Livro - Feminicídio - Invisibilidade Mata (2017) - PDF PDF
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Feminicdio #InvisibilidadeMata
Organizao e Coordenao Editorial
Dbora Prado e Marisa Sanematsu
Preparao
Dimalice Nunes
Copidesque
Luciana Arajo
Capa
Guilherme Gandra (Trao Livre)
com ilustrao de Ligia Wang (Levante, Solues Interativas)
Ilustraes
Ligia Wang (Levante, Solues Interativas)
Projeto Grfico e Diagramao
Leon Cunha e Guilherme Gandra (Trao Livre)
Realizao
Instituto Patrcia Galvo - Mdia e Direitos
Esta publicao foi realizada com o apoio da Fundao Rosa Luxemburgo com fundos do
Ministrio Federal para a Cooperao Econmica e de Desenvolvimento da Alemanha (BMZ).
Somente alguns direitos reservados. Esta obra possui a licena Creative Commons de Atri-
buio + Uso no comercial + No a obras derivadas (BY-NC-ND)
SUMRIO
7 Apresentao
9 O que feminicdio?
11 Evoluo e incorporao do conceito no ordenamento jurdico
internacional
12 Feminicdio e o Cdigo Penal brasileiro
14 Perspectiva de gnero essencial para compreenso da Lei do
Feminicdio
15 Feminicdio ntimo: quem ama no mata
18 Menosprezo e discriminao matam
19 Elementos que ajudam a identificar se o assassinato de uma mulher
feminicdio
21 Modalidades de assassinatos de mulheres reconhecidas como
feminicdios
180 Bibliografia
Apresentao
Apresentao 7
mulheres em um pas extenso e diverso como o Brasil?
Foram consultadas pesquisas, dados, documentos e legislaes de
referncia. Tambm foram entrevistadas dezenas de especialistas
pesquisadoras, operadores do Direito, profissionais que atendem vtimas
e agressores, gestores, peritos, delegados, ativistas feministas, antirracistas
e que defendem direitos de mulheres lsbicas, bis, travestis e transexuais.
O resultado foi sistematizado em uma plataforma interativa na internet,
que oferece suporte para pautar e debater questes fundamentais, cobrar
direitos e desconstruir discriminaes, contribuindo para evitar que mortes
anunciadas sigam acontecendo sem provocar impacto na opinio pblica e
nem respostas satisfatrias das instituies do Estado.
A parceria com a Fundao Rosa Luxemburgo trouxe a oportunidade de
publicao deste livro. Nas prximas pginas, esto sintetizadas as principais
contribuies e reflexes reunidas no Dossi online at o incio de 2017.
Essa verso impressa tambm procura registrar a memria de alguns casos
de feminicdio que aconteceram no Brasil, como homenagem simblica
s milhares de vtimas que tm suas identidades diludas em estatsticas
alarmantes. Amanda, Claudia, Elo, Gerciane, Isamara, Laura, Luana.
Mulheres cujas vidas foram interrompidas e que deixaram luto, dor e
saudade. Assassinadas por parceiros, ex, agentes do Estado e por toda uma
sociedade fundada sobre bases discriminatrias e desigualdades sociais que
constroem o desvalor da vida de mulheres.
Este livro rene, assim, vozes, histrias e memrias que cobram a
efetivao de direitos sociais e processos democrticos que garantam uma
vida digna, em que a diversidade seja respeitada e valorizada. Vozes que
reivindicam uma verdadeira transformao do prprio Estado.
Diante do recrudescimento de prticas conservadoras e antidemocrticas
no contexto da crise poltica e econmica que o pas atravessa, so vozes
urgentes e necessrias que certamente tm muito a contribuir para reverter
este cenrio em que a #InvisibilidadeMata, fortalecendo reciprocamente as
diversas lutas que se insurgem contra os processos que levam precarizao
de vidas e corpos que se tornam suscetveis a preconceitos, discriminaes,
exploraes, violncias e assassinatos em larga escala.
8 Apresentao
O QUE FEMINICDIO?
9
Treze mulheres foram assassinadas por dia no Brasil em 2013, quase
cinco mil no ano, segundo dados do Mapa da Violncia 2015: Homicdio de
mulheres no Brasil (Waiselfisz, 2015). Embora em nmero bem menor do
que o dos homens, as mortes violentas de mulheres chamam ateno por
ocorrerem em contextos marcados pela desigualdade de gnero, constituindo
assim um crime com designao prpria: feminicdio.
Apesar de importante, dar um nome ao problema apenas um primeiro
passo para dar visibilidade a um cenrio grave e permanente. Para coibir
os assassinatos de mulheres com motivao de gnero fundamental
conhecer suas caractersticas. Construir no mbito da sociedade e do Estado
a compreensso de que so mortes que acontecem como desfecho de um
histrico de violncias. Para, assim, implementar aes efetivas de preveno.
Contudo, o enfrentamento s razes dessa violncia extrema no est no
centro do debate e das polticas pblicas com a intensidade e profundidade
necessrias diante da gravidade do problema.
Para entender o que o feminicdio necessrio compreender o que
a violncia de gnero, j que o crime de feminicdio a expresso extrema,
final e fatal das diversas violncias que atingem as mulheres em sociedades
marcadas pela desigualdade de poder entre os gneros masculino e feminino
e por construes histricas, culturais, econmicas, polticas e sociais
discriminatrias.
Como explica Marixa Fabiane Lopes Rodrigues, juza de Direito do
Tribunal de Justia de Minas Gerais, a subjugao mxima da mulher por
meio de seu extermnio tem razes histricas na desigualdade de gnero e
sempre foi invisibilizada e, por consequncia, tolerada pela sociedade. A
mulher sempre foi tratada como uma coisa que o homem podia usar, gozar
e dispor, afirma a magistrada.
Essas desigualdades e discriminaes manifestam-se de diversas formas,
que vo do acesso desigual a oportunidades e direitos at violncias mais
graves. esse crculo que alimenta a perpetuao dos casos de assassinatos de
mulheres por parentes, parceiros ou ex que, motivados por um sentimento
de posse, no aceitam o trmino do relacionamento ou a autonomia da
mulher. Ou ainda as mortes associadas a crimes sexuais e aqueles em que a
crueldade revela o dio ao feminino, entre outros casos.
10 O que feminicdio?
Evoluo e incorporao do conceito no
ordenamento jurdico internacional
O que feminicdio? 11
Feminicdio e o Cdigo Penal brasileiro
12 O que feminicdio?
circunstncia qualificadora do homicdio, o crime foi adicionado ao rol dos
crimes hediondos (Lei n 8.072/1990), como o estupro, o genocdio e o
latrocnio, entre outros.
Foram reconhecidos ainda como causas de aumento da pena em 1/3
o cometimento do crime durante a gestao ou nos trs primeiros meses
posteriores ao parto, contra menor de 14 anos ou maior de 60 anos de
idade, ou de mulher com deficincia, ou, ainda, na presena ascendentes
os descendentes da vtima (Lei n 13.104/2015).
Para alm do agravo da pena, o aspecto mais importante da tipificao,
segundo especialistas, chamar ateno para o fenmeno e promover
uma compreenso mais acurada sobre sua dimenso e caractersticas nas
diferentes realidades vividas pelas mulheres no Brasil, permitindo assim o
aprimoramento das polticas pblicas para coibi-lo.
O feminicdio a ponta do iceberg. No podemos achar que a
criminalizao do feminicdio vai dar conta da complexidade do tema. Temos
que trabalhar para evitar que se chegue ao feminicdio, olhar para baixo
do iceberg e entender que ali h uma srie de violncias, afirma Carmen
Hein de Campos, advogada, doutora em Cincias Criminais e consultora
da CPMI-VCM. Para a especialista, ainda fundamental compreender que,
quando o feminicdio acontece, porque diversas outras medidas falharam.
Precisamos ter um olhar muito mais cuidadoso e muito mais atento para
o que falhou, conclui.
A preocupao em criar uma legislao especfica no Brasil para
punir e coibir o feminicdio segue as recomendaes de organizaes
internacionais, como a Comisso sobre a Situao da Mulher (CSW) e o
Comit sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao contra a
Mulher (CEDAW), ambos da ONU. A tipificao do feminicdio tem sido
reivindicada por movimentos de mulheres, ativistas e pesquisadoras como
um instrumento essencial para tirar o problema da invisibilidade e apontar
a responsabilidade do Estado na permanncia destas mortes.
O que feminicdio? 13
Perspectiva de gnero essencial para
compreenso da Lei do Feminicdio
14 O que feminicdio?
masculinos e femininos se complementam, convertendo diferenas em
desigualdades (ONU Mulheres, 2016).
Adriana Piscitelli, antroploga e pesquisadora da Universidade Estadual
de Campinas ,explica em seu artigo Gnero: a histria de um conceito
como diferenas se articulam em discriminaes. Confira o trecho:
Feminicdio ntimo:
quem ama no mata
O que feminicdio? 15
homicida foi responsvel pela agresso sofrida.
Enciumado, inconformado com o trmino, descontrolado ou at
apaixonado so os adjetivos que figuram com frequncia nas manchetes da
imprensa todos os dias para justificar crimes brbaros, como o assassinato
de Elo Cristina Pimentel, 15 anos, aps ser mantida refm por mais de
100 horas pelo ex-namorado Lindemberg Fernandes Alves, em 2008, ou
o de Amanda Bueno, morta no jardim da prpria casa pelo noivo Milton
Severiano Vieira, em 2015 (veja os casos nos respectivos captulos).
Neste cenrio, a tipificao penal do feminicdio foi apontada por
especialistas como uma importante ferramenta para denunciar a violncia
sistmica contra mulheres em relaes conjugais, que muitas vezes resulta
em homicdios encarados como crimes passionais pela sociedade, pela
mdia e at mesmo pelo sistema de Justia.
Como afirma Wnia Pasinato, sociloga, pesquisadora e consultora
sobre acesso justia da ONU Mulheres no Brasil, preciso entender
definitivamente que, quando h violncia contra uma mulher nas relaes
conjugais no se trata de crime passional. uma expresso que temos que
afastar do nosso vocabulrio, porque essa morte no decorre da paixo ou
de um conflito entre casais. Ela tem uma raiz estrutural e tem a ver com a
desigualdade de gnero, conclui a especialista.
Para compreender o feminicdio ntimo preciso retomar os parmetros
estabelecidos pela Lei Maria da Penha (Lei n 11.340) desde 2006: violncia
domstica e familiar contra a mulher qualquer ao ou omisso baseada no
gnero que lhe cause morte, leso, sofrimento fsico, sexual ou psicolgico
e dano moral ou patrimonial, no mbito da unidade domstica, da famlia
ou em qualquer relao ntima de afeto, independentemente de orientao
sexual.
O legado e a ampla efetivao da Lei Maria da Penha so imprescindveis
para o enfrentamento do feminicdio. E a prpria Lei Maria da Penha que
traz seis pontos fundamentais para evitar o feminicdio ntimo:
1. A Lei Maria da Penha define cinco formas de violncia domstica
e familiar e no pressupe que s h violncia quando a agresso
deixa marcas fsicas evidentes. Reconhecer a violncia psicolgica nas
relaes, no subestimar o risco por trs de uma ameaa ou de uma
16 O que feminicdio?
aparente leso corporal leve podem prevenir violncias mais graves,
incluindo o feminicdio ntimo. O que no Cdigo Penal uma leso
leve pode ser o resultado de tortura sistemtica ou mesmo de uma
tentativa de feminicdio por enforcamento, afirma Teresa Cristina
Rodrigues dos Santos, juza do Tribunal de Justia do Estado de So
Paulo e titular da 2 Vara Criminal da Comarca de Santo Andr (SP).
2. Na maioria dos casos, diferentes formas de violncia acontecem de
modo combinado. preciso compreender que a violncia fsica mais
um trao de um contexto global de violncia, que inclui tambm
humilhaes, crticas e exposio pblica da intimidade (violncia
moral), ameaas, intimidaes, cerceamento da liberdade de ir e vir,
controle dos passos da mulher (violncia psicolgica), forar a ter
relaes sexuais ou restringir a autodeterminao da mulher quando
se trata de decidir quando engravidar ou levar adiante ou no uma
gravidez (violncia sexual), entre outros. fundamental tambm
entender que, na violncia domstica, a tendncia que os episdios
de agresses se repitam e fiquem mais graves; o chamado ciclo de
violncia.
3. importante compreender que no existem padres e perfis de vtima
ou agressor, pois a violncia domstica contra mulheres cometida pelo
parceiro, atual ou ex, a mais comum, mas no a nica. A violncia
domstica e familiar pode acontecer tambm entre indivduos com ou
sem vnculo de parentesco, mas que mantm relaes de convivncia.
4. O uso de lcool, drogas ou o cime no so causas e no servem
como justificativa para violncias. So apenas fatores que podem
contribuir para a ecloso do episdio de violncia, mas que muitas
vezes so usados como desculpa, promovendo a impunidade e a no
responsabilizao pela violncia.
5. A culpa no da vtima: ningum pode ser responsabilizado pela
violncia que sofreu.
6. A Lei Maria da Penha prev medidas protetivas de urgncia para a
mulher em situao de violncia, como o afastamento ou at a priso
preventiva do agressor.
O que feminicdio? 17
Menosprezo e discriminao matam
18 O que feminicdio?
(Cladem, 2012), nos pases da regio as mortes violentas de mulheres por
razes de gnero ocorrem tanto no mbito privado como no pblico, em
diversas circunstncias e cenrios, que podem variar, inclusive, dentro de
um mesmo pas. Com isso, especialistas (ONU Mulheres, 2016) destacam
a importncia de se adotar a perspectiva de gnero para avaliar cada caso
individualmente, buscando elementos que ajudem a compreender se o
comportamento violento do/a agressor/a e a situao de vulnerabilidade da
vtima esto ou no relacionados a fatores discriminatrios (como voc ver
no captulo 3 - Como e por que as mulheres morrem?).
