composio das novas entidades polticas que surgiam
na Amrica. Assim, produziram e ressaltaram caractersticas locais e essenciais na
constituio de cada comunidade imaginada, apresentadas, segundo a concepo de cada um
deles, em suas obras. Esses homens, alm de intenes, possuam voz, como possibilidade de
acesso e de ao junto aos aparatos de Estado que surgiram aps as independncias.
Nos primeiros anos aps o processo de independncia, a questo da organizao
poltica foi fulcral no mundo ibero-americano, onde as questes de representao e de
regulamentao legislativa ocupavam os envolvidos com o processo de organizao das
naes. Nas dcadas seguintes, sobretudo a partir de 1830, ocorreu gradualmente uma
ampliao dos esforos nacionais, com ideia cultural de uma nao aos moldes do
romantismo, atravs da qual se avanou rumo constituio cultural das entidades que veio
1
ALBERDI, Juan. B., Bases y puntos de partida para la organizacin poltica de la Repblica Argentina, in
Obras Completas de J. B. Alberdi. Tomo III, Buenos Aires: La Tribuna Nacional, 1886, p. 478.
2
ABREU E LIMA, J. I. Bosquejo histrico, poltico e literrio do Brasil. Cidade de Nictheroy: Typographia
Nictheroy de Rego e Comp. 1835, p. 70.
3
BELLO, Andrs. Obras Completas de Andrs Bello. Tomo IV [Gramtica], Caracas: Fundacin La casa de
Bello, 1981, p. 11.
250
definir o que deveria ser o quadro constituinte das identidades nacionais na segunda metade
do sculo XIX. No entanto, apesar do avano do romantismo, as referncias cvicas dividiam
espao com as caractersiticas romnticas, perdendo lentamente sua hegemonia. Apesar de
terem existido fases diferentes, esses processos no deixaram de acontecer simultaneamente,
embora com uma gradao de enfoques que foram se adaptando de acordo com os contextos
que se formavam.
Nas naes estudadas, os tons da formao poltica, em comparao cultural,
presenciaram momentos marcados por uma distino maior. Nas dcadas de 1830 e 1840,
todos esses pases viveram um intenso processo de construo cultural que reforava as
distncias entre eles, com a produo de livros, jornais, criao de sociedades civis e de
instituies estatais. Entretanto, a constituio de um Estado nacional se deu, nos trs pases,
em momentos distintos. O Chile experienciou uma centralizao poltica precoce. L, a firma
de uma Constituio em 1833 levou ao pas certa estabilidade. Ainda vivenciando momentos
de distrbios, como os registrados em 1851 e 1852, e depois no final do sculo com a guerra
civil, o Estado nacional chileno no esteve ameaado no tocante sua unidade, havendo
inclusive expanso. No caso do Brasil, a Constituio nacional foi estabelecida em 1824,
passou por reformas no ano 1834, e vigorou at a proclamao da repblica, em 1889, que
props uma nova constituio em 1891. A integralidade nacional perigou nas dcadas de 1840
e 1850, principalmente em Pernambuco e Rio Grande do Sul. No entanto, os acontecimentos
no levaram desintegrao do imprio, nem dos laos que ligavam s regies. J na
Argentina, a elaborao de uma Constituio tomou caminhos distintos dos dois outros casos.
Diversas constituies foram promulgadas; porm, sobreviveram por curtos perodos e
contaram com pouca adeso entre as partes envolvidas. Uma Carta Magna duradoura surgiu
apenas em 1853, chegando at a administrao de Carlos Menem com a elaborao de uma
nova constituio. A formao de um Estado nacional unificado ocorreu somente na dcada
de 1860, fortificando-se at 1880.
Alberdi, Abreu e Lima e Andrs Bello foram partcipes dos diversos projetos
nacionais que estiveram circulando, por vezes em conflito, na Argentina, no Brasil e no Chile
nas dcadas de 1830 a 1850, para ficarmos apenas com o perodo que trabalhamos. Possuem
trajetrias biogrficas que os colocam no tipo ideal do intelectual/poltico que escreveu e
publicou suas ideias a fim de edificar naes, termo de abundante presena nos textos que
foram analisados.
251
4
COLMENARES, Germn. Las convenciones sobre la cultura: ensayos sobre historiografa hispanoamericana
del siglo XIX. Medelln: La Carreta Histrica, 1968, p.119.
5
APONTE, Isaas Garca. Andrs Bello. Contribucin al estudio de la historia de las ideas en Amrica. Panam:
Universidad de Panam, 1964, p. 18.
253
Tomando como referncia os objetivos do Saln, que podem ser estendidos ao Chile e
ao Brasil, nos parece clara a relao consciente entre uma produo intelectual, renovada ou
em renovao quanto a seus paradigmas, e a crena em seu poderio na hora da efetivao da
construo dos novos pases. Pode-se perceber, nos trabalhos da poca, a intencionalidade de
alimentarem aes polticas, como tambm de atuarem sobre a formao cultural dos pases.
Trata-se de fragmentos de uma rede cultural, diversificada, constituda por elementos de um
processo conformador de identidades, constituintes de cada imaginrio nacional.
Como sabemos, neste captulo sero analisadas, em concreto, obras de Alberdi, Abreu
e Lima e Andrs Bello, referentes de discursos mais amplos. Trabalharemos, prioritariamente,
sem excluir outros escritos, com os textos que iremos apresentar a seguir. Entre os muitos
6
ALDUNATE, Arturo Fontaine, Andrs Bello, Formador de opinio pblica, in Estudios Pblicos, n. 8,
1982, p. 36.
7
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil - 1870-
1930. So Paulo: Companhia das Letras, 1993. GUIMARES, Manoel Lus Salgado, Nao e Civilizao nos
Trpicos: o Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro e o Projeto de uma Histria Nacional, in Estudos
Histricos 1. Caminhos da Historiografia. Rio de Janeiro: Vrtice, 1988, pp. 5-27.
8
WEINBERG, Flix. El Saln Literario de 1837. Buenos Aires: Librera Achete, [1958] 1977, p. 60.
254
9
Esses textos, entre outros, foram publicados em forma de livro em 1850 no Chile. BELLO, Andrs. Opsculos
literrios i crticos, publicados en diversos peridicos desde el ao de 1834 hasta 1849. Santiago: Imprenta
chilena, Calle de Valdivia, 1850. Disponvel em:
<http://books.google.es/books?id=_3USQWfJP4EC&printsec=frontcover&hl=es&source=gbs_ge_summary_r&
cad=0#v=onepage&q&f=false> (acessado em 09/03/2013). Neste captulo, devido a remisso constante aos
textos escolhidos, para facilitar a leitura, optamos por indicar a citao redigir a referncia por inteiro da obra.
255
autor, era ainda o nico trabalho desse perodo que encarava o governo de Rosas como uma
etapa necessria ao desenvolvimento da nao, procurando evitar o possvel caos de sua
ausncia.10
Alberdi considerava o estudo de direito um guia primordial pelo seu carter cientfico,
aproximando-se dos modelos dos fenmenos da natureza, mas sem perder a anlise pontual da
realidade.11 O autor do Fragmento preliminar reforou a importncia terica e metodolgica
de seu estudo ao ressaltar sua abordagem moderna, cientfica, pela pontualizao de que os
ordenamentos jurdicos deveriam estar de acordo com o perfil de cada povo. Partindo dos
males de origem, Alberdi explica ao seu interlocutor a relao entre sociedade e normas, com
uma perspectiva voltada Amrica:
Cuando esta ciencia haya llegado sernos un poco familiar, nos har ver que
el derecho sigue un desenvolvimiento perfectamente armnico con el del
sistema general de los otros elementos de la vida social; es decir, que el
elemento jurdico de un pueblo, se desenvuelve en un paralelismo fatal con
el elemento econmico, religioso, artstico, filosfico de este pueblo: de
suerte que cual fuere la altura de su estado jurdico. As pues esta ciencia
deber decirnos, si el estado jurdico de una sociedad, en un momento dado,
es fenomenal, efmero, est en la naturaleza necesaria de las cosas, y es el
resultado normal de las condiciones de existencia de ese momento dado.
Porque es por no haber comprendido bien estas leyes que nosotros hemos
querido poner en presencia y armona, un derecho tomado en la altura que no
haba podido soportar la Europa, y que la confederacin de Norte Amrica
sostiene, merced un concurso prodigioso de ocurrencias felices, con una
poblacin, una riqueza, una ilustracin que acababan de nacer.12
Na mesma linha de intenes que o Fragmento preliminar, foi produzindo outro texto
abordado nesta pesquisa. Em Bases y puntos de partida para la organizacin poltica de la
Repblica Argentina, Alberdi prope bosquejar el mecanismo de esa ley para conceber as
instituies do pas nascente, que entrara em uma nova fase, dentro da perspectiva de
10
SHUMWAY, Nicolas. A Inveno da Argentina: Histria de uma Ideia. So Paulo: Editora Universidade de
So Paulo; Braslia: Editora UnB, 2008, p. 172.
11
ALBERDI, Juan. B., Fragmento preliminar al estudio del derecho, in Obras Completas de J. B. Alberdi.
Tomo I, Buenos Aires: La Tribuna Nacional, 1886, p. 250.
12
Idem, p. 104. Alberdi faz uma ressalva sobre a importncia de Vico e do valor de sua obra utilizando a
filosofia da histria em suas anlises. Sua descrio de cincia foi a seguinte: De aqu la necesidad de un orden
cientfico para las verdades de la jurisprudencia. Pero para que un cuerpo de conocimientos merezca el nombre
de ciencia, es necesario que estos conocimientos formen un nmero considerable, que lleven nomenclatura
tcnica, que obedezcan un orden sistematizado, que se pongan en mtodo regular. Sin estas condiciones, que
es menester llenar mas menos estrictamente, habr una compilacin cuando mas, pero jams una ciencia. De
todas estas condiciones, la que mas caracteriza la ciencia, es la teora, elemento esplicativo de las causas,
razones, y efectos de todos los hechos que la forman. Y como es esta triple operacin lo que mas especialmente
constituye la filosofa, se v que la ciencia no es otra cosa que la filosofa misma. Idem, pp. 108-109.
256
construo nacional, com a queda de Rosas.13 Alberdi iniciou seu trabalho argumentado que a
batalha de Monte Caseros (1852) foi to relevante quanto a Revoluo de Maio (1810) e que
o processo de formao de um governo nacional, ainda inacabado, no estava muito distante
da situao de 1810. Para fazer sua proposta, procurou projetar um modelo prprio para o
pas, mas que pudesse ainda apontar direes para as outras naes americanas, rejeitando
para isso as constituies que lhes eram atuais. Alberdi acreditava que [n]inguna de las
constituciones de Sud-Amrica merece ser tomada por modelo de imitacin, por los motivos
de que paso ocuparme, pois as considerava defasadas e contraproducentes ao
desenvolvimento regional.14
O posicionamento poltico e social de Alberdi variou de um momento a outro,
mostrando-se neste ltimo mais conservador no relativo ordem poltica, composio tnica
no tocante a indgenas e mestios, e ao papel das massas nos novos pases. O programa do
tucumano, representado no trabalho Bases y puntos, contava com um autoritarismo apoiado
na institucionalizao poltica e nos avanos econmicos dos ltimos anos do governo de
Rosas. Sua justificativa ao controle das liberdades polticas estava baseada nos ganhos do
avano econmico, que contribuam atenuao das tenses sociais, surgidas em 1848 com as
influncias revolucionrias europeias.15
Alberdi compreendia que a situao daqueles dias era distinta do momento da
independncia, quando as necessidades eram outras, apresentando uma leitura de um passado
e um presente indesejados. Para o autor, o novo perodo necessitava de novas constituies,
visto o estado da Amrica do Sul poca. Declarava Alberdi: [h] aqu el fin de las
constituciones de hoy dia: ellas deben propender organizar y constituir los grandes medios
13
A posio de Alberdi frente ao governo e pessoa de Rosas bastante distinta entre um livro e outro. A
imagem positiva e a esperana explicitadas, no Fragmento preliminar foram substitudas por uma viso negativa
apresentada em Bases y puntos. De acordo com Alberdi, La dictadura de Rosas haba sido como una montaa,
que impeda ver lo que haba de verdadero detrs de su poder personal en la historia de las luchas del Plata.
Para unos era Rosas un sntoma y resultado del mal. Para otros era todo el mal en persona. Su cada ha
resuelto el problema y puesto en transparencia el horizonte de la historia argentina en toda su verdad.
ALBERDI, Juan. B., Bases y puntos de partida para la organizacin poltica de la Repblica Argentina, in
Obras Completas de J. B. Alberdi. Tomo III, Buenos Aires: La Tribuna Nacional, 1886, p. 125.
14
ALBERDI, Juan. B., op. cit., p. 387. Alberdi, assim como Sarmiento, sofreu influncias do trabalho de Alexis
de Tocqueville ao analisar os Estados Unidos, discorrendo sobre diversos aspectos de sua organizao social. A
Democracia na Amrica. BEIRED, Jos Lus Bendicho, Tocqueville, Sarmiento e Alberdi: trs vises sobre a
democracia nas Amricas, Histria, So Paulo, vol. 22, n. 2, 2003. Disponvel em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-90742003000200004&lng=pt&nrm=iso>
(acessado em 07/01/ 2013).
15
HALPERN DONGHI, Tulio. Proyecto y construccin de una Nacin: 1846-1880. Buenos Aires: Emec
Editores, 2007, pp. 58-60.
257
16
ALBERDI, Juan. B., op. cit., p. 409.
17
ABREU E LIMA, J. I., op. cit., p. 5.
18
PINTO, Estevo. O general Abreu e Lima. Recife, 1949, p. 15. Ver tambm: MARTINS, Wilson. Histria da
Inteligncia Brasileira. So Paulo, 3 ed., vol. II, 2001. ROMERO, Slvio. Compndio de histria da literatura
brasileira. Rio de Janeiro: Imago Ed. 2001.
258
19
ABREU E LIMA, J. I. Compendio da Historia do Brazil. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert,
1843b.
20
Uma anlise bastante detalhada sobre esta obra pode ser encontrada em: PLAZA, Eduardo, Prlogo, in
BELLO, Andrs. Obras Completas de Andrs Bello. Tomo X [Derecho Internacional I]. Caracas: La casa de
Bello, 198, pp. X-CXCVI.
21
Segundo Flix Weinberg, Principios de derecho de gentes de Bello teve uma boa aceitao logo de seu
lanamento na sociedade americana. Em 1838, em Buenos Aires, o livro custava o mesmo preo do Curso de
Filosofia dictado en la Universidad de Buenos Aires por el Dr. Alcorta, o renomado deputado liberal e professor
da Universidade de Buenos Aires. Ambos custavam 12 pesos, enquanto a mdia dos livros circulava entre 3 e 4
pesos. WEINBERG, Flix, op. cit., pp. 12-13.
259
A ideia de uma conscincia nacional se fez presente nas discusses sobre a nao,
sendo aquele item, para alguns autores, o elemento central na formao da nao e do Estado.
Compreendemos que dita conscincia, esse nacionalismo, resultou essencial para a edificao
de uma ideia de nao, como tambm contribuiu para a efetivao da organizao de uma
entidade poltica autnoma e soberana. O incio da elaborao pelos intelectuais de um
despertar nacional tambm se concretizou ao mesmo tempo em que o nacionalismo avanava
e ocupava espao no seio da sociedade.
Abreu e Lima, Alberdi e Bello partiram, em suas obras, de uma anlise do presente
para uma leitura do passado e para uma apresentao de futuros possveis. Abreu e Lima e
Alberdi, principalmente, promoveram uma avaliao sociocultural de suas naes, por vezes
prxima da que Alexis de Tocqueville publicou em 1835, em Da Democracia na Amrica, ao
analisar os Estados Unidos, e que influenciaria toda uma gerao de americanos.
22
BELLO, Andrs. Principios de derecho de gentes. Madri: Imprenta de Fuentenebro. Librera de la viuda de
Calleja e hijos, 1844, p. IX. Utilizaremos esta segunda edio ampliada em relao 1 edio de 1832.
260
conciliatria e contemporalizadora de 1837 constitui uma postura distinta da que viria a ter no
exlio em Montevidu no incio da dcada de 1840, quando participaria como secretrio do
General Juan de Lavalle, responsvel pela conduo do conflito armado promovido para a
tentativa da derrubada de Rosas.
