Anais IBDFAM 2015

Rua Tenente Brito Melo, 1.
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Diretoria Executiva - Presidente: Rodrigo da Cunha Pereira (MG); Vice-Presidente: Maria Berenice Dias (RS); Primeiro-
Secretrio: Rolf Madaleno (RS); Segundo-Secretrio: Rodrigo Azevedo Toscano de Brito (PB); Primeiro-Tesoureiro:
Antnio Marcos Nohmi (MG); Segundo-Tesoureiro: Jose Roberto Moreira Filho (MG); Diretor do Conselho Consultivo:
Jose Fernando Simo (SP); Diretor de Relaes Internacionais: Paulo Malta Lins e Silva (RJ); 1 Vice: Cssio Sabbagh
Namur (SP), 2 Vice: Adriana Antunes Maciel Aranha Hapner (PR); Secretria: Marianna de Almeida Chaves Pereira
Lima (PB); Diretor do Conselho Consultivo: Jos Fernando Simo (SP); Comisso de Relaes Interdisciplinares: Giselle
Cmara Groeninga (SP).
Conselho de Administrao - Diretor Norte: Zeno Veloso (PA); Diretor Nordeste: Paulo Luiz Netto Lbo (AL); Diretora
Centro-Oeste: Eliene Ferreira Bastos (DF); Diretora Sul: Ana Carla Harmatiuk Matos (PR); Diretora Sudeste: Giselda
Maria Fernandes Novaes Hironaka (SP);
Comisses - Cientfica: Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (SP); Vice: Joo Batista de Oliveira Cndido (MG);
Direito das Sucesses: Zeno Veloso (PA); 1 vice: Tatiana de Almeida Rego Saboya (RJ); 2 Vice: Flavio Murilo Tartuce
Silva (SP); Mediao: Suzana Borges Viegas de Lima (DF); Vice: Ana Gerbase (RJ); Infncia e Juventude: Melissa Telles
Barufi (RS); Vice: Ktia Regina Ferreira Lobo Andrade Maciel (RJ); Idoso: Tnia da Silva Pereira (RJ); Jurisprudncia:
Viviane Girardi (SP); Assuntos Legislativos: Mrio Luiz Delgado Regis (SP); 1 Vice: rika de Barros Lima (PE); 2 Vice:
Ricardo Lucas Caldern (PR); Gnero e Violncia Domstica: Adlia Moreira Pessoa (SE); Vice: Ana Florinda (AL);
Notrios e Registradores: Priscila de Castro Teixeira Pinto Lopes Agapito (SP); Vice: Karin Regina Rick Rosa (RS);
Estudos Constitucionais da Famlia: Gustavo Jos Mendes Tepedino (RJ); Vice: Ana Luiza Maia Nevares; Ensino Jurdico
de Famlia: Waldyr Grisard Filho (PR); 1 vice: Fabiola Albuquerque Lbo (PE); 2 Vice: Marcos Alves da Silva (PR); Relaes
Acadmicas: Marcelo Luiz Francisco Brger (PR); 1 Vice: Ulisses Lacerda Moraes (MT); 2 Vice: Luiz Geraldo do Carmo
(PR); Direito Homoafetivo: Patrcia Cristina Vasques de Souza Gorisch (SP); Vice: Vladimir Fernandes Mendona Costa
(SP); Adoo: Silvana do Monte Moreira (RJ); Advogados de Famlia: Marcelo Truzzi Otero (SP); Vice: Aldo de Medeiros
Lima Filho (RN); 2 Vice: Daniel Blikstein (SP); Magistrados de Famlia: Jones Figueiredo Alves (PE); Vice: Andra Maciel
Pach (RJ); Promotores de Famlia: Cristiano Chaves de Farias (BA); Defensores Pblicos da Famlia: Karinne Matos
(CE); Direito Previdencirio: Melissa Folmann (PR); Direito de Famlia e Arte: Ana Maria Gonalves Louzada (DF); Vice:
Fernanda Leo Barreto (BA); Comisso da Pessoa com Deficincia: Cludia Grabois Dischon (RJ); Vice: Katya Maria de
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Diretorias Estaduais - REGIO NORTE: ACRE - Presidente: Eronilo Maia Chaves; AMAP - Presidente: Nicolau
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Sales Pinheiro; RONDNIA -Presidente: Raduan Miguel Filho; RORAIMA - Presidente: Denise Abreu Cavalcanti (RR);
TOCANTINS - Alessandra Aparecida Muniz; REGIO NORDESTE: ALAGOAS - Presidente: Ana Florinda Mendona da
Silva Dantas; BAHIA - Presidente: Alberto Raimundo Gomes dos Santos; CEAR - Presidente: Angela Maria Sobreira
Dantas Tavares; MARANHO - Presidente: Bruna Barbieri Waquim; PARABA - Presidente: Dimitre Braga Soares de
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Louzada; GOIS - Presidente: Maria Luiza Pvoa Cruz ; MATO GROSSO - Presidente: Angela Regina Gama da Silveira
Gutierres Gimenez; MATO GROSSO DO SUL - Presidente: Paula Guitti Leite; REGIO SUDESTE: ESPRITO SANTO
- Presidente: Thiago Felipe Vargas Simes; MINAS GERAIS - Presidente: Silvio Augusto Tarabal Coutinho; RIO DE
JANEIRO- Presidente: Luiz Cludio de Lima Guimares Coelho; SO PAULO - Presidente: Srgio Marques da Cruz
Filho; REGIO SUL: PARAN - Presidente: Adriana Antunes Maciel Aranha Hapner; RIO GRANDE DO SUL - Presidente:
Conrado Paulino da Rosa; SANTA CATARINA - Presidente: Mara Rbia Cattoni Poffo.
Congresso brasileiro de direito de Famlia (10. : 2015 : Belo
C749 Horizonte, MG)
Famlias nossas de cada dia. Coordenado por Rodrigo da Cunha

Pereira.- Belo Horizonte : IBDFAM, 2015.
630 p.
ISSN: 2359-3695
1. Direito de famlia. I. Pereira, Rodrigo da Cunha. II.Ttulo.
CDU 347.61
Catalogao na publicao: Maria Idalina Gonalves Neves CRB6: 1269

Arte da capa: Srgio Lima
Layout da capa e Diagramao: Bruno Santos
ISSN 2359-3695
Editor
Ronner Botelho Soares
Reviso
Cybele Maria de Souza
Assessoria de Comunicao
Simone Castro
Thas Pontes
Maran Oliveira
Gerente Comercial e de Relacionamento

Maria Jos Marques
Superintendente
Maurcio Augusto dos Santos
2016
APRESENTAO
Viver e conviver traduzem, em um pas tomado por desafios e em

uma sociedade complexa, desigual e polissmica, demandas sobre os
limites e as possibilidades da instncia jurdica ofertar respostas, pro-
por caminhos e acolher a realizao de um direito fundamental: TER E
SER FAMLIA.
A fotografia captada pelo direitos das famlias no Brasil contem-
porneo apresenta, assim, luzes e sombras na legislao, na jurispru-
dncia e na literatura jurdica.
tempo e hora de fazer um balano de mentes e coraes com-
prometidos com a defesa de um olhar ldico e sensvel sobre o que
somos e o que sonhamos ser de modo aberto, plural e justo. Tal como o
po vital que deve nutrir todos os dias, as famlias se alimentam de fun-
es e paradoxos que reclamam debates propositivos de interrogao
e de ideias aptas a desenrolar o conhecimento e renovar experincias.
Sejam bem-vindos ao Congresso das Famlias IBDFAM, que
se renem para celebrar a vida e propor construes de pontes em
direo ao futuro, recolhendo o legado pretrito e transformando o
presente em abrigo terico e prtico do afeto, da tolerncia, da liber-
dade, da autonomia, da responsabilidade e de todas as estruturas que
sonham e vivem como famlias. Sintam-se em casa!
Luiz Edson Fachin

Conselho Cientfico
SUMRIO
DOUTRINAS
1 Dilemas do afeto
Gustavo Tepedino.................................................................... p. 11
2 A divisibilidade dos frutos no regime de bens do casamento e

na unio estvel: o que so frutos?
Ana Florinda Dantas................................................................p. 29
3 A sociedade simples e o regime de bens no casamento e na

unio estvel
Rolf Madaleno............................................................................p. 41
4 A tcnica da ponderao e suas aplicaes ao direito de famlia

e das sucesses
Flvio Tartuce...........................................................................p. 69
5 A violncia patrimonial contra a mulher nos litgios de famlia

Mrio Luiz Delgado.................................................................p. 99
6 As diferenas sucessrias entre unio estvel e casamento

so constitucionais? A posio da doutrina e dos tribunais
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka..................... p. 119
7 As inovaes do Cdigo de Processo Civil de 2015 no direito

das sucesses
Ana Luiza Maia Nevares........................................................ p. 141
8 As novas formas de filiao advindas das tcnicas de

inseminao artificial homloga post mortem e as suas
consequncias no direito de famlia e das sucesses
Jos Roberto Moreira Filho................................................. p. 185
9 Aspectos preventivos e polticas pblicas no enfrentamento

violncia contra as mulheres
Adlia Moreira Pessoa........................................................... p. 211
10Ao de prestao de contas da administrao dos bens do

casal e alimentos
Thiago Felipe Vargas Simes.............................................. p. 231
11Direito de famlia e religies: coliso de princpios jurdicos e
princpios religiosos
Pe. Alex Barbosa de Brito.....................................................p. 239
12Encaminhamento consensual adequado das aes de famlia

no regime do novo Cdigo de Processo Civil
Fernanda Tartuce.................................................................. p. 287
13Divrcio e os modelos de separao entre o Cdigo Civil e o

Cdigo de Processo Civil de 2015
Paulo Lbo............................................................................... p. 297
14Famlias ectogenticas os limites jurdicos para utilizao de

tcnicas de reproduo assistida
Marianna Chaves.................................................................. p. 309
15Indenizao por inadimplemento alimentar

Dimas Messias de Carvalho................................................ p. 341
16O calvrio da adoo

Maria Berenice Dias.............................................................. p. 357
17Como as percias psicolgicas podem ajudar os processos

judiciais. O Cdigo de Processo Civil 2015
Evani Zambon Marques da Silva........................................p. 367
18Famlias pluralizadas. Nova doutrina e experincia judiciria

Jones Figueirdo Alves.........................................................p. 383
19Redesignao de sexo e a desnecessidade de judicializao

para retificao do registro de nascimento. Eliminao de
rituais de passagens na busca de implementao imediata de
direitos fundamentais dos transexuais
Newton Teixeira Carvalho.................................................. p. 393
20Das disposies testamentrias

Zeno Veloso............................................................................ p. 477
21A tomada de deciso apoiada primeiras linhas sobre um novo

modelo jurdico promocional da pessoa com deficincia
Nelson Rosenvald................................................................. p. 505
22Os tratados internacionais de proteo s crianas e aos

adolescentes
Paulo Lins e Silva................................................................... p. 515
23Mudana de domiclio e foro de discusso da guarda: sequestro
interparental?
Ana Carla Harmatiuk Matos................................................p. 525
24A funo social do profissional de famlia: desafios,

responsabilidades e novas perspectivas
Diana Poppe............................................................................ p. 541
25Alimentos compensatrios: compensao econmica e

equilbrio patrimonial
Luciano L. Figueiredo...........................................................p. 553
26Direito e arte a mulher na obra de Chico Buarque

Ana Louzada............................................................................p. 571
27A ideologia por detrs da mediao

guida Arruda Barbosa........................................................p. 585
28Responsabilidade civil pelo fim da conjugalidade

Marcelo Truzzi Otero...........................................................p. 595
29Direito das famlias e religies: liberdade, f e a primazia do

afeto
Andra Pach.......................................................................... p. 619
DILEMAS DO AFETO
Gustavo Tepedino
Professor Titular e ex-Diretor da Faculdade de Direito da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ.
Sumrio: 1. Apresentao do problema: os sentimen-

tos humanos e a autogesto da liberdade. 2. O Direito de
Famlia na legalidade constitucional. 3. A categoria jur-
dica do afeto e sua repercusso na famlia. 4. Pluralidade
e novos modelos de famlia. 5. Direito a ter direitos: nova
perspectiva da cidadania e autonomia responsvel. 6. Os
cinco dilemas prprios da gesto da liberdade nas relaes
afetivas: (i) a autonomia (auto nomos) autossuficiente? (ii)
preparam-se os filhos para a vida ou protege-os da vida?
(iii) a gerao credora: direitos sem responsabilidade? (iv)
a busca do par perfeito: enlace ou liberdade? (v) h limites
para os modelos de famlia? legtima a judicializao da
moral? 7. Referncias.
1APRESENTAO DO PROBLEMA: OS SENTIMENTOS HUMANOS E A

AUTOGESTO DA LIBERDADE
A prioridade alcanada, no mbito do Direito de Famlia, pelo
valor substancial dos sentimentos em detrimento das formalidades dos
vnculos, constitui conquista extraordinria, que enaltece a impor-
tncia do afeto, tornando muito mais humanas e pulsantes as relaes
jurdicas de famlia.
A conhecida expresso da dramaturgia, a vida como ela , parece
encontrar-se felizmente apreendida pelo Direito, aps longo e resis-
tente percurso. As instituies e as solenidades cedem lugar aos capri-
chosos desgnios da realidade, mais criativos que a mais ousada das
narrativas ficcionais, a fotografarem as relaes de famlia tais como
so. Ao mesmo tempo, contudo outra face da mesma moeda , o
florescer da sensibilidade do Direito para com o afeto revela inevita-
velmente a instabilidade dos sentimentos, como prprio do humano;
agua a fragilidade dos relacionamentos; e torna transitrias, volveis
e contraditrias as certezas jurdicas acumuladas.
Almeja-se o sentimento verdadeiro e sincero nas relaes afe-
tivas, o qual traz em si vulnerabilidade e insegurana, na medida em
que se abre mo do esteio de normas heteronmicas (quer ditadas
Anais do X Congresso Brasileiro de Direito de Famlia - FAMLIAS NOSSAS DE CADA DIA 11

pelo Estado, pela Igreja, por padres morais da comunidade). A auto-
gesto da liberdade, permanentemente posta prova, e a substituio
do penhor institucional, formal e externo, pela segurana forjada pela
autonomia privada, a partir das prprias decises, mutantes e frgeis,
eis o maior desafio da mulher e do homem na comunidade familiar
contempornea.
Observa Bauman, ao propsito, que nesse
mundo de furiosa individualizao, os relacionamentos so bn-

os ambguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e no h como
determinar quando um se transforma no outro [...]. No lquido cen-
rio da vida moderna, os relacionamentos talvez sejam os repre-
sentantes mais comuns, agudos, perturbadores e profundamente
sentidos da ambivalncia.1
2O DIREITO DE FAMLIA NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL
Com efeito, a sociedade contempornea assiste evoluo sem

precedentes no Direito de Famlia, at h pouco considerado ramo
menor de Direito Civil, ou especialidade de segunda classe. Mostra-se
inegvel a passagem da famlia instituio para a famlia como ncleo
de desenvolvimento da pessoa humana.
O novo conceito de unidade familiar (expresso chave para
a compreenso da evoluo do Direito de Famlia) introduzido pela
Constituio assinala alterao paradigmtica da unidade formal em
torno do matrimnio unidade instrumental realizao dos compo-
nentes do ncleo familiar.
Nesse particular, o Direito Civil ofereceu extraordinria contri-
buio para a teoria da interpretao, superando o formalismo posi-
tivista que por longo tempo reproduziu dogmtica pretensamente
neutra e contida no sistema codificado, em busca de pureza conceitual
que, a rigor, se mostrava avessa s alteraes sociais, insensvel aos
modelos diversos do paradigma do homem burgus: marido, contra-
tante, proprietrio e testador. Os diversos mtodos de interpretao
assim concebidos eram excludentes e ideologicamente comprometidos
com uma nica viso de mundo, eurocntrica e patrimonialista.
Intensas e robustas se apresentaram as resistncias contra o que
seria a contaminao do Direito Civil pelas normas de ordem pblica
constitucional, notadamente do Direito de Famlia, reduto da intimi-
dade da vida privada, com sua tradio milenar. Ironicamente, con-
tudo, em nome da liberdade, que tanto prezamos, e dos espaos de no
BAUMAN, Zygmunt. Amor lquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 8. (Grifo nosso).
1
12 Anais do X Congresso Brasileiro de Direito de Famlia - FAMLIAS NOSSAS DE CADA DIA

ingerncia na vida privada, permitiu-se ao longo do tempo o avilta-
mento da personalidade da mulher e dos filhos em favor do predomnio
masculino, autoritrio, sexista e misgino, que estabeleceu em torno
do modelo monogmico do casamento verdadeira poligamia masculina
velada vis- -vis da sexualidade quase angelical feminina, ameaada
pela chibata do desprezo social diante do menor desvio de conduta em
face do paradigma dominante.
A constatao do fracasso da bandeira da no ingerncia nos
espaos de liberdade, sem uma ordem pblica que garanta a igual-
dade do viver livremente s relaes existenciais, certamente contri-
buiu para a admisso da fora normativa das normas constitucionais
nas relaes privadas. Entretanto, por impressionante relutncia cul-
tural, permanece ainda viva a imagem do texto constitucional como
elemento adjetivo, que corrobora as interpretaes progressistas, que
se mantm como limite ao legislador ordinrio. O perigo dessa atitude
aparentemente venturosa que, mngua de slida construo argu-
mentativa que insira a axiologia constitucional em cada norma a ser
aplicada, acaba-se por oferecer aos magistrados o poder de valorao
subjetiva dos conceitos, transformando o debate jurdico em ringue
ideolgico no qual, infelizmente, nem sempre a maioria da magistra-
tura se mostra alinhada com a famlia democrtica, reduto de liber-
dade na igualdade e na solidariedade constitucionais.
Segue-se da a imprescindibilidade de se andar alm da admis-
so da fora normativa da Constituio da Repblica e do princpio da
dignidade humana como balizadores da ordem pblica interna, na qual
se inserem as escolhas existenciais, os espaos de liberdade privada
e a famlia em particular. O Direito de Famlia, tendo logrado apar-
tar-se do Direito Civil patriarcal e institucional, precisa urgentemente
ser entendido na legalidade constitucional, no mbito da proteo da
pessoa humana. na axiologia constitucional que a pessoa humana h
de ser protegida, amparada pelos princpios da solidariedade social, da
igualdade formal e substancial e da dignidade humana, que asseguram
a unidade do sistema.
Nessa direo, compreende-se o temor de que a ordem pblica
constitucional pudesse expropriar das pessoas as possibilidades de
desenvolvimento pleno de suas liberdades existenciais. Stefano Rodot
percebeu tal desconfiana, atribuindo-a, contudo, a certo mal-enten-
dido quanto ao papel atual da ordem jurdica. Cuida-se de compre-
enso riflesso figlio di un fraintendimento , que circunscreve a
experincia jurdica a puro vincolo, deixando-se de perceb-la como
consolidao dos espaos de liberdade e das oportunidades para a
promoo da cidadania.2
RODOT, Stefano. Il diritto di avere diritti. Roma: Laterza, 2012, p. 6.

2

A singularidade do Direito de Famlia encontra-se justamente na
circunstncia de lidar com a pessoa humana em seu ambiente de pri-
vacidade, sendo a axiologia constitucional aporte indispensvel para
se construrem alicerces seguros de tutela da autonomia existencial.
As liberdades somente tm legitimidade em ambiente de igualdade, de
tal modo que a ausncia de ingerncia estatal deixe de ser entendida
como espao de no direito; j que essa desejada ausncia de regula-
mentao representa, bem ao contrrio, garantia constitucional para a
promoo da pessoa.
Atribui-se, assim, responsabilidade na liberdade e na alteridade
prpria das relaes afetivas. Expresses como comunho plena de
vida com base na igualdade de direitos e deveres, de que trata o art.
1.511 do Cdigo Civil, adquirem extraordinrio significado como ins-
trumento da autonomia responsvel, instigando recproca libertao
construda no cotidiano das famlias, isto , nas nossas famlias de cada
dia.
3A CATEGORIA JURDICA DO AFETO E SUA REPERCUSSO NA FAMLIA
Nesse cenrio, h de se refletir sobre a conquista representada

pela prevalncia no direito da realidade ftica da famlia como comu-
nidade de pessoas de carne e osso sobre a famlia no modelo formal e
institucional de reproduo sexual e acumulao econmica em torno
da autoridade patriarcal. O afeto torna-se, nessa medida, elemento
definidor de situaes jurdicas, ampliando-se a relao de filiao pela
posse de estado de filho e flexibilizando-se, com benfazeja elastici-
dade, os requisitos para a constituio da famlia.
O Direito de Famlia passa a atribuir particular importncia (no
afetividade como declarao subjetiva ou obscura reserva mental
de sentimentos no demonstrados, mas) percepo do sentimento
do afeto na vida familiar e na alteridade estabelecida no seio da vida
comunitria. Realidade e percepo da realidade se tornam para o
Direito de Famlia indispensveis para a superao de paradigmas for-
malistas e patrimonialistas.
Entretanto, h de se cuidar, com zelo de ourives, para que no
se banalizem os sentimentos, reduzindo-os percepo valorativa de
cada magistrado ou, pior, s pretenses egostas e patrimonialistas de
protagonistas de conflitos de interesses. E o melhor antdoto para tais
riscos mostra-se o balizamento do merecimento de tutela das relaes
afetivas pelos valores normativos constitucionais (democracia, igual-
dade, solidariedade, dignidade) que permeiam o Estatuto da Criana e
do Adolescente, o Cdigo Civil e toda a legislao infraconstitucional.

No cenrio da vida como ela , o amor por vezes falta, o egosmo
aflora e os deveres estabelecidos nas relaes afetivas devem ser inte-
gralmente preservados. A alteridade tem consequncias para o consti-
tuinte. como se a legalidade constitucional se valesse da percepo
do afeto para imediatamente encharc-la, plasm-la e impregn-la com
os valores constitucionais, vinculando as relaes jurdicas com deve-
res de solidariedade e igualdade.Torna-se indispensvel, portanto, que
uma vez introduzida a realidade da vida, do amor e do afeto na experi-
ncia normativa, no se releguem as relaes de famlia, filiais ou con-
jugais, pura espontaneidade, desprovida de valores, deixando-se em
segundo plano os deveres constitucionais a que corresponde o amor
responsvel. Autonomia total para os arranjos familiares, sendo a res-
ponsabilidade pelo outro e por tudo aquilo que se cativa imprescind-
veis na legalidade constitucional.3-4
3
Tem-se reconhecido no afeto valor jurdico, levado em conta pelo direito para certos efeitos.
A filiao socioafetiva produtora de efeitos pela aparncia decorrente da socioafetividade,
no pelo amor nela contida: admite-se, por exemplo, a posse de estado (dominus, tractus,
fama) independentemente de aferio de sentimentos individuais. Mesmo porque a ausncia
de amor do pai para com o filho ou pela mulher no reduziria os direitos e deveres prprios da
relao de famlia, tampouco servindo de suporte para a invalidao de negcios ou atos jur-
dicos praticados no mbito da convivncia socioafetiva. No se pode, evidentemente, exigir o
amor. De fato, costuma-se atribuir dois sentidos ao afeto. O primeiro significado seria subje-
tivo (correspondncia afetiva na vida sentimental) e o segundo objetivo (que, a rigor, seria a
percepo do zelo e cuidado na vida relacional). O significado subjetivo (vnculo sentimen-
tal)mostra-se irrelevante ao Direito, sendo verdadeira a produo de certos efeitos jurdicos
decorrentes da percepo do afeto (espcie de contemplatio affectio). A essa ltima acepo
(ou percepo da realidade afetiva) podem-se associar deveres, no decorrentes do senti-
mento, mas da lei, ou do ofcio de direito privado (autoridade parental) imposto aos genitores
ou responsveis (os modelos prescritivos so a Constituio e as leis infraconstitucionais, no
o sentimento). Ao propsito, cf. Ana Carolina Brochado Teixeira e Renata de Lima Rodrigues
(A multiparentalidade como nova estrutura de parentesco na contemporaneidade. Revista
Brasileira de Direito Civil, v. 4, p. 18, abr./jun. 2015. Disponvel em: <https://www.ibdcivil.org.
br/image/data/revista/volume4/02---rbdcivil-volume-4---a-multiparentalidade-como-
-nova-figura-de-parentesco-na-contemporaneidade.pdf>. Acesso em: 29 dez. 2015): O prin-
cpio da afetividade no comanda o dever de afeto, porquanto se trata de conduta de foro
ntimo, incoercvel pelo Direito. O grande desafio que, por mais que se queira negar, o afeto
consiste em um elemento anmico ou psicolgico. E, sob um certo aspecto, que urge ser pon-
tuado, um fator metajurdico que no pode ser alcanado pelas normas das cincias jurdi-
cas, mas apenas pela normatividade da Moral [...] o afeto s se torna juridicamente relevante
quando externado pelos membros das entidades familiares atravs de condutas objetivas que
marcam a convivncia familiar, e, por isso, condicionam comportamentos e expectativas rec-
procas e, consequentemente, o desenvolvimento da personalidade dos integrantes da
famlia.
4
A ordem jurdica considera trs tipos de efeitos diversos para a percepo do afeto (como
valor): (i) posse do estado de filho (desde que presentes os requisitos do nomem, tractus e
fama); (ii) caracterizao do animus de constituir comunidade familiar (igualmente presentes
os mesmos requisitos: nomem, tractus e fama). V. sobre tais requisitos, LBO, Paulo Luiz
Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para alm do numerus clausus. In: PEREIRA,
Rodrigo da Cunha. Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Famlia. Belo Horizonte: Del
Rey, IBDFAM, 2002, p. 97); (iii) exigibilidade de deveres da autoridade parental. Nesse ltimo
caso, no so o afeto ou a aparncia de amor a relevar, mas o dever de assistncia decorrente
do mnus de direito privado prprio da autoridade parental, que deve prevalecer tenha-se ou
no amor, ou carinho ou afeto.

4PLURALIDADE E NOVOS MODELOS DE FAMLIA
Nas ltimas dcadas, a jurisprudncia brasileira, de forma cora-

josa, passou a admitir, em nome da igualdade e da liberdade, novas
entidades familiares, que permitiram a sua afirmao pelo Superior
Tribunal de Justia e pelo Supremo Tribunal Federal, em festejadas
e histricas decises. Nesse percurso evolutivo, ressalte-se o acr-
do paradigmtico do Superior Tribunal de Justia em que se passou
a considerar as pretenses oriundas de unio de pessoas do mesmo
sexo como pedidos juridicamente possveis5 e, em seguida, a conhecida
deciso do Supremo Tribunal Federal que admitiu a unio homoafetiva.6
Na mesma esteira, tm-se admitido efeitos jurdicos de famlias
simultneas, e o eloquente crescimento da contratualizao de ajustes
que procuram, irnica e paradoxalmente, resguardar os conviventes,
mediante minuciosa regulamentao, no mbito de relaes constitu-
das de forma absolutamente livre e espontnea. o caso de contra-
tos de namoro, em que se celebra escritura, com eficcia declaratria
evidentemente discutvel, para se negar a inteno de constituio de
famlia;7 ou, por outro lado, a escritura pblica lavrada recentemente
5
STJ, REsp n. 820.475/RJ, 4 T., Rel. p/ Acrdo Min. Luis Felipe Salomo, julg. 2.9.2008.
6
STF, ADI 4277, Pleno, Rel. Min. Ayres Britto, julg. 5.5.2011; STF, ADPF 132, Pleno, Rel. Min. Ayres
Britto, julg. 5.5.2011.
7
O rompimento de namoro tem suscitado, com inquietante frequncia, pretenses de comu-
nho de aquestos. A ttulo exemplificativo, o informativo do STJ d conta de deciso em
segredo de justia, segundo a qual a convivncia com expectativa de formar famlia no futuro
no configura unio estvel. Para que um relacionamento amoroso se caracterize como unio
estvel, no basta ser duradouro e pblico, ainda que o casal venha, circunstancialmente, a
habitar a mesma residncia; fundamental, para essa caracterizao, que haja um elemento
subjetivo: a vontade ou o compromisso pessoal e mtuo de constituir famlia. Seguindo esse
entendimento exposto pelo relator, ministro Marco Aurlio Bellizze, a Terceira Turma do
Superior Tribunal de Justia (STJ) deu provimento ao recurso de um homem que sustentava
ter sido namoro e no unio estvel o perodo de mais de dois anos de relacionamento que
antecedeu o casamento entre ele e a ex-mulher. Ela reivindicava a metade de apartamento
adquirido pelo ento namorado antes de se casarem. Depois de perder em primeira instncia,
o ex-marido interps recurso de apelao, que foi acolhido por maioria no Tribunal de Justia
do Rio de Janeiro. Como o julgamento da apelao no foi unnime, a ex-mulher interps
embargos infringentes e obteve direito a um tero do apartamento, em vez da metade, como
queria. Inconformado, o homem recorreu ao STJ. Quando namoravam, ele aceitou oferta de
trabalho e mudou-se para o exterior. Meses depois, em janeiro de 2004, tendo concludo
curso superior e desejando estudar lngua inglesa, a namorada o seguiu e foi morar com ele
no mesmo imvel. Ela acabou permanecendo mais tempo do que o previsto no exterior, pois
tambm cursou mestrado na sua rea de atuao profissional. Em outubro de 2004, ainda no
exterior onde permaneceram at agosto do ano seguinte , ficaram noivos. Ele comprou,
com dinheiro prprio, um apartamento no Brasil, para servir de residncia a ambos. Em
setembro de 2006, casaram-se em comunho parcial regime em que somente h partilha
dos bens adquiridos por esforo comum e durante o matrimnio. Dois anos mais tarde, veio o
divrcio. A mulher, alegando que o perodo entre sua ida para o exterior, em janeiro de 2004, e
o casamento, em setembro de 2006, foi de unio estvel, e no apenas de namoro, requereu
na Justia, alm do reconhecimento daquela unio, a diviso do apartamento adquirido pelo
ento namorado, tendo sado vitoriosa em primeira instncia. Queria, ainda, que o ru
pagasse aluguel pelo uso exclusivo do imvel desde o divrcio o que foi julgado

no 15 Ofcio de Notas do Rio de Janeiro para contratualizar a unio
homoafetiva entre trs mulheres naquilo que se tem convencionado
chamar de unio poliafetiva.8
A ruptura das unies livres mostra-se frequentemente tormen-
tosa, como no caso de famlias simultneas, em que a difcil partilha
patrimonial demonstra o aspecto egosta porque humano de toda e
qualquer relao afetiva; e a necessidade de se contrapor a responsabi-
lidade liberdade de constituio de arranjos familiares.9
Em ltima anlise, a liberdade crescente, admitida pelo Judici-
rio, para a constituio de modalidades de convivncia nem sempre
encontra os instrumentos jurdicos aptos sua normatizao. Somente
o tempo saber dar conta dessa acomodao da autonomia privada
frentica realidade social, em constante transformao, sendo certo
que a validade e eficcia dos instrumentos contratuais, submetidas a
difuso controle jurisdicional, depender do merecimento de tutela
improcedente. Ao contrrio da Corte estadual, o ministro Bellizze concluiu que no houve

unio estvel, mas sim namoro qualificado, em que, em virtude do estreitamento do relacio-
namento, projetaram, para o futuro e no para o presente , o propsito de constituir enti-
dade familiar. De acordo com o ministro, a formao do ncleo familiar em que h o com-
partilhamento de vidas, com irrestrito apoio moral e material tem de ser concretizada, no
somente planejada, para que se configure a unio estvel. Tampouco a coabitao evidencia
a constituio de unio estvel, visto que as partes, por contingncias e interesses particula-
res (ele, a trabalho; ela, por estudo), foram, em momentos distintos, para o exterior e, como
namorados que eram, no hesitaram em residir conjuntamente, afirmou o ministro no voto.
Por fim, o relator considerou que, caso os dois entendessem ter vivido em unio estvel
naquele perodo anterior, teriam escolhido outro regime de casamento, que abarcasse o
nico imvel de que o casal dispunha, ou mesmo convertido em casamento a alegada unio
estvel. (O nmero deste processo no divulgado em razo de segredo judicial).
8
Da escritura, celebrada em 6 de outubro de 2015 e gentilmente cedida pela tabeli Dra. Fer-
nanda de Freitas Leito, vale destacar trs clusulas que, certamente, suscitaro polmica
quanto sua validade e eficcia: Clusula Segunda Durante o tempo de vigncia da convi-
vncia, as declarantes devero observar o dever de lealdade, de respeito e de dignidade uma
para com a outra, bem como a observncia de todos os afazeres e os cuidados exigidos para
uma slida e harmnica vida familiar em comum. [...] Clusula Quarta As conviventes rogam
aos rgos competentes, que cada uma delas goze de todos os benefcios que tenham direito
ou venham a ter perante a qualquer plano de sade, previdncia pblica ou privada, Receita
Federal, na qualidade de dependentes uma das outras. Clusula Quinta As declarantes, ora
conviventes, estabelecem para esta unio, um regime patrimonial anlogo ao regime da
comunho parcial de bens, previsto nos arts. 1.640 e seguintes, do Cdigo Civil Brasileiro
(Grifos nossos).
9
Sobre o reconhecimento de unies dplices, cf. o pungente acrdo do TJMG, Rel. Des.
Maria Elza de Campos Zettel (Ap. Cv. 1.0017.05.016882-6/003, julg. 20.11.2008), do qual vale
destacar: No caso dos autos, a apelada, alm de compartilhar o leito com o apelado, tambm
compartilhou a vida em todos os seus aspectos. Ela no concubina palavra preconceituosa
mas companheira. Por tal razo, possui direito a reclamar pelo fim da unio estvel. Enten-
der o contrrio estabelecer um retrocesso em relao a lentas e sofridas conquistas da
mulher para ser tratada como sujeito de igualdade jurdica e de igualdade social. Negar a
existncia de unio estvel, quando um dos companheiros casado, soluo fcil. Mantm-
-se ao desamparo do Direito, na clandestinidade, o que parte da sociedade prefere esconder.
Como se uma suposta invisibilidade fosse capaz de negar a existncia de um fato social que
sempre aconteceu, acontece e continuar acontecendo.

de cada uma das entidades constitudas e do contedo dos pactos
celebrados.
No exame de validade e eficcia de tais unies, h de se afastar
o paradigma do casamento, submetido a controle formal e substancial
rigoroso e, em particular, ao princpio da monogamia, que no se cons-
titui em modelo prescritivo nico.10 Em alguns casos, h coliso entre
o casamento e unio estvel, como nas famlias simultneas, em que o
Judicirio tem admitido a possibilidade de comunidades constitudas
com seriedade e estabilidade, aptas a tutelar efetivamente a personali-
dade de seus integrantes.11 Nestas hipteses, o princpio da monogamia
pode ser preterido, no caso concreto, em favor de valores da personali-
dade e do princpio da dignidade da pessoa humana.12
Tambm no campo da filiao adotiva permanece injustificvel
resistncia quanto adoo por casais ou pessoas homoafetivos, tendo
o STJ desempenhado relevante papel para que pr-conceitos fossem
superados.13
10
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Em nome da liberdade, unio estvel tem de se manter dife-
rente do casamento. Disponvel em: <http://www.conjur.com.br/2015-out-04/processo-
-familiar-liberdade-uniao-estavel-diferente-casamento>. Acesso em: 29 dez. 2015.
11
Sobre o processo de admisso progressiva de modelos de famlia na realidade social, v.
RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Famlias simultneas: da Unidade Codificada Pluralidade
Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 163: A nova ordem constitucional, ao consa-
grar a proteo da famlia na pessoa de cada um dos seus membros, rompe com a racionali-
dade dos modelos fechados, abraando a concepo plural de famlia que sempre esteve pre-
sente na sociedade, ainda que sujeita a estigmatizaes e marginalidade. A famlia na Cons-
tituio de 1988 no tem por fonte primria e exclusiva um ato formal, solene, encoberto pelo
manto exclusivo da legitimidade jurdica, mas, sim, nasce e se mantm nos acordes do leimo-
tiv do afeto.
12
V., sobre o ponto, REsp 1.185.337/RS, 3 T., Rel. Min. Joo Otvio de Noronha, julg. 17.3.2015,
em que se extrai da ementa: Concubinato de longa durao. Condenao a alimentos. Nega-
tiva de vigncia de lei federal. Caso Peculiarssimo. Preservao da famlia x Dignidade e Soli-
dariedade Humanas. Sustento da Alimentanda pelo alimentante por quatro dcadas. Manu-
teno de situao ftica preexistente. Inexistncia de risco para a famlia em razo do
decurso do tempo. Comprovado risco de deixar desassistida pessoa idosa. Incidncia dos
princpios da dignidade e solidariedade humanas [...] O acrdo recorrido, com base na exis-
tncia de circunstncias peculiarssimas ser a alimentanda septuagenria e ter, na sua
juventude, desistido de sua atividade profissional para dedicar-se ao alimentante; haver prova
inconteste da dependncia econmica; ter o alimentante, ao longo dos quarenta anos em que
perdurou o relacionamento amoroso, provido espontaneamente o sustento da alimentanda ,
determinou que o recorrente voltasse a prover o sustento da recorrida. Ao assim decidir,
amparou-se em interpretao que evitou soluo absurda e manifestamente injusta do caso
submetido deliberao jurisprudencial.
13
V., a propsito, REsp 1.540.814/PR, 3 T., Rel. Min. Ricardo Villas Bas Cueva, julg. 18.8.2015,
assim ementado: Inscrio de homoafetivo no registro para adoo de menores. Possibili-
dade. Limite de idade para ser adotado. Inexistncia de previso legal. 1. Hiptese em que
pessoa homoafetiva intenciona figurar no registro de pessoas interessadas em adoo de
menores. 2. A tese do Ministrio Pblico estadual de que o interessado homoafetivo somente
pode se inscrever para adoo de menor que tenha no mnimo 12 (doze) anos de idade, para
que possa se manifestar a respeito da pretensa adoo. 3. No h disposio no ordenamento
jurdico ptrio que estipule a idade de 12 (doze) anos para o menor ser adotado por pessoa
homoafetiva. No voto do Relator, destaque-se: [...] nesse contexto de pluralismo familiar, e

5DIREITO A TER DIREITOS: NOVA PERSPECTIVA DA CIDADANIA E
AUTONOMIA RESPONSVEL
A substituio do modelo autoritrio, institucional e hierarqui-

zado por modelo pluralista, democrtico e igualitrio da famlia coin-
cide com a crescente atribuio de poder poltico e reivindicativo a
todas as pessoas que adquirem a pretenso de serem cidados com
iguais direitos e deveres.
A democracia se torna cada vez mais complexa, em que a infor-
mao se torna o bem mais valioso. O acesso s tecnologias de comu-
nicao e a uma multido de bens de consumo gera extraordinria
sensao de poder associada a aparente ausncia de limites para o
exerccio das liberdades. O cu parece ser o limite para o sedutor fasc-
nio gerado pela sensao de poder, visualizada, com deslumbramento,
pelo homem contemporneo, pronta para reivindicar e judicializar
seus direitos. Promove-se, assim, a inquietante imagem da famlia
como ncleo hedonstico, deixando de atentar para a responsabilidade
na qual deve ser exercida a autonomia existencial.
O pluralismo pressupe liberdade para a construo do prprio
destino, atribuindo-se exclusivamente autonomia privada o plane-
jamento familiar e reprodutivo. Trata-se de espao indecifrvel pelo
legislador, ainda na argutssima percepo de Stefano Rodot,14 atribu-
do conscincia dos interessados, no j dos deputados e senadores,15
j que destinado a incidir imediatamente sobre a dignidade humana,
em sua mais recndita intimidade. Tal liberdade, contudo, promovida
pautado nos princpios daigualdade e da dignidade da pessoa humana, no se vislumbra a

possibilidade de havernenhuma distino de direitos ou exigncias legais entre as parcelas
da populao brasileirahomoafetiva (ou demais minorias) e heteroafetiva [...] caber ao pru-
dente arbtrio domagistrado, sempre sob a tica do melhor interesse do menor, observar
todas as circunstnciaspresentes no caso concreto e as percias e laudos produzidos no
decorrer do processo deadoo. Na verdade, o bom desempenho e bem-estar da criana
esto ligados ao aspectoafetivo e ao vnculo existente na unidade familiar, e no opo
sexual do adotante.
14
Quando si giunge al nucleo duro dellesistenza, alla necessit di rispettare la persona
umana in quanto tale, siamo di fronte allindecidibile. Nessuna volont esterna, fosse pure
quella coralmente espressa da tutti i cittadini o da un Parlamento unanime, pu prendere il
posto di quella dellinteressato ( Dal soggetto alla persona. Napoli: Editoriale Scientifica,
2007, p. 33).
15
Stefano Rodot, Politici, liberateci dalla vostracoscienza, o qual assinala: Si trascura cos il
cuore del problema, che consiste appunto in una valutazione preventiva intorno al se della
decisione, allopportunit stessa del legiferare quando la coscienza da rispettare non quella
di deputati e senatori, ma quella delle donne e degli uomini che devono poter governare la
loro esistenza. E che, quindi, non devono essere espropriati della libert di decisione, ma
messi in grado di esercitarla responsabilmente, allo stesso modo degli scienziati, per i quali
non si tratta di appellarsi alla fede o alla religione ma di puntare su una presa di coscienza
(cos Ignazio Marino). (La democrazia anche sobriet e rispetto. Disponvel em: <http://
daleggere.wordpress.com/2008/01/13/stefano-rodota-%C2%ABpolitici-liberateci-dalla-
-vostra-oscienza%C2%BB/> Acesso em: 21 dez. 2015)..

pelo texto constitucional, que a prev permeada e qualificada interna-
mente pela solidariedade social. A pessoa s constri sua autonomia na
interao com o outro, na troca de experincias, no processo dialtico
do seu amadurecimento e aprendizado de vida. Ao fim e ao cabo, so
nesses espaos de intersubjetividade, delimitados pelo olhar do outro,
que a pessoa edifica sua personalidade.16
O exerccio da liberdade exige, pois, responsabilidade, seja no
casamento, nas unies estveis, nas unies livres, na filiao, devendo-
-se respeitar os contratos, compromissos, convenes, ajustes expres-
sos tcitos, estabelecidos. Nas comunidades familiares, mais do que
em qualquer outra relao privada, a solidariedade limite interno e
qualificador da liberdade.
6CINCO DILEMAS PRPRIOS DA GESTO DA LIBERDADE NAS RELA-

ES AFETIVAS
Esse delicado exerccio da liberdade nas relaes afetivas, con-

tudo, no se realiza sem a angstia de ao menos cinco dilemas prprios
da sociedade contempornea:
O Primeiro Dilema: A autonomia (auto nomos) autossuficiente?
A autonomia existencial importa no afastamento de ingerncias esta-
tais e a autogesto da liberdade na vida privada. Auto nomos (na etimo-
logia, do grego antigo) o reger-se por leis prprias. Como assegurar
a liberdade propiciada pelas tecnologias de informao e pela vasta
gama de recursos de comunicao, afastando as ingerncias limitado-
ras por parte do Estado, sem descurar da tutela das vulnerabilidades,
especialmente afloradas na famlia?
Afinal, a noo de sujeito abstrato constitui-se na tcnica da
idade moderna para se assegurar a igualdade formal e a liberdade,
paulatinamente reduzidas, como se sabe, pelos poderes hegemnicos
da economia. A pessoa diferenciada da contemporaneidade, prote-
gida de acordo com suas necessidades especiais, no pode ser estig-
matizada ou reduzida em sua autonomia, ao mesmo tempo em que as
vulnerabilidades devem ser especialmente tuteladas em favor da igual-
dade substancial. O tema vem a lume com a recente Lei n. 13.146, de
6 de julho de 2015, que em boa hora afasta a incapacidade civil pelo
simples fato de se tratar de pessoa com necessidade especial. Nos ter-
mos do art. 6 da Lei n. 13.146/2015, pode, com efeito, a pessoa com
deficincia:(i)casar-se ou constituir unio estvel;(ii)exercer direitos
Ns (assim como no conseguimos viver sem comer ou sem dormir) no conseguimos

16
compreender quem somos sem o olhar e a resposta do outro (ECO, Umberto. Em que creem
os que no creem? Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 83).

sexuais e reprodutivos;(iii)exercer o planejamento familiar e repro-
dutivo;(iv) opor-se esterilizao compulsria;(v)exercer a guarda, a
tutela, a curatela e a adoo.17
Nessa vertente, embora seja altamente louvvel a preocupao
do legislador com a ampliao das possibilidades de ao por parte dos
incapazes, libertando-os do estigma da inaptido para o exerccio da
vida civil, preciso refletir sobre a melhor forma para assegurar a efe-
tiva tutela dos vulnerveis, cabendo doutrina evitar que a sua auto-
nomia se transforme em risco para a sua integridade psicofsica ou de
sua prole.18
O Segundo Dilema diz respeito educao dos filhos nesse mundo
dos excessos: excessos de informao, de velocidade, de comunicao,
de riscos, de perigos, de incertezas. Afinal, na educao de hoje, pre-
param-se os filhos para a vida ou protege-os da vida? Nos Estados Uni-
dos, alerta-se para os pais-helicpteros (helicopter parents) que, guisa
de cuidar integralmente dos filhos, acabam por produzir a infantiliza-
o de adultos. Educar no mundo de hoje tarefa impossvel?
A questo foi sentida pela Psicologia nos anos 90 do sculo
passado, que chamou a ateno para os filhos tiranos.19 Essas crian-
as superprotegidas, que escravizavam os pais h 20 anos, tornaram-se
universitrios, graduaram-se, e hoje constituem grande parte dos
17
Sobre a nova lei, v. Flvio Tartuce: Em suma, no existe mais, no sistema privado brasileiro,
pessoa absolutamente incapaz que seja maior de idade. Como consequncia, no h que se
falar mais em ao de interdio absoluta no nosso sistema civil, pois os menores no so
interditados. Todas as pessoas com deficincia, das quais tratava o comando anterior, passam
a ser, em regra, plenamente capazes para o Direito Civil, o que visa a sua plena incluso social,
em prol de sua dignidade [...] no plano familiar h uma expressa incluso plena das pessoas
com deficincia. (Alteraes do Cdigo Civil pela Lei 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com
Deficincia). Repercusses para o Direito de Famlia e confrontaes com o Novo CPC. Parte
I. Disponvel em: <http://www.migalhas.com.br/FamiliaeSucessoes/104,MI224217,21048-Alte
racoes+do+Codigo+Civil+pela+lei+131462015+Estatuto+da+Pessoa+com>. Acesso em: 29 dez.
2015). . Destacando, na nova lei, a tutela da pessoa com deficincia, Paulo Luiz Netto Lbo
destaca que em situaes excepcionais, a pessoa com deficincia mental ou intelectual
poder ser submetida curatela, no seu interesse exclusivo e no de parentes ou terceiros.
Essa curatela, ao contrrio da interdio total anterior, deve ser, de acordo com o artigo 84 do
Estatuto da Pessoa com Deficincia, proporcional s necessidades e circunstncias de cada
caso e durar o menor tempo possvel. Tem natureza, portanto, de medida protetiva e no de
interdio de exerccio de direitos (Com avanos legais, pessoas com deficincia no so
mais incapazes. Disponvel em: <http://www.conjur.com.br/2015-ago-16/processo-familiar-
-avancos-pessoas-deficiencia-mental-nao-sao-incapazes>. Acesso em: 29 dez. 2015).
18
Sublinhando a relao entre vulnerabilidade e autonomia privada, v. Paulo Luiz Netto Lbo:
A admisso da vulnerabilidade como categoria jurdica do direito contratual importa giro
copernicano, que desafia a concepo liberal da autonomia privada [...]. A vulnerabilidade do
contratante fruto do Estado social, do sculo XX, com suas promessas de realizao da jus-
tia social e reduo das desigualdades sociais (Contratante vulnervel e autonomia privada.
Disponvel em: <http://jus.com.br/artigos/25358/contratante-vulneravel-e-autonomia-pri-
vada>. Acesso em: 21 dez. 2015.
19
Por todos, ZAGURY, Tania. Sem padecer no paraso: em defesa dos pais ousobre atirania
dos filhos. Rio de Janeiro: Redord, 1991.

