Anais do VI Seminrio dos Alunos dos Programas de

Ps-Graduao do Instituto de Letras da UFF

Estudos de Literatura

DIRIO DE UM SUICIDA: A ESCRITA DA PRPRIA MORTE EM

L'INVENTION DE LA MORT, DE HUBERT AQUIN

Andr Luiz Vieira

Orientadora: Maria Bernadette Velloso Porto
Mestrando

RESUMO
Esta apresentao busca expor brevemente alguns aspectos iniciais da pesquisa de
mestrado centrada na narrativa L'invention de la Mort, do escritor, ensasta e roteirista
quebequense Hubert Aquin. O trabalho de investigao versa sobre o tema da morte, e
mais especificadamente do suicdio, na obra de Aquin, em especial no romance
mencionado, em que elementos autobiogrficos se misturam ao escopo ficcional.
Propomos aqui, como primeira leitura de acesso anlise da obra, aproximar o texto
literrio categoria de romance epistolar. O corpo textual de L'invention de la Mort
se constitui da nota de suicdio do personagem central, Ren Lallemant, escrita em
forma de carta e endereada a Madeleine Vallin, de quem ele amante. Lallemant
rememora sua vida decadente por meio de episdios em que expressa o cansao
intelectual e de sua existncia medocre, baseada na inveja que sente daqueles a quem
considera bem-sucedidos, bem como do cime e do desejo de posse em relao a
Madeleine, que o corroem. No decorrer do texto, Lallemant questiona recorrentes tabus
da sociedade quebequense dos anos 60 e 70, a saber: o vcio, o sexo fora do casamento,
o aborto, o sexismo, a loucura, a religio e por fim o suicdio. Assim, nosso artigo se
concentrar em analisar de que maneira a escolha do gnero epistolar contribui para
estabelecer o jogo narrativo entre autor e leitor, e como o tema do suicdio evocado no
romance. Para tal, tomaremos como base terica as pesquisas desenvolvidas por
Philippe Aris, mile Durkheim, Jacques Beaudry, Anthony Soron e Richard Dubois.
PALAVRAS-CHAVE: Literaturas Francfonas; Hubert Aquin; morte; nota de
suicdio.

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Hubert Aquin (1929-1977) faz parte de um conjunto de intelectuais responsveis

por iniciar o processo de questionamento identitrio do ento intitulado Canad-
Francs, que implicar nos anos 60-70 a denominada Revoluo Tranquila.
A colonizao do Canad foi empreendida, primeiramente, pelos franceses que
ao se fixarem nas terras e desenvolverem famlias j nascidas no Novo Mundo passaram
a se autoproclamar canadenses. Com o abandono da colonizao francesa da Amrica
do Norte e a chegada do colonizador britnico, o adjetivo canadense teve sua
abrangncia modificada. A poltica dos novos colonos estabeleceu que por canadenses
seriam compreendidos todos os que nasciam naquele espao. Tal ao reduziu os
nativos de fala francesa ao termo canadense-francs, portanto, uma poro inferior
dentro de um todo muito mais amplo.
Durante o sculo XIX, a literatura canadense de lngua francesa se desenvolver
como forma de valorizar o espao e o povo daquela regio. Para se proteger da ameaa
da assimilao por parte do colonizador ingls, os francfonos se apegaram a elementos
culturais que representavam sua singularidade naquele territrio em detrimento das
caractersticas culturais do adversrio. Elementos como: a lngua francesa, a religio
catlica, a culinria francesa, festejos tradicionais, folclore sero tematizados e
edificados pelo imaginrio quebequense. Esperava-se apagar a imagem de um territrio
frio, nevoso, quase inabitvel, marcado pela vida tradicional do homem do campo.
Os anos 60 so marcados no mundo inteiro por grandes mudanas de base dos
valores nas sociedades ocidentais. A juventude do ps-guerra coloca em cheque a
cultura dominante da poca, centrada nas expresses culturais da burguesia branca,
protestante estadunidense, em que se privilegiava a homogeneidade, alheia pluralidade
dos povos das Amricas. Grandes movimentos de questionamento ao status quo
eclodem no mundo inteiro: O Festival de Woodstok (EUA), Maio de 68 (Frana),
Tropiclia (Brasil) (VIANNA NETO, 2006, p.1).
No Qubec, dar-se- a Revoluo Tranquila, movimento de natureza cultural e
poltico, sem que houvesse conflito armado. Os intelectuais quebequenses comearam a
reivindicar a singularidade e valorizao da populao de lngua francesa em relao ao
Canad ingls. Eis que o gentlico quebequense passa a ser empregado como designao
dos habitantes da provncia como forma de marcar o seu lugar de especificidade. Isto
uma vez posto, desencadeou-se o processo poltico de luta nacionalista pela
emancipao da regio, cujo fracasso est intimamente ligado ao sentimento de cansao