Nota-se tambm, no trecho indicado de Alberdi, a forte presena de uma ideia de
Amrica, apresentando conjuntamente um discurso de continuidade, produzido desde o incio
da construo dos novos Estados nacionais. Segundo Alberdi, em uma defesa de ideias
prximas s pronunciadas no discurso de inaugurao do Saln Literario,25 para superar a
realidade que se vivenciava na regio do Prata e, de forma geral, na Amrica, fazia-se
necessrio dar incio a uma produo intelectual direcionada aos problemas locais, concepo
que ser observada igualmente nos outros dois personagens. Aps a independncia poltica, a
emancipao se veria completada somente quando os americanos atingissem uma conscincia
nacional e produzissem uma nacionalidade, via construo de uma racionalidade. Podemos
verificar com mais detalhes a relao apresentada por Alberdi entre ambos os aspectos da
questo:
Como se ver mais adiante, principalmente com a anlise das propostas contidas em
Bases y puntos, reconhecemos, como Germn Colmenares e Nicolas Shumway, uma
contradio aparente entre a valorizao de uma concepo do local, frente compreenso
daquilo que deveria ser valorizado nas propostas contidas em muitos dos projetos nacionais,
uma vez que as avaliaes e ideias eram espelhadas em discursos de origem europeia.
25
ALBERDI, Juan B., Discurso pronunciado el da de la apertura del Saln Literario, in Obras Completas de
Juan Bautista Alberdi. Tomo I, Buenos Aires: Imprenta de La Trina Nacional, 1886, pp. 256-267. Sobre o tema,
consultar o captulo II de nosso trabalho.
26
ALBERDI, Juan. B., Fragmento preliminar al estudio del derecho, in Obras Completas de J. B. Alberdi.
Tomo I, Buenos Aires: La Tribuna Nacional, 1886, p. 111.
262
Esse retrato, marcado pela precariedade, do mundo intelectual americano no era uma
leitura apenas de Alberdi. O Bosquejo histrico, de Abreu e Lima, alm de seu pioneirismo,
ficou conhecido por sua avaliao extremamente negativa do Brasil. Adiantando a questo, o
pernambucano considerava seu pas como o mais ignorante do continente americano, por
causa de fatores histricos, educacionais e tnicos.27 A produo das letras brasileiras, de fato,
parecia-lhe muito pouco desenvolvida e a necessidade de maior produo intelectual era, para
ele, uma constatao. Em um tom bastante duro, Abreu e Lima faz a seguinte anlise do
estado de nossa intelligentsia:
Entre os Brasileiros tem havido alguns homens distintos pelo seo saber;
porm o mesmo succede seo respeito, que com os Portugueses; a apatia he
o nosso cunho nacional. O mais interessante das nossas produces he sem
duvida o Dicionario classico da lngua Portuguesa por Antonio de Moraes
Silva, natural do Rio de Janeiro: elle he superior todo encarecimento.29
27
ABREU E LIMA, J. I. Bosquejo histrico, poltico e literrio do Brasil. Cidade de Nictheroy: Typographia
Nictheroy de Rego e Comp. 1835, p. 111.
28
Idem, pp. 71-72.
29
Idem, p. 70.
263
com passagens pelos Estados Unidos e pela Europa, devem ter permitido a Abreu e Lima
elaborar essa avaliao sobre o pas. Como j havia indicado anteriormente, a origem do
problema derivava, para o pernambucano, da colonizao empreendida na Amrica
portuguesa. Podemos compreender melhor aqui suas concepes quanto aos motivos do
atraso intelectual dos brasileiros:
uma natureza bastante distinta do Bosquejo histrico, que havia sido elaborado como
instrumento poltico e crtico, e que apresentava uma anlise menos severa no tocante
herana e s letras portuguesas, assim como produo brasileira. De fato, Abreu e Lima no
apenas reconhecia algum valor na poesia portuguesa, como argumentava considerando a
proximidade inicial entre as duas culturas. Vejamos a nova avaliao no Compendio:
Embora houvesse feito no Bosquejo histrico uma avaliao mais severa do que as
realizadas por Alberdi e Bello em relao, respectivamente, ao Prata e ao Chile, o brasileiro
visualizava, no momento em que escrevia, o comeo de uma produo nacional, iniciada com
a independncia de Portugal. No trecho que destacamos a seguir, Abreu e Lima, da mesma
maneira que Alberdi, transmite a ideia de um processo ainda principiando e sem formas
definidas. Alm da demarcao da ruptura com o controle lusitano, e da abertura de uma nova
dinmica, apela-se imagem de algo que estaria por se estabelecer, indicando partes de um
todo em fase de conformao. Deixemos a crtica para o autor:
Sem os estorvos que o zelo indiscreto dos Portuguezes nos punha sempre por
diante, para impedir o rapido vo da nossa intelligencia, devemos cuidar de
reparar o tempo perdido, dando principio obra da nossa regenerao
intelectual, e preparando os elementos de uma litteratura propriamente
brasileira.33
Assim como Alberdi, Abreu e Lima modificou sua viso sobre a situao do pas, ou
ao menos a exposio de sua avaliao, ao longo do tempo. A crtica arrasadora que produzira
32
ABREU E LIMA, J. I. Compendio da Historia do Brazil desde o seu descobrimento at o magestoso acto de
coroao e sagrao do Sr. D. Pedro II. Tomo I, Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1843a, p. VI.
33
Idem, p. VII.
265
em 1835 tornar-se-ia mais condescendente quase uma dcada depois da realizada no polmico
Bosquejo histrico. De fato, nesses ltimos anos a situao brasileira havia se modificado,
alcanando maior estabilidade com a coroao de Pedro II e com o aumento de obras
produzidas por brasileiros e o estabelecimento de novas instituies culturais, como o IHGB,
as faculdades e os colgios, que fomentavam a vida intelectual e a expanso das letras no
Brasil.
Apesar das mudanas de humor de Abreu e Lima, podemos verificar que, ainda com
os anos que separam as duas obras, a ideia de uma intelligentsia nacional emergente
continuava fazendo parte do panorama apresentado pelo autor. Assim o pernambucano
avaliava a situao em 1843:
Um paiz, que apenas conta vinte annos de existncia como nao no pde
ter litteratura propriamente sua; por que nos primeiros desenvolvimentos da
intelligencia no dado tocar a perfeio, que se requer nas obras do esprito
humano. Todas as naes existiram annos e sculos antes de possurem uma
literatura prpria; e s depois da introduo das artes e das sciencias, que
cada povo as ve apropriando e desenvolvendo segundo o caracter nacional,
e formando deste modo o peclio de suas doutrinas e factos. Assim foi que
as artes precederam as cincias, que a chronica precedeu a historia, porque
comeou-se pela pratica e acabou-se theoria.34
Essas ltimas sentenas de Abreu e Lima sobre a relao das letras e da nacionalidade
o aproximava da viso de Alberdi e tambm de Andrs Bello, reconhecendo que este era um
labor gradual onde as letras atuariam na construo da identidade desejada.
No Discurso pronunciado en la instalacin de la Universidad de Chile no dia 17 de
setembro de 1843, Bello tambm defendia que as propostas deveriam ser, daquele momento
em diante, elaboradas em consonncia realidade nacional. No pronunciamento,
posteriormente publicado em artigo no El Araucano, Bello aproximava-se das interpretaes
da gerao chilena de 42, ao propor que a nacionalidade fosse produzida como um ato de
independncia. O que chama a ateno o fato de esse autor estar publicando ditas ideias em
1843, 13 anos mais tarde do incio do governo de Portales, que dedicara em torno de uma
dcada a arrebatar crebros estrangeiros para o desenvolvimento do Chile e que contava com
instituies mais organizadas do que a Confederao Argentina ou o Imprio do Brasil. Na
ocasio da inaugurao da universidade, percebemos, nas palavras de Bello, a necessidade de
uma produo, de fato, prpria. Vejamos suas ideias:
34
Idem, pp. V-VI.
266
35
BELLO, Andrs. Obras Completas de Andrs Bello. Tomo XXIII [Historia y Geografa]. Caracas: La Casa de
Bello, 1981, p. 251.
36
Ibidem.
267
O que uma nao?, perguntava Ernest Renan em 1882.37 Mais de centro e trinta
anos depois ainda no se poderia afirmar que o grau de preciso ou de consenso que se tem
hoje seja mais apurado do que o desse intelectual do sculo retrasado. O vocbulo nao, que
era polissmico em seu nascimento moderno nos sculos XVIII/XIX, o continua sendo nesta
segunda dcada do sculo XXI.
Podemos buscar precisar esses questionamentos para as ideias de nao do sculo
XIX, procurando ouvir definies ou elucubraes daqueles intelectuais a respeito de suas
consideraes sobre o que uma nao?. Optamos por direcionar essa pergunta a Alberdi,
Abreu e Lima e Andrs Bello. Ao abordar suas concepes, entramos em contato com
fragmentos do passado que constituem elementos passveis de nos remeterem a compreenses
sobre as ideias de nao na primeira metade do sculo da cincia e dos Estados nacionais.
Nos textos em que nos apoiamos, nossos interlocutores apresentam, direta e/ou
indiretamente, aquilo que compreendem como nao, o que presenciam nas naes da poca e
o que desejam para elas. Como j dissemos, h de se levar em conta o contexto no qual esses
trabalhos foram produzidos, em situaes de embates polticos, quase sempre respondendo a
interesses e estmulos mais imediatos. As definies obtidas derivam daquilo que inferimos a
partir do encontrado nas obras. Como discorre primorosamente Pierre Bourdieu, as estratgias
discursivas so realizadas frente aos contextos em que ocorrem. 38 Os caminhos para alcanar
os objetivos so mais complexos do que uma acepo idealizada em um vcuo ideolgico.
Paul Ricoeur39 e Roger Chartier40 tambm problematizaram as nuances com as quais nos
deparamos nas anlises discursivas e nas representaes que envolvem o trabalho do
historiador.
Ao voltar nossa ateno para os escritos dos trs intelectuais, estamos em busca de
compreender as ideias de nao esboadas nos textos abordados, sem esquecer que foram
necessariamente empreendidas estabelecendo alguma relao com o Estado e/ou o governo,
seja por oposio, por adeso ou por pretensa neutralidade poltica. Como viemos discutindo,
nao uma palavra dotada de muitos significados, construda historicamente, afetada por
37
RENAN, Ernest, O que uma nao?, in Caligrama. Belo Horizonte, n. 4, dez., 1999, pp. 139-180.
Disponvel em:
<http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&source=web&cd=5&ved=0CFAQFjAE&url=http%3A%2F%2
Fwww.periodicos.letras.ufmg.br%2Findex.php%2Fcaligrama%2Farticle%2Fdownload%2F381%2F334&ei=vFs
xUYPxL4ie8gT8xYGQDQ&usg=AFQjCNHFTgdkd2SAeuT-I9E14qsB-sDM8A&bvm=bv.43148975,d.eWU>
(acessado em 01/03/2013).
38
BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. So Paulo: Editora Brasiliense, 1990.
39
RICOEUR, Paul. Rumo a uma hermenutica histrica em tempo e narrativa. So Paulo: Papirus, 1997.
40
CHARTIER, Roger. A Histria Cultural: entre prticas e representaes. Traduo Maria Manuela Galhardo.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
268
ideologias e com pouco consenso entre estudiosos sobre o que e qual a dinmica que
caracterizou seu surgimento. Dita impreciso conceitual, somada s escassas definies
diretas de que dispomos, provenientes dos autores investigados, nos remete busca de olhares
mais complexos pelo acesso aos contornos representativos das naes atravs de ideias
paralelas, ou transversais. Assim, trabalharemos com um conjunto de elementos que nos
oferecem os textos, riqussimos em projetos e representaes que elaboravam seus autores
acerca da questo nacional.
Quando se procura definir o que uma nao, surge uma srie de vocbulos agregados
que adjetivam e produzem demarcaes mais precisas, de acordo com os problemas
pertinentes construo de cada unidade nacional. Ao empreendermos a ao de definir
nao, deparamo-nos com um conjunto de elementos problema que pertenceriam a ela, como
territrio, povo(s), lngua(s), soberania, ptria, formas de governo, caractersticas intelectuais
e tnicas, ideias de autorrepresentao, silncios, memrias, entre outros elementos que
podem surgir de acordo com a adeso mais cultural, poltica ou tnica que se imprima a dita
ideia. Foi desse modo, em grande medida, que tomamos contato com a nao desvelada nas
representaes com que nos deparamos nos trs autores trabalhados.
Atreladas aos contextos locais, s demandas que se colocavam, podem ser delimitadas
distines quanto apresentao de tendncias vinculadas aos contextos especficos de cada
autor e texto. Observamos um Bello preocupado com a produo de normas internacionais e
de uma produo literria e historiogrfica para o Chile, ligado a ideias de vis jurdico e ao
mundo do ensino. J Abreu e Lima optou por uma abordagem mais prxima de uma leitura
sobre costumes, tambm respondendo a questes jurdicas, e de uma produo historiogrfica,
visando, no entanto, discusso das propostas que giravam em torno da constituio e da
composio cultural e tnica da nao, como tambm da promoo de uma histria nacional,
com forte vis poltico. Alberdi, mais prximo s discusses do Saln, estava propondo,
igualmente, cdigos normativos, mas partia de uma anlise tambm vinculada leitura de
costumes e a uma associao do estado social e econmico com a origem e a formao da
populao argentina. Apesar dessas diferenas, constitudas por diversos elementos, de
formao e de lugar de fala, os trs esto centrados no debate sobre a forma da nao, debate
esse mais atrelado sua conformao poltica.
Em Principios de derecho de gentes, de Bello, resulta possvel observar o esforo pela
produo de um consenso novo sobre naes, colocadas como umas frente s outras e
inaugurando uma nova forma de relaes internacionais, baseada na delimitao de
269
41
CHIARAMONTE, Jos Carlos. Nacin y Estado en Iberoamrica. El lenguaje poltico en tiempos de las
independencias. Buenos Aires, Editoria Sudamericana, 2004.
42
O vocbulo ptria, relacionado a algo positivo e aos sentimentos, e tambm caracterizado por uma polissemia,
implicava, na primeira metade do sculo XIX, uma ideia de nascimento, de sentimento localidade, por
exemplo, tendo a ptria como referncia a Tucumn, mas podendo ser igualmente uma aluso Confederao e,
at, uma designao para toda a Amrica. Consultar: DI MEGLIO, Gabriel, Patria, in GOLDMAN, Noem
(coord.). Lenguaje y Revolucin: conceptos polticos clave en el Ro de la Plata, 1780-1850. Buenos Aires:
Prometeo Libros, 2008, pp. 115-130.
43
BELLO, Andrs. Principios de derecho de gentes. Madri: Imprenta de Fuentenebro. Librera de la viuda de
Calleja e hijos, 1844, p. 24.
44
Ibidem.
45
Na Gramtica de la Lengua Espaola, de 1832, Bello usa nao na acepo que faz referncia naturalidade.
BELLO, Andrs. Obras Completas de Andrs Bello. Tomo IV [Gramtica], 1981, p. 488. Fuera de ah, y
particularmente en Andaluca y en Amrica, predomina el lo; pero la influencia de la capital por una parte y la
de la literatura por otra, hacen que los lostas de nacin al hablar o escribir esmeradamente usen el le con ms
o menos frecuencia, lo mismo que se valen de tantas otras voces y giros comunes en los libros, pero ajenos del
habla familiar.
270
e pelo uso, considerando dito territrio inviolvel caso no ameaasse a outra nao.46 Bello
relacionou, ainda, a constituio territorial com a presena e uso dos indivduos e do Estado.