No h um gabarito rpido, h todo um conjunto de informaes que
os profissionais tm que estar preparados para identificar e, ento, formular
se aquilo foi menosprezo e discriminao com relao vtima pelo seu
gnero, afirma Wnia Pasinato. Para a especialista que assessora a ONU
Mulheres no Brasil, so fatores como, em uma violncia fsica, observar
no s a quantidade de golpes e o tipo de armamento, mas a localizao
dos golpes no corpo da vtima. Observar tambm se existem marcas de
violncias anteriores ou se no ambiente onde a violncia aconteceu h sinais
de violncia simblica, como a destruio de objetos, fotos ou documentos da
vtima. Trata-se de um conjunto de elementos que compem o preconceito,
o menosprezo e a discriminao com relao a gnero.
O que feminicdio? 19
para investigao dos assassinatos de mulheres por razes de gnero (ONU
Mulheres, 2014).
Foi deste processo que nasceram as Diretrizes Nacionais para Investigar,
Processar e Julgar com Perspectiva de Gnero as Mortes Violentas de Mulheres
(ONU Mulheres, 2016), documento que visa promover o aprimoramento
da investigao policial, do processo judicial e julgamento desses crimes.
Para alm dos atores que lidam com a aplicao da lei, o documento pode
auxiliar a melhor compreenso do problema de um modo geral. As Diretrizes
renem elementos que podem servir como ferramentas para evidenciar as
razes de gnero a partir de uma anlise das circunstncias do crime, das
caractersticas do agressor e da vtima, e do histrico de violncia.
As diretrizes apontam tambm com grande nfase os deveres do poder
pblico e os direitos das vtimas, destacando que o feminicdio um crime
evitvel e que o Estado tem a responsabilidade de formular medidas de
responsabilizao, proteo, reparao e preveno.
As autoridades estatais tm obrigao de coletar os elementos bsicos de
prova e realizar uma investigao imparcial, sria e efetiva por todos os meios
disponveis, explica Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres
no Brasil. Nesse sentido, segue a especialista, a perspectiva de gnero pode
garantir uma resposta adequada do Estado, com duas finalidades: dar
respostas a um caso particular e, ao mesmo tempo, prevenir a perpetuao
do feminicdio.
Nas Diretrizes so apresentadas algumas das classificaes atualmente
empregadas para diferenciar as vrias modalidades de feminicdios que
so mais recorrentes na Amrica Latina. So categorias de anlise que,
aplicadas realidade social da regio, ajudam a compreender a diversidade de
contextos em que essas mortes ocorrem e como se entrecruzam s violaes
de outros direitos humanos que contribuem para potencializar as situaes
de vulnerabilidade e risco a que as mulheres se encontram expostas, aponta
o documento.
20 O que feminicdio?
Modalidades de assassinatos de mulheres
reconhecidas como feminicdios
O que feminicdio? 21
sujeitos ativos matam a vtima num perodo de tempo determinado;
sexual sistmico organizado, quando presume-se que os sujeitos ati-
vos atuam como uma rede organizada de feminicidas sexuais, com um
mtodo consciente e planejado por um longo e indeterminado perodo
de tempo.
Por prostituio ou ocupaes estigmatizadas - Morte de
uma mulher que exerce prostituio e/ou outra ocupao strippers, gar-
onetes, massagistas ou danarinas de casas noturnas cometida por um
ou vrios homens. Inclui os casos nos quais o(s) agressor(es) assassina(m)
a mulher motivado(s) pelo dio e misoginia que a condio de prostituta
da vtima desperta nele(s). Esta modalidade evidencia o peso da estigma-
tizao social e justificao da ao criminosa por parte dos sujeitos: ela
merecia; ela fez por onde; era uma mulher m; a vida dela no valia
nada.
Por trfico de pessoas - Morte de mulheres produzida em situao
de trfico de pessoas. Por trfico, entende-se o recrutamento, transpor-
te, transferncia, alojamento ou acolhimento de pessoas, valendo-se de
ameaas ou uso da fora ou outras formas de coao, quer seja rapto,
fraude, engano, abuso de poder, ou concesso ou recepo de pagamentos
ou benefcios para obter o consentimento da(s) pessoa(s), com fins de
explorao. Esta explorao inclui, no mnimo, a prostituio alheia ou
outras formas de explorao sexual, os trabalhos ou servios forados, a
escravido ou prticas anlogas escravido, a servido ou a extrao de
rgos.
Por contrabando de pessoas - Morte de mulheres produzida em
situao de contrabando de migrantes. Por contrabando, entende-se a
facilitao da entrada ilegal de uma pessoa em um Estado do qual a mes-
ma no seja cidad ou residente permanente, no intuito de obter, direta
ou indiretamente, um benefcio financeiro ou outro benefcio de ordem
material.
Transfbico - Morte de uma mulher transgnero ou transexual na
qual o(s) agressor(es) a mata(m) por sua condio ou identidade de gne-
ro transexual, por dio ou rejeio.
22 O que feminicdio?
Lesbofbico - Morte de uma mulher lsbica na qual o(s) agressor(es)
a mata(m) por sua orientao sexual, por dio ou rejeio.
Racista - Morte de uma mulher por dio ou rejeio de sua origem
tnica, racial ou de seus traos fenotpicos.
Por mutilao genital feminina - Morte de uma menina ou
mulher resultante da prtica de mutilao genital.
2 Conforme aponta Jaqueline Gomes de Jesus, pgina 74 desta obra, o termo trans uma referncia aos
integrantes da populao denominada transgnero, composta por travestis, homens e mulheres transexuais; e
demais pessoas que no se identificam com o gnero que lhes foi atribudo socialmente (Jesus, 2012).
O que feminicdio? 23
O feminicdio de Amanda Bueno:
quando morrer uma vez no o
suficiente
25
Amanda Bueno nasceu Ccera Alves de Sena e adotou o nome artstico
quando comeou a atuar como danarina de funk em grupos populares
do Rio de Janeiro, como a Jaula das Gostozudas e Gaiola das Popozudas.
Nascida em Gois, Amanda viveu no Rio de Janeiro por apenas trs anos
antes de encontrar seu destino fatal na cidade de Nova Iguau, Baixada
Fluminense. Tinha 29 anos quando foi morta, em 16 de abril de 2015, no
quintal da casa em que vivia com Milton Severiano Vieira, o Miltinho da
Van, seu noivo.
Tinha uma filha de 11 anos na poca, que morava com a av em Gois,
e com quem falava frequentemente. Amanda vivia longe de sua famlia e
de sua terra, distante tambm de seu passado, marcado por dificuldades
pessoais e pela busca de realizao profissional e financeira.
O assassino de Amanda era um homem cujo histrico de violncia j
havia sido revelado por meio de duas denncias registradas em delegacias
de polcia por outras mulheres com as quais Miltinho da Van se relacionou
antes de Amanda. O apelido vem de sua atividade profissional, uma vez
que Milton controlava o transporte alternativo em algumas localidades de
Nova Iguau.
Amanda e Milton tiveram um relacionamento amoroso por seis meses,
ficaram noivos quatro dias antes do crime e planejavam se casar. Aps o
noivado, Amanda deu um passo a mais na relao, revelando a Milton
fatos de seu passado que a incomodavam e que ela julgava que seu futuro
marido deveria conhecer. Amanda tinha sido danarina em uma boate em
Taguatinga, Braslia, onde fazia striptease. Nessa poca, envolveu-se em
um conflito com outra danarina, tendo alvejado a moa com um disparo
de arma de fogo. Esta agresso resultou em um processo por tentativa de
homicdio, no qual Amanda recorria da condenao. Essa revelao foi,
segundo Miltinho, o principal motivo do desentendimento entre os dois.
Aps discutirem sobre o passado de Amanda, Milton foi se encontrar
com uma ex-namorada, com quem passou horas bebendo, fazendo fotos e
filmes, conversando sobre sua vida e sobre seu relacionamento com Amanda.
A ex-namorada de Miltinho enviou para o celular de Amanda algumas das
imagens e vdeos desse encontro. Amanda e Miltinho estavam com cime.
Ele do passado de Amanda. Ela do presente de Milton.
26 Amanda Bueno
Ao voltar para casa e ser confrontado por Amanda, Milton reagiu e teve
inicio uma discusso que terminou com Amanda morta no quintal de sua
casa e a fuga de Milton, preso em seguida, ao se acidentar com o carro que
roubou para deixar o local do crime. No carro foram apreendidas quatro
armas de fogo de diferentes calibres, muita munio e um colete prova
de balas. Preso, Miltinho foi indiciado pelos crimes de roubo, porte ilegal
de arma e homicdio triplamente qualificado, por motivo ftil, sem chance
de defesa e feminicdio.
Amanda Bueno 27
sentir alguma empatia, mas uma mulher cuja moral poderia ser questionada
devido profisso que desempenhava. Essa outra caracterstica que
costuma aparecer nos casos de feminicdio: se h um passado que precisa
ser investigado o passado da vtima, que vai mostrar os elementos que
levaram-na a ser morta.
Em geral, os comentrios nas redes sociais que se seguiram divulgao
de notcias sobre a morte de Amanda Bueno foram extremamente violentos
tambm, revelando, por um lado, tolerncia da sociedade aos casos de
violncia contra as mulheres e, por outro, a intolerncia s escolhas que as
mulheres fazem sobre sua vida, profisso e exerccio da sexualidade. Amanda
no encarnava o perfil da vtima que sofreu uma injustia e com a qual
deveramos nos solidarizar. Por isso, Amanda passou de vtima a culpada,
sendo revitimizada pela violao de seu direito memria, sofrendo um
doloroso processo de linchamento moral que, se no poderia assassin-la
novamente, causaria enorme sofrimento aos seus familiares, em particular
sua me e sua filha de pouco mais de 11 anos.
Com frequncia as vtimas de feminicdio so tratadas como criminosas
ou como as verdadeiras responsveis pelos crimes que sofreram. Seu passado
ser investigado, sua famlia tambm, assim como seu trabalho e tudo o
que possa ser usado para tornar duvidosas, do ponto de vista moral, a sua
memria e sua histria. Isso tudo aconteceu com Amanda nas redes sociais,
mas tambm durante a defesa do agressor, como argumento para justificar o
crime. Nas audincias de instruo e julgamento Amanda era qualificada pela
defesa como uma mulher com porte atltico, de boa compleio fsica, forte,
de comportamento agressivo, que tinha condies de se defender sozinha
e que fazia uso abusivo de bebidas alcolicas. Seu carter foi colocado em
questo, por ter sido danarina de funk e por ter feito striptease, atividades
que ela no desempenhava mais, mas que ficariam para sempre como uma
mancha em sua conduta.
Alm de desqualificar moralmente a vtima, Miltinho da Van alegou
que agiu para evitar sua prpria morte, ou seja, agiu em legtima defesa. No
entanto, a violncia empregada pelo assassino contra Amanda no foi um
ato de quem quer apenas se autopreservar ou defender-se legitimamente.
Transborda nas atitudes de Miltinho um dio profundo, que se materializa
28 Amanda Bueno
na combinao dos vrios meios usados para vitimar Amanda golpes,
socos, asfixia mecnica e tiros mas tambm na quantidade de vezes que
esses meios foram empregados, durante sua fria aniquiladora. Miltinho
bateu a cabea de Amanda contra o solo 12 vezes, desferiu uma dezena
de socos e disparou vrias vezes contra seu rosto e crnio com armas de
diferentes calibres. Logo aps os primeiros golpes, Amanda deixa de lutar
por sua vida, mas continua sendo violentamente agredida, mesmo sem
esboar nenhuma reao.
No cabe alegar legtima defesa contra uma pessoa que no age para
agredir, que no reage s agresses sofridas, que no tenta escapar das
investidas, que no foge e sequer pede socorro. Amanda foi imobilizada,
impedida de se defender, brutalmente assassinada e desfigurada. Neste caso, a
defesa da vtima era impossvel. Se estes no so sinais suficientes de dio, h
ainda um fator a ser acrescentado: os locais das leses. Estudo publicado pelo
Ministrio da Justia A violncia domstica fatal: o problema do feminicdio
ntimo no Brasil (2015) mostra como morreram as mulheres vtimas desse
tipo de crime em nosso pas e revela caractersticas importantes: a imposio
de grave sofrimento s vtimas, com prevalncia de leses no rosto, face ou
em locais do corpo que caracterizam a anatomia feminina (seios, ventre,
vagina, entre eles). Amanda sofreu todos os golpes no rosto, de socos a tiros,
o que, alm de ter provocado sofrimento profundo, desfigurou-a enquanto
mulher e ser humano.
Miltinho da Van admitiu ser o autor de todas as agresses sofridas por
Amanda, tornando-se ru confesso. Isso aconteceu no por arrependimento
verdadeiro ou por se perceber o real responsvel por seus atos. Miltinho
confessou porque tudo foi devidamente filmado e registrado por um circuito
interno de tv que o prprio autor dos fatos havia instalado momentos antes
da agresso. Todos os golpes foram registrados e era impossvel negar que
naquele filme quem agredia Amanda era ele. O homem que se preocupava
com a segurana da famlia e de seus bens no teve nenhum receio em
mostrar seu dio contra sua noiva, mesmo sabendo que isso poderia ficar
gravado e ser usado contra ele futuramente.
Diante das cenas brutais registradas e da baixa possibilidade de convencer
o jri a aceitar o argumento de legtima defesa, uma nova justificativa foi
Amanda Bueno 29
apresentada para explicar a violncia cometida contra Amanda: a possesso
demonaca. Tanto o ru quanto seu advogado de defesa insistiram na tese
de legtima defesa, mas acrescentaram que Miltinho fora acometido por um
surto ou possudo por um esprito mau.