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existencial do escrito que por sua vez, assim como o protagonista do romance aqui
brevemente analisado, suicida-se.
O grande perodo de produo intelectual de Aquin encontra-se, pois, entre o
perodo de incio destas reivindicaes identitrias e antes do desfecho dessas aes
com o estabelecimento do fracasso da luta pela independncia.
mile Durkheim, importante pensador francs do sculo XIX e nome
fundamental na Antropologia e na Sociologia, o responsvel por tratar o suicdio no
apenas como um problema de natureza religiosa ou psicolgica. Em sua obra lapidar O
Suicdio (1897), Durkheim analisa as causas de autoextermnio, buscando sua origem
social e no individual. Mas faz uma ressalva importante: a de que no possvel
assemelhar o indivduo alucinado que se joga da janela com o suicida que escolhe
morrer pelo fato de a vida no interessar-lhe mais (DURKHEIM, 2003, p.13). Para ele,
s deveria ser considerado suicida de fato e passvel de anlise sociolgica, o indivduo
so que consciente de si escolhe atentar contra a vida:
O que h em comum a todas as formas possveis dessa renncia
suprema o ato que a consagra ser realizado com conhecimento de
causa; a vtima, no momento de agir, saber o que resultar de sua
conduta, seja qual for a razo que a levou a assim se conduzir.
(DURKHEIM, 2003, p.14)
A certeza de que a hora da morte chegou est inscrita na primeira frase do
romance Tout est fini (AQUIN, 2001, p.3), relembrando as palavras de Cristo na cruz
ao constatar que tudo estava consumado e, portanto, no havia mais motivo para estar
vivo.
L'Invention de la mort, um romance pstumo, sendo um dos primeiros
escritos de Aquin, porm nunca publicado. Trata-se da narrao em primeira pessoa do
processo de desligamento do mundo do personagem central, Rene Lallemant, aps a
deciso de exterminar sua prpria vida.
Rene Lallemant um jornalista, conforme sua prpria confisso por no ter
conseguido entrar na faculdade de Direito, fracassado que trabalha como colunista no
jornal Le Canadien, segundo peridico de Montreal. Ele costuma entrevistar (pseudo)
personalidades em passagem pela cidade. Em uma de suas entrevistas conhece por
acaso Madeleine Vallin, antiga presidente do Cercle Musical de Montral, por quem se
apaixona e com quem passa a ter um secreto caso amoroso mesmo ela sendo casada e
me de trs filhos. Lallemant expressa ao longo do livro o seu desejo pelo corpo de
Madeleine, como tambm pelo controle da vida e aes da concubina. Ainda expe