Associou, portanto, a soberania do povo e a existncia de um aparato estatal que legitimasse
tal posse. No Principios de derecho de gentes, Bello definiu territrio nacional da seguinte
maneira:
A ideia de nao que Bello reflete era pensada principalmente frente a outras naes,
j que a natureza da obra remetia comunidade internacional. As relaes com aquelas se
estabeleciam em busca de uma nova ordem, na qual a horizontalidade no trato entre entidades
autnomas e soberanas fosse a norma. A segurana sobre as independncias, assim como a
administrao do pas, eram metas a ser perseguidas. Para Bello:
Como una nacin rara vez puede hacer algo por s misma, esto es, obrando
en masa los individuos que la componen, es necesario que exista en ella una
persona reunin de personas encargadas de administrar los intereses de la
comunidad, y de representarla ante las naciones extranjeras. Esta persona
reunion de personas es el soberano. La independencia de la nacin consiste
en no recibir leyes de otra, y su soberana en la existencia de una autoridad
suprema que la dirige y representa.48
46
BELLO, Andrs. Principios de derecho de gentes. Madri: Imprenta de Fuentenebro. Librera de la viuda de
Calleja e hijos, 1844, p. 58.
47
Idem, p. 52.
48
Idem, p. 25.
271
49
Idem, p. 121.
272
50
Ibidem.
51
ALBERDI, Juan. B., Bases y puntos de partida para la organizacin poltica de la Repblica Argentina, in
Obras Completas de J. B. Alberdi. Tomo III, Buenos Aires: La Tribuna Nacional, 1886, p. 459.
273
[f]oi ento que para dar uma ideia mais distincta do que era uma Nao,
tomada colectivamente pelo territrio e seus habitantes, reunidos em
Sociedade politica, se estabeleceo este principio inconcusso: A NAO
no he patrimnio de nenhuma familia, nem pessa.52
Do mesmo modo que Bello, acreditava que o contrato que estabelecia uma nao tinha
como base o povo e sua vontade. Para o brasileiro, o pacto social era firmado entre nao e
povo, com a soberania da prpria nao recaindo sobre o poder do segundo. 53 Assim, o
documento maior que conformava este vnculo, a Constituio, poderia ser modificado apenas
por quem possua legitimidade para faz-lo. Foi neste ponto, a soberania popular, que Abreu e
Lima se baseou juridicamente na hora de combater o projeto de reforma constitucional. Como
contestao proposta de mudar a Constituio brasileira de 1824, vigente em 1835, o
Bosquejo histrico apresenta as seguintes indagaes:
Abreu e Lima considerava ainda, que o povo poderia legitimamente reformular sua
Constituio, desde que fosse ele o sujeito desse desejo e, tal como o direito moderno previa
desde Hobbes, caso o soberano descumprisse seus deveres. Para tal empreendimento, o povo
soberano poderia reconhecer um representante que concentrasse em si como escreveu
Alberdi, segundo apuramos em nossa anlise a soberania nacional e que promovesse as
mudanas constitucionais desejadas. No final do trecho destacado adiante, pode-se ver
igualmente um comentrio que remete para o perodo de instabilidade posterior declarao
de independncia e da regncia, embora os movimentos autonomistas tenham tomado maior
importncia e amplitude depois de 1835. Seguimos o texto:
52
ABREU E LIMA, J. I., Bosquejo, histrico, poltico e literrio do Brasil. Cidade de Nictheroy: Tipografia de
Rego e Comp., 1835 p. 30.
53
Mais adiante veremos como a concepo de povo de Abreu e Lima restritiva a uma elite.
54
Idem, p. 20. Charles-Jean Baptiste Bonnin (1772-1846) foi um intelectual e poltico progressista que
participou da Revoluo Francesa e influente pensador na primeira metade do sculo XIX, sendo considerado
como um dos fundadores da administrao pblica.
274
Abreu e Lima oferece mais elementos para a formao de uma ideia de nao,
inserindo dois aspectos relevantes para a discusso, ao apresentar a noo mais difundida at
o incio do sculo XIX embora ainda hoje no tenha perdido espao da vinculao de
nao com local de nascimento. Utiliza tambm o verbo pertencer para formar a ligao entre
nao e individuo, em conjunto com leis e comunidade. Torna mais completa ainda sua ideia
ao adicionar que o nascimento no era o nico meio possvel de pertencimento a uma
55
Idem, p. 34.
56
Idem, p. 35.
275
comunidade nacional, pois esse poderia ser estabelecido por meio legal. Deixemos Abreu e
Lima se explicar:
57
Idem, p. 79.
58
ABREU E LIMA, J. I. Compendio da Historia do Brazil. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert,
1843b, pp. 165, 166.
276
Juan Bautista Alberdi, por sua parte, no Fragmento preliminar, no nos ofereceu
definies to diretas e precisas de nao como o caraquenho e o brasileiro haviam
apresentado alguns anos antes. Como abordado no captulo II, a gerao de 37 produziu os
primeiros trabalhos acerca de uma identidade cultural e de uma conscincia nacional. No
entanto, no havia um consenso sobre o que era a nao como ideia, nem acerca de quais, de
fato, suas bases de organizao e realizao social. Dita situao, somada a um vazio de
tradies locais capazes de fundamentar uma nova ordem de acordo com o gosto europeizado
em voga, direcionou essa gerao de intelectuais para o estabelecimento de umas bases do
nacional mais voltadas ao futuro do que ao passado.60
Alberdi nos ofereceu, em 1837, uma ideia de nao focada em uma concepo cultural
e dinmica no tempo, mais ligada aquisio de especificidades ressaltadas em contraponto a
um mundo universalizado no relativo a uma filosofia da humanidade, porm plural quanto s
nacionalidades. Essa caracterstica derivava de sua inquietao por descobrir o local e
incentivar uma produo original, voltada ao nacional, em um mundo em caminho rumo
civilizao. Em relao s caractersticas essenciais de uma nao, Alberdi apresenta a seguir
alguns elementos iniciais:
59
Idem, p. 183.
60
SOUTO, Nora; WASSERMAN, Fabio, Nacin, in GOLDMAN, Noem (coord.), op. cit., pp. 83-98.
61
ALBERDI, Juan. B., Fragmento preliminar al estudio del derecho, in Obras Completas de J. B. Alberdi.
Tomo I, Buenos Aires: La Tribuna Nacional, 1886, p. 111.
277
Alberdi compreende ter havido uma nao anterior, erguida sobre outros elementos,
antes desta nao moderna, que se estava modificando pela reflexo. A ideia apresentada por
Alberdi , entre as dos trs intelectuais estudados, aquela que contm maior afinidade com
uma nao conformada a partir da assuno consciente de uma identidade prpria. Aproxima-
se da ideia de Abreu e Lima no tocante formao de uma comunidade pelo pacto, porm
incidindo no papel de uma conscincia nacional profunda e reflexiva, para alm do fundado
pelas leis. Alberdi tambm reconheceu o princpio da nao no pacto social; por isso, apelava
conscincia e reflexo, baseadas em leis e na civilidade. Como Abreu e Lima e Bello,
sustentava que o ordenamento jurdico e a forma de governo deveriam ser estabelecidos a
partir das especificidades de cada povo. A Constituio, por si mesma, era o caminho para um
dos conceitos mais caro a Alberdi: o progresso, meio para alcanar a civilizao e objetivo
ltimo das novas entidades.
No entanto, na Confederao Argentina a via para enveredar em direo ao desejado
progresso, em um movimento linear rumo civilizao pretendida anseio no s de
Alberdi, mas comum entre as elites americanas de forma geral , estava bloqueada pela
situao poltica e cultural encontrada. Apesar de seu livro no atacar Rosas naquele momento
em que a censura e a Mazorca vigiavam os escritos, considerando seu poder legtimo e
acreditando que um governo constitudo sobre as leis ainda poderia ser estabelecido, no se
furtou de ressaltar a ausncia de uma Constituio que fosse aplicvel a todo pas. Para
Alberdi, essa deficincia argentina era derivada da incompletude na qual a regio vivia, no
relativo construo de uma nacionalidade e de uma Carta Magna. De acordo com o
Fragmento preliminar:
Em 1837, assim como seu amigo Echeverra, Alberdi apresentava em seus escritos as
influncias de tericos sociais franceses, mostrando-se atento a questes relativas ao
desenvolvimento da populao da regio. Contribua, igualmente, para a construo da ideia
62
Idem, p. 120.
278
de uma herana negativa recebida do processo de colonizao espanhola, que, at ento, teria
sido avessa civilizao.
Dito atraso civilizatrio refletia, em sua outra face, os problemas produzidos de dentro
da nao, sem a participao de agentes externos; isto , os enfrentamentos locais.
Acompanhando as ideias de Alberdi, encontramos reflexes que nos indicam concepes de
uma nao em crise, para ele inacabada pelas divergncias internas dos argentinos, porm
detentora de antiguidade. As ideias de Alberdi aproximam-se das de Bello e de Abreu e Lima
quando remete para uma soberania estabelecida pelo contrato poltico com base na igualdade,
aqui deslocada para as provncias. Ainda com a instabilidade da Confederao, dividida em
projetos unitrios e federalistas, denominados pelo tucumano de ideas argentinas, a
construo de uma unidade nacional era o objetivo central para Alberdi, buscando a
conciliao, porm com adeso ao federalismo. Sigamos seu raciocnio:
63
Idem, p. 116.
64
SOUTO, Nora; WASSERMAN, Fabio, op. cit.
279
Observamos, nesse segundo texto, que a concepo de nao para Alberdi, assim
como as de Abreu e Lima e Bello, recaa sobre o pacto positivo entre povos, porm acionando
tambm uma ideia de pertencimento familiar, usada recorrentemente na poca para se referir
tanto aos povos americanos entre si, com relaes horizontais (irmo e irm), quanto aos que
mantiveram relaes coloniais, com o qual se verticalizava a relao (pai e me). Aparece,
agora, em nossa discusso um elemento novo, pelo recurso de Alberdi a um duplo sentido em
relao a soberanias e naes. Pensando na diviso das provncias, o tucumano utilizou,
referindo-se a elas, a expresso pueblos argentinos, embora tambm tivesse indicado que
em conjunto formavam uma nao, pelo qual acreditamos estar se referindo ideia de Estado-
nao sob um pacto federal. Alberdi argumentava que o tratado de San Nicols66 trazia
consigo uma ideia da nacionalidade que se deveria formar nas regies em disputa. O objetivo
do Congresso de Santa F era sancionar a Constituio poltica para que regularice las
relaciones que deben existir entre todos los pueblos argentinos, como pertenecientes una
misma familia; que establezca y defina los altos poderes nacionales, y afiance el rden y
prosperidad interior y la respetabilidad exterior de la Nacion.67
Alberdi concebia, em 1852, o pacto entre provncias e Buenos Aires como o nico
caminho possvel, acionando aqui dois importantes vocbulos que marcavam as ideias de
nao: liberdade e associao. Para tanto, era necessrio instaurar um acordo que no
65
ALBERDI, Juan. B., Bases y puntos de partida para la organizacin poltica de la Repblica Argentina, in
Obras Completas de J. B. Alberdi. Tomo III, Buenos Aires: La Tribuna Nacional, 1886, pp. 392, 523.
66
O Tratado de San Nicols foi um acordo assinado em maio de 1852 aps a queda de Rosas, quando treze
provncias da regio da Prata compactuaram a formao de um Estado, renovando o Pacto Federal de 1831.
Buenos Aires se excluiu do acordo, por no aceitar uma representao igualitria entre as provncias no tocante
ao nmero de deputados enviados ao Congresso de Santa F, que se realizaria em 1854. No tratado estabelecido,
o governador de Entre Ros, Justo Jos de Urquiza, foi nomeado diretor provisrio da Confederao Argentina.
67
ALBERDI, Juan. B., op.cit., p. 457.
280
estabelecesse uma hierarquia entre as regies, seno um pacto moderno. Sua anlise aponta
para uma ideia de englobamento segundo a qual a nao predominaria sobre o que chamou de
localismo, com as partes se articulando em um todo maior.68 Alberdi tambm reconheceu uma
identidade comum nas regies e concebeu as oposies de projetos vivenciadas na
Confederao como um problema argentino. Assim discorria Alberdi acerca de um dos
temas centrais da historiografia argentina:
Devido a esta diviso entre as provncias do Rio da Prata, Alberdi admite a presena
de duas entidades que coexistiriam na poca no atual territrio argentino. A Confederao
sem a cidade portenha no deixava de formar a nao, embora prejudicada pelos privilgios e
exclusivismos de Buenos Aires. Entre os motivos que produziam dita separao, estava uma
questo essencial que impedia a unificao das provncias: a centralizao, mesmo que
matizada, do poder e da renda em Buenos Aires. Sigamos o texto:
68
GUERRA, Franois-Xavier. Modernidad e independencias. Ensayos sobre las revoluciones hispnicas.
Madri: Editorial Mapfre, 1992. Disponvel em: <http://rodrigomorenog.files.wordpress.com/2012/01/guerra-
modernidad-e-independencias-1992.pdf> (acessado em 01/03/2013). Guerra, abordando o significado que o
vocbulo pueblo tinha no Antigo Regime nas sociedades hispnicas, nos leva a compar-lo com a ideia de
Alberdi. Destaca Guerra: En el imaginario de los pases hispnicos, que se parece en esto a otros imaginarios
polticos europeos del Antiguo Rgimen, la sociedad aparece compuesta de mltiples comunidades humanas que
se insertan unas dentro de otras, formando subconjuntos incluidos en conjuntos ms vastos y en cuyo nivel
inferior se encuentran los pueblos y ciudades, p. 354.
69
ALBERDI, Juan. B., op. cit., p. 448.
70
Idem, p. 504.
281
71
Idem, p. 470.
72
Ibidem.
73
Real Academia Espaola. Diccionario de la lengua castellana por la Real Academia Espaola. Madri:
Imprenta de Don Manuel Rivadeneyra, 1869, p. 531. El apego de los naturales de una nacin ella propia y
cuanto le pertenece.
282
Esses primeiros contornos, delineados at aqui, daquilo que os trs autores estudados
compreendiam como nao apresentam caractersticas que podem ser melhor abordadas se
prosseguirmos na anlise das obras dos trs intelectuais, para alm do recurso s definies
mais diretas por eles efetuadas. Podemos aprofundar as ideias de nao de cada um dos
autores por meio da verificao de quais as caractersticas nacionais que concebiam e de
como avaliavam as particularidades das novas entidades. Para isso, em funo das
ferramentas que nossos autores nos oferecem, abordaremos a ideia de povo e seu papel na
formao da nao.
74
GUERRA, Franois-Xavier, op. cit. De acordo com esse autor, o vocbulo povo, em constante mudana no
sculo XIX, foi onipresente no vocabulrio poltico modernizante que se estabelecia, embora utilizado com
significados diferentes, conforme os grupos que o cunhavam e os lugares de sua produo, estando o conceito no
centro de diversas pugnas polticas. A ideia de pueblo negativamente (plebe), identificado com a barbrie, em
oposio aos homens de bem, ocupa espao considervel nas acepes utilizadas no incio do sculo XIX.
Apesar de constituir a nao por meio do pacto social, a representao de povo tomaria vrios tons e os direitos
do cidado foram limitados, reservados a determinados segmentos da sociedade. Em diversos pases hispnicos,
a ideia de povo soberano e a de nao passam por conflitos, ora aproximando-se de ideais mais democrticos,
ora restringindo a participao popular no jogo poltico instaurado aps as independncias.
75
SCHWARTZ, Schwartz B., Gente da terra braziliense da naso. Pensando o Brasil: a construo de um
povo, in MOTA, Carlos Guilherme (org). A viagem incompleta: a experincia brasileira (1500-2000). So
Paulo: Senac, 2000, pp. 103-125. Nesse estudo, o autor trabalha com a perspectiva da formao de um Brasil
como ideia, estando entre as constituintes do pas, a concepo de povo, conceito em mutao no incio da
histria moderna do pas. Os criadores dessas ideias, pertencentes s elites brancas, ou ao menos identificando-se
com elas, encontraram dificuldades em reconhecer e assimilar o povo em seus projetos ao se depararem com
uma sociedade escravista, com indgenas e mestios.
283
O estrangeiro europeu era considerado uma adequada escolha pelo fato de trazer em
seus hbitos elementos da civilizao que seriam introduzidos localmente, com o qual se veria
fomentado o progresso, que passaria a integrar a sociedade argentina. Para isso, era necessrio
oferecer condies atraentes aos imigrantes, de modo a fazer que se dirigissem em massa para
o pas. Alberdi defendia que [d]ebe prodigar la ciudadana y el domicilio al extranjero sin
imponrselos,79 oferecendo direitos e condies de desenvolvimento para o imigrante.