jovens casais nas novas formaes familiares: esto preparados para a
vida afetiva?20
Tem-se publicado que, nos Estados Unidos, para proteger os alu-
nos do que se tem chamado de microagresses (microaggressions),
que afetam o bem-estar psicolgico dos universitrios, professores so
solicitados a pr-avisar (trigger warnings) a respeito de todo e qual-
quer assunto que possa angustiar seus alunos. Em Harvard, solicitou-
-se a uma professora de Direito Criminal deixar de lecionar crimes
sexuais e alterar a terminologia que adotava para o desrespeito lei,
compelindo-a a evitar a expresso violaes da lei, que poderia invo-
car experincias traumatizantes.21 Para se ler o clssico de F. Scott Fit-
zgerald, O Grande Gatsby, por exemplo, o professor deve prevenir os
alunos sobre a misoginia e os abusos fsicos que iro encontrar.
Em relao a tal processo de infantilizao, a professora de
Stanford, Julie Lythcott-Haims (in How to Raise an Adult), sentenciou:
A educao moderna fez dos adultos de hoje seres existencialmente
impotentes. Na nsia de proteo, os pais, ao invs de prepararem os
filhos para a vida, protegem os filhos da vida.
O Terceiro Dilema, diretamente vinculado a este ltimo, como
agir, no mbito do Direito de Famlia, diante de filhos que constituem o
que se poderia designar como gerao credora, ciosa de seus direitos,
prerrogativas, faculdades, privilgios; e inteiramente despreocupada
com os deveres correspondentes: como educar, exigir, cobrar, esta-
belecer limites e deveres em face de filhos, se queremos, mais do que
tudo, faz-los felizes todo o tempo, poupando-os de toda e qualquer
frustrao? Se a todo direito deve corresponder dever e responsabi-
lidade e se o processo educativo supe ciclos de frustrao e supera-
o, h pouca esperana para o resultado de experincias pedaggicas
baseadas na busca da felicidade total para o educando.
Contardo Calligaris sentencia:
Os filhos passaram a ser vistos como a expresso da nossa prpria

felicidade, que neles se imortalizaria. Educar tornou-se impossvel.
Se nos unimos uns aos outros somente por amor e se os laos de
sangue pouco valem sem os afetos, passamos de um mundo em que
havia laos de famlia mesmo sem sentimentos para um mundo em
que os sentimentos so condio para os laos.22
20
No ponto, Joo Pereira Coutinho (Como destruir um filho. Folha de S. Paulo, 23 set. 2015)
alude matria de capa da Revista Atlantic Monthly (The coddling of the American Mind,
setembro 2015) e os autores, Greg Lukianoff e Jonathan Haidt, referem-se ao processo de
infantilizao dos estudantes universitrios norte-americanos.
21
SUK, Jeannie. The Trouble with Teaching Rape Law. The New Yorker, 15 dez. 2014.
22
CALLIGARIS, Contardo. Tirania infantil. Folha de S. Paulo, 12 fev. 2009

E ento prope a reflexo: Os pais modernos querem provar a
cada dia que merecem a condio de pai e me, postos a prova pelos
prprios filhos e no raro pelo outro parceiro ou, notadamente, pelo ex-
-parceiro. Se o amor condio dos laos, eis que a famlia ameaada
de dissoluo por nossa severidade. Castigar parece valer como uma
expulso do lar. Por isso, os pais no conseguem castigar sem culpa, e
as crianas castigadas, por exemplo, fogem de casa, entendendo que
seu lugar no mais ali. Embora a gerao credora pretenda, ao fugir
de casa, ter o sagrado direito de continuar sendo sustentada pelos pais
opressores. Repara-se o castigo com mimos, para compensar. E entre
pancadas e amigos, conclui Calligaris, fixa-se a mensagem: Castigue-
-me, que eu estou a fim de um mimo.23
O Quarto Dilema a paradoxal busca de proteo na famlia e da
famlia entre a liberdade de estar s e o anseio de segurana familiar. Na
ansiedade pela busca do par perfeito anunciado pela mdia, que divulga
freneticamente prncipes encantados e deusas perfeitas na luxria do
fotoshop, tem-se o medo de perder a liberdade conquistada. Sentimen-
tos contraditrios: ansiedade e solido (Ata-me, que quero ser livre!
se poderia exclamar com Almodvar).
Bauman entrev nossos contemporneos desesperados por
terem sido abandonados aos seus prprios sentidos e a sentimentos
facilmente descartveis, ansiando pela segurana do convvio e pela mo
amiga com que possam contar num momento de aflio, desesperados
por relacionar-se. E, no entanto, desconfiados da condio de estar
ligado, em particular de estar ligado permanentemente para no dizer
eternamente, pois temem que tal condio possa trazer encargos
e tenses para as quais eles no se encontram aptos nem dispostos
a suportar, e no podem limitar severamente a liberdade de que
23
A propsito dessa mesma superproteo, a jornalista italiana Monica Ricci critica acida-
mente o longo, e exagerado, processo de adaptao das crianas no pr-escolar, em que se
aprisionam os pais por cerca de um ms, ao lado ao lado dos filhos, independentemente de
qualquer aparente necessidade, para se evitar qualquer tipo de dissabor, ou desconforto.(I
bamboccioni nascono allasilo. Le follie dellinserimento allitaliana di Monica Ricci Sargentini.
Disponvel em: <http://27esimaora.corriere.it/articolo/i-bamboccioni-nascono-allasilole-
-follie-dellinserimento-allitaliana>). O texto sublinha: Io mi sono presentata quando ormai la
settimana di passione era quasi finita. Ero in classe con Bruno che giocava senza problemi,
dopo cinque minuti ho cominciato a friggere, la mia presenza mi sembrava totalmente inutile.
Cos ho chiesto alla maestra se me ne potevo andare visto che il bambino era chiaramente
inserito. Ma lei mi ha risposto scandalizzata di no, che la prassi era aspettare almeno una
mezzora a prescindere da come si comportava il pargolo. La domanda che vi pongo la
seguente: perch dobbiamo drammatizzare in questo modo un evento naturale e piacevole
come lingresso alla materna? Cosa devono pensare i nostri figli? Che li stiamo portando in un
luogo pericoloso dove forse non vorranno restare perch sicuramente meglio passare il
tempo con la mamma? E poi ci lamentiamo dei bamboccioni che a trentanni stanno ancora a
casa con i genitori! Ma se glielo abbiamo insegnato noi tra mille premure, paure, apprensioni
supportate dalla psicologia da salotto che tanto in voga.

necessitam para relacionar-se.24 A disponibilidade tecnolgica para ver
e ser visto na rede universal agua a ansiedade, gerando intolerncia e
impacincia nos relacionamentos que, por definio, constituem-se em
vnculos precrios, que carecem de construo permanente.
Finalmente, o Quinto Dilema: Diante da pluralidade de escolhas
existenciais e da igualdade como resultado do respeito liberdade de
definir o prprio destino, h limites para os modelos de famlia? A liber-
dade para escolhas gera a pluralidade de entidades familiares e fron-
teira tnue entre o jurdico e o no jurdico. Da alagar-se o papel do
Judicirio na definio de standards comportamentais considerados
merecedores de tutela jurdica.
Assiste-se, afinal, judicializao de padres de comportamento
moral, entre polmicas e reaes populares, ora contra o parlamento,
por editar leis imperfeitas, ora contra o Judicirio, que exerce seu
papel frequentemente contramajoritrio na defesa dos direitos fun-
damentais. Amores livres, pluralidade de ncleos familiares, famlias
simultneas, suscita-se a indagao: Onde vamos parar? O direito fixa
patamares de normalidade em oposio s nossas pr-compreenses e
pr-conceitos culturais? Provavelmente a questo supera os limites do
Direito. Provavelmente, cabe ordem jurdica assegurar a ampla liber-
dade de constituio de relaes afetivas, regulando to somente os
efeitos dos arranjos familiares, sem criminaliz-los ou acanton-los, de
acordo com padres normativos em constante evoluo.
O Judicirio valora e define padres de moralidade que escapam
previso do legislador. Hipteses da interrupo de gravidez de fetos
anenceflicos;25 da utilizao cientfica de clulas tronco26 ou da unio
de pessoas do mesmo sexo27 ilustram esse processo de judicializao
de padres morais de comportamentos. O Judicirio afere a compati-
bilidade de tais modelos a valores e princpios constitucionais, deci-
dindo o merecimento de tutela de tais condutas. Afirma-se, nesta linha
de entendimento, que a complexidade da vida moderna, potenciali-
zada pela diversidade e pelo pluralismo, levou a uma crise da lei e ao
24
BAUMAN, Zygmunt. Amor lquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 8.
25
V. STF, ADPF 54, Pleno, Rel. Min. Marco Aurlio Mello, julg. 12.4.2012, assim ementado:
Estado. Laicidade. O Brasil uma repblica laica, surgindo absolutamente neutro quanto s
religies. Consideraes. Feto anencfalo. Interrupo da gravidez. Mulher. Liberdade sexual
e reprodutiva. Sade. Dignidade. Autodeterminao. Direitos fundamentais. Crime. Inexis-
tncia. Mostra-se inconstitucional interpretao de a interrupo da gravidez de feto anen-
cfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Cdigo Penal.
26
V. STF, ADI 3510, Pleno, Rel. Min. Ayres Britto, julg. 29.5.2008.
27
V. STF, ADI 4277, Pleno, Rel. Min. Ayres Britto, julg. 5.5.2011; STF, ADPF 132, Pleno, Rel. Min.
Ayres Britto, julg. 5.5.2011; STJ, REsp 1.183.378/RS, 4 T., Rel. Min. Luis Felipe Salomo, julg.
25.10.2011; Resoluo n. 175/2013 do Conselho Nacional de Justia, na qual se afirma ser
vedada s autoridades competentes a recusa de habilitao, celebrao de casamento civil
ou de converso de unio estvel em casamento entre pessoas de mesmo sexo.

aumento da indeterminao do direito, com a transferncia de maior
competncia decisria a juzes e tribunais, que passaram a fazer valo-
raes prprias diante de situaes concretas da vida. Neste mister,
afirma o Ministro Lus Roberto Barroso, os juzes no fazem esco-
lhas livres, pois so pautados por esses valores, todos eles com lastro
constitucional.28
Nem sempre, contudo, tal processo se d sem conflitos. Na Ale-
manha, por exemplo, dois irmos biolgicos, mas no jurdicos, estra-
nhos um para o outro at o dia em que, adultos, se conhecerem,
casaram-se e tiveram filhos,29 foram duramente sancionados pela
legislao alem. Em 2010, foram obrigados a se separar, o marido,
Patrick, foi condenado a trs anos de priso e perderam a guarda dos
filhos. No havia entre o casal qualquer sentimento de fraternidade ou
de identidade familiar, que fundamenta o incesto. A opo pelo casa-
mento e constituio de comunho de vida, nessas circunstncias,
no os descaracterizava como famlia. A ausncia do vnculo fraternal
socioafetivo desnatura funcionalmente o incesto e o impedimento para
o casamento previsto no art. 1.521, IV, do Cdigo Civil.30
A despeito dessa circunstncia, a Corte Europeia de Direitos
Humanos confirmou a deciso da Suprema Corte Alem, considerando
que a tipificao do incesto como crime no viola o direito fundamen-
tal do respeito vida privada e familiar, garantido pela Conveno
Europeia dos Direitos Humanos.31 J nos Estados Unidos, em contra-
28
Lus Roberto Barroso observa: Cortes como o Supremo Tribunal Federal passaram a
desempenhar, simultaneamente ao papel contramajoritrio tradicional, uma funo repre-
sentativa, pela qual atendem a demandas sociais relevantes que no foram satisfeitas pelo
processo poltico majoritrio. No desempenho de tal atribuio, o juiz constitucional no est
autorizado a impor as suas prprias convices. Pautado pelo material jurdico relevante
(normas, conceitos, precedentes), pelos princpios constitucionais e pelos valores civilizat-
rios, cabe-lhe interpretar o sentimento social, o esprito de seu tempo e o sentido da histria.
Com a dose de prudncia e de ousadia (A verdade no tem dono: a ascenso do Judicirio e a
indeterminao do Direito no mundo contemporneo. Disponvel em: <http://jota.info/aca-
demia/academia1-a-verdade-nao-tem-dono-a-ascensao-do-judiciario-e-a-indeterminacao-
-do-direito-no-mundo>. Acesso em: 29 dez.2015).O texto, parcialmente antecipado pelo Jota,
insere-se em publicao mais ampla, cuja verso integral pode ser encontrada em: <http://
www.publicacoesacademicas.uniceub.br/index.php/RBPP/article/view/3180/pdf>. Acesso
em: 29 dez. 2015).
29
O caso muito semelhante ao do clssico Os Maias, de Ea de Queiroz, em que Carlos da
Maia e Maria Eduarda, irmos sem que o saibam, tornam-se amantes. Ea, abandonado afeti-
vamente por me e pai biolgicos, tem em sua obra trao marcante desse fato.
30
Para a anlise crtica da deciso, v. TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. A funo dos impedi-
mentos no Direito de Famlia: uma reflexo sobre o casamento dos irmos consanguneos
ocorrido na Alemanha. In: TEPEDINO, Gustavo, FACHIN, Luiz Edson (Org.). Dilogos sobre
direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, v. II, p. 547-572.
31
A questo provocou importante debate na Alemanha. Em assembleia realizada
recentemente,o Conselho de tica do Governo alemo props a descriminalizao do
incesto, sustentando que o direito de irmos adultos autodeterminao sexual mais
importante do que a ideia abstrata de proteo famlia, antes de acrescentar que o
direito penal no o meio adequado para preservar um tabu social. Mesmo assim, o partido

partida, a comprovar como complexo o nosso Direito de Famlia,
logo nos Estados Unidos frequentemente to moralista e puritano,
um conhecido diretor de cinema casou-se com a filha adotiva, 35 anos
mais nova, constituindo unio estvel desde 1997, conforme ampla-
mente noticiado, sem que, parte os paparazzi, mexericos ou confli-
tos familiares, qualquer reao maior fosse manifestada por parte da
sociedade; e sem que houvesse sido sequer tisnada a popularidade
desse pai-companheiro-ator e diretor.
Todos esses problemas, precisamente porque no admitem solu-
o satisfatria, constituem dilemas. Requerem reflexo, humildade e
dedicao dos profissionais do Direito. Se a famlia, merc de to veloz
redimensionamento, encontra-se em crise de identidade, h que se
transformar a crise em oportunidade para fazer dos dilemas desafios
para o jurista contemporneo.
7REFERNCIAS
BARROSO, Lus Roberto. A verdade no tem dono: a ascenso do Judi-

cirio e a indeterminao do Direito no mundo contemporneo.
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A DIVISIBILIDADE DOS FRUTOS NO REGIME DE
BENS DO CASAMENTO E NA UNIO ESTVEL:
O QUE SO FRUTOS?
Ana Florinda Dantas
Juza de Direito em Alagoas. Mestre e doutoranda em Cincias

Jurdicas pela Faculdade de Direito de Lisboa.
Professora do CESMAC.
Sumrio: 1. Introduo. 2. Frutos. 2.1 Conceito. 2.2 Os fru-

tos e os demais bens acessrios. 3. Os frutos dos bens
como elemento econmico do regime patrimonial familiar.
4. Os frutos nos regimes de bens do casamento e na unio
estvel. 4.1 Comunho parcial de bens. 4.2 Comunho uni-
versal de bens. 4.3 Participao final nos aquestos. 4.4
Separao de bens. 5. Outros dispositivos relativos divisi-
bilidade dos frutos. 6. Concluses. 7. Referncias.
8INTRODUO
O Cdigo Civil Brasileiro (CCB) no traz um conceito para os

frutos como categoria jurdica, relacionando-os a direitos proporcio-
nados por bens preexistentes, embora por vezes se refira a frutos e
rendimentos.1
A necessidade de interpretar e aplicar a legislao relativa comu-
nicao dos frutos dos bens tem despertado a ateno, diante da poten-
cial capacidade de desequilbrio econmico entre o casal que dela pode
advir, colocando assim essa discusso na ordem do dia.
No obstante, pode-se recorrer ao Direito Comparado e dou-
trina para buscar uma orientao conceitual para os frutos, apta a ser
operacionalizado no Direito de Famlia, em especial no que se refere
sua comunicabilidade e divisibilidade, nos regimes de bens adotados
no CCB.
Este trabalho pretende ser uma contribuio para a interpreta-
o da matria nos casos concretos, diante da necessidade de superao
das imprecises legislativas que cercam assunto to importante para
Nos arts. 33, 1.506, 1.507 e 1.508, 1.799, 2.020, por exemplo, fala em frutos e rendimentos dos
1
bens, imveis ou no.

a manuteno do equilbrio econmico entre o casal, e, consequente-
mente, da famlia.
9FRUTOS
9.1Conceito
No Livro IV, dedicado ao Direito de Famlia, o CCB utiliza o termo

frutos de forma ampla, tanto que o art. 1.660, V, fala em frutos dos bens
comuns, ou dos particulares percebidos na constncia do casamento,
declinando o termo rendimentos quando relativos a proveito econ-
mico, como nos arts. 1.568 e 1.688, tratando o ltimo dos rendimentos
do trabalho e de bens. Do que se v, o mximo a extrair acerca da con-
ceituao de frutos no CCB que ela se acha vinculada ao exerccio de
direitos sobre bens e a atividade ou direito com proveito pecunirio.
J o Cdigo Civil portugus traz, no art. 212, o seguinte conceito
para os frutos:2
Art. 212. (Frutos):

1. Diz-se fruto de uma coisa tudo o que ela produz periodicamente,
sem prejuzo da sua substncia.
2. Os frutos so naturais ou civis; dizem-se naturais os que provm
directamente da coisa, e civis as rendas ou interesses que a coisa
produz em consequncia de uma relao jurdica.
O Direito portugus, como visto, estuda os frutos relacionando-

-os aos direitos de fruio, contido no direito de propriedade e noutros
direitos reais,3 como a faculdade que o proprietrio de um determi-
nado bem tem de poder retirar dele todas as suas utilidades (frutos)
suscetveis de ter uma utilizao autnoma, sem que ele fique desca-
racterizado ou perca a sua substncia.
Dentro dessa perspectiva, os frutos tm a natureza jurdica de
bens acessrios a outros bens, confirmando assim o conceito firmado
tambm na doutrina brasileira, de que os frutos so bens e utilidades
acessrios e provenientes de outros preexistentes, sejam mveis ou
imveis.4
2
PORTUGAL. Cdigo Civil. Decreto-Lei n. 47 344, de 25.11.1966. Actualizado at Lei 59/99,
de 30 de junho. Disponvel em: < http://www.stj.pt/ficheiros/fpstjptlp/portugal_codigoci-
vil>. Acesso em: 15 set. 2015.
3
JUSTO, Antnio Santos. A base romanista do direito luso-brasileiro das coisas (algumas figu-
ras jurdicas). Revista da Ordem dos Advogados.Lisboa, ano 69, v. 1 e 2, 2009.
4
PEREIRA, Caio Mrio da Silva. Instituies de direito civil. 17. ed., atualizado por Carlos Edi-
son do Rgo Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 24.

Por sua vez, os rendimentos so tratados no Brasil e em Portugal
como frutos civis, consistentes em prestaes peridicas em dinheiro,
decorrentes da concesso do uso e gozo5 ou da remunerao pelo
exerccio de uma atividade (rendimentos do trabalho), no havendo,
quanto aplicao da lei, distino entre bem e coisa.6
No que diz respeito ao Direito de Famlia, e especialmente ao
tema ora abordado, o interesse nos frutos reside no resultado patrimo-
nial gerado pelos bens dos cnjuges ou companheiros no casamento e
na unio estvel, limitando-se, evidentemente aos bens que represen-
tam um interesse de ordem econmica, passveis de individualizao e
de valorao, e, por fim, de subordinao a uma pessoa.
Desse modo, o conceito de frutos pode ser operacionalizado no
Direito de Famlia como gnero, do qual os rendimentos so espcie,
podendo-se concluir que os frutos so os bens produzidos por outro
bem preexistente, periodicamente, sem prejuzo da sua substncia,
assim como as rendas ou interesses que dele provm diretamente, em
consequncia de uma relao jurdica.7
9.2Os frutos e os demais bens acessrios
As principais caractersticas dos frutos so a sua acessoriedade,

a inalterabilidade da substncia do bem principal e a periodicidade,
uma vez que podem ser produzidos periodicamente.
Por sua vez, a separabilidade do bem principal, embora seja
apontada como uma caracterstica a mais, uma vez produzidos podem
adquirir valor econmico autnomo, tanto que o art. 95, CCB, diz que
apesar de ainda no separados do bem principal, os frutos podem ser
objeto de negcio jurdico.
Na ausncia da desejada clareza na legislao codificada,
importante distinguir os frutos dos demais acessrios previstos com
maior destaque no Direito brasileiro, como os produtos, as benfeito-
rias, as acesses e as pertenas, numa anlise, mesmo breve, dessas
figuras congneres, uma vez que, para cada uma delas, pode haver con-
sequncias diversas quando se trata de apurar a sua comunicabilidade
5
FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito civil: teoria geral. 6. ed. Rio de
Janeiro: Lmen Jris, 2007, p. 363.
6
Embora permanea aberta a discusso doutrinria acerca da distino entre bem e coisa, as
expresses so utilizadas com o mesmo sentido pelo CCB e pela jurisprudncia.
7
Os frutos so geralmente classificados em naturais (como, por exemplo, a extrao de um
minrio), industriais (a produo de uma fbrica) e os civis (o aluguel de um imvel). Registre-
-se, contudo, que um bem imvel pode gerar no apenas renda, mas outros frutos, a exemplo
do uso e fruio prprios do usufruto.

e divisibilidade entre o casal, o que pode ser de grande valia quando da
interpretao do caso concreto.
Como bem acessrio, os frutos possuem caractersticas pr-
prias que lhes servem de distino e realce. Distinguem-se dos produ-
tos porque, uma vez gerados, deixam intacto o bem que os produziu,
enquanto que os produtos, uma vez retirados, acabam por diminuir-
-lhe a quantidade, pois no da sua natureza que se reproduzam
periodicamente.8
Quanto s benfeitorias, o art. 97, CCB, regulamenta pormeno-
rizadamente a matria,9 tratando-as como melhoramentos ou acrs-
cimos sobrevindos ao bem, tendo como trao distintivo a necessria
interveno do proprietrio, possuidor ou detentor, dependendo a
divisibilidade do atendimento aos requisitos nele presentes.
As acesses, como bens que incorporam o principal, natural ou
artificialmente, ao inverso do que ocorre com os produtos, geram para
o proprietrio o direito de acrescer, como modo originrio de aquisi-
o, alterando a substncia do bem adicionado,10 no que tambm dife-
rem dos frutos.
Por fim, as pertenas constituem contribuio da doutrina ao
atual CCB, que no art. 94 as conceitua como bens que, no consti-
tuindo parte integrante, se destinam ao uso, ao servio ou ao aformo-
seamento do bem principal, prevendo o referido artigo que os negcios
jurdicos que dizem respeito ao bem principal no abrangem as per-
tenas, salvo se o contrrio resultar da lei, da manifestao de vontade,
ou das circunstncias do caso.11 Nesse caso, presumem-se indivisveis,
salvo disposio em contrrio.
10OS FRUTOS DOS BENS COMO ELEMENTO ECONMICO DO REGIME

PATRIMONIAL FAMILIAR
Diante da virtual capacidade de gerar desequilbrio econmico

entre o casal, os frutos dos bens possuem grande relevncia no regime
de bens adotado no casamento ou na unio estvel, uma vez que, pre-
sumivelmente, aquele que entra na sociedade familiar com mais bens
tender a t-los aumentado pelos frutos gerados.
8
PEREIRA, Caio Mrio da Silva. Instituies de direito civil. 17. ed., atualizado por Carlos Edi-
son do Rgo Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 24. Os exemplos mais frequentes
so os minrios, extrados de minas, e o petrleo extrado de um poo.
9
Ver arts. 96, 97 e 1. 219.
10
Ver arts. 1.248 a 1.259, CCB. Os exemplos mais frequentes so a formao de ilhas, por alu-
vio, avulso, por abandono de lveo, pela construo de obras ou plantaes.
11
A exemplo de esquadrias, divisrias especiais e armrios embutidos de um imvel.

Recordando que nosso Cdigo optou pela teoria objetiva quanto
aos direitos reais e pessoais de cunho patrimonial, dentro do sistema
elaborado por Jhering, os frutos pertenceriam tambm ao propriet-
rio, possuidor ou usurio do bem principal, por fora da sua natural
acessoriedade. Poder-se-ia entender que, assim, que na interpreta-
o das regras relativas divisibilidade dos frutos dos bens do casal
se aplicaria diretamente o princpio geral do art. 1.232, segundo o qual
pertencem ao seu proprietrio, ainda quando separados do bem prin-
cipal, salvo se, por preceito jurdico especial, couberem a outrem. Ou
seja, o bem acessrio seguiria o principal.12
V-se, entretanto, que no Direito de Famlia essa regra no foi
adotada pelo legislador civil brasileiro, que preferiu manter a incomu-
nicabilidade como exceo, seguindo o exemplo da legislao portu-
guesa e espanhola, entre outras. Isto porque, no Direito de Famlia, o
legislador privilegiou outros princpios, como o da proteo especial
devida famlia13 e a solidariedade familiar, alm do conceito de casa-
mento expresso no art. 1.511, CCB, como um projeto de vida comum e
uma comunho plena.
Por tais razes, diante da relevncia dos frutos dos bens como
elemento econmico do regime patrimonial familiar, tratando-se a
questo do desequilbrio econmico entre os cnjuges e companheiros
de fator altamente negativo na harmonia familiar, v-se como dever da
sociedade e do Estado buscar as diversas formas de evit-lo, o que tem
sido feito por meio do desenvolvimento doutrinrio e da interveno
legislativa, como o caso das disposies acerca da divisibilidade dos
frutos dos bens.14
11OS FRUTOS NOS REGIMES DE BENS DO CASAMENTO E NA UNIO

ESTVEL
Coerente com o enunciado do art. 1.511, no qual diz que o casa-

mento estabelece comunho plena de vida, com base na igualdade de
direitos e deveres dos cnjuges, o CCB prev, quanto ao regime patri-
monial, amplas perspectivas de comunicabilidade de bens e de seus
frutos, pois se assim no fosse se revelaria o sistema contraditrio.
12
Embora o CCB no contenha regra semelhante do art. 59 do CCB de 1916, segundo a qual
salvo disposio especial em contrrio, a coisa acessria segue a principal, o art. 1.232 dispe
que os frutos, e mais produtos da coisa, pertencem, ainda quando separados, ao seu proprie-
trio, salvo se, por preceito jurdico especial, couberem a outrem.
13
Art. 226, caput da Constituio Federal.
14
Entre essas medidas podem-se mencionar os alimentos compensatrios e as estipulaes
securitrias nos contratos antenupciais.

A regra , pois, a comunicabilidade e divisibilidade dos frutos,
o que consolida a manuteno do regime vigente no Cdigo Civil de
1916,15 representando a sua autonomia em relao ao bem principal, nos
regimes de bens adotados, como tem entendido a jurisprudncia.16
A contrario sensu, as situaes de indivisibilidade, consideradas
excepcionais, so expressamente consignadas, e, diga-se de passagem,
para reduzidas situaes, como se analisa a seguir, com base em cada
regime de bem, ressaltando-se, de logo, que o CCB no distingue entre
o casamento e a unio estvel quando se trata da comunicabilidade
dos bens a partir do regime eleito, pelo que no caber ao intrprete
faz-lo.17
11.1Comunho parcial de bens
O art. 1.660, V, CCB, estabelece que os frutos dos bens comuns,

ou dos particulares, de cada cnjuge, percebidos na constncia do
casamento, ou ainda os pendentes ao tempo de cessar a comunho,
encontram-se entre aqueles que so comunicveis, quando sobrevie-
rem ao casal, na constncia do casamento.
15
O atual CCB s excluiu da comunicabilidade os frutos civis do trabalho, ou indstria de
cada cnjuge, prevista no art. 271, VI, do CCB 1916.
16
Como exemplos de bens considerados frutos divisveis pela jurisprudncia te-
mos as colheitas agrcolas (STF-ARE 655155. AgR / SP, 2011. AG.REG. em Recur-
so Extraordinrio com Agravo) os aluguis (HC 84382 / SP, 2004); os bens adqui-
ridos com salrios e aposentadorias (STJ- REsp 1295991 MG 2011/0287583-5); os
crditos oriundos de ao de reparao civil, ainda que de direitos considera-
dos personalssimos (STJ - REsp 1024169 RS 2008/0012694-7); a extrao de ma-
deira, mesmo em terras herdadas (TJ-RS - AC 70060575271 RS); os juros de ca-
pital (AgRg no AREsp 702168-MS. Agravo Regimental em Recurso Especial n
2015/0094703-2); os saldos bancrios originados de economias advindas de salrios e
aposentadoria (AgRg no REspn1143642-SP. Recurso Especial n. 2009/0107388-8); gado
(REsp 1117644 / MS. Recurso Especial n. 2009/0072193-6); depsito bancrio com
aplicao em CDB/RDB, fruto de emprstimo para aplicao em atividade produtiva,
que permaneceram sem utilizao com o valor em conta (REsp 1179725 / DF. Recurso
Especial n. 2010/0022356-2); lucros cessantes e demais valores recebidos em decor-
rncia de negcio jurdico invalidado (EDcl no REsp 1188442/RJ. Recurso Especial n.
2010/0058615-4); dividendos decorrentes do lucro apurado pela sociedade empresria
distribuda a seus scios, como frutos de capital (AgRg no REsp 1348680 / RS.Agraco
regimental em Recurso Especial n. 2012/0214143-6); sacas de soja colhidas em lavou-
ra (AgRg no AREsp n. 41995-GO.Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n.
2011/0111996-0). J como frutos no divisveis temos os crditos trabalhistas (STJ-REsp
1358916 SP 2012/0102538-0); o aumento verificado sobre o ativo mobilizado da empre-
sa durante a convivncia, considerado formado pelo conjunto de bens e direitos ne-
cessrios manuteno das atividades da empresa (TJ-MG - 100240315178240011 MG
1.0024.03.151782-4/001(1) ; a valorizao dos imveis por se tratar de fenmeno mera-
mente econmico, no podendo ser identificada como fruto, produto do bem, ou mes-
mo como um acrscimo patrimonial mas da existncia do imvel no decorrer do tempo,
conjugada a outros fatores, como sua localizao, estado de conservao, etc (REsp
1349788 / RS. Recurso Especial n. 2011/0203163-0. Disponvel em: <http://tj-rs.jusbra-
sil.com.br/jurisprudencia.>. Acesso em: 15 set. 2015.
17
Desse modo, o que aqui se afirma pode ser aplicado tanto ao casamento quanto unio
estvel guardadas as peculiaridades distintivas de cada status jurdico.

Acerca desse regime de bem, costuma-se comentar que o regime
o da comunho, e no da separao parcial de bens, uma vez que a
ideia que, aps o casamento, ressalvadas as excees do art. 1.659,18
entram na comunho praticamente tudo o que vierem os cnjuges ou
companheiros a adquirir por esforo comum ou no, a exemplo das
acesses, as benfeitorias acrescidas aos bens particulares e os frutos
dos bens comuns, ou dos particulares de cada cnjuge, percebidos na
constncia do casamento, ou pendentes ao tempo de cessar a comu-
nho.19 Ou seja, os frutos dos bens, particulares ou comuns, so comu-
nicveis e possuem plena divisibilidade.
11.2Comunho universal de bens
Na comunho universal de bens, natural que os frutos sejam

plenamente divisveis, uma vez que, segundo o art. 1.667, CCB, importa
comunicao de todos os bens presentes e futuros dos cnjuges, com
as excees do art. 1.668.
Note-se, contudo, que, segundo o art. 1.669, mesmo quando trata
das incomunicabilidades dos bens expressamente referenciadas, so
ressalvados os seus frutos, estabelecendo este que A incomunicabili-
dade dos bens enumerados no artigo antecedente no se estende aos
frutos, quando se percebam ou venam durante o casamento.
Ou seja, so comunicveis e, portanto, divisveis mesmo os fru-
tos dos bens que tenham sido doados ou herdados com a clusula de
incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar pelos cnjuges; gra-
vados de fideicomisso e o direito do herdeiro fideicomissrio, antes de
realizada a condio suspensiva; as doaes antenupciais feitas por um
dos cnjuges ao outro com a clusula de incomunicabilidade; os bens
de uso pessoal, os livros e instrumentos de profisso; os proventos do
trabalho pessoal de cada cnjuge.
Confirma-se, neste regime, o princpio da divisibilidade dos fru-
tos mesmo diante da indivisibilidade dos bens.
11.3Participao final nos aquestos
O regime de participao final nos aquestos possui dois momen-

tos diversos a serem examinados: o da vigncia da sociedade e o da
sua dissoluo, quando deve ocorrer a determinao do montante dos
aquestos.
18
Ver arts. 1.658 a 1.666. Como o regime ordinrio do casamento, este regime se aplica igual-
mente unio estvel, cf. art. 1.725.
19
Art. 1.660, II, IV e V, respectivamente.

Neste caso, diante da inexistncia de disposio expressa acerca
dos frutos e de sua divisibilidade, entende-se adequada a aplicao da
orientao geral do art. 1.511, CCB, com as excees que a lei impe.
Assim sendo, na vigncia da sociedade, os frutos dos bens que
cada cnjuge ou companheiro possui como patrimnio prprio e ele
pertencer,20 uma vez que, de acordo com o art. 1.673, pargrafo nico,
a administrao desses bens exclusiva de cada cnjuge ou compa-
nheiro, que os poder, inclusive, livremente alienar, se forem mveis, o
que configura um sistema aproximado da separao de bens.
Contudo, ocorrendo a dissoluo da sociedade, cada um dos cn-
juges ou companheiros ter direito aos frutos pendentes no momento
em que cessar a unio, correspondentes metade dos bens adquiridos
pelo casal, a ttulo oneroso, na constncia do casamento.
Na apurao do montante dos aquestos, tambm por fora do
disposto nos arts. 1.672 e 1.674, como deve ser excluda a soma dos
patrimnios prprios, tambm devem ser excludos os frutos destes
havidos, juntamente com os dos bens anteriores ao casamento, dos
que em seu lugar se sub-rogaram e dos que sobrevieram a cada cn-
juge, por sucesso ou liberalidade.21
11.4Separao de bens
Quando o regime de bens for o da separao, os frutos dos bens

de cada cnjuge ou companheiro estaro sob a gide da incomunica-
bilidade, considerando que permanecem sob a administrao exclusiva
de cada um, que os poder livremente alienar ou gravar de nus real.22
necessrio, entretanto, que se observe que, de acordo com o
art. 1.688, CCB, ambos os cnjuges ou companheiros so obrigados a
contribuir para as despesas do casal na proporo dos rendimentos de
seu trabalho e de seus bens, salvo estipulao em contrrio no pacto
antenupcial, o que vincula essa administrao aos interesses da manu-
teno da famlia, uma vez que os rendimentos, no caso, correspondem
aos frutos civis do trabalho ou dos bens de cada um.
Conclui-se, portanto, que na inexistncia de pacto antenupcial
em sentido contrrio, mesmo sendo os bens incomunicveis, os seus
frutos so comunicveis e divisveis, e, portanto, exigvel que sejam
administrados no interesse familiar.
20
Art. 1.673. Integram o patrimnio prprio os bens que cada cnjuge possua ao casar e os
por ele adquiridos, a qualquer ttulo, na constncia do casamento.
21
Art. 1.674, I e II.
22
Art. 1.687.

12OUTROS DISPOSITIVOS RELATIVOS DIVISIBILIDADE DOS FRUTOS
Na estrutura do regime patrimonial do nosso Cdigo Civil, exis-

tem situaes em que, mesmo no sendo proprietrio, o cnjuge ou
companheiro estar vinculado divisibilidade dos frutos de bens sobre
os quais exercer direitos de gozo e fruio, a exemplo do direito de
uso, em que prev o art. 1. 412, CCB, que o usurio poder, alm de usar
a coisa, perceber os seus frutos, quanto o exigirem as necessidades
suas e de sua famlia, criando assim uma expectativa de direitos para a
famlia quanto ao exerccio dessa faculdade.
Este dispositivo permite a interpretao de que, nesse caso, o
uso dos frutos e sua divisibilidade em prol da famlia assume carter
semelhante ao dos alimentos, uma vez que, segundo os pargrafos do
mencionado artigo, as necessidades pessoais do usurio sero avalia-
das conforme a sua condio social e o lugar onde viver, e as necessi-
dades da famlia do usurio compreendem as de seu cnjuge, dos filhos
solteiros e das pessoas de seu servio domstico, aplicando-se eviden-
temente ao companheiro na unio estvel.
V-se, assim, mais um exemplo de como o legislador se pre-
ocupou em assegurar o equilbrio econmico familiar, orientando
positivamente o desenvolvimento da solidariedade entre cnjuges e
companheiros, nos tempos difceis em que se vive, no qual as comple-
xas questes econmicas exigem o esforo e a colaborao mtua para
que a famlia possa desempenhar as importantes tarefas que lhes so
confiadas. No mesmo sentido, a jurisprudncia vem procedendo a uma
ampliao do conceito de participao na economia familiar, para que
no sejam cometidas distores que favoream, em frontal despropor-
o, a um dos cnjuges.23
13CONCLUSES
Ante a omisso do Cdigo Civil Brasileiro (CCB), a definio do

que so frutos pode ser buscada na doutrina e no Direito Comparado,
podendo ser conceituados como bens produzidos por outro preexis-
tente, periodicamente, sem prejuzo da sua substncia, assim como as
rendas ou interesses que dele provm diretamente, em consequncia
de uma relao jurdica.
Embora tenham natureza jurdica de bem acessrio, os fru-
tos distinguem-se dos demais congneres, como as benfeitorias, as
acesses e as pertenas, pela inalterabilidade da substncia do bem
Ver Acrdo do STJ - RECURSO ESPECIAL. REsp 1024169 RS 2008/0012694-7. Disponvel

23
em: <http://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia.>. Acesso em: 15 set. 2015.

principal, que no afetada pela sua produo, pela periodicidade, e
pela separabilidade relativamente ao bem frugvero.
A potencial capacidade de desequilbrio econmico entre o casal,
que pode advir ou ser agravada, a partir da indivisibilidade dos frutos
no regime de bens do casamento e da unio estvel, revela a necessi-
dade da interpretao dos seus dispositivos, de acordo com os prin-
cpios constitucionais adotados pelo CCB, quanto proteo especial
devida famlia.
Consequentemente, no Direito de Famlia, a regulamentao
quanto divisibilidade dos frutos no segue a regra geral adotada pelo
art. 1.232, CCB, segundo o qual os frutos pertencem, ainda quando
separados, ao proprietrio do bem principal, salvo se, por preceito
jurdico especial, couberem a outrem. Aplica-se, diversamente, como
regra, a comunicabilidade dos frutos dos bens, em ateno aos prin-
cpios constitucionais da proteo especial devida famlia e da soli-
dariedade familiar, assim como ao conceito de casamento como uma
comunho plena de vida, presente no art. 1.511, CCB.
O CCB no distingue entre o casamento e a unio estvel quando
se trata da comunicabilidade dos bens a partir do regime eleito, pelo
que no caber ao intrprete faz-lo.
dever da sociedade e do Estado promover o equilbrio econ-
mico familiar, orientando positivamente o desenvolvimento da soli-
dariedade entre cnjuges e companheiros, uma vez que as complexas
questes econmicas atuais exigem o esforo e a colaborao mtua
para que a famlia possa desempenhar as importantes tarefas que lhe
so confiadas.
14REFERNCIAS
BRASIL. Cdigo Civil. Lei n. 10.406 de 10.01.2002. Disponvel em:

<http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 15 set. 2015.
FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito civil: teoria

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JUSTO, Antnio Santos. A base romanista do direito luso-brasileiro

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zado at Lei 59/99, de 30.06.99. Disponvel em: < http://www.stj.pt/
ficheiros/fpstjptlp/portugal_codigocivil>. Acesso em: 15 set. 2015.

A SOCIEDADE SIMPLES E O REGIME DE BENS
NO CASAMENTO E NA UNIO ESTVEL
Rolf Madaleno
Advogado em Porto Alegre e So Paulo.

Professor de Direito de Famlia e Sucesses na PUC/RS.
Diretor Nacional do IBDFAM.
Mestre em Direito Processual pela PUC/RS.
Conselheiro Federal pela OAB/RS.
Autor do livro Curso de Direito de Famlia, editora Forense.
Sumrio: 1. Locao de servios. 2. Profisso intelectual.