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abertamente o cime e inveja que sente dos filhos da amada, pois estes obtm a ateno
dela gratuitamente e podem declarar seu amor pela me sem reservas.
A deciso de Lallemant pelo suicdio origina-se de uma derrota profissional que
implica no fracasso de seus planos secretos, at mesmo a Madeleine. Ele se candidata ao
posto de correspondente do jornal na Frana, com o intuito de raptar a amante e fugir
com ela para Europa, onde acredita que sero felizes. Contudo, o posto lhe negado.
Lallemant supe que esta negativa a sua candidatura se deu por culpa de seu amigo de
trabalho, Jean Paul, que o trara.
Jean Paul trabalha como reprter no Le Canadien, e empresta o apartamento
para que seu companheiro de trabalho possa realizar seus encontros amorosos com suas
amantes. A primeira amante de Lallemant havia sido Nathalie, por quem Jean Paul
nutria uma paixo inconfessa. Ela engravida do colunista, mas este nunca amou-a
verdadeiramente e passa a desprez-la ao saber da notcia da gravidez. com o dinheiro
emprestado por Jean Paul que Lallemant pagar o aborto do filho do casal. Assim, o
personagem acredita que Jean Paul negara sua ida para Frana como represlia por suas
aes para com Nathalie. E vendo os seus planos de fuga aniquilados, e preso a uma
existncia marcada pela derrota, ele se cansa de viver e decide se suicidar
O corpo do romance , portanto, a nota de suicdio do protagonista, Rne
Lallemant. Escrita, primeira vista, em uma espcie de um dirio confessional, o leitor
descobre aos poucos que essa nota , na verdade, um documento endereado a
Madeleine. Estabelece-se assim uma narrativa de carter epistolar, cuja resposta no
chegar, uma vez que a hora da morte j chegou e a leitura da carta s se dar ao
trmino da ao de suicdio.
A constatao de que o que temos diante de ns uma epstola e no um dirio
comum suscitada pela invocao no incio e no trmino da narrativa, quando
observamos o narrador procurando um dilogo com o interlocutor. Tambm aos poucos
descobrimos que este interlocutor Madeleine, por meio dos vocativos utilizados:
Trop tard mon amour. J'ai vcu coll tes parois comme un placenta,
maintenant je me dtache de toi (AQUIN, 2001, p.9)12
Te souviens-tu, Madeleine, d'avoir compar le confrencie
Stendhal? (ibidem p.15)3

1
Todas as tradues do romance feitas no corpo deste artigo so de minha autoria.
2
Tarde demais, meu amor. Eu vivi colado a tuas paredes (celulares) como uma placenta, agora eu me
desapego de ti.
3
Voc se lembra, Madeleine, de ter comparado o conferencista a Stendhal?

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Ne te l'ai-je pas prouv dans les minutes qui ont suivi? Ne t'ai-je pas
rassure, mon amour, car j'ai ador ton corps de mes lvres aveugles ,
je l'ai vnr comme jamais aucun dvot ne s'est prostern devant une
relique (ibidem p.18)4
No princpio, a procura pelo dilogo justifica-se pela tentativa do personagem
em provar a sinceridade do seu amor perante o ato a priori infame de retirar sua prpria
vida. Observamos na ltima passagem a obsesso que ele nutre por ela, divinizando-a.
Temos aqui uma das caractersticas dos escritores da Revoluo Tranquila que a
dessacralizao. Apropriam-se de imagens ligadas, particularmente Igreja Catlica
acusada na poca de permanecer imparcial perante o sofrimento quebequense,
ressignificando-as, geralmente com contedo mundano, por vezes de baixo calo.
No final da narrativa, destacam-se diversos momentos em que a vergonha
seguida de pedidos sucessivos de perdo ocupam lugar principal:
Adieu Madeleine, pardonne-moi de te laisser ainsi dans l'incertitude,
mais surtout de t'avoir mal aime, toi, la seule personne que j'ai
vraiment aime. Tu vois que je suis inapte vivre (ibidem p.138)5
Alm de enderear-se a Madeleine e poder confessar-se diretamente a ela,
observamos at aqui que o principal efeito de sentido nesses momentos de interlocuo
a tentativa de manipulao do sujeito, que se dirige a morte, daqueles que
permanecero vivos.
O historiador francs Philippe Aris, no seu profundo e clebre estudo sobre a
representao da morte no Ocidente, observa grande transformao do tratamento dado
morte da Idade Mdia at os nossos dias em que, segundo ele, o assunto tabu. Sua
pesquisa reflete sobre diversos aspectos relacionados a vivncia da morte nos diferentes
perodos da civilizao crist. Ele sublinha que um especial elemento ligado morte
sofre uma metamorfose em sua constituio: o testamento.
Atualmente, o testamento um documento em que o vivo engendra um
compndio dos seus bens e os distribui segundo sua vontade. Na Idade Mdia, possuam
outra funo. Era um documento escrito quando os sinais naturais da morte eram
percebidos pelo indivduo e este decidia escrever suas memrias, em que a concepo
apaziguada da morte (ARIS, 2012, p.58) ficava evidente. Os testamentos versavam
tambm sobre a forma com que o moribundo gostaria que fossem celebradas suas