Alberdi detalha sua opinio quando pondera ainda sobre a possibilidade de participao
77
SHUMWAY, Nicolas, op. cit., p. 284.
78
ALBERDI, Juan. B., op. cit., p. 421.
79
Idem, p. 476.
285
Alberdi traz uma questo rica para a reflexo sobre a nao e a nacionalidade, por no
apresentar entraves culturais e/ou tnicos ao fato de a populao da nao ser heterognea.
80
Ibidem. Apesar de abordar a questo da representao, Alberdi props que as eleies fossem censitrias.
81
No que se refere participao democrtica nas eleies, a Constituio de 1853 da Confederao Argentina
adotou o sufrgio como modelo, apesar de, na prtica, a igualdade poltica ser quebrada com a existncia de
constantes fraudes nas escolhas representativas. GUERRA, Franois-Xavier, op. cit., p. 377.
82
ALBERDI, Juan. B., op. cit., pp. 561-562.
83
Idem, p. 412.
286
Que paiz no mundo foi jamais povoado desta maneira singular Onde se vio
tanta moralidade, tanto amor Ordem, tantas virtudes reunidas em homens,
que fugiro da desordem e da guerra civil? Quo diferente devia ser esta
colonizao daquella que se faz com gente sem costumes, com aventureiros
dispostos abandonar a sua patria por um bocado de po em alheio
territrio! O que acabamos de diser basta para desmentir a opinio
geralmente admitida, de que todas as Colonias foro povoadas por
degradados e bandidos.85
A boa f que Abreu e Lima possua em relao ao progresso dos Estados Unidos,
derivada de um povoamento de sucesso marcado pela virtude de protestantes e puritanos, no
era encontrada quando a anlise era empreendida sobre a sociedade brasileira, que havia
recebido entre seus colonizadores pessoas em dbito com a lei ou que para aqui migravam em
busca de melhores condies materiais. Assim, os problemas do pas estavam relacionados s
caractersticas estabelecidas pela colonizao. Abreu e Lima considerava que os brasileiros
eram portugueses que j haviam sofrido a influncia dos trpicos. Concordava, portanto, com
o ponto de vista dos iluministas acerca da inferioridade da Amrica, capaz de degradar os
homens que chegavam da Europa ao Novo Mundo. Vejamos sua avaliao negativa: he
84
Idem, p. 436.
85
ABREU E LIMA, J. I., Bosquejo histrico, poltico e literrio do Brasil. Cidade de Nictheroy: Tipografia de
Rego e Comp., 1835, p. 42.
287
foroso reconhecer o que somos, para no despedaar-nos contra os escolhos que temos
diante; somos Portugueses, porm j degenerados.86
O atraso de Portugal, tanto em relao s cincias, como poltica e a construo
social, foi constantemente objeto de crtica e rejeitado. Entretanto, o antilusitanismo e a
avaliao negativa da sociedade brasileira por Abreu e Lima foram mais amenos no
Compendio da Historia do Brazil. Podemos seguir em um trecho as ideias de valorizao do
povo brasileiro, atribuindo populao nacional um grau de civilizao equitativo ao dos
portugueses, ao mesmo tempo em que reconhece um desenvolvimento prprio nacional,
marcado por um determinismo geogrfico positivo do solo e do clima, na contramo das
ideias sobre a influncia perniciosa ligada terra. Como declarava o pernambucano ao IHGB
e mocidade brasileira:
86
Idem, p. 59.
87
ABREU E LIMA, J. I. Compendio da Historia do Brazil. Tomo I. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique
Laemmert, 1843a, pp. VI-VII.
88
No Bosquejo histrico visvel a falta de crtica, da parte de Abreu e Lima, escravido no sul dos Estados
Unidos e na Jamaica inglesa. A contestao escravido no prprio Brasil est presente e elaborada nos
trabalhos de Abreu e Lima, embora ele d mais ateno ao tema no Bosquejo histrico do que no Compendio,
que traz mais questes concernentes participao dos militares negros de Henriques Dias nos conflitos
pernambucanos e nos acontecimentos relativos ao Quilombo dos Palmares e a Zumbi.
288
89
ABREU E LIMA, J. I. Compendio da Historia do Brazil. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert,
1843b, pp. 16-26. Embora as referncias se concentrem nessas pginas, os indgenas aparecem em diversos
momentos da histria narrada, principalmente quando entram em contato com os colonizadores da Amrica
portuguesa, sobretudo em momentos de conflito.
90
Idem, pp. 16-17.
91
Idem, pp. 18-19.
289
Depois de explicar estas divises, Abreu e Lima elucidou os mecanismos daquilo que
denominava de rivalidade entre classes, o que levou Gilberto Freyre a entender que se tratava
de adiantamentos marxistas da luta de classes. Abreu e Lima expe uma sociedade brasileira
segmentada por gradaes provenientes da cor, do estado civil e do local de origem, as quais
produzem uma estrutura social em conflito. Para o pernambucano:
92
Idem, p. 21.
93
ABREU E LIMA, J. I., Bosquejo histrico, poltico e literrio do Brasil. Cidade de Nictheroy: Tipografia de
Rego e Comp., 1835, p. 56.
94
Aqui, trata-se dos portugueses naturalizados aps a independncia. No Brasil, caso singular na Amrica
emancipada, a legislao atribuiu status distinto para os portugueses entre os estrangeiros. De acordo com Jos
Sacchetta Ramos Mendes: A condio jurdica do portugus no Brasil foi definida com a Constituio do
Imprio, de maro de 1824. A Carta considerou brasileiros os nascidos em Portugal e suas possesses,
domiciliados nas provncias brasileiras na poca em que se proclamou a independncia em cada uma delas, e que
aderiram nova ordem expressamente, ou de maneira tcita, pela continuidade de sua residncia. No foi um ato
de naturalizao coletiva, e sim de admisso originria nacionalidade. O significado daquela medida foi que o
primeiro ordenamento fixou o lusitano residente no pas em uma espcie de limbo entre o nacional e o
estrangeiro: "cidado adotivo", no-naturalizado por nunca ter sido estrangeiro. A mesma postura havia
predominado entre os deputados constituintes de 1823, a despeito da atmosfera antiportuguesa daqueles dias,
manifesta em suspeitas e hostilidades aos nascidos em Portugal, contraditoriamente apontados como partidrios
da recolonizao, de ideias republicanas ou da fragmentao do Imprio. MENDES, Jos Sacchetta Ramos,
290
foro Colonias, com respeito aos que foro Metropolis; uns porque no
permitem superiores, os outros porque no consentem iguaes. A mesma
razo se d com respeito aos mulatos; ns no adimitimos a igualdade, por
efeito de habitos arreigados, talvez por nossa m educao. Elles no tolero
superioridade, porque so homens como ns, nascidos no mesmo solo, e
filhos de nossos propios Paes; embora a ley os nivele e assemelhe, o habito e
as preocupaes inutiliso seos efeitos. Os negros ainda se acho em maior
distancia pela sua condio, pela Idea de que ainda se resentem da
escravido, que suportaro elles mesmo, ou seos progenitores; mas esta
injusta opinio no basta para amortiguar no corao de um negro a
dignidade de seo ser, considerado como individuo da espcie humana.95
Embora tenha reconhecido esse quadro conflituoso, Abreu e Lima concebe o direito ao
que chama de sufrgio entre a populao livre com uma participao indiscriminada
independente da cor. A situao exposta estava mais prxima do nvel do ideal do que da
prtica diria, alm de no conter seu texto menes ao fato de o sistema censitrio estar
baseado na renda regular dos eleitores.96 Devido heterogeneidade da populao, a repblica,
referida como democracia, estaria impossibilitada de produzir um governo estvel no
Brasil. Dita estabilidade resultaria possvel apenas com a monarquia, regime cuja obedincia
j estava enraizada nos costumes locais. Vamos seguir a explicao adiante:
Lei e etnicidade no Brasil: entre a lusofobia e o favorecimento jurdico dos portugueses, in Cienc. Cult., So
Paulo, vol. 61, n. 2, 2009. Disponvel em:
<http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252009000200022> (acessado em
20/03/2013).
95
ABREU E LIMA, J. I., op. cit., p. 56.
96
A Constituio brasileira de 1824, apesar de em seu art. 90 permitir a participao da massa dos cidados
activos no processo eleitoral, na prtica inviabilizava parte da populao ao estabelecer o voto censitrio. No
art.92 eram excludos de votar nas assembleias paroquiais os cidados que no tiverem renda lquida annual
cem mil ris por bens de raiz, industria, commercio, ou empregos. Para votar nos Conselhos de Provncias, era
necessrio possuir uma renda de duzentos mil ris. Tais critrios, embora restritivos, permitiam que uma elevada
percentagem dos trabalhadores empregados participasse do processo eleitoral. CURIONI, Rosana T.;
ALVARENGA, Bazilio de; ROSSINI, Elton F., A Constituio Imperial de 1824: Uma breve anlise dos
aspectos sociais, polticos, econmicos jurdicos., in Araucaria. Revista Iberoamericana de Filosofa, Poltica y
Humanidades, ano 13, n. 26. Segundo semestre de 2011, p. 114. Disponvel em:
<http://institucional.us.es/araucaria/nro26/monogr26_3.pdf> (acessado em 20/0/2013).
97
Em um interessante artigo, publicado j em 1862, em meio aos debates em torno da reforma eleitoral brasileira
da dcada de 1860 fora, portanto, do recorte temporal que emoldura este nosso trabalho , Abreu e Lima
291
Esta passagem indica que Andrs Bello considerava mais eficiente a escravido
africana que a encomenda exercida sobre os povos indgenas. Referindo-se ao passado
colonial, Bello apontava suas preferncias:
props uma concepo elitista de povo, do qual excluiu boa parte da populao, no relacionando aquele s
ideias de plebe e massa. Na ocasio, afirmaria: O que povo? A accepo desta palavra mais restricta; porque
o povo to somente a parte da nao, que se occupa, assim da confeco das leis e dos cargos de governana,
como tambem de defender os seus direitos e territrio; a parte que pensa, que quer, e que obra, a parte
intelligente e activa. Segue adiante: Quando se diz governo do povo pelo prprio povo self government
exclue-se da palavra povo, no s as mulheres e escravos, como os menores at a emancipao. Assim que na
verdadeira intelligencia, a palavra povo nos paizes regidos pelo systema representativo, que dizer eleitores
e elegveis sem exceptuar o prprio imperador que tambm o eleito do povo. ABREU E LIMA, J. I.,
Trabalho do Exmo. Sr. General Jos Ignacio de Abreu e Lima, in BANDERIA, Antonio Herculano de Souza.
Reforma Eleitoral. Eleio Direta. Recife: Typographia Universal, 1862, pp. 269-270.
98
ABREU E LIMA, J. I., Bosquejo, histrico, poltico e literrio do Brasil. Cidade de Nictheroy: Tipografia de
Rego e Comp., 1835, p. 82. No referido artigo de 1862, Abreu e Lima argumentava a favor da eleio direta
universal, contra a eleio indireta, porm defendia que fosse censitria para homens livres e maiores de 25 anos.
Era requisito tambm ocupar algum cargo ou exercer alguma profisso, ou ser bacharel, oficial ou possuir terras
e rendas, exibidas em uma proposta dividida em 12 pontos, regulamentando o perfil do eleitorado. ABREU E
LIMA, J. I., Trabalho do Ex.mo Sr. General Jos Ignacio de Abreu e Lima, in BANDERIA, Antonio
Herculano de Souza. Reforma Eleitoral. Eleio Direta. Recife: Typographia Universal, 1862, pp. 278-279.
99
BELLO, Andrs, Memoria sobre el servicio personal de los indgenas y su abolicin, in Obras Completas de
Andrs Bello. Tomo XXIII [Historia y Geografa]. Caracas: La Casa de Bello, 1981, pp. 307-322. O estudo de
Bello foi publicado inicialmente no jornal El Araucano, nmeros 958 e 959, de 15 e 22 de dezembro de 1848.
100
Idem, p. 313.
292
Um pouco mais sobre as relaes sociais pode-se ver em sua conhecida polmica com
Sarmiento, em 1843, onde foram discutidas questes que envolviam o destino da lngua
castelhana na Amrica. A passagem a seguir exemplifica bem o posicionamento de Bello
101
Idem, p. 311.
102
Bello traz a seguinte citao de Salas: el grito de independencia que lanzaron con denodado valor los
Padres de la Patria en 1810, fue precedido de ms de dos centurias de una porfiada lucha en que combatan las
preocupaciones con la razn, la fuerza con el derecho, el srdido inters con la humanidad, la espada con la
conciencia, la hipocresa con la generosidad y el poder opresor con su inocente vctima. El indgena era un ente
degradado a los ojos de aquellos que se atribuan la misin de civilizarlo, sin que estos se avergonzasen de
proclamar que la violencia y el ltigo eran los instrumentos de su propaganda civilizadora. Slo a costa de
sacrificios penosos, de trabajos combinados con sagacidad y acierto, y de prolongadas tentativas sostenidas con
invencible constancia, pudo arrancar-se al indio oprimido y degradado de las manos de su adusto y
desnaturalizado amo. El triunfo de la libertad social fue el precursor del que despus obtuvo la poltica, y los
defensores de aqulla, con las luces que difundieron y los hbitos que reformaron, allanaron los obstculos y
abrieron la senda que en tiempos ms propicios deba elevar la colonia al rango de nacin independiente.
Idem, p. 309.
103
Idem, 311.
293
sobre o papel das elites e das classes populares, tanto em relao ao idioma quanto ao
exerccio civil. De acordo com o caraquenho:
104
Alberdi, alguns anos antes, tambm utilizando a afirmao de Buffon para reflexo, agrega questo: Se h
dicho que el estilo, es el hombre; debe aadirse que el hombre, es el espacio y el tiempo. ALBERDI, Juan B.,
Fragmento preliminar al estudio del derecho, in Obras Completas de J. B. Alberdi. Tomo I, Buenos Aires: La
Tribuna Nacional, 1886, p. 129.
105
BELLO, Andrs, Ejercicios populares de lengua castellana, in Obras Completas, tomo IX [Temas de
Crtica Literaria], Caracas: Fundacin Casa de Bello, 1981, pp. 438-439.
106
BELLO, Andrs, Discurso pronunciado en la instalacin de la Universidad de Chile, el 17 de septiembre de
1843, in Obras Completas, tomo XXI [Temas Educacionales I], Caracas: Fundacin Casa de Bello, 1982, pp. 3-
21.
294
A busca por uma legislao que estabelecesse a igualdade entre os habitantes chilenos
foi defendida por Bello107 quando da publicao da proposta aceita como Cdigo Civil da
Repblica do Chile, publicado em 1856, em cujo artigo 55 Bello faz a seguinte definio do
cidado chileno: Son personas todos los individuos de la especie humana, cualquiera que
sea su edad, sexo, estirpe o condicin. Dividense en chilenos y extranjeros. No artigo 57,
esclarece: La ley no reconoce diferencia entre el chileno y el extranjero en cuanto a la
adquisicin y goce de los derechos civiles que regla este Cdigo.108
Bello oferece mais elementos sobre a discusso nacional ao trazer, em Principios de
derecho de gentes, ideias que associam o pertencimento nacional e a reciprocidade entre a
nao e o indivduo. O caraquenho naturalizado chileno entendia que a nacionalidade se dava
por pertencimento nao, e que aquela era concebida de acordo com a legislao de cada
povo, podendo ser adquirida por nascimento ou por adoo, como pregava Abreu e Lima.
Mas, acima disso, o caraquenho acreditava no amor ptria como um sentimento relacionado,
sobretudo, com o nascimento. Para Bello:
107
Em suas consideraes a respeito do ensaio do presbtero Don Jos Hiplito Salas, Bello concorda com a
ideia desse autor acerca da ocorrncia de uma progressiva homogeneizao da populao da regio, durante a
poca colonial, em decorrncia da encomienda. Citando Salas: Se estrecharon [devido encomienda] los
vnculos que deban unir a entrambas razas; identificronse sus intereses; borrronse las seales que
regularmente marcan las diferencias de castas. Uno fue el idioma y unos fueron los usos en todos los puntos
donde la antorcha de la civilizacin haba llegado penetrar. Todo contribuy a hacer de los chilenos un solo
pueblo. BELLO, Andrs, Memoria sobre el servicio personal de los indgenas y su abolicin, in Obras
Completas de Andrs Bello. Tomo XXIII [Historia y Geografa]. Caracas: La Casa de Bello, 1981, p. 310.