2.1. A clientela dos profissionais liberais. 3. Empresrio.
4. Sociedade empresria. 5. Sociedade simples. 5.1. Pecu-
liaridades da sociedade simples. 5.2. Caractersticas da
sociedade profissional. 5.3. Pessoa jurdica e prestao
de servios. 5.3.1. Servio intelectual de natureza cient-
fica, artstica e cultural. 6. Direitos inerentes pessoa e
o regime da comunho de bens. 7. Declarao judicial de
incomunicabilidade de sociedade simples. 7.1. A clientela e
a doutrina dos bens prprios por natureza. 8. Referncias.
1LOCAO DE SERVIOS
Em sua acepo mais ampla, escreve Manuel Incio de Carvalho

de Mendona, que a locao de servios que os alemes denominam
como Dienstmieth a conveno em virtude da qual algum se obriga
a prestar a outrem certos e determinados servios e recebendo em
troca uma remunerao.1 o rtulo tratado pelo artigo 1.216 do Cdigo
Civil de 1916, para toda a espcie de servio ou trabalho lcito, material
ou imaterial, que podia ser contratado mediante retribuio. Conforme
Georges Ripert e Jean Boulanger, o trabalho humano considerado
como uma mercadoria que est em comrcio e seu preo se fixa pela
lei da oferta e da procura, discutindo as partes as condies da locao
e determinando as obrigaes a serem impostas. Desse modo, quem
celebra um contrato de trabalho se pe a servio do outro, no s con-
sagrando ao empregador o seu tempo, mas tambm sua inteligncia,
1
MENDONA, Manuel Incio Carvalho de. Contratos no direito civil brasileiro. 3. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1955, p. 487.

sua atividade, sua fora fsica, alm das suas condies morais, colo-
cando-se voluntariamente abaixo da autoridade de outra pessoa.2
Como refere Alfredo de Assis Gonalves Neto, neste enunciado
do primitivo artigo 1.216 da legislao civil de 1916, estavam abrangidas
todas as modalidades possveis de servios, inclusive aqueles decor-
rentes das relaes de emprego, que s receberam tratamento prprio
na Consolidao das Leis do Trabalho de 1943, mas cuja legislao tam-
bm no tratou integralmente da matria, continuando sob a regncia
do Cdigo Civil todos os demais modos de prestao de servios que
no se ajustavam ao conceito legal de trabalho, fosse pela inexistncia
de subordinao, pela falta de continuidade ou pelo fim da atividade do
trabalhador.3
Citando Cunha Gonalves, Washington de Barros Monteiro cri-
tica a denominao locao de servios que deveria ser substituda
pela expresso mais apropriada de contrato de prestao de servios,
mas que outras legislaes preferem chamar de contrato de trabalho,
terminando por se queixar do Cdigo Civil de 1916, que regulamentou
de forma lacunosa a matria, atingindo a legislao trabalhista as raias
da mais completa indigncia.4
Por seu turno, o Cdigo Civil de 2002 continuou regulamen-
tando a primitiva locao de servio, agora sob outra denominao,
constante do artigo 593, passando a se chamar de prestao de ser-
vio, cujas normas se aplicam a todas as relaes de trabalho, excludas
aquelas do mbito da legislao trabalhista, ou que forem sujeitas lei
especial que vai adiante da Consolidao das Leis do Trabalho (CLT).
Como bem lembra Washington de Barros Monteiro, qualquer
espcie de servio, seja qual for a sua natureza, pode ser objeto de loca-
o, sejam eles materiais ou imateriais, braais ou intelectuais, doms-
ticos ou externos, bastando apenas que sejam lcitos.5 Na antiga locao
de servios substituda pela prestao de servios, o trabalhador pe
sua atividade inteira disposio do locatrio, mediante remunerao,
estabelecendo uma subordinao entre o locador e o locatrio, traba-
lhando o primeiro sob as ordens e a fiscalizao do segundo, podendo
ser contratada verbalmente ou por escrito, no sendo presumida a sua
2
RIPERT, Georges; BOULANGER, Jean. Tratado de derecho civil. Buenos Aires: La Ley, t. VIII,
2007, p. 374.
3
GONALVES NETO, Alfredo de Assis. Sociedade para o exerccio de trabalho intelectual. In:
ADAMEK, Marcelo Vieira Von (Coord.). Temas de direito societrio e empresarial contempo-
rneos. So Paulo: Malheiros, 2011, p. 41.
4
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Direito das Obrigaes. 10. ed. So
Paulo: Saraiva, 1975, p. 175.
5
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Direito das Obrigaes. 10. ed. So

gratuidade e sendo paga a retribuio pecuniria depois de prestado o
servio, isto se, por conveno ou costume, no houver de ser adian-
tada ou paga em prestaes.
Contudo, o Cdigo Civil de 2002, ao regular o direito de empresa
e definir a figura do empresrio, excluiu deste enunciado as pessoas
que se dedicam profisso intelectual, de natureza cientfica, literria
ou artstica, ainda que contem com o concurso de auxiliares ou cola-
boradores, e, consequentemente, este profissional no ser conside-
rado empresrio (CC, pargrafo nico, art. 966) por maior que seja a
sua infraestrutura, sujeitando-se a tratamento jurdico diferente tam-
bm daquele que exerce profissionalmente outros servios.
2PROFISSO INTELECTUAL
A profisso intelectual vista como sinnimo de profisso libe-

ral, profisses consideradas como dignas do homem livre, mas que
Tullio Ascarelli reserva o termo para profisses para as quais sejam
exigidos registros especiais, diferenciando-se das outras por seu valor
social decorrente da natureza intelectual do servio prestado.6 So ati-
vidades inspiradas na premissa do decoro da profisso, informa Alfredo
de Assis Gonalves Neto, incompatveis com os sistemas de concorrn-
cia prprios da atividade empresarial, em que ocorre a produo em
massa e a obra no explorada diretamente pelo artista ou intelec-
tual, de forma que, para bem conhecer a extenso e o alcance da regra
contida no pargrafo nico, do artigo 966 do Cdigo Civil, a profisso
intelectual deve ser entendida como sendo toda aquela atividade reali-
zada por uma pessoa humana, que decorra de sua capacidade criadora
na produo de servios inerentes s profisses regulamentadas e, de
modo geral, de obras literrias, artsticas, inventivas e cientficas.7
Ainda que, por exemplo, as clnicas mdicas e os escritrios pro-
fissionais guardem semelhana com a estrutura empresarial e atuem
com um esprito empreendedor tpico de uma empresa, valendo-se
de conceitos de clientela e aviamento, no se trata de uma sociedade
empresria, como tampouco elas se encaixam no antigo conceito de
contrato de locao de servios do Cdigo Civil de 1916, como tam-
bm no integram o nome de prestao de servios do artigo 593 do
Cdigo Civil de 2002, no obstante se encaixem na autoridade de uma
6
rneos. So Paulo: Malheiros, 2011, p. 42-43.
7
rneos. So Paulo: Malheiros, 2011, p. 43.

sociedade simples, sabido que os profissionais liberais esto cada vez
mais distantes de uma atividade laboral isolada e, em verdade, nem
mais exercem um ofcio eminentemente artesanal, sendo at mesmo
incontroverso, que a sociedade simples tem testemunhado importan-
tes transformaes no exerccio das atividades intelectuais e de pres-
tao de servios dos profissionais liberais.8
O profissional que se enquadra no elenco do pargrafo nico do
artigo 966 do Cdigo Civil, ainda que exera sua atividade de forma
organizada, diz textualmente Alfredo de Assis Gonalves Neto, com
o concurso de auxiliares ou colaboradores, no ser empresrio e,
consequentemente, no estar sujeito ao respectivo regime jurdico
empresarial, pouco importando o volume de negcios que realize ou
a quantidade de colaboradores ou auxiliares de que se utilize.9 Isto
porque, determinadas profisses no tm o condo de se caracterizar
como atividade de natureza empresria, muito embora possam con-
sistir em uma atividade de cunho econmico, como disto so alguns
exemplos, as profisses dos mdicos, advogados, arquitetos, engenhei-
ros, qumicos, farmacuticos, escritores, msicos, profissionais dedi-
cados ao desenho artstico ou de modas e fotgrafos, inclusive quando
organizados sob a forma de sociedades, so consideradas sociedades
simples.10
Os profissionais liberais esto cada vez mais distantes de uma
atividade laboral isolada e artesanal, mas, em realidade, esto cada vez
mais se despersonalizando nas grandes metrpoles com a socializao
de seus servios, migrando para sociedades prestadoras de servios,
atendendo a uma tendncia e exigncia cada vez maior de os profissio-
nais liberais precisarem se associar com outros colegas de profisso. E
esta sociedade prestadora de servios vai construindo com o tempo,
trabalho personalizado e o talento de seus scios, uma carteira de
clientes que trar fama e correspondentes benefcios financeiros, agre-
gando valor patrimonial sociedade.11 Trata-se de verdadeiras empre-
sas formadas por grupos de profissionais liberais, que constituem, em
conformidade com o artigo 997 do Cdigo Civil, uma sociedade sim-
ples, dedicada profisso intelectual, cientfica, literria ou artstica,
8
MADALENO, Rolf. O fundo de comrcio do profissional liberal na meao conjugal. In:
MADALENO, Rolf. Novos horizontes no direito de famlia. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 9.
9
10
CAMPINHO, Srgio. O direito de empresa luz do novo Cdigo Civil. 3. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003, p. 14 e 41.
11

no se identificando como entes empresrios e, praticamente, subs-
tituindo as antigas sociedades civis reguladas no Cdigo Civil de 1916.
Explica Srgio Campinho que, por exemplo, as sociedades de
advogados sero sempre sociedades simples, sendo registrados na
Ordem dos Advogados do Brasil os seus atos constitutivos, tendo como
seu objeto social a prestao de servios de advocacia por seus mem-
bros, sendo as procuraes outorgadas individualmente aos advogados
e no sociedade, que apenas ser indicada na procurao.12
Tambm a sociedade dos mdicos ser simples, cujo objeto
social se limita ao exerccio da atividade da profisso intelectual de
cada scio, ainda que se acerquem de inmeros auxiliares, embora seja
completamente oposta a situao das casas de sade e dos hospitais,
onde a execuo da profisso intelectual se apresenta como um dos
elementos do exerccio da empresa.13
Na sociedade simples, o exerccio da profisso intelectual se
encerra na prpria atividade, ao contrrio daquelas empresas que con-
tratam profissionais que ajudam a pensar e a executar a empresa, no
sendo simples auxiliares ou colaboradores, mas so servios profissio-
nais que se constituem em instrumento de execuo da empresa, em
que, por exemplo, um cirurgio realiza suas cirurgias nas dependn-
cias de um hospital, com todo o apoio logstico disponibilizado (sala
de cirurgia, CTI, aparelhos, equipamentos, medicamentos, equipe de
enfermagem, etc.), e isto no transforma o hospital em uma sociedade
simples, pois como encerra Srgio Campinho, o exerccio da profisso
intelectual do mdico emerge apenas como elemento da empresa.14
Quando o profissional intelectual est sujeito s normas que dizem
respeito ao empresrio, sua atividade apenas um dos elementos da
empresa.
A sociedade de exerccio de profisso liberal ou intelectual sur-
giu do crescimento da populao, do desenvolvimento de novas tcni-
cas nas diversas reas de conhecimento, do aumento da procura dos
servios prestados por um determinado profissional e pela necessi-
dade que ele teve de ceder espao admisso da figura da delegao
12
13
14
Renovar, 2003, p. 43-44.

da atividade a auxiliares de sua confiana, tambm como ele habili-
tados e com o acompanhamento direto pelos profissionais por ele
selecionados.15
De forma que complementa Alfredo de Assis Gonalves Neto:
Todas as sociedades de exerccio de profisso liberal tm a peculia-

ridade de no exercer a atividade para a qual exigida a habilitao;
so sociedades de meios, constitudas para facilitar o exerccio pro-
fissional dos scios ou das pessoas a tanto habilitadas, que a ela se
vinculam na consecuo do objeto social. A rigor, caracterizam-se
pela finalidade precpua de apoiar e facilitar (como se d com rela-
o sociedade de advogados) o exerccio de determinada profisso
intelectual por pessoas naturais a tanto devidamente credenciadas.
Na obteno dos resultados econmicos para sua atuao, assume
relevo o patrimnio intelectual dos profissionais que as integram
(scios ou no), ficando em segundo plano os investimentos em
recursos materiais. Nessas sociedades o trabalho que sobressai
em confronto com o capital. Os scios participam mais com seus
esforos pessoais que com recursos materiais, onde a figura do scio
de trabalho ou de indstria, prestador de servios, encontra agasa-
lho adequado para exerc-los.16
Obviamente, esta caracterstica de ser uma sociedade desti-

nada a reunir pessoas que exeram atividades intelectuais em carter
profissional, buscando subordinados e auxiliares, no retira o fim da
explorao econmica e partilha entre os scios dos resultados finan-
ceiros alcanados com o empreendimento.
2.1A clientela dos profissionais liberais
Os profissionais liberais esto cada vez mais distantes de uma

atividade laboral isolada, artesanal, como sucedia no passado em
relao ao exerccio de uma profisso, porquanto, em realidade, eles
exercem um ofcio personalssimo, contudo, no correr dos tempos, a
sociedade civil tem testemunhado importantes transformaes na
prtica das atividades intelectuais, da prestao de servios, de ofcios
liberais ou de artfices que prestam um conjunto de servios alinhados
com um trabalho extremamente vinculado, ou seja, aderente pessoa
do prestador deste mister.
15
16

Conforme Germn Bercovitz lvarez, o profissional liberal vem
sendo despersonalizado nas grandes metrpoles com a socializao
dos seus prstimos profissionais, sendo bastante frequente sua migra-
o para sociedades prestadoras de servios em razo de convnios
firmados com empresas de seguros, de planos de sade, empregadores
ou a seguridade social que indicam os profissionais massivamente pro-
curados nestes campos de atuao, entre outras tantas reas de seme-
lhantes prestadores de servios.17
Existe toda uma tendncia de os profissionais trabalharem
associados com outros colegas de profisso. Trata-se de verdadeiras
empresas formadas por grupos de profissionais liberais, como mdi-
cos, engenheiros, advogados, arquitetos, publicitrios, contabilistas,
esteticistas, profissionais do teatro ou agentes de seguros, apenas para
citar alguns, cuja vasta gama de prestadores de servios se diferenciam
por seu carter personalssimo, os quais constituem, em conformidade
com o artigo 997 do Cdigo Civil, uma sociedade simples, dedicada
profisso intelectual, cientfica, literria, artstica ou cultural.
Muitas se sujeitam aos seus prprios estatutos, como acontece
com a sociedade de advogados, vinculada ao Estatuto da Advocacia
e da Ordem dos Advogados do Brasil, e constituda a sociedade por
alguns profissionais que compem o seu quadro social, podendo con-
tratar outros advogados. Esta sociedade prestadora de servios cons-
tri com tempo, trabalho personalizado e o talento pessoal dos scios
a sua carteira de clientes, que trar fama e inquestionveis benefcios
financeiros para a sociedade.18
As sociedades personalistas de prestao de servios profis-
sionais, identificadas no Cdigo Civil como sociedades simples, tm,
juntamente com a sua carteira de clientes afastada pelo Direito, a sua
participao societria da comunho de bens conjugais, conforme
tem-se pronunciado a jurisprudncia, inclusive do Superior Tribunal
de Justia, e a doutrina, por serem consideradas atividades econmicas
no empresariais, voltadas ao labor cientfico e intelectual, em mister
inerente ao prprio profissional prestador do servio, estando, por-
tanto, fora do comrcio e, por isso, suas participaes societrias no
se compartem com o outro cnjuge ou convivente, uma vez sobrevindo
a dissoluo da entidade familiar, de modo que, a capacidade laboral
17
LVAREZ, Germn Bercovitz apud MADALENO, Rolf. O fundo de comrcio do profissional
liberal na meao conjugal. In: MADALENO, Rolf. Novos horizontes no direito de famlia. Rio
de Janeiro: Forense, 2010, p. 9.
18

do cnjuge ou convivente scio de uma sociedade simples continuar
capitalizando como bem privativo apenas do seu titular.19
Nessa modalidade de sociedade prestadora de servios profis-
sionais, fundada no esforo comum dos scios, a atividade prestada
tem carter essencialmente personalssimo, vinculada a cada um dos
profissionais componentes do seu quadro social, servindo a personali-
dade jurdica unicamente para o rateio dos custos operacionais.20
3EMPRESRIO
Nos termos do artigo 966, do Cdigo Civil, considera-se empre-

srio quem exerce profissionalmente atividade econmica organi-
zada para a produo ou a circulao de bens ou de servios, abstrado
deste conceito, como antes visto, aquele que exerce profisso inte-
lectual (CC, pargrafo nico do art. 966). Desse enquadramento no
se afasta Srgio Campinho da tarefa de identificar, como empresrio,
a pessoa fsica ou jurdica que exerce com habitualidade e escopo de
lucro, atividade econmica organizada para a produo ou a circulao
de bens ou de servios no mercado.21
Para Marlon Tomazette empresrio aquele que exerce pro-
fissionalmente a atividade econmica organizada para a produo
ou a circulao de bens ou servios, e pode ser tanto a pessoa fsica
do empresrio individual quanto uma pessoa jurdica na condio de
sociedade empresria, valendo-se do seu estabelecimento, que sua
empresa, composta de um conjunto de bens materiais e imateriais que
o empresrio rene para a explorao de sua atividade econmica.22
So quatro elementos que se fazem presentes na caracterizao
do empresrio: a) o profissionalismo, que se relaciona com a habituali-
dade do desenvolvimento da atividade no sendo espordica; b) o exer-
ccio de uma atividade econmica que possa cobrir os seus prprios
custos, ainda que no alcance uma correlata finalidade lucrativa; c) a
organizao, no sentido de coordenar trabalho e capital, para a produ-
o de bens e servios, e, finalmente, d) com o propsito de produo
19
LVAREZ, Grman Bercovitz. Los derechos inherentes a la persona en la sociedad de ganan-
ciales. Navarra: Arazandi, 2003, p. 56.
20
Apelao Cvel. Dissoluo de sociedade civil. Prestao de servio em hospital. Intuitu
personae. Fundo de comrcio. Irrelevante e invivel sua avaliao. Apelao procedente. As
sociedades de profissionais servem como instrumento de rateio de custos operacionais dos
scios, sendo fundamentadas no esforo comum, em nvel de trabalho pessoal, do porque
impossvel e invivel a avaliao do fundo de comrcio. (TJPR, 6a Cmara Cvel, AC n.
0202977-8, Londrina, rel. Des. Maria Jos de Toledo Marcondes Teixeira, j. em 15.04.2003).
21
Renovar, 2003, p. 14.
22
TOMAZETTE, Marlon. Direito societrio. So Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 9-10.

ou circulao de bens e servios, pois esta a atividade do empres-
rio, de intermediar e fazer circular o bem, como tambm inclui todos
aqueles que esto envolvidos com o processo de produo de bens e de
riquezas.23
Em realidade, o empresrio no exerce profisso que permita a
ele mesmo produzir, circular bens ou prestar servios, tal como sucede
nas empresas individuais, esclarecem Newton de Lucca, Rogrio Mon-
teiro, J. A. Penalva Santos e Paulo Penalva Santos, mas deve ser conce-
bido como aquele que, por estar no comando, estabelece e faz cumprir
regras e diretrizes que permitam alcanar os objetivos traados pela
empresa, pois se responsabiliza pelo bom funcionamento da sociedade
empresria e toma a iniciativa de reunir fatores de produo visando
explorao de atividade lucrativa.24
Portanto, empresrio o titular da empresa, pessoa natural ou
jurdica, que assume o risco da atividade para lucrar ou para respon-
der pelos prejuzos causados a terceiros, sendo a sociedade empres-
ria a pessoa jurdica constituda de acordo com os tipos previstos em
lei (sociedade em conta de participao, sociedade em nome coletivo,
sociedade em comandita simples, sociedade limitada, sociedade an-
nima e a sociedade em comandita por aes).25
4SOCIEDADE EMPRESRIA
Para Wilges Bruscato, a sociedade empresria representa toda a

pessoa jurdica de natureza privada, que tem por objeto a explorao
de atividade empresarial em busca do lucro, reunindo a sociedade duas
ou mais pessoas que se associam para fim de explorao comercial,
industrial ou de servios, e arremata dizendo que a sociedade pode ser
empresria ou simples.26 Uma sociedade empresria pode ser constitu-
da em conformidade com um, entre os variados tipos sociais existen-
tes, mas sempre que o objeto da sociedade no for caracteristicamente
empresarial ser considerada uma sociedade simples.
Portanto, a sociedade pode ser simples ou empresria, de acordo
com a natureza da atividade que explore e, a partir da sua formao ela
se torna titular de direitos e deveres, no devendo ser confundida com
23
WALD, Arnold; TEIXEIRA, Slvio de Figueiredo (Coord.). Comentrios ao novo Cdigo Civil.
Livro II Do direito de empresa. Rio de Janeiro: Forense, v. XIV, 2005, p. 37-44.
24
LUCCA, Newton de; MONTEIRO, Rogrio; SANTOS, J. A. Penalva; SANTOS, Paulo Penalva.
In: ALVIM, Arruda; ALVIM, Thereza (Coord.). Comentrios ao Cdigo Civil brasileiro. Do
direito de empresa. Rio de Janeiro: Forense, v. IX, 2005, p. 109.
25
VEROSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial. So Paulo: Malheiros, v.
2, 2006, p. 155.
26
BRUSCATO, Wilges. Manual de direito empresarial brasileiro. So Paulo: Saraiva, 2011, p. 165.

o estabelecimento, nem com a empresa, nem com a firma, nem com os
scios.27
Ademais disso, as sociedades empresrias podem ser classifi-
cadas como contratuais, quando o ato constitutivo um contrato, ou
estatutrias ou institucionais, quando o ato de constituio advm da
criao de um estatuto. Podem ser sociedades de pessoas ou de capi-
tal e de responsabilidade limitada, de responsabilidade ilimitada ou
originrias de um regime misto de responsabilidade, sendo esta res-
ponsabilidade relacionada aos scios e no sociedade, porquanto, a
responsabilidade da sociedade ser sempre irrestrita.
Sociedade empresria ser, portanto, toda aquela atividade eco-
nmica voltada para a produo ou a circulao de bens ou de servios,
com exceo da atividade econmica intelectual (cientfica, literria,
artstica ou cultural), pois esta uma sociedade simples, correspon-
dente anterior sociedade civil, desde que esta atividade cientfica,
literria, artstica ou cultural seja predominante e no apenas um ele-
mento da empresa, pois como esclarece Haroldo Verosa, na medida
em que uma atividade econmica intelectual cede o seu lugar de evi-
dncia dentro de outra atividade voltada para a produo ou a circula-
o de bens ou de servios, ela fica integrada em uma empresa, que ao
seu turno, tutela esta atividade que perde sua proeminncia.28
Vale mais uma vez recorrer lio de Alfredo de Assis Gonalves
Neto, quando diz que, figurando no contrato social que determinada
sociedade tem por objeto o exerccio de atividade intelectual, ela ser
uma sociedade simples, pouco importando o seu tipo social, qual seja,
a opo por outro tipo social no afasta a natureza simples da socie-
dade, consoante o Enunciado 57 da Comisso de Direito de Empresa29
(I Jornada de Direito Civil do STJ setembro de 2002).30
J na III Jornada de Direito Civil foram editados os novos Enun-
ciados de nmeros 193, 194 e 195 e que seguiram a mesma direo, dis-
tinguindo a atividade intelectual realizada em sociedade da atividade
do empresrio.31
27
BRUSCATO, Wilges. Manual de direito empresarial brasileiro. So Paulo: Saraiva, 2011, p. 165.
28
2, 2006, p. 61-62.
29
Enunciado 57. Art. 983 A opo pelo tipo empresarial no afasta a natureza simples da
sociedade.
30
31
Enunciado 193. Art. 966: O exerccio das atividades de natureza exclusivamente intelectual
est excludo do conceito de empresa.
Enunciado 194. Art. 966: Os profissionais liberais no so considerados empresrios, salvo se
a organizao dos fatores de produo for mais importante que a atividade pessoal

5SOCIEDADE SIMPLES
No passado, as sociedades empresrias e sociedades simples

eram classificadas como sociedades comerciais e sociedades civis,
quando em 2002, o vigente Cdigo Civil derrogou a antiga classifi-
cao. A sociedade civil era destinada prtica de atos civis, como a
prestao de servio de uma sociedade imobiliria, por exemplo, e a
sociedade comercial tinha por finalidade a prtica de atos de comr-
cio, no significando para Sebastio Jos Roque que a sociedade civil
tivesse sido meramente substituda pela sociedade simples na atual
legislao, pois, em realidade, trata-se de sociedades distintas e dife-
rentes, embora tenham muitas caractersticas comuns.32
Carlos Henrique Abro refere que a sociedade simples modelo
societrio endereado aos profissionais intelectuais, no organizados
empresarialmente, e aos pequenos empresrios, servindo como ferra-
mentas subsidirias s denominadas sociedades de pessoas,33 qual seja,
tanto a sociedade empresria como a sociedade simples exercem ativi-
dade econmica, mas na sociedade empresria a atividade econmica
est organizada para a produo ou circulao de bens e servios, ao
passo que na sociedade simples esto inseridas aquelas atividades eco-
nmicas de natureza intelectual, cientfica ou artstica (CC, art. 966,
pargrafo nico), salvo se constiturem apenas elemento da empresa e
no sua atividade principal.
A expresso elemento de empresa refere-se, diz Manuel Igncio
Torres Monteiro, a situaes em que a atividade profissional intelec-
tual, cientfica, literria, cultural ou artstica absorvida pela atividade
empresarial, da qual estas se tornariam um mero elemento e, portanto,
para que essas sociedades fossem consideradas empresrias, seria
necessria a existncia de uma estrutura empresarial, na qual tercei-
ros no scios ou empregados concorressem para a execuo da ativi-
dade fim, e, de outro lado, os scios tambm exercessem atividades de
coordenao dos fatores de produo.34
Por isso mesmo que Sebastio Jos Roque afirma de forma cate-
grica que as sociedades simples s podem se ocupar das atividades
desenvolvida.
Enunciado 195. Art. 966: A expresso elemento de empresa demanda interpretao econ-
mica, devendo ser analisada sob a gide da absoro da atividade intelectual, de natureza
cientfica, literria ou artstica, como um dos fatores da organizao empresarial.
32
ROQUE, Sebastio Jos. Da sociedade simples. So Paulo: cone, 2011, p. 18.
33
ABRO, Carlos Henrique. Sociedade simples. 2. ed. So Paulo: Atlas, 2012, p. 6-7.
34
MONTEIRO, Manoel Igncio Torres. Prestao de servios artsticos, cientficos e literrios
atravs da sociedade empresria. In: ANAN JR., Pedro; PEIXOTO, Marcelo Magalhes (Coord.).
Prestao de servios intelectuais por pessoas jurdicas. Aspectos legais, econmicos e tribu-
trios. So Paulo: MP Editora, 2008, p. 53.

primrias e tercirias, nunca das secundrias.35 A atividade primria
compreende a extrao de produtos naturais pelo ser humano, como
o pescador que vende o peixe, o agricultor que colhe os produtos da
natureza, enquanto a atividade secundria mais evoluda, porquanto
o ser humano modifica a natureza dos produtos e neles opera uma
transformao, por meio da indstria, surgindo a atividade terciria na
prestao de servios, usualmente especializados, ou seja, executados
com aprimoramento e perfeio constantes.36
5.1Peculiaridades da sociedade simples
Segundo Sebastio Jos Roque, a sociedade simples aplicada s

empresas que se dedicam s atividades tercirias, ou seja, prestao
de servios, tendo seu registro no Cartrio de Registro Civil das Pes-
soas Jurdicas e no no Registro de Empresas, sendo seu objeto social a
prestao de servios tais como limpeza, vigilncia, propaganda, assis-
tncia mdica e odontolgica, promoo de eventos, contabilidade,
instalaes industriais e domsticas, existindo uma relao de servi-
os prprios da sociedade simples, regulada pela Lei Complementar
n. 116/2003, como tambm integram esta modalidade a informtica,
a veterinria, os cuidados pessoais como a barbearia, cabeleireiras,
manicure, pedicure, esttica fsica, tratamento de pele, depilao,
sauna, massagens, ginstica, esportes, natao, artes marciais e ativi-
dades fsicas similares. Tambm no campo do turismo, como excurses,
passeios, viagens e guias de turismo, na rea do lazer, como espetcu-
los teatrais, circenses, programas de auditrio, parques de diverses,
bal, danas, bailes, peras, concertos, recitais, congressos, desfiles,
casas de espetculos e congneres, ou atividades artsticas, como des-
files de blocos carnavalescos ou folclricos, trios eltricos, musicais,
festas e eventos de qualquer natureza, servios relativos fonografia
ou fotografia, gravao de sons e assim por diante. Servios bancrios,
locao de cofres, terminais eletrnicos, servios de cadastro, arren-
damento mercantil, servios relacionados a cobranas, recebimentos
ou pagamentos em geral, protesto de ttulos e demais servios corre-
lacionados, servios de operaes de cmbio, como tambm so con-
sideradas sociedades simples aquelas que prestam servios de apoio
tcnico, administrativo, jurdico, contbil, comercial e congneres,
franquia, pericias, laudos, exames tcnicos e anlises tcnicas, leilo,
advocacia, arbitragem, auditoria, aturia e clculos tcnicos, contabi-
lidade, consultoria econmica ou financeira, estatstica, apresentao
de palestras, conferncias e seminrios, como tambm servios pres-
tados na rea de seguros, tais como contratos de seguros, inspeo e
ROQUE, Sebastio Jos. Da sociedade simples. So Paulo: cone, 2011, p. 19.

35
ROQUE, Sebastio Jos. Da sociedade simples. So Paulo: cone, 2011, p. 19-20.

36

avaliao de riscos para cobertura de contratos de seguros, preven-
o e gerncia de riscos segurveis. Servios de transportes de natu-
reza municipal, servios de explorao de rodovia mediante cobrana
de pedgio dos usurios, servios porturios, ferroporturios, aero-
porturios, de terminais rodovirios e metrovirios. Ainda no setor
da comunicao, com propaganda e publicidade, servios de reporta-
gem, assessoria de imprensa, jornalismo e relaes pblicas, progra-
mao, comunicao visual, desenho industrial. Servios de chaveiros,
confeco de carimbos, placas de sinalizao visual, banners, adesivos,
administrao de feiras. Agreguem-se os servios relativos a engenha-
ria, arquitetura, geologia, urbanismo, construo civil, manuteno,
limpeza, meio ambiente, saneamento, paisagismo, demolio, repara-
o, conservao e reforma de edifcios, colocao e instalao de car-
petes, tapetes, assoalhos, cortinas, revestimentos de paredes, vidros,
divisrias, placas de gesso e similares.
Sebastio Jos Roque ainda acrescenta em conformidade com a
Lei Complementar n. 116/2003 os servios de educao, ensino, orien-
tao pedaggica e educacional, instruo, treinamento e avaliao
pessoal, ensino regular pr-escolar, fundamental, mdio e superior. A
intermediao, com o agenciamento, corretagem de cmbio, de segu-
ros (Lei n. 4.594/1964 que regulamenta a profisso do corretor de
seguros), de cartes de crdito, de planos de sade e de planos de pre-
vidncia privada, de ttulos em geral, valores mobilirios, contratos de
leasing, franchising e factoring. A guarda de bens, estacionamento,
armazenamento, vigilncia e congneres, servios de escolta, de lim-
peza e manuteno, servios de coleta, remessa ou entrega de corres-
pondncias, documentos, objetos, bens ou valores, alm de servios
funerrios, de assistncia social, de biblioteconomia, de biologia e qu-
mica, servios tcnicos de eletrnica, eletrotcnica, mecnica, teleco-
municaes e congneres, servios de registros pblicos, cartorrios e
notariais.37
Haroldo Verosa j disse que a sociedade simples tem dupla rou-
pagem facultativa, pois pode se organizar segundo suas prprias regras
(CC, arts. 997 a 1.038), ou pode adotar a forma de quaisquer outras
sociedades que no a annima e a em comandita por aes,38 e nem
por isso deixar de ser uma sociedade simples, o que inclusive deflui
do pargrafo nico do artigo 982 e do caput do artigo 983, ambos do
Cdigo Civil.39
37
ROQUE, Sebastio Jos. Da sociedade simples. So Paulo: cone, 2011, p. 33-46.
38
2, 2006, p. 73.
39
Art. 982 (...) Pargrafo nico. Independentemente de seu objeto, considera-se empresria a
sociedade por aes; e, simples, a cooperativa.
Art. 983. A sociedade empresria deve constituir-se segundo um dos tipos regulados nos arts.

Nem foi outra a concluso levada a efeito durante a I Jornada de
Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judicirios do Con-
selho da Justia Federal, no perodo de 11 a 13 de setembro de 2002,
quando aprovado o Enunciado 57.40
Esta outra caracterstica da sociedade simples, que pode se
utilizar de diferentes formas societrias, exceto das sociedades por
aes, cometendo exaltar a lio de Arnoldo Wald quando mostra que
existem dois regimes: o da sociedade simples pura, ou seja, aquela que
se formaliza adotando, na sua integralidade, as normas institudas nos
artigos 997 a 1.038 do Cdigo Civil, e o das sociedades simples que ado-
taram um regime de sociedade empresria, mantendo, todavia, a sua
natureza de sociedade simples.41
Daquilo at agora visto, fcil concluir que sero simples as
demais sociedades, que tenham por objeto atividades prprias de pro-
fisso intelectual, como as ligadas s cincias, literatura, artes, salvo se
o exerccio de tais atividades constituir elemento de empresa. A inten-
o do legislador foi demonstrar que tais atividades, uma vez exercidas
intuitu pesonae, classificam-se como simples e que, na verdade, a pre-
sena do scio ou do empresrio individual, diante de seu empreendi-
mento no caracteriza o chamado elemento de empresa, prprio das
atividades tipicamente empresrias.42
A sociedade simples tem por caractersticas: a) ser uma socie-
dade de pessoas; b) adquire personalidade jurdica aps o registro do
contrato social no Registro Civil de Pessoas Jurdicas; c) a atividade
exercida por qualquer scio e d) possui natureza intelectual, cientfica,
literria, artstica ou cultural. Outra especificidade da sociedade sim-
ples consta do artigo 999 do Cdigo Civil, exigindo o consentimento de
todos os scios, ou seja, a unanimidade para as alteraes que tenham
por votao temas como: denominao, objeto social, alterao de quo-
tas e modo de realizao das quotas no capital, alterao da prestao
do scio que contribui com servios, alterao dos administradores,
alterao na participao de lucros e nas perdas e sobre a responsa-
bilidade pelas obrigaes sociais,43 sendo que a responsabilidade dos
1.039 a 1.092; a sociedade simples pode constituir-se de conformidade com um desses tipos, e,
no o fazendo, subordina-se s normas que lhe so prprias.
40
Enunciado 57 Art. 983: A opo pelo tipo empresarial no afasta a natureza simples da
sociedade.
41
WALD, Arnold; TEIXEIRA, Slvio de Figueiredo (Coord.). Comentrios ao novo Cdigo Civil.
Livro II Do direito de empresa. Rio de Janeiro: Forense, v. XIV, 2005, p. 83.
42
MADALENO, Rolf; OHIRA, Bibiana Brum. Sociedade entre cnjuges: aplicao do artigo 977
do CC/2002 s sociedades simples. Revista O Direito, Lisboa: Almedina, v. 147, 2015, p.
146-147.
43
QUITANS, Luiz Cezar P. Sociedades empresrias e sociedades simples. Teoria e prtica
empresarial. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2006, p. 59.

scios na sociedade simples ilimitada, na proporo das quotas que
possurem e, portanto, se os bens da sociedade no forem suficientes
para cobrirem as dvidas da sociedade, o saldo ser de responsabili-
dade de todos os scios, de forma ilimitada e solidariamente (CC, art.
1.023).44
5.2Caractersticas da sociedade profissional
Era tradio do Direito que os profissionais liberais no podiam

exercer sua profisso guiados pelo nimo do lucro, sendo questionada
a idoneidade do modelo societrio. Mostra Ascensin Leciena Ibarra,
que tais argumentos no mais se sustentam, pois seria um absurdo
negar que o profissional no queira ganhar dinheiro com a sua profis-
so, precisando apenas no permitir que o nimo do lucro no inter-
fira no desempenho de seu labor, ou em outras palavras, que a nsia
do lucro no permita ao cliente duvidar da capacidade e empenho do
profissional.45
A personalidade jurdica surge nestas sociedades simples como
um atributo natural, desenhadas com vocao para cumprir o fim
social que os scios realizam em conjunto, ou individualmente alguns
deles mirando o exerccio de uma profisso colegiada, ou buscando
pela via societria uma organizao com personalidade jurdica cha-
mada a exercer a mesma profisso ou ofcio que exerceria isolada-
mente o prestador de servios, ou um profissional liberal, apenas que o
faz abaixo de uma denominao social, e a prestao profissional ser
coordenada e distribuda sua execuo entre os scios, que buscam na
sociedade simples as vantagens da atuao em sociedade.
O objeto social ser exclusivamente a prestao de servios pro-
fissionais desenvolvidos por meio de sociedades constitudas pelo tipo
societrio simples, assim como sero atendidas as normas profissionais
vigentes, como so os casos dos estatutos profissionais, por exemplo,
das sociedades de advogados. A constituio de sociedades profissio-
nais permite buscar capital necessrio para que os scios iniciem e
realizem sua atividade, como permite que adiram sociedade outros
profissionais de reas igualmente afins, trazendo seus conhecimentos
e ofertando uma outra modalidade profissional que amplia a gama de
servios prestados, como sucederia, por exemplo, em uma sociedade
de advogados atuando no direito de famlia, no direito empresarial, no
44
QUITANS, Luiz Cezar P. Sociedades empresrias e sociedades simples. Teoria e prtica
empresarial. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2006, p. 63.
45
IBARRA, Ascensin Leciena. Concecpto de sociedad profesional y mbito de aplicacin. In:
GARCA, Beln Trigo; SANTAS, Javier Framin (Coord.). Estudios sobre sociedades profesio-
nales. La Ley 2/2007, de 15 de marzo, de Sociedades Profesionales. Madrid: Marcial Pons,
2009, p. 63-64.

direito tributrio e previdencirio e oferecendo aos clientes um maior
leque de servios que talvez no mais pudessem, nos dias de hoje, ser
ofertados apenas por um profissional liberal.
5.3Pessoa jurdica e prestao de servios
Como antes visto, a legislao brasileira no considera empres-

rio quem exerce profisso intelectual, de natureza cientfica, literria,
artstica ou cultural, ainda que com o concurso de auxiliares ou cola-
boradores, e para que esta atividade fosse efetivamente considerada
empresria, seria necessrio uma estrutura nitidamente empresarial,
como alertam os Enunciados da III Jornada de Direito Civil do Conse-
lho de Justia Federal.
Por conta disso, o Enunciado 194 concluiu que: Os profissio-
nais liberais no so considerados empresrios, salvo se a organizao
dos fatores de produo for mais importante que a atividade pessoal
desenvolvida.
Por sua vez, o Enunciado 195 ultimou que: A expresso elemento
de empresa demanda interpretao econmica, devendo ser analisada
sob a gide da absoro da atividade intelectual, de natureza cientfica,
literria ou artstica, como um dos fatores da organizao empresarial.
Tendo sido estabelecido o conceito de sociedade empresria e
de sociedade no empresria, precisamente, no mbito da legisla-
o tributria, a Lei n. 11.196, de 21 de novembro de 2005, dispe em
seu artigo 129 que: Para fins fiscais e previdencirios, a prestao de
servios intelectuais, inclusive os de natureza cientfica, artstica ou
cultural (a atividade cultural no mencionada no Cdigo Civil), em
carter personalssimo ou no, com ou sem a designao de quaisquer
obrigaes a scios ou empregados da sociedade prestadora de servi-
os, quando por esta realizada, se sujeita to somente legislao apli-
cvel s pessoas jurdicas, em prejuzo da observncia do disposto no
art. 50 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 Cdigo Civil.
Essas sociedades simples de prestao de servios profissio-
nais so, portanto, tributadas pelo imposto de conformidade com as
normas aplicveis s demais pessoas jurdicas, porquanto, a natureza
intelectual de um trabalho no a torna incompatvel com a ideia de ati-
vidade econmica.46
ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Anlise estrutural e teleolgica do enunciado do art. 129
46
da Lei n. 11.196/05. In: ANAN JR., Pedro; PEIXOTO, Marcelo Magalhes (Coord.). Prestao de
servios intelectuais por pessoas jurdicas. Aspectos legais, econmicos e tributrios. So
Paulo: MP Editora, 2008, p. 502.

5.3.1Servio intelectual de natureza cientfica, artstica e cultural
O conceito de profisso intelectual dado por Sylvio Marcon-

des, para quem, os profissionais intelectuais so aqueles que produzem
bens ou servios sem que haja fatores de produo.
H, porm, pessoas que exercem profissionalmente uma ativi-
dade criadora de bens ou servios, mas no devem e no podem ser
considerados empresrios referimo-nos s pessoas que exercem
profisso intelectual pela simples razo que o profissional intelectual
pode produzir bens, como fazem os artistas; podem produzir servios,
como fazem os chamados profissionais liberais; mas nessa atividade
profissional, exercida por essas pessoas, falta aquele elemento de orga-
nizao dos fatores da produo; porque na prestao desse servio
ou na criao desse bem, os fatores de produo, ou a coordenao de
fatores, meramente acidental; o esforo criador se implanta na pr-
pria mente do autor, que cria o bem ou o servio. Portanto, no podem
embora sejam profissionais e produzam bens ou servios ser consi-
derados empresrios.47
A Lei tributria n. 11.196/2005, em seu artigo 129, informa que,
mesmo os servios intelectuais de carter personalssimo podem ser
prestados por intermdio de uma sociedade e amplia a expresso de
profisso intelectual para servios intelectuais, conferindo espectro
mais largo daquele aludido pelo artigo 966, pargrafo nico do Cdigo
Civil, que faz aluso apenas profisso intelectual, como ainda acres-
centa a atividade cultural que no mencionada no pargrafo nico do
artigo 966 do Cdigo Civil, lembrando Edmar Oliveira Andrade Filho
que, a palavra cultura engloba as ideias de artes e tudo quanto til
ou estimado por uma determinada comunidade, de forma que fica dif-
cil estabelecer uma situao em que um servio ou uma utilidade no
possa ser enquadrado como cientfico, artstico ou cultural.48
47
MARCONDES, Sylvio. Questes de direito mercantil. So Paulo: Saraiva. 1997, p. 11 apud
ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Anlise estrutural e teleolgica do enunciado do art. 129 da
Lei n. 11.196/05. In: ANAN JR., Pedro; PEIXOTO, Marcelo Magalhes (Coord.). Prestao de
48
ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Anlise estrutural e teleolgica do enunciado do art. 129
da Lei n. 11.196/05. In: ANAN JR., Pedro; PEIXOTO, Marcelo Magalhes (Coord.). Prestao de

6DIREITOS INERENTES PESSOA E O REGIME DA COMUNHO DE
BENS
Como at agora visto, o pargrafo nico do artigo 966 do Cdigo

Civil afasta da definio de empresrio quem exerce atividade inte-
lectual, cientfica, literria ou artstica, mesmo que organizado com
concurso de auxiliares e, ainda que os escritrios ou consultrios pro-
fissionais guardem semelhana com a estrutura empresarial e atuem
com esprito empreendedor tpico de uma empresa, valendo-se de
conceitos de clientela e de aviamento, ainda assim no se trata de uma
sociedade empresria.
Os profissionais liberais e outras profisses que se encontram na
mesma situao, esto cada vez mais distantes de uma atividade labo-
ral isolada e, em verdade, esto cada vez mais socializando seus ser-
vios, migrando para sociedades prestadoras de servios, em razo
de convnios de sociedades firmados por um grupo de advogados, ou
uma coligao de mdicos, dentistas ou arquitetos, dentre uma diver-
sificada gama de ocupaes e ofcios que buscam na associao com
outros colegas de carreira constiturem por meio da sociedade sim-
ples, atividades prprias de profisso intelectual, cientfica, literria,
artstica ou cultural.
Nessa modalidade de sociedade prestadora de servios profis-
sionais, fundada no esforo comum dos scios, a atividade prestada
tem carter essencialmente personalssimo, vinculada a cada um dos
profissionais do quadro social, servindo a personalidade jurdica uni-
camente para o rateio dos custos operacionais dos scios, sendo fun-
damentadas no esforo comum.
Nos termos do artigo 1.659, inciso V e artigo 1.668, inciso V, do
Cdigo Civil, nos regimes da comunho parcial de bens e da comu-
nho universal de bens, no se comunicam os bens de uso pessoal,
nem os livros e instrumentos de profisso, porquanto representam os
bens privativos de cada cnjuge ou convivente, e carregam um car-
ter personalssimo. Tambm o Direito espanhol exclui da partilha no 5
nmero do artigo 1.346 do seu Cdigo Civil, dedicado aos bens e direi-
tos patrimoniais inerentes pessoa e os no transmissveis inter vivos.
Essa aderncia da atividade pessoa motiva uma derrogao ao
princpio da comunidade, porquanto, justamente este critrio da ine-
rncia ou de aderncia pessoa que garante a proteo patrimonial
de cada cnjuge ou convivente, que depende de seu trabalho para a
sua subsistncia, mesmo que trabalhe em sociedade, permitindo que
no fique privado dos seus instrumentos de trabalho com a dissoluo
da seu casamento ou da sua unio estvel. O fundamento desta norma
encontra-se na necessidade de garantir independncia ao exerccio

da profisso ou do ofcio do cnjuge ou convivente no mbito da eco-
nomia familiar, e advm de uma estreita vinculao intuitu personae
do cnjuge ou convivente profissional liberal ou prestador de servios
com a sua clientela.
O propsito ntido dessa disposio est no enquadramento
dos chamados bens privativos personalssimos, resultando da inter-
pretao do efeito de comunicao ou no de uma sociedade simples,
porquanto, sendo inerentes atividade profissional do cnjuge ou con-
vivente estas atividades mesmo exercidas em sociedade esto fora do
comrcio, dado que seus direitos econmicos se traduzem na explora-
o da obra, ou do produto da inteligncia do cnjuge ou convivente,
atividades, portanto, vinculadas s pessoas s quais se interligam e
com as quais se identificam, embora se comuniquem os proventos do
trabalho de cada cnjuge, contrariando o caminho inverso apontado
pelo inciso VI, do artigo 1.659 do Cdigo Civil.
Decorrncia dessas ocupaes profissionais de cunho intelec-
tual, cientfico, literrio, cultural ou artstico, de cunho personals-
simo via de regra a construo de uma clientela que se desenvolve
a merc das aptides e das qualidades pessoais desses profissionais
que compem a sociedade e que se tornam da confiana da sua fre-
guesia, quando no o seja da clientela de um escritrio de engenharia,
de arquitetura, ou de um escritrio de contabilidade, de advocacia, ou
ainda de um consultrio mdico, ou at mesmo de uma clnica mdica
constituda a partir da associao de vrios doutores, ou de dentistas,
formando uma clnica dentria, de fisioterapeutas, podendo se cons-
tituir de uma clnica de esttica, de um grupo de teatro formado por
atores e tantos outros prestadores de servios que se unem em socie-
dades simples organizadas com objetivos igualmente econmicos, no
exerccio conjunto de uma atividade intelectual, cientfica, literria,
cultural ou artstica. Trata-se de um empreendimento pertencente
exclusivamente aos titulares dessa sociedade, e que nada guarda da
figura de uma empresa, com scios empresrios, mas sim de profissio-
nais liberais, artistas, literrios, msicos e tantos outros profissionais
que no comercializam suas profisses, mas, ao contrrio, as exer-
cem tambm com o fim do lucro e na forma societria, mas que esto
longe de serem identificados como empresrios, pois prestam servi-
os inerentes sua pessoa, como uma profisso intelectual, cientfica,
literria, artstica ou cultural, e no como uma atividade empresarial,
prestando servios que no podem alienar, ceder ou gravar. Entram
igualmente nesta categoria os bens e direitos que surgem em virtude
de contratos de artistas e desportistas, em ateno s suas circuns-
tncias personalssimas, que concorrem com determinados sujeitos e
que conferem situaes de poder intransferveis, caracterizando-se
como bens privativos, que no integram a massa patrimonial conjugal,

embora os rendimentos econmicos auferidos durante o casamento
sejam considerados comuns por serem fruto do trabalho.49
No caso dos profissionais prestadores dos mais variados servi-
os, os bens necessrios para o exerccio da atividade tm sempre uma
funo secundria, pois o principal o trabalho que a pessoa exerce
como qualquer profissional, independente de que tambm necessite
de um espao fsico para desenvolver sua profisso, e de determinado
instrumental para realizar o fim de sua ocupao, mas isso no sig-
nifica afirmar que o seu trabalho e que a aplicao de seus conheci-
mentos profissionais devam ser considerados como sendo imanentes a
uma atividade empresarial, como tampouco o entorno do qual se uti-
lizam esses prestadores de servios possa ser considerado um estabe-
lecimento mercantil,50 dado a prpria natureza personalssima da sua
atividade o prestador de servios no se despersonaliza quando exerce
seu ofcio por meio da pessoa jurdica de uma sociedade simples, que
por igual permite que cada cnjuge ou convivente siga desenvolvendo
sua profisso aps a dissoluo do seu casamento, ou da sua unio
estvel e correlato trmino do regime de comunidade de bens.
Por isso a pertinncia do arremate doutrinrio de Antonio Javier
Perz Martn, quando diz que os dotes e as capacidades de cada sujeito
para o trabalho, a liberdade mesmo desse seu trabalho, sua aptido
pessoal e as naturais consequncias esto to vinculadas aos direitos
de personalidade que, em sua pureza conceitual, no cabe mais nada
do que consider-los bens privativos, de forma que, empresa e estabe-
lecimento no incluem profisso, pois por empresa h de se entender
aquela atividade organizada e dirigida por uma pessoa para a produo
de bens e servios, enquanto que o estabelecimento alude a uma uni-
dade patrimonial com vida prpria e suscetvel de ser imediatamente
explorada, do que se deduz que seu carter muito mais pessoal.51
O fundamental a dedicao do sujeito, sua vinculao ao ser-
vio prestado, sendo meramente acessrios os elementos ou os bens
dos quais ele se utiliza e precisa para desenvolver a sua atividade, at
o ponto em que os frutos do seu negcio so os mesmos que os rendi-
mentos de seu trabalho pessoal, e que terminam por se confundir de
49
DOMNECH, Javier Barcel. De los bienes privativos y comunes. In: ALBESA, J. Rams; MAR-
TNEZ, J. A. Moreno (Coord.). El rgimen econmico del matrimonio. Madrid: Dykinson, 2005,
p. 283.
50
MARTN, Antonio Javier Prez. Tratado de Derecho de familia. Regmenes econmicos
matrimoniales. Constitucin, funcionamento, disolucin y liquidacin. Valladolid: Lex Nova, t.
V, v. 1, 2009, p. 606.
51
V, v. 1, 2009, p. 607.

tal forma que, se no fosse pelo seu esforo estes ingressos financeiros
no se produziriam.52
7DECLARAO JUDICIAL DE INCOMUNICABILIDADE DE SOCIEDADE

SIMPLES
A sociedade simples tem por objeto atividade prpria de cunho

intelectual, literrio, artstico ou cultural exercida intuitu personae, e
assim, mesmo que operem por meio de uma pessoa jurdica no produ-
zem bens ou mercadorias e, tampouco tm um nome empresarial, uma
marca ou propriedade comercial e imaterial, tirante a sua clientela,
porquanto, suas atividades esto intrinsecamente vinculadas pes-
soa do profissional prestador de um servio que investe em seu pr-
prio capital humano, vendendo sua capacidade intelectual, seu talento
nico e com seu labor personalizado gera a criao de sua clientela.
E, como sociedade simples, sua carteira de clientes fica afastada da
comunho de bens conjugais por ser considerada funo econmica
no empresarial, inerente e vinculado ao profissional, no mercantili-
zado, fora de comrcio e, portanto, no se comparte com o outro con-
sorte uma vez sobrevindo a dissoluo da entidade familiar.
Nessa modalidade de sociedade prestadora de servios fundada
no esforo comum dos scios, as atividades prestadas pelos scios e
pela sociedade tm carter personalssimo extensivo a cada um dos
profissionais que compem o quadro social, servindo a personalidade
jurdica unicamente para o rateio dos custos operacionais e das vanta-
gens tributrias, como mostra a jurisprudncia brasileira dos tribunais
estaduais e superiores.53
52
V, v. 1, 2009, p. 607.
53
Embargos Infringentes. Sobrepartilha. Cotas sociais. Sociedade de Advocacia. Descabi-
mento. No so partilhveis as cotas da sociedade de advogados, que sociedade personalista
de prestao de servios profissionais, identificadas no Cdigo Civil como sociedades sim-
ples, dedicadas ao exerccio da profisso de seus integrantes, no se enquadrando como ente
empresarial. 2. Somente vivel cogitar de partilha quando h indicativo de abuso da perso-
nalidade jurdica, seja pelo desvio de finalidade ou pela confuso patrimonial, o que inocorre
na espcie. Embargos infringentes desacolhidos. Unnime. (TJRS. EI n. 70061885786. Quarto
Grupo Cvel. Relator. Des. Srgio Fernando de Vasconcellos Chaves. Julgado em 31.10.2014)
Apelaes cveis. Agravo retido. Ausncia de reiterao nas razes. Inadmissibilidade. Cerce-
amento de defesa. Superao, nos termos do art. 249, 2, do CPC. Sobrepartilha. Cotas
sociais. Sociedade de advocacia. Descabimento. 1. No se conhece de agravo retido cuja apre-
ciao pela Corte no reiterada expressamente nas razes recursais. 2. Os termos do art. 249,
2, do CPC, possvel afastar a preliminar de nulidade da sentena quando o mrito favorece
a quem aproveitaria a nulidade. 3. No so partilhveis as cotas da sociedade de advogados,
personalistas de prestao de servios profissionais, identificadas no Cdigo Civil como
sociedades simples, dedicada ao exerccio da profisso de seus integrantes, e que no se
enquadram como ente empresarial. 4. Consequentemente, invertidos os nus sucumbenciais,

Aresto paradigma advm do Tribunal de Justia do Rio Grande
do Sul, julgado pela Oitava Cmara Cvel, correspondente Apelao
Cvel n. 70054595517, dela sendo relator o desembargador Rui Porta-
nova, julgada em 29 de agosto de 2013, com a seguinte ementa:
APELAO. PARTILHA. QUOTAS E LUCROS DE SOCIEDADE DE

PRTICOS. INCOMUNICABILIDADE. DEPSITOS NO EXTERIOR.
EXISTNCIA COMPROVADA. PARTILHA. SALDO A SER APURADO
EM LIQUIDAO DE SENTENA. A jurisprudncia desta Corte tem
firme entendimento de que quando a atividade empresarial o pr-
prio trabalho do cnjuge, as quotas sociais que ele titula tm car-
ter de provento do trabalho pessoal, de forma que no h direito de
partilha pelo cnjuge no scio. Pelo entendimento jurisprudencial
da Corte, diferente tratamento ocorre quando as quotas sociais no
tm relao com a atividade laborativa do cnjuge, caso em que a
participao societria assume carter de bem adquirido onerosa-
mente na constncia do casamento, sendo por isso lcita a partilha
das quotas, e eventual diviso de lucros. No caso dos autos, uma
anterior deciso em agravo de instrumento, em cognio sum-
ria, depois mantida pelo STJ, j havia reconhecido que as quotas da
Sociedade de Prticos em nome do apelado eram exclusivas dele,
por serem instrumentos do trabalho. Depois daquilo foi realizada
percia, que concluiu que para ser Prtico preciso ser aprovado em
concurso pblico; que depois de aprovado no concurso, o trabalho
como Prtico se d atravs de ingresso na Sociedade de Prticos; e
que se no trabalhar ou se no puder trabalhar, o Prtico perde a
sua condio de scio da empresa e a prpria condio de Prtico.
Diante de tudo isso, restou corroborada, agora em cognio plena
e exauriente, aquela primeira concluso desta Corte, no sentido de
que no caso concreto, pelas provas produzidas, as quotas da socie-
dade so efetivamente o instrumento do trabalho do aqui apelado.
Sendo assim, a deciso que excluiu da partilha as quotas da Socie-
dade de Prticos e os seus lucros mesmo a soluo mais adequada
ao contexto do caso. Caso no qual restou cabalmente comprovada
(por cpias de extratos de movimentaes, e por degravao de
conversa telefnica entre as partes) a existncia de contas banc-
rias no Uruguai, em nome do apelado. Mas no qual no se sabe, ao
menos at agora, quais os valores depositados na data da separao
de fato, porque o juzo a quo determinou ao apelado que acostasse
tal comprovao aos autos, mas ele optou de forma consciente e
deliberada por descumprir o comando judicial. Hiptese na qual se
mostra de rigor determinar a partilha do saldo existente nas contas
no exterior na data da separao de fato, a ser apurado em sede de
liquidao de sentena. Deram parcial provimento.
no pode ser acolhido o pleito de sua majorao formulado pela autora. Agravo retido no
conhecido. Apelo do ru provido. Apelao da autora desprovida. (TJRS. Apelao Cvel n.
70058902198. Oitava Cmara Cvel. Julgador. DesembargadorLuiz Felipe Brasil Santos. Jul-
gado em 05.06.2014).