Nesse ponto preciso refletir seriamente sobre os limites ticos na
utilizao de argumentos de defesa dos casos de feminicdio. Assim como o
argumento de defesa da honra perde fora ao longo do tempo pela reviso
tica a que submetido, o mesmo temos que invocar nos casos em que a
defesa apela para o sobrenatural, o mstico ou o religioso. No h nenhuma
possibilidade de considerar razovel uma argumentao baseada em possesso
do agressor. Portanto, em que pese a real necessidade de ampla defesa de
qualquer acusado diante da justia, limites ticos e de direitos humanos so
sempre bem-vindos.
30 Amanda Bueno
O desfecho do caso de Amanda Bueno foi a condenao de Milton
Severiano Vieira a 40 anos, 10 meses e 20 dias de recluso, alm de 32 dias-
multa, pelos crimes de homicdio triplamente qualificado contra Amanda
Bueno, alm de roubo majorado e porte ilegal de arma de fogo de uso restrito.
Na sentena, o juiz Alexandre Guimares Gavio Pinto, da 4 Vara Criminal
de Nova Iguau, disse que a reprimenda do ru no pode deixar de ser
materialmente proporcional absurda gravidade da conduta por ele adotada
e de suas gravssimas consequncias, considerando-se que interviu com clara
desenvoltura na impressionantemente perversa empreitada criminosa.
Em termos gerais, a justia foi feita para Amanda e sua famlia, com a
condenao de seu ex-noivo. No entanto, sobram ainda atitudes a serem
questionadas e desvios ticos nos procedimentos mais bsicos de investigao
que nunca foram punidos. Precisamos com urgncia rever os padres de
atuao em casos de violncia contra as mulheres, de modo a preservar a
memria dessas vtimas e seu direito dignidade e ao respeito. Sem uma
reviso desses padres Amandas e Cceras morrero novamente todos os
dias, em vo, e seguiro sendo mortas a cada novo feminicdio.
Amanda Bueno 31
Referncias:
BRASIL. Ministrio da Justia. Secretaria de Reforma do Judicirio. A violncia
domstica fatal: o problema do feminicdio ntimo no Brasil. Braslia: SRJ,
2014. Disponvel em http://www.compromissoeatitude.org.br/wp-content/
uploads/2015/04/Cejus_FGV_feminicidiointimo2015.pdf.
32 Amanda Bueno
AS TAXAS BRASILEIRAS
SO ALARMANTES
33
Diante da reproduo cotidiana de violncias que atingem mulheres,
jovens e meninas, o Brasil apresenta um ttulo alarmante: o quinto pas
com maior taxa de mortes violentas de mulheres no mundo. Como explica a
sociloga e advogada Fernanda Matsuda, que integrou o grupo responsvel
pela pesquisa A violncia domstica fatal: o problema do feminicdio ntimo
no Brasil (Cejus/FGV, 2014), muitas formas de violncia acompanham a
violncia fatal. bastante eloquente mostrar a gravidade desse fenmeno:
o feminicdio a etapa final desse contnuo de violncia.
Segundo o Mapa da Violncia 2015: Homicdio de mulheres no Brasil, o
estudo mais recente e completo disponvel sobre o tema, o pas atingiu em
2013 uma taxa mdia de 4,8 homicdios a cada 100 mil mulheres, nmero
2,4 vezes maior que a taxa mdia observada no ranking que inclui 83
34 Taxas alarmantes
naes, que de 2 assassinatos a cada 100 mil. Efetivamente, s El Salvador,
Colmbia e Guatemala, trs pases latino-americanos, e a Rssia tm taxas
superiores s do Brasil um claro indicador do quanto os ndices brasileiros
so excessivamente elevados, aponta o estudo.
Izabel Solyszko Gomes, doutora em Servio Social e docente na
Universidad Externado de Colombia, ressalta que os pases latino-americanos
(mais empobrecidos, completamente saqueados e que sofrem polticas de
explorao por outros pases), so marcados por uma profunda desigualdade
de gnero. No d para desvincular o feminicdio do contexto latino-
americano de sofrimento, empobrecimento, desigualdade e de lacuna de
polticas pblicas, afirma a pesquisadora.
A srie histrica compilada no Mapa da Violncia 2015 revela ainda
que mais de 106 mil brasileiras foram vtimas de assassinato entre 1980 e
2013. Somente entre 2003 e 2013 foram mais de 46 mil mulheres mortas.
Alm de alarmantes, o estudo realizado pela Flacso (Faculdade Latino-
Americana de Cincias Sociais) mostra que os ndices de vitimizao vm
apresentando um lento, mas contnuo, aumento ano aps ano. O nmero de
vtimas do sexo feminino cresceu de 3.937, em 2003, para 4.762 assassinatos
registrados em 2013, um aumento de 21% em uma dcada. Essas quase cinco
mil mortes representam a cruel estatstica de 13 assassinatos de mulheres
por dia em mdia naquele ano.
Apesar de graves e impactantes, esses dados podem ainda representar
apenas uma parte da realidade, j que uma parcela considervel dos crimes
no chega a ser denunciado ou, quando so, nem sempre so reconhecidos e
registrados pelos agentes de segurana e justia como parte de um contexto
de violncia de gnero. Com isso, pode-se afirmar que a dimenso dessa
violncia letal ainda no completamente conhecida no pas.
Taxas alarmantes 35
ou seja: das 13 mortes violentas de mulheres registradas por dia, sete
feminicdios foram praticados por pessoas que tiveram ou tinham relaes
ntimas de afeto com a mulher, sob os parmetros da Lei Maria da Penha.
Prevalece o feminicdio conjugal, j que em 33,2% dos casos o autor do
crime foi o parceiro ou ex-parceiro da vtima, o que representa um total de
quatro feminicdios por dia. A pesquisa de opinio Violncia e Assassinatos
de Mulheres (2013), realizada pelo Instituto Patrcia Galvo e Data Popular,
mostra que a populao brasileira percebe que a vida da mulher de fato
est em risco quando ela sofre violncia domstica e familiar. Segundo
o levantamento, 85% dos homens e mulheres entrevistados acreditam
que as mulheres que denunciam seus parceiros ou ex quando agredidas
correm mais risco de serem assassinadas. O silncio, porm, tambm no
apontado como um caminho seguro: para 92% dos entrevistados, quando
as agresses contra a esposa ou companheira ocorrem com frequncia,
podem terminar em assassinato. Ou seja, o risco de morte por violncia
domstica iminente e reconhecido, o que refora a necessidade de Estado
e sociedade oferecerem apoio para a mulher que rompe o ciclo de violncia,
garantindo sua segurana.
Olha o dilema que aparece na percepo da populao: se denunciar,
morre; mas se continuar convivendo com o agressor tambm morre, resume
Mrcia Teixeira, promotora de Justia da Bahia e coordenadora do Gedem
(Grupo de Atuao Especial em Defesa da Mulher e Populao LGBT). A
promotora, que tem longa experincia no atendimento e acolhimento de
casos de violncia domstica, afirma que o risco maior viver com o agressor,
por conta do ciclo da violncia. preciso acreditar na possibilidade de
interrupo da violncia e divulgar o que existe de apoio para que a mulher
encontre solidariedade na sua rede pessoal e tambm nos equipamentos e
servios do Estado, recomenda.
Para Aparecida Gonalves, ativista do movimento de mulheres,
especialista em gnero e violncia e secretria nacional de Enfrentamento
Violncia contra as Mulheres da Secretaria de Polticas para as Mulheres entre
2003 e 2015, apesar das conquistas no campo dos direitos das mulheres,
ainda temos um quadro grave no Brasil em que as mulheres no se sentem
seguras nem dentro de seu prprio lar. Precisamos continuar empregando
36 Taxas alarmantes
esforos para a desconstruo de um imaginrio que culpabiliza a mulher
pela prpria morte, agride sua memria, e para que o Estado oferea uma
resposta satisfatria no s aos familiares da vtima, mas tambm sociedade,
reafirmando que essas mortes so inaceitveis, pontua.
Taxas alarmantes 37
sexual praticada por pessoas desconhecidas, casos em que o menosprezo
pela vida da mulher fica evidente at na forma como o crime praticado:
com extrema violncia, crueldade e frequentemente com o emprego de
elementos para causar dor e sofrimento na vtima e a destruio do seu corpo,
em especial nas partes associadas ao feminino, como seios, rosto e genitais.
Outro questo importante que se observa nos registros das mortes
violentas de mulheres que, enquanto nos homicdios masculinos
prepondera o uso de arma de fogo (73,2% dos casos), nos femininos
maioria (51,2%) a incidncia de estrangulamento/sufocao, instrumento
cortante/penetrante, objeto contundente, entre outros meios que indicam
no s a proximidade entre o homicida e a vtima, mas tambm sinaliza a
crueldade peculiar de crimes associados discriminao e ao menosprezo
em relao mulher, caractersticas do feminicdio.
38 Taxas alarmantes
Mulheres negras e a violncia no Brasil
Taxas alarmantes 39
Conforme aponta Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres no
Brasil, os dados demonstram que recai sobre as mulheres negras o impacto
mais cruel das desigualdades estruturais existentes no Brasil. No podemos
ficar indiferentes a esses dados, que devem ser noticiados e problematizados
para mobilizar aes de preveno e eliminao da violncia.
A violncia contra as mulheres e os feminicdios aparecem assim um
fenmeno que perversamente social e democrtico, que pode atingir
qualquer mulher, mas que, ao mesmo tempo, tem caractersticas particulares
que precisam ser compreendidas, como explica a pesquisadora Wnia
Pasinato. Por isso, alm das discriminaes baseadas nos papis de gnero,
preciso compreender as interseces entre gnero e classe social, gerao,
deficincias, raa, cor e etnia, destaca.
40 Taxas alarmantes
so assassinadas e no sabemos nem se h o registro dessas mortes ou se o
atestado de bito explicita quando houve feminicdio, conclui.
tambm o Mapa da Violncia que mostra que, em 2013, Roraima
e Esprito Santo registraram as piores taxas de assassinato de mulheres.
O estudo aponta que a taxa extremamente elevada de Roraima, de 15,3
homicdios por 100 mil mulheres, mais que o triplo da mdia nacional,
de 4,8 por 100 mil. J os ndices de Santa Catarina, Piau e So Paulo, os
menores, giram em torno de 3 por 100 mil, isto , menos de um quinto
da taxa de Roraima. Os dados comprovam a necessidade de se conhecer as
realidades locais de modo mais profundo para formular respostas eficientes
para cada cenrio.
Na srie comparativa, diversos estados apresentaram forte aumento no
nmero de assassinatos de mulheres na dcada entre 2003 e 2013, como
Roraima, onde as taxas mais que quadruplicaram (343,9%), ou Paraba, onde
mais que triplicaram (229,2%). Entre 2006 e 2013, apenas cinco estados
registraram quedas nas taxas: Rondnia, Esprito Santo, Pernambuco, So
Paulo e Rio de Janeiro.
O Mapa da Violncia tambm rene dados municipais. Em 2013 no
houve registro de homicdios de mulheres em 4.026 municpios, ou em
72,3% dos 5.565 municpios existentes no pas. Os municpios com as
maiores taxas de assassinato de mulheres so os de pequeno porte e esto
espalhados por todo o territrio nacional. Nenhuma capital aparece no
ranking dos 100 municpios com mais de 10 mil habitantes do sexo feminino
com as maiores taxas mdias de homicdio de mulheres.
Est a um dado que refora um diagnstico frequente entre especialistas
e profissionais que atuam no enfrentamento violncia contra as mulheres:
preciso promover a interiorizao dos equipamentos, servios e aes de
preveno violncia e proteo das mulheres brasileiras.
Taxas alarmantes 41
Luana Barbosa: Morta por ser
mulher, negra, pobre, lsbica
43
Mais um enquadro. Leva chute para abrir as pernas. Cai. Levanta e d
um soco em um dos policiais militares e um chute em outro. Comea a ser
espancada com cassetetes e com seu prprio capacete. Machucada, ps e mos
so algemados. jogada dentro da viatura. Do lado de fora, com a cabea na
janela do carro, seu filho de 14 anos ouve de um dos PMs: Sua me j era.
8 de abril de 2016. Luana Barbosa dos Reis sai de sua casa, na periferia
de Ribeiro Preto (SP), dirigindo sua moto para levar o filho aula de
informtica. Na esquina de sua casa, abordada pela polcia. Os responsveis
pelo espancamento de Luana so Douglas Luiz de Paula, Fbio Donizeti
Pultz e Andr Donizeti Camilo, do 51 Batalho da Polcia Militar,
investigados pelas agresses que causaram a morte da mulher de 34 anos.
Em um vdeo gravado por familiares aps as agresses, Luana conta que
os policiais a mandaram abaixar a cabea e colocar as mos para trs: A eu
comecei a apanhar, j me deram um soco e um chute. Falou que ia me
matar e matar todo mundo da minha famlia. Eu vomitei at sangue. Falou
que vo matar todo mundo. No s eu no, vo matar at meu filho.
Luana lutou por sua vida durante cinco dias, enquanto esteve internada
na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital das Clnicas de Ribeiro
Preto, onde deu entrada com suspeita de AVC (acidente vascular cerebral).
Disseram que o caso era grave e que no sabiam se as sequelas seriam
reversveis, conta sua irm, Roseli Reis. No dia 13, Luana morreu em
decorrncia de uma isquemia cerebral provocada por traumatismo crnio-
enceflico causado por espancamento.
Dois laudos do Instituto Mdico Legal (IML) constatam as agresses
s quais Luana foi submetida. O primeiro, quando ainda estava internada
no Hospital das Clnicas, atesta politraumatismo causado por agente
contundente. J o exame necroscpico constata morte por traumatismo
crnio-enceflico e isquemia cerebral provocada por disseco de artria
vertebral esquerda secundria a espancamento, conforme resultado de
angiografia cerebral.