108
BELLO, Andrs, Cdigo Civil da Repblica do Chile, in Obras Completas de Andrs Bello. Tomo XIV
[Cdigo Civil de la Repblica de Chile]. Caracas: La Casa de Bello, 1981, p. 65.
295
nosotros; derecho sancionado por aquel afecto al suelo natal, que es uno de
los sentimientos mas universales y mas indelebles del corazn.109
Mesmo com as aberturas propostas pela Carta Magna do Chile, a legislao do pas
no parecia a Alberdi suficientemente adequada s necessidades que a nao requeria. Um
dos motivos que leva Bases y puntos a criticar a Constituio chilena da poca remetia para a
forma como tratava a questo da imigrao. Ainda com as medidas propostas por Bello, que
denotam sua opo por uma facilitao do processo para o estabelecimento dos imigrantes no
pas, Alberdi considerava que a abertura do texto constitucional no era suficiente para atrair
uma imigrao protestante, devido a restries quanto ao culto e prtica de uma vida civil
plena. Acompanhando suas crticas referentes s leis que regiam a imigrao na Carta Magna
do Chile, pode-se apresentar o posicionamento de Alberdi acerca da questo:
Excluyeron todo culto que no fuese el catlico, sin advertir que contrariaban
mortalmente la necesidad capital de Chile, que es la de su poblacin por
inmigraciones de los hombres laboriosos y excelentes que ofrece la Europa
protestante y disidente. - Excluyeron de los empleos administrativos y
municipales y de la magistratura los extranjeros, y privaron al pas de
cooperadores eficacsimos en la gestin de su vida administrativa.111
109
BELLO, Andrs. Principios de derecho de gentes. Madri: Imprenta de Fuentenebro. Librera de la viuda de
Calleja e hijos, 1844, pp. 79-80.
110
BELLO, Andrs, Cdigo Civil da Repblica do Chile, in Obras Completas de Andrs Bello. Tomo XIV
[Cdigo Civil de la Repblica de Chile]. Caracas: La Casa de Bello, 1981, p. 112.
111
ALBERDI, Juan. B., Bases y puntos de partida para la organizacin poltica de la Repblica Argentina, in
Obras Completas de J. B. Alberdi. Tomo III, Buenos Aires: La Tribuna Nacional, 1886, p. 397.
296
maior desse pas superior en redaccin todas las de Sud-Amrica, sensatsima y profunda
en cuanto la composicin del poder ejecutivo, es incompleta y atrasada en cuanto los
medios econmicos de progreso y las grandes necesidades materiales de la Amrica
espaola.112
Em geral, os textos constitucionais da Amrica ibrica foram criticados por suas
restries religiosas, civis ou polticas sobre aos estrangeiros. Alberdi no era contra a
religio; ao contrrio, demonstrava respeito e apreo por ela, por acreditar que tambm
contribua positivamente ao pas. Essa ideia era embasada nos exemplos dos Estados Unidos e
da Inglaterra, pases bastante religiosos, mas com um crescimento econmico e social
exemplar. O que Alberdi defendia era a liberdade de culto, com vistas a no criar resistncias
imigrao de no catlicos. E essas restries foram, precisamente, as principais crticas que
Alberdi empreendeu sobre as Constituies americanas que estavam em vigor na poca.
Em relao Constituio do Peru, tambm restrita ao catolicismo e que colocava uma
srie de entraves entrada, permanncia, trabalho e cidadania dos estrangeiros, era julgada
por Alberdi como bastante inferior do Chile. O tucumano criticou tambm o Congresso do
Panam por conceber em suas leis a proibio da imigrao de europeus, a qual, segundo
Alberdi, era a fonte de civilizao para o continente. O Dr. Francia tambm foi contestado por
ter deixado uma herana do gnero no Paraguai, fechando-o entrada de imigrantes e s
liberdades civis. Apenas duas Constituies foram elogiadas e consideradas de sucesso pelo
autor de Bases y puntos, pois tinham conseguido atrair imigrantes e contribudo para o
desenvolvimento regional. Tratava-se das Cartas Magnas da Califrnia e do Uruguai. Alberdi
reconheceu a Constituio uruguaia do momento como a mais avanada na Amrica hispnica
no tocante aceitao de estrangeiros, com o pas possuindo pela poca um total de 20.000
avecinados.113
No projeto apresentado em Bases y puntos, a base sobre a qual se inspirava Alberdi era
declaradamente a Constituio do Estado da Califrnia, aprovada em outubro de 1849,
avaliada como de fcil aplicao na Amrica e com forte apelo promoo das liberdades
civis.114 O tucumano admirava, em dita Constituio, a possibilidade que dava aos
112
Idem, p. 396.
113
O termo avecinado refere-se aos estrangeiros que, por viverem junto aos vecinos (homens de famlia com
direito a voto nos cabildos), vo se avecinando. NEZ, Francisco, El concepto de Vecino/Ciudadano en
Per, Araucaria. Revista Iberoamericana de Filosofia, Poltica y Humanidades. Ano 9, n. 17, 1 semestre,
2007. Disponvel em: <http://institucional.us.es/araucaria/nro17/monogr17_11.htm> (acessado em 05/03/2013).
114
Alberdi residia em Valparaso, no Chile, quando ocorreu a guerra entre os Estados Unidos e o Mxico.
Naquele momento, mais preocupados com a ameaa de uma expedio recolonizadora espanhola contra o
Equador, os criollos hispano-americanos no manifestaram solidariedade ao Mxico. Alberdi, como grande parte
297
No por otra razn son ellos felices, que por haber adoptado desde el
principio instituciones propias las circunstancias normales de un ser
nacional. Al paso que nuestra historia constitucional, no es mas que una
continua serie de imitaciones forzadas, y nuestras instituciones, una eterna y
violenta amalgama de cosas heterogneas.115
dos intelectuais daquela poca, inclusive autores como Karl Marx, explicitava no jornal El Comercio sua
convico de que a vitria dos Estados Unidos naquela Guerra representava a fora irresistvel do progresso, e
que os chilenos e platinos deviam preparar-se para o encontro inevitvel com a modernidade democrtica, sendo
a imigrao uma dessas formas, evitando o trauma sofrido pelos mexicanos. Cf. STURLA, Flavio A., Alberdi
en Chile. Un intelectual en busca de una espada, in Citerea. Perspectivas histricas y filosficas, primavera de
2006. Disponvel em: <http://www.citerea.com.ar/Historia/Alberdi.pdf> (acessado em 20/03/2013). Para conferir
as ideias de Marx sobre questes da Amrica, ver: MARX, Karl; ENGEL, Friedrich; SCORON, Pedro (org.).
Contribuio para uma Histria da Amrica Latina. So Paulo: Edies Populares, 1982. MARX, Karl. Simn
Bolvar por Karl Marx. Tradutora Vera Ribeiro. So Paulo: Martins, 2008.
115
ALBERDI, Juan. B., Fragmento preliminar al estudio del derecho, in Obras Completas de J. B. Alberdi.
Tomo I, Buenos Aires: La Tribuna Nacional, 1886, p. 112.
298
os territrios araucanos como um reino. Bello reconhecia-lhes o direito posse da terra, desde
que eles fizessem uso dela para subsistncia. Compreende que, caso as terras no fossem para
tanto utilizadas por esses povos, era justa sua ocupao por outras naes. Bello desenvolve a
questo como segue:
No final do ano de 1848, ao analisar o texto de Jos Hiplito Salas, Bello aborda
questes acerca da conquista e do modelo de colonizao espanhol, comparando-o ao
processo de colonizao norte-americano e produzindo explicaes histricas a respeito da
forma de ocupao da terra e de subjugao dos habitantes indgenas nas colnias hispano-
americanas. Bello reconhecia os problemas do sistema de conquista que formara o que
denominou de feudalismo, com vassalagem dos povos indgenas, erguido sobre a posse da
terra e pelo modelo negativo da encomienda , apesar de haver sido implantado em nome da
civilizao, do cristianismo e da produo econmica. Explicitou ainda sua opinio sobre a
possibilidade do estabelecimento de igualdade civil entre os espanhis e indgenas,
apresentando tambm uma valorao positiva sobre a sociedade da Amrica do norte, que
concebia como de carter homogneo. Acompanhemos o raciocnio de Bello sobre o passado
chileno:
116
BELLO, Andrs. Principios de derecho de gentes. Madri: Imprenta de Fuentenebro. Librera de la viuda de
Calleja e hijos, 1844, pp. 46-47.
300
Alberdi, em uma viso mais positiva dos criollos, entendia que as repblicas
americanas eram produtos da Europa, como tambm que na Amrica toda a civilizao
presente no continente era europeia. O espao do indgena na proposta de nao de Alberdi
no existia, ficando aquele alheio formao poltica da sociedade argentina. Segundo o
tucumano, [h]oy mismo, bajo la independencia, el indgena no figura ni compone mundo en
117
BELLO, Andrs, Memoria sobre el servicio personal de los indgenas y su abolicin, in Obras Completas
de Andrs Bello. Tomo XXIII [Historia y Geografa]. Caracas: La Casa de Bello, 1981, pp. 311, 315.
118
ALBERDI, Juan. B., Bases y puntos de partida para la organizacin poltica de la Repblica Argentina, in
Obras Completas de J. B. Alberdi. Tomo III, Buenos Aires: La Tribuna Nacional, 1886, p. 524.
301
nuestra sociedad poltica y civil.119 O coletivo dos americanos a que se referia Alberdi
inclua apenas brancos nascidos na Amrica, no pessoas que tivessem ascendncia indgena e
tampouco africana. A civilizao daqui falava espanhol, tinha sangue europeu e sua religio
era o cristianismo.120 Na Constituio proposta por Alberdi, conseguia a naturalizao em
tempo menor do que o mnimo previsto, de dois anos, aquele colono que se estabelecesse em
terra indgena. Para Alberdi, os americanos eram europeus e os indgenas, na poca, j no
existiam mais:
A rivalidade entre criollos e povos indgenas era para Alberdi uma questo da maior
importncia, encontrada na sociedade na poca em que escrevia. Nas palavras desse autor: en
Amrica todo lo que no es europeo es brbaro: no hay mas divisin que esta: 1 el indgena,
es decir, el salvage; 2 el europeo, es decir, nosotros, los que hemos nacido en Amrica y
hablamos espaol, los que creemos en Jesucristo y no en Pillan.122
Os gauchos tambm eram compreendidos como elementos de menor status e
civilizao na sociedade desejada em Bases y puntos, sendo esse coletivo um dos
responsveis pela situao negativa do pas e pela impossibilidade de dispor de leis de carter
mais liberal, como as encontradas nos Estados Unidos. Para Alberdi:
Por levar em conta esses traos na populao do pas, Alberdi prope uma substituio
dos elementos constitutivos da sociedade, visando estabelecer uma republica representativa.
Assim encontramos esta opinio em 1852:
119
Idem, p. 421.
120
Lendo os artigos da revista La Moda, podemos encontrar o apreo aos costumes europeus, com abordagem de
questes de moda, comportamentos, leituras e tendncias. ALBERDI, Juan. B., La Moda, in Obras Completas
de J. B. Alberdi. Tomo I, Buenos Aires: La Tribuna Nacional, 1886, pp. 263-399.
121
ALBERDI, Juan. B., Bases y puntos de partida para la organizacin poltica de la Repblica Argentina, in
Obras Completas de J. B. Alberdi. Tomo III, Buenos Aires: La Tribuna Nacional, 1886, p.423.
122
Idem, p. 422.
123
Idem, op. cit., p. 523.
302
124
Idem, pp. 523-524.
125
SHUMWAY, Nicolas, op. cit., p. 184.
126
ALBERDI, Juan. B., op. cit., p. 422.
303
leyes so ineficases para minorar o mal que nos aflige, onde tudo conspira
perpetuar a misria da nossa posio social.128
128
Idem, p. 54.
129
Idem, p. 50.
130
MYERS, Jorge, A revoluo de independncia no Rio da Prata e as origens da nacionalidade argentina
(1806-1825), pp. 69-130, in MADER, Maria Elisa; PAMPLONA, Marco A. (orgs). Revolues de
independncia e nacionalismos nas Amricas: Regio do Prata e Chile. So Paulo: Paz e Terra, 2007.
131
HALPERIN DONGHI, Tulio, A economia e a sociedade na Amrica espanhola do ps-independncia, in
BETHELL, Leslie (org), op. cit.
132
KREBS, Ricardo, Orgenes de la conciencia nacional chilena, in CID, Gabriel; FRANCISCO, Alejandro
San (edit.), op. cit., 2009, p. 11.
305
realidade, de refletir uma imagem europeia marcou o pensamento geral das elites ibero-
americanas por todo o sculo XIX, e nossos trs intelectuais, como era espervel, tampouco se
furtaram dinmica imperante nessa fase.
133
ABREU E LIMA, J. I., op; cit., p. 68.
134
ABREU E LIMA, J. I. Compendio de historia do Brazil. Tomo I, Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique
Laemmert, 1843a, pp. XIII-XIV.
307
Bello, por sua vez, estava menos preocupado em criticar o passado e mais interessado
em promover o futuro. No discurso pronunciado na Universidade do Chile, no obervamos
uma negao da tradio hispnica, mas uma tmida tentativa de aproximao, como ilustra o
fato de ter citado a possibilidade de uso por americanos dos dicionrios de Cervantes e do
frade Luis de Grana, porm preferindo ficar com os espanhis Iriarte e Moratn.
Esse posicionamento de Bello, por mais de uma vez, esteve presente nas polmicas
sobre a lngua castelhana. Assim como combateu a rejeio herana ibrica que estava
presente no debate estabelecido com Lastarria e Jacinto Chacn em 1844 e 1848, j havia
combatido antes propostas incisivas de mudanas na lngua de Cervantes em busca de fixar
um idioma nacional prprio, acreditando que este era uma maneira de alcanar uma
135
ALBERDI, Juan. B., Fragmento preliminar al estudio del derecho, in Obras Completas de J. B. Alberdi.
Tomo I, Buenos Aires: La tribuna Nacional, 1886, pp. 114-115.
136
Idem, p. 250.
308
137
BELLO, Andrs, Discurso pronunciado en la instalacin de la Universidad de Chile, el 17 de septiembre de
1843 in Obras Completas, tomo XXI [Temas Educacionales I], Caracas: Fundacin Casa de Bello, 1982, pp. 3-
21.
309
El autor ha credo que estn equivocados, los que piensan que entre nosotros
se trata de escribir un espaol castizo y neto: importacin absurda de una
legitimidad extica, que no conducira mas que la insipidez y debilidad de
nuestro estilo: se conseguira escribir la espaola y no se conseguira mas:
se quedara conforme Cervantes, pero no conforme al genio de nuestra
patria. [] Si la lengua no es otra cosa que una faz del pensamiento, la
nuestra pide una armona ntima con nuestro pensamiento americano, mas
simptico mil veces con el movimiento rpido y directo del pensamiento
francs, que no con los eternos contorneos del pensamiento espaol.139
138
BELLO, Andrs, Ejercicios populares de lengua castellana, in Obras Completas, tomo IX [Temas de
Crtica Literaria], Caracas: Fundacin Casa de Bello, 1981, p. 438.
139
ALBERDI, Juan. B., op. cit., p. 131.
140
Idem, pp. 131-132.
310
Abreu e Lima, assim como Bello, apresentava uma opinio mais positiva sobre a
Espanha e sua herana, pensando de maneira distinta de Alberdi. O brasileiro considerava no
Bosquejo histrico que a Espanha estava em condies melhores que Portugal, ao avaliar
diversos fatores, como uma produo literria reconhecida e um sistema de ensino superior ao
lusitano. Essas caractersticas se refletiam na Amrica, devido a existncia em territrio
hispnico de um mundo intelectual mais desenvolvido, com autores de referncia
internacional. Destaca-se tambm uma ideia de antiguidade cultural da nao espanhola, a
partir de uma continuidade com o imprio romano. Para o brasileiro:
141
ABREU E LIMA, J. I., op. cit., pp. 61-62.