No Superior Tribunal de Justia, o Ministro Luis Felipe Salo-
mo conduziu perante a Quarta Turma, no REsp. n. 1.227.240-SP, jul-
gado em 26 de maio de 2015, voto unnime descartando a partilha de
sociedade simples, porquanto, formada por pessoas que exercem pro-
fisso do gnero intelectual, tendo como espcie a natureza cientfica,
literria ou artstica, mesmo que conte com a colaborao de auxilia-
res.54 No ventre de seu voto, salientou o Ministro Luis Felipe Salomo
que a sociedade simples limita-se ao exerccio da atividade espec-
fica para a qual foi criada, relacionada habilidade tcnica e intelec-
tual dos scios, no devendo exercer servios estranhos ao seu mister,
sob pena de configurar o elemento de empresa, capaz de transform-
-la em sociedade empresria, e, portanto, constituda para dar suporte
ao exerccio de determinada profisso intelectual, no deixando ser
uma sociedade simples, mesmo quando apresente estrutura complexa,
organizao de grande porte e conte com a colaborao de auxiliares
e com considervel volume de trabalho, sendo, portanto, inadmissvel
atribuir expresso econmica sua clientela.
7.1A clientela e a doutrina dos bens prprios por natureza
Esclarece Grman Bercovitz Alvarez que a doutrina dos bens

prprios por natureza tem sua origem na reforma realizada em 1965
no Direito francs do regime de comunho, tendo como precedente
54
Recurso Especial, Sociedades empresrias e simples. Sociedades de advogados. Atividade
econmica no empresarial. Prestao de servios intelectuais. Impossibilidade de assumi-
rem carter empresarial. Lei n. 8.906/1994. Estatuto da OAB. Alegao de omisso do acrdo
recorrido afastada. Impossibilidade de anlise de clusulas contratuais. Smulas 5 e 7 do STJ.
1. No h falar em omisso ou contradio no acrdo recorrido quando embora rejeitados os
embargos de declarao, a matria em exame tiver sido devidamente enfrentada pelo Tribu-
nal de origem, com pronunciamento fundamentado, ainda que em sentido contrrio preten-
so da parte recorrente. 2. De acordo com o Cdigo Civil, as sociedades podem ser de duas
categorias: simples e empresrias. Ambas exploram atividade econmica e objetivam o lucro.
A diferena entre elas reside no fato de a sociedade simples explorar atividade no empresa-
rial, tais como as atividades intelectuais, enquanto a sociedade empresria explora atividade
econmica empresarial, marcada pela organizao dos fatores de produo (art. 982, CC). 3. A
sociedade simples formada por pessoas que exercem profisso do gnero intelectual, tendo
como espcie a natureza cientfica, literria ou artstica, e mesmo que conte com a colabora-
o de auxiliares, o exerccio da profisso no constituir elemento de empresa (III Jornada de
Direito Civil, Enunciados n. 193, 194 e 195). 4. As sociedades de advogados so sociedades sim-
ples marcadas pela inexistncia de organizao dos fatores de produo para o desenvolvi-
mento da atividade a que se propem. Os scios, advogados, ainda que objetivem lucro, utili-
zem-se de estrutura complexa e contem com colaboradores nunca revestiro carter empre-
sarial, tendo em vista a existncia de expressa vedao legal (arts. 15 a 17, Lei n. 8.906/1994). 5.
Impossvel que sejam levados em considerao, em processo de dissoluo de sociedade sim-
ples, elementos tpicos de sociedade empresria, tais como bens incorpreos, como a clien-
tela e seu respectivo valor econmico e a estrutura do escritrio. 6. Sempre que necessrio o
revolvimento das provas acostadas aos autos e a interpretao de clusulas contratuais para
alterar o julgamento proferido pelo Tribunal a quo, o provimento do recurso especial ser
obstado, ante a incidncia dos enunciados das Smulas 5 e 7 do STJ. 7. Recurso especial a que
se nega provimento.

histrico a Lei de Propriedade Intelectual de 1957, codificado no artigo
1.404 do Cdigo Civil francs,55 ao criar uma hierarquia de bens espe-
ciais, intermediria entre a clssica bipartio dos bens imveis e bens
mveis, como resposta importncia percebida acerca dos bens incor-
preos, frutos da atividade intelectual da pessoa, destacando-se do
tradicional terreno do direito patrimonial tangvel dos bens mveis e
imveis.56
Essa nova categoria agruparia todos os direitos que uma pessoa
possa reivindicar sobre a produo de seu esprito, escorada na noo
de direitos que no podem ser objeto de propriedade no seu sentido
tradicional, mas que se apoiam na ideia geral de apropriao dos valo-
res resultantes da formao de uma clientela ou de um destacado
posto profissional, significando a capitalizao do trabalho ou da ativi-
dade profissional de seu titular. 57
So direitos ou faculdades pessoais e cujos direitos econmi-
cos ou rendimentos que deles derivam devem ser atribudos exclu-
sivamente ao seu titular, concluindo os defensores da tese do titre et
finance (ttulo profissional e ingresso financeiro) do Direito francs,
tratar-se de direitos inerentes pessoa e que, portanto, sempre a ela
pertencero, no podendo ser expropriados de seu titular, embora no
se prive o consrcio conjugal dos rendimentos levantados pela ativi-
dade ou pelo trabalho de cada cnjuge.
A razo deste preceito explica Germn Bercovitz lvarez, resulta
da evidncia de que determinados bens inerentes pessoa devem ser
mantidos dentro da esfera de controle absoluto e privativo de seu titu-
lar, sem que sejam afetados pela cogesto ou codisposio, e sem que
o seu titular possa se ver em perigo diante da dissoluo do consr-
cio e tambm perante os herdeiros do cnjuge pr-morto, buscando
o legislador aliengena deixar o exerccio sobre determinados direitos
em mos de algum indivduo, e que respeita queles direitos cuja per-
sonalidade vem motivada pela infungibilidade da pessoa de seu titu-
lar e, portanto, representando bens privativos dentro de um regime
de comunidade de bens. So bens que pertencem a uma categoria
55
Article 1404. Forment des propres par leur nature, quand mme ils auraient t acquis pen-
dant le mariage, les vtements et linges lusage personnel de lun des poux, les actions en
rparation dun dommage corporel ou moral, les crances et pensions incessibles, et, plus
gnralement, tous les biens qui ont un caractre personnel et tous les droits exclusivement
attachs la personne.
Forment aussi des propres par leur nature, mais sauf rcompense sil y a lieu, les instruments
de travail ncessaires la profession de lun des poux, moins quils ne soient laccessoire
dun fonds de commerce ou dune exploitation faisant partie de la communaut.
56
LVAREZ, Grman Bercovitz. Los derechos inherentes a la persona en la sociedad de
gananciales. Navarra: Arazandi, 2003, p. 46.
57
gananciales. Navarra: Arazandi, 2003, p. 47.

intermediria ou especial, e que no podem se desprender da pessoa
qual pertencem, estando fora do comrcio.
Estes direitos vo surgindo como resultado da capitalizao
do trabalho ou da atividade de seu titular, tambm identificado como
capital humano formado pelas habilidades, conhecimentos capazes de
produzir um valor econmico. So os talentos, os dons inatos e a criati-
vidade que confluem para formar este capital humano,58 descrito como
um ativo intangvel pela jurisprudncia nacional e estes dotes associa-
dos capacidade de cada sujeito para o trabalho esto vinculados aos
direitos de personalidade.
Partindo da sua capacitao profissional e diante da tendncia
sempre crescente da associao dos profissionais liberais, determina-
das categorias de prestadores de servios formaro sociedades regula-
das no Direito brasileiro por meio das sociedades simples, disciplinada
pelos artigos 997 a 1.038 do Cdigo Civil, prestando seus prstimos e
assim formando e fidelizando a carteira de clientes vinculada ao scio
ou sociedade, mostrando-se Germn Bercovitz lvarez, no entanto,
favorvel comunicao da carteira de clientes, pois:
Hoje em dia o profissional tambm se apoia de forma importante

em meios materiais (instalaes e meios tcnicos), d publicidade
aos seus servios e exerce sua profisso associando-se com outros.
A carteira de clientes conseguida ao largo da vigncia do regime
trabalho capitalizado pouco a pouco e sua patrimonialidade clara;
o fato de que a clientela no seja vendvel como tal no exclui que
sua existncia permite ao profissional rentabiliz-la ele mesmo, se
continuar explorando seu escritrio ou consultrio, ou mediante
acordos com terceiros, por cujo fato se obriga a apresentar um
sucessor para sua clientela e a no competir com este sucessor.
Sempre que seja possvel obter um em troca do repasse do esta-
belecimento, porque dito valor patrimonial existe e qualquer um
sabe que a carteira de clientes possui um valor negocivel.59
8REFERNCIAS
ABRO, Carlos Henrique. Sociedade simples. 2. ed. So Paulo: Atlas, 2012.
LVAREZ, Grman Bercovitz. Los derechos inherentes a la persona en la

sociedad de gananciales. Navarra: Arazandi, 2003.
58
BASSET, Ursula Cristina. La calificacin de bienes en la sociedad conyugal. Principios,
reglas, critrios y supuestos. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2010, p.167.
59
gananciales. Navarra: Arazandi, 2003.

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A TCNICA DA PONDERAO E SUAS APLICAES
AO DIREITO DE FAMLIA E DAS SUCESSES
Flvio Tartuce
Doutor em Direito Civil pela USP. Professor do programa

de Mestrado e Doutorado da Faculdade Especializada em Direito
(FADISP). Professor dos cursos de Graduao e Ps-Graduao lato
sensu em Direito Privado da Escola Paulista de Direito (EPD), sendo
coordenador destes ltimos. Professor da Rede LFG. Diretor nacional
e estadual do Instituto Brasileiro de Direito de Famlia (IBDFAM).
Advogado e consultor jurdico em So Paulo.
Sumrio: 1. O Novo Cdigo de Processo Civil. Panorama

geral. A incluso expressa da tcnica da ponderao no
texto legal. 2. A tcnica da ponderao segundo Robert
Alexy. Confrontao com a regra do art. 489, 2, do Novo
CPC. 3. Algumas aplicaes concretas da tcnica da pon-
derao no Brasil. 4. Crticas ao uso da tcnica da pon-
derao no Brasil e premissas para o seu afastamento. 5.
Aplicaes da tcnica da ponderao para resolver pro-
blemas de Direito de Famlia e das Sucesses no Brasil. 6.
Concluso. 7. Referncias.
1O NOVO CDIGO DE PROCESSO CIVIL. PANORAMA GERAL. A

INCLUSO EXPRESSA DA TCNICA DA PONDERAO NO TEXTO LEGAL
Temos um Novo Cdigo de Processo Civil. Aps cerca de seis

anos de elaborao, tramitao e vacatio legis, entra em vigor a Lei n.
13.105/2015, que institui o Estatuto Instrumental emergente. Como se
retira da sua exposio de motivos, escrita pela comisso de juristas
que elaborou o seu texto no Senado Federal, um sistema processual
civil que no proporcione sociedade o reconhecimento e a realiza-
o dos direitos, ameaados ou violados, que tem cada um dos juris-
dicionados, no se harmoniza com as garantias constitucionais de um
Estado Democrtico de Direito. Sendo ineficiente o sistema proces-
sual, todo o ordenamento jurdico passa a carecer de real efetividade.
De fato, as normas de direito material se transformam em pura iluso,

sem a garantia de sua correlata realizao, no mundo emprico, por
meio do processo.1
Realmente, o Cdigo de Processo Civil de 1973 estava distante da
realidade constitucional brasileira, especialmente da tutela dos direi-
tos fundamentais e de mecanismos elencados pelo Texto Maior para
uma maior eficincia na resoluo das contendas. Muito ao contr-
rio da norma anterior, o Novo CPC traz um dispositivo inaugural de
grande relevo, a proporcionar uma ponte com a Constituio Federal
de 1988, segundo o qual o processo civil ser ordenado, disciplinado e
interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabele-
cidos na Constituio da Repblica Federativa do Brasil, observando-se
as disposies deste Cdigo. Inaugura-se, assim e expressamente na
lei, a constitucionalizao do processo, que, segundo Zulmar Duarte de
Oliveira Jr.,
fato conhecido e reconhecido aqui e acol, tendo sido de grande

relevo para o prprio fortalecimento e democratizao do pas,
haja vista que a passagem dos direitos e liberdades s constituies
representa uma das maiores conquistas polticas da inveno da
democracias (MIRANDA, 1954, p. 37).2
A concretizar essa constitucionalizao do Direito Processual

Civil, com relao umbilical com a constitucionalizao do Direito
Civil, viso de sistema que h muito tempo tem especial destaque na
dogmtica brasileira, merece relevo o teor do art. 8 do Novo CPC, que
coloca o princpio da dignidade da pessoa humana como fio condutor
prioritrio das decises judiciais. Enuncia a norma emergente que, ao
aplicar o ordenamento jurdico, o juiz atender aos fins sociais e s exi-
gncias do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da
pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a
legalidade, a publicidade e a eficincia. Acreditamos que tal norma
dirigida no s ao Direito Processual, mas a todo o Direito brasileiro,
como verdadeira regra hermenutica global que completa o antigo art.
5 da Lei de Introduo s Normas do Direito Brasileiro.3
Feitas tais consideraes preliminares, constata-se ainda que
estava o Cdigo de Processo Civil anterior desassociado da realidade
de nossas principais leis materiais, especialmente do Cdigo Civil de
1
Conforme se retira de: FUX, Luiz; ASSUMPO NEVES, Daniel Amorim. Novo CPC compa-
rado. So Paulo: GEN/Mtodo, 2015, p. 305.
2
DUARTE DE OLIVEIRA JR., Zulmar. Teoria geral do processo: comentrios ao CPC de 2015
Parte geral. So Paulo: GEN/Mtodo, 2015, p. 1-2.
3
Com teor mais singelo, e por que no dizer? superado, estabelece o art. 5 da Lei de
Introduo que, na aplicao da lei, o juiz atender aos fins sociais a que ela se dirige e s
exigncias do bem comum.

2002 e do Cdigo de Defesa do Consumidor. Como notrio, essas
duas normas adotaram um sistema aberto, baseado em clusulas gerais
e em conceitos legais indeterminados. Por seu turno, a norma pro-
cessual antecedente trazia em seu contedo uma essncia positivista,
hermtica e fechada. Ao contrrio do seu antecessor, o Novo Cdigo de
Processo Civil est recheado de conceitos normativos sem definio
imediata, assim como as duas leis subjetivas citadas.
Nesse contexto de abertura semntica, alm dos conceitos reti-
rados do seu art. 8, ora transcrito, merecem ser destacados a boa-f
objetiva processual e o dever de cooperao processual, abstrados dos
arts. 5 e 6 do CPC/2015. Nos termos do primeiro comando, aquele
que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de
acordo com a boa-f. Em complemento, prescreve o preceito seguinte
que todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que
se obtenha, em tempo razovel, deciso de mrito justa e efetiva. Con-
forme bem leciona Alexandre Freitas Cmara,
no se trata, pois, apenas de se exigir dos sujeitos do processo que

atuem com boa-f subjetiva (assim entendida a ausncia de m-f),
mas com boa-f objetiva, comportando-se de maneira como geral-
mente se espera que tais sujeitos se conduzam. A vedao do com-
portamento contraditrio (nemo venire contra factum proprium), a
segurana resultante de comportamentos duradouros (supressio e
surrectio), entre outros corolrios da boa-f objetiva, so expres-
samente reconhecidos como fundamentais para o desenvolvimento
do processo civil. A boa-f objetiva processual orienta a interpre-
tao da postulao e da sentena, permite a imposio de sano
ao abuso de direitos processuais e s condutas dolosas de todos os
sujeitos do processo, e veda seus comportamentos contraditrios.4
Em resumo, assim como ocorreu com o Cdigo Civil de 2002, o

Cdigo de Processo Civil de 2015 traz em seu contedo a transposio
da boa-f subjetiva intencional, psicolgica para a boa-f objetiva
comportamental e concretizada na atuao das partes.
Vale dizer que os conceitos legais indeterminados e as clusulas
gerais mereceram especial ateno pelo art. 489 do Novo Codex, o dis-
positivo mais comentado e criticado da legislao instrumental emer-
gente e que constitui o seu corao. Esse o comando que elenca os
elementos essenciais da sentena, exigindo a fundamentao e a moti-
vao profunda das decises judiciais, sempre na linha das smulas e
precedentes consolidados pelos Tribunais Superiores.
CMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. So Paulo: Atlas, 2015, p. 7.
4

Nos termos do seu 1, no se considera fundamentada qual-
quer deciso judicial, seja ela interlocutria, sentena ou acrdo, que:
a) se limitar indicao, reproduo ou parfrase de ato normativo,
sem explicar sua relao com a causa ou a questo decidida; b) empre-
gar conceitos jurdicos indeterminados, sem explicar o motivo con-
creto de sua incidncia no caso, o que aqui merece destaque; c) invocar
motivos que se prestariam a justificar qualquer outra deciso; d) no
enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em
tese, infirmar a concluso adotada pelo julgador; e) se limitar a invo-
car precedente ou enunciado de smula, sem identificar seus funda-
mentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se
ajusta queles fundamentos; e f) deixar de seguir enunciado de smula,
jurisprudncia ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar
a existncia de distino no caso em julgamento ou a superao do
entendimento. Como consequncia, a sentena que no contiver tais
requisitos ser considerada nula, pois todos os julgamentos dos rgos
do Poder Judicirio sero pblicos, e fundamentadas todas as decises,
sob pena de sua nulidade, na expresso do art. 11 do prprio CPC/2015.
A propsito, pontue-se que a preocupao com a boa-f objetiva
processual volta a surgir nesse mesmo art. 489 do CPC/2015, sendo
esta um elemento integrador da deciso, pois a deciso judicial deve
ser interpretada a partir da conjugao de todos os seus elementos e
em conformidade com o princpio da boa-f ( 3). Como comentam
com preciso Fredie Didier Jr., Rafael Alexandria de Oliveira e Paula
Sarno Braga,
os signos (palavras, nmeros e outros smbolos) utilizados pelo

rgo julgador na deciso devem ser interpretados conforme a boa-
-f e com os usos do lugar da celebrao. Se uma determinada pala-
vra vinha sendo utilizada, ao longo de todo o processo, em uma
determinada acepo, a interpretao da deciso em que esta pala-
vra aparece no pode, por exemplo, dar a ela um sentido diverso.
Se, em outro exemplo, em determinada comunidade, uma expres-
so consagrou-se, pelo uso, em um sentido, no pode, ao interpre-
t-la posteriormente, dar a ela um sentido incompatvel com aquele
a ela sempre se atribuiu.5
Em complemento s ilustraes citadas pelos doutrinadores,

acreditamos que a ltima regra pode conduzir o julgador a decidir em
desfavor daquele que se comporta mal no curso do processo, espe-
cialmente nos casos em que seu convencimento no esteja totalmente
5
DIDIER Jr., Fredie; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de; BRAGA, Paula Sarno. In: CABRAL, Anto-
nio do Passo; CRAMER, Ronaldo (Coord.). Comentrios ao novo Cdigo de Processo Civil. Rio
de Janeiro: GEN/Forense, 2015, p. 725.

formado, pela existncia de teses conflitantes com argumentos fortes
e convincentes de ambas as partes.
Alm de todas essas inovaes, e sem prejuzo de outras, o Novo
Cdigo de Processo Civil consagrou expressamente outro mecanismo
importante para efetivar a constitucionalizao do Direito, qual seja, a
tcnica de ponderao de princpios, valores e normas. O mesmo art.
489 do CPC/2015, ao tratar dos elementos da sentena, estabelece em
seu 2 que, no caso de coliso entre normas, o juiz deve justificar
o objeto e os critrios gerais da ponderao efetuada, enunciando as
razes que autorizam a interferncia na norma afastada e as premissas
fticas que fundamentam a concluso. Essa tcnica passa a ser estu-
dada a partir do presente momento, com a anlise de sua essncia e de
casos prticos em que vivel a sua incidncia, especialmente para o
Direito de Famlia e das Sucesses.
2A TCNICA DA PONDERAO SEGUNDO ROBERT ALEXY.

CONFRONTAO COM A REGRA DO ART. 489, 2, DO NOVO CPC
A tcnica de ponderao um mecanismo argumentativo de

grande relevo para a soluo das problemticas atuais mais complexas.
No restam dvidas de que esse relevante artifcio de lgica jurdica
associado viso civil-constitucional do sistema, pois, a priori, a
partir da Constituio Federal que so resolvidos problemas essencial-
mente privados.
A sistematizao da ideia de pesagem ou sopesamento remonta
ao estudo de Robert Alexy, professor da Universidade de Kiel, Alema-
nha, traduzido no Brasil por Virglio Afonso da Silva, professor titular
da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo.6 Parece-nos que
foram as lies do jurista tedesco que influenciaram a elaborao do
dispositivo inserido no Cdigo de Processo Civil de 2015. De toda sorte,
vale lembrar que Alexy trata em sua obra da ponderao de direitos
fundamentais. A ponderao constante do Novo CPC mais ampla,
tratando de normas. Essa a diferena essencial entre as duas ponde-
raes, a conduzir existncia de uma ponderao brasileira.
Tratando da insero da norma no Novo Cdigo de Processo
Civil, demonstram Fredie Didier Jr., Rafael Alexandria de Oliveira e
Paula Sarno Braga a insuficincia de a ponderao ser utilizada apenas
para resolver conflitos de direitos fundamentais. Segundo os autores,
citando a posio de Humberto vila,
6
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Traduo de Virglio Afonso da Silva. So
Paulo: Malheiros, 2008.

a ponderao no exclusividade dos princpios: as regras tam-
bm podem conviver abstratamente, mas colidir concretamente;
as regras podem ter seu contedo preliminar no sentido superado
por razes contrrias; as regras podem conter hipteses normati-
vas semanticamente abertas (conceitos legais indeterminados); as
regras admitem formas argumentativas como a analogia. Em todas
essas hipteses, entende vila, necessrio lanar mo da ponde-
rao. [...]. Por outro lado, vila entende que nem mesmo o sopesa-
mento exclusivo dos princpios; as regras tambm possuem uma
dimenso de peso. Prova disso seriam os mtodos de aplicao que
relacionam, ampliam ou restringem o seu sentido em funo dos
valores e fins a que elas visavam resguardar. A dimenso de peso
no algo inato norma, mas uma qualidade das razes e dos fins
a que ela se refere e que atribuda a partir de um juzo valorativo
do aplicador.7
Vale lembrar que o Professor Fredie Didier Jr. teve atuao des-
tacada na elaborao do ento projeto de Novo CPC, quando da sua
tramitao na Cmara dos Deputados, sendo ele um dos entusiastas e
incentivadores da introduo desse mecanismo no Estatuto Processual
emergente.
Ao demonstrar a importncia da construo da ponderao, Lus
Roberto Barroso compara a subsuno incidncia direta da norma
a um quadro geomtrico com trs cores distintas e bem ntidas. A pon-
derao, nessa mesma simbologia, ser uma pintura moderna, com
inmeras cores sobrepostas, algumas se destacando mais do que as
outras, mas formando uma unidade esttica.8 Entretanto, o jurista faz
um alerta: Ah, sim: a ponderao malfeita pode ser to ruim quanto
algumas peas de arte moderna.9 Cabe esclarecer que o Ministro Bar-
roso tem-se revelado um entusiasta da ponderao, fazendo uso desta
tcnica em seus julgamentos no Supremo Tribunal Federal, como ocor-
reu no julgamento da ADIN que tratou das biografias no autorizadas,
como se ver a seguir.
Em sua obra, visando ponderao, Alexy parte de algumas pre-
missas que so tidas como bsicas para que a pesagem ou o sopesa-
mento entre os princpios seja possvel e que, repise-se, parecem ter
sido adotadas pela Nova Norma Instrumental Brasileira.
7
DIDIER JR., Fredie; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de; BRAGA, Paula Sarno. Curso de direito
processual civil. 10. ed. Salvador: Juspodivm, 2015, v. 2, p. 325.
8
BARROSO, Lus Roberto. Curso de direito constitucional contemporneo: os conceitos fun-
damentais e a construo do novo modelo. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 334.
9
BARROSO, Lus Roberto. Curso de direito constitucional contemporneo: os conceitos fun-
damentais e a construo do novo modelo. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 334.

Como primeira premissa, o doutrinador alemo traz o entendi-
mento de que os direitos fundamentais tm, na maioria das vezes, a
estrutura de princpios, sendo mandamentos de otimizao caracteri-
zados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que
a medida devida de sua satisfao no depende somente das possibili-
dades fticas, mas tambm das possibilidades jurdicas.10
Em seguida, como segunda premissa, reconhecido que, em
um sistema em que h o comprometimento com valores constitucio-
nais, pode ser frequente a ocorrncia de colises entre os princpios,
o que, invariavelmente, acarretar restries recprocas entre os valo-
res tutelados. Consigne-se que, de acordo com o jurista germnico, a
coliso entre regras e princpios distinta, uma vez que, no primeiro
caso, uma das regras deve ser retirada obrigatoriamente do sistema, o
que no ocorre no segundo.11 Por isso, nas ltimas hipteses pode-se
falar em relativizao de princpios ou mesmo em direitos fundamen-
tais, uma vez que princpios com peso maior devem prevalecer sobre
princpios com peso menor.
Presente o conflito entre princpios, sem que qualquer um deles
seja retirado do sistema, como terceira premissa o aplicador do Direito
deve fazer uso da tcnica de ponderao. Em tal sopesamento, na pre-
sena da lei de coliso, os princpios so numerados por P1 e P2; C so
as condies de procedncia de um princpio sobre o outro, enquanto
T1, T2, T3 so os fatores fticos que influenciam a coliso e a conclu-
so.12 A aplicao da ponderao nada mais do que a soluo do caso
concreto de acordo com a mxima da proporcionalidade.13 De toda
sorte, esclarea-se que a tcnica da ponderao parece significar uma
proporcionalidade ou razoabilidade formatada, baseada na frmula
apresentada pelo jurista.
Encerrando, a quarta e ltima premissa a de que a pesagem
deve ser fundamentada, calcada em uma argumentao jurdica com
solidez e objetividade, para no ser arbitrria e irracional. Para tanto,
deve ser bem clara e definida a fundamentao de enunciados de pre-
ferncias em relao a determinado valor constitucional.14
10
Paulo: Malheiros, 2008, p. 91.
11
Paulo: Malheiros, 2008, p. 92-93.
12
ALEX, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Traduo de Virglio Afonso da Silva. So
13
14

Para explicar a ponderao, Alexy relata o caso Lebach. A emis-
sora alem ZDF tinha a inteno de exibir documentrio intitulado O
assassinato de soldados em Lebach, que contava a histria do assassi-
nato de quatro soldados alemes que faziam sentinela em um depsito,
o que culminou com o roubo de munio do exrcito alemo, inci-
dente ocorrido em 1969. Um dos condenados pelo crime estava prestes
a ser solto s vsperas da veiculao do programa televisivo, no qual
era citado nominalmente. Ento, ingressou ele com uma medida cau-
telar para que o programa no fosse exibido, pois haveria uma clara
afronta ao seu direito fundamental imagem. O Tribunal Estadual na
Alemanha rejeitou o pedido do autor da demanda para a no exibio
do documentrio, o que foi confirmado pelo Tribunal Superior Esta-
dual, diante da liberdade de informar e do interesse coletivo quanto ao
contedo do documentrio.15
A questo chegou at a Suprema Corte alem, que a resolveu a
partir da ponderao de princpios constitucionais. A argumentao
do julgamento foi dividida em trs etapas.
Na primeira delas, foi demonstrada a coliso entre o direito
imagem ou personalidade (P1) e a liberdade de informar (P2), dois
valores constitucionalmente tutelados e de mesmo nvel. A prevalncia
de P1 levaria proibio do programa, enquanto a prevalncia de P2,
sua exibio. Na segunda etapa, o julgamento conclui inicialmente pela
prevalncia de P2 sobre P1, em uma relao de procedncia, diante dos
interesses coletivos soluo de crimes.
Contudo, na terceira etapa, houve a concluso pela prevalncia
de P1, no sentido de que o documentrio no deveria ser exibido. Dois
fatores fticos substanciais acabaram por influenciar o sopesamento
ou a ponderao efetuada. A primeira delas que no haveria mais um
interesse atual pela notcia do crime. Alm disso, o Tribunal Constitu-
cional alemo entendeu que haveria um risco para a ressocializao
do autor da demanda, o que acabou por representar, na opinio deste
autor, uma prevalncia do chamado direito ao esquecimento.16
15
16
Paulo: Malheiros, 2008, p. 101-102. A respeito do tema do direito ao esquecimento, no Brasil,
destaque-se o Enunciado n. 531, aprovado na VI Jornada de Direito Civil, evento promovido
pelo Conselho da Justia Federal em 2013, segundo o qual A tutela da dignidade da pessoa
humana na sociedade da informao inclui o direito ao esquecimento. Conforme as suas jus-
tificativas, os danos provocados pelas novas tecnologias de informao vm-se acumulando
nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histrica no campo das condena-
es criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento ressocializao.
No atribui a ningum o direito de apagar fatos ou reescrever a prpria histria, mas apenas
assegura a possibilidade de discutir o uso que dado aos fatos pretritos, mais especifica-
mente o modo e a finalidade com que so lembrados.

Em suma, como se pode perceber, no caso concreto que levou
Alexy a desenvolver a tcnica da ponderao, houve a prevalncia da
proteo da intimidade em relao ao direito de informao e liber-
dade de imprensa. De modo bem diferente tm julgado os Tribunais
Superiores brasileiros em casos de coliso de direitos como o exposto,
como ser desenvolvido no prximo tpico deste estudo.
3ALGUMAS APLICAES CONCRETAS DA TCNICA DA PONDERA-

O NO BRASIL
Partindo para os casos brasileiros, especialmente para aqueles

em que h a coliso entre a tutela da imagem (art. 5, incisos V e X,
da Constituio) e a tutela da informao (art. 5, incisos IV, IX e XIV),
ponderao similar descrita no caso Lebach foi realizada pelo Tribu-
nal de Justia de So Paulo, em caso que envolvia a apresentadora de
televiso Daniella Cicarelli, que foi flagrada em relaes ntimas com
o namorado em uma praia da Espanha, tendo as imagens reproduzidas
no YouTube, site especializado em vdeos mantido pela Google.
O Tribunal Bandeirante, em demanda inibitria de tutela da
personalidade proposta por ambos, acabou concluindo pela no exi-
bio das imagens, de forma definitiva. Conforme consta da ementa
do aresto, a esfera ntima da pessoa goza de proteo absoluta, ainda
que um dos personagens tenha alguma notoriedade, por no se tole-
rar invaso de intimidades [cenas de sexo] de artista ou apresentadora
de TV. Julgou-se que no haveria interesse pblico para se manter a
ofensa aos direitos individuais fundamentais, decidindo-se, ao final,
pela manuteno da tutela antecipada concedida em outros recursos.
Por fim, deu-se provimento ao recurso para fazer cessar a divulga-
o dos filmes e fotografias em websites, por no ter ocorrido con-
sentimento para a publicao, sendo preservada a multa diria de R$
250.000,00 (duzentos e cinquenta mil reais), para inibir transgres-
so ao comando de absteno (TJSP, Apelao Cvel 556.090.4/4-00/
SP, Quarta Cmara de Direito Privado, Rel. Enio Zuliani, julgado em
12.06.2008, Data de Registro: 17.07.2008).
Obviamente, outras questes, inclusive aquelas relacionadas
s reparaes dos danos, ainda esto sendo discutidas judicialmente
nesse caso concreto. A situao ftica do caso coloca em xeque o to
criticado art. 20 do Cdigo Civil, dispositivo este que no pode dei-
xar de lado os valores constitucionais, caso do direito informao e
liberdade de imprensa.17 A redao desse polmico comando material
Crticas contundentes quanto ao comando legal podem ser observadas em: TEPEDINO,
17
Gustavo; BARBOZA, Helosa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Cdigo Civil interpre-
tado. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, v. I, p. 49-58.

a seguinte: Salvo se autorizadas, ou se necessrias administrao
da justia ou manuteno da ordem pblica, a divulgao de escritos,
a transmisso da palavra, ou a publicao, a exposio ou a utilizao
da imagem de uma pessoa podero ser proibidas, a seu requerimento
e sem prejuzo da indenizao que couber, se lhe atingirem a honra, a
boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Pargrafo nico. Em se tratando de morto ou de ausente, so partes
legtimas para requerer essa proteo o cnjuge, os ascendentes ou os
descendentes.
Como se percebe, o art. 20 do CC/2002 traz apenas duas exce-
es expressas para a utilizao da imagem alheia, sem autorizao: a)
quando a pessoa ou o fato interessar administrao da justia, como
no caso de soluo de crimes; b) quando a pessoa ou o fato interessar
ordem pblica, expresso genrica e aberta que merece preenchi-
mento casustico. E nada mais. Como salienta a atenta doutrina, deve-
-se fazer a devida ponderao dos valores envolvendo as demandas
fundadas em tal comando, no se olvidando da funo social do uso de
imagem, ou seja, o fato de que a informao pode ter uma finalidade
coletiva.
A propsito, no mbito doutrinrio, tentando iluminar as trevas
relativas tutela da imagem, na IV Jornada de Direito Civil do Conse-
lho da Justia Federal e do Superior Tribunal de Justia foi aprovado o
Enunciado n. 279, com a seguinte redao:
Art. 20. A proteo imagem deve ser ponderada com outros inte-
resses constitucionalmente tutelados, especialmente em face do
direito de amplo acesso informao e da liberdade de imprensa.
Em caso de coliso, levar-se- em conta a notoriedade do retratado
e dos fatos abordados, bem como a veracidade destes e, ainda, as
caractersticas de sua utilizao (comercial, informativa, biogr-
fica), privilegiando-se medidas que no restrinjam a divulgao de
informaes.
Como antes demonstrado, a tcnica da ponderao no simples

e demanda a anlise de vrios critrios, dependendo das circunstn-
cias fticas e dos direitos e normas envolvidos, como realmente deve
ser. Vrios julgados superiores enfrentam esse problema de ponderar a
tutela da imagem e da intimidade x o direito liberdade de imprensa e
informao. A este autor parece no existir um caminho para encon-
trar a soluo melhor em tais dilemas, que no seja a ponderao.
Como temos afirmado em vrios ambientes, a ponderao deve entrar
em cena em casos excepcionais, quando a lei insuficiente ou ausente
para resolver os casos concretos.

Para ilustrar, em um primeiro aresto, concluiu o Superior Tribu-
nal de Justia, em deciso publicada no seu Informativo n. 396, que
[...] h, na questo, um conflito de direitos constitucionalmente

assegurados. A Constituio Federal assegura a todos a liberdade
de pensamento (art. 5, IV), bem como a livre manifestao desse
pensamento (art. 5, IX) e o acesso informao (art. 5, XIV).
Esses direitos salvaguardam a atividade da recorrente. No entanto,
so invocados pelo recorrido os direitos reputao, honra e
imagem, assim como o direito indenizao pelos danos morais
e materiais que lhe sejam causados (art. 5, X). Para a soluo do
conflito, cabe ao legislador e ao aplicador da lei buscar o ponto de
equilbrio no qual os dois princpios mencionados possam convi-
ver, exercendo verdadeira funo harmonizadora. [...] Na hiptese,
constata-se que a reportagem da recorrente, para sustentar essa
sua afirmao, trouxe ao ar elementos importantes, como o depoi-
mento de fontes fidedignas, a saber: a prova testemunhal de quem
foi autoridade policial formalizar notcia-crime e a opinio de um
procurador da Repblica. Ademais, os autos revelam que o prprio
reprter fez-se passar por agente interessado nos benefcios da ati-
vidade ilcita, obtendo gravaes que efetivamente demonstravam
a existncia de engenho fraudatrio. No se tratava, portanto, de
um mexerico, fofoca ou boato que, negligentemente, divulgava-se
em cadeia nacional. Acresa-se a isso que o prprio recorrido revela
que uma de suas empresas foi objeto de busca e apreenso. Ao
pblico, foram dadas as duas verses do fato: a do acusador e a do
suspeito. Os elementos que cercaram a reportagem tambm mos-
travam que havia fatos a serem investigados. O processo de divulga-
o de informaes satisfaz o verdadeiro interesse pblico, devendo
ser clere e eficaz, razo pela qual no se coaduna com rigorismos
prprios de um procedimento judicial. Desse modo, v-se clara-
mente que a recorrente atuou com a diligncia devida, no extra-
polando os limites impostos liberdade de informao. A suspeita
que recaa sobre o recorrido, por mais dolorosa que lhe seja, de
fato, existia e era, poca, fidedigna. Se hoje j no pesam sobre o
recorrido essas suspeitas, isso no faz com que o passado altere-se.
Pensar de modo contrrio seria impor indenizao a todo veculo
de imprensa que divulgue investigao ou ao penal que, ao final,
mostre-se improcedente. Por esses motivos, deve-se concluir que a
conduta da recorrente foi lcita, havendo violao dos arts. 186 e 927
do CC/2002. [...]. (STJ, REsp 984.803/ES, Rel. Min. Nancy Andrighi,
j. 26.05.2009).
Reafirme-se que, a propsito desse problema e de outros que

podem surgir, tem-se colocado em dvida a incidncia do art. 20
do Cdigo Civil nos ltimos anos, pois o contedo da norma tem
implicado verdadeira censura, notadamente de obras biogrficas de

figuras histricas e que despertam o interesse coletivo. Nessa reali-
dade, foi proposta uma ao direta de inconstitucionalidade perante o
Supremo Tribunal Federal contra o referido dispositivo, pela Associa-
o Nacional dos Editores de Livros (ADIn 4.815, intentada em julho de
2012). O pedido da ao era no sentido de ser reconhecida a incons-
titucionalidade parcial dos arts. 20 e 21 do CC/2002, sem reduo de
texto, para que, mediante interpretao conforme a Constituio, seja
afastada do ordenamento jurdico brasileiro a necessidade do con-
sentimento da pessoa biografada e, a fortiori, das pessoas retratadas
como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas faleci-
das) para a publicao ou veiculao de obras biogrficas, literrias ou
audiovisuais, elaboradas a respeito de pessoas pblicas ou envolvidas
em acontecimentos de interesse coletivo. A petio inicial foi acom-
panhada de parecer muito bem construdo pelo professor Gustavo
Tepedino.
Corretamente, no incio de junho de 2015, o Supremo Tribunal
Federal, com unanimidade, julgou procedente a referida ao, presti-
giando a liberdade de expresso e afastando a censura prvia das bio-
grafias no autorizadas no Brasil. Conforme a deciso final da Relatora,
Ministra Crmen Lcia:
Pelo exposto, julgo procedente a presente ao direta de inconsti-

tucionalidade para dar interpretao conforme a Constituio aos
arts. 20 e 21 do Cdigo Civil, sem reduo de texto, para, a) em con-
sonncia com os direitos fundamentais liberdade de pensamento
e de sua expresso, de criao artstica, produo cientfica, decla-
rar inexigvel o consentimento de pessoa biografada relativamente
a obras biogrficas literrias ou audiovisuais, sendo por igual des-
necessria autorizao de pessoas retratadas como coadjuvantes
(ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas); b) reafirmar
o direito inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e
da imagem da pessoa, nos termos do inc. X do art. 5 da Constitui-
o da Repblica, cuja transgresso haver de se reparar mediante
indenizao.
Em suma, julgou-se pela impossibilidade da censura prvia das

obras, devendo os abusos e excessos ser resolvidos a partir do abuso
de direito e da correspondente responsabilizao civil do agente cau-
sador do dano.
Alm da precisa relatoria, merecem destaquem as anotaes do
Ministro Lus Roberto Barroso, amparando suas concluses na tcnica
de ponderao. Conforme suas lies, a ponderao uma forma de
estruturar o raciocnio jurdico. H diferentes modos de trabalhar com
ela. Do modo como eu opero a ponderao, ela se desenvolve em trs

etapas: a) na primeira, verificam-se as normas que postulam incidn-
cia ao caso; b) na segunda, selecionam-se os fatos relevantes; c) e, por
fim, testam-se as solues possveis para verificar, em concreto, qual
delas melhor realiza a vontade constitucional. Idealmente, a pondera-
o deve procurar fazer concesses recprocas, preservando o mximo
possvel dos direitos em disputa.
Em complemento, ao tratar dos arts. 20 e 21 do Cdigo Civil,
leciona o prprio Ministro Barroso que afirmar a liberdade de expres-
so como preponderante em relao intimidade decorre de trs
razes. A primeira razo que o passado condena. A histria da liber-
dade de expresso no Brasil uma histria acidentada. A censura vem
de longe: ao divulgar a Carta de Pero Vaz de Caminha, certido de nas-
cimento do pas, o Padre Manuel Aires do Casal cortou vrios trechos
que considerou indecorosos. Como segunda razo, destaca o jurista
que a liberdade de expresso pressuposto para o exerccio dos
outros direitos fundamentais. Os direitos polticos, a possibilidade de
participar no debate pblico, reunir-se, associar-se e o prprio desen-
volvimento da personalidade humana dependem da livre circulao de
fatos, informaes e opinies. Sem liberdade de expresso e de infor-
mao no h cidadania plena, no h autonomia privada nem autono-
mia pblica. Por fim, a terceira razo apontada pelo Ministro Barroso
em sua deciso est relacionada ao fato de ser a liberdade de expres-
so indispensvel para o conhecimento da histria, para o progresso
social e para o aprendizado das novas geraes. Com isso, felizmente,
as biografias no autorizadas passam a ser possveis no Brasil, no se
admitindo mais a censura prvia.
Feitas tais consideraes, e partindo para outra hiptese ftica,
no tocante responsabilidade civil, a ponderao tambm serve para
solucionar a hiptese ftica envolvendo o paciente mdico baleado e
que se nega interveno cirrgica por convices religiosas. A ques-
to coloca em jogo, de um lado, o direito vida (art. 1, inciso III, da
CF/1988) e, de outro, o direito s convices religiosas, diante da pro-
teo da liberdade de crena prevista no Texto Maior (art. 5, inciso VI).
Conforme alguns julgados, de correta ponderao, deve preva-
lecer o primeiro sobre o segundo, com a rejeio da demanda indeni-
zatria proposta pelo paciente que sobreviveu graas ao mdico que o
salvou e ao hospital. Concluindo por esse caminho, no sentido de que a
proteo da vida prevalece sobre as convices religiosas.18
18
Veja-se, nessa linha: Indenizatria. Reparao de danos. Testemunha de Jeov. Recebi-
mento de transfuso de sangue quando de sua internao. Convices religiosas que no
podem prevalecer perante o bem maior tutelado pela Constituio Federal que a vida. Con-
duta dos mdicos, por outro lado, que se pautou dentro da Lei e tica profissional, posto que
somente efetuaram as transfuses sanguneas aps esgotados todos os tratamentos alterna-
tivos. Inexistncia, ademais, de recusa expressa a receber transfuso de sangue quando da