No final de janeiro de 2017, a Justia Militar do Estado de So Paulo
arquivou o processo contra os trs policiais envolvidos no espancamento de
Luana. Em nota imprensa, a Justia Militar informou que o Ministrio
Pblico considerou que no h indcios de crime militar. A promotora
44 Luana Barbosa
Robinete Le Fosse pediu o arquivamento do caso pela total ausncia
de materialidade delitiva. Tambm em nota, o 51 Batalho de Polcia
Militar informou que os policiais investigados esto trabalhando no servio
administrativo, com exceo de um deles - que se aposentou.
Inicialmente, o caso estava sendo investigado pela Polcia Civil, mas
em maio de 2016 o juiz Luiz Augusto Freire Teotnio, de Ribeiro Preto,
negou o pedido de priso temporria dos trs policiais, feito pelo delegado
Euripedes Stuque, responsvel pelo inqurito. O juiz ainda remeteu os
autos do processo Justia Militar, alegando que no se tratava de um
crime contra a vida.
O promotor Eliseu Berardo Gonalves, responsvel pelo caso na esfera
criminal, tem uma opinio divergente do magistrado. Ele recorreu da deciso
e pediu que a investigao voltasse Polcia Civil.
Em 31 de janeiro, a 4 Cmara de Direito Criminal do Tribunal de
Justia de So Paulo (TJ-SP) julgou procedente o pedido e determinou que
o caso volte 1 Vara do Jri de Ribeiro, ou seja, a Polcia Civil seguir
com a investigao.
Vida arrancada
Luana Barbosa 45
Minha irm lutou muito para viver. O histrico da nossa famlia, seu
nascimento, as prises, a volta para o caminho do bem. Ela tinha muita
fora. Viveu cinco dias em coma antes de morrer. Sua vida foi arrancada,
isso inaceitvel, diz Roseli.
Luana era frequentemente tratada de forma desrespeitosa e violenta,
na base do cabea no muro, abra as pernas, mo na cabea. Tambm era
comum que fosse confundida com um homem, pois Luana usava cabelo
curto e roupas tidas como no femininas. No dia em que foi espancada,
aconteceu o mesmo. Ela quis dar uma de macho, tivemos que acalm-la,
disse um dos policiais que a espancou. Vivamos preocupados com ela.
Quando andava a p, sofria preconceitos, mas no havia casos de enquadros.
Tudo piorou com a compra da moto.
Roseli testemunhou a violncia cometida contra a irm, na rua onde a
famlia segue morando. Luana estava ajoelhada, mos para trs, bermuda
preta, s de top. Dois policiais a imobilizavam. Um deles apontou a arma
para Roseli e sua me e disse: entra [na casa], seno morre.
Aps a ameaa, policiais entraram na casa da famlia, perguntaram se
Luana morava ali, se era usuria de drogas, se traficava ou roubava. Tambm
perguntaram no que ela trabalhava e revistaram o seu quarto.
No bairro onde moram, h dezenas de casos de jovens mortos pela polcia
e, via de regra, os casos esto impunes, relata Roseli. No temos direitos
respeitados, no temos direito de falar. Nada vai reparar nossa dor, trazer a
minha irm de volta. Mas que ao menos a justia seja feita.
Para alm da dor da morte, a falta de apoio tem dodo na famlia de Luana:
As pessoas no tm noo de como lutar de forma legal, jurdica. Elas lutam
no dia a dia, sobrevivem falta total de tudo, mas no h nenhum programa de
apoio jurdico e emocional s famlias. No sabemos quanto tempo levar e se
haver justia. A cultura de impunidade em mortes de moradores da periferia
tamanha que, ao saber da histria h quem pergunte: Mas o que ela fez?
Infncia e juventude
46 Luana Barbosa
Arquivo familiar
Fotos do arquivo da famlia de Luana: acima e ao centro, a me de Luana, Dona Eurpedes, com os
cinco filhos, em 1986, em Ribeiro Preto (SP). Na linha do meio esquerda, foto de Luana e Roseli,
sua irm, na creche Santo Antnio, em 1983, onde as duas ficavam enquanto a me trabalhava.
Na sequnca fotos com a me. Na linha de baixo jogando futebol no quintal de casa com o filho; e
tambm com seu filho e sobrinhos em parque aqutico, em 2007.
ser assassinado, por motivos ainda hoje desconhecidos, e enterrado como
indigente. A beb ficou alguns dias internada at que pudesse ir para casa.
Mas, aos 20 dias de vida, teve de ir para uma creche.
Luana e seus irmos, Roseli, Lolita, Irani e Nathan passaram a infncia e
adolescncia em bairros violentos da periferia de Ribeiro Preto. Na rotina
da vizinhana onde moravam, havia briga de gangues, trfico, estupros
coletivos, mortes cometidas pela polcia. Muitos dos conhecidos e amigos
foram mortos ou desapareceram. Desde muito novas, as irms mais velhas
assumiram o comando da casa junto com a me, dona Eurpedes. Assim,
frequentar a escola era um luxo ao qual apenas as mais novas podiam ter
acesso.
Anos depois, buscando um aluguel mais barato, a famlia mudou-se
para um bairro ainda mais violento. Nessa poca, Luana tornou-se mais
bagunceira e briguenta e ganhou o apelido de foguinho. Jogava bola, corria,
empinava pipa, brincava de carrinho de rolim.
Para Luana, a escola era a confirmao da situao precria em que a
famlia vivia. Foram muitos cadernos doados pelas professoras; e os livros
indicados no comeo do ano letivo s seriam comprados pela me no fim do
semestre. Os sapatos que usavam frequentemente eram doados e, por isso,
de nmeros maiores que seus ps, pois sapato de pobre no tem tamanho.
Por isso no podiam correr no recreio, sob o risco de ficarem descalas.
Na rotina do colgio, era comum que as aulas fossem interrompidas por
tiroteios que ocorriam na vizinhana, bombas que atingiam a escola e falta
de professores, que tinham medo de lecionar no local. E no bairro no havia
lazer: nada de praa, parque, biblioteca ou museu.
Priso e maternidade
Na adolescncia, Luana foi presa por roubo e porte de arma e passou sua
primeira de algumas temporadas em privao de liberdade. Foi mandada
para a Fundao Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), hoje Fundao
Casa. No d para dizer que foi uma escolha quando no se tem escolhas,
diz Roseli. A primeira deteno foi seguida de outras, que marcaram sua
juventude.
48 Luana Barbosa
Luana era lsbica, mas em uma relao heterossexual, aos 19 anos,
engravidou. No teve dvidas e disse famlia que teria o beb, que recebeu
o nome de Luan. Mas, como para muitas mes, o comeo da maternidade
foi difcil.
Quando o beb tinha por volta de um ano, Luana foi novamente presa.
A separao foi dura para ambos. Na priso, ela fazia muitos desenhos e
escrevia cartas em que declarava o amor ao filho e lamentava que ele estivesse
crescendo na ausncia da me. Ela dizia que nunca mais faria nada que
pudesse lev-la de volta priso. Luan tambm chorava muito nas visitas
que fazia me, junto com a av e a madrinha.
Durante um longo perodo da infncia do menino, Luana esteve
encarcerada. Em 2009, saiu pela ltima vez da priso e nunca mais voltou.
E ento comeou a retomar a vida, estudar, procurar emprego. E me e filho
se reconectaram e reconstruram a relao. Minha irm passou uma fase
muito grande de sua vida encarcerada, deprimida, com autoestima muito
baixa, sempre achando que no conseguiria dar a volta por cima. Mas ela
conseguiu. Comeou a trabalhar, descobriu que poderia construir coisas
como qualquer pessoa, que poderia ter carteira assinada, diz Roseli.
Refazendo a vida
Luana Barbosa 49
Na relao com Luan, acompanhava e cobrava que o menino estudasse,
matriculou-o na natao, e jogavam muita bola juntos. Ela tambm cuidava
de um afilhado como se fosse seu filho. Nos fins de semana e durante as
frias, ele se juntava madrinha e a Luan e batiam uma bola.
Lsbica assumida, Luana era namoradeira e muito paquerada. Teve
alguns grandes amores durante sua vida. Com algumas companheiras com
quem se relacionou Luana tentou morar em So Paulo, mas no queria
deixar o filho em Ribeiro Preto com a me. E o menino era muito apegado
av para se mudar para outra cidade. Por isso ela acabou nunca indo
definitivamente. Mas reclamava do preconceito que sofria em Ribeiro.
Eu sempre disse para ela ir embora, por conta da mentalidade provinciana
e preconceituosa da cidade. Ela sofria muito preconceito por ser mulher,
negra, perifrica e lsbica.
Os episdios de discriminao eram frequentes. Em uma das empresas em
que buscou emprego, por exemplo, desistiram de entrevist-la quando viram
a sua aparncia. As pessoas olhavam para ela e, na hora de cumprimentar, s
vezes no pegavam em sua mo. So coisas que eu presenciei, relata Roseli.
Com a moto, a situao piorou. O racismo e o classismo so to grandes
que, para eles, um tipo como ela na moto s poderia ser bandido. Luana
pagou com a vida por conta desse estigma.
50 Luana Barbosa
COMO E POR QUE
MORREM AS MULHERES?
Assassinadas por parceiros ou ex, por familiares, por
desconhecidos; estupradas, esganadas, espancadas,
mutiladas; negligenciadas, violadas por instituies
pblicas, invisibilizadas: mulheres morrem
barbaramente todos os dias no Brasil. Mortes
anunciadas continuam acontecendo, mas esses
feminicdios ainda no se tornaram uma realidade
intolervel para o Estado e para grande parte da
sociedade que, por ao ou omisso, so cmplices da
perpetuao de agresses que culminam em mortes
evitveis de mulheres.
51
Os feminicdios acontecem tanto no mbito privado como no pblico,
em circunstncias e contextos diversos, em que as discriminaes e o
menosprezo com a condio feminina assumem variadas formas, mais
ou menos evidentes (ONU Mulheres, 2016). Requintes de crueldade,
especialmente em regies do corpo associadas ao feminino, violncia
sexual, imposio de sofrimento fsico e mental, tortura e a existncia de
um histrico de violncia anterior ao episdio fatal revelam esse contexto
de discriminao.
Aline Yamamoto, ex-secretria adjunta de Enfrentamento Violncia
contra as Mulheres da Secretaria de Polticas para as Mulheres da Presidncia
(SPM-PR), e Elisa Sardo Colares, analista de polticas sociais da Secretaria
de Enfrentamento Violncia contra as Mulheres da SPM, resumem a
questo em artigo para o Boletim Observa Gnero:
Mortes evitveis e a
responsabilidade do Estado
1. Discriminao e desigualdade
O primeiro deles que as discriminaes contra as mulheres causam
e perpetuam violncias que podem atingir o extremo da letalidade. O
desequilbrio que torna as mulheres mais vulnerveis a determinados tipos
de violncia que podem resultar no feminicdio, como a violncia domstica
e a sexual, est baseado em concepes rgidas e desiguais papis de gnero,
construes que determinam os comportamentos femininos e masculinos
tidos como socialmente adequados em um determinado grupo, comunidade
ou pas.
Alm de gerar um desequilbrio estrutural de poder entre masculino e
feminino, a naturalizao dessas expectativas sociais abre margem para que
a violncia acontea quando uma mulher no cumpre o esperado. No
caso do feminicdio cometido por parceiros ou ex, muitas vezes eles matam
a mulher em casa, no bairro ou no trabalho, na frente de outras pessoas.
So comuns os casos em que o autor no faz questo de ocultar o crime de
testemunhas, o que significa que exibir aquilo refora sua masculinidade,
ele se sente autorizado pela sociedade a ter controle de vida e morte sobre a
mulher, exemplifica Andrea Brochier Machado, perita criminal do Instituto
Geral de Percias do governo do Rio Grande do Sul.
comum os homens serem valorizados pela fora e agressividade, por
exemplo, e muitos maridos, namorados, pais e irmos, alm de outros
homens, muitas vezes em posio de chefia e liderana como no trabalho
ou nas religies acharem que tm o direito de impor suas opinies e
vontades s mulheres e, se contrariados, podem recorrer agresso verbal e
fsica. Com base em construes culturais desse tipo, que vigoram h sculos,
2. Ciclo de Violncia
O segundo aspecto da equao que resulta em um feminicdio que o
desfecho com frequncia parte de um contnuo de violncia. Na maioria
dos casos, o episdio de violncia fatal precedido por violncias anteriores
que se perpetuaram at o assassinato. Ou seja, muitas dessas mortes poderiam
ter sido evitadas se a violncia contra as mulheres no fosse banalizada e
tolerada por parcela da sociedade e pelas instituies que tm o dever de
agir com rigor nestes casos.
Segundo especialistas, na maior parte dos casos, principalmente no
feminicdio ntimo, h um contnuo de violncia que afeta a vida das
mulheres de forma cotidiana e que tem na morte seu desfecho mais extremo.
Quer dizer que, em vida, aquela mulher estava sendo assassinada aos
pouquinhos por algum da sua intimidade, at que um dia ela foi morta
definitivamente, explica Maria Amlia de Almeida Teles, cofundadora da
Unio de Mulheres do Municpio de So Paulo e do programa de Promotoras
Legais Populares.
3. Responsabilidade do Estado
Por fim, o terceiro aspecto que o Estado responsvel, por ao ou
omisso, pela perpetuao de mortes evitveis, j que a impunidade e a
violncia institucional aquela perpetrada pelos prprios agentes pblicos
contra as mulheres so fatores decisivos para a persistncia dos feminicdios
e do reforo da noo de que a violncia um mecanismo de controle das
71
Desde a publicao do artigo Transfobia e Crimes de dio: Assassinatos
de pessoas transgnero como genocdio (Jesus, 2013), tenho defendido a
ideia de que o assassinato de pessoas trans1 no Brasil, para alm de apenas
configurar uma srie de crimes de dio2, pode ser caraterizado como um
genocdio3 ao se considerar o conjunto das violaes e o cenrio de transfobia
histrica e culturalmente estruturada onde ocorrem4.