4
Eu no os provei a voc nos minutos que se seguiram? Eu no garanti, meu amor, pois eu adorei o seu
corpo nos meus lbios cegos, eu o venerei como jamais nenhum outro devoto se prostrou diante de uma
relquia.
5
Adeus, Madeleine, perdoe-me de deixar-lhe assim na incerteza, mas sobretudo de ter-lhe amado mal,
voc, a nica pessoa a quem eu amei verdadeiramente. Voc pode constatar que eu sou inapto a viver.

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exquias. Comumente, davam-se ordens e recomendaes aos vivos sobre seus

comportamentos no futuro aps a partida do locutor. Com a introduo da ideia de Juzo
Final entre os cristos na segunda metade da Idade Mdia, tem-se que:
[] deu-se uma aproximao de trs categorias de representaes
mentais: as da morte, as do reconhecimento por parte de cada
indivduo de sua biografia e as do apego apaixonado s coisas e aos
seres possudos durante a vida. A morte tronou-se o lugar em que o
homem melhor tomou conscincia de si mesmo. (ibidem, p.61)
Ao escrever sua nota de suicdio, Lallement estabelece um dilogo entre seu
dirio/epstola e os testamentos medievais descritos por Aris. O personagem rememora
sua vida, como j dito, cercada pelo fracasso e abandono, gerando o desfecho macabro
da histria. A tristeza est presente desde a infncia, tal qual a madeleine para Proust,
o elemento que desencadeia a memria e possibilita a escrita de uma breve biografia de
um ser medocre, a quem a vida deu somente uma paixo e razo de viver: Madeleine
Vallin. A impossibilidade da concretizao final desta relao na mentalidade de Rene
Lallemant, isto , a posse efetiva da vida e desejos de sua amante o levam a reconhecer
a morte. o seu sinal natural de que a vida acabara. No entanto, era preciso
documentar, confessar que ele teve um ato nobre em sua vida, amar desesperadamente
algum. Nas palavras de Barthes:
Escrever para lembrar? No me lembrar, mas para combater a
dilacerao do esquecimento na medida em que ele se anuncia como
absoluto. O em breve - nenhum rastro, em parte alguma, em
ningum.
Necessidade do Monumento.
Memento illan vixisse. (BARTHES, 2011, p.110)
A escrita e a lembrana se entrelaam como forma de manter sua memria, ou a
memria deste amor, viva de alguma maneira, em algum lugar. Lallemant se suicida se
jogando de uma ponte. Eis talvez o porqu de mesmo aps tudo estar terminado, ser
preciso escrever. Escrever para lembrar, manter vivo, estabelecer uma ponte com
algum.

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REFERNCIAS

AQUIN, Hubert. L'Invention de la mort. 1 Ed. Montral: Bibliothque Qubcoise,

2001.

ARIS, Philippe. Histria da Morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

BARTHES, Roland. Dirio de Luto. So Paulo: Martins Fontes, 2011.

BEAUDRY, Jacques. Hubert Aquin: la course de la vie. Montral: ditions Hurtubuse,

2006.

DUBOIS, Richard. Hubert Aquin Blues. Montral: Boral, 2003.

DURKHEIM, mile. O Suicdio. So Paulo: Martin Claret, 2003. 445 p. (Srie Ouro).

ROCHA, Vanessa Massoni da. Notas e apontamentos sobre o protocolo de leitura do

epistolar. Revista de Letras. So Paulo: v.51, n.1, p.109-125, 2011 Disponvel em:
<http://seer.fclar.unesp.br/letras/article/view/5108>. Acesso em: 19 set. 2015.

ROSA NETO, Arnaldo. Eu no falo fluentemente nenhuma lngua. Alea. Rio de

Janeiro: vol.8, no.2, 2006. Disponvel em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=s1517-
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SORON, Anthony. Hubert Aquin ou La Revolte Impossible. Montral: Harmattan, 2001.

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