De qualquer maneira, a questo no pacfica, eis que alguns
doutrinadores concluem de maneira diversa pela prevalncia das con-
vices religiosas sobre o direito vida. Nessa linha, entende Ander-
son Schreiber que
intolervel, portanto, que uma Testemunha de Jeov seja compelida,

contra a sua livre manifestao de vontade, a receber transfuso de
sangue, com base na pretensa superioridade do direito vida sobre
a liberdade de crena. Note-se que a priorizao da vida representa,
ela prpria, uma crena, apenas que da parte do mdico, guiado,
em sua conduta, por um entendimento que no deriva das normas
jurdicas, mas das suas prprias convices cientficas e filosficas.
[...]. A vontade do paciente deve ser respeitada, porque assim deter-
mina a tutela da dignidade humana, valor fundamental do ordena-
mento jurdico brasileiro.19
Tambm adotando o entendimento pela prevalncia da vontade

do paciente por convices religiosas, na V Jornada de Direito Civil foi
aprovado o seguinte enunciado doutrinrio (Enunciado n. 403):
O direito inviolabilidade de conscincia e de crena, previsto no

art. 5, VI da Constituio Federal, aplica-se tambm pessoa que se
nega a tratamento mdico, inclusive transfuso de sangue, com ou
sem risco de morte, em razo do tratamento ou da falta dele, desde
que observados os seguintes critrios: a) capacidade civil plena,
excludo o suprimento pelo representante ou assistente; b) mani-
festao de vontade livre, consciente e informada; e c) oposio que
diga respeito exclusivamente prpria pessoa do declarante.
Em suma, como se pode perceber, a questo polmica, sendo

totalmente insuficiente, para resolver esse dilema, o art. 15 do Cdigo
Civil. Entendemos que tal dispositivo parece desconsiderar a prote-
o da vida como valor supremo, em prol da convenincia pessoal do
paciente, ao preceituar que ningum pode ser constrangido a subme-
ter-se, com risco de vida, a tratamento mdico ou a interveno cirr-
gica. Ora, presente o risco de vida (ou melhor, de morte), no caso de
no submisso ao tratamento, em regra, deve a vontade prevalecer?
Acreditamos que no, ponderando-se pela vida, devendo ser feita a
ressalva, como exceo, aos casos de paciente terminal, com impossi-
bilidade de reverso de quadro clnico, que pretende a prevalncia de
internao da autora. Ressarcimento, por outro lado, de despesas efetuadas com exames
mdicos, entre outras, que no merece acolhido, posto no terem sido os valores despendidos
pela apelante. Recurso no provido (TJSP, Acrdo 123.430-4/Sorocaba, Terceira Cmara de
Direito Privado, Rel. Des. Flavio Pinheiro, j. 07.05.2002).
19
SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. So Paulo: Atlas, 2011, p. 52.

sua vontade naquilo que se convencionou denominar como testamento
vital ou biolgico.
Nessa seara, alterando-se substancialmente os fatos, modifica-
-se a concluso do sopesamento. Assim, o presente autor filiado ao
teor do que consta do art. 41 do Cdigo de tica Mdica do Conse-
lho Federal de Medicina, segundo o qual vedado ao mdico abreviar
a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante
legal. Como nica ressalva, estabelece o pargrafo nico da norma
tica que, nos casos de doena incurvel e terminal, deve o mdico ofe-
recer todos os cuidados paliativos disponveis, sem empreender aes
diagnsticas ou teraputicas inteis ou obstinadas, levando sempre em
considerao a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibili-
dade, a de seu representante legal.
Partindo para outro caso concreto, como resolver a situao
ftica, que no seja pela ponderao, do sujeito que demandou labo-
ratrio de anlises clnicas que lhe apresentou exame positivo de HIV
sem que houvesse pedido seu e de mdico? In casu, o exame solicitado
era de hepatite, e no de AIDS, sustentando o autor da ao a existn-
cia de um direito fundamental de no saber. Conforme publicao do
decisum,
[...] trata-se, na origem, de ao de reparao por danos materiais

e compensao por danos morais contra hospital no qual o autor,
recorrente, alegou que preposto do recorrido, de forma negligente,
realizou exame no solicitado, qual seja, anti-HIV, com resultado
positivo, o que causou enorme dano, tanto material quanto moral,
com manifesta violao da sua intimidade. A Turma, ao prosseguir
o julgamento, por maioria, entendeu que, sob o prisma individual,
o direito de o indivduo no saber que portador de HIV (caso se
entenda que este seja um direito seu, decorrente da sua intimidade)
sucumbe, suplantado por um direito maior, qual seja, o direito
vida longeva e saudvel. Esse direito somente se revelou possvel ao
autor da ao com a informao, involuntria verdade, sobre o seu
real estado de sade. Logo, mesmo que o indivduo no queira ter
conhecimento da enfermidade que o acomete, a informao correta
e sigilosa sobre o seu estado de sade dada pelo hospital ou labora-
trio, ainda que de forma involuntria, tal como no caso, no tem o
condo de afrontar sua intimidade, na medida em que lhe propor-
ciona a proteo de um direito maior. Assim, a Turma, por maioria,
negou provimento ao recurso. (REsp 1.195.995/SP, Rel. origin-
ria Min. Nancy Andrighi, Rel. para acrdo Min. Massami Uyeda, j.
22.03.2011).
Comentando o aresto, leciona Lucas Miotto Lopes que o direito

de no saber um direito distinto do direito privacidade e s tem

efeitos caso haja a manifestao expressa de preferncia. Tem limi-
tes na probabilidade da violao de direitos de outras pessoas.20 Esse
limite foi aplicado ao caso exposto, pois o fato de o demandante no
saber ser portador do vrus HIV poderia trazer prejuzos a terceiros.
Por isso, o seu pedido reparatrio em face do laboratrio que fez o
exame de sangue de maneira equivocada foi corretamente rejeitado,
com o uso da tcnica de ponderao.
Muito alm desses casos, em que a tcnica da ponderao se
mostrou eficiente, possvel a sua utilizao em contendas relativas ao
Direito de Famlia e das Sucesses. Antes de sua exposio, preciso
enfrentar as crticas que so feitas ao seu uso.
4CRTICAS AO USO DA TCNICA DA PONDERAO NO BRASIL E PRE-

MISSAS PARA O SEU AFASTAMENTO
No se olvide que tcnica da ponderao criticada por alguns

doutrinadores brasileiros, e com contundncia. Por todos, cite-se a
posio de Lnio Luiz Streck, jurista de grande destaque no Pas, con-
forme suas colunas publicadas no informativo Consultor Jurdico.
Em um de seus mais recentes textos, argumenta o respeitado
professor:
[...] surpreende, portanto, que o novo CPC incorpore algo que no

deu certo. Pior: no satisfeito em falar da ponderao, foi mais
longe na tropelia epistmica: fala em coliso entre normas (seria
um abalroamento hermenutico?) o que vai trazer maiores proble-
mas ainda, pela simples razo de que, na linguagem jurdica, regras
e princpios so... normas. E so. J ningum duvida disso. Logo, o
que vai haver de ponderao de regras no tem limite. Ou seja, sem
exageros, penso que o legislador cometeu um equvoco. Ou as tais
normas-que-entram-em-coliso seriam os tais postulados, meta-
normas pelas quais se faz qualquer coisa com o direito? Isso tem
nome: risco de estado de natureza hermenutico, eis o espectro que
ronda, no mau sentido, o direito brasileiro.21
20
LOPES, Lucas Miotto. EU no quero saber! Uma defesa do direito de no saber como inde-
pendente do direito privacidade. Revista Direito, Estado e Sociedade. Pontifcia Universi-
dade Catlica do Rio de Janeiro. Departamento de Direito, n. 45, Rio de Janeiro: PUCRJ, p.
82-97, julho a dezembro de 2014.
21
STRECK, Lnio Luiz. Ponderao de normas no novo CPC? o caos. Presidente Dilma, por
favor, veta! Coluna Senso Incomum. Consultor Jurdico. Publicada em 8 de janeiro de 2015.
Disponvel em: <http://www.conjur.com.br/2015-jan-08/senso-incomum-ponderacao-nor-
mas-cpc-caos-dilma-favor-veta>. Acesso em: 24 jan. 2015.

E arremata, propondo o veto ao comando pela Presidente da
Repblica, o que no ocorreu:
[...] quem disse que a ponderao (seja l o que o legislador quis dizer
com essa expresso) necessria? Por exemplo, possvel demons-
trar que essa histria de coliso no passa de um libi retrico para
exercer a escolha arbitrria. Posso demonstrar que onde se diz
existir uma tal coliso, na verdade o que existe apenas um artif-
cio para exercitar uma livre escolha. Jusfilsofos como Juan Garcia
Amado ironizam essa manobra pseudoargumentativa que lanar
mo da ponderao. O caso Elwanger um bom exemplo, em que
nada havia a ponderar (o melhor texto sobre isso de Marcelo Cat-
toni): bastava aplicar a lei que dizia que racismo crime hediondo.
Na verdade, posso demonstrar que o argumento da coliso sempre
chega atrasado. Sempre.22
Na opinio do presente autor, em tais aspectos, a crtica no se

sustenta, sendo pertinente expor nossas razes. Comeando pelo final
do texto de Lnio Streck, a ponderao , sim, necessria para resol-
ver os casos de difcil soluo, como os que aqui foram mencionados.
Como solucionar o dilema entre a liberdade de imprensa e a imagem?
Aplicando pura e simplesmente o art. 20 do Cdigo Civil? Ora, isso
conduziria censura, a uma soluo inconstitucional. E como resolver
o caso antes descrito, relativo ao direito de no saber e os interesses
coletivos relativos ao exame de HIV positivo?
Em reforo, no acreditamos que a ponderao seja um ato de
livre escolha, totalmente sem critrios. Essa a m ponderao, con-
forme o alerta do Ministro Lus Roberto Barroso, aqui antes exposto.
Nos termos do que consta do Novo CPC, seguindo as lies de Alexy,
a boa ponderao sempre deve ser fundamentada e utilizada em casos
excepcionais, quando a lei no traz a correta soluo.
Seguindo nos rebates aos argumentos de Streck, o aumento de
poder do julgador nos parece saudvel. Isso tem sido incrementado
pelas legislaes contemporneas no s no Brasil, como na Europa,
baseadas em conceitos abertos, construes legais indeterminadas e
clusulas gerais. O prprio Cdigo de Processo Civil de 2015 confirma
essa tendncia, conforme antes desenvolvido.
Acrescente-se que, quando da iminncia da entrada vigor do
Cdigo Civil de 2002, criticava-se o fato de essa legislao material
trazer um sistema aberto, que criaria a ditadura dos juzes. Em mais
22
STRECK, Lnio Luiz. Ponderao de normas no novo CPC? o caos. Presidente Dilma, por
favor, veta! Coluna Senso Incomum. Consultor Jurdico. Publicada em 8 de janeiro de 2015.
Disponvel em: <http://www.conjur.com.br/2015-jan-08/senso-incomum-ponderacao-nor-
mas-cpc-caos-dilma-favor-veta>. Acesso em: 24 jan. 2015.

de dez anos de sua vigncia, isso no se concretizou. Muito ao contr-
rio, verificou-se que a codificao material se tornou uma lei de toda a
comunidade jurdica, e em um sistema democrtico, as clusulas gerais
tm sido corretamente preenchidas. Acreditamos que o mesmo cami-
nho ser trilhado pelo Novo Cdigo de Processo Civil nos prximos
anos.
Pelo sistema de clusulas gerais, o legislador reconhece que no
pode prever tudo, resolver tudo, e atribui um pouco de seu poder aos
julgadores. Qual sistema jurdico seria melhor do que esse? Aquele
pautado na estrita legalidade? Ora, o legalismo no vingou, est supe-
rado. o momento de abrir os sistemas jurdicos. Por que no confiar
nos julgadores, deixando a f somente no legislador?
Em complemento, reafirme-se que para os casos antes expos-
tos no parecer haver outra maneira para resolver os problemas que
no seja pela tcnica da ponderao. H tempos a ponderao uti-
lizada pelos civilistas para resolver os problemas que lhe so levados
a conhecimento, especialmente por aqueles que seguem a viso civil-
-constitucional do sistema jurdico brasileiro. Na seara doutrinria,
resumindo a posio de muitos autores de Direito Civil, vale citar o
teor do Enunciado n. 274, da IV Jornada de Direito Civil, evento pro-
movido pelo Conselho da Justia Federal e pelo Superior Tribunal de
Justia no ano de 2006: Os direitos da personalidade, regulados de
maneira no exaustiva pelo Cdigo Civil, so expresses da clusula
geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1, III, da Constitui-
o (princpio da dignidade da pessoa humana). Em caso de coliso
entre eles, como nenhum pode sobrelevar os demais, deve-se aplicar a
tcnica da ponderao.
O mesmo deve ser dito nas hipteses fticas a seguir analisadas,
especficas do mbito do Direito de Famlia e das Sucesses.
5APLICAES DA TCNICA DA PONDERAO PARA RESOLVER PRO-

BLEMAS DE DIREITO DE FAMLIA E DAS SUCESSES NO BRASIL
Quando do X Congresso Brasileiro de Direito de Famlia e das

Sucesses, realizado pelo IBDFAM em outubro de 2015, aprovou-se
enunciado programtico reconhecendo a viabilidade do uso da tcnica
da ponderao para resolver os problemas relativos ao Direito de Fam-
lia e das Sucesses. Nos termos literais do Enunciado n. 17 do IBDFAM,
seguindo proposta deste autor, a tcnica de ponderao, adotada
expressamente pelo art. 489, 2, do Novo CPC, meio adequado para
a soluo de problemas prticos atinentes ao Direito das Famlias e das
Sucesses. Nesse contexto, podemos citar pelo menos trs hipteses

em que a ponderao eficiente para resolver as contendas, sem pre-
juzo de outras situaes.
A primeira situao diz respeito obrigatoriedade de realiza-
o do exame de DNA em ao de investigao de paternidade. Sobre o
tema, sempre discorreram muito bem Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo
Pamplona Filho, frequentemente citados em nossos textos. Lembram
esses doutrinadores contemporneos que:
Em artigo publicado no site do Conselho da Justia Federal, o Minis-

tro Moreira Alves ponderou: No Supremo Tribunal Federal, no h
muito, tivemos uma vasta discusso em habeas corpus, em que uma
juza havia determinado, debaixo de vara, a conduo de um inves-
tigando de paternidade que se recusava a extrair sangue para efeito
do exame de DNA. A juza no teve dvida e disse: conduza-se, ainda
que fora. Ele alegava: tenho terror e pnico at de injeo, quanto
mais de tirar sangue. Depois de uma vasta discusso no Plenrio do
Supremo Tribunal Federal, por 6 votos a 5, considerou-se que isso
atingia um direito de personalidade dele de no querer tirar sangue,
mas corria contra ele, obviamente, a presuno de que realmente
fosse o pai.23
Na situao descrita, percebe-se um claro choque entre direitos

fundamentais ou de personalidade. De um lado est o direito ao reco-
nhecimento do vnculo de paternidade, o direito verdade biolgica
que envolve a dignidade do suposto filho. Do outro, h o direito inte-
gridade fsica e intimidade do suposto pai, que tambm diz respeito
sua dignidade. Qual desses direitos deve prevalecer? Mais uma vez, ao
presente autor parece no existir outra sada para solucionar o dilema
que no seja pela adoo da tcnica de ponderao.
Como notrio, o Supremo Tribunal Federal ponderou, por
maioria e com grande divergncia, a favor do direito do suposto pai,
entendendo pela no obrigatoriedade da realizao do exame de DNA.
Vejamos o teor da ementa do julgamento:
Investigao de paternidade. Exame DNA. Conduo do ru debaixo

de vara. Discrepa, a mais no poder, de garantias constitucionais
implcitas e explcitas preservao da dignidade humana, da inti-
midade, da intangibilidade do corpo humano, do imprio da lei e da
inexecuo especfica e direta de obrigao de fazer provimento
judicial que, em ao civil de investigao de paternidade, impli-
que determinao no sentido de o ru ser conduzido ao laborat-
rio, debaixo de vara, para coleta do material indispensvel feitura
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. 4. ed. So
23
Paulo: Saraiva, 2003, v. I, p. 455.

do Exame DNA. A recusa resolve-se no plano jurdico-instrumen-
tal, consideradas a dogmtica, a doutrina e a jurisprudncia, no que
voltadas ao deslinde das questes ligadas prova dos fatos. (STF, HC
71.373/RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Francisco Rezek, Rel. p/ o acr-
do Min. Marco Aurlio, julgado 10.11.1994, DJ 22.11.1996, p. 45.686).
Desse modo, entendeu-se pela proteo dos direitos de quarta

gerao ou dimenso, aqueles relacionados com o patrimnio gentico
da pessoa humana, valorizada a sua dignidade luz do Texto Maior.
Como bem aponta Mnica Aguiar, professora da Universidade Federal
da Bahia, o julgado acaba representando a tutela do Habeas Genoma.
Suas palavras merecem destaque, propondo uma nova medida proces-
sual para a proteo dos dados biolgicos, que no foi adotada pelo
Novo CPC, infelizmente:
Outrossim, h que ressaltar que a informao gentica nica, sin-

gular, haja vista que todo indivduo geneticamente irrepetvel. Os
dados dos gentipos so inalterveis. [...] A proteo desse direito
h de ser garantida pela construo de um instrumento processual
prprio intitulado Habeas Genoma, que deve ser preferencialmente
preventivo para assegurar que no ocorra o acesso ilcito aos dados
pessoais do genoma humano.24
De toda sorte, nota-se que, apesar de o Supremo Tribunal Fede-

ral ter entendido pela prevalncia dos direitos do suposto pai, diante
da no obrigatoriedade do exame, a soluo dada foi no sentido da
incidncia de uma presuno relativa ou iuris tantum da paternidade.
Como se percebe, acabou por prevalecer o direito do pai em no se
submeter ao exame, mas a soluo final foi contra os seus interesses,
pela existncia da citada presuno. Tal tipo de soluo perfeita-
mente possvel nos casos envolvendo a ponderao, ou seja, na expres-
so machadiana, ao vencedor, as batatas!
Consigne-se que essa deciso superior acabou por influenciar a
redao dos arts. 231 e 232 do Cdigo Civil de 2002, segundo os quais,
respectivamente, aquele que se nega a submeter-se a exame mdico
necessrio no poder aproveitar-se de sua recusa e a recusa per-
cia mdica ordenada pelo juiz poder suprir a prova que se pretendia
obter com o exame. Influenciou, ainda, a Smula n. 301 do Superior
Tribunal de Justia, do ano de 2004, in verbis: em ao investigat-
ria, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz
AGUIAR, Mnica. Direito intimidade gentica em face do art. 232 do Cdigo Civil e sua
24
defesa pela criao de um habeas genoma. In: DIDIER JR., Fredie; MAZZEI, Rodrigo (Coord.).
Prova, exame mdico e presuno: o art. 232 do Cdigo Civil. Salvador: Juspodivm, 2006, p.
203.

presuno juris tantum de paternidade. Por fim, cite-se a ainda mais
recente, e at dispensvel, Lei n. 12.004/2009, que introduziu o art.
2-A na Lei n. 8.560/1992, com o seguinte teor:
Na ao de investigao de paternidade, todos os meios legais, bem

como os moralmente legtimos, sero hbeis para provar a verdade
dos fatos.
Pargrafo nico. A recusa do ru em se submeter ao exame de
cdigo gentico DNA gerar a presuno da paternidade, a ser
apreciada em conjunto com o contexto probatrio.
Como se nota, a ponderao efetuada pelo Supremo Tribunal

Federal acabou por ser positivada na lei, outro efeito salutar que pode
advir da tcnica.
Ademais, a decisum analisada concretizou na prtica a mxima
constitucional segundo a qual ningum pode ser obrigado a fazer prova
contra si mesmo, com amplas consequncias no s para o Direito
Civil, mas tambm para outras searas, como no caso da impossibili-
dade de se obrigar fisicamente os motoristas a se submeterem ao teste
do bafmetro.
Exposta essa primeira ilustrao, como outro exemplo a respeito
da ponderao h uma forte tendncia material e processual em apon-
tar a relativizao da coisa julgada, particularmente nos casos envol-
vendo as aes de investigao de paternidade julgadas improcedentes
por ausncia de provas, em momento em que no existia o exame de
DNA. Nesse sentido, prev o Enunciado n. 109 do CJF/STJ, da I Jornada
de Direito Civil, que: A restrio da coisa julgada oriunda de demandas
reputadas improcedentes por insuficincia de prova no deve prevale-
cer para inibir a busca da identidade gentica pelo investigando.
No mbito da doutrina, muitos juristas so favorveis a tal relati-
vizao.25 Nessa linha, entre os civilistas, Maria Helena Diniz sustenta
que,
sem embargo, diante da quase certeza do DNA, dever-se-ia, ainda,

admitir a reviso da coisa julgada (RT, 802:213) para fins de investi-
gao de paternidade, em casos de provas insuficientes, produzidas
na ocasio da prolao da sentena, para garantir o direito ao res-
peito dignidade humana (CF, art. 1, III), identidade gentica e
filiao, sanando qualquer injustia que tenha ocorrido em razo de
Veja, a esse propsito, os j clssicos textos de Humberto Theodoro Jnior, Jos Augusto
25
Delgado e Cndido Rangel Dinamarco em obra coordenada por Carlos Valder do Nascimento
(NASCIMENTO, Carlos Valder do. Coisa julgada inconstitucional. Rio de Janeiro: Amrica Jur-
dica, 2002).

insuficincia probatria e, alm disso, o registro pblico deve con-
ter a verdade real.26
Todavia, alguns processualistas criticam veemente essa tendn-

cia de mitigao, como o caso, por exemplo, de Nelson Nery Jr.27 Em
suas aulas e exposies, o jurista continua a apontar que algo prximo
da relativizao da coisa julgada foi utilizado na Alemanha nacional-
-socialista, para que Adolf Hitler impusesse o seu poder. Em outras
palavras, para o renomado jurista, a referida relativizao traria um
precedente perigosssimo, que poderia at ser utilizado por pessoas
com pretenses totalitrias.
Contudo, apesar de tais resistncias, pela relativizao, em casos
excepcionais vrias so as manifestaes favorveis entre os civilistas.
Em seu primeiro precedente sobre o tema, entendeu o Superior Tribu-
nal de Justia pela possibilidade de relativizao da coisa julgada mate-
rial em situaes tais, em caso envolvendo ao de investigao julgada
improcedente em momento anterior, em que no existia o exame de
DNA no Brasil.
Conforme se retira desse notrio acrdo, que teve como relator
o saudoso Ministro Slvio de Figueiredo Teixeira,
[...] no excluda expressamente a paternidade do investigado na

primitiva ao de investigao de paternidade, diante da preca-
riedade da prova e da ausncia de indcios suficientes a caracteri-
zar tanto a paternidade como a sua negativa, e considerando que,
quando do ajuizamento da primeira ao, o exame pelo DNA ainda
no era disponvel e nem havia notoriedade a seu respeito, admite-
-se o ajuizamento de ao investigatria, ainda que tenha sido afo-
rada uma anterior com sentena julgando improcedente o pedido.
Nos termos da orientao da Turma, sempre recomendvel a rea-
lizao de percia para investigao gentica (HLA e DNA), porque
permite ao julgador um juzo de fortssima probabilidade, seno de
certeza na composio do conflito. Ademais, o progresso da cin-
cia jurdica, em matria de prova, est na substituio da verdade
ficta pela verdade real. A coisa julgada, em se tratando de aes
de estado, como no caso de investigao de paternidade, deve ser
interpretada modus in rebus. Nas palavras de respeitvel e avan-
ada doutrina, quando estudiosos hoje se aprofundam no reestudo
do instituto, na busca, sobretudo, da realizao do processo justo,
a coisa julgada existe como criao necessria segurana prtica
26
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 28. ed. So Paulo: Saraiva, 2013, v. 5, p.
555-556.
27
A supremacia da Constituio a prpria coisa julgada, enquanto manifestao do Estado
Democrtico de Direito. (NERY JR., Nlson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Cdigo de Pro-
cesso Civil comentado. 9. ed. So Paulo: RT, 2006, p. 598).

das relaes jurdicas e as dificuldades que se opem sua ruptura
se explicam pela mesmssima razo. No se pode olvidar, todavia,
que numa sociedade de homens livres, a Justia tem de estar acima
da segurana, porque sem Justia no h liberdade. (STJ, REsp
226.436/PR, Quarta Turma, Rel. Min. Slvio de Figueiredo Teixeira,
julgado em 28.06.2001, DJ 04.02.2002, p. 370).
Reafirme-se que, pelo que consta da ementa do julgado, pos-

svel uma nova ao para a prova da paternidade, se a ao anterior
foi julgada improcedente, por insuficincia de provas, em momento em
que no existia o exame de DNA. O que se percebeu, na realidade, foi
uma soluo do caso concreto a partir da utilizao da tcnica de pon-
derao, adotada expressamente pelo Novo CPC.
Nota-se que, na hiptese em questo, esto em conflito a pro-
teo da coisa julgada (art. 5, XXXVI, da CF/1988) e a dignidade do
suposto filho de saber quem o seu pai (art. 1, III, da CF/1988). Nessa
coliso entre direitos fundamentais, o Superior Tribunal de Justia
posicionou-se favoravelmente ao segundo, de maneira correta.
Pontue-se que, da mesma forma e em 2011, decidiu o Supremo
Tribunal Federal de maneira similar, conforme julgado publicado no
seu Informativo n. 622. Merece destaque o seguinte trecho do voto do
Ministro Dias Toffoli:
Reconheceu-se a repercusso geral da questo discutida, haja vista

o conflito entre o princpio da segurana jurdica, consubstan-
ciado na coisa julgada (CF, art. 5, XXXVI), de um lado; e a dignidade
humana, concretizada no direito assistncia jurdica gratuita (CF,
art. 5, LXXIV) e no dever de paternidade responsvel (CF, art. 226,
7), de outro. [...]. A seguir, destacou a paternidade responsvel como
elemento a pautar a tomada de decises em matrias envolvendo
relaes familiares. Nesse sentido, salientou o carter personals-
simo, indisponvel e imprescritvel do reconhecimento do estado
de filiao, considerada a preeminncia do direito geral da perso-
nalidade. Aduziu existir um paralelo entre esse direito e o direito
fundamental informao gentica, garantido por meio do exame
de DNA. No ponto, asseverou haver precedentes da Corte no sen-
tido de caber ao Estado providenciar aos necessitados acesso a esse
meio de prova, em aes de investigao de paternidade. Reputou
necessria a superao da coisa julgada em casos tais, cuja deci-
so terminativa se dera por insuficincia de provas [...]. Afirmou que
o princpio da segurana jurdica no seria, portanto, absoluto, e
que no poderia prevalecer em detrimento da dignidade da pessoa
humana, sob o prisma do acesso informao gentica e da perso-
nalidade do indivduo. Assinalou no se poder mais tolerar a preva-
lncia, em relaes de vnculo paterno-filial, do fictcio critrio da

verdade legal, calcado em presuno absoluta, tampouco a negativa
de respostas acerca da origem biolgica do ser humano, uma vez
constatada a evoluo nos meios de prova voltados para esse fim.
(STF, RE 363.889/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, 07.04.2011).
Mais uma vez, a questo foi claramente resolvida pela tcnica da

ponderao.
Expostas essas duas concrees relativas ao mbito do Direito
de Famlia, tambm na seara do Direito das Sucesses a ponderao
tem mltiplas incidncias. Entre tantas, podemos aqui destacar algu-
mas interpretaes relativas ao direito real de habitao do cnjuge e
do companheiro.
No que diz respeito ao cnjuge, tal direito est expressamente
tratado pelo art. 1.831 do Cdigo Civil, segundo o qual ao cnjuge
sobrevivente, independentemente do regime de bens do casamento,
reconhecido o direito real de habitao relativamente ao imvel des-
tinado residncia da famlia, desde que seja o nico daquela natu-
reza a inventariar. Consigne-se que, no sistema do Cdigo Civil de 1916,
tal direito somente era reconhecido ao cnjuge casado pelo regime da
comunho universal de bens (art. 1.611).
A respeito do companheiro, no h norma especfica sobre o
mesmo direito real. Todavia, prevalece o entendimento pela sua inci-
dncia, diante da no revogao do art. 7, pargrafo nico, da Lei n.
9.278/1996, in verbis: Dissolvida a unio estvel por morte de um dos
conviventes, o sobrevivente ter direito real de habitao, enquanto
viver ou no constituir nova unio ou casamento, relativamente ao
imvel destinado residncia da famlia. Como se pode perceber, exis-
tem diferenas textuais entre as duas categorias, uma vez que o direito
real de habitao do cnjuge restrito ao nico imvel de residncia
do casal; o que no est previsto na ltima norma, que apenas estabe-
lece a condio de sua persistncia no caso de o companheiro no se
casar ou constituir nova unio.
Pois bem, apesar de uma grande controvrsia inicial sobre a per-
sistncia ou no do direito real de habitao do companheiro, diante
da ausncia de previso legislativa, a questo acabou por encontrar
certo grau de pacificao. No mbito da doutrina, resumindo a posio
amplamente majoritria, merece destaque o Enunciado n. 117 do CJF/
STJ, da I Jornada de Direito Civil, com o seguinte texto: o direito real
de habitao deve ser estendido ao companheiro, seja por no ter sido
revogada a previso da Lei n. 9.278/1996, seja em razo da interpreta-
o analgica do art. 1.831, informado pelo art. 6, caput, da CF/1988.
A meno ao dispositivo constitucional j demonstra uma ponderao
doutrinria em favor da tutela da moradia.

Na jurisprudncia, por todos, merece destaque o seguinte aresto
do Superior Tribunal de Justia, que no deixa qualquer dvida:
[...] entendimento pacfico no mbito do STJ que a companheira

suprstite tem direito real de habitao sobre o imvel de pro-
priedade do falecido onde residia o casal, mesmo na vigncia do
atual Cdigo Civil. Precedentes. (REsp 1.203.144/RS, Rel. Minis-
tro Luis Felipe Salomo, Quarta Turma, julgado em 27.05.2014, DJe
15.08.2014).
Para afastar qualquer dvida, talvez seja o momento de o Tribu-

nal da Cidadania editar uma sumular com essa afirmao.
Deve ser esclarecido que esse direito real recai sobre a coisa,
conforme o art. 1.225, inciso VI, da codificao material, dando ao habi-
tante, seu beneficiado, o direito de residir no bem, sem a necessidade
de pagamento de qualquer valor aos demais herdeiros, caso de eventu-
ais aluguis. A propriedade do bem atribuda a quem de direito, caso
do herdeiro legtimo ou testamentrio, mantendo-se a restrio real,
que no impede a venda do imvel para terceiros. A propriedade do
bem clausulado pode ser vendida, mas no o direito real de habitao,
que inalienvel, como o o usufruto, por combinao dos arts. 1.393
e 1.416 do Cdigo Civil.
Trata-se do mais restrito dos direitos reais sobre coisa alheia,
pois, em tese, autoriza o seu uso apenas com os fins de residncia, no
concedendo a utilizao para outras finalidades, ou a retirada de fru-
tos, caso da locao, como ocorre no usufruto. Em sua literalidade,
enuncia o art. 1.414 do CC/2002 que, quando o uso consistir no direito
de habitar gratuitamente casa alheia, o titular deste direito no a pode
alugar, nem emprestar, mas simplesmente ocup-la com sua famlia.
De toda sorte, entendemos que essa regra pode ser quebrada, diante
da proteo constitucional da moradia, ponderando-se a favor desse
direito.
De incio, imagine-se que o cnjuge loque esse imvel por ques-
to de necessidade mnima, utilizando o aluguel da coisa para a loca-
o de outro bem, destinado para a sua moradia. Nessas situaes,
entende o presente autor que o direito pode ser mantido, conforme
decidiu, analisando socialmente a questo, o Tribunal de Justia do Rio
Grande do Sul:
Agravo interno. Agravo de instrumento. Deciso monocrtica.

Inventrio. Bem locado. Direito real de aquisio do cnjuge sobrevi-
vente. Ainda que o cnjuge no resida no imvel, sendo este o nico
bem, possui direito real de habitao. Estando o imvel locado, e

sendo o valor dos aluguis utilizados na subsistncia do cnjuge, o
valor deve ser auferido integralmente pelo cnjuge. Deram parcial
provimento. (TJRS, Agravo 70027892637, 8 Cmara Cvel, Caxias do
Sul, Rel. Des. Rui Portanova, j. 12.03.2009, DOERS 20.03.2009, p. 40).
Em complemento e acompanhando em parte essa forma de jul-

gar, cite-se ementa do Tribunal Paulista, que confirmou a existncia do
direito real de habitao mesmo estando parte do imvel locado a ter-
ceiros. Nos termos da correta e justa deciso:
[...] de cujus que era casado com a apelante em regime de separa-

o de bens. Direito do cnjuge suprstite a permanecer no imvel
de residncia comum do casal. Locao da edcula localizada nos
fundos da casa principal que no impede o direito real de habita-
o. Sentena reformada. Recurso provido. (TJSP, Apelao Cvel
0331626-38.2007.8.26.0577, Acrdo 6388912, 8 Cmara de Direito
Privado, So Jos dos Campos, Rel. Des. Helio Faria, j. 05.12.2012,
DJESP 14.01.2013).
Cabe pontuar que a proteo desse direito real de habitao ex

vi lege muito prxima da tutela do bem de famlia legal, constante
da Lei n. 8.009/90. Essa importante lei especial considera como impe-
nhorvel, de forma automtica, o imvel destinado para a residncia
da entidade familiar, proteo ampliada pela jurisprudncia tambm ao
imvel onde reside a pessoa solteira, como consta da Smula 364 do
Superior Tribunal de Justia.
Igualmente, em um sentido de necessria ampliao para a tutela
da moradia, entende h tempos o Superior Tribunal de Justia que
tambm bem de famlia, e, portanto, impenhorvel, o nico imvel
locado a terceiro, cujo produto da locao utilizado para alugar outro
imvel, esse sim destinado moradia (entre os mais antigos preceden-
tes: STJ, REsp 159.213/ES, 4 Turma, Rel. Min. Slvio de Figueiredo Tei-
xeira, j. 20.04.1999, DJ 21.06.1999, p. 162). A questo se consolidou de tal
forma que, em 2012, a Corte Superior editou a Smula 486, in verbis:
nico imvel residencial alugado a terceiros impenhorvel, desde
que a renda obtida com o aluguel seja para subsistncia do propriet-
rio. O presente autor denomina tal situao como do bem de famlia
indireto. De forma similar, aqui, pode-se falar em direito real de habita-
o indireto, raciocnio que de forma equnime serve para a tutela do
direito real de habitao do companheiro.
No que toca constituio de uma nova famlia pelo habitante,
vislumbra-se a hiptese em que o cnjuge sobrevivente no tem boas
condies econmicas e financeiras, ao contrrio dos outros herdei-
ros, descendentes, que so inclusive proprietrios de outros imveis.

Seria justo desalojar o cnjuge pelo simples fato de constituir nova
famlia? Este autor entende que no, sendo necessrio ponderar a favor
da moradia e da famlia, a partir dos valores constantes dos arts. 6 e
1, inciso III, do Texto Maior. Cite-se, ainda, o art. 226, caput, da Consti-
tuio Federal, segundo o qual a famlia a base da sociedade.
Em suma, o caso concreto que vai determinar se o direito
real de habitao do cnjuge ou do companheiro persiste ou no. A
propsito de outra situao ftica, em que o cnjuge j propriet-
rio de outro imvel, a soluo deve ser a mesma. Assim, se o falecido,
casado por separao obrigatria, deixou dois filhos que no possuem
casa prpria e a esposa, que j tem um imvel anterior, o direito real
de habitao pode no ser atribudo ltima, para a efetiva tutela da
moradia dos filhos.
Nota-se que, tratando-se de proteo da moradia, direito social
e fundamental reconhecido pela Constituio Federal de 1988, no
possvel trabalhar com ideias fechadas e imutveis, sendo vivel sem-
pre buscar socorro na tcnica da ponderao.
6CONCLUSO
Diante deste artigo, chegou-se s seguintes concluses:
a) A tcnica de ponderao foi adotada expressamente de forma

salutar pelo art. 489, 2, do Novo Cdigo de Processo Civil, sendo
uma de suas elogiveis inovaes. Trata-se de mecanismo argumenta-
tivo h tempos utilizado pelos civilistas brasileiros, para a resoluo de
casos concretos, conforme o Enunciado n. 274, da IV Jornada de Direito
Civil, de 2006.
b) O Novo CPC adotou apenas em parte as lies de Robert Alexy
sobre a tcnica da ponderao, desenvolvida para solucionar conflitos
entre direitos fundamentais. A ponderao brasileira, em tom mais
amplo, diz respeito no s a esses direitos, mas tambm a normas e
regras.
c) A ponderao tem-se mostrado como tcnica eficiente no
Brasil para resolver os dilemas e conflitos entre o direito imagem e
o direito informao. Cite-se, a esse propsito, a sua utilizao pelo
Supremo Tribunal Federal no julgamento relativo s biografias no
autorizadas. O seu uso deve ser apenas em casos excepcionais, quando
a lei foi ausente ou insuficiente para a soluo do caso concreto.
d) Este artigo demonstrou que no se sustentam as crticas fei-
tas ao uso da ponderao, especialmente aquelas desenvolvidas pelo

jurista Lnio Streck, que alega a sua inconstitucionalidade. Muito ao
contrrio, trata-se de um artifcio constitucional, que deve ser incre-
mentado nos prximos anos, para apresentar caminho de resoluo s
hipteses fticas complicadas ou de difcil soluo.
e) No mbito do Direito de Famlia, a tcnica da ponderao
meio eficiente para resolver os dilemas e as contendas. Este estudo
demonstra, nesse contexto, a inviabilidade da obrigatoriedade do
exame de DNA, acarretando a sua negativa presuno relativa da
paternidade. Expe tambm que a relativizao da coisa julgada nas
aes de investigao de paternidade tem sido a soluo adequada para
resolver contendas pelos Tribunais Superiores, a partir da ponderao.
f) Na seara do Direito das Sucesses, a ponderao a favor da
moradia, prevista no art. 6 da Constituio da Repblica, deve entrar
em cena para a proteo do direito real de habitao do cnjuge e do
companheiro.
g) Sintetizando as linhas mestras deste estudo, pontue-se a
aprovao, no X Congresso de Direito de Famlia, realizado pelo Insti-
tuto Brasileiro de Direito de Famlia (IBDFAM) em 2015, de enunciado
programtico, no sentido de ser a tcnica da ponderao meio efi-
ciente para resolver os problemas relativos ao Direito de Famlia e das
Sucesses.
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A VIOLNCIA PATRIMONIAL CONTRA A
MULHER NOS LITGIOS DE FAMLIA
Mrio Luiz Delgado
Doutor em Direito Civil pela Universidade de So Paulo (USP).

Mestre em Direito das Relaes Sociais pela Pontifcia Universidade
Catlica de So Paulo (PUCSP). Especialista em Direito Processual
Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Presidente da Comisso de Assuntos Legislativos do Instituto
Brasileiro de Direito de Famlia (IBDFAM).
Sumrio: 1. Introduo. 2. A violncia domstica e fami-

liar. 3. A violncia patrimonial no curso das aes de fam-
lia. 3.1. Subtrao de bens, valores e direitos ou recursos
econmicos. 3.2. Destruio parcial ou total de objetos,
instrumentos de trabalho e documentos pessoais. 3.3.
Reteno de bens, valores e direitos ou recursos econmi-
cos. 4. Dificuldades para punir a violncia patrimonial. 5.
Medidas protetivas para coibir a violncia patrimonial no
curso das aes de famlia.
1INTRODUO
A Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006), sempre festejada pelo

grande avano que representou no combate violncia domstica con-
tra a mulher, completou nove anos em 7 de agosto de 2015. Muito se
tem escrito e debatido sobre o que mudou no panorama da violncia
domstica nesse perodo. Infelizmente essa dura realidade, fruto das
desigualdades histrico-culturais1 existentes entre os sexos, ainda
permanece. A luta contra as diferenas de gnero persiste.
Em artigo publicado no CONJUR, Rodrigo da Cunha Pereira
divulga dados do Data Senado com nmeros constrangedores, que
deveriam escandalizar a nossa conscincia civilizatria: uma em cada
Desde os tempos do Antigo Testamento, passando pelo Imprio Romano at a Europa feudal
1
e chegando Amrica do sculo XX, subsiste a ideia de que os homens so superiores s

mulheres. Quase todas as leis religiosas, tais como a Bblia Crist, o Talmude, o Alcoro, o
Livro dos Mrmons, pregam a superioridade masculina, concedendo ao homem o direito de
dominar a mulher. E os conceitos machistas foram transportados para as leis seculares e
vigoram at hoje em muitos pases.