Nessa anlise, a qualificao do conceito de genocdio e sua aplicao
condio de risco da populao transgnero consideram o que foi determinado
no artigo II da Conveno das Naes Unidas para a preveno e punio do
crime de genocdio (Assembleia Geral das Naes Unidas, 2012), segundo o
qual qualquer ato cometido com a inteno de destruir total ou parcialmente
um grupo pode ser definido como um genocdio, tendo em vista:
a) assassinato de membros do grupo;
b) atentado grave integridade fsica e mental de membros do grupo;
c) submisso deliberada do grupo a condies de existncia que
acarretaro a sua destruio fsica, total ou parcial;
d) medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
e) transferncia forada das crianas do grupo para outro grupo.
1 O termo trans uma referncia aos integrantes da populao denominada transgnero, composta por travestis; homens e
mulheres transexuais; e demais pessoas que no se identificam com o gnero que lhes foi atribudo socialmente (Jesus, 2012).
2 Crimes de dio so motivados por preconceito contra alguma caracterstica da pessoa agredida que a identifica como parte de um
grupo discriminado e socialmente desprotegido e so caracterizados pela forma hedionda como so executados, com vrias facadas,
alvejamento sem aviso, apedrejamento (Stotzer, 2007). A referida autora considera que o grupo composto pelas pessoas trans alvo
3 O termo genocdio decorre da unio dos termos gregos genos (grupo) e cide (matar). Etimologicamente significa matar um.
4 Transfobia a discriminao decorrente do preconceito contra as pessoas trans, que so historicamente estigmatizadas, margina-
lizadas e perseguidas devido crena na sua anormalidade, decorrente do esteretipo de que o gnero atribudo ao nascimento deva,
necessariamente, ser aquele com o qual as pessoas se identificam (Herdt, 1996). Nessa conjuntura, qualquer desvio da cisgeneridade
(identificao com o gnero que foi atribudo socialmente) considerado deletrio e digno de discriminao.
72 Laura Vermont
de genocdios, os diretamente relacionados violncia estrutural a que a
populao trans brasileira submetida, e que culmina nos assassinatos, so
os relacionados s alneas a, b, c e d.
A citao da alnea d, em particular, justifica-se pelo fato de que, no Brasil,
pessoas trans que buscam legalmente adequar o seu registro civil ao nome e
ao gnero com o qual se identificam encontram obstculos desumanizadores,
sendo em geral demandadas, mesmo as que no desejam, a se submeterem
a cirurgias de redesignao genital para que lhes seja concedido o direito
fundamental identidade.
Alm de ser uma violncia institucional, trata-se de uma prtica eugenista
de esterilizao forada contra um grupo populacional, em pleno sculo
21, dado que sequer se supe que as pessoas atendidas possam garantir
seus direitos reprodutivos futuros, a partir de um banco de gametas. Em
sntese, significa afirmar que o Estado brasileiro tem exigido que a populao
trans se submeta a uma esterilizao para s ento poder ter o direito ao
reconhecimento legal de sua identidade social.
Ante ao exposto, em virtude da sua expressividade numrica com
relao a outros pases; do seu enquadramento como crime de dio, dada
sua natureza de cunho discriminatrio; da sua identificao com a maioria
dos atos relacionados a genocdios; e com base em uma perspectiva terica
til, o assassinato de pessoas transgnero no Brasil pode ser designado como
um genocdio.
Paralelamente, fulcral para o debate recordar que a maioria das vtimas
desse genocdio trans no Brasil so as travestis e as mulheres transexuais.
Ocorre a uma violncia de gnero5 permeada pela mesma lgica das
violncias conjugais comuns em casais tradicionais, heteronormativos e
pautados por relaes machistas caracterizadas, quando em uma situao de
conflito, pela agresso da mulher por parte do homem como uma estratgia
de controle sobre o corpo feminino (Bandeira, 2009), alm do desamparo
aprendido e a descrena das vtimas ante inoperncia das instituies
sociais de suporte (Santi, Nakano & Lettiere, 2010).
Nesse sentido, possvel aditar a esta reflexo que as travestis e mulheres
5 O conceito de gnero ora utilizado ratifica o de Butler (2003), isto , definindo-o como um conjunto de atos performativos e normas
Laura Vermont 73
transexuais brasileiras sofrem em um contexto de feminicdio. Est em curso
um feminicdio trans, sinalizado por crimes sistemticos, motivados pelo
gnero da pessoa, que so executados na ausncia ou com a conivncia do
Estado (Lagarde, 2008).
Bento (2016) tem refletido sobre essa questo e, tomando como inspirao
os assassinatos de mulheres cisgneras na Ciudad Jurez, Mxico6, defende
que as agresses letais contra as travestis e as mulheres trans configuram um
transfeminicdio, por serem da ordem do gnero, mas concomitantemente
estarem permeadas pelas singularidades da transfobia.
Vivemos neste pas uma poltica sistemtica de feminicdio trans ou de
transfeminicdio, pautada pela espetacularizao exemplar, demonstrada
cabalmente pelo frequente desfiguramento dos corpos das vtimas.
Farei aqui um parntesis para ilustrar o cenrio de extrema violao da
vida, decorrente de fatores estruturais como o impedimento do acesso a
direitos fundamentais para as pessoas trans, como o direito identidade, o
que remete desumanizao dessa populao, e, no que tange em particular
s mulheres trans, negao cotidiana do seu reconhecimento e de sua
autoafirmao como mulheres.
(2011), para quem prticas de violncia sexual, tortura, desaparecimentos e assassinatos de mulheres tm se repetido em um contexto de
8 Nome civil e sexo registrados na certido de nascimento. Os registros civis brasileiros no adotam o conceito de gnero, ainda se
74 Laura Vermont
A situao atual de violncia e assassinato de pessoas trans ser apresentada
com base nas informaes coletadas pelo projeto de pesquisa quali-quantitativa
Transrespect versus Transphobia Worldwide (TvT), conduzido pela organizao
no-governamental (ONG) TransGender Europe (TGEU), que monitora a
situao dos direitos humanos de pessoas trans em diferentes partes do mundo
e coleta dados sobre assassinatos a partir de informaes encaminhadas por
instituies internacionais de direitos humanos.
Dados do TvT indicam um total de 816 assassinatos de pessoas
transgnero em 55 pases, entre 1 de janeiro de 2008 e 31 de dezembro
de 2011 (TransGender Europe, 2012a).
A maioria dos 816 crimes ocorreu na Amrica Latina (643, ou 78,8% do
total), com expressiva participao brasileira, que conta com 325 assassinatos
no perodo de 3 anos pesquisado, seguida da sia, com 59, conforme
mostram os dados da TransGender Europe9.
A tabela a seguir aponta os principais locais de ocorrncia dos crimes,
causas das mortes e profisses das vtimas, compondo um perfil de
circunstncias frequentes.
Fonte: TransGender Europes Trans Murder Monitoring 2012: Reported deaths of 816 murdered
trans persons from January 2008 until December 2011. http://transrespect.org/wp-content/
uploads/2016/02/TvT-TMM-Tables2008-2011-en.pdf
9 TransGender Europes Trans Murder Monitoring 2012: Reported deaths of 816 murdered trans persons from January 2008 until
Laura Vermont 75
A maioria dos crimes ocorreu no espao pblico (16,42%), tendo em
vista que grande parte trabalhava como profissional do sexo10 (27,82%). So
geralmente executadas com tiros (37,99%), o que indica planejamento por parte
dos autores. Notvel haver ainda apedrejamentos (5,15%), mtodo arcaico para
punio de indivduos desviantes.
O Brasil responsvel, isoladamente, por 39,8% dos assassinatos de pessoas
transexuais registrados no mundo entre 2008 e 2011, e no mesmo perodo por
50,5% desses crimes na Amrica Latina. O pas com o segundo maior nmero
de violncias desse tipo na regio foi o Mxico, com 60 assassinatos, seguido
de perto pela Colmbia, com 59.
Somente em 2011, 248 pessoas foram assassinadas por serem transexuais ou
travestis (TransGender Europe, 2012b). O Brasil o pas onde foi reportado o
maior nmero de assassinatos de pessoas integrantes da populao transgnero
nesse ano: 101, seguido do Mxico, com 33 assassinatos, e da Colmbia, com 18.
A Amrica Latina , destacadamente, a regio com os piores ndices de
homicdios de pessoas trans: 204, ou 82,26% do total global, seguida da sia,
com 17, apenas 6,85% das mortes em todo o mundo. Pode-se considerar que a
tradio machista e sexista da cultura latino-americana tenha alguma influncia
nesses resultados extremamente negativos.
A gravidade dos dados coletados no Brasil, entre 2008 e 2011, acentua-
se quando comparados com os de outros pases, em diferentes continentes,
com nvel semelhante de liberdade de imprensa e mobilizao social, fatores
que aumentam a probabilidade de divulgao de crimes de dio, conforme
a tabela abaixo.
Fonte: TransGender Europes Trans Murder Monitoring 2012: Reported deaths of 816 murdered
trans persons from January 2008 until December 2011.
10 Segundo a Associao Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 90% das travestis e das mulheres transexuais s encontram
76 Laura Vermont
Demonstra a tabela acima que, internacionalmente, o nmero de
assassinatos menor se comparado ao Brasil, pas em que a extrema
transfobia estrutural, processo sociocultural que nega a cidadania das pessoas
transgnero, torna-se ainda mais visvel quando se remete a dados tangveis
como os supracitados.
Uma breve seleo das centenas de casos apresentada na sequncia, com
a descrio de algumas vtimas brasileiras, identificadas pelos seus nomes
sociais, quando informados, e as circunstncias dos crimes.
Laura Vermont 77
Entre 1 de outubro de 2015 e 30 de setembro de 2016 a TransGender
Europe (2016) contabilizou 295 assassinatos em 33 pases, mantendo-se a
nefasta liderana do Brasil, com 123 crimes, seguido do Mxico (52 casos)
e dos EUA (23). De 2008 a 2016 ocorreram 2.264 homicdios de pessoas
trans em 68 pases.
Dados atualizados da Rede Nacional de Pessoas Trans (Rede Trans Brasil)
(Nogueira, Aquino & Cabral, 2017), provenientes de acompanhamento
exaustivo dos casos de violncia letal contra a populao trans brasileira
noticiados em 2016, apontam que 144 pessoas foram assassinadas, sendo
que dez eram homens trans, e desdobram o significado dessa constatao:
agredir-e-matar-travesti-laura-vermont-em-sp.html; https://vamoscontextualizar.wordpress.com/2015/08/03/video-mostra-laura-vermont-
sendo-agredida-antes-de-morrer; http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/08/farsa-da-pm-no-assassinato-da-transexual-laura-
vermont-e-desvendada.html; http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/08/justica-de-sp-solta-5-reus-acusados-de-matar-travesti-laura-
vermont.html; e http://ponte.cartacapital.com.br/video-mostra-ataque-mortal-contra-a-travesti-laura-vermont-de-18-anos.
78 Laura Vermont
comentar que o ataque fsico em grupo uma das expresses mais brutais
e covardes, de um crime de dio.
Cmeras de segurana12 levaram aos responsveis: Van Basten Bizarrias
de Deus, Jefferson Rodrigues Paulo, Iago Bizarrias de Deus, Wilson de Jesus
Marcolino e Bruno Rodrigues de Oliveira.
Sangrando e desnorteada, Laura pediu socorro e foi avistada por
transeuntes, que gravaram imagens de seu estado e telefonaram Polcia
Militar para que a socorressem.
Conforme descreve o jornalista Neto Lucon (2016), aps os policiais
militares chegarem ao local:
12 Assista a uma compilao das imagens, obtidas pelo canal Ponte Jornalismo, em https://youtu.be/CxVqQIf5x2s.
Laura Vermont 79
Apesar de as caractersticas fsicas de Laura Vermont (branca) e de sua
configurao familiar (apoiadora) diferirem diametralmente daquelas da
maioria da populao trans brasileira majoritariamente negra e oriunda
de famlias excludentes, seno abusadoras, que expulsam suas crianas e
adolescentes trans de casa, com a omisso criminosa da sociedade civil e do
Estado , o caso paradigmtico do feminicdio trans ou transfeminicdio
brasileiro. O transfeminicdio de Laura Vermont rene todos os seus
elementos estruturantes: um crime de dio associado impunidade dos
algozes e anuncia quando no a ao direta das autoridades, que se
traduzem na individualizao/personalizao do caso, retirando seu carter
de transfobia estrutural.
Concluo este texto reproduzindo depoimentos dos familiares de Laura, que
preservam a sua memria e continuam lutando para que haja, enfim, justia:
13 Em http://www.revistaforum.com.br/2015/06/23/a-policia-que-e-para-proteger-acabou-de-matar-diz-pai-de-transexual-assassinada-
-em-sp.
14 Em http://www.nlucon.com/2016/05/acusados-de-matar-travesti-laura.html.
80 Laura Vermont
prendem e soltam assassinos? Foi uma covardia o que eles fizeram,
foi muita crueldade. E por isso que vamos l para no deixar que
esse crime termine assim.
Isso puro preconceito e uma grande covardia. Por uma pessoa
ser trans ela tem que ser agredida e morta? Ainda mais por cinco
covardes? Isso errado e eu nem sei o que penso. S sinto uma
revolta muito grande.
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TvT-TMM-Tables2011-en.pdf.
82 Laura Vermont
Gerciane Arajo: racismo,
machismo e lesbofobia no esto
apenas na mente dos assassinos
83
Era no Morro da Esperana, em Teresina, capital do Piau, que morava
Gerciane Pereira de Arajo, de 26 anos, com a av, Francisca, e a filha de sete
anos. O bairro fica na rea antigamente chamada Colnia dos Psicopatas,
por conta da presena do Hospital Areolino de Abreu, especializado em
psiquiatria. O terreno amplo foi, aos poucos, ocupado por sem-terra e
tomando contorno de bairro que, sem atendimento pela rede de coleta
de lixo, ganhou a alcunha de Morro do Urubu. Apenas nos anos 60 os
moradores se reuniram para mudar o nome do bairro, que lhes trazia
constrangimento, e optaram por Esperana, algo caro para uma populao
cuja renda mdia mensal das pessoas responsveis pelos domiclios era de
R$ 344 no ano 20001.