311
Esses comentrios positivos de Abreu e Lima destoavam das crticas constantes dos
brasileiros feitas Amrica hispnica, devido s guerras civis que se sucediam e relacionando
as repblicas ibero-americanas com um estado constante de anarquia.143
Embora o contraste entre as duas regies fosse significativo, por meio das aes dos
jesutas e de Pombal, se encontravam iniciativas educacionais e civilizatrias tambm na
Amrica portuguesa. No Compendio da Historia do Brazil, a educao, a evangelizao e a
civilizao foram empreendimentos levados a cabo pelos jesutas, e no pelo Estado
portugus, em uma sociedade cujos costumes deveriam se restabelecer. De acordo com
Abreu e Lima, [d]esde a sua chegada empregaram os Missionarios todo o desvelo na
converso e civilisao dos selvagens; porm os obstculos eram grandes e numerosos,
porque era mister triumphar da deshumanidade e avareza dos colonos portuguezes. O
primeiro colgio fora construdo em So Paulo sob a direo de Anchieta, uma instituio
que, afirma, chegou a ser to famosa nos annaes da America Portugueza.144
De acordo com o estudo historiogrfico de Abreu e Lima, o continuador da expanso
dos costumes, da educao, do comrcio e da civilizao, e partidrio da restrio dos poderes
da inquisio, foi Pombal. O ministro portugus, considerado relevante para o
desenvolvimento intelectual, estimulou o genio dos Brasileiros, chamando-os aos mais
elevados empregos: espalhou com mo prodiga a instruco por todas as Capitanias: protegeu
as artes e as sciencias; animou a agricultura e o commercio; e tudo isto sem desatender
segurana do pais, labor que, segundo Abreu e Lima, a Historia imparcial deve
reconhecer.145
No entanto, a leitura mais tradicional sobre a anarquia poltica das repblicas hispano-
americanas no deixou de estar presente nas ideias de Abreu e Lima. Para ele, a escolha do
sistema republicano havia sido um erro por causa de esse no estar de acordo com os
costumes locais. Temos aqui a sua imagem sobre a situao dos vizinhos hispnicos:
142
Idem, p. 46.
143
SANTOS, Lus Cludio Villafae Gomes. O Brasil entre a Amrica e a Europa: o Imprio e o
interamericanismo (do Congresso do Panam Conferncia de Washington). So Paulo: Editora UNESP, 2004.
144
ABREU E LIMA, J. I. Compendio da Historia do Brazil. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert,
1843b, pp. 41, 44.
145
Idem, pp. 158, 160.
312
Abreu e Lima continua, a seguir, fazendo uma leitura sobre o sistema eleitoral da
Amrica hispnica, em que destaca o caso de Buenos Aires, indicada como paiz,
atribuindo-lhe uma referncia negativa,149 na argumentao contra o projeto do deputado. Em
relao aos breves governos e s propostas de organizao poltica das naes vizinhas,
discorria no Bosquejo histrico:
146
ABREU E LIMA, J. I. Bosquejo histrico, poltico e literrio do Brasil. Cidade de Nictheroy: Tipografia de
Rego e Comp., 1835, p. 127.
147
Idem, p. 23.
148
Idem, p. 37.
149
No Compendio da Historia do Brazil, Abreu e Lima dedica um captulo para tratar da independncia no Rio
da Prata, cujo ttulo comea com Revoluco e Independencia de Buenos-Ayres. ABREU E LIMA, J. I.
Compendio da Historia do Brazil. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1843b, pp. 175-180.
313
150
ABREU E LIMA, J. I. Bosquejo histrico, poltico e literrio do Brasil, Cidade de Nictheroy: Tipografia de
Rego e Comp., 1835, p. 37.
151
ALBERDI, Juan. B., Bases y puntos de partida para la organizacin poltica de la Repblica Argentina
Obras Completas de J. B. Alberdi. Tomo III, Buenos Aires: La Tribuna Nacional, 1886, p. 537.
314
Aunque la nacion puede dar su conductor los dictados y honras que quiera,
es conveniente en este punto se conforme al uso generalmente recibido,
proporcionndolos al poder efectivo. Un estado de corta poblacin, sin
rentas, comercio, artes ni letras, decorado con el nombre de imperio, lejos de
granjearse mas consideracin y respeto, se hara ridculo.152
Alberdi, por sua vez, reconhecia a monarquia como um sistema de governo adequado
ao Brasil, devido sua tradio ininterrupta e sempre em marcha rumo civilizao.
Entretanto, no acreditava que o sistema monrquico fosse uma opo para os pases da
Amrica espanhola, uma vez que a repblica, mesmo apresentando problemas, era a forma de
governo estabelecida neles desde a poca da emancipao. Podemos apreciar a seguir sua
opinio sobre o assunto em Bases y puntos:
Abreu e Lima, como j foi dito, acreditava que a monarquia deveria ser o caminho
escolhido tambm pelos pases hispano-americanos. Para ele, a Amrica espanhola imitara o
pas errado, os Estados Unidos, cuja histria e costumes prprios lhe permitiram estabelecer o
152
BELLO, Andrs. Principios de derecho de gentes. Madri: Imprenta de Fuentenebro. Librera de la viuda de
Calleja e hijos, 1844, p. 119.
153
ALBERDI, Juan. B., op. cit., p. 414.
315
sistema republicano. O modelo mais adequado para a Amrica ibrica seria, para o
pernambucano, o da Inglaterra, que estabelecera uma monarquia constitucional hereditria,
frmula adotada pelo Brasil.154 Para Abreu e Lima, a explicao para a manuteno da
unidade territorial e a ausncia de guerras civis no pas remetia permanencia da monarquia.
Assim como Alberdi e Bello, acreditava que as leis deveriam ser codificadas de acordo com o
perfil do povo que as fazia. Assim:
educacin del pueblo, como uno de los objetos ms importantes y privilegiados a que pueda
dirigir su atencin el gobierno; como una necesidad primera y urgente; como la base de todo
slido progreso; sendo a instruo primria para Bello, como indicado no captulo II, uma
obrigao pela qual a universidade deveria velar em especial. Para o caraquenho, as cincias
prticas, aplicadas ao crescimento do pas, eram perseguidas e incentivadas, porm sem deixar
de fomentar o que denominou formao moral, coletiva e patriota. Assim, as primeiras
letras, s quais a universidade daria uma ateno especial, teriam de ser difundidas entre as
massas, para alm da leitura e das operaes matemticas, pois tambm deveriam produzir um
ser reflexivo e cidado. Em termos de projetos defendidos, Bello tinha uma perspectiva mais
ampla e igualitria do que Abreu e Lima, e destoante da proposta elitista apresentada por
Alberdi em Bases y puntos.159
Apesar de Alberdi no propor uma igualdade civil, no Fragmento preliminar
acreditava no progresso material e intelectual para as massas. No entanto, o espao deixado
plebe, assim referida, e o seu posicionamento frente ordem mudaram substancialmente ao
longo do tempo. Em 1837, Alberdi buscava melhores condies materiais para quem chamou
de plebe, tambm reconhecida como a prpria nao, visualizando na educao um dos meios
de alcanar seus objetivos. Alberdi, expressando uma opinio mais includente, reconhecia
como povo um leque mais amplo da sociedade, mostrando crena em sua educao e em seu
progresso. Assim argumentava:
159
BELLO, Andrs, Discurso pronunciado en la apertura del colgio santo tomas, in Obras Completas, tomo
XXI (Temas Educacionales I), Caracas: Fundacin Casa de Bello, 1982, p. 10.
160
ALBERDI, Juan. B., Fragmento preliminar al estdio del derecho, in Obras Completas de J. B. Alberdi.
Tomo I, Buenos Aires: La Tribuna Nacional, 1886, pp. 128-129. Consultar: HALPERN DONGHI, Tulio.
Proyecto y construccin de una Nacin: 1846-1880. Buenos Aires: Emec Editores, 2007, pp. 18-19.
317
mais pobres do proposto pas, ao ser vista apenas como uma sada econmica para a prpria
nao conseguir a pervivncia dos avanos alcanados com a estabilidade dos ltimos anos.
Defendeu uma educao meramente instrumental e no destinada formao de um cidado
reflexivo, como propunha para as elites platinas. Alberdi criticou o processo educacional que
a Argentina aplicara nas ltimas dcadas, pois no considerava que o fato de ter oferecido a
instruo primria ao povo houvesse gerado ganhos prticos sociais. por posicionamentos
como este que Donghi caracteriza Alberdi, o idelogo renovador, como um herdeiro do
letrado colonial.161 Alberdi acreditava que o tipo de educao reflexiva inspirava o povo a se
rebelar e no contribua para o progresso da ptria. Segundo o tucumano em Bases y puntos:
161
HALPERN DONGHI, op. cit., p. 56.
162
ALBERDI, Juan. B., Bases y puntos de partida para la organizacin poltica de la Repblica Argentina, in
Obras Completas de J. B. Alberdi. Tomo III, Buenos Aires: La Tribuna Nacional, 1886, p. 416.
163
ALBERDI, Juan. B., op. cit., p. 427.
164
Idem, p. 412.
318
165
Idem, p. 417.
166
Idem, p. 418.
167
Idem, p. 432.
168
ABREU E LIMA, J. I. Bosquejo histrico, poltico e literrio do Brasil. Cidade de Nictheroy: Typographia
Nictheroy de Rego e Comp. 1835, p. 73.
319
4.3 Os historiadores
desde o princpio, com uma produo constante e um pensar reflexivo sobre mtodos e temas
que deveriam nortear a historiografia chilena e o passado nacional. Adicionado a estas
caractersticas, encontramos o espao que os temas historiogrficos tomaram nas polmicas
impressas, em que estiveram envolvidos nomes importantes como o de Andrs Bello, Jos
Victorino Lastarria e Jacinto Chacn, entre outros.170
Na Argentina, a gerao preocupada com a interpretao do passado esteve mais
ligada literatura e anlise social do que Brasil e no Chile. A historiografia platina da
dcada de 1830 abordou o passado sem envolver-se em discusses metodolgicas, embora
essas no estivessem ausentes por completo. Ditas preocupaes, de maneira geral e mais
sistematizada, se verificaram nos trs pases apenas na segunda metade do sculo XIX, fator
pelo qual tambm tardaram a ser focos de interesse nas instituies de ensino.171
Alberdi, Abreu e Lima e Bello estiveram envolvidos com o debate historiogrfico e
tambm produziram trabalhos de histria, como observado nos captulos II e III. No entanto,
no esto classificados nos cnones da disciplina como historiadores. Deles, o que mais se
aproxima de um reconhecimento como historiador Abreu e Lima, devido sua passagem
pelo IHGB e produo de algumas obras, que, mesmo no tendo prevalecido no panteo do
Instituto, eram referidamente de histria. Bello, apesar da dita discusso sobre historiografia,
no aparece como um produtor de trabalhos da rea; porm, prevalece no meio especializado
chileno, do passado e do presente, como o idelogo da abordagem que resultaria hegemnica
no tocante teoria e metodologia da produo historiogrfica chilena decimonnica. Alberdi
produziu trabalhos de histria que se encontram entre as primeiras produes de cunho mais
nacional, as quais, por sua vez, influenciaram as produes posteriores. Em suas anlises
sociais do presente, dedicou-se tambm a discorrer sobre acontecimentos do passado e sobre
personagens que ficariam marcados na memria argentina. Para usar a expresso de
Shumway, Alberdi foi relevante produtor das fices-diretrizes que marcaram a construo da
argentinidad.
A histria, com sua ideia de mestra da vida, encontrada em nossos trs historiadores,
esteve entre as principais estratgias para conseguir organizar os nacionalismos e construir o
Estado nacional na Amrica. As historiografias do sculo XIX, atreladas a questes para alm
170
STUVEN, Ana Mara, La generacin de 1842 y la conciencia nacional chilena, in Revista de Ciencia
Poltica, Vol. IX, n. 1, 1987. GAZMURI, Cristin R. La historiografa. chilena (1842-1970). Tomo I. Santiago
de Chile: Centro de investigaciones Diego Barros Arana, 2006. ARNOUX, Elvira Navaja de. Los discursos
sobre la nacin y el lenguaje en la formacin del estado (Chile, 1842-1862). Estudio glotopoltico. Buenos
Aires: Santiago Arcos editor, 2008.
171
WEINBERG, Flix, op. cit.; SHUMWAY, Nicolas, op. cit.
321
172
LEMPRIRE, Annick, Partidos polticos e nao na Amrica hispnica: uma histria ou uma historiografia
comum?, in CARVALHO, Jos M. de; NEVES, Lcia Maria B. P. de (orgs). Repensando o Brasil do
Oitocentos: cidadania, poltica e liberdade. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2009, pp. 463-484.
173
SHUMWAY, Nicolas, op. cit., p. 286.
174
Idem, pp. 247-249.
175
BEIRED, Jos Lus Bendicho, op. cit.
322
176
ALBERDI, Juan. B., Bases y puntos de partida para la organizacin poltica de la Repblica Argentina
Obras Completas de J. B. Alberdi. Tomo III, Buenos Aires: La Tribuna Nacional, 1886, pp. 444-448.
177
HALPERN DONGHI, Tulio, op. cit., pp. 18-19.
178
ALBERDI, Juan. B., El General San Martn en 1843, in Obras Completas de J. B. Alberdi. Tomo II,
Buenos Aires: La Tribuna Nacional, 1886, pp. 333-342.
179
ALBERDI, Juan. B., Biografa del General Don Manuel Bulnes, in Obras Completas de J. B. Alberdi.
Tomo II, Buenos Aires: La Tribuna Nacional, 1886, pp. 413-173.
323
Esto es decir que avanzarn tanto como hoy lo est la Repblica Argentina,
no importa por qu medios. Rosas es un mal y un remedio la vez: la
Amrica lo dice as respecto de Buenos Aires; y yo lo reproduzco como
verdadero, respecto de la Amrica, para mas adelante. No es este un maligno
y vengativo presajio de un mal deseado. Aunque opuesto Rosas, como
hombre de partido, he dicho que escribo esto con colores argentinos. Rosas
no es un simple tirano mis ojos. Si en su mano hay una vara sangrienta de
fierro, tambin veo en su cabeza la escarapela de Belgrano. No me ciega
tanto el amor de partido para no conocer lo que es Rosas, bajo ciertos
aspectos.180
Alberdi foi um produtor de vises do passado concebidas com mais frequncia a partir
de questes polticas do presente, contaminadas com um pragmatismo imediato, do que com
base na documentao e na pesquisa sobre fontes e fatos. A reflexo, como tambm a poltica,
foi o carro chefe que marcou a produo historiogrfica de Alberdi, mais centrada na
historiografia filosfica do que na metdica.
No Brasil, Abreu e Lima produziu obras destinadas a pensar a nascente historiografia
nacional, refletindo sobre a periodizao, ressaltando a importncia de determinados fatos e
heris, e reforando mtodos e teorias compreendidas tradicionalmente como o incio de uma
historiografia propriamente dita, com uma perspectiva metdica. Publicou em torno de dez
trabalhos que envolviam o tema da histria, um campo de interesse definido ainda na Gr
180
ALBERDI, Juan. B., La Repblica Argentina 37 aos despus de su Revolucin de Mayo, in Obras
Completas de J. B. Alberdi. Tomo III, Buenos Aires: La Tribuna Nacional, 1886, p. 223.
324
Colmbia, onde produziu Resumen Histrico de la ltima dictadura del libertador Simon
Bolvar,181 para fazer uma defesa do governo de Bolvar, em meados da dcada de 1820, de
acusaes que sofria na Europa.
Como membro do IHGB, publicou sua obra de histria mais reconhecida, o
Compendio da Historia do Brazil, editado em 1843182 em resposta s necessidades de
periodizao propostas pelo instituto logo de sua criao. Abreu e Lima produziu um dos
primeiros trabalhos da historiografia brasileira veiculada pela instituio. Este livro abriu
espao para uma polmica historiogrfica entre Abreu e Lima e Varnhagen que se assemelha
ao embate de Bello e Lastarria, na qual estavam envolvidas questes polticas com o prprio
exerccio da produo sobre o passado.