cinco brasileiras vtima de violncia domstica ou familiar. O maior
nmero de agresses recai sobre as que tm menos escolaridade. O
inimigo est dentro de casa ou j foi de casa. Os maridos ou compa-
nheiros so os responsveis por 49% dessa barbrie; e ex-maridos ou
ex-namorados, por 21%; os namorados, por 3%.2
Apesar disso, seria injusto negar o contributo da lei para a
melhoria das condies da mulher no cenrio da violncia domstica,
especialmente no que tange impunidade dos agressores.
A Lei Maria da Penha no criou novos tipos penais, mas propi-
ciou uma releitura dos tipos penais existentes, ao mesmo tempo em
que assegurou, no mbito do processo penal, um tratamento diferen-
ciado e protetivo da mulher (discriminao positiva), de modo a suprir
as diferenas decorrentes do gnero. Ela mudou a forma de se inter-
pretar a tipificao penal tradicional, ampliando o conceito de violn-
cia domstica para abarcar certas condutas que antes eram excludas
dos tipos penais.
Alm da violncia fsica, sempre a face mais chocante da vio-
lncia domstica, a lei elasteceu a moldura normativa, possibilitando
a incorporao na tipificao de outras formas de violncia doms-
tica e familiar em razo do gnero, as quais, apesar de muito frequen-
tes, eram pouco invocadas como instrumentos de proteo mulher
agredida.3
Nas demandas em curso nas Varas de Famlia, especialmente nos
processos de divrcio com partilha de bens e de alimentos, so abun-
dantes os crimes praticados contra o cnjuge-virago e que passam
despercebidos pelos advogados no militantes na advocacia criminal.
Especialmente crimes de ordem patrimonial, praticados em decorrn-
cia de uma relao assimtrica de poder contra quem se encontra em
desvantagem e em situao de hipossuficincia, justamente por ser
2
REVISTAConsultor Jurdico, 6 set. 2015.
3
HABEAS CORPUS LEI MARIA DA PENHA VIOLNCIA DOMSTICA PSICOLGICA
DEFERIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS PREVISTAS NA LEI 11.340/06 PREVISO LEGAL
AUSNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL NEGATIVA DE AUTORIA IMPOSSIBILI-
DADE DE ANLISE EM SEDE DE HABEAS CORPUS DENEGAO DA ORDEM. Os crimes de
violncia domstica, em geral, so praticados no mbito familiar, no havendo, pois, testemu-
nhas presenciais, pelo que a palavra da vtima suficiente para o deferimento de medidas
protetivas. No incorre em cerceamento de defesa o deferimento de tais medidas imediata-
mente, sem a manifestao do Ministrio Pblico ou a oitiva do suposto agressor, porquanto
se trata de medida cautelar para coibir e prevenir a prtica de violncia domstica e familiar
contra a mulher. A violncia domstica e familiar no envolve somente a violncia fsica e a
sexual, mas tambm a violncia psicolgica, patrimonial e moral. Havendo, na narrativa da
vtima, descrio de violncia psicolgica ou, at mesmo, moral, configurado est o crime, em
tese, insculpido no 9, do art. 129, do Cdigo Penal. Ordem denegada. (TJMG Habeas Cor-
pus Criminal 1.0000.09.489855-8/000, Relator(a): Des.(a) Alexandre Victor de Carvalho , 5
CMARA CRIMINAL, julgamento em 31.03.2009, publicao da smula em 17.04.2009). (Grifos
nossos).
mulher. Estamos nos referindo violncia patrimonial contra a mulher,
que vem a ser espcie do gnero violncia domstica e familiar.
Nos conflitos conjugais, a violncia patrimonial mais conhecida
aquela praticada mediante destruio de bens materiais e objetos
pessoais4 ou a sua reteno indevida, nos casos de separao de fato,
no af de coagir a mulher a retomar ou a manter-se na convivncia
conjugal.
Entretanto, a violncia patrimonial pode ser engendrada por
formas mais sutis e que, justamente por isso, no so analisadas pelo
operador do Direito sob o aspecto criminal. O atentado contra o patri-
mnio da mulher tambm pode ser praticado, por exemplo, pelo marido
que subtrai ou faz uso exclusivo dos bens comuns ou pelo devedor de
alimentos que retm o pagamento da verba devida ao ex-cnjuge.
sobre esse aspecto da violncia domstica que nos propomos a
refletir neste trabalho.
2A VIOLNCIA DOMSTICA E FAMILIAR
A violncia domstica e familiar contra a mulher caracteriza

forma especfica de violao dos direitos humanos.5 Essa violao
representada por qualquer ao ou omisso baseada no gnero que
cause morte, leso, sofrimento fsico, sexual ou psicolgico e dano
moral ou patrimonial e tenha sido praticada no mbito da unidade
domstica, no mbito da famlia ou no mbito de qualquer relao
ntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a
ofendida, independentemente de coabitao.
A lei tambm clara quando enuncia que a sua aplicao inde-
pende de orientao sexual. E por isso a lei pode ser invocada mesmo
quando o autor da agresso for outra mulher. O que se pretende coi-
bir a opresso contra a mulher em decorrncia de uma questo de
gnero enquanto relao assimtrica de poder, podendo figurar como
agentes do tipo penal tanto homens quanto mulheres. A mulher agres-
sora, no caso, age como se fosse homem.6
4
Essa manifestao da violncia patrimonial mais relatada nas situaes em que o agressor
quebra mveis e eletrodomsticos, atira objetos pela janela, rasga roupas e documentos, fere
ou mata animais de estimao.
5
A Organizao Mundial de Sade, por sua vez, considera esse tipo de violncia como uma
questo de sade pblica.
6
EMENTA: PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. VIOLNCIA DOMSTICA.
RELAO HOMOAFETIVA PRETRITA. VULNERABILIDADE DEMONSTRADA PELA RELAO
DE AFETO. COMPETNCIA DO JUIZADO ESPECIALIZADO NO COMBATE VIOLNCIA
DOMSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. 1. De acordo com o art. 5 da Lei n.11.340/2006,
o Juizado de Violncia Domstica e Familiar contra a Mulher competente para processar e
J na relao entre dois homens, ou mesmo na relao entre
homem e mulher, figurando o homem como vtima da violncia, no
possvel a aplicao da Lei Maria da Penha, por fora da interpretao
necessariamente restritiva das normas sancionadoras.7
A Lei Maria da Penha no criou o crime de violncia domstica,
mas, ao definir e especificar as diversas formas de violncia domstica
e familiar contra a mulher, permitiu uma tipificao mais eficiente dos
crimes j previstos na legislao.
A violncia domstica no se expressa apenas pela violncia
fsica, relacionada s ofensas integridade ou sade corporal, mas
tambm pela violncia psicolgica, representada por qualquer conduta
que cause prejuzo sade psicolgica, autodeterminao e auto-
estima da mulher (ameaa, constrangimento, humilhao, manipula-
o, isolamento, vigilncia constante, perseguio contumaz, insulto,
chantagem, ridicularizao, explorao e limitao do direito de ir e
vir, etc); pela violncia sexual, que consiste em constranger a mulher
a presenciar, a manter ou a participar de relao sexual no desejada,
mediante intimidao, ameaa, coao ou uso da fora; que a induza a
comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que
a impea de usar qualquer mtodo contraceptivo ou que a force ao
matrimnio, gravidez, ao aborto ou prostituio, mediante coao,
chantagem, suborno ou manipulao; ou que limite ou anule o exerc-
cio de seus direitos sexuais e reprodutivos; pela violncia moral, prati-
cada por meio de calnia, difamao ou injria.
E, finalmente, pela violncia patrimonial, entendida como qual-
quer conduta que configure reteno, subtrao, destruio parcial ou
total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais,
julgar infraes penais cuja motivao seja a opresso mulher, podendo figurar como sujeito
ativo tanto homens quanto mulheres. 2. No caso em tela, a violncia decorreu de relao
homoafetiva pretria entre mulheres, estando caracterizada a situao de vulnerabilidade
por conta da relao de afeto. Ademais, o fato de as contendoras no residirem sob o mesmo
teto no descaracteriza a violncia domstica, eis que, conforme art. 5, III, da Lei Maria da
Penha, e art. 1 da Conveno Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violnica
contra a Mulher, pode ocorrer em qualquer relao ntima de afeto, na qual o agressor con-
viva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitao. 3. Recurso em
Sentido Estrito conhecido e provido.(TJAM- Recurso em Sentido Estrito n. 0204416-
91.2014.8.04.0020. Relatora : Carla Maria Santos dos Reis). (Grifos nossos).
7
CONFLITO DE COMPETNCIA. LEI MARIA DA PENHA. VTIMA. HOMEM. A Lei Maria da
Penha foi criada para dar proteo mulher. Quando a vtima do crime for um homem, no se
aplica a Lei Maria da Penha. No caso, a imputao de crime contra a honra do companheiro,
por ter este sido ofendido sob a imputao de ter se apoderado de dinheiro da sogra. No caso
criminal concretizado em juzo, o homem que se sentiu vtima, pelas ofensas e no as
mulheres (autoras das ofensas). CONFLITO DE COMPETNCIA PROCEDENTE. (Conflito de
Jurisdio n. 70042334987, Terceira Cmara Criminal, Tribunal de Justia do RS, Relator:
Nereu Jos Giacomolli, Julgado em 19.05.2011). Entretanto, se a vtima, no obstante fisica-
mente homem, for transexual, j decidiu o TJSP pela aplicao da Lei Maria da Penha. (Grifos
nossos).
bens, valores e direitos ou recursos econmicos, incluindo os destina-
dos a satisfazer suas necessidades.
No so novos crimes, mas uma nova viso sobre os mesmos
crimes sancionados no Cdigo Penal, desde que praticados contra a
mulher em razo do gnero.8 A maioria das manifestaes da violncia
domstica e familiar descritas na Lei n. 11.340 possui os seus corres-
pondentes tpicos no Cdigo Penal.
As penas cominadas a quem pratica a violncia domstica e
familiar, portanto, so as mesmas prognosticadas no Cdigo Penal
para os crimes contra a integridade fsica, contra a honra ou contra o
patrimnio, a depender do ncleo da conduta praticada. Como reflexo
processual da tipificao, e pretendendo atribuir maior efetividade
norma repressora, a lei estabelece ser proibida a aplicao, nos casos
de crimes cometidos com violncia domstica ou familiar contra a
mulher, de penas de cesta bsica ou outras de prestao pecuniria,
bem como a substituio de pena que implique o pagamento isolado de
multa (art. 17).
Recentemente, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Fede-
ral (STF) ainda entendeu incabvel, nos crimes cometidos com violn-
cia domstica, a substituio da pena privativa de liberdade por sano
restritiva de direitos.9
3A VIOLNCIA PATRIMONIAL NO CURSO DAS AES DE FAMLIA
A Lei n. 11.340 define a violncia patrimonial contra a mulher

como qualquer conduta que configure reteno, subtrao, destruio
parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos
pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econmicos, incluindo os
destinados a satisfazer suas necessidades.10 Em outras palavras, a vio-
lncia patrimonial est nucleada em trs condutas: subtrair, destruir e
reter. Como a Lei Maria da Penha no alterou a tipologia e disposies
materiais relativas aos crimes patrimoniais, apenas ampliando o rol das
8
Esse o punctum saliens: diferenciar os crimes em que a vtima pertence ao gnero femi-
nino daqueles em que o crime cometido contra a mulher em razo do gnero.
9
A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) indeferiu Habeas Corpus (HC 129446)
no qual a Defensoria Pblica da Unio (DPU) pedia a substituio da pena privativa de liber-
dade por sano restritiva de direitos a um condenado pena de trs meses de deteno, em
regime aberto, pelo crime de leso corporal praticado em ambiente domstico contra a
esposa.
10
Art. 7 So formas de violncia domstica e familiar contra a mulher, entre outras: (...) IV a
violncia patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure reteno, subtrao,
destruio parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais,
bens, valores e direitos ou recursos econmicos, incluindo os destinados a satisfazer suas
necessidades;
condutas que caracterizam a violncia domstica e familiar, passemos
agora ao necessrio enquadramento de cada uma dessas condutas no
tipo penal respectivo.
3.1Subtrao de bens, valores e direitos ou recursos econmicos
O verbo subtrair conduz inicialmente a um tipo penal por todos

conhecido: o furto, previsto no art. 155 do Cdigo Penal.11 Se a sub-
trao se deu com emprego de violncia, temos o tipo denominado
roubo.12 Assim, incorre nessa conduta tpica tanto o cnjuge ou com-
panheiro que subtrai s escondidas valores da mulher para compra de
bebidas ou drogas (situaes mais comuns),13 como aquele que subtrai
da mulher a parte que lhe cabia dos bens comuns, alienando o auto-
mvel ou os mveis da casa ou at mesmo o animal de estimao. Nas
lies de Scarance Fernandes, na violncia domstica e familiar con-
tra a mulher, o furto diz respeito subtrao de bens particulares da
vtima ou parcela da mulher na meao dos bens comuns.14
s vezes a subtrao ocorre com a finalidade de causar dor ou
dissabor mulher, pouco importando o valor dos bens subtrados. A
jurisprudncia tem reconhecido a violncia patrimonial nessas situa-
es e, inclusive, afastado o princpio da bagatela.15 So situaes muito
comuns, mas infelizmente pouco levadas esfera jurisdicional.
11
Art. 155 Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia mvel.
12
Art. 157 Subtrair coisa mvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaa ou
violncia a pessoa, ou depois de hav-la, por qualquer meio, reduzido impossibilidade de
resistncia.
13
PENAL. APELAO CRIMINAL. FURTO QUALIFICADO POR ABUSO DE CONFIANA (ART.
155, 4, II, DO CDIGO PENAL). (...). O agente que comercializou os bens subtrados da resi-
dncia da vtima para adquirir substncia entorpecente pratica o crime de furto consumado,
pois houve a inverso da posse. A recuperao da coisa furtada no implica na atipicidade
da conduta delituosa. Configura abuso de confiana a conduta do agente que, logo aps sair
de clnica para tratamento de dependentes qumicos, consegue abrigo por liberalidade da sua
ex-companheira e subtrai parte da moblia que guarnece a parte da residncia que foi entre-
gue para hospedagem. Parecer da PGJ pelo conhecimento e desprovimento do recurso.
Recurso conhecido e desprovido. (TJ-SC ACR: 486201 SC 2010.048620-1, Relator: Carlos
Alberto Civinski, Data de Julgamento: 11.08.2011, Quarta Cmara Criminal, Data de Publica-
o: Apelao Criminal, de So Joo Batista). (Grifos nossos).
14
FERNANDES, Valria Dias Sacarance. Lei Maria da Penha: o processo no caminho da efetivi-
dade: abordagem jurdica e multidisciplinar. So Paulo: Atlas, 2015, p. 106.
15
APELAO CRIMINAL FURTO QUALIFICADO PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA INA-
PLICABILIDADE ALTA REPROVABILIDADE DA CONDUTA AUSNCIA DE DOLO INOCOR-
RNCIA REDIMENSIONAMENTO DA PENA NECESSIDADE RECURSO PARCIALMENTE
PROVIDO. Constatada a maior reprovabilidade de que dotado o furto praticado durante o
repouso noturno, contra a ex-companheira, a favor de quem j existiam medidas protetivas
de urgncia deferidas contra o recorrente e, ainda, mediante o rompimento de obstculo,
resta inviabilizado o reconhecimento do princpio da insignificncia. Tampouco se revela
cabvel a absolvio do recorrente ao argumento de ausncia de dolo, havendo o autor con-
fessado em juzo a retirada no autorizada dos bens da vtima, sendo irrelevante o objetivo de
lucro, no se fazendo comprovada nos autos, ainda, a sua inteno de apenas chatear a
Ressalte-se, finalmente, que no todo e qualquer furto contra a
mulher, ainda que praticado por ex-cnjuge ou ex-companheiro, que ir
caracterizar a violncia patrimonial. preciso que a subtrao ocorra
em situao de violncia domstica, ou seja, em razo do gnero. Nesse
sentido, confira-se o seguinte acrdo do TJRJ, que afastou a aplicao
da Lei Maria da Penha, por considerar, no caso concreto, que o crime
teria sido cometido ainda que a vtima no fosse mulher:
APELAO. FURTO SIMPLES EM CONTEXTO DE VIOLNCIA

DOMSTICA FAMILIAR. RECURSO DO MINISTRIO PBLICO
VISANDO A REFORMA DA SENTENA ABSOLUTRIA, DE MOLDE
A VER CONDENADO O RECORRIDO NAS PENAS DO ART. 155 DO
CDIGO PENAL, NA FORMA DA LEI n. 11.340/06. Antes do exame
da pretenso condenatria manifestada pelo Parquet, cumpre veri-
ficar a existncia dos requisitos necessrios para a aplicao da
Lei n. 11.340/06. A incidncia da referida Lei, reclama a presena
cumulativa de trs vetores que caracterizam a situao de violn-
cia domstica e familiar, representadas pela existncia, passada ou
atual, de relao ntima de afeto entre agressor e vtima, a violncia
de gnero direcionada prtica delitiva contra mulher, e a situa-
o de vulnerabilidade da vtima em relao ao agressor. A Terceira
Seo do Superior Tribunal firmou entendimento de que o legisla-
dor, ao editar a Lei Maria da Penha, teve em conta a mulher numa
perspectiva de gnero e em condies de hipossuficincia ou infe-
rioridade fsica e econmica em relaes patriarcais, consignando
que o escopo da lei a proteo da mulher em situao de fragili-
dade/vulnerabilidade diante do homem ou de outra mulher, desde
que caracterizado o vnculo de relao domstica, familiar ou de
afetividade (CC n. 88.027/MG, Ministro OG FERNANDES). Tal orien-
tao encontra-se consolidada naquela E. Corte de Justia, como
se v do julgado relatado pelo eminente Ministro MARCO AURLIO
BELLIZZE (HC 175.816/RS), onde restou pontuada a necessidade de
ser empregada interpretao restritiva ao referido Diploma Legal.
No caso, o Ministrio Pblico denunciou o apelante pelo crime
furto simples, afirmando que ele teria subtrado determinada quan-
tia em dinheiro pertencente a sua ex-companheira. A inicial afirma
que tal conduta teria ocorrido quando denunciado estava visi-
tando sua filha na residncia da vtima, e quando esta se distraiu o
denunciado subtraiu a re furtiva da bolsa da vtima, se evadindo do
local em seguida. No entanto, de acordo com o relato da ex-compa-
nheira do recorrente em juzo, a mencionada subtrao no ocor-
reu, como afirmado na denncia, na sua residncia, mas sim na
residncia de uma vizinha da sua me, que mora no andar de baixo.
ofendida, mormente em se considerando que os bens no foram devolvidos espontanea-

mente. -Inadequadamente sopesadas as circunstncias judiciais a permearem a prtica deli-
tiva, impe-se o redimensionamento da pena imposta. (TJ-MG APR: 10134130002212001 MG,
Relator: Matheus Chaves Jardim, Data de Julgamento: 12.02.2015, Cmaras Criminais / 2
CMARA CRIMINAL, Data de Publicao: 02.03.2015). (Grifos nossos).
Tambm no foi confirmado que o apelado estava naquele local
para a visitao dos filhos. A lesada informou que a subtrao teria
acontecido quando ela subiu para ir at a casa da sua me e deixou a
bolsa no sof. Quando retornou, a moradora da casa onde ambos se
encontravam teria dito que o recorrido havia pegado algo na bolsa e
sado correndo. Ao examinar a bolsa, constatou que o dinheiro no
estava mais l. A ex-companheira do apelado fez questo de escla-
recer ao Juzo que no a primeira vez que ele mexe nas coisas
dos outros. Pelos poucos elementos que se tem nos autos, no
possvel enquadrar a conduta como sendo de violncia domstica
e familiar, na modalidade de violncia patrimonial (art. 7, inciso
IV). A suposta lesada e o apelado viveram juntos e possuem filhos
em comum. Esto separados h cerca de dois anos. A subtrao do
dinheiro teria ocorrido na residncia de terceiros, onde ambos se
encontravam por motivo no esclarecido nos autos. Segundo relato
da prpria lesada, no foi a primeira vez que o recorrido mexeu nas
coisas dos outros, o que sugere que esse comportamento j tenha
ocorrido anteriormente, tendo outras pessoas como lesadas. Em
relao violncia de gnero, no basta para seu reconhecimento
que o sujeito passivo do crime seja mulher. necessrio que a violn-
cia se d em razo do gnero, como forma de oprimir ou subjugar a
mulher. No caso, a acusao de subtrao de dinheiro da ex-com-
panheira. Contudo, pelas circunstncias do fato, qualquer que fosse
o sexo ou a condio do sujeito passivo, o crime poderia ter ocorrido
da mesma forma, j que a prpria lesada mencionou haver prece-
dente da mesma conduta contra terceiros. Tambm no se percebe
no episdio uma situao de vulnerabilidade da lesada em relao
ao apelado, de modo a caracterizar um caso de opresso mulher.
O mbil do agir do apelado no teve qualquer relao com o gnero
da suposta lesada. A Lei de Violncia Domstica e Familiar Contra
a Mulher especial e, portanto, sua aplicao s se justifica quando
verificada situao cujo suporte ftico evidencie concretamente
violncia de gnero. A mera relao de parentesco, de convivncia ou
razo sentimental, por si s, no autoriza o regime jurdico diverso
do comum. Por consequncia, tratando-se de crime de furto des-
vinculado da Lei n. 11.340/06, a competncia para decidir o pre-
sente feito do Juzo Criminal comum, devendo ser reconhecida
a nulidade da sentena e dos demais atos proferidos no primeiro
grau, desde o recebimento da denncia, eis que originrio de rgo
jurisdicional absolutamente incompetente. PROCESSO ANULADO
POR INCOMPETNCIA ABSOLUTA DO JUZO, na forma do voto do
relator. Vistos, relatados e discutidos estes autos em que so partes
as acima epigrafadas, A C O R D A M, os Desembargadores que inte-
gram a Oitava Cmara Criminal do Tribunal de Justia do Estado
do Rio de Janeiro, por unanimidade de votos, em RECONHECER E
DECLARAR A NULIDADE DO PROCESSO, por incompetncia abso-
luta do I Juizado de Violncia Domstica e Familiar contra a Mulher
da Capital e determinar a remessa dos autos para o Juzo Crimi-
nal comum, nos termos do voto do Desembargador Relator. (TJ-RJ,
Relator: DES. GILMAR AUGUSTO TEIXEIRA, Data de Julgamento:
02.09.2015, OITAVA CMARA CRIMINAL). (Grifos nossos).
3.2Destruio parcial ou total de objetos, instrumentos de trabalho

e documentos pessoais
O tipo penal correspondente conduta de destruir ou danifi-

car bens da mulher o crime de dano, previsto no art. 163 do Cdigo
Penal.16 Se o crime cometido com violncia pessoa ou grave ame-
aa, com emprego de substncia inflamvel ou explosiva, ou ainda por
motivo egostico (como o caso do cime excessivo) temos o crime de
dano qualificado, cuja pena passa a ser de deteno, de seis meses a
trs anos.17
Em regra, a apurao do crime de dano s se procede mediante
queixa, ou seja, a ao penal privada,18 salvo se houver emprego de
violncia grave ameaa, substncia inflamvel ou explosiva, quando
a ao de privada passa a ser pblica incondicionada. Na maioria das
situaes, o crime de dano sempre est associado a outras formas de
16
Art. 163 Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia: Pena deteno, de um a seis
meses, ou multa.
17
RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE AMEAA PRATICADO CONTRA
IRM DO RU. INCIDNCIA DA LEI MARIA DA PENHA. ART. 5., INCISO II, DA LEI N.
11.340/06. COMPETNCIA DO JUIZADO DE VIOLNCIA DOMSTICA E FAMILIAR CONTRA A
MULHER DE BRASLIA/DF. RECURSO PROVIDO. 1. A Lei n. 11.340/2006, denominada Lei
Maria da Penha, tem o intuito de proteger a mulher da violncia domstica e familiar que lhe
cause morte, leso, sofrimento fsico, sexual ou psicolgico e dano moral ou patrimonial,
sendo que o crime deve ser cometido no mbito da unidade domstica, da famlia ou em qual-
quer relao ntima de afeto. 2. Na espcie, apurou-se que o Ru foi casa da vtima para
amea-la, ocasio em que provocou danos em seu carro ao atirar pedras. Aps, foi consta-
tado o envio rotineiro de mensagens pelo telefone celular com o claro intuito de intimid-la e
for-la a abrir mo do controle financeiro da penso recebida pela me de ambos. 3. Nesse
contexto, inarredvel concluir pela incidncia da Lei n. 11.343/06, tendo em vista o sofri-
mento psicolgico em tese sofrido por mulher em mbito familiar, nos termos expressos do
art. 5., inciso II, da mencionada legislao. 4. Para a configurao de violncia domstica,
basta que estejam presentes as hipteses previstas no artigo 5 da Lei 11.343/2006 (Lei Maria
da Penha), dentre as quais no se encontra a necessidade de coabitao entre autor e vtima.
(HC 115.857/MG, 6. Turma, Rel.Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO
TJ/MG), DJe de 020.02.2009.) 5. Recurso provido para determinar que Juiz de Direito da 3.
Vara do Juizado de Violncia Domstica e Familiar contra a Mulher de Braslia/DF prossiga no
julgamento da causa.
(REsp 1239850/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 16.02.2012, DJe
05.03.2012). (Grifos nossos).
18
Essa, segundo Scarance, seria a maior dificuldade de aplicao da lei no tocante ao crime de
dano. Por se tratar em regra de ao penal privada, a vtima depende da contratao de um
advogado ou da interveno de um Defensor Pblico para ingressar com a queixa-crime. Caso
no seja devidamente orientada na Delegacia, pode deixar transcorrer o prazo decadencial.
(Op. cit., p. 107). Infelizmente tem razo a autora e rarssimas so as queixas por crime de
dano, como igualmente raras so aquelas decorrentes de crimes contra a honra. Essa uma
postura omissiva da vtima que s contribui com a impunidade. Contudo no se pode negar,
por outro lado, que esse silncio constitui um dos traos mais estigmatizantes da violncia
domstica em qualquer lugar do mundo.
violncia, como o caso da ameaa, ou mesmo violncia psicolgica,
como ocorre nas situaes em que o agressor provoca a destruio de
objetos de alto valor sentimental ou ainda a morte de animal de esti-
mao, visando atingir a vtima em seu estado psquico. Nesses casos,
ocorrem dois crimes em concurso.
Outros tipos penais relacionados diretamente conduta des-
truir esto dispostos nos arts. 151 e 305 do Cdigo Penal. O art. 151
versa sobre o delito de violao de correspondncia, que abrange
a sonegao ou destruio de correspondncia alheia, embora no
fechada, e prev pena de deteno, de um a trs anos. O art. 305 trata
da destruio, supresso ou ocultao de documentos, condutas san-
cionadas com pena de recluso, de dois a seis anos, e multa, se o docu-
mento pblico, e de um a cinco anos de recluso se o documento
particular.
No tocante, especificamente, ocultao (ou reteno) de docu-
mentos, se essa conduta impossibilitar o exerccio de qualquer direito
trabalhista pela mulher, tem-se caracterizado, ainda, o crime de frus-
trao de direito assegurado por lei trabalhista, previsto no art. 203 do
CP, com pena de deteno de um ano a dois anos e multa.19
3.3Reteno de bens, valores e direitos ou recursos econmicos
A violncia patrimonial caracterizada pela conduta tpica de

reter bens ou valores tem a mesma natureza jurdica do seu tipo penal
correspondente, que a apropriao indbita, prevista no art. 168 do
Cdigo Penal.20 A pena aumentada de um tero, quando o agente
recebeu a coisa em depsito necessrio, na qualidade de tutor, cura-
dor, sndico, liquidatrio, inventariante, testamenteiro ou depositrio
judicial, ou ainda em razo de ofcio, emprego ou profisso.
Especificamente quanto conduta de reter bens, valores e direi-
tos ou recursos econmicos, incluindo os destinados a satisfazer as
necessidades do cnjuge ou companheiro, podemos vislumbrar uma
srie de condutas tpicas e, portanto, criminosas, que no so levadas
ao juzo competente para a devida apurao. E como se materializa essa
conduta de reter bens, valores e direitos ou recursos econmicos?
19
Art. 203 Frustrar, mediante fraude ou violncia, direito assegurado pela legislao do tra-
balho:Pena deteno de um ano a dois anos, e multa, alm da pena correspondente vio-
lncia. (Redao dada pela Lei n. 9.777, de 29.12.1998) 1 Na mesma pena incorre quem: (...) II
impede algum de se desligar de servios de qualquer natureza, mediante coao ou por
meio da reteno de seus documentos pessoais ou contratuais. (Includo pela Lei n. 9.777, de
1998).
20
Art. 168 Apropriar-se de coisa alheia mvel, de que tem a posse ou a deteno: Pena
recluso, de um a quatro anos, e multa.
Ora, as formas so as mais diversas e todos os que militam na advoca-
cia de famlia as conhecem muito bem.
O cnjuge meeiro que toma para si o quinho dos bens mveis
que deveria repassar mulher, usufruindo sozinho dos frutos dos
bens comuns, est se apropriando de bem mvel alheio. A conduta
semelhante quela tipificada como apropriao indbita previdenci-
riae que consiste em deixar de repassar previdncia social as con-
tribuies recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou
convencional (CP, art. 168-A). O meeiro deixa de repassar meeira, por
exemplo, os dividendos das aes de uma sociedade que pertencem
aos dois.
At a partilha dos bens, corriqueiro que o cnjuge ou compa-
nheiro na posse dos bens amealhados durante a conjugalidade, pelo
esforo comum e, por isso mesmo, reconhecidamente bens comuns
partilhveis, sonegue ao meeiro a sua parte dos frutos, recebendo sozi-
nho aquilo que seria destinado a ambos. A conduta do homem, rece-
bedor da integralidade dos alugueres de imvel pertencente a ambos
os cnjuges ou conviventes, por exemplo, equivale reteno ou apro-
priao de bens ou recursos econmicos, exatamente como previsto
na Lei n. 11.340/2006. Ou seja, apropriao indbita cometida com vio-
lncia domstica, na modalidade violncia patrimonial.
Outra conduta que pode configurar a violncia patrimonial,
mediante a reteno de recursos econmicos, consiste em furtar-se
ao pagamento de penso alimentcia arbitrada em benefcio da mulher,
especialmente por se tratar de valor destinado a satisfazer necessida-
des vitais. Ora, o devedor de alimentos que, condenado ao pagamento
de verba alimentar indispensvel subsistncia da mulher, deixa, dolo-
samente, de cumprir com a sua obrigao, no estaria se apropriando
indevidamente de valores que pertenceriam mulher credora dos
alimentos?21
O tipo previsto no art. 168 essencialmente comissivo, ou seja,
praticado mediante a ao de apropriar-se e o objeto material a
coisa mvel. O cnjuge alimentante que, mesmo dispondo de recur-
sos econmicos, adota subterfgios para no pagar ou para retardar o
pagamento de verba alimentar est, em outras palavras, retendo ou se
apropriando de valores que pertencem mulher, com o agravante de
tais recursos destinarem-se prpria sobrevivncia daquele cnjuge.
Nesse sentido o Enunciado aprovado no X CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAM-

21
LIA, em outubro de 2015: Enunciado 20. O alimentante que, dispondo de recursos econmi-
cos, adota subterfgios para no pagar ou para retardar o pagamento de verba alimentar
incorre na conduta descrita no art. 7, inc. IV da Lei n. 11.340/2006 (violncia patrimonial).
E ainda que assim no o fosse, no sendo possvel o enqua-
dramento dessa conduta no tipo da apropriao indbita, a violncia
patrimonial do devedor de alimentos, de qualquer forma, estaria mate-
rializada pela prtica do crime de abandono material, previsto no art.
244 do CP:
Art. 244. Deixar, sem justa causa, de prover a subsistncia do cn-

juge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o tra-
balho, ou de ascendente invlido ou maior de 60 (sessenta) anos,
no lhes proporcionando os recursos necessrios ou faltando ao
pagamento de penso alimentcia judicialmente acordada, fixada
ou majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou
ascendente, gravemente enfermo:(Redao dada pela Lei n. 10.741,
de 2003)
Pena deteno, de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa, de uma a dez
vezes o maior salrio mnimo vigente no Pas.(Redao dada pela
Lei n. 5.478, de 1968) Pargrafo nico Nas mesmas penas incide
quem, sendo solvente, frustra ou ilide, de qualquer modo, inclusive
por abandono injustificado de emprego ou funo, o pagamento
de penso alimentcia judicialmente acordada, fixada ou majo-
rada.(Includo pela Lei n. 5.478, de 1968)
O alimentante que frustra o pagamento de penso aliment-

cia, sem demonstrar justa causa para o inadimplemento, responde
pelo crime do art. 244. No basta, naturalmente, o mero inadimple-
mento, suficiente para decretao da priso civil, sendo necessrio
que o inadimplemento da penso alimentcia judicialmente acordada
no tenha causa justa, decorrendo da inteno livre e deliberada de
inadimplir.22
Ressalte-se que o novo CPC promove importante incentivo
apurao e punio desse crime, quando determina, luz do art. 532,
que verificando a conduta procrastinatria do devedor de alimentos, o
juiz estar obrigado a dar cincia ao Ministrio Pblico dos indcios da
prtica do crime de abandono material.
relevante pontuar, enfim, que no se h de falar em priso por
dvida quando configurado o crime de apropriao indbita mediante
reteno de bens, valores e direitos ou recursos econmicos, ou ainda
o crime de abandono material, pela frustrao deliberada ao paga-
mento de penso alimentcia, mas, sim, em priso criminal.
22
Nesse sentido a orientao da jurisprudncia: PENAL. ABANDONO MATERIAL. DEIXAR
DE PAGAR PENSO ALIMENTCIA JUDICIALMENTE FIXADA. DOLO CONFIGURADO. JUSTA
CAUSA NO DEMONSTRADA. Aquele que deixa de prover a assistncia ao filho menor, frus-
trando o pagamento de penso alimentcia, sem demonstrar justa causa para o inadimple-
mento, responde pelo crime do art. 244 do Cdigo Penal. (TJMG; APCR 1.0084.14.000322-
3/001; Rel. Des. Jlio Cezar Guttierrez; Julg. 22.07.2015; DJEMG 28.07.2015). (Grifos nossos).
4DIFICULDADES PARA PUNIR A VIOLNCIA PATRIMONIAL
Do ponto de vista estritamente legal, as principais dificuldades

para instaurao dos processos criminais visando proteo patrimo-
nial da mulher decorrem das imunidades, no tocante aos crimes contra
o patrimnio, localizadas nos arts. 181 e 182 do Cdigo Penal:23
Art. 181 isento de pena quem comete qualquer dos crimes pre-
vistos neste ttulo, em prejuzo: (Vide Lei n. 10.741, de 2003).
I do cnjuge, na constncia da sociedade conjugal;
Art. 182 Somente se procede mediante representao, se o crime
previsto neste ttulo cometido em prejuzo: (Vide Lei n. 10.741, de
2003).
I do cnjuge desquitado ou judicialmente separado;
Ou seja, enquanto no se consumar a separao de fato ou de

direito, o divrcio ou a dissoluo da unio estvel, praticamente nada
poderia ser feito. Salvo se o crime for cometido com emprego de grave
ameaa ou violncia contra a pessoa, ou ainda quando a vtima for
maior de 60 anos. o que estabelece o art. 183 do Cdigo Penal:
Art. 183 No se aplica o disposto nos dois artigos anteriores: I

se o crime de roubo ou de extorso, ou, em geral, quando haja
emprego de grave ameaa ou violncia pessoa; [...] III se o crime
praticado contra pessoa com idade igual ou superior a 60 (ses-
senta) anos. (Includo pela Lei n. 10.741, de 2003).
A interpretao jurisprudencial mais conservadora e ainda

vigente no recepcionou a tese de que os arts. 181 e 182 do CP teriam
sido derrogados pela Lei Maria da Penha, vale dizer, o entendimento no
sentido de serem inaplicveis os arts. 181 e 182 do CP aos crimes de vio-
lncia domstica e familiar. O STJ vem decidindo que esses dispositivos
no foram afastados pela Lei Maria da Penha.24
23
Para Scarance, o processo por violncia patrimonial tem sua efetividade prejudicada gra-
as s imunidades absoluta e relativa previstas nos arts. 181 e 182 do Cdigo Penal. Em nada
adiantou a Lei Maria da Penha disciplinar a violncia patrimonial se persistem no ordena-
mento normas de iseno de pena ou condicionantes da ao representao. Tais imunida-
des deveriam ter sido revogadas, ou, ao menos, deveria ser mantida apenas a imunidade rela-
tiva. (Op. cit., p. 110-111).
24
RECURSO ORDINRIO EM HABEAS CORPUS. TENTATIVA DE ESTELIONATO (ARTIGO 171,
COMBINADO COM O ARTIGO 14, INCISO II, AMBOS DO CDIGO PENAL). CRIME PRATI-
CADO POR UM DOS CNJUGES CONTRA O OUTRO. SEPARAO DE CORPOS. EXTINO
DO VNCULO MATRIMONIAL. INOCORRNCIA. INCIDNCIA DA ESCUSA ABSOLUTRIA
PREVISTA NO ARTIGO 181, INCISO I, DO CDIGO PENAL. IMUNIDADE NO REVOGADA
PELA LEI MARIA DA PENHA. DERROGAO QUE IMPLICARIA VIOLAO AO PRINCPIO DA
IGUALDADE. PREVISO EXPRESSA DE MEDIDAS CAUTELARES PARA A PROTEO DO
PATRIMNIO DA MULHER EM SITUAO DE VIOLNCIA DOMSTICA E FAMILIAR.
Isso no deve nos desanimar ou servir de desestmulo ao uso
das ferramentas do Direito Penal contra a violncia patrimonial pra-
ticada contra as mulheres. Se o cnjuge j estava divorciado, separado
de direito ou separado de fato, se a unio estvel j estava dissolvida,
ou se j havia cessado a relao ntima de afeto, deve ser feita a repre-
sentao para instaurao da persecuo penal. Se houve emprego de
violncia ou grave ameaa, ou se a vtima for maior de 60 anos, a ao
penal poder ser instaurada independentemente de representao e
ainda na constncia do casamento ou da unio estvel.
Demais disso, parece-nos plenamente defensvel a aplicao da
clusula de exceo do art. 183 quando o crime contra o patrimnio
cometido com emprego de violncia domstica contra a mulher.
Todavia, existem outras dificuldades que transcendem a legali-
dade. Estamos nos referindo ao silncio, omisso e inatividade da
vtima, fatores que s impulsionam o ciclo da violncia. Nas palavras de
Scarance,
[...] o silncio da vtima enquanto inao compreende uma gama

de situaes: a vtima no registra boletins de ocorrncia contra o
agressor; a vtima registra boletim de ocorrncia contra o agressor,
mas renuncia ao direito de representar; aps noticiar a violncia, a
vtima se retara e inocenta o agressor.25
INVIABILIDADE DE SE ADOTAR ANALOGIA EM PREJUZO DO RU. PROVIMENTO DO

RECLAMO. 1. O artigo 181, inciso I, do Cdigo Penal estabelece imunidade penal absoluta ao
cnjuge que pratica crime patrimonial na constncia do casamento. 2. De acordo com o artigo
1.571 do Cdigo Civil, a sociedade conjugal termina pela morte de um dos cnjuges, pela nuli-
dade ou anulao do casamento, pela separao judicial e pelo divrcio, motivo pelo qual a
separao de corpos, assim como a separao de fato, que no tm condo de extinguir o
vnculo matrimonial, no so capazes de afastar a imunidade prevista no inciso I do artigo 181
do Estatuto Repressivo. 3. O advento da Lei 11.340/2006 no capaz de alterar tal entendi-
mento, pois embora tenha previsto a violncia patrimonial como uma das que pode ser come-
tida no mbito domstico e familiar contra a mulher, no revogou quer expressa, quer tacita-
mente, o artigo 181 do Cdigo Penal. 4. A se admitir que a Lei Maria da Penha derrogou a refe-
rida imunidade, se estaria diante de flagrante hiptese de violao ao princpio da isonomia,
j que os crimes patrimoniais praticados pelo marido contra a mulher no mbito domstico e
familiar poderiam ser processados e julgados, ao passo que a mulher que venha cometer o
mesmo tipo de delito contra o marido estaria isenta de pena. 5. No h falar em ineficcia ou
inutilidade da Lei 11.340/2006 ante a persistncia da imunidade prevista no artigo 181, inciso
I, do Cdigo Penal quando se tratar de violncia praticada contra a mulher no mbito doms-
tico e familiar, uma vez que na prpria legislao vigente existe a previso de medidas caute-
lares especficas para a proteo do patrimnio da ofendida. 6. No direito penal no se admite
a analogia em prejuzo do ru, razo pela qual a separao de corpos ou mesmo a separao
de fato, que no extinguem a sociedade conjugal, no podem ser equiparadas separao
judicial ou o divrcio, que pem fim ao vnculo matrimonial, para fins de afastamento da imu-
nidade disposta no inciso I do artigo 181 do Estatuto Repressivo. 7. Recurso provido para
determinar o trancamento da ao penal apenas com relao ao recorrente. (RHC 42.918/RS,
Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 05.08.2014, DJe 14.08.2014)
25
FERNANDES, Valria Dias Sacarance. Lei Maria da Penha: o processo no caminho da efetivi-
dade: abordagem jurdica e multidisciplinar. So Paulo: Atlas, 2015, p. 124.
A mesma autora aponta como fatores que contribuem para o
silncio da vtima: a vergonha, a crena na mudana do parceiro, a
inverso da culpa, a revitimizao pelas autoridades e o medo de revi-
ver o trauma.
Entretanto, esses fatores parecem explicar melhor a inao das
vtimas nas situaes de violncia fsica, violncia sexual, violncia psi-
colgica e violncia moral. Com mais razo, ainda, nas populaes de
mais baixa renda ou menor nvel de escolaridade. Contudo, de modo
algum, explicam a inao das vtimas nos casos de crimes cometidos
com violncia patrimonial. Inao essa que se verifica at mesmo entre
pessoas de alto padro de renda e alto nvel de escolaridade.
Basta se indagar em quantos litgios de famlia, patrocinados
por advogados privados, derivam notcias, representaes ou queixas
s autoridades competentes, tendo por objeto a violncia patrimonial
contra a mulher?
Temo que as razes para esses baixos nmeros tenham muito
mais a ver com a falta de ambincia do profissional do Direito com o
processo protetivo da Lei Maria da Penha do que propriamente com a
inao silenciosa da vtima.
5MEDIDAS PROTETIVAS PARA COIBIR A VIOLNCIA PATRIMONIAL

NO CURSO DAS AES DE FAMLIA
A violncia patrimonial descrita na Lei Maria da Penha, repita-

-se, guarda correspondncia com os demais crimes contra o patrim-
nio previstos no Cdigo Penal e assim deve ser tratada. Os crimes so
os mesmos por todos conhecidos, com a agravante de serem pratica-
dos com emprego de violncia patrimonial contra a mulher, em razo
do gnero, e, por isso, submetidos, quanto ao rito, ao processo da Lei
n. 11.340/2006.
Cabe mulher, portanto, sempre que sofrer violncia patrimo-
nial no curso do processo de separao, divrcio, dissoluo de unio
estvel, partilha de bens ou alimentos, quer pela prtica de furto, des-
truio, apropriao ou reteno de bens ou valores pelo marido,
ex-marido, companheiro ou ex-companheiro, comunicar o fato auto-
ridade policial, seguindo-se a queixa ou representao conforme o
caso, para a instaurao da competente ao penal.
Alm das consequncias penais, a lei tambm prev medidas
protetivas ao patrimnio da mulher, tanto no tocante proteo da
meao dos bens da sociedade conjugal como dos bens particulares, e
que podero ser adotadas em carter liminar.
Essas medidas independem da instaurao de ao penal e
podem ser postuladas no juzo cvel ou mesmo perante a prpria auto-
ridade policial, competente para receber a notitia criminis, que, por
lei, estar obrigada a remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas,
expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a conces-
so de medidas protetivas de urgncia.26
E esse pedido de concesso pode ser formulado diretamente pela
suposta ofendida, no sendo necessrio, portanto, que esteja acompa-
nhada de advogado ou defensor pblico (art. 27 da Lei Maria da Penha).
As medidas protetivas de urgncia assemelham-se s medidas
provisionais anteriormente previstas no art. 888 do CPC de 1973.27 Pre-
tendem prevenir os atos de violncia familiar e domstica ou o dano
que deles eventualmente resulte, protegendo o patrimnio da mulher
ou do casal. Por isso mesmo, podem ser concedidas ao final do proce-
dimento ou no seu curso, como tutela antecipatria, ou mesmo uma
cautelar incidental no juzo de famlia.
Essas medidas esto previstas no art. 24 da Lei n. 11.340/2006, a
saber:
I restituio de bens indevidamente subtrados pelo agressor
ofendida
Havendo prova da subtrao, o juiz deve determinar ao agressor

a restituio dos bens que hajam sido subtrados. Essa subtrao, como
vimos em tpico anterior, pode se referir tanto aos bens particulares
26
Lei n. 11.340/2006, art. 12: Art. 12. Em todos os casos de violncia domstica e familiar con-
tra a mulher, feito o registro da ocorrncia, dever a autoridade policial adotar, de imediato,
os seguintes procedimentos, sem prejuzo daqueles previstos no Cdigo de Processo Penal:
(...) III remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao juiz com o
pedido da ofendida, para a concesso de medidas protetivas de urgncia; 1 O pedido da
ofendida ser tomado a termo pela autoridade policial e dever conter: I qualificao da
ofendida e do agressor; II nome e idade dos dependentes; III descrio sucinta do fato e
das medidas protetivas solicitadas pela ofendida. 2 A autoridade policial dever anexar ao
documento referido no 1 o boletim de ocorrncia e cpia de todos os documentos dispon-
veis em posse da ofendida. 3 Sero admitidos como meios de prova os laudos ou prontu-
rios mdicos fornecidos por hospitais e postos de sade
27
Art. 888. O juiz poder ordenar ou autorizar, na pendncia da ao principal ou antes de sua
propositura:
I obras de conservao em coisa litigiosa ou judicialmente apreendida; II a entrega de bens
de uso pessoal do cnjuge e dos filhos; III a posse provisria dos filhos, nos casos de separa-
o judicial ou anulao de casamento; IV o afastamento do menor autorizado a contrair
casamento contra a vontade dos pais; V o depsito de menores ou incapazes castigados
imoderadamente por seus pais, tutores ou curadores, ou por eles induzidos prtica de atos
contrrios lei ou moral; VI o afastamento temporrio de um dos cnjuges da morada do
casal; VII a guarda e a educao dos filhos, regulado o direito de visita que, no interesse da
criana ou do adolescente, pode, a critrio do juiz, ser extensivo a cada um dos avs; (Redao
dada pela Lei n. 12.398, de 2011); VIII a interdio ou a demolio de prdio para resguardar a
sade, a segurana ou outro interesse pblico.
da mulher como aos bens comuns do casal que tenham permanecido
em poder exclusivo do ofensor . Como bem coloca Maria Berenice Dias,
se um bem comum subtrado pelo varo que passa a deter a sua
posse com exclusividade, significa que houve a subtrao da metade
que pertence mulher.28 Complementa Fredie Didier que havendo
dvida sobre a titularidade dos bens ou mesmo havendo interesse to
somente em conserv-los, impedindo o extravio ou dilapidao, poder
o juiz, a requerimento ou de ofcio, determinar o seu arrolamento, na
forma dos arts. 855 e seguintes do CPC, inclusive com a nomeao de
depositrio.29
II proibio temporria para a celebrao de atos e contratos de

compra, venda e locao de propriedade em comum
Trata-se, certamente, da medida de proteo patrimonial mais

importante prevista na Lei n. 11.340/2006, consistente na vedao
prtica de atos de disposio dos bens comuns. Essa uma proteo
indispensvel, principalmente nas relaes de unio estvel, hetero
ou homoafetiva, e de namoro qualificado, uma vez que no casamento
a mulher j goza da proteo prevista no art. 1.647, I, do CC, ao menos
quanto aos bens imveis.
A utilidade e a necessidade da medida eclodem, com mais vigor,
quando envolve os bens mveis, pois o agressor, mesmo casado em
regime de comunho, deles poderia dispor, em fraude ao patrimnio
comum, sem a outorga obrigatria da mulher.
Essa medida tem a grande vantagem de retirar do agressor a
capacidade de praticar determinados negcios jurdicos que tenham
por objeto o patrimnio comum do casal ou os bens particulares da
mulher, o que implica dizer que qualquer ato praticado contra a deci-
so judicial de indisponibilidade estar fora do plano de validade, pas-
svel de invalidao por nulidade (e no simples anulabilidade).
Evidentemente que no se pode deixar de considerar, nessas
situaes, a posio de eventuais terceiros de boa-f que hajam transa-
cionado com o ofensor. Da a importncia de se proporcionar a mxima
publicidade deciso judicial concessiva da medida protetiva. Nessa
senda, a prpria lei compele o juiz a comandar a remessa de ofcios aos
cartrios e reparties competentes para que averbem as restries
28
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justia: a efetividade da Lei 11.340/2006 de
combate violncia domstica. 2. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.117.
29
DIDIER JR., Fredie; OLIVEIRA, Rafael. Aspectos processuais civis da Lei Maria da Penha (vio-
lncia domstica e familiar contra a mulher). Disponvel em: <http://www.evocati.com.br/
evocati/artigos.wsp?tmp_codartigo=449>. Acesso em: 20 out. 2015.
contra o agressor (art. 24, pargrafo nico). Scarance Fernandes, com
apoio em Rogrio Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto sugere que
sejam expedidos ofcios: ao Cartrio de Registro de Imveis (para os
atos de disposio do patrimnio comum); ao Cartrio de Notas (para
suspenso de procurao); Junta Comercial e ao Cartrio de Registro
das Pessoas Jurdicas (quando vtima e ofensor integrarem a mesma
pessoa jurdica) e ao Departamento de Trnsito quanto venda de
veculos.30
Destaque-se, finalmente, que a medida protetiva no se restringe
alienao de bens, mas tambm aquisio e locao. Como bem
observa Didier,
[...] no s a venda do patrimnio comum pode causar prejuzo

ofendida; tambm a compra de bens pode ensejar a sua runa.
vlido lembrar que o art. 1.643 do Cdigo Civil autoriza os cnju-
ges a, independentemente de autorizao um do outro, (i) comprar,
ainda que a crdito, as coisas necessrias economia domstica, e
(ii) obter, por emprstimo, as quantias que a aquisio dessas coi-
sas possa exigir. Em complemento, o art. 1.644 diz que as dvidas
contradas para os fins do artigo antecedente obrigam solidaria-
mente ambos os cnjuges. Da a importncia da vedao, pelo juiz,
da celebrao de contratos de compra, sobretudo quando importar
dispndio de vultosa quantia. Por fim, a locao dos bens comuns
tambm pode ser vedada, principalmente a locao de imvel
urbano comum, que, em regra, independe de autorizao do cn-
juge, salvo se celebrado o contrato por prazo igual ou superior a 10
anos (art. 3, Lei Federal n. 8.245/1991). 31
III suspenso das procuraes conferidas pela ofendida ao

agressor
Para os casos em que a mulher outorgou procurao ao ofen-

sor, a lei permite ao juiz suspender a eficcia do ato, vedando ao man-
datrio a celebrao de atos e negcios contrrios aos interesses da
mulher. Nesse particular, poder-se-ia indagar da utilidade da medida,
quando o mandato, em regra, revogvel e a vtima poderia perfeita-
mente revogar a procurao independentemente de ordem judicial.
30
FERNANDES, Valria Dias Sacarance. Lei Maria da Penha: o processo no caminho da efeti-
vidade: abordagem jurdica e multidisciplinar. So Paulo: Atlas, 2015, p. 165.
31
Explica Didier que essa medida
[...] ganha importncia sobretudo naqueles casos em que a procura-

o irrevogvel, ou quando a sua revogao implicar o pagamento
de perdas e danos (arts. 683 a 685, CC). importante, tambm aqui,
que se faa uma divulgao mais ampla possvel da deciso judicial,
a fim de no ferir direitos e interesses de terceiros de boa-f (art.
24, p. nico). Tambm importante dar cincia imediata e inequ-
voca da deciso ao prprio agressor. 32
IV prestao de cauo provisria, mediante depsito judi-

cial, por perdas e danos materiais decorrentes da prtica de violncia
domstica e familiar contra a ofendida
Sempre que a violncia patrimonial resultar em danos materiais

para mulher, como nos casos de destruio ou subtrao de bens, e
estes no tenham sido reparados voluntariamente pelo agressor, for-
ando a vtima adoo das providncias legais, o juiz poder deter-
minar a prestao de cauo provisria mediante depsito judicial, a
ser feito pelo ofensor, para garantia da reparao das perdas e danos
materiais decorrentes da prtica de violncia domstica e familiar con-
tra a ofendida.
Destaque-se, finalmente, que esse elenco de medidas, pre-
visto no art. 24 da Lei Maria da Penha, no exaustivo, podendo o juiz
determinar outras medidas inominadas de proteo patrimonial da
mulher. Cada situao concreta haver de ditar qual a mais apropriada
e poder exigir, inclusive, uma deciso construtiva do magistrado. Por
isso, acrescenta Didier,
[...] subsiste um verdadeiro princpio da atipicidade das medidas

protetivas de urgncia, o que corrobora a tendncia, j estabelecida
no ordenamento processual civil no que diz respeito tutela espe-
cfica dos deveres de fazer, no fazer e dar coisa distinta de dinheiro
(arts. 461 e 461-A, CPC), de conferir ao magistrado a possibilidade de
se valer, em cada caso concreto, da medida que reputar mais ade-
quada, necessria e proporcional para alcanar o resultado alme-
jado, ainda que tal medida no esteja prevista ou regulamentada na
lei. Essa a forma encontrada para manter a abertura do sistema. 33
32
33
DIDIER JR., Fredie; OLIVEIRA, Rafael. Aspectos processuais civis da Lei Maria da Penha
Conclui o autor lembrando que
[...] a despeito de se exigir a provocao do Ministrio Pblico ou

da ofendida para que o juiz possa conceder as medidas proteti-
vas de urgncia (art. 19), no est o magistrado adstrito ao pedido.
Desse modo, pode conceder medida diversa daquela pleiteada. Isso
se revela ainda mais evidente nos casos em que a medida reque-
rida diretamente pela ofendida, que muitas vezes desconhece os
seus direitos e a proteo que lhe garantida pela lei. Esta assertiva
tem assento na prpria Lei Maria da Penha, que, no seu art. 22, 4,
determina que se aplique, no que couber, o caput do art. 461 do CPC.
O referido dispositivo, por sua vez, determina que o juiz conceda a
tutela especfica dos deveres de fazer e de no fazer ou assegure o
resultado prtico equivalente ao do adimplemento. Com isso, quer
dizer que o magistrado est autorizado a conceder medida diversa
daquela pleiteada, sem ofensa ao princpio da congruncia objetiva,
desde que isso seja necessrio para a tutela do bem da vida que se
pretende alcanar.34
6REFERNCIAS
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justia: a efetividade da

Lei 11.340/2006 de combate violncia domstica. 2. ed. So Paulo:
Revista dos Tribunais, 2010.
DIDIER JR., Fredie; OLIVEIRA, Rafael. Aspectos processuais civis da Lei

Maria da Penha (violncia domstica e familiar contra a mulher). Dispon-
vel em: <http://www.evocati.com.br/evocati/artigos.wsp?tmp_codarti-
go=449>. Acesso em: 20 out. 2015.
FERNANDES, Valria Dias Sacarance. Lei Maria da Penha: o processo

no caminho da efetividade: abordagem jurdica e multidisciplinar. So
Paulo: Atlas, 2015.
REVISTAConsultor Jurdico, 6 set. 2015.
(violncia domstica e familiar contra a mulher). Disponvel em: <http://www.evocati.com.

br/evocati/artigos.wsp?tmp_codartigo=449>. Acesso em: 20 out. 2015.
34
AS DIFERENAS SUCESSRIAS ENTRE UNIO
ESTVEL E CASAMENTO SO CONSTITUCIONAIS? A
POSIO DA DOUTRINA E DOS TRIBUNAIS1
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka
Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da

Universidade de So Paulo (USP). Fundadora e Diretora Nacional da
Regio Sudeste do Instituto Brasileiro de Direito de Famlia (IBDFAM).
Diretora Nacional da Regio Sudeste do Instituto Brasileiro de Direito
Civil (IBDCivil).
Sumrio: 1. Os caminhos que foram percorridos at a edi-

o do art. 1.790 do Cdigo Civil. 2. Breves linhas sobre o
contedo jurdico da sucesso. 3. Concorrncia do cn-
juge sobrevivente. 4. Sucesso de pessoa que houvesse
sido unida estavelmente. 5. Tabela de diferenas sucess-
rias entre o cnjuge e o companheiro. 6. O contedo jur-
dico do princpio da igualdade.
1OS CAMINHOS QUE FORAM PERCORRIDOS AT A EDIO DO ART.