Dos 790 domiclios de Esperana, apenas 61 tinham ligao com a rede
de esgoto. Ainda hoje, o bairro composto por casas pequenas, quase todas
trreas, com os tijolos aparentes. A moradia que Gerciane dividia com a av e
filha pequena trrea, pequena e simples como a maioria delas, com a porta
que abre direto na calada, com algumas telhas soltas, o nmero pintado
ao lado de uma imagem colada de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do
Brasil, a santa negra, tal como as moradoras da casa.
A violncia com que a jovem foi morta fez o homicdio ganhar
notoriedade na mdia e um apelido: o caso do churrasqueiro. Diversos
hematomas aparentes no corpo j sem vida foram considerados pelos
legistas como sinais da resistncia de Gerciane violncia do assassino. Ela
lutou contra um homem armado com uma peixeira e foi morta com cortes
profundos no pescoo praticamente degolada , e brao, alm de diversos
outros ferimentos menores espalhados pelo corpo.
Como se no bastasse, o corpo j sem vida de Gerciane foi encontrado
nu da cintura para baixo, com suti e blusa levantados altura do pescoo.
Mais chocante: praticamente dividido ao meio, com um profundo corte
com incio entre os seios e terminando na regio pbica. Os rgos, puxados
para fora. A vulva e a vagina cortadas e a pele colocada sobre a boca para
dar um recado.
Segundo a mdia local, quando a polcia chegou o corpo de Gerciane
1 Segundo dados acessados em 5 de fevereiro de 2017 na pgina oficial do Governo Municipal de Teresina: http://www.teresina.pi.gov.
br/portalpmt/orgao/SEMPLAN/doc/20080922-146-332-D.pdf
84 Gerciane Arajo
j estava coberto por um lenol branco, providenciado por moradores das
proximidades. Foi encontrado em um terreno descampado, no rebaixamento
da via frrea, ao sul da lateral do Cemitrio So Jos.
Antes de sair a confirmao de identidade da mulher encontrada, os sites
noticiosos do Estado j falavam que o corpo era de uma moradora de rua,
que algum havia dito polcia que achava que a mulher costumava pedir
esmola no bairro2. Certamente o fato de a mulher assassinada ser negra,
pobre e moradora da periferia assegurava imprensa racista, a liberdade de
no apurar e abusar da falta de acuracidade. Gerciane no era moradora
de rua, mas ainda que fosse, sua vida no deveria ser menos importante.
imprensa, entretanto, bastava a categorizao como moradora de rua
para apagar impunimente sua identidade, violar sua memria e abusar da
histrica chocante, incluindo nas notcias, por diversas vezes, as fotos do
corpo at ento annimo. Nesse momento, sua histria de vida no era to
interessante quanto a de morte.
No dia seguinte, 17 de abril de 2014, a imprensa j manchetava: Mulher
que teve vagina colocada na boca era drogada e o crime foi passional3. A
esta altura, o delegado de homicdios, Francisco Costa, o Baretta, fazia
especulaes sobre a motivao do homicdio como aponta reportagem:
Baretta disse que o crime foi passional e tem toda uma trama que resultou
no assassinato de Gerciane Pereira Arajo com um instrumento cortante.
Outra reportagem confirma que o delegado especulava sobre o caso: Baretta
declarou que o fato do assassino ter cortado a vagina e ter colocado na boca
de Gerciane Pereira Arajo diz muito sobre a motivao do crime. A pessoa
quando mata a outra deixa a sua marca. A forma como ele matou quer dizer
alguma coisa.
Procurado para a elaborao deste artigo, o delegado Baretta no foi
encontrado na Delegacia de Homicdios de Teresina e tampouco deu retorno
aos contatos realizados.
Gerciane Arajo 85
Testemunhas apontam suspeito, mas a
notcia era o comportamento de Gerciane
Foi pela imprensa que a ativista Maria Lucia de Oliveira Sousa, da Unio
Piauiense de Mulheres, ficou sabendo do feminicdio de Gerciane. O fato
de a vtima ter tido a vulva retirada e colocada na boca lhe fez ficar alerta:
aquilo parecia um caso de feminicdio e os movimentos de mulheres do
Piau estavam conscientes do explosivo grau de impunidade em casos deste
tipo. Lcia resolveu ficar atenta.
Os holofotes da mdia pediam uma resposta rpida da polcia em
solucionar o caso. Era uma dessas oportunidades de visibilidade para um
delegado e para a corporao. O caso seria rapidamente solucionado graas
a testemunhas no processo de Gerciane que no se omitiram. Por eles, a
polcia saberia que Gerciane, antes de ser assassinada, havia sado com
amigos e estava no bar Frango na Brasa, tomando cerveja na companhia
deles. Em um dos depoimentos consta que, com o avano da hora e o bar
esvaziando, a jovem ficou na mesa conversando com o proprietrio do bar,
seu conhecido, e o amigo dele, que usava uma camisa polo branca, cala
tipo social preta, chinelos e estava sempre agarrado a uma mochila azul o
Cleison. A esposa do proprietrio pediu que todos se retirassem para que
pudesse fechar o estabelecimento e presenciou quando Cleison da Conceio
Mendes, morador do mesmo bairro que todos os presentes, ofereceu carona
a Gerciane. A jovem estava embriagada e aceitou a garupa da moto.
Assim, quando as notcias sobre o assassinato comearam a aparecer
na televiso, j com a identificao de Gerciane, a proprietria do bar
tomou um susto, acordou o esposo, que tentou ligar para Cleison. Ele no
atendeu. Foram ento ao trabalho de Cleison, mas apesar de ser o dia de
planto do churrasqueiro, ele no havia aparecido. Foi quando resolveram
chamar a polcia para relatar o que haviam testemunhado: ele havia sado
com Gerciane.
A delegacia de homicdios de Teresina tinha rapidamente uma boa pista
da ltima pessoa que havia visto a jovem viva. No quarto de Cleison na
penso em que morava, prxima casa da famlia de Gerciane, foi encontrada
uma cala de molho em um balde com gua e uma peixeira, lixada e limpa,
86 Gerciane Arajo
mas ainda com vestgios de sangue. Os objetos foram recolhidos para percia
e a polcia foi embora.
A dona da penso, em depoimento, relatou que Cleison retornou ao
quarto e, quando ela o confrontou, perguntando: Por que voc fez isso?,
ele desconversou. Chama a ateno que mesmo com os holofotes das
mdias sobre o caso, a polcia no considerou manter um policial espera
do retorno do churrasqueiro penso. Deixou apenas um carto de visitas
com a proprietria a ser entregue ao feminicida, que pde juntar alguns
pertences e sair tranquilamente.
A imprensa j falava em uso de drogas, especulando sobre dependncia
qumica e alcoolismo de Gerciane. A av, em meio s vrias perguntas
feitas por reprteres, declarou que a neta dava trabalho, que saa de casa
e consumia lcool. Alguns veculos chegaram a afirmar que Gerciane se
relacionava com traficantes e que o local onde foi morta era frequentado
por usurios e comerciantes de entorpecentes. Frases genricas que nas
entrelinhas passavam a mensagem reiterada nos feminicdios: a mulher que
no se adequa quilo que dela esperado socialmente est sujeita no s
violncia, como perversidade de ser culpabilizada pelo crime que sofreu,
mesmo quando este chega ao extremo de um assassinato com tamanho
requinte de crueldade.
Havia mesmo relao de Gerciane com o trfico de drogas? Isto tinha
alguma conexo com o seu assassinato? Se era um crime passional, como
dizia a imprensa, em que importava que tipo de substncia ela consumia aos
seus 25 anos? possvel chamar de passional um crime em que a vtima
mutilada e estripada? Nada disso pareceu interessar. No interessou saber
quem era Gerciane, como vivia, conforme relata Lcia, da Unio Piauiense
de Mulheres:
O que a imprensa faz, isso a gente v sempre, colocar a culpa na vtima.
Estamos falando de uma mulher com uma filha pequena, em uma cidade
que no garante creche, no garante emprego, em uma situao de pobreza
gravssima. Nas minhas conversas com a famlia, Gerciane no aparecia
como essa mulher com problemas de drogadio. A filha perguntava por
ela o tempo todo, pareciam bem prximas.
Em meio a informaes imprecisas e esparsas sobre a vida da jovem,
Gerciane Arajo 87
comearam a aparecer relatos de que Gerciane saa com mulheres, que
inclusive tinha uma namorada, informao depois confirmada por algumas
amigas. A informao elevou o alerta dos movimentos de mulheres e LGBTs
de Teresina. Alguns relatos apontavam que Gerciane teria rejeitado Cleison
por ele ser homem. A imprensa nunca elucidou se Gerciane e Cleison j
se conheciam. O fato que os locais onde ele e ela moravam eram bem
prximos.
A polcia no entende o que a cabea de um homofbico. Mas ns,
que acompanhamos diversos casos, que estamos no movimento, sabemos
que o fato de ele ter cortado a vagina dela e ter colocado em cima da boca
importante, afirma Lcia.
A ativista descobriu que a av de Gerciane, Francisca, trabalhava no
Ceasa, assim como ela, e foi atrs da famlia para oferecer apoio e entender
se aquele era um caso de feminicdio: Comecei a me indignar e fui atrs
da famlia dela. Decidi acompanhar esse caso, falei com a av, uma pessoa
totalmente sobrecarregada de responsabilidades, tomando conta dos netos,
ajudando a pagar as contas da casa e que me pediu ajuda para obter justia.
Lcia conseguiu falar com o ento secretrio de segurana do municpio
de Teresina, que afirmou que o caso estava sendo investigado. Mas a sensao
que se tinha era de descaso. A gente fica triste pelo descaso do Estado,
eles alegavam que ela era drogada. A populao tambm falava isso, mas
quando so os gestores falando isso como se ela fosse culpada por ter sido
assassinada.
88 Gerciane Arajo
de que o Cleison foi o autor do homicdio4.
Impressiona que, mesmo com o depoimento das pessoas que viram
Gerciane saindo com Cleison e apesar de os objetos encontrados em sua
residncia estarem sujos de sangue, somente naquela semana, a justia
emitiu mandado de priso preventiva para Cleison. A justia j decretou
a priso dele esta semana. Estamos diligenciando para cumprir o mandado
e j temos informaes sobre onde ele poderia estar, anunciou o delegado
Baretta imprensa5.
Mas a indignao da famlia e de Lcia crescia na medida em que Cleison
seguia solto, apesar de todas as provas, apesar de a polcia declar-lo culpado
e obter, enfim, uma ordem de priso.
Eu liguei para a imprensa porque muitas pessoas diziam que era fcil
encontrar ele onde estava escondido. E a informao era de que ele estava
sendo protegido por um vereador de uma cidade vizinha, parente dele. A
a gente foi falar nas rdios. Fui com a imprensa na delegacia e eles disseram
que no tinham carro para mandar prender o assassino. E a voltamos para
a imprensa. Fizemos um embate, explica a ativista piauiense.
Somente passados um ano e cinco meses do assassinato de Gerciane,
Cleison da Conceio Mendes, foi preso. Nas reportagens sobre a priso,
frases como: ela teria se oferecido para sentar com ele em uma mesa e depois
teria deixado o estabelecimento em sua companhia so marcas da tentativa
de culpabilizar a vtima ainda neste ltimo estgio da priso do feminicida.
A imprensa no informa que o assassino estava sentado mesa com um
conhecido de Gerciane, o que poderia lhe credenciar como confivel para
uma carona, e que, ainda que as especulaes fossem verdadeiras, elas nunca
poderiam ser mobilizadas para justificar o crime contra a vida de Gerciane.
Para Lcia, to revoltante quanto a violncia contra mulheres como o
Estado no responde adequadamente para coibir este tipo de violncia. A
violncia contra homossexuais e contra mulheres grande. Quando uma
mulher bissexual e homossexual ainda pior. Mas ns estamos organizados,
4 Acessado em 22 de fevereiro: http://cidadeverde.com/noticias/164526/sangue-em-roupa-de-churrasqueiro-era-de-ger-
ciane-aponta-dna
me-de-dna-confirma-que-sangue-nas-roupas-de-churrasqueiro-era-de-gerciane&catid=2:cidade&Itemid=4
Gerciane Arajo 89
estamos indignados e estamos lutando contra a violncia de vrias formas.
A famlia de Gerciane foi procurada pelos telefones disponveis no
boletim de ocorrncia, na tentativa de que neste artigo ficasse um registro
de sua memria e identidade, mas no foi possvel estabelecer contato. O
processo criminal de seu assassinato e as notcias da imprensa so fontes
de informao que mais confundem do que guiam quem tenta entender
o crime.
Pouco sabemos da vida de Gerciane e o que sabemos de sua morte
terrivelmente assustador mesmo com os requintes de crueldade
empregados por Cleison to visibilizados pela imprensa, mesmo depois
de morta, Gerciane continuou sendo vtima de sistemas discriminatrios
que constroem o desvalor de sua vida e das milhes de mulheres que ainda
sero vtimas.
Ao longo das buscas por informaes sobre o caso, foi possvel identificar
outros em que os assassinos estupraram e arrancaram a vagina de suas
vtimas6, uma marca da violncia sexista impregnada na cultura brasileira.
Em 2 de maro de 2015, os movimentos e organizaes de mulheres
do Piau conquistaram, como resultado de muita insistncia e luta, que
fosse institudo, no mbito da Polcia Civil, o Ncleo Policial Investigativo
de Feminicdio, para apurar assassinatos de mulheres, meninas, travestis
e mulheres transexuais baseados em relaes de gnero. Para existirem,
resistem.