Dita polmica pode ser acompanhada na avaliao negativa de Varnhagen sobre o
Compendio, publicada pela Revista dessa instituio sob o ttulo de Primeiro Juzo Submetido
ao Instituto Histrico e Geographico Brasileiro pelo seu scio Francisco Adolpho de
Varnhagen, acerca do Compendio da Historia do Brazil pelo Sr. Jos Igncio de Abreu e
Lima.183 Abreu e Lima, ento, promoveu uma resposta em que os itens histricos levantados
por Varnhagen eram debatidos e questionados, bem ao tom das polmicas de meados do
sculo XIX. Na ocasio, publicou, em forma de livro, a Resposta do General J. I de Abreu e
Lima ao Cnego Janurio da Cunha Barboza ou Analyse do primeiro juizo de Francisco
Adolpho Varnhagen acerca do COMPENDIO DA HISTORIA DO BRASIL.184
Este no foi seu ltimo trabalho sobre a histria do pas. Em Recife, publicou Sinopse
ou deduco chronologica dos factos mais notveis da histria do Brasil, de 1845, trabalho
esse mais detalhado que os anteriores e em que traz os acontecimentos organizados por anos e
perodos, porm ausente de interpretaes e anlises sobre o Brasil.185 Tanto nesse livro como
no Compndio, o apreo monarquia e famlia real foram destacados, relacionando o
181
ABREU E LIMA, J. I. Resumen Histrico de la ltima dictadura del libertador Simon Bolvar. Rio de
Janeiro: empre. Ind. Editora O Norte, 1922.
182
ABREU E LIMA, J. I. Compendio da Historia do Brazil desde o seu descobrimento at o magestoso acto de
coroao e sagrao do Sr. D. Pedro II, Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1843a.
183
VARNHAGEN, Adolpho, Primeiro Juizo submetido ao Instituto Histrico e Geographico Brasileiro pelo
seu scio Francisco Adolpho de Varnhagen, acerca do Compendio da Historia do Brazil pelo Sr. Jos Igncio de
Abreu e Lima, in: Revista Trimensal de Histria e Geografia ou Jornal do Instituto Histrico e Geogrfico
Brasileiro, tomo VI, 1843.
184
ABREU E LIMA, J. I. Resposta do General J. I. de Abreu e Lima ao Cnego Janurio da Cunha Barbosa ou
anlise do primeiro juizo de Francisco Adolf de Varnhagen acerca do Compendio da Historia do Brazil.
Pernambuco: na typographia de M. F. de Faria, 1844.
185
ABREU E LIMA, J. I. Sinopse ou deduco chronologica dos factos mais notveis da histria do Brasil.
Pernambuco. na Typ. M. F. de Faria, 1845.
325
Felizmente para o Brasil, no sou eu o nico que assim pensa; antes de mim
muitos dos meus compatriotas tem j concorrido com a sua quota para o
deposito commum; mas torno a repetir: todo aquelle que lanar mais uma
pedra, ser digno de galardo. E como na litteratura propriamente dita tem o
primeiro logar a historia, nenhum servio ser mais apreciado do que aquelle
que comear por preparar-lhe os elementos, averiguando e ordenando os
factos, corrigindo e verificando as datas, e sobre tudo esmerilhando antigos
documentos para salva-los do esquecimento, ou para comprovar muitos
feitos, que pela diuturnidade passam hoje por meramente fabulosos, ou que
viro a parece-lo no futuro, se correrem sem provas da sua realidade.186
186
ABREU E LIMA. J. I. Compendio da Historia do Brazil. Tomo I, Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique
Laemmert, 1843a, pp. VII-VIII.
187
Idem, p. XI.
326
Seu posicionamento negativo frente aos portugueses esteve menos presente quando o
referencial era a monarquia e sua relao com a colnia americana. Se, no mundo hispnico, o
incio da nao foi reconhecido nos eventos de emancipao iniciados em 1810, no Brasil o
ano de 1822 apareceu como o referencial sobre a origem da nao. Sobre o processo de
independncia do Brasil, Abreu e Lima fez a seguinte anlise, em que ressalta sua
peculiaridade:
Abreu e Lima reiterava sua viso sobre a manuteno da unidade brasileira, que
achava positiva em contraste com a situao na Amrica hispnica, pela ausncia de guerras
civis. De fato, a importncia da monarquia era tamanha, que essa tornva-se um instrumento
produtor da civilizao brasileira. Para explicar os efeitos possveis do fim da monarquia,
retomava os argumentos que havia lanado em 1835. Para ele:
188
Idem, p. 260.
189
ABREU E LIMA, J. I. Compendio da Historia do Brazil. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert,
1843b, p. 226.
327
Abreu e Lima no teve uma produo to volumosa sobre a histria do Brasil quanto a
de Varnhagen. No entanto, produziu trabalhos que tiveram efeitos relevantes sobre
pesquisadores e estudantes de meados do sculo XIX. Em diversos estudos, o pernambucano,
ao declarar sua metodologia, afirmou ter compilado trabalhos anteriores, fato que o
prejudicou quanto a uma produo mais original. De alguma maneira, embora no seja pelo
lugar que ocupa entre os autores renomados da historiografia nacional, pode ser comparado
com Bartolom Mitre, que abusava da compilao de documentos em suas obras. Slvio
Romero, como diversos outros autores, reconhece a importncia do pernambucano. Contudo,
considera-o um historiador que participou de temas pioneiros, mas de um nvel menor em
comparao com seus pares brasileiros da poca.
No Chile, Bello foi uma referncia no campo da educao em geral e da metodologia
historiogrfica em particular. J a produo literria sobre o passado no foi um dos ramos do
conhecimento no qual Bello se dedicou a escrever e publicar, apesar de ter iniciado suas
publicaes com uma obra de histria, Resumen de la historia de Venezuela, na revista
Calendario manual y gua universal de forasteros en Venezuela para el ao de 1810,
considerada a primeira publicao na Capitania Geral da Venezuela. Seus trabalhos mais
importantes para a historiografia apareceram no Chile, em forma de artigos e publicados nos
j referidos artigos do El Araucano, em geral analisando trabalhos de outros autores, mais
concentrados em questes de teoria e metodologia.
Em Londres, Bello foi um divulgador das questes polticas americanas, de sua
literatura e sua histria. Procurou difundir a cultura do Novo Mundo como tambm promover
a pesquisa sobre o continente. No El Araucano de 17 de novembro de 1837, encontra-se a
constatao da difuso da historiografia americana, como tambm uma ideia de defesa sobre
as informaes veiculadas na Europa, em um momento em que ainda no havia o
reconhecimento pleno dos novos pases americanos. Explicava-se Bello:
190
Idem, pp. 263-264.
328
No primeiro trabalho publicado por Bello, ainda em Caracas, j podemos ver a afeio
caracterstica da produo do incio de sculo XIX desenvolvida na regio, onde o amor
ptria se mistura aos eventos narrados. Alm de exaltar a terra natal, Bello j demonstrava
apego ao mundo acadmico e j propunha uma reflexo mais sistematizada sobre a histria da
Capitania Geral da Venezuela. De acordo com a proposta explicitada em 1810:
191
BELLO, Andrs, Sobre los nuevos estados hispanoamericanos, in Obras Completas de Andrs Bello. Tomo
XXIII [Historia y Geografa]. Caracas: La Casa de Bello, 1981, p. 113.
192
BELLO, Andrs, Resumen de Historia de Venezuela, in idem, p. 5.
329
filosofa de la historia de Europa ser siempre para nosotros un modelo, una gua, un
mtodo; nos allana el camino; pero no nos dispensa de andarlo.193 Bello acreditava que,
naquele momento, o Chile deveria produzir uma historiografia prpria, voltada para o
particular, para o especfico local: Esta filosofa debe estudiarlo todo; debe examinar el
espritu de un pueblo en su clima, en sus leyes, en su religin, en sus industria, en sus
producciones artsticas, en sus guerras, en sus letras y ciencias.194
O incentivo busca local no estava presente apenas nas questes historiogrficas e
filosficas, mas igualmente nas de direitos, como vimos, e na vida de forma geral, pois
aquelas deveriam fazer parte de um olhar e um modo de ser prprio. Em um de seus
discursos, este menos conhecido e tambm para uma instituio educacional, o Colegio Santo
Tomas em agosto de 1848, Bello demonstra sua opinio:
Yo miro, seores, a Herder como uno de los escritores que han servido ms
tilmente a la humanidad: l ha dado toda su dignidad a la historia,
desenvolviendo en ella dos designios de la Providencia y los destinos a que
es llamada la especie humana sobre la tierra. Pero el mismo Herder no se
propuso suplantar el conocimiento de los hechos, sino ilustrarlos,
explicarlos; ni se puede apreciar su doctrina, sino por medio de previos
estudios histricos. Sustituir un esqueleto en vez de un traslado vivo del
hombre social; sera darle una coleccin de aforismos en vez de poner a su
vista el panorama mvil, instructivo, pintoresco, de las instituciones, de las
costumbres, de las revoluciones, de los grandes pueblos y de los grandes
193
BELLO, Andrs, Modo de escribir a la Historia, in idem, pp. 237, 240.
194
Idem, p. 238.
195
Este discurso foi publicado em La Revista Catlica, n. 165, Santiago, 15 de setembro 1848. BELLO, Andrs,
Discursos pronunciados el 4 de agosto de 1848 en la apertura del Colegio de Santo Domingo en el Convento
de Predicadores de esta Capital, in Obras Completas, tomo XXI (Temas Educacionales I), Caracas: Fundacin
Casa de Bello, 1982, p. 23.
330
196
BELLO, Andrs, Discurso pronunciado en la instalacin de la Universidad de Chile, el 17 de septiembre de
1843, in idem, p. 19.
197
BELLO, Andrs, Modo de Estudiar la Historia, in Obras Completas de Andrs Bello. Tomo XXIII
[Historia y Geografa]. Caracas: La Casa de Bello, 1981, pp. 245-246.
331
***
Nossos trs interlocutores nos ofereceram diversas informaes sobre a nao, suas
opinies sobre o passado, sobre o presente, como tambm suas aspiraes para um futuro da
Amrica ibrica como um todo. Escreveram pensando no momento da produo, respondendo
s questes que os levavam a refletir sobre as novas entidades polticas, visando elaborao
de um corpus intelectual nacional. A conscincia sobre o momento foi um trao nas obras
estudas. Comparativamente, podemos compreender espaos mais amplos, regionais, de
circulao de discursos, medida que as especificidades nos levaram a buscar a compreenso
das escolhas em cada momento analisado. O sentimento nacional foi uma constante em suas
obras, mesmo no havendo delimitaes mais apuradas sobre o que era esse nacional. A
nao se fazia enquanto o nacionalismo tomava formas nacionais, delimitadas por um
conjunto de aparelhos de Estado e de iniciativas individuais.
CONSIDERAES FINAIS
1
ALTAMIRANO, Carlos (Dir.). Historia de los intelectuales en Amrica Latina. La ciudad letrada, de la
conquista al modernismo. Buenos Aires: Katz Editores, 2008, p.15. PRADO, Maria Ligia Coelho, A
Participao das Mulheres nas Lutas pela Independncia Poltica da Amrica Latina, in Amrica Latina no
Sculo XIX: Tramas, Telas e Textos. So Paulo, Editora Universidade de So Paulo, 2004, pp. 29-52.
333
tercirios, como o prprio Abreu e Lima, que apresentam considervel produo intelectual,
por vezes pouco estudada.
Diante desse imenso universo de possibilidades, restringimos nosso olhar e nos
decidimos pela escolha apresentada neste trabalho, com foco nas representaes de nao
produzidas por Juan Bautista Alberdi, Jos Incio de Abreu e Lima e Andrs Bello, levando
em conta o envolvimento dos trs autores na produo de uma incipiente historiografia
nacional que se esboava e passava a se desenvolver no momento. Caso considerssemos a
totalidade da produo conhecida de cada intelectual, nossas fontes seriam demasiado
extensas para um estudo desta natureza. Assim, analisamos textos que foram produzidos e
circularam entre 1830 e 1860, embora seu impacto no se restringisse a esta ltima data, j
que, em sua maior parte, foram reeditados por dcadas seguintes, chegando at as edies
recentes. Entretanto, com o passar do tempo, tais escritos migraram de contemporneos textos
polticos, jornalsticos, histricos ou literrios, condio de documentos histricos.
Pudemos constatar, durante o estudo das publicaes de Alberdi, Bello e Abreu e
Lima, como no incio do sculo XIX a nao era um tema central e que se desenvolvia em
conjunto com a criao de novos Estados na Amrica. Em trabalhos de diferente natureza, as
referncias nao ou a elementos que a constituam estavam presentes, e o faziam com fins
pragmticos. A conscincia nacional e o fazer consciente pela edificao do nacional eram o
objetivo mais amplo que impulsionava tais produes. Fins polticos, pedaggicos, culturais
estavam na origem dos textos, dedicados a governantes, ao pblico leitor (bastante reduzido),
ao Estado, ptria, como tambm nao; transformando conceitos (ptria e nao), ento
distintos na poca, em sinnimos e vinculando-os ao Estado.
Os documentos que abordamos, principalmente os da dcada de 1830, representam o
perodo inicial de um processo de construo visando estabelecer uma perspectiva nacional
sobre os Estados que emergiam nos atuais territrios da Argentina, Brasil e Chile. A
flexibilidade e as modificaes do vocabulrio poltico que gira em torno das ideias de nao
e dos elementos que concebemos estar relacionados a ela povo, literatura, forma de
governo, histria indicam a indefinio dos traos que preencheriam as novas identidades
que se estabeleciam poca. Nas obras que selecionamos, procuramos identificar diversas
ideias, fragmentos, relaes variadas formadas por alinhamentos ideolgicos, confrontos de
projetos, conscientes e inconscientes, que a partir de uma extensa e dinmica rede cultural iam
construindo tendncias mais amplas, que se firmaram por sua fora ou que foram derrotadas,
temporria ou definitivamente.
334
histrico. J Alberdi foi um dos pioneiros argentinos na produo de vises do passado, mais
relacionadas ao processo de independncia e aos grandes homens da histria local. No
entanto, com a fora do Fragmento preliminar, de Bases y puntos, como tambm de obras
posteriores, seu nome ficou associado de forma predominante ao campo jurdico, mesmo seus
textos se apresentando como carregados de interpretaes e relatos do passado.
Encontramos a concepo de histria mestra da vida em Alberdi, Abreu e Lima e
Bello. A escrita histrica, do ponto de vista que a concebem, era uma cincia que contribua
para a formao moral do povo de uma nao, bastante em voga naqueles tempos. Em Bello e
em Abreu e Lima na dcada de 1840, encontra-se uma concepo de historiografia mais
apurada aos estudos metdicos que se desenvolveriam na Amrica ibrica, com mais vigor, na
segunda metade do sculo XIX. Em ambos notamos o apreo documentao e consulta de
fontes. Na primeira verso do Compendio da Historia do Brazil, um grande nmero de notas
remete documentao e s fontes, assim como houve pelo autor a preocupao em consultar
e formar arquivos ainda quando residia na Amrica hispnica na dcada de 1820, como se
pode observar no Resumen histrico de la ltima dictadura del Libertador Simn Bolvar.
Alberdi, neste aspecto, se diferenciava dos outros dois pensadores, pois estava mais prximo a
uma histria filosfica, interpretativa e menos documental. Aproximava-se e participava do
coro adepto concepo historiogrfica defendida pelo chileno Jos Victorino Lastarria, a que
Bello tanto se contraps sobre o tema na dcada de 1840 pelo peridico estatal El Araucano.