1.790 DO CDIGO CIVIL
Querendo ser mestres da lei, e no entendendo nem o que dizem
nem o que afirmam. Sabemos, porm, que a lei boa, se algum dela
usa legitimamente.
(1 Epstola de Paulo a Timteo. 1:7-8)
Desde a promulgao do Cdigo Civil esta questo debatida: se

o art. 1.790 constitucional ou inconstitucional. E desde esta poca
vale dizer, desde a da nossa Lei Civil considervel parte dos doutrina-
dores e pensadores do direito inquinaram de inconstitucionalidade o
referido dispositivo legal.
No ano de 2002, durante o perodo da vacatio, portanto, a Ouvi-
doria-Geral da Cmara dos Deputados fez acontecer, em Braslia, um
Palestra proferida no X Congresso Brasileiro de Direito de Famlia, em Belo Horizonte, no dia

1
22 de outubro de 2015.
seminrio que se denominou Novo Cdigo Civil Brasileiro o que
muda na vida do cidado, com o intuito de discutir com a socie-
dade brasileira e fazer chegar a todos aqueles que se interessam pelo
assunto conforme disse o Ouvidor-Geral Dr. Luiz Antonio Fleury
Filho, na abertura do evento2 ao qual compareceu e esteve presente
durante as duas semanas de durao, S.Exa. o Prof. Miguel Reale, que
presidiu a comisso de notveis que elaborou o projeto da Lei Nova.
No que diz respeito ao V Livro da Parte Geral do Cdigo Direito
das Sucesses apresentamo-lo Zeno Veloso e eu, ele para dizer a res-
peito da sucesso testamentria, e eu, a respeito da sucesso legtima.
Mostramos, desde aquele remoto dia de novembro de 2002 nossa
enorme surpresa com a insero esdrxula e malposta do dispositivo
legal que cuidaria da sucesso do companheiro no captulo referente
s Disposies Gerais da Lei, e no no captulo da Sucesso Legtima,
que o habitat das disposies que regulam a sucesso daquele que foi
casado com o falecido, e que agora a este sobrevive.
Anteriormente Constituio de 1988, quando ainda se falava
em concubinato e a reao social a este tipo de relacionamento afetivo
era de recriminao e rejeio social, a jurisprudncia j ganhava certo
destaque e fora, e com a Lei n. 6.858/80, garantiu direito sucess-
rio convivente sobrevivo sobre bens de origem previdenciria, assim
como bens de pequeno valor. Quando a Constituio entrou em vigor
e garantiu a legitimao da unio estvel, causando uma verdadeira
revoluo de costumes e afastando a recriminao, no foi demais,
naquele momento histrico, propugnar pela equalizao dos direitos e
deveres dos companheiros queles mesmos direitos e deveres assegu-
rados s pessoas unidas pelo casamento.
As leis infraconstitucionais que se seguiram, na dcada de 1990
exatamente a Lei n. 8.971/1994 e a Lei n. 9.278/1996 avanaram
muitssimo neste campo de reconhecimento e regulamentao de
direitos aos companheiros, mormente em seara de direitos sucess-
rios, fechando (por assim dizer), no sculo XX, a incansvel batalha
sociojurdica que havia se iniciado volta dos anos 30, deste mesmo
sculo, sob a gide jurisprudencial, principalmente. Contudo, enquanto
isso, tramitava, entre ns, desde 1972, o ento Anteprojeto de Cdigo
Civil, que se converteu em Projeto no ano de 1975, tendo sido depois
aprovado na Cmara dos Deputados, em 1984. Todavia, este corpo de
leis no previa qualquer regra relativamente sucesso de pessoas
relacionadas exclusivamente pelos laos do afeto. Foi o Senador Nelson
2
Houve posterior publicao deste seminrio, com todas as palestras ministradas, a respeito
de todos os livros do Cdigo Civil recm-promulgado, em 2003, pelo Centro de Documenta-
o e Informao Coordenao de Publicaes da Cmara dos Deputados (srie Ao Parla-
mentar n. 229).
Carneiro, em sua incessante luta pelo reconhecimento de arranjos
familiares, alm daqueles oriundos do casamento, que apresentou
emenda no sentido de se garantir direitos sucessrios aos conviventes.
Esta emenda, como lembra Zeno Veloso, foi claramente inspirada no
Projeto de Cdigo Civil elaborado por Orlando Gomes, na dcada de 60
do anterior sculo.
O resultado desse percurso, quase sempre desastroso e muitas
vezes de cariz retrgrado e preconceituoso, foi a edio do art. 1.790
do Cdigo Civil de 2002, dispositivo este na minha viso clara-
mente inconstitucional. verdade que assiste razo aos que dizem que,
em determinadas situaes, o regramento legal da sucesso do com-
panheiro pode at ser mais vantajosa que a do cnjuge, tentando com
isso justificar que poderia o legislador fazer o discrmen. Para mencio-
nar um exemplo, tomo a hiptese de uma unio estvel com dois filhos
comuns e apenas bens particulares. Nesse caso, o convivente sobrevivo
receber a meao e ainda concorrer com os filhos na herana, o que
no aconteceria se estivessem casados. Contudo, o fato de a sucesso
do companheiro em rarssimas excees poder ser mais vantajosa do
que a do cnjuge apenas refora a inconstitucionalidade, pois no cabe
no invlucro constitucional regramento diferente para situaes social
e juridicamente idnticas.
Tenho me debruado sobre esse tema, desde muito antes da pro-
mulgao da nossa atual Lei Civil, e tenho acompanhado esta trajet-
ria histrica que terminou por produzir esta esdrxula disposio legal
acerca dos direitos sucessrios do companheiro sobrevivo. Tanto estu-
dei e tanto escrevi sobre o assunto que, na Academia, essas minhas
reflexes e concluses levaram-me a escolher, para a minha tese de
professor titular na Faculdade de Direito da USP, exatamente o tema
da concorrncia sucessria do cnjuge e do companheiro, para bus-
car mostrar as abissais diferenas de tratamento que o legislador de
2002 concedeu a um e a outro, em clara desateno ao comando cons-
titucional de equalizao dos direitos de um e de outro, mormente em
matria sucessria.
Na ocasio, escrevi minhas concluses sobre a concorrncia do
cnjuge suprstite com os descendentes herdeiros do falecido, sobre
a concorrncia do cnjuge suprstite com a descendncia hbrida
do autor da herana, sobre a sucesso de pessoa que houvesse sido
unida estavelmente, e que agora sobrevive ao companheiro falecido,
bem como sobre a no equalizao dos direitos sucessrios do cn-
juge e do companheiro suprstites,3 o que me permitiu concluir com
3
A minha tese de professor titular, defendida em 2010, converteu-se, depois, no livro Morrer e
Suceder: passado e presente da transmisso sucessria concorrente. 2. ed. So Paulo: Revista
dos Tribunais, 2014.
vagar pela inconstitucionalidade do art. 1.790 do Cdigo Civil, o que, de
forma sinttica, com outros argumentos e novo corte metodolgico,
tambm tentarei demonstrar aqui.
2BREVES LINHAS SOBRE O CONTEDO JURDICO DA SUCESSO

Encontra-se, pois, a origem do direito na prpria natureza do
homem, havido como ser social.
(Vicente Rao, O direito e a era dos direitos)
Ao estudioso que principia reflexo sobre a sucesso (e aqui

estou a falar unicamente da sucesso mortis causa), imprescindvel a
inquirio do porqu o Direito se preocupa com a transmisso de bens
e direitos em razo da descontinuao da vida do seu titular. E a res-
posta dessa pergunta que muito significar concluso deste estudo,
que tem a humilde, porm justa, pretenso de desnudar a flagrante
inconstitucionalidade do art. 1.790 do Cdigo Civil. Pois bem, mas por
qual motivo interessa ao Direito a definio de regras acerca da suces-
so causa mortis?
A morte , por excelncia e em regra, fato jurdico com termo
incerto, j que no dado, s pessoas, saberem exatamente quando
ir suceder o inevitvel evento da morte. E parece no haver dvida de
que a vida um contnuo de fatos, situaes e atos jurdicos, estando
as pessoas constantemente expostas e sujeitas aos seus efeitos. Se
assim, certo tambm que a imprevisibilidade do evento morte faz
com que fique potencialmente descoberta de efetividade uma srie de
direitos e deveres que dependiam da personalidade jurdica da pessoa
que se finda. assim com os contratos firmados pelo morto; com os
danos por ele sofridos ou cometidos; com os bens que a ele pertenciam
ou que deveriam ser transmitidos a terceiros; com as obrigaes legais
que ele tinha que cumprir. Por isso, e em razo desses fatos da vida,
no precipitado dizer que o contedo jurdico da sucesso se preen-
che pela necessidade de a personalidade jurdica do falecido se findar
sem que acarrete danos a outros e sem que suas titularidades jurdicas
fiquem alijadas de um titular, para o que se faz imprescindvel a trans-
misso daquela posio jurdica at ento presidida pelo de cujus.
Todavia, no s. H outro contedo inerente e por demais caro
sucesso: a presuno de que o falecido, acaso soubesse o instante do
falecimento, provavelmente transmitiria seus bens s pessoas que lhe
eram mais prximas, preterindo as mais remotas, em ateno ao prin-
cpio da afetividade. Alm disso, a afetividade tambm impe restrio
autonomia da vontade do autor da herana, mediante imposio do
Estado legiferante, pois no pode ele privar seus parentes prximos de
participarem do acervo hereditrio, j que o afeto no direito sub-
jetivo de cada pessoa, correspondendo a gostar apenas daqueles que
deseja. Afeto no mero gosto, simples preferncia ou vil interesse. O
princpio do afeto carrega tambm carga ativa de imposio de deve-
res entre aqueles que se relacionam juridicamente em matria familiar,
provavelmente em razo do vnculo amoroso ou consanguneo, de tal
modo que resta imposto, ao de cujus, uma quota patrimonial mnima
que deve, necessariamente, ser destinada aos seus herdeiros necess-
rios. Trata-se da chamada legtima dos herdeiros necessrios.
Ningum discute que entre herdeiros de uma mesma classe no
h mais distino depois de 1988, como sucede no caso dos filhos ditos
legtimos, adulterinos e adotados, que antes eram tratados de forma
desigual, j que h muito superamos aquele entendimento hediondo de
que era possvel fazer acepo de pessoas em idntica posio jurdica,
unicamente por um preconceito social para l de retrgrado e que, no
passado e ainda hoje, gerava consequncias nefastas a estas pessoas,
comunidade e s instituies (inclusive as jurdicas).
Por isso, antes de entrar efetivamente nas razes que, no meu
pessoal modo de entender, apontam para a insofismvel inconstitu-
cionalidade do famigerado art. 1.790 do Cdigo Civil, passo ao deta-
lhamento das diferenas criadas pela lei mas repudiadas pela
Constituio entre o cnjuge e o companheiro suprstites.
3CONCORRNCIA DO CNJUGE SOBREVIVENTE
O art. 1.829 do Cdigo Civil enumera os vocacionados sucesso

dita legtima. No foi sem resistncia que o cnjuge se manteve como
herdeiro preferencial, concorrendo com os descendentes e ascenden-
tes, visto que durante a tramitao do Projeto de Cdigo Civil, o Depu-
tado Rafael Faraco apresentou proposta posteriormente rejeitada
com a seguinte sugesto: Suprima-se a expresso final do inciso II
do art. 1.876: em concorrncia com o cnjuge. O ento relator parcial,
Deputado Celso Barros, opinou pela rejeio daquela proposta, apre-
sentando bela justificativa:
No se trata de eliminar a concorrncia do cnjuge, como pretende

a emenda, mas to somente disp-la de modo mais compreens-
vel. A concorrncia do cnjuge, mesmo restrita, uma conquista
em nosso direito e em relao sobretudo aos ascendentes torna-se
ela necessria, tendo em vista o papel que desempenha a mulher
na formao do patrimnio familiar. Se aceita a emenda, ter-se-ia
de frustrar os avanos at aqui alcanados, embora timidamente,
o que quebraria a sistemtica do Projeto, alicerada naquela
concorrncia.4
E de fato a concorrncia do cnjuge com os ascendentes e des-

cendentes foi uma conquista, pois no Cdigo Civil de 1916 o cnjuge
s herdava se no houvesse o autor da herana deixado descendentes
ou ascendentes, a teor do art. 1.603, inciso III, daquele Cdigo. Apenas
com o Estatuto da Mulher Casada (Lei n. 4.121/1962) que foram inclu-
dos no art. 1.611 do Cdigo Civil de 1916 os 1 e 2, que disciplinaram:
(i) a hiptese de o cnjuge no ser casado pelo regime da comunho
total de bens (no sendo meeiro, portanto), quando teria o cnjuge
suprstite direito de usufruto da quarta parte dos bens do falecido (se
houvesse filhos exclusivos do falecido ou do casal), ou usufruto sobre
a metade do patrimnio deixado pelo autor da herana caso no exis-
tissem filhos, mas apenas ascendentes. De qualquer forma, fato que
o cnjuge no era herdeiro necessrio; (ii) o direito real de habitao
ao cnjuge suprstite casado no regime da comunho universal sobre
o imvel de residncia da famlia, desde que fosse o nico a partilhar
e reservada a meao que j pertencia ao cnjuge sobrevivo. De todo
modo, fato que no era o cnjuge herdeiro necessrio, pois esses
benefcios sucessrios extinguiam-se ou com a morte do vivo ou com
a cessao da viuvez com novo casamento.
Esse avano que vivenciamos com a considerao do cnjuge
como herdeiro preferencial foi mantido no Cdigo Civil de 2002 da
seguinte forma:
Art. 1.829. A sucesso legtima defere-se na ordem seguinte:

I aos descendentes, em concorrncia com o cnjuge sobrevi-
vente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunho
universal, ou no da separao obrigatria de bens (art. 1.640,
pargrafo nico); ou se, no regime da comunho parcial, o autor da
herana no houver deixado bens particulares;
II aos ascendentes, em concorrncia com o cnjuge;
III ao cnjuge sobrevivente;
IV aos colaterais. (Grifo nosso) 5
Desse modo, apesar de o cnjuge constar em terceiro lugar no rol

de vocao hereditria, posicionou-se no Cdigo Civil de 2002 igual-
mente favorecido em concorrncia com as duas primeiras classes, tudo
porque era imprescindvel que se reconhecesse por lei a importncia
4
Cf. PASSOS, Edilenice; LIMA, Joo Alberto de Oliveira. Memria Legislativa do Cdigo Civil.
Braslia: Senado Federal, 2014, v. 4, p. 908.
5
Destaco o inciso I do dispositivo, posto que este o campo delimitado para as observaes
que dizem respeito ao presente estudo.
que o morto presumidamente nutria em relao aos descendentes, aos
ascendentes e ao cnjuge sobrevivente, assim como tambm se obje-
tivava proteger e perpetuar a continuidade da famlia (em ateno ao
comando constitucional do art. 226, que determina ao Estado a espe-
cial proteo do ncleo familiar). Tambm por isso que a quota do
cnjuge aumenta de acordo com a classe em que se encontra (art. 1.832
do CC) e que, de acordo com o inciso I do art. 1.829 do Cdigo Civil, no
ser chamado a herdar concorrentemente o cnjuge vivo que houver
sido casado com o autor da herana pelo regime da comunho univer-
sal de bens (arts. 1.667 a 1.671 do CC), ou pelo regime da separao obri-
gatria de bens (arts. 1.687 e 1.688 do CC, combinado com o art. 1.641
do CC), ou, ainda, pelo regime da comunho parcial de bens (art. 1.640
do CC), se, porventura, o falecido no houvesse deixado bens particula-
res. Isso significa que o cnjuge sobrevivente ser herdeiro preferencial
e necessrio sobre uma quota-parte dos bens exclusivos do cnjuge fale-
cido, parcela esta a ser calculada e acrescentada prpria meao do
vivo (quando houver patrimnio comum do casal).
A partir do arrolamento vocatrio e das designaes de critrios
que esto contidos no art. 1.829 do Cdigo Civil, passa o legislador, em
artigo posterior (art. 1.832 do CC) a estipular o modo pelo qual se deve
proceder partilha dos quinhes entre os herdeiros que concorrem, os
descendentes e o cnjuge vivo, determinando que:
Art. 1.832. Em concorrncia com os descendentes (art. 1.829, inciso I)

caber ao cnjuge quinho igual ao dos que sucederem por cabea,
no podendo a sua quota ser inferior quarta parte da herana, se
for ascendente dos herdeiros com que concorrer.
Esse comando concentra a enorme dvida relacionada mate-

mtica dos quinhes, esmiuando casos de concorrncia do cnjuge
suprstite com descendncia comum, com descendncia exclusiva e
com descendncia hbrida do falecido. Toda essa confuso matem-
tica e legal j foi por mim exaustivamente enfrentada na suprarreferida
tese defendida na Faculdade de Direito do Largo So Francisco, para
concurso de Professor Titular, e que se converteu no livro Morrer e
Suceder: passado e presente da transmisso sucessria concorrente,6
especificamente no captulo 8, para onde remeto o leitor que quiser se
aprofundar, j que no o cerne do que este presente estudo se dispe
a realizar.7
6
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Morrer e Suceder: passado e presente da
transmisso sucessria concorrente. 2. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
7
Apenas como registro, a respeito da sucesso do cnjuge suprstite casado sob o regime da
comunho parcial de bens, a Segunda Seo do Superior Tribunal de Justia acabou por
chancelar a posio que venho defendendo h mais de 15 anos, qual seja, de que o monte
De toda forma, o que aqui importa evidenciar a regra geral pre-
vista no art. 1.829 do Cdigo Civil de igualdade entre os herdeiros de
igual posio jurdica, tal como ocorre na sucesso por filhos consan-
guneos, adotados e socioafetivos,8 cumulada com tambm regra geral
de especial proteo da famlia pelo privilgio pessoa que acompa-
nhou o de cujus at o ltimo instante de vida, cuja ndole eminen-
temente constitucional e que orienta por vezes e deve(ria) orientar
sempre a legislao ordinria em matria sucessria.
4SUCESSO DE PESSOA QUE HOUVESSE SIDO UNIDA ESTAVELMENTE
No desejvel cultivar pela lei o mesmo respeito que cultivamos

pelo Direito. [...] A lei jamais tornou os homens mais justos, e, por
meio de seu respeito por ela, mesmo os mais bem-intencionados
transformam-se diariamente em agentes da injustia.
(Henry David Thoreau, A Desobedincia Civil)
A ordem de vocao hereditria do companheiro estabelecida

pelo art. 1.790 do Cdigo Civil, que deve ser lido em consonncia com
o art. 1.829 do mesmo diploma. O artigo especfico est redigido da
seguinte maneira:
Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participar da suces-

so do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vign-
cia da unio estvel, nas condies seguintes: I se concorrer com
filhos comuns, ter direito a uma quota equivalente que por lei for
atribuda ao filho; II se concorrer com descendentes s do autor
da herana, tocar-lhe- a metade do que couber a cada um daque-
les; III se concorrer com outros parentes sucessveis, ter direito
partvel composto pelo conjunto dos bens particulares (se existentes) deixados pelo autor
da herana, sobre o qual haver concorrncia do cnjuge. Confira-se o julgado: 2. Nos ter-
mos do art. 1.829, I, do Cdigo Civil de 2002, o cnjuge sobrevivente, casado no regime de
comunho parcial de bens, concorrer com os descendentes do cnjuge falecido somente
quando este tiver deixado bens particulares. 3. A referida concorrncia dar-se- exclusiva-
mente quanto aos bens particulares constantes do acervo hereditrio do de cujus. 4. Recurso
especial provido. (REsp 1368123/SP, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, Rel. p/ Acrdo Ministro
RAUL ARAJO, SEGUNDA SEO, julgado em 22.04.2015, DJe 08.06.2015).
8
Confira-se: 6. O reconhecimento do estado de filiao constitui direito personalssimo,
indisponvel e imprescritvel, que pode ser exercitado, portanto, sem qualquer restrio, em
face dos pais ou seus herdeiros. 7. A paternidade traz em seu bojo diversas responsabilidades,
sejam de ordem moral ou patrimonial, devendo ser assegurados os direitos sucessrios
decorrentes da comprovao do estado de filiao. 8. Todos os filhos so iguais, no sendo
admitida qualquer distino entre eles, sendo desinfluente a existncia, ou no, de qualquer
contribuio para a formao do patrimnio familiar. 9. Recurso especial desprovido. (STJ -
REsp: 1274240 SC 2011/0204523-7, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento:
08.10.2013,T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicao: DJe 15.10.2013).
a um tero da herana; IV no havendo parentes sucessveis, ter
direito totalidade da herana.
O histrico desse dispositivo demonstra divergncias ideolgi-

cas entre os prprios senadores, cujas emendas constam do quadro
comparativo dos projetos de leis at a promulgao do Cdigo Civil de
2002:9
Note-se da Emenda n. 358 do Senador Nelson Carneiro, de 1984,
que, apesar de declaradamente no saber onde sugerir aquela inclu-
so, tanto que constou um onde convir, referindo-se ao local onde
deveria ser includa, acabou por justificar aquela emenda tratando as
companheiras como legies de esposas unidas simplesmente pelo
matrimnio religioso, e que com os maridos partilham nos campos,
nas indstrias, no comrcio, em mltiplas atividades no lar e fora dele,
os dias de sol e os de sombra.10
No mesmo sentido, o parecer final do Senador Josaphat Marinho,
j sob a vigncia da Constituio de 1988, deixou claro que o objetivo
daquela emenda era assegurar a equivalncia no tratamento entre os
cnjuges e companheiros, in verbis:
Contudo, no inciso III reduz-se a participao da companheira, ou

companheiro, na herana, para que no fique em situao superior
do cnjuge, em hiptese semelhante (art. 1.864). Alm disso, no
inciso IV, em que no h parentes sucessveis, injustificvel limi-
tar a participao da companheira ou do companheiro, na herana,
a dois teros. Eleva-se a soluo para a totalidade da herana, como
se afigura mais concilivel com a tendncia do direito de hoje. Note-
-se que, com a segurana do direito da companheira ou compa-
nheiro sucesso, se tem o cuidado de estabelecer que tal se dar
na vigncia da unio estvel, para assegurar tratamento equivalente
ao do art. 1.853, em relao aos cnjuges.11
Entretanto, andou para trs o estranhamente preconceituoso

parecer final com emenda substitutiva do Deputado Ricardo Fiza, que
disse ser a unio estvel um
9
Excelente compilao sobre o processo legislativo do Cdigo Civil de 2002 pode ser consul-
tada em: PASSOS, Edilenice; LIMA, Joo Alberto de Oliveira. Memria Legislativa do Cdigo
Civil. Braslia: Senado Federal, 2012, v. 1, p. 556.
10
PASSOS, Edilenice; LIMA, Joo Alberto de Oliveira. Memria Legislativa do Cdigo Civil.
11
caminho para o matrimnio, ou quando muito, um matrim-
nio incompleto [...]. As diretrizes imprimidas elaborao do Pro-
jeto, fiis nesse ponto s regras constitucionais e legais vigorantes,
aconselham ou, melhor dizendo, impem um tratamento diversifi-
cado, no plano sucessrio, das figuras do cnjuge suprstite e do
companheiro sobrevivo, notadamente se ocorrer qualquer super-
posio ou confuso de direitos sucesso aberta. Impossibilitado
que seja um tratamento igualitrio, inclusive por descaracterizar
tanto a unio estvel enquanto instituio-meio, quanto o casa-
mento enquanto instituio-fim, na conformidade do preceito
constitucional. A natureza tutelar da unio estvel constitui, na ver-
dade, uma parcial correo da desigualdade reconhecida no plano
social e familiar, desde que atentemos ser o casamento mais est-
vel do que a estabilidade da convivncia duradoura. Tomamos assim
como diretrizes bsicas, na caracterizao dos direitos sucessrios
do cnjuge e do convivente, a prevalncia da relao matrimonial
em confronto com o relacionamento.12
toda evidncia, faltou melhor reflexo quanto deliberao

do art. 1.790 do Cdigo Civil, que representou flagrante retrocesso em
matria sucessria para o companheiro se levadas em conta as leis
at ento em vigor (Lei n. 8.971/94 e Lei n. 9.278/96), tanto que o
prprio Deputado Ricardo Fiza, to logo promulgado o Cdigo Civil,
apresentou projeto de lei para, encampando sugesto de Zeno Veloso,
mudar drasticamente o ento aprovado art. 1.790, sob o argumento
de que, tal como posto, significa um retrocesso na sucesso entre
companheiros, sugerindo no Projeto de Lei n. 6.920/02 a seguinte
redao (que fora arquivado em razo do prazo legislativo e reproposto
pelo Deputado Arnaldo Faria de S pelo Projeto de Lei n. 699/2011,
ainda em trmite perante a Cmara dos Deputados) 13:
Art. 1.790. O companheiro participara da sucessao do outro na

forma seguinte:
I em concorre n cia com descendentes, tera direito a uma quota
equivalente a metade do que couber a cada um destes, salvo se
tiver havido comunhao de bens durante a uniao estavel e o autor da
heranc a nao houver deixado bens particulares, ou se o casamento
dos companheiros se tivesse ocorrido, observada a situac a o exis-
tente no comeco da convive n cia, fosse pelo regime da separac a o
obrigatoria (art. 1.641);
II em concorre n cia com ascendentes, tera direito a uma quota
equivalente a metade do que couber a cada um destes;
12
Braslia: Senado Federal, 2012, v. 3, p. 525-6.
13
Para acompanhar a tramitao do projeto, acessar o link <http://www2.camara.leg.br/pro-
posicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=494551> Acesso em: 5 fev.2016.
III em falta de descendentes e ascendentes, tera direito a totali-
dade da heranc a .
Paragrafo unico. Ao companheiro sobrevivente, enquanto nao cons-
tituir nova uniao ou casamento, sera assegurado, sem prejuizo da
participac a o que lhe caiba na heranc a , o direito real de habitac a o
relativamente ao imovel destinado a reside n cia da familia, desde
que seja o unico daquela natureza a inventariar.
Foroso concluir, diante desse conturbado, insubsistente e irre-

fletido processo legislativo no que se refere sucesso mortis causa
do companheiro sobrevivo, que o que h mesmo uma clara incons-
titucionalidade, j que trata desigualmente situaes equipolentes e
equalizadas pela ordem constitucional, a saber, as entidades familiares
oriundas do casamento e da unio estvel. E no s, pois o tal art.
1.790 do Cdigo Civil ainda apresenta outros defeitos e desequilbrios,
quando comparado ao art. 1.829 do mesmo Cdigo, como, por exem-
plo, o fato de ter colocado em ordem vocatria privilegiada os parentes
colaterais do falecido, favorecendo-os antes do prprio companheiro
de vida e de afeto daquele que, agora, o autor da herana.
Ao jurista no dado ignorar a realidade ftico-social, pelo con-
trrio, pois a prpria lei impe que na interpretao (e por bvio tam-
bm na feitura) de qualquer norma se deve atender aos fins sociais e
exigncias do bem comum, a teor do art. 5 da LINDB. E no h nada
socialmente relevante personalidade humana que ganhe importn-
cia com mera forma burocratizada. Tanto que dois dos atributos dos
direitos da personalidade so seu absolutismo (valendo contra todos) e
generalidade (j que conferidos s pessoas de forma geral, independen-
temente de suas caractersticas individuais). Uma criana no deixar
de ser pessoa por eventual ausncia de registro. Um filho afetivo que
no tenha sofrido processo de adoo no deixar de ter todos os direi-
tos do filho formalmente adotado. Um convivente no ficar desampa-
rado pela previdncia ou assistncia social pelo mero fato de no ser
casado. Foi-se o tempo em que os termos postos em um papel sobrepu-
javam em relevncia a realidade ftico-social-jurdica da relao que se
ali estava tendo. Nem mesmo em matria contratual h essa relevncia
toda, mormente o art. 112 do Cdigo Civil determinar que vale muito
mais nos negcios jurdicos a causa sinalagmtica do negociar, do que
os termos frios e literais pelos quais fora redigido. De igual lgica, o
cnjuge e os companheiros no podem ter direitos diferentes em razo
da existncia de um mero papel tabular.
Alm disso, o legislador e ainda o jurista no podem partir da
premissa de que todos os brasileiros vivem em uma grande megalpole
com amplo conhecimento e discernimento das leis, imaginando que
as pessoas que resolvem se unir estavelmente estariam deliberadas e
conscientemente ponderando todas as diferenas que a lei impe aos
dois institutos em matria sucessria. Primeiro, porque ningum se
une imaginando ou querendo prever consequncias para a morte, que
a rigor verdadeiro tabu ainda na nossa sociedade. Segundo, porque
se nem mesmo os juristas que vivem nos grandes centros urbanos e
frequentaram prestigiosos bancos acadmicos chegam a um consenso
sobre a interpretao da lei, o que se dir ou exigir dos brasileiros que
povoam pequenos vilarejos, cidades em que no h sequer cartrio? E
mais, o que se pode exigir daqueles que h dcadas vivem como marido
e mulher sem se atinar que uma previso ou interpretao ardilosa da
lei poderia lhes preterir em direitos, transferindo na hiptese de uma
fatalidade o patrimnio usufrudo pela famlia para primos distan-
tes que nunca viram? A lei no possvel que nos esqueamos disso
nem um nico segundo sequer no foi feita para os doutos, mas foi
feita para cada um e todos os cidados, que devero entend-la clara e
imediatamente, assim que a ela forem apresentados. Seguramente, este
no o caso do assunto que vem sendo aqui tratado...
E no s: havendo diferena na sucesso entre o cnjuge e com-
panheiro, e sendo essa a nica diferena substancial entre os institu-
tos familiais (pois as demais diferenas so unicamente formais, como a
maneira como se prova e se dissolve cada instituto), basicamente impe
o legislador que as pessoas passem a ter e pressionar, no curso do rela-
cionamento familiar, atos puramente argentrios com manipulao dos
institutos jurdicos, visando obter benefcio patrimonial com o faleci-
mento do outro. A funo dos institutos jurdicos regular situaes
fticas distintas e no ofertar s pessoas possibilidades de, diante de
uma nica situao ftica, encaixar-se em uma ou outra regra legal. A
lei no um caminho a ser eleito pelo vil interesse das pessoas, mas
sim baliza, ao comportamento humano, que se subsuma ao texto legal,
pouco importando a vontade do agente. E o que sucede em matria
sucessria que h duas normas legais regulando o mesmo fato social,
qual seja, a sucesso familiar.
Os julgados dos tribunais acerca dessas temticas ainda tm
oscilado muito, ora por uma linha hermenutica, ora por outra, tanto
que a controvrsia chegou ao Supremo Tribunal Federal com afetao
Repercusso Geral no RE n. 878694/MG, em 16.04.2015, bem como
Repercusso Geral no RE n. 646721/RS, em 10.11.2011, conforme emen-
tas abaixo:
Ementa: DIREITO DAS SUCESSES. RECURSO EXTRAORDIN-

RIO. DISPOSITIVOS DO CDIGO CIVIL QUE PREVEEM DIREITOS
DISTINTOS AO CNJUGE E AO COMPANHEIRO. ATRIBUIO DE
REPERCUSSO GERAL. 1. Possui carter constitucional a contro-
vrsia acerca da validade do art. 1.790 do Cdigo Civil, que prev ao
companheiro direitos sucessrios distintos daqueles outorgados ao
cnjuge pelo art. 1.829 do mesmo Cdigo. 2. Questo de relevncia
social e jurdica que ultrapassa os interesses subjetivos da causa. 3.
Repercusso geral reconhecida.
(RE 878694 RG, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, julgado em
16.04.2015, PROCESSO ELETRNICO DJe 092 DIVULG 18.05.2015
PUBLIC 19.05.2015)
UNIO ESTVEL COMPANHEIROS SUCESSO ARTIGO 1.790
DO CDIGO CIVIL COMPATIBILIDADE COM A CONSTITUIO
FEDERAL ASSENTADA NA ORIGEM RECURSO EXTRAORDIN-
RIO REPERCUSSO GERAL CONFIGURADA. Possui repercusso
geral a controvrsia acerca do alcance do artigo 226 da Constitui-
o Federal, nas hipteses de sucesso em unio estvel homoafe-
tiva, ante a limitao contida no artigo 1.790 do Cdigo Civil.
(RE 646721 RG, Relator(a): Min. MARCO AURLIO, julgado em
10.11.2011, ACRDO ELETRNICO DJe 232 DIVULG 06.12.2011
PUBLIC 07.12.2011)
Apenas para demonstrar a expressividade da divergncia encon-

trada nos tribunais, vale a meno do caso que chegou ao Superior
Tribunal de Justia, julgado pela Corte Especial por meio da Argui-
o de Inconstitucionalidade em Recurso Especial n. 1.135.354/PB, em
03.10.2012, que discutia a constitucionalidade ou inconstitucionalidade
dos incisos III e IV do art. 1.790 do Cdigo Civil. Naquele julgamento,
o Relator sorteado Min. Luis Felipe Salomo conheceu da arguio e
reconheceu a inconstitucionalidade, sob o argumento de que no tem
amparo constitucional o fato de o legislador, a pretexto de conferir tra-
tamento diferenciado unio estvel, acabar por discriminar as fam-
lias a partir dela constitudas. No entanto, o Ministro Cesar Asfor
Rocha divergiu do relator para no conhecer da arguio de inconsti-
tucionalidade e, se superado o no conhecimento, declarar constitu-
cionais os referidos dispositivos, pois, no entender do Ministro Asfor
Rocha:
Sem duvida alguma, a equiparao do(a) companheiro(a) ao cnjuge,

alem de nao encontrar amparo na letra do 3 do art. 226 da Cons-
tituio Federal, esvaziaria por completo o instituto da uniao esta-
vel e retiraria do casal o direito de escolher o tipo de sua uniao se
casamento ou uniao estavel e os efeitos patrimoniais respectivos
conforme a sua convenincia e com toda a liberdade, dentro, evi-
dentemente, dos limites traados pela norma infraconstitucional.
O ento Ministro do STJ (e hoje do STF), Teori Albino Zavas-

cki, acompanhou s inteiras o voto do Ministro Asfor Rocha. O Minis-
tro Sidnei Beneti, por sua vez, acompanhou integralmente o Relator
Luis Felipe Salomo, acolhendo a arguio de inconstitucionalidade
dos incisos III e IV do art. 1.790 do Cdigo Civil. Ao fim, o incidente
de inconstitucionalidade no foi conhecido pela Corte Especial do
Superior Tribunal de Justia, com placar apertado, conforme certido
abaixo:
Certifico que a egrgia CORTE ESPECIAL, ao apreciar o processo

em epgrafe na sesso realizada nesta data, proferiu a seguinte
deciso:
Prosseguindo no julgamento, aps o voto-vista do Sr. Ministro Felix
Fischer no conhecendo do incidente, os votos dos Srs. Ministros
Castro Meira, Arnaldo Esteves Lima, Massami Uyeda, Benedito
Gonalves, Mauro Campbell Marques e Raul Arajo, no mesmo sen-
tido, e os votos dos Srs. Ministros Humberto Martins, Herman Ben-
jamin, Napoleo Nunes Maia Filho e Sidnei Beneti conhecendo do
incidente, a Corte Especial, por maioria, no conheceu da arguio
de inconstitucionalidade.
Vencidos os Srs. Ministros Relator, Humberto Martins, Herman
Benjamin, Napoleo Nunes Maia Filho e Sidnei Beneti.
Lavrara o acrdo o Sr. Ministro Teori Albino Zavascki.
Votaram com o Sr. Ministro Teori Albino Zavascki os Srs. Minis-
tros Cesar Asfor Rocha, Felix Fischer, Castro Meira, Arnaldo Esteves
Lima, Massami Uyeda, Mauro Campbell Marques, Benedito Goncal-
ves e Raul Arajo.
Ainda no Superior Tribunal de Justia, h outros julgados que,

embora tratando apenas do direito real de habitao do convivente
sobrevivo (que no Cdigo Civil de 2002 s foi previsto para o cnjuge),
tem-se entendido que a Constituio Federal criou uma moldura nor-
mativa isonmica entre a unio estvel e o casamento, consoante se
depreende do REsp 821.660/DF, de Relatoria do Ministro Sidnei Beneti,
julgado em 14.06.2011, bem como do REsp 1.249.227/SC, de Relatoria do
Ministro Luis Felipe Salomo, julgado em 17.12.2013.
5TABELA DE DIFERENAS SUCESSRIAS ENTRE O CNJUGE E COM-

PANHEIRO
Segue tabela desnudando as abissais e ignominiosas diferenas

legislativas entre o cnjuge e companheiro quanto sucesso:
DIREITOS DO CNJUGE DIREITOS DO COMPANHEIRO
Art. 1.829. A sucesso legtima defere- Art. 1.790. A companheira ou o companheiro

se na ordem seguinte: participar da sucesso do outro, quanto aos
I - aos descendentes, em concorrncia bens adquiridos onerosamente na vigncia
com o cnjuge sobrevivente, salvo da unio estvel, nas condies seguintes:
se casado este com o falecido no I - se concorrer com filhos comuns, ter
regime da comunho universal, ou direito a uma quota equivalente que por lei
no da separao obrigatria de bens for atribuda ao filho;
(art. 1.640, pargrafo nico); ou se, no II - se concorrer com descendentes s do
regime da comunho parcial, o autor autor da herana, tocar-lhe- a metade do
da herana no houver deixado bens que couber a cada um daqueles;
particulares; III - se concorrer com outros parentes
II - aos ascendentes, em concorrncia sucessveis, ter direito a um tero da
com o cnjuge; herana;
III - ao cnjuge sobrevivente; IV - no havendo parentes sucessveis, ter
IV - aos colaterais. direito totalidade da herana.
O cnjuge um dos herdeiros O companheiro no est entre os herdeiros
necessrios. necessrios.
O cnjuge sempre ser herdeiro ou O companheiro poder no ser herdeiro e

meeiro. nem meeiro.
O cnjuge s sofre limitao herana Pouco importa o regime de bens que
para determinados regimes de bens eventualmente os conviventes tenham
e somente quando est concorrendo convencionado, pois s haver sucesso
com os descendentes. sobre os bens adquiridos onerosamente
durante a unio estvel. 1
O cnjuge sobrevivente, na O companheiro sobrevivo no tem um

concorrncia com os descendentes mnimo resguardado a ttulo de herana.
comuns, tem reservada uma quarta
parte do monte partvel (art. 1.832).
O cnjuge concorre com os O companheiro, na concorrncia com os

descendentes sem qualquer descendentes comuns, herdar uma quota
diferenciao. equivalente do descendente;
O companheiro, na concorrncia com os
descendentes exclusivos do autor da herana,
receber apenas metade do que couber a
cada um deles.
O Cdigo Civil previu a concorrncia O Cdigo Civil silenciou quanto maneira que
do cnjuge com os descendentes, o companheiro deve concorrer na hiptese
sem qualquer diferenciao entre corriqueira de existirem concomitantemente
os descendentes (se comuns ou tantos os descendentes comuns quanto os
exclusivos). exclusivos.
O cnjuge, se no existir descendentes O companheiro concorrer com outros

ou ascendentes, herdar toda a parentes sucessveis e ter direito a um tero
herana, no concorrendo com os da herana, o que significa dizer que haver
demais parentes sucessveis. concorrncia com os irmos do falecido, com
seus ascendentes e colaterais mais afastados
(v.g., o tio-av), que ficaro com 70% da
herana.
O cnjuge herda tambm todos Se existirem bens particulares do autor da
os bens particulares caso no haja herana e ele no tiver nenhum herdeiro
descendentes e nem ascendentes. sucessvel, esses bens particulares devero
por absurdo ir para o Poder Pblico, j que
o caput do art. 1.790 claro em dizer que
o companheiro s participar da herana
quanto aos bens particulares adquiridos
onerosamente.
O cnjuge tem direito real de habitao. O companheiro no tem direito real de
habitao (o que vem sendo corrigido por
algumas decises judiciais).
Eis a questo que no quer calar: que diferena viu o legislador

brasileiro entre o cnjuge e o companheiro, no que respeita ambi-
ncia da conjugalidade e mesmo, principalmente, na ambincia da
afetividade, ambincia suprema nas relaes familiares , se a prpria
Carta Magna brasileira, promulgada em 1988, condecorou o princ-
pio da igualdade material entre todas as pessoas em idntica situao
jurdica?
6O CONTEDO JURDICO DO PRINCPIO DA IGUALDADE
sabido que o princpio da isonomia no inibe o discrmen

feito por meio de lei, pois funo principal da lei impor tratamento
diferente s situaes e relaes jurdicas essencialmente desiguais.
Repita-se, tratamento diferenciado para aquilo que em essncia desi-
gual. Mas qual seria a essncia jurdica do casamento e da unio est-
vel seno a de vnculo afetivo constituidor de famlia? E como se faz
para saber quando uma lei est ferindo o princpio constitucional da
isonomia?
Aqui vale a lio de Celso Antnio Bandeira de Mello, ao escrever
sobre o contedo jurdico do princpio da igualdade:
Parece-nos que o reconhecimento das diferenciaes que no

podem ser feitas sem quebra da isonomia se divide em trs questes:
a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualao;
b) a segunda reporta-se correlao lgica abstrata existente entre
o fator erigido em critrio de discrmen e a disparidade estabele-
cida no tratamento jurdico diversificado;
c) a terceira atina consonncia desta correlao lgica com
os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte
juridicizados.14
14
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Conteudo juridico do principio da igualdade. 3. ed., 14
tir., Sao Paulo: Malheiros, 2006, p. 21.
Passa-se, ento, ao enfrentamento uma a uma das questes
acima, cuja concluso, adianta-se, revelar a flagrante inconstitucio-
nalidade do art. 1.790 do Cdigo Civil.
a) Investigao quanto ao elemento tomado pelo legislador como

fator de diferenciao
A primeira questo importante para que no se atinja a isonomia

, portanto, identificar o elemento tomado como fator de desiguala-
o, j que as diferenas de tratamento s se justificam perante fatos
e situaes diferentes... Afinal, h de ser nos prprios acontecimentos
tomados em conta que se buscaro diferenas justificadoras de direi-
tos e deveres distintos e no em fatores alheios a eles que em nada lhes
agregam peculiaridades desuniformizadoras... Ora, o princpio da iso-
nomia preceitua que sejam tratadas igualmente as situaes iguais e
desigualmente as desiguais. Donde no h como desequiparar pessoas
e situaes quando nelas no se encontram fatores desiguais.15
Contudo, qual seria, ento, o fator de diferenciao entre a unio
estvel e o casamento considerado pelo legislador para criar regimes
sucessrios diversos? Basicamente, o fator de desigualao eleito pelo
legislador a forma solene, porque o casamento imprescinde de sole-
nidade, enquanto a unio estvel a dispensa. E no h nenhum outro
fator discriminatrio trazido pelo legislador, pois at mesmo os impe-
dimentos matrimoniais (art. 1.521 do Cdigo Civil) so completamente
estendidos e entendidos como requisito para a configurao de unio
estvel.
Entretanto, a forma no pode ser tida como legtimo fator de
desigualao, uma vez que no tem absolutamente nada com a essn-
cia do casamento, que constituio de famlia por comunho do
mesmo projeto de vida. Alis, convm lembrar que o casamento sempre
foi ato essencialmente informal de unio de pessoas para constituio
de famlia, conforme se depreende desde as Institutas de Justiniano,
Ttulo IX, 1: Npcias, ou matrimnio, so a unio do homem e da
mulher com um costume indivisvel de vida.16 A forma como requisito
de validade das unies matrimoniais foi um acidente histrico da tra-
dio crist, sendo certo que nunca teve nada com a causa mesma do
matrimnio, que permaneceu inalterada, sendo, em verdade, segundo
15
tir., Sao Paulo: Malheiros, 2006, p. 33-4.
16
CRETELLA JR., Jos; CRETELLA, Agnes (Trad.). Institutas do Imperador Justiniano Manual
didtico para uso dos estudantes de direito de Constantinopla, elaborado por ordem do
Imperador Justiniano, no ano de 533 d.C. 2. ed., So Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 37.
pesquisa do historiador John Gilissen, resposta Reforma Protestante
que rejeitava a indissolubilidade absoluta do casamento. Segundo o
mesmo historiador, foi pelo Decreto Tametsi, datado de 11 de novem-
bro de 1563, emanado do Conclio de Trento, que o casamento passou
a ser um contrato solene com diversas formalidades para ser vlido,
sendo as principais formalidades ali institudas: (i) a publicao por trs
vezes do anncio do casamento pelo cura da parquia de cada um dos
cnjuges; e (ii) a celebrao do casamento pelo cura da parquia de um
dos cnjuges na presena de duas testemunhas. E o objetivo era unica-
mente combater o casamento clandestino, que foi o grande problema
da Igreja Catlica na Idade Mdia:
O grande inconveniente e tambm a grande fraqueza da doutrina

cannica clssica era o casamento clandestino. Como bastava o
simples consentimento, no era requerida qualquer formalidade
para o casamento. Os casamentos clandestinos foram um verda-
deiro flagelo na Idade Mdia. Houve numerosos processos para
estabelecer a validade do casamento, em razo do estatuto muito
desfavorvel criado aos filhos nascidos de pais que no estivessem
unidos pelos laos do casamento.17
E o que sucedeu foi que a formalidade j arraigada no sistema

matrimonial se manteve hgida mesmo depois da separao entre
Estado e Igreja entre os sculos XVI, XVII e XVIII, tambm como neces-
sidade de transportar o poder de celebrao do matrimnio que antes
era do clero e que se passava ao Estado. Por isso que, ao se retirar da
Igreja o monoplio de celebrao dos casamentos, tiveram os Estados
que regular internamente a maneira como sucederia e se validaria o
casamento civil. guisa de exemplo, no Cdigo Civil francs de 1804, a
regulao ficou na forma do art. 6318 daquela codificao:
Avant la clbration du mariage, lofficier de ltat civil fera deux

publications, huit jours dintervalle, un jour de dimanche, devant
la porte de la maison commune. Ces publications, et lacte qui en
sera dress, nonceront les prnoms, noms, professions et domiciles
des futurs poux, leur qualit de majeurs ou de mineurs, et les pr-
noms, noms, professions et domiciles de leurs pres et mres. Cet
acte noncera, en outre, les jours, lieux et heures o les publications
auront t faites: il sera inscrit sur un seul registre, qui sera cot et
paraph comme il est dit en larticle 41, et dpos, la fin de chaque
anne, au greffe du tribunal de larrondissement.
17
GILISSEN, John. Introduo histrica ao direito. Trad. Antnio Manuel Hespanha e Manuel
Lus Macasta Malheiros. 3. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2001, p. 571.
18
Disponvel em: <http://www.legilux.public.lu/leg/a/archives/1804/0005/a005.pdf>Acesso
em: 7 fev. 2016.
De qualquer maneira, a forma do casamento nunca prescindiu
e nem se descurou da sua essncia, que era a unio de pessoas para
constituir famlia. Tanto isso verdade que qualquer casamento for-
malmente vlido sem propsito familiar e unio em nico projeto de
vida no passa de ato jurdico simulado, nulo de pleno direito, por-
tanto. Por via inversa, qualquer unio de pessoas com propsito fami-
liar no fica automaticamente desnaturada pelo mero defeito de forma,
nos termos do art. 1.561 do Cdigo Civil.
b) Investigao quanto correlao lgica entre fator de discr-

men e a diferenciao feita entre casamento e unio estvel
Segundo Celso Antnio Bandeira de Mello, ocorre imediata e

intuitiva rejeio de validade regra que, ao apartar situaes, para
fins de regul-las diversamente, cala-se em fatores que no guardam
pertinncia com a desigualdade de tratamento jurdico dispensado.19
Tambm quanto a esse ponto padece de inconstitucionalidade
por afronta isonomia o tratamento discriminatrio da legislao para
cnjuges e conviventes em matria sucessria. Isso porque no h a
mnima correlao lgica entre o fator de discrmen (forma solene) e
o resultado da desigualdade de tratamento jurdico dispensado. Ainda
nas palavras de Celso Antnio Bandeira de Mello: agredida a igual-
dade quando o fator diferencial adotado para qualificar os atingidos
pela regra no guarda relao de pertinncia lgica com a incluso ou
excluso no benefcio deferido ou com a insero ou arrendamento do
gravame imposto.20 Com o devido respeito aos que pensam de forma
contrria, no se pode achar qual a lgica em se pensar que uma mera
formalidade na constituio de um casamento, ou a falta dela com o
incio de uma unio estvel, poderia gerar distintos resultados, para
fins sucessrios entre o cnjuge e companheiro, especialmente quando
todos os demais fatores essenciais lhes so absolutamente iguais.
Pela preciso, vale aqui o exemplo dado por Bandeira de Mello:
[...] suponha-se hipottica lei que permitisse aos funcionrios gor-

dos afastamento remunerado para assistir a congresso religioso
e o vedasse aos magros. No caricatural exemplo aventado, a gor-
dura ou esbeltez o elemento tomado como critrio distintivo.
Em exame perfunctrio parecer que o vcio de tal lei, perante a
19
20
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Conteudo juridico do principio da igualdade. 3. ed.,
14 tir., Sao Paulo: Malheiros, 2006, p. 38.
igualdade constitucional, reside no elemento ftico (compleio
corporal) adotado como critrio. Contudo, este no , em si mesmo,
fator insuscetvel de ser tomado como fato deflagrador de efeitos
jurdicos especficos. O que tornaria inadmissvel a hipottica lei
seria a ausncia de correlao entre o elemento de discrmen e os
efeitos jurdicos atribudos a ela. No faz sentido algum facultar aos
obesos faltarem ao servio para congresso religioso porque entre
uma coisa e outra no h qualquer nexo plausvel. Todavia, em outra
relao, seria tolervel considerar a tipologia fsica como elemento
discriminatrio. Assim, os que excedem certo peso em relao
altura no podem exercer, no servio militar, funes que reclamem
presena imponente.21
E essa exatamente a hiptese aqui perscrutada, pois, se no,

qual seria ento o nexo plausvel que justifique ncleos familiares cons-
titucionalmente isonmicos receberem da legislao ordinria trata-
mento diferente quanto ao aspecto sucessrio, unicamente porque um
ncleo foi formalizado perante o Oficial de Registro Civil, enquanto o
outro no o fez.
O que realmente se v do art. 1.790 do Cdigo Civil e sua jus-
tificativa legislativa uma discriminao gratuita e preconceituosa,
crendo-se numa suposta superioridade do casamento em relao
unio estvel, chegando ao absurdo de o legislador justificar a dife-
renciao que fazia dizendo que a unio estvel seria uma instituio-
-meio menos estvel do que o casamento (que, na viso do legislador,
seria a instituio-fim). Contudo, esse entendimento absolutamente
anacrnico , em verdade, insondvel pela lgica mais vulgar.
c) Investigao quanto consonncia da discriminao com os
interesses protegidos na Constituio
Este ltimo critrio investigativo da isonomia ainda mais evi-
dente, porque foi exatamente a lgica discriminatria do antigo direito
positivo pensado por castas e por solenidades que a nova ordem cons-
titucional superou e ainda est a superar, tudo por meio do diuturno
embate na tentativa de se colocar novamente na centralidade de todo o
sistema jurdico a pessoa humana, com tanto menos predicado quanto
possvel, com ateno nica e primordial sua realizao digna, expur-
gando todo e qualquer tipo de benefcio ou prejuzo odioso, assim
como a discriminao gratuita que atenta claramente contra o princ-
pio da igualdade e contra a pessoa humana mesma.
A igualdade de todos os membros da famlia humana no ape-
nas um direito fundamental, clusula ptrea da nossa Constituio
21
Federal de 1988, mas, tambm e sobretudo, direito humano, tanto que
a prpria Declarao Universal dos Direitos Humanos, adotada e pro-
clamada pela Resoluo n. 217 A(III) da Assembleia Nacional das Naes
Unidas, em 10 de dezembro de 1948, j no seu prembulo declara:
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos

os membros da familia humana e de seus direitos iguais e inaliena-
veis e o fundamento da liberdade, da justia e da paz no mundo.22
(Grifo nosso)
No h dvida de que o interesse da Constituio Federal pro-

teger a unio estvel como entidade familiar idntica ao casamento
( 3, art. 226 da CF), no havendo qualquer respaldo constitucional a
discriminao sucessria dos partcipes da unio, especialmente em
razo da morte de um dos conviventes. essa tambm a concluso de
Maria Celina Bodin de Moraes e Ana Carolina Brochado Teixeira:
Tambm restou previsto no 3 do art. 226 o dever do Estado de

facilitar a converso da unio estvel em casamento literalidade
utilizada por muitos para sustentar uma hierarquia entre as enti-
dades familiares, com a superioridade axiolgica do casamento em
relao unio estvel. Esta argumentao no deve ser prevale-
cente, uma vez que a nica diferena existente entre eles a forma-
lidade e oficialidade do casamento, pois a base ftica a mesma, de
modo a no se justificar que a unio estvel seja tratada pelo orde-
namento jurdico de maneira diferenciada e discriminatria.23
Sendo assim, no h a menor consonncia entre o critrio dis-

criminatrio eleito pelo legislador do art. 1.790 do Cdigo Civil com os
interesses igualitrios e dignificantes da Constituio Federal.
22
Disponvel em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf>. Acesso
em: 8 fev. 2016.
23
MORAES, Maria Celina Bodin de; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Comentrio ao art.
226. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK,
Lenio Luiz (Org.). Comentrios Constituio do Brasil. So Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p.
2.119.
7REFERNCIAS
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antnio. Conteudo juridico do principio da

igualdade. 3. ed., 14 tir., Sao Paulo: Malheiros, 2006.
CRETELLA JR., Jos; CRETELLA, Agnes (Trad.). Institutas do Imperador

Justiniano Manual didtico para uso dos estudantes de direito de Cons-
tantinopla, elaborado por ordem do Imperador Justiniano, no ano de 533
d.C. 2. ed., So Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
GILISSEN, John. Introduo histrica ao direito. Trad. Antnio Manuel

Hespanha e Manuel Lus Macasta Malheiros. 3. ed. Lisboa: Fundao
Calouste Gulbenkian, 2001.
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Da ordem de vocao here-

ditria nos direitos brasileiro e italiano, p. 207. Revista da Faculdade de
Direito da Universidade de So Paulo v. 100 p. 23-60 jan./dez. 2005 ????
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Morrer e Suceder: passado e

presente da transmisso sucessria concorrente. 2. ed. So Paulo: Revista
MORAES, Maria Celina Bodin de; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado.

Comentrio ao art. 226. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar
Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz (Org.). Comentrios
Constituio do Brasil. So Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.
PASSOS, Edilenice; LIMA, Joo Alberto de Oliveira. Memria Legislativa do

Cdigo Civil. Braslia: Senado Federal, 2014, v. 1 - 4.
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Da ordem de vocao heredi-

tria nos direitos brasileiro e italiano, p. 207, principalmente.
AS INOVAES DO CDIGO DE PROCESSO CIVIL
DE 2015 NO DIREITO DAS SUCESSES
Ana Luiza Maia Nevares1
Doutora e Mestra em Direito Civil pela UERJ. Professora de

Direito Civil da PUC-Rio e
dos Cursos de Ps-Graduao da UERJ. Advogada.
Sumrio: 1. Notas introdutrias. 2. O direito das suces-

ses: breves consideraes. 3. O direto das sucesses e o
processo civil. 4. A nomeao do inventariante. 5. A cola-
o: modo de conferncia e valor dos bens doados. 6. Cri-
trios para a partilha dos bens e a tutela de evidncia no
mbito do inventrio. 7. O quinho do nascituro. 8. A cele-
ridade do inventrio e a existncia de herdeiros incapa-
zes. 9. A cumulao de inventrios. 10. Notas conclusivas.
11. Referncias.
1NOTAS INTRODUTRIAS
Em maro de 2016, entrar em vigor novo diploma processual

civil, estabelecido pela Lei 13.105, de 16 de maro de 2015.
Da exposio de motivos da Comisso de Juristas encarregada da
elaborao do novo Cdigo de Processo Civil, extrai-se a preocupao
com a real efetividade do processo, ou seja, com o fato de o processo
ser um instrumento eficiente para a concretizao do direito material.
Nessa direo, os processualistas buscaram alcanar os seguin-
tes objetivos: 1) harmonizar a lei ordinria processual aos valores e
princpios da Constituio Federal, em claro e evidente respeito hie-
rarquia das fontes; 2) possibilitar que o processo alcance resultados
consonantes realidade ftica em que esteja inserido, enfatizando a
atuao das partes na soluo dos conflitos, a partir da mediao e da
conciliao, bem como a partir dos instrumentos que permitem uma
Registro meu agradecimento ao acadmico e monitor da disciplina Direito das Sucesses e

1
Procedimentos Correlatos da PUCRio Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro,

Pedro Zacharias Hassan, pelo auxlio na pesquisa jurisprudencial, bem como pela reviso dos
originais.
contratualizao do processo; 3) simplificar o processo, identificando
pontos complexos que mereciam reduo de atos e formalidades; 4)
propiciar que cada processo tenha maior rendimento possvel, pos-
sibilitando, por exemplo, que as partes, at a sentena, modifiquem o
pedido e a causa de pedir, desde que no haja ofensa ao contraditrio,
extraindo-se do processo o maior aproveitamento possvel e 5) obter
maior coeso do sistema, a partir da organicidade das regras do pro-
cesso civil.
Nesta sede, sero abordadas as inovaes do Cdigo de Processo
Civil no Direito das Sucesses, no sem antes refletir sobre o atual
momento vivenciado pelo direito sucessrio, tendo em vista que a efe-
tividade do processo civil, como afirmado, pressupe a concreta reali-
zao do direito material que lhe seja subjacente.
2O DIREITO DAS SUCESSES: BREVES CONSIDERAES
O Direito das Sucesses o ramo do Direito Civil destinado a

regular a transmisso dos bens de uma pessoa em virtude de sua
morte. Est disciplinado no Cdigo Civil, Lei 10.406, de 10 de janeiro de
2002, no Livro V do aludido diploma legal, que subdividido em ttulos
destinados sucesso em geral, sucesso legtima, sucesso testa-
mentria e ao inventrio e partilha.
O conjunto das relaes patrimoniais de uma pessoa fale-
cida denomina-se herana, sendo certo que o direito de herana est
consagrado no inciso XXX, do art. 5, da Constituio da Repblica
Federativa do Brasil, consistindo a sucesso privada, assim, em uma
garantia fundamental do cidado brasileiro. A herana s ser consi-
derada vaga e destinada ao Estado na ausncia de sucessores legais ou
testamentrios.
Os pilares do Direito das Sucesses so a propriedade e a famlia.
Com efeito, o Direito das Sucesses disciplina a transmisso da pro-
priedade de uma pessoa falecida, estabelecendo uma ordem de voca-
o hereditria fundada na famlia, uma vez que, por ser a formao
social na qual mais genuinamente se exerce a solidariedade, a fam-
lia a fonte inspiradora para o legislador determinar a quem devem ser
destinadas as situaes jurdicas patrimoniais transmissveis de uma
pessoa aps o seu falecimento.
Exatamente por se fundar na propriedade, o Direito das Suces-
ses destina um espao de autonomia para a pessoa, facultando-lhe
regulamentar a destinao de seus bens aps a sua morte, por meio
de negcio jurdico denominado testamento, valendo destacar que o
testamento tem eficcia mltipla (Cdigo Civil, art. 1.857), uma vez que
no serve apenas para disposies de cunho material, mas tambm a
outros objetivos do testador, em especial aqueles relativos s suas situ-
aes jurdicas existenciais.2
Tal espao de autonomia ser mais ou menos amplo conforme as
exigncias sociais relativas proteo da famlia. Atualmente, o Brasil
tutela a famlia nuclear garantindo metade da herana (Cdigo Civil,
art. 1.789) aos herdeiros necessrios, constitudos pelos descendentes,
ascendentes, cnjuge e companheiro (Cdigo Civil, arts. 1.845 e 1.850).
Muito se discute sobre a pertinncia de o ordenamento jurdico
garantir para certos parentes parte da herana de forma obrigatria,
limitando a liberdade de testar. Sobre a questo, importante registrar
que o Cdigo Civil, hoje em vigor, fruto de um Projeto de Lei con-
cebido em 1975, sendo evidente que de l para c muitas transforma-
es ocorreram na famlia, tendo algumas sido incorporadas no atual
Cdigo Civil e outras no.
luz das celeumas jurisprudenciais que se travam a respeito da
normativa sucessria atual, em especial aquela relativa ao cnjuge e
ao companheiro, bem como diante dos recentes diplomas legais que
versam sobre a famlia de forma especfica ou tangencial (Estatuto do
Idoso, Guarda Compartilha, Alienao Parental, Lei Maria da Penha e
Estatuto do Deficiente), pode-se concluir que o Direito das Sucesses
precisa se encaixar na configurao da famlia atual, que plural, igua-
litria e democrtica, com ateno voltada aos vulnerveis, em especial
s crianas, aos demais incapazes e aos idosos.
De fato, uma das crticas que direcionada ao Direito Sucess-
rio a sua neutralidade, j que, no Brasil, raras vezes a lei estabelece
a diviso da herana com base em critrios concretos de proteo da
pessoa de cada um dos que integram a famlia, como ocorreu com a
Lei 10.050/2000, que previu o direito real de habitao em relao ao
nico imvel residencial do monte para o filho rfo portador de defi-
cincia que o impossibilitasse para o trabalho, incluindo o 3 ao art.
1.611 do Cdigo Civil de 1916.
Argumenta-se que a aludida neutralidade fruto do princpio da
unidade da sucesso, consagrado no Direito Francs Revolucionrio,
que tinha por objetivo aniquilar todos os privilgios da nobreza, sendo
certo que o fracionamento da propriedade, a partir da diviso heredi-
tria, configurava um importante mecanismo para tal intento. Desse
modo, estabeleceu-se que a sucesso hereditria no deveria consi-
derar a natureza dos bens transmitidos, nem a qualidade dos suces-
sores, de forma a eliminar privilgios como o da primogenitura ou o
2
Sobre o tema, seja consentido remeter o leitor obra de minha autoria intitulada A Funo
Promocional do Testamento. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.
da masculinidade na transmisso causa mortis, estando o pressuposto
da sucesso assentado apenas no fato de aquele sucessor pertencer
famlia do autor da herana, sem outras consideraes.
Com a queda do liberalismo burgus e a consagrao do sujeito
de direito no mais como uma categoria neutra e abstrata, mas, sim,
como o sujeito histrico-real, considerado no s na multiplicidade de
suas explicaes e manifestaes ativas, como tambm em suas varia-
das e diversas necessidades, interesses, exigncias, qualidades indi-
viduais, condies econmicas, posies sociais e, como tal, devendo
ser considerado como portador de valores essenciais (dignidade, segu-
rana, igualdade, liberdade) e de fundamentais espaos de promo-
o e desenvolvimento da pessoa (sade, trabalho, educao),3 sempre
considerado em sociedade, no podendo prescindir das relaes que
estabelece com os demais, a disciplina das relaes jurdicas privadas
passou a atentar para as pessoas que as integram, ao modo pelo qual
interagem naquelas relaes, bem como repercusso de seus efeitos
nas esferas de terceiros.
Desse modo, no mbito do Direito das Sucesses, passou-se a
repensar o princpio da unidade da sucesso e, assim, tanto na legisla-
o francesa, como em outras que se inspiraram no Cdigo Napole-
nico, consagraram-se previses especficas de sucesses consideradas
especiais, exatamente porque se afastam do regramento geral, para
atender a interesses especficos relacionados aos bens transmitidos e
aos sucessores legais.4
Nessa perspectiva, portanto, a legislao sucessria deveria pre-
ver uma especial ateno aos herdeiros incapazes e idosos e, ainda,
aos cnjuges e companheiros quanto a aspectos nos quais realmente
dependiam do autor da herana, privilegiando, ainda, vnculos espec-
ficos dos herdeiros quanto aos bens do acervo hereditrio, qualificados
por moradia ou exerccio profissional.
Buscar-se-ia, assim, concretizar na transmisso da herana
um espao de promoo da pessoa, atendendo s singularidades dos
3
Scalisi, Vincenzo. Persona umana e successioni, itinerari di un confronto ancora aperto. In:
La civilistica Italiana dagli anni50 ad oggi tra crisi dogmatica e riforme legislative, Padova:
Cedam, 1991, p. 140. Ainda publicado em Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile,
1989, p. 387-420.
4
Na Itlia, vale fazer referncia legislao relativa ao maso chiuso, que constitui uma pro-
priedade fundiria rural, considerada indivisvel, destinada a permanecer na titularidade da
famlia, conjugando-se, assim, os interesses da produo agrcola com a tutela da famlia que
esteja estabelecida naquele local, desenvolvendo a prpria atividade laborativa (Legge Provin-
ciale 28 novembre 2001, n. 17, Provincia Autonoma di Bolzano Alto Adige), bem como o art. 230
bis do Codice Civile, que prev um direito de preferncia na diviso hereditria da empresa
familiar para o membro da famlia que trabalha de modo contnuo na mesma. J no Direito
francs, previsto o direito atribuio preferencial de certos bens da herana, consoante o
disposto no art. 831 do Code Civil. Sobre o referido dispositivo do Code Civil, vide n. 06.
herdeiros, em especial diante de sua capacidade e de seus vnculos
com os bens que compem a herana, e, ainda, atendendo liberdade
do testador quando no se vislumbrasse na famlia aqueles que neces-
sitam de uma proteo patrimonial diante da morte de um familiar.
Como se ver ao longo deste estudo, o Cdigo de Processo Civil
de 2015, embora tenha reproduzido no geral o sistema processual
previsto no Cdigo de Processo Civil de 1973 quanto ao inventrio e
partilha, trouxe inovaes importantes em relao matria, sendo
certo que algumas delas se alinham aos atuais reclames da legislao
sucessria.
3O DIRETO DAS SUCESSES E O PROCESSO CIVIL
A disciplina do fenmeno sucessrio no se d apenas no campo

do direito material, sendo certo que necessrio estabelecer regras
que efetivem a transmisso da herana. Por conseguinte, ao Processo
Civil compete regulamentar a maneira pela qual se processa a trans-
misso hereditria.
O instituto processual destinado a efetivar a sucesso heredit-
ria o inventrio. Trata-se de procedimento que objetiva relacionar
todos os bens da pessoa falecida para posterior partilha entre os seus
sucessores ou adjudicao quele que seja o nico herdeiro. No curso
do inventrio, os bens da pessoa falecida so avaliados, sendo pago o
imposto devido pelo fato gerador da transmisso da propriedade causa
mortis.
O procedimento do inventrio coaduna-se com a natureza jur-
dica da herana, que constitui uma universalidade de direito (Cdigo
Civil, art. 1.791). Com efeito, apesar da heterogeneidade dos bens que
compem a herana, esses so reunidos para que sejam considerados
em seu conjunto.
A herana, no entanto, no uma entidade autnoma, que se
afasta dos elementos que a compem, sendo certo que tomada como
unidade para certos efeitos, por razes de simplificao da regulamen-
tao da sucesso e pela necessidade de proteo dos credores.5
Sem dvida, manter o patrimnio da pessoa falecida reunido e
listado em um processo at a partilha constitui uma garantia para os
credores, sendo essa uma preocupao do legislador quando disciplina
o pagamento das dvidas do falecido, bem como quando estabelece
5
MORAIS, Daniel de Bettencourt Rodrigues Silva. Viabilidade de uma unificao jus-sucess-
ria a nvel europeu. Unificao meramente conflitual ou unificao material? Coimbra: Alme-
dina, 2005, p. 144.
outras determinaes que propiciam o adimplemento das obrigaes
do autor da herana, como ocorre com a determinao quanto ao pro-
cessamento do inventrio no ltimo domiclio do falecido (Cdigo Civil,
art. 1.785, Cdigo de Processo Civil de 1973, art. 96 e Cdigo de Pro-
cesso Civil de 2015, art. 48).6
A normativa relacionada ao inventrio e partilha encontra-
-se principalmente no Estatuto de Ritos. No entanto, tendo em vista
que a ordem constitucional unificou a competncia para legislar sobre
direito privado e direito processual, assiste razo a Humberto Theo-
doro Jnior quando afirma que de todo irrelevante o fato de uma
norma rotulada de lei civil conter algum preceito de natureza proces-
sual, ou um Cdigo de Processo Civil incluir em seu texto alguma regra
prpria da lei material civil.7
As normas processuais em diplomas de direito material e as
normas de direito material em diplomas processuais so denomina-
das pela doutrina de normas heterotpicas, sendo certo que, por fora
do exposto acima, qualquer conflito normativo entre as aludidas nor-
mas no se resolver pelo critrio da especializao da lei, nem pela
pesquisa da natureza intrnseca do preceito, mas pelos princpios do
direito intertemporal.8 Assim, ainda na esteira das lies de Humberto
Theodoro Jnior, a lei nova revoga a anterior, desde que tenha cui-
dado do mesmo tema, de maneira diversa, pouco importando o tipo de
Cdigo dentro do qual o preceito normativo tenha sido editado.9
Em linhas gerais, o Cdigo de Processo Civil de 2015, na esteira
do Cdigo de Processo Civil de 1973, disciplina o inventrio extraju-
dicial e o judicial, sendo certo que, em relao ao primeiro, manteve
6
A Resoluo n. 35 do Conselho Nacional de Justia, ao prever a disciplina da aplicao da Lei
11.401/97 pelos servios notariais e de registro, estabeleceu em seu art. 1 que para a lavratura
dos atos notariais de que trata o aludido diploma legal, livre a escolha do tabelio, no se
aplicando as regras de competncia do Cdigo de Processo Civil. Apesar do louvvel objetivo
da aludida resoluo, buscando uniformizar a aplicao da referida lei, a competncia quanto
ao processamento do inventrio deveria ter sido respeitada, exatamente para evitar que cre-
dores sejam prejudicados com a lavratura de inventrio em local que no tem qualquer rela-
o com o falecido ou com seus bens, dificultando sobremaneira o encontro do patrimnio
deixado. Na mesma linha de crtica ao dispositivo citado da Resoluo n. 35, indicando que
esta prejudica tambm eventuais herdeiros que sejam preteridos no inventrio, como um
filho ainda no reconhecido, mas do qual os familiares do autor da herana tm cincia, vale
citar as ponderaes de Luiz Paulo Vieira de Carvalho: Para evitar que esta ou situaes
similares venham a acontecer, com todas as vnias, reafirmados nossa posio de discordn-
cia, neste ponto, com o acatado pelo Egrgio Conselho Nacional de Justia. (CARVALHO, Luiz
Paulo Vieira de. Direito das sucesses. So Paulo: Atlas, 2015, p. 893/894).
7
THEODORO JNIOR, Humberto. O novo Cdigo Civil e as regras heterotpicas de natureza
processual. Revista Sntese de Direito Civil e Processual Civil, n. 32, v. 6, p. 16, 2004, p. 16.
8
9
a obrigatoriedade de inexistir testamento ou interessados incapazes
(Cdigo de Processo Civil de 2015, art. 610, caput),10 havendo deter-
minao expressa de que a escritura pblica de inventrio consti-
tuir documento hbil para qualquer ato de registro, bem como para
levantamento de importncia depositada em instituies financeiras
(Cdigo de Processo Civil de 2015, art. 610, 1).
Quanto ao inventrio judicial, o Cdigo de Processo Civil de 2015
previu o rito comum ou ordinrio, no qual h a avaliao judicial dos
bens aps a sua devida descrio pelo inventariante, bem como o cl-
culo judicial do imposto de transmisso causa mortis, com a posterior
partilha dos bens elaborada por partidor judicial, aps a resoluo de
todos os incidentes porventura suscitados, como aqueles relacionados
colao ou ao pagamento das dvidas, bem como aps a formulao
dos pedidos de quinho pelos herdeiros.
Tendo em vista que o inventrio pelo rito ordinrio longo e
pressupe a atuao do juiz em diversas etapas, como naquelas de ava-
liao dos bens e de clculo do imposto de transmisso causa mortis,
no podia o legislador descuidar de um rito mais clere, prprio para
interessados capazes e de acordo quanto partilha, denominado de
arrolamento. No Cdigo de Processo Civil de 2015, o arrolamento est
10
Alguns Estados da Federao admitem a lavratura do inventrio extrajudicial quando o tes-
tamento caduco, revogado ou declarado invlido. No Estado do Rio de Janeiro, tal permisso
consta da Consolidao Normativa da Corregedoria Geral da Justia TJRJ/Parte Extrajudicial,
em seu art. 297, in verbis: Art. 297. A escritura pblica de inventrio e partilha conter a quali-
ficao completa do autor da herana; o regime de bens do casamento; pacto antenupcial e
seu registro imobilirio, se houver; dia e lugar em que faleceu o autor da herana; data da
expedio da certido de bito; livro, folha, nmero do termo e unidade de servio em que
consta o registro do bito, alm da meno ou declarao dos herdeiros de que o autor da
herana no deixou testamento e outros herdeiros, sob as penas da lei. 1. Ser permitida a
lavratura de escritura de inventrio e partilha nos casos de testamento revogado ou caduco,
ou quando houver deciso judicial, com trnsito em julgado, declarando a invalidade do testa-
mento. 2. Nas hipteses previstas no pargrafo anterior, o Tabelio solicitar, previamente,
a certido do testamento e, constatada a existncia de disposio reconhecendo filho ou
qualquer outra declarao irrevogvel, a lavratura de escritura pblica de inventrio e parti-
lha ficar vedada e o inventrio dever ser feito judicialmente. 3. Sempre que o Tabelio
tiver dvida a respeito do cabimento da escritura de inventrio e partilha, nas situaes que
estiverem sob seu exame, dever suscit-la ao Juzo competente em matria de registros
pblicos. No mesmo sentido o art. 129 das Normas de Servio dos Cartrios Extrajudiciais
da Corregedoria Geral da Justia de So Paulo, Tomo II, que assim disciplina:129. possvel a
lavratura de escritura de inventrio e partilha nos casos de testamento revogado ou caduco
ou quando houver deciso judicial, com trnsito em julgado, declarando a invalidade do testa-
mento. 129.1. Nessas hipteses, o Tabelio de Notas solicitar, previamente, a certido do tes-
tamento e, constatada a existncia de disposio reconhecendo filho ou qualquer outra
declarao irrevogvel, a lavratura de escritura pblica de inventrio e partilha ficar vedada
e o inventrio far-se- judicialmente. Na mesma linha, foi aprovado na VII Jornada de Direito
Civil enunciado ainda sem nmero por ocasio da elaborao deste texto, assim ementado:
Aps registrado judicialmente o testamento e sendo todos os interessados capazes e concor-
des com os seus termos, no havendo conflito de interesses, possvel que se faa o invent-
rio extrajudicial.
previsto nos arts. 659 e seguintes, sendo o seu objetivo a reduo da
interveno estatal na ultimao da partilha.
No arrolamento, as partes capazes apresentam partilha amig-
vel, que homologada pelo juiz aps a observncia da regularidade
da documentao pertinente e dos requisitos legais, como a oitiva da
Fazenda Pblica e do Ministrio Pblico quando houver testamento.
Nesse rito, no h lavratura de termos ou avaliao judicial dos bens,
razo pela qual a nomeao do inventariante ocorre por deciso judi-
cial, independentemente da lavratura do respectivo termo. De acordo
com a nova legislao, a avaliao judicial dos bens s ocorrer no
arrolamento quando um credor devidamente notificado impugnar a
estimativa dos bens reservados para seu pagamento (Cdigo de Pro-
cesso Civil de 2015, art. 663).
Segundo o disposto no art. 664 do Cdigo de Processo Civil, o
rito do arrolamento ser observado quando o valor dos bens do Esp-
lio for igual ou inferior a 1.000 (mil) salrios mnimos, tendo o novo
diploma processual, em boa hora, alterado o parmetro da base de cl-
culo para o denominado arrolamento comum, que no Cdigo de Pro-
cesso Civil de 1973 era a Obrigao do Tesouro Nacional (OTN), que
foi extinta pela Lei 7.730/1989. O arrolamento comum pressupe que
no haja consenso de todas as partes capazes, uma vez que no caso de
acordo proceder-se- o inventrio na forma do arrolamento sumrio.
No arrolamento comum, cabe ao inventariante nomeado apre-
sentar a declarao dos bens com a atribuio de seus respectivos valo-
res, bem como o plano de partilha. Se houver impugnao das partes
ou do Ministrio Pblico em relao aludida estimativa, o juiz nome-
ar um avaliador e, aps a apresentao do laudo, deliberar sobre a
partilha, decidindo de plano todas as reclamaes, mandando pagar as
dvidas no impugnadas em audincia que designar, quando ento ser
lavrado de tudo um s termo, assinado por todos.
Ao cotejar o Cdigo de Processo Civil de 2015 e o de 1973, veri-
fica-se que a disciplina do inventrio e da partilha sofreu poucas altera-
es, valendo destacar o aumento de prazos para as manifestaes dos
herdeiros no curso do processo, bem como a simplificao das mat-
rias em relao s quais o juiz do inventrio est autorizado a emitir
julgamento, sendo substitudo o conceito mais abstrato de questes de
alta indagao para aquelas que no estejam provadas por documentos
(Cdigo de Processo Civil de 2015, art. 612).
H, no entanto, algumas alteraes mais substanciais, que sero
abordadas de forma mais detalhada nesta sede, por representarem
modificaes relevantes ou ensejarem debates importantes no mbito
do processo de inventrio.
4A NOMEAO DO INVENTARIANTE
O esplio tem capacidade formal e representado em juzo ativa

e passivamente por seu inventariante (Cdigo de Processo Civil de
1973, art. 12, V, e Cdigo de Processo Civil de 2015, art. 75, VI). Alm
da representao do esplio, compete ao inventariante administrar
o esplio, conduzir o processo de inventrio e prestar contas de sua
administrao (Cdigo de Processo Civil de 1973, art. 991 e Cdigo
de Processo Civil de 2015, art. 618), alm de outras incumbncias que
dependem da oitiva dos interessados na sucesso e da autorizao do
juiz, como alienar bens, pagar dvidas do esplio, transigir em juzo ou
fora dele e, ainda, efetuar despesas necessrias para a conservao e o
melhoramento dos bens do esplio (Cdigo de Processo Civil de 1973,
art. 992 e Cdigo de Processo Civil de 2015, art. 619).
Da mesma forma que o Cdigo de Processo Civil de 1973, o novel
Diploma Processual de 2015 prev dispositivo legal com aqueles legi-
timados para exercer a inventariana, indicando-os numa ordem de
preferncia.
Inovou a legislao de 2015 ao incluir na referida ordem o her-
deiro menor, por seu representante legal, configurando esta possibili-
dade uma exceo regra do exerccio pessoal da inventariana,11 bem
como ao incluir entre os legitimados para exercer a inventariana o
cessionrio do herdeiro ou legatrio, em virtude de seu interesse no
trmino do processo de inventrio.
Muito se discute sobre ser a ordem legal prevista no art. 990 do
Cdigo de Processo Civil de 1973 uma ordem cogente, que deve ser
observada pelo juiz. Considerando as funes do inventariante e a sua
saudvel atuao para a ultimao do inventrio, a melhor doutrina
aponta para a direo de que dita ordem pode no ser observada pelo
juiz quando houver razes relevantes relacionadas litigiosidade entre
os herdeiros, ao regular andamento do inventrio, bem como falta de
idoneidade da pessoa legitimada a exercer o mnus.
Conforme assinala Luiz Paulo Viera de Carvalho sobre a ordem
prevista no citado art. 990 do Cdigo de Processo Civil de 1973,
havendo razes relevantes, como a falta de idoneidade daquele ao qual
NERY JNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentrios ao Cdigo de Processo
11
Civil. 2. tir. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 1.445. A hiptese no de todo desconhe-
cida na jurisprudncia brasileira, podendo ser citado acrdo do Superior Tribunal de Justia
que nomeou a av guardi do herdeiro menor como inventariante em contraposio ao pleito
de seu pai biolgico que exercia o poder familiar, mas que no era prximo ao menor, tendo se
negado a reconhecer sua paternidade em seus primeiros anos de vida: Inventrio. Nomeao
da av, guardi do herdeiro neto, como inventariante. Ao progenitor do menor no assiste
direito subjetivo inventariana, embora titular do ptrio poder, hoje melhor conceituado
como ptrio dever. Discrio prudente do magistrado face ao caso concreto. Recurso Especial
no conhecido.(STJ, REsp 4128/ES, 4 T, Rel. Min. Athos Carneiro, julgado em 30.09.1990).
a lei conferiu preferncia, ou mesmo incontornvel discrdia entre
os herdeiros, sempre enfatizando o melhor interesse do esplio, esta
ordem poder ser desatendida, com nomeao direta de terceiro para
assumir o cargo.12
A mesma direo resta encontrada na jurisprudncia,13 inclu-
sive diante de clusula testamentria que nomeie a pessoa do
inventariante,14 sendo dita disposio testamentria entendida como
mera indicao do testador.15
12
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das sucesses. So Paulo: Atlas, 2015, p. 880.
13
Inventariante. Remoo. Nomeao de dativo. Cdigo de Processo Civil, arts. 995 e 990. A
ordem de nomeao no absoluta. O fato de no se observar a ordem no implica ofensa ao
art. 990. Precedente do STJ: REsp-520, DJ de 4.12.89. Caso em que a nomeao do inventa-
riante dativo se deveu necessidade de eliminar as discrdias atuais e prevenir outras. (STJ-
-3T., REsp 88.296-SP, rel. Min. Nilson Naves, j. 3.11.98, DJU 8.2.99, p. 275). No mesmo sentido:
Direito processual civil. Sucesses. Recurso especial. Nomeao de inventariante. Regra do
art. 990 do CPC. Carter no absoluto. Convico do Juzo formada a partir dos elementos
fticos do processo. Vedado o reexame na via especial. - A ordem de nomeao de inventa-
riante, prevista no art. 990 do CPC, no apresenta carter absoluto, podendo ser alterada em
situao de fato excepcional , quando tiver o Juiz fundadas razes para tanto, forte na exis-
tncia de patente litigiosidade entre as partes. Evitam-se, dessa forma, tumultos processuais
desnecessrios. - Se o Tribunal de origem atesta a ocorrncia de situao de fato excepcional
consubstanciada na existncia de animosidade entre as partes, admite-se o temperamento da
ordem legal de nomeao de inventariana, conforme firme convico do Juiz que repousa na
ponderada anlise dos elementos fticos do processo. - Esquadrinhar o convencimento moti-
vado do Juzo calcado em circunstncias fticas constantes dos autos procedimento vedado
na via especial. Recurso especial no conhecido. (STJ, REsp 1055633/SP, Rel. Ministra Nancy
Andrighi, Terceira Turma, julgado em 21.10.2008, DJe 16.06.2009).
14
importante distinguir o testamenteiro do inventariante. O primeiro aquele indicado pelo
testador para cumprir as disposies testamentrias, sendo, portanto, um mnus do direito
privado, ou seja, uma funo da amizade e da confiana do testador. De acordo com Carlos
Maximiliano, o testamenteiro torna realidade, em toda a sua plenitude, a ltima vontade do
falecido, sem excetuar as determinaes que a ningum aproveite pessoalmente, pelas quais,
porm, tinha o defunto um interesse ideal (funerais, missas, tmulo, por exemplo). Faculta-
-se-lhe, entretanto, a inobservncia das disposies contrrias ao Direito, as que sejam fsica,
moral ou juridicamente impossveis. (MAXIMILIANO, Carlos. Direito das sucesses. Rio de
Janeiro: Freitas Bastos, 1937, v. 2, p. 533). Quando o testamenteiro no tiver a posse e adminis-
trao da herana, ou seja, quando o testamenteiro no conjugar tambm a funo de inven-
tariante, sua atuao ser de vigilncia e fiscalizao da atuao deste ltimo, salvo quanto a
disposies especficas de cunho existencial do testador que lhe caibam executar.
15
ARROLAMENTO. INVENTARIANTE. NOMEAO. INVENTARIANTE DATIVO. DECISO
MANTIDA. 1- Deciso que, nos autos de inventrio de Celina Falco Andrade, entre outras
deliberaes, nomeou inventariante dativo, ao invs do ora agravante, no obstante a indica-
o para a funo de inventariante havida no testamento da falecida; sob o fundamento de
intensa animosidade entre os herdeiros. 2- Evidente animosidade entre os herdeiros, em
especial, contra o ora agravante e deste para com os demais, que poderia comprometer tanto
o pleno exerccio da funo, com os deveres que lhe so prprios, quanto o bom e clere
andamento da ao. Inclusive, j h ao de Prestao de Contas em trmite contra o ora
agravante. 3- Ordem de preferncia na nomeao. Ausncia de violao ao art. 990 do Cdigo
de Processo Civil e indicao constante no testamento deixado pela de cujus. Dispositivos
que no tm carter absoluto, podendo o Magistrado nomear inventariante dativo, quando
tiver fundadas razes para faz-lo. Deciso mantida. 4- Agravo de instrumento no provido.
(TJ-SP - AI: 21666866020148260000, 9 Cmara de Direito Privado, Rel. Alexandre Lazzarini,
julgado em 17.03.2015).
Por conseguinte, o que se verifica em relao interpretao
do citado art. 990 do Cdigo de Processo Civil de 1973 que a ordem
prevista para a nomeao do inventariante deve ser observada, salvo
se houver algum motivo que justifique sua inverso ou relativizao,
sendo dito motivo respaldado por outros princpios tambm tutelados
pelo ordenamento jurdico, relacionados ao melhor interesse do esp-
lio, prestao jurisdicional adequada e ao interesse pblico no regu-
lar desenvolvimento do processo.
De forma diversa do caput do art. 990 do Cdigo de Processo
Civil de 1973, o caput do art. 617 do Cdigo de Processo Civil de 2015
dispe que o juiz nomear inventariante na seguinte ordem. A expres-
so grifada renova a discusso sobre a obrigatoriedade de o juiz seguir
a ordem indicada na lei para a nomeao do inventariante, aduzindo
alguns autores que, ao contrrio do Cdigo de Processo Civil de 1973,
que estabelecia apenas uma preferncia para o cargo, o novo Diploma
Processual pretendeu estabelecer uma ordem obrigatria e sucessiva
para a nomeao do inventariante.
No parece, no entanto, que a expresso mencionada direcione o
intrprete para uma ordem obrigatria quanto nomeao do inventa-
riante. Por suas funes j expostas, o inventariante uma figura cen-
tral no processo de inventrio, razo pela qual sua nomeao deve ser
norteada pela idoneidade do nomeado, por aquele que melhor repre-
sente os interesses do esplio e do regular desenvolvimento do pro-
cesso, considerando ainda o grau de litigiosidade entre os herdeiros,
bem como a natureza dos bens inventariados.
Tal como ocorre com a interpretao do art. 990 do Cdigo de
Processo Civil de 1973, a ordem insculpida no art. 617 do Cdigo de
Processo Civil de 2015 deve ser interpretada como no sendo de natu-
reza absoluta, podendo o juiz alter-la se tiver razes relevantes e jus-
tificadas, conforme acima exposto.
Nas hipteses de nomeao do inventariante pelo testador,
preciso bem avaliar a natureza das disposies testamentrias.
Quando estas forem eminentemente patrimoniais, no repercutindo
na esfera existencial do testador, a nomeao do inventariante atingir
especialmente os sucessores e a dinmica do processo de inventrio.
Dessa maneira, a eleio do testador s dever prevalecer quando o
nomeado pelo testamento atender ao melhor interesse do esplio, con-
tribuindo para o regular desenvolvimento do processo.
Por fim, vale ressaltar que diante do que se tem denomi-
nado de contratualizao do processo,16 possvel que os sucessores
De acordo com Diogo Assumpo Rezende de Almeida, a crise da atividade jurisdicional,

16
que atinge diversos pases, inclusive o Brasil, estimulou estudiosos a desenvolverem
determinem em conjunto e de forma amigvel aquele que ser o inven-
tariante. Conforme preconiza Alexandre de Freitas Cmara, os atos
dispositivos (tambm chamados negcios processuais) so os atos
pelos quais as partes livremente regulam suas posies jurdicas no
processo.17
Para tanto, de acordo com o que dispe o art. 190 do Cdigo de
Processo Civil de 2015, preciso que as partes sejam capazes e que se
esteja diante de direitos que admitam composio. De fato, uma vez
que os sucessores maiores e capazes podem transacionar sobre a divi-
so da herana, respeitados os aspectos de ordem pblica relativos
garantia dos credores e ao pagamento dos impostos incidentes na par-
tilha, podero, tambm, transacionar sobre aquele que ir administrar
o acervo hereditrio no curso do processo de inventrio, j que a atu-
ao deste ltimo interferir diretamente em suas esferas jurdicas e
patrimoniais.
Por esta razo, a deciso conjunta e amigvel dos sucessores
quanto ao inventariante poder prevalecer sobre a prpria determi-
nao testamentria quanto nomeao do inventariante, quando sua
atuao se circunscrever aos aspectos patrimoniais das relaes jur-
dicas deixadas pelo finado.
Nessa perspectiva, a referida clusula geral de negcios proces-
suais, prevista no art. 190 do Cdigo de Processo Civil de 2015, acen-
tua o carter no absoluto da ordem prevista no citado art. 617, que
se revela como uma ordem dispositiva, que pode ser afastada pelo juiz
quando existirem motivos que justifiquem tal alterao, relacionados
ao melhor interesse do esplio e ao regular andamento do processo,
bem como quando os prprios sucessores determinarem de forma
consensual aquele que dever exercer a inventariana.
mecanismos de melhoria do servio Justia. Constatou-se que uma das alternativas seria a de
permitir aos sujeitos do processo a flexibilizao do procedimento ou a alterao da forma
dos atos processuais. Esses novos poderes de adaptao do rito legal s idiossincrasias do
caso concreto so exercidos pelo juiz, por meio de decises em processos em curso, ou pelas
partes, atravs de convenes que prevejam modificaes na forma, no tempo e/ou no conte-
do do ato processual, relativos a litgios futuros e eventuais ou a demandas j ajuizadas.
(REZENDE DE ALMEIDA, Diogo Assumpo. A contratualizao do processo: das convenes
processuais no processo civil. So Paulo: LTr, 2015, p. 107). O desafio da doutrina processual
estabelecer os limites e o alcance das aludidas convenes processuais, considerando as
garantias constitucionais quanto ao devido processo legal.
17
CMARA, Alexandre de Freitas. O novo processo civil. So Paulo: Atlas, 2015, p. 126.
5A COLAO: MODO DE CONFERNCIA E VALOR DOS BENS DOADOS
As doaes de ascendente a descendentes e de um cnjuge ou

companheiro a outro constituem adiantamento de legtima e, assim,
devem ser conferidas por ocasio do falecimento do doador.
A finalidade do instituto da colao assegurar a igualdade das
legtimas, consistindo num aumento levado massa sucessria (Cdigo
Civil, art. 2003),18 acrescido quota indisponvel, sem aumentar a dis-
ponvel (Cdigo Civil, art. 2002, pargrafo nico).
Apenas os descendentes e o cnjuge ou companheiro esto sujei-
tos ao dever de colacionar. Embora tambm sejam herdeiros necess-
rios, a quem destinada uma quota-parte da herana, aos ascendentes
no imposta a obrigao de conferir doaes que tenham recebido
em vida do descendente.19
O Cdigo de Processo Civil de 1973 estabelecia em seu art. 1.014
que os bens a serem colacionados deveriam ser contabilizados pelo
valor que tivessem ao tempo da abertura da sucesso, enunciando que
a colao seria efetuada em substncia, ou seja, com a conferncia do
bem doado em si, que deveria integrar o patrimnio do de cujus, pre-
vendo a colao por compensao do respectivo valor apenas nas hip-
teses em que o donatrio no mais possusse os bens.
De fato, o referido sistema foi alterado pelo Cdigo Civil, que
determina em seu art. 2.002 que a colao ser efetuada in valorem, ou
seja, pelo valor das doaes, s sendo prevista a colao em substn-
cia nas hipteses em que, depois de computados os valores das doa-
es feitas em adiantamento de legtima, no