6 http://www2.sidneyrezende.com/noticia/228075+jovem+tem+vagina+arrancada+na+pavuna
http://www.goionews.com.br/noticia/2015/07/16/2576/mulher-foi-assassinada-e-teve-a-vagina-arrancada/58919/
http://www.portalcn1.com.br/2014/07/mulher-e-estuprada-e-apos-o-ato-tem.html
90 Gerciane Arajo
COMO EVITAR
MORTES ANUNCIADAS?
91
Muitos feminicdios so considerados mortes evitveis porque h uma
srie de violncias que so constituintes e antecedentes violncia fatal.
O feminicdio a ponta do iceberg, a consequncia. Ento temos que
ter um olhar muito mais cuidadoso para o que veio antes, avalia Carmen
Hein de Campos, advogada doutora em Cincias Criminais e consultora
da CPMI-VCM.
Compreender que uma parcela considervel desses crimes poderia ser
evitada abrir espao para apontar a responsabilidade da sociedade e,
sobretudo, do Estado quando no so acionados os mecanismos de proteo
s mulheres. Como refora Renata Tavares da Costa, defensora pblica
do Estado do Rio de Janeiro, o feminicdio o ato mximo da violncia
estrutural e sistemtica contra as mulheres. H mulheres que so submetidas
a violaes sistemticas e a violncias estruturais. Na medida em que esse
ciclo no interrompido, a violncia s aumenta, constata.
comum que alguns mecanismos que atuam para a perpetuao da
violncia at o desfecho fatal se repitam, configurando assim o status de
mortes anunciadas: a tolerncia social s diversas formas de violncia
contra as mulheres, a insuficincia dos servios pblicos de atendimento,
segurana e justia, a negligncia de profissionais que atuam nesses
servios, a impunidade e at proteo de autores de violncias por meio da
culpabilizao da mulher pela violncia sofrida.
H homens que acham que podem matar a mulher que foi infiel, por
exemplo. Mas mesmo que ela o tenha trado de fato, nada justifica o crime
contra a vida e errado pensar que ela foi culpada de alguma maneira
pela prpria morte por ter sido infiel. E essa forma errada de pensar
responsabilidade de todo mundo, no s do autor, mas do Estado e de toda
a sociedade, explica Ana Rita Souza Prata, defensora pblica do Estado
de So Paulo.
O sentimento de posse tambm est presente, por exemplo, nos casos de
familiares e conviventes que praticam violncias sexuais contra meninas e
mulheres e depois cometem tambm o feminicdio para que os abusos no
sejam denunciados. J nos crimes sexuais que culminam em feminicdio
praticados por desconhecidos, a desumanizao do corpo feminino, encarado
como objeto, marcante, evidenciando o dio e misoginia que levam a
92 Morte anunciada
desfigurar as vtimas ou a mutilar suas partes ntimas.
A partir da compreenso de que os feminicdios so, em boa parte,
mortes anunciadas, o Estado pode ser responsabilizado. Fatores como a
no efetivao dos direitos previstos nos marcos legais, no implementao
de servios especializados de atendimento, a aceitao e naturalizao de
hierarquias de gnero e raa e a banalizao de uma srie de violncias
anteriores pelas prprias instituies do Estado contribuem para a
continuidade das violaes que esto nas razes do feminicdio.
No Brasil, o cenrio de convivncia com mortes anunciadas
denunciado, sobretudo, nos assassinatos decorrentes da violncia domstica e
familiar, o feminicdio ntimo, uma vez que o pas j assumiu como deveres
coibir e prevenir a violncia nesse contexto ao ratificar tratados internacionais
e promulgar a Lei Maria da Penha em 2006. Ou seja, se os sistemas de
segurana e justia tivessem agido em algum momento do histrico de
violncia anterior ao desfecho fatal ou se a mulher tivesse encontrado o apoio
necessrio dos servios pblicos para romper o ciclo de violncia, conforme
preconiza a Lei, muitas mortes seriam de fato evitadas.
A promotora Silvia Chakian, do Ministrio Pblico do Estado de So
Paulo, destaca que existem situaes em que as mulheres nunca noticiaram
a violncia, mas quando vamos buscar o histrico, elas j sofriam h
algum tempo. E existem casos em que as mulheres acionaram o sistema
de segurana, de justia ou de sade e preciso entender que alguma coisa
falhou para essas mulheres acabarem morrendo.
Assim como acontece no feminicdio ntimo, em outros tipos, como o
feminicdio associado violncia sexual, a banalizao dos casos de violncia
ou a culpabilizao da mulher gera uma sensao de impunidade e at de
aceitao do crime, seja por existir uma compreenso social de que essa
violncia foi de alguma forma provocada pela mulher como na ideia de
que ela se exps a determinado risco , seja porque as prprias instituies
do Estado encaram esse crime como um problema menor, individualizado
e que no diz respeito segurana pblica no criando polticas pblicas
e servios suficientes para o enfrentamento e preveno do problema.
Entre as falhas e violaes detectadas no atendimento do Estado,
especialistas comentam quatro problemas frequentes que precisam ser
Morte anunciada 93
superados com urgncia para evitar os feminicdios:
94 Morte anunciada
de qualificao dos profissionais para compreender as caractersticas e
complexidades das violncias contra as mulheres e das desigualdades de
gnero gera, muitas vezes, situaes de revitimizao quando a mulher
sofre uma nova violncia ao denunciar a agresso sofrida.
A revitimizao fica evidente em procedimentos recorrentes do
atendimento, como obrigar a vtima a repetir inmeras vezes o relato
sobre a violncia e no acolh-la devidamente, reproduzindo esteretipos
discriminatrios nos prprios servios. Assim, ela se torna vtima tambm
da violncia institucional, aquela perpetrada pelos prprios agentes pblicos
no exerccio de suas funes.
Morte anunciada 95
reconhecimento da violncia contra as mulheres como um problema social
invisibilizam as caractersticas especficas e a dimenso do problema. Em
outras palavras, entender as razes culturais e o modo como as violncias se
perpetuam at o assassinato importante para que os servios do Estado
identifiquem os pontos em que a poltica pblica precisa ser reforada
para garantir a proteo da mulher e a responsabilizao de quem pratica
violncias. As autoridades estatais tm obrigao de coletar os elementos
bsicos de prova e realizar uma investigao imparcial, sria e efetiva por
todos os meios disponveis. A perspectiva de desigualdades de gnero pode
garantir uma resposta adequada do Estado, com duas finalidades: dar
respostas a um caso particular e, ao mesmo tempo, prevenir a perpetuao
do feminicdio, afirma Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres
no Brasil.
Neste contexto, o Estado pode ser responsabilizado por vidas
interrompidas. Nos casos em que a mulher buscou os meios legais previstos
em lei para sua proteo e ainda assim foi assassinada possvel analisar o
cabimento de ao indenizatria contra o Estado e para que se demonstre
que objetivamente houve falha, por ao ou omisso, em proteger a vida da
mulher. So exemplos os casos em que h demora injustificada na concesso
de medidas de proteo, falhas na intimao do agressor sobre a medida,
inexistncia de formas de fiscalizar o cumprimento da ordem de proteo
ou quando a mulher no devidamente notificada que o agressor saiu da
priso, entre outros.
Alm de casos individuais, tanto o Ministrio Pblico como a Defensoria
Pblica podem mover aes coletivas contra o poder pblico, judiciais
ou extrajudiciais a partir da reunio das informaes de vrios casos
semelhantes que apontem falhas sistmicas do Estado na garantia dos direitos
das mulheres em situao de violncia , obrigando-o a implementar servios
ou melhorar a qualidade dos j existentes.
Proteo e preveno
96 Morte anunciada
existentes, implementando servios, replicando experincias exitosas,
capacitaes e recomendaes que apontem caminhos mais eficazes
de proteo imediata da vida das mulheres. Diversas leis e dispositivos
constitucionais nacionais, alm de tratados internacionais dos quais o Brasil
signatrio, apontam os deveres do Estado em punir, coibir e prevenir as
violncias que levam ao assassinato de mulheres.
Existem ainda normas, recomendaes e manuais que orientam sobre os
caminhos adequados para o cumprimento desses deveres e para a garantia
dos direitos das mulheres de um modo integral. O Brasil foi, por exemplo,
o primeiro pas a adaptar o protocolo latino-americano para investigao
dos assassinatos de mulheres por razes de gnero (ONU Mulheres, 2014)
para a sua realidade social, cultural, poltica e jurdica.
A adaptao resultou nas Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar
e Julgar com Perspectiva de Gnero as Mortes Violentas de Mulheres (ONU
Mulheres, 2016), um documento que rene elementos para aprimorar a
resposta do Estado e mostra quais so os deveres do poder pblico e os
direitos das vtimas, lembrando que o feminicdio um crime evitvel
para o qual o Estado tem a funo constitucional de formular medidas de
responsabilizao, proteo, reparao e preveno.
Nos casos em que os mecanismos de proteo falham, importante ainda
mapear onde esto os problemas para que a falha no se repita. Nesse sentido,
o reconhecimento do feminicdio importante tambm para auxiliar na
composio de um diagnstico acurado da violncia fatal contra as mulheres
no Brasil para, assim, avanar em aes de preveno.
Visibilizar e reconhecer as relaes de poder desiguais que
vulnerabilizam a condio feminina e o contexto discriminatrio que
permeia as violncias ponto essencial. O combate impunidade
importante, mas insuficiente. preciso investir na educao e na
comunicao social, pois precisamos construir espaos de discusso da
violncia de gnero e de socializao para uma sociedade menos violenta.
Sem isso, no vamos conseguir mudar essa realidade, defende Izabel
Solyszko Gomes, doutora em Servio Social e docente na Universidad
Externado de Colombia.
A garantia de direitos pode evitar o feminicdio. A partir de intensos
Morte anunciada 97
debates e mobilizaes nos ltimos anos, o movimento de mulheres vem
denunciando a desigualdade de gnero no campo dos direitos e obteve
importantes conquistas legislativas no Brasil e em vrios pases no mundo.
No cenrio internacional, a Conveno Interamericana para Prevenir, Punir
e Erradicar a Violncia contra a Mulher mais conhecida como Conveno
de Belm do Par, de 1994 considerada um marco no enfrentamento
violncia contra as mulheres.
Adotada pela Assembleia Geral da Organizao dos Estados Americanos
(OEA) em 9 de junho de 1994, a Conveno exige dos Estados membros
um compromisso efetivo na erradicao da violncia de gnero a partir da
criao de legislaes especficas. Com isso, ao longo dos ltimos 20 anos
diversos pases formularam suas prprias leis para coibir a violncia contra
as mulheres. O Brasil ratificou a Conveno, que passou a vigorar no pas
a partir de 1996. Desde ento, mostrou avanos significativos no campo
legislativo, como as alteraes sobre crimes sexuais no Cdigo Penal, a
promulgao da Lei Maria da Penha para enfrentar a violncia domstica
e familiar e a tipificao penal do feminicdio. O principal impacto da
Conveno foi produzir mudanas legislativas. No caso do Brasil, foi feita
uma lei especfica sobre violncia domstica e foram feitas alteraes no
Cdigo Penal, lembra Leila Linhares Barsted, advogada, diretora da ONG
Cepia Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informao e Ao e representante
do Brasil no Mecanismo de Acompanhamento da Conveno de Belm
do Par da OEA.
98 Morte anunciada
1. Criao de servios em todo o territrio nacional com
investimento financeiro adequado
O montante oramentrio destinado s polticas de enfrentamento da
violncia contra as mulheres ainda insuficiente em todas as esferas federal,
estadual e municipal. Com isso, os servios criados ainda so escassos e esto
concentrados nas capitais e grandes cidades. Essa lacuna no interior significa
que o acesso das mulheres aos seus direitos desigual no pas e ainda no se
tornou realidade para uma parcela significativa da populao.
Como conta a defensora pblica Graziele Carra Dias Ocriz,
coordenadora do Ncleo Institucional de Promoo e Defesa da Mulher
da Defensoria do Mato Grosso do Sul, em seu Estado foi inaugurada a
primeira Casa da Mulher Brasileira, em Campo Grande, onde os servios
principais esto concentrados em um s local fsico, o que facilita muito o
atendimento mulher. No interior, porm, j no h esta estrutura e nem
todas as cidades tm servios especializados, como delegacias da mulher
ou ncleos de atendimento mulher, por exemplo. Ento, a mulher aqui
no Mato Grosso do Sul, especialmente a mulher indgena, encontra muita
dificuldade em acessar os servios da rede de proteo, afirma.
A avaliao dos especialistas consultados de que os servios disponveis
esto sobrecarregados e no contam com nmero suficiente de profissionais
e infraestrutura adequada para lidar com a demanda. Como afirma a juza
Teresa Cristina Cabral Santana Rodrigues dos Santos, titular da 2 Vara
Criminal da Comarca de Santo Andr (SP):
Morte anunciada 99
formao especfica dos profissionais em relao s violncias contra as
mulheres e desigualdades de gnero, apontada como fundamental para
superar a chamada rota crtica e promover um acolhimento de qualidade.
Rota crtica o nome dado por especialistas ao caminho fragmentado
que a mulher percorre buscando o atendimento do Estado, arcando sozinha
com uma srie de obstculos, do acesso ao transporte a ter que repetir
reiteradas vezes o relato da violncia sofrida e enfrentar com frequncia
a violncia institucional praticada por profissionais que reproduzem
discriminaes contra as mulheres nos prprios servios que deveriam
acolh-las com ateno e respeito.
A integrao e o fluxo dos servios so fundamentais no atendimento
para garantir que, uma vez rompida a barreira inicial da denncia, a mulher
seja efetivamente atendida e tenha sua integridade preservada, afirma a
sociloga Jacqueline Pitanguy, coordenadora da ONG Cepia (Cidadania,
Estudo, Pesquisa, Informao e Ao).
Nessa rota fragmentada entre a delegacia, percia, servios de sade e de
assistncia social, Defensoria, Ministrio Pblico e Juizado, muitas vezes
perde-se a mulher, que por fatores como medo, insegurana e descrena
desiste de levar a denncia adiante. Infelizmente, muito comum que os
profissionais desses servios ofeream obstculos, questionem e duvidem
da mulher que busca ajuda. Para superar o problema preciso realizar um
trabalho de preveno e acolhimento que oferea apoio para que as prprias
mulheres sejam capazes de sair do ciclo de violncia antes que se chegue
ao desfecho fatal.
Sociloga e ex-subsecretria de Polticas para as Mulheres do Estado
do Rio de Janeiro, Adriana Mota lembra que todas as campanhas para as
mulheres terminam com uma palavra: denuncie. Para ela, a denncia
importante, mas no suficiente para dar a essa mulher a segurana
necessria para que ela construa estratgias de sobrevivncia a esses atos
de violncia e perceba, de fato, que uma pessoa em situao de violncia
que precisa de atendimento especializado. A denncia s uma parte
do processo, que diz respeito exclusivamente ocorrncia criminal. Mas
essa mulher precisa tambm de acolhimento, escuta, orientao e um
atendimento individualizado, com assistente social, profissional do Direito
1 As Diretrizes Nacionais (ONU Mulheres, 2016) renem informaes e orientaes para que sejam garanti-
dos os direitos em casos de feminicdio. Para saber mais consulte em: http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/
dossies/feminicidio/diretrizes-nacionais/
107
Aqui estamos repetindo o assunto com o mesmo propsito:
lembrar de no esquecer! Porque Claudia tambm no uma lenda,
nem um mito, nem uma desterritorializada. Claudia tambm no
veio da fico, no foi inventada. Claudia est presente em mim
diariamente, est presente na Andreia (me da Rayza), est presente
em dona Maria e na Camila. Claudia foi arrastada sim, mas sem
identidade no, isso nunca permitiremos!
Thiane Neves Barros (03/2015, Blogueiras Negras)
Feminicdio de Estado
Claudia vive
Referncias
Srie 100 vezes Cludia promovida pelo Think Olga: http://thinkolga.com/2014/03/19/100-
vezes-claudia/
Relatrio O Bom Policial Tem Medo: Os Custos da Violncia Policial no Rio
de Janeiro. Human Rights Watch, 2016. Acessvel em: https://www.hrw.org/pt/
report/2016/07/07/291589#page
Pgina do movimento Black Life Matters nos Estados Unidos: http://blacklivesmatter.com/
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violncia 2015: Homicdio de mulheres no Brasil.
Braslia: Flacso, 2015. Disponvel em http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/
MapaViolencia_2015_mulheres.pdf
117
As estatsticas so bem claras: 13 mulheres morrem de forma violenta
no Brasil todos os dias, o que leva o Pas a ter um dos maiores ndices de
homicdios de mulheres no mundo. Segundo o Mapa da Violncia 2015
(Waiselfisz, 2015), o Brasil ocupa a 5 colocao entre as piores taxas de
assassinatos no mundo, quadro que refora a urgncia de respostas eficazes
do Estado e da sociedade para prevenir e coibir a violncia de gnero.
A conjugao das normas internacionais com leis nacionais foi essencial
para tirar a violao dos direitos humanos das mulheres da invisibilidade e
corrigir legislaes discriminatrias. Esses avanos, entretanto, ainda no
representam a garantia de uma vida livre de agresses para uma parcela
significativa das mais de 100 milhes de mulheres que vivem no Brasil,
uma vez que ausncia de vontade poltica e dotao oramentria esto no
centro das dificuldades para a efetiva implementao das polticas pblicas
de enfrentamento e preveno violncia.
119
condenao do Estado brasileiro pela Comisso Interamericana de Direitos
Humanos da OEA, em 2001, por negligncia, omisso e tolerncia em
relao violncia domstica contra as mulheres e pelo no cumprimento
da Conveno de Belm do Par, tendo como caso de referncia a dupla
tentativa de feminicdio sofrida pela biofarmacutica cearense Maria da
Penha Maia Fernandes. O texto legal foi construdo a partir de anos de
debate entre organizaes feministas, juristas, gestores de polticas pblicas
e parlamentares.
A Lei Maria da Penha focada especialmente na violncia domstica e
familiar baseada no gnero, contemplando a criao de mecanismos tanto
para coibir os casos de violncia quanto para preveni-los. Ao reconhecer
a situao de vulnerabilidade e de risco para as mulheres a Lei define os
mecanismos e quem responsvel por aplic-los para prevenir a violncia,
proteger as mulheres agredidas e responsabilizar os agressores. Por tudo isso
considerada pela ONU uma das trs legislaes mais avanadas do mundo
no enfrentamento violncia domstica contra as mulheres.
A partir de sua promulgao, o debate sobre as desigualdades de
gnero ganhou espao nos campos do direito e da segurana pblica. A
Lei foi determinante ainda para a criao de servios especializados para
o atendimento a mulheres em situao de violncia, que hoje existem em
maior nmero no Brasil, embora ainda sejam insuficientes para cobrir todo
o territrio nacional. Diante deste cenrio, os operadores dos sistemas de
justia e segurana pblica e os movimentos de mulheres reivindicam a
ampla efetivao da Lei Maria da Penha e a atualizao da doutrina jurdica
para incluso das inovaes introduzidas por esse marco legal.
Segundo a pesquisa Avaliando a Efetividade da Lei Maria da Penha
(Ipea, 2015), a Lei conteve em cerca de 10% o crescimento da taxa de
assassinatos de mulheres praticados nas residncias das vtimas, o que
comprova que o investimento na divulgao da Lei e na criao dos servios
e aes para efetiv-la urgente para evitar que as vidas de milhares de
mulheres tornem-se estatsticas alarmantes.
Direitos no efetivados
desconstruir-as-desigualdades-de-genero-e-raca-no-brasil-por-aline-yamamoto/
2. Comit CEDAW
A Conveno sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao
contra as Mulheres tambm chamada CEDAW (da sigla em ingls) ou
Conveno das Mulheres foi adotada pela Assembleia Geral das Naes
Unidas em 1979 e o primeiro tratado internacional que dispe amplamente
sobre os direitos humanos das mulheres. So duas as frentes propostas:
promover os direitos das mulheres na busca da igualdade de gnero e reprimir
quaisquer discriminaes contra as mulheres nos Estados partes.
Entretanto, a simples enunciao formal dos direitos das mulheres
no representa automaticamente a efetivao de seu exerccio. Por isso foi
criado o Comit CEDAW para monitorar a implementao de medidas de
erradicao da violncia contra as mulheres nos pases signatrios.
A brasileira Silvia Pimentel advogada e cumpriu dois mandatos (2011 e
2012) como presidente do Comit CEDAW. Ainda integrante do Comit, a
especialista em direitos das mulheres acompanha h anos o desenvolvimento
de leis no discriminatrias em diversos pases. Em entrevista ao Informativo
Compromisso e Atitude (Instituto Patrcia Galvo, 2014), Silvia Pimentel
explica que o Brasil conquistou um avano legislativo enorme, mas o acesso
justia permanece como um grande desafio.
141
A imprensa tem papel estratgico na formao da opinio, na presso por
avanos nas polticas pblicas e pode contribuir para ampliar, contextualizar
e aprofundar o debate sobre a forma mais extrema de violncia de gnero: o
feminicdio. A mdia hoje considerada e estudada como uma das agncias
informais do sistema de justia, pois condena, absolve, orienta a investigao
e at investiga. Ento a responsabilidade muito grande, afirma Ela Wiecko,
subprocuradora da Repblica e professora da Universidade de Braslia (UnB).
Diante de tamanho poder, preciso debater e reforar a responsabilidade
social da imprensa ao tratar as violncias contra as mulheres. No se
questiona o poder da mdia de influenciar crenas e comportamentos,
conforme j mostraram diversos estudos. E em casos com grande repercusso
na imprensa, operadores do sistema de justia admitem que a mdia pode
influenciar no processo penal. por isso que os cuidados dos profissionais
de comunicao devem ser redobrados na cobertura de casos de feminicdio.
Como explica a juza Marixa Fabiane Lopes Rodrigues, do Tribunal de
Justia de Minas Gerais, tudo o que for veiculado na imprensa, respeitadas
as regras processuais, poder ser usado no plenrio do jri, para beneficiar
ou prejudicar a defesa do ru. Considerando que o plenrio do jri a arena
da palavra, os jurados podem ser influenciados pelo profissional que tiver
a melhor performance na apresentao dos seus argumentos, incluindo
matrias jornalsticas. Nesse sentido, a juza aponta:
Cobertura policialesca pe
a culpa na vtima
importante ainda ter em mente que uma cobertura acrtica tambm
cmplice da violncia contra as mulheres. Com um olhar atento sobre as
notcias de assassinatos de mulheres publicadas em veculos de imprensa
nacionais, observa-se que a maioria absoluta das notcias apresenta uma
abordagem policial, que se atm a reproduzir as informaes das autoridades
policiais que esto cuidando do caso e que muitas vezes tambm reforam
esteretipos e discriminaes contra as mulheres (Sanematsu, 2011).
Via de regra, a primeira notcia sobre um feminicdio traz em destaque
a descoberta de um corpo feminino, por vezes sem nome. E quanto menos
detalhes houver sobre o caso, maior ser o detalhamento da cena do crime
e do estado do corpo, inclusive por meio de imagens.
Se o fato se mostrar merecedor de seguimento, a cobertura prosseguir
trazendo informaes adicionais, tais como nome da vtima, situao em
que ocorreu o crime, suspeitos, comentrios de testemunhas ou conhecidos
sobre a possvel motivao etc.
1 O projeto Monitoramento da cobertura jornalstica sobre feminicdio e violncia sexual contra mulheres consiste numa iniciativa
do Instituto Patrcia Galvo Mdia e Direitos que tem por objetivo avaliar, com base em dados quantitativos e qualitativos, os principais
aspectos do tratamento dado aos veculos jornalsticos online e impressos aos casos de violncias extremas motivadas pelas condies de
gnero e raa. Iniciado em outubro de 2015, analisou um total de 3.440 notcias publicadas em 71 veculos de todas as regies do pas.
Quando do fechamento desta edio, os dados coletados estavam em fase de reviso. O relatrio final do projeto deve ser divulgado em
breve na Agncia de Notcias Patrcia Galvo (www.agenciapatriciagalvao.org.br). Todas as reprodues de notcias que constam neste
captulo como exemplos so fruto das notcias coletadas durante o monitoramento em veculos diversos.
1 Disponvel em http://portacurtas.org.br/filme/?name=quem_matou_eloa
4 Disponvel em https://esaj.tjsp.jus.br/pastadigital/abrirDocumentoEdt.do?origemDocumento=M&nuProcesso=0033667-
32.2011.8.26.0053&cdProcesso=RI002ZP8O0000&cdForo=990&tpOrigem=2&flOrigem=S&nmAlias=SG5TJ&cdServico=190201&tic
ket=fDp%2Bi94RZh5fopwTZCljnTbDmGLf%2FMwTyeWqRiDkbRiCy4IUZbNOKN4F0xYudKlvpez4ANu2vncs%2FSM%2FHRZP
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8.242, de 12 de outubro de 1991. 3. ed. Braslia : Cmara dos Deputados, Coordenao de Publicaes, 2001. Disponvel em: http://
www.degase.rj.gov.br/documentos/ECA.pdf
6 Disponvel em http://fenaj.org.br/wp-content/uploads/2016/08/codigo_de_etica_dos_jornalistas_brasileiros-1.pdf
8 O projeto Monitoramento da cobertura jornalstica sobre feminicdio e violncia sexual contra mulheres consiste numa iniciativa
do Instituto Patrcia Galvo Mdia e Direitos que tem por objetivo avaliar, com base em dados quantitativos e qualitativos, os principais
aspectos do tratamento dado aos veculos jornalsticos online e impressos aos casos de violncias extremas motivadas pelas condies de
gnero e raa. Iniciado em outubro de 2015, analisou um total de 3.440 notcias publicadas em 71 veculos de todas as regies do pas.
Quando do fechamento desta edio, os dados coletados estavam em fase de reviso. O relatrio final do projeto deve ser divulgado em
9http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossies/feminicidio/
10 Ana Carolina foi morta pelo ex-namorado dentro de seu apartamento, na Zona Zul de So Paulo. O caso ficou conhecido como o
Assassinato da bailarina do Fausto o que por si s revela uma secundarizao da vtima no relato de sua prpria histria.
180
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183
Feminicdio. Nomear o problema uma forma de
visibilizar um cenrio grave: o Brasil convive com violncias
cotidianas contra as mulheres, o que resulta em uma das
maiores taxa de assassinatos femininos no mundo. Alm
de nomear, a definio do problema mostra tambm que
preciso conhecer melhor sua dimenso e contextos, bem como
desnaturalizar concepes e prticas que colaboram para a
perpetuao da violncia contra as mulheres at o desfecho
fatal.
Neste livro esto sintetizadas as principais contribuies e
reflexes reunidas no Dossi Feminicdio uma plataforma
online que rene vozes de diversas fontes: especialistas,
feministas, antirracistas, ativistas que defendem direitos de
mulheres lsbicas, bis, travestis e transexuais, alm de pesquisas,
dados e documentos.
O leitor tambm encontra aqui um registro da memria
de alguns casos de feminicdio que aconteceram no Brasil,
uma forma simblica de homenagear estas mulheres e
tambm as milhares de vtimas que tm suas identidades
diludas em estatsticas alarmantes. Amanda, Claudia, Elo,
Gerciane, Isamara, Laura, Luana. Mulheres cujas vidas foram
interrompidas e que deixaram luto, dor e saudade.