O encontro entre os novos Estados que se constituam e as novas ideias de nao que
de conformavam na dcada de 1830, as quais vamos chamar de nacionalismos modernos, fez
que se fortalecessem mutuamente, uma vez que o Estado passou a usar as identidades para se
legitimar e, concomitantemente, dar apoio, incentivo e promoo s ideias do nacional. As
universidades e o IHGB representam bem este papel ao produzir concepes para os pases
que buscavam um caminho para sua efetivao. A nao o combustvel e o Estado, o
veculo, ambos formantes do Estado nacional. Os novos pases foram constitudos dentro de
conjunturas polticas e culturais atreladas a propostas que os definissem, com base em um
passado e em uma tradio inventada, mitolgica, porm no totalmente inexistente. As
dcadas de 1830, 1840 e 1850 demonstram-se perodos onde as ideias de nao resultavam
essenciais, mas ainda em estgio embrionrio de formao quanto s caractersticas segundo
as quais cada Estado-nao iria conformar-se at o fim do sculo XIX. O processo de
construo dos Estados nacionais na Amrica ibrica foi gradual. Considerando seu incio na
primeira metada oitocentista, nas primeiras produes da dcada de 1830 desponta a crena
336
na necessidade de se construir uma identidade para a nao. Entretanto, ela viria a existir
como uma realidade consolidada apenas na segunda metada do sculo XIX. As elites
buscavam traos e significados de um passado e de um momento de constituio, de um povo,
de uma produo intelectual prpria que ainda estava por conformar-se a partir de elementos
mais concretos.
A nacionalidade foi proposta e tambm difundida por ideias produzidas por membros
pertencentes s elites americanas, alimentados pelos movimentos cvicos e sua linguagem
especfica, ligados s questes colocadas pela Revoluo Francesa, posteriormente agregando
ao ambiente intelectual e poltico o repertrio romntico proveniente da Europa. Estas
dcadas de transio, por vezes marcadas em suas concepes e dinmicas, so caracterizadas
por um leque ecltico de possibilidades e pela convivncia de ideias. Conforme foi dito, nas
primeiras dcadas oitocentistas o nmero de letrados participantes nesses grupos de
pensadores da nao era bastante reduzido. O impulso inicial na modernizao e ampliao do
sistema educacional, como forma de constituir as comunidades imaginadas, resultou tmido,
elitista e de avano gradual. Na segunda metade daquele sculo, passou-se a uma ampliao
ainda reduzida, porm j em busca de atingir, ao menos quanto s primeiras letras, as massas
urbanas dos pases estudados, fato que se tornou uma realidade antes na Argentina e no Chile
do que no Brasil.
A nao proposta pelos trs autores aqui estudados estava fixada no Estado e
envolvida com as ideias que a vinculavam com o progresso em direo civilizao,
espelhada na Europa e nos Estados Unidos. Politicamente ligavam a nao ao contrato social,
no seio do povo, ou entre povos como Alberdi, que considerou por vezes as provncias
como sujeitos polticos, ou mesmo a vontade dos imigrantes estrangeiros em confirmar esse
contrato, porm sem excluir a ligao terra por meio do nascimento. A prpria nao
representada como desejo e realizao do povo. Sua legitimidade estava, portanto,
estabelecida sobre a representao do pacto coletivo entre os integrantes de certo espao
territorial e um soberano, constituindo um espao de exerccio da soberania, ocupando um
territrio e convertendo-se, tambm, em sujeito poltico internacional. Os referenciais
utilizados por esses autores estavam mais vinculados aos avanos e conceitos cvicos,
atrelados ao reconhecimento do cidado, do povo e do Pacto Social, do que aos elementos
identitrios trazidos pela onda romntica que caracterizou as dcadas finais da primeira
metade do sculo XIX. Apesar do interesse pelo romantismo, a linguaguem ainda recaa em
boa parte sobre o discurso cvico, tornando-se as novas ideias um referencial a se construir.
337
2
HOBSBAWM, Eric. A era do capital, 1848-1875. So Paulo: Editora Paz e Terra, 1996.
338
do possvel, de seu projeto nacional. Bello tambm reconheceu o direito de o Estado chileno
ocupar terras que julgava no utilizadas pelos mapuches, outra maneira de levar a civilizao
barbrie. Os povos indgenas, para Bello, eram um incmodo e um entrave construo de
um Chile moderno. No Brasil, os povos indgenas tampouco circularam como valores
positivos nas ideias de Abreu e Lima, que os reconhecia tambm como selvagens e brbaros,
mesmo sendo pouco mencionados nos textos discutidos. De modo mais positivo, seguindo as
ideias de Humboldt, o pernambucano escreveu sobre as civilizaes pr-colombianas do
Mxico e do Peru, reconhecendo a eles um passado grandioso.
Nas leituras de nao de nossos personagens, a composio tnica da populao tinha
relevncia, pois os costumes eram a base do que se necessitava para erigir uma nao
civilizada e moderna. Apontou-se constantemente a moral dos povos como fonte sobre a qual
se constituem as instituies. Os costumes europeus, sobretudo do norte, e dos Estados
Unidos eram louvados em contraste com a realidade que se encontrava na Amrica ibrica, de
indgenas, negros, gauchos e mestios. Trata-se de uma leitura espelhada na populao
europeia e na norte-americana, vistas como homogneas em contraste com a heterogeneidade
da Amrica ibrica no Brasil com o foco nos negros e em seus descendentes, e na
Argentina e no Chile, sendo a questo indgena o motivo do fracasso civilizacional. O
mestio, relacionado diversidade de matrizes tnicas, era enxergado como um problema
comum.
A nao, para o pernambucano Abreu e Lima, era encontrada tambm na populao,
como em Alberdi. Em ambos, a populao era essencial para se construir uma nao. Em
nome dos bons costumes, os trs autores produziram ideias que fortaleciam as diferenas
sociais nos trs pases. Alberdi foi quem formulou uma viso mais negativa no tocante aos
povos indgenas e aos mestios, sobretudo em Bases y puntos, obra onde consta a famosa
frase governar povoar. Sua opo por imigrantes europeus, brancos, e de preferncia
protestantes da Inglaterra, era a base para a constituio da nova nao moderna argentina e
unificada. A admirao pelos Estados Unidos pode ser verificada na influncia exposta no
texto de Alberdi que foi base da Constituio de 1853. Buscava nestes povos o avano do
capitalismo no continente, desejando, com o recurso a trabalhadores mais especializados,
fomentar o desenvolvimento social e econmico de esse segmento da populao do pas.
Tambm como seus colegas, sobretudo Abreu e Lima, procurava, com imigrantes europeus,
empreender o processo de embranquecimento das populaes daquelas naes. Em Abreu e
Lima, o apreo pelo desenvolvimento dos Estados Unidos, com a ideia de uma populao
339
constituir recaa sobre a existncia de uma populao heterognea, com sua maioria negra,
indgena ou mestia, mal formada culturalmente, degenerada e em permanentes conflitos
sociais decorrentes da escravido africana e no racismo penetrado na cultura brasileira. Em
Bello, os costumes tambm resultavam fundamentais para a edificao de uma nao
republicana, inserida dentro da poltica e economia ocidentais. A sua anlise do sucesso do
Estado chileno insistia na ideia de uma virtud, trao essencial de civilizao e condio
imprescindvel para a viabilidade do pacto social. Esse estado cultural ou essa renovao dos
costumes na Amrica s poderiam ser alcanados por meio da educao, que no deveria, no
entanto, ser ofertada em todos os nveis aos diversos atores sociais que compunham a nao.
Nesse sentido, visando nacionalizao pelas letras, o projeto de Bello previu uma
educao mais inclusiva do que a de Alberdi, uma vez que propunha um sistema educacional
ampliado para a formao de cidadania. Os trs mostraram-se preocupados com o tema da
educao, embora Bello e Abreu e Lima estivessem mais envolvidos com a questo na
prtica, ao terem trabalhado como professores, como escritores de manuais e pensadores
sobre o sistema educacional. Abreu e Lima ocupou-se da educao ainda quando estava
servindo no Rio de Janeiro e conclua seus estudos na Academia Militar, momento em que
foi enviado a Angola para ensinar aos militares naquela colnia portuguesa. Em Angostura,
ofereceu seus servios a Bolvar procurando instruir os militares em tticas de guerra, cincias
matemticas, geografia e histria. Alberdi, como estudante desaplicado, mais interessado na
msica e nos sales, permaneceu mais distante do mundo do ensino, tornando-se conhecido
como advogado. Em matria de educao, foi Bello indubitavelmente e reconhecidamente um
elemento central para o desenvolvimento do sistema educacional chileno, assim como
Sarmiento o seria na Argentina. Desde os tempos de preceptor de Bolvar, Bello no deixou
de se envolver com o campo da educao.
Os trs consideraram bsicas as primeiras letras, porm o fariam de maneira distinta.
Bello propunha uma formao mais humanstica e moral, visando ptria, desde o incio do
processo de aprendizagem. Alberdi mudaria sua postura, mais aberta s massas no escrito de
1837, para aquela apresentada em 1852, quando recusou e viu pouca utilidade em ensinar a
populao a ler e escrever, adotando uma posio mais conservadora e excludente. Defendeu
uma educao mais tcnica, como propusera Napoleo, voltada ao mundo do trabalho para
atender as necessidades imediatas da Confederao Argentina, que aumentava aos poucos sua
participao econmica no sistema comercial transatlntico. Abreu e Lima considerou a
escolarizao como uma forma de levar a civilizao ao pas, acreditando que os
341
tempo do que seus companheiros, esteve ao lado dos direitos de Fernando VII e da monarquia
espanhola. Bello no se mostrou um entusiasta das ideias mais revolucionrias que poderiam
trazer desordens, como aquelas com as quais conviveu, mesmo distncia, durante os anos
das guerras de independncia e, posteriormente, civil. No Chile, defendeu a consolidao e o
respeito aos direitos polticos, atuando como zeloso funcionrio estatal.
Bello participou do movimento de emancipao ao fazer parte das discusses da Junta
em Caracas; porm, sua principal frente de combate foi em Londres, passando a ocupar-se da
construo nacional do Chile a partir da dcada de 1830. Abreu e Lima, apesar de iniciar seu
envolvimento nos acontecimentos ocorridos em 1817 na provncia de Pernambuco, logo
resultou preso e teve que exilar-se em solo hispano-americano. Foi nessa regio que se
integrou no processo de emancipao do continente, distante dos eventos que levariam
independncia da Amrica portuguesa. De volta ptria em 1831, participou dos esforos em
prol de uma produo intelectual nacional. Foi militar na Gr Colmbia, mas, apesar de luzir
o ttulo de general no imprio, atuou especialmente como jornalista e intelectual.
Alberdi contribuiu construo, em menor escala, do Uruguai e do Chile; porm, seu
maior esforo incidiu sobre a formao das representaes relativas nao argentina. No
tocante atuao de cada um deles, vemos algumas diferenas. Alberdi, ao contrrio de
Abreu e Lima e Bello, no participou dos eventos de emancipao do incio do sculo, uma
vez que nasceu em 1810. Militarmente, o nico que participou dos conflitos foi Abreu e Lima;
os outros dois, quando envolvidos nos conflitos, estiveram encarregados de oferecer apoio
administrativo, como foi o caso da representao de Bello em Londres ou o secretariado de
Alberdi, exercido junto aos intentos liderados pelo general Lavalle para derrubar Rosas na
dcada de 1840.
Ao trabalhar com as trs naes e os personagens escolhidos, foi possvel verificar
comparativamente construes e caminhos com aproximaes e distanciamentos, permitindo
uma avaliao balizada em outros dois referenciais. De acordo com esta ideia, foi notada uma
proximidade do Chile com o Brasil, considerando que estes passaram por um processo de
centralizao poltica anterior ao da Argentina. Seus territrios permaneceram intactos e
apontaram para uma expanso mais tmida no Brasil que no pas s margens do Pacfico.
Certa ideia de continuidade e de um forte sistema poltico, com poderes concentrados em boa
344
3
A proximidade destes dois pases e as possveis facilidades analticas referentes ao perodo, em contraposio
com a maior distncia do processo de formao nacional argentino, foi apontada inicialmente pelo professor
Francisco Doratioto.
345
supervalorizadas. No entanto, para chegar a essa comparao foi preciso conhecer um quadro
referencial sobre o estado intelectual das naes estudadas, com vistas a entender a
modernizao via leituras, produes e instituies de ensino onde nossos personagens se
formaram e cooperaram para a produo de conhecimentos. Da mesma maneira o fizemos em
nossos fragmentos biogrficos, no captulo III, pela delimitao de itinerrios formativos,
afiliaes polticas, conflitos coletivos e pessoais, procurando encontrar e compreender quais
as ideias de nao formuladas por cada um deles e quais os projetos a que aderiram na
Argentina, no Brasil e no Chile, respectivamente. Entretanto, o que mais objetivvamos era
conhecer as representaes de nao de modo comparativo, com o fim de visualizar a questo
no interior de um nvel regional de circulao de ideias e de opes individuais, a nosso ver
representantes de um olhar coletivo mais amplo do que um recorte puramente nacional. Ao
cotejarmos os textos desses autores, acessamos possibilidades de estabelecer semelhanas e
distines em seus discursos pela abordagem relacional dos projetos em questo.
necessrio considerar que a poca e as obras contituintes do recorte metodolgico
adotado neste estudo incidem na leitura que empreendemos sobre tais personagens. Os textos
diversos, produzidos em momentos especficos e com demandas distintas, podem reforar
determinados aspectos, visando a responder a alguma demanda especfica ou do momento.
Estas expresses intelectuais nos oferecem elementos para a compreeenso das ideias,
constituies complexas e em mutao no tempo, comumente encontradas em diversos
personagens histricos. H Alberdis, Bellos e Abreus e Limas em episdios que apresentaram
demandas diferentes ou em autores cujo pensamento no refletia ao posicionamento erguido
no passado.
Os personagens estudados publicaram um nmero de obras bem maior do que aquelas
com que trabalhamos, geradas em perodos distintos e com motivaes diversas, relacionadas
muitas vezes com questes pontuais a que necessitavam dar respostas precisas. Verificamos
ainda, nos estudo das trs dcadas de nosso recorte (1830-1860), modificaes e at ideias
que se mostraram contraditrias, fato que deixa transparecer a complexidade que estudos das
ideias envolvem. O prprio espao de tempo que esses personagens vivenciaram, uma poca
de intensa transio, se considerarmos o perodo de vida abarcado de Bello at Alberdi,
constitui um espao que se estende do incio da dcada de 1780 a meados de 1880. Nesses
pouco mais de cem anos, o mundo ocidental e a Amrica modificaram-se contundentemente,
deixando o Antigo Regime para entrar e se desenvolver conforme os postulados do mundo
346
moderno e dos novos Estados nacionais, que se fixariam como realidades a partir de 1860 e se
firmariam aps a dcada de 1880.
Ao final, analisamos neste trabalho fragmentos discursivos e biogrficos, deixando
explcito que ainda h um amplo territrio intelectual a ser explorado. A quantidade de obras
e de autores ibero-americanos grande, e tambm a de abordagens possveis. Poderamos, por
exemplo, seguir o percurso traado em outras obras, como os peridicos, ou efetuar outro
recorte temporal, ocupando-nos de escritos posteriores a 1860, onde as trs naes passaram a
se definir com mais concretude no que se refere aos atuais contornos e identidades. Ao longo
da histria, o tratamento dado aos autores, como tambm s instituies, foi e distinto. As
leituras continuam se renovando na medida em que novos pesquisadores retornam s fontes e
perguntas distintas so formuladas.
Considerando apenas os trs intelectuais analisados neste estudo, podemos afirmar,
como muitos americanistas, que ainda h muito a se fazer no campo do pensamento latino-
americano. Trabalhos como este com foco em diversos pases, intelectuais e escritos
indicam como a laboriosa tarefa de visitar o passado colocando perspectivas em interseo
pode trazer leituras que contribuem aos estudos do pensamento latino-americano,
intencionando assentar mais uma linha na longa histria da nossa Amrica.
Em concreto, concebemos nossa proposta como um ganho a abordagem indita desses
trs autores conjuntamente, colocando-os luz de uma anlise comparada de ideias de nao.
Entretanto, ganhamos sobretudo na compreenso de Abreu e Lima, ao traz-lo a um contexto
inexplorado e cotej-lo com intelectuais de tamanha envergadura como Alberdi e Bello.
Transitamos da imagem mais constante elaborada sobre Abreu e Lima a de militar fiel a
Bolvar para traz-lo como um homem de letras ao lado de importantes intelectuais
americanos. O general escritor, um dos primeiros historiadores a contribuir reflexo da
historiografia do Estado nacional brasileiro, volta assim ao meio intelectual da Amrica
hispnica, como tambm aproxima o Brasil de seus vizinhos, h muito tempo distanciados,
seno pelo espao, pelas ideologias constitudas, que ora aproxima, ora afasta tais realidades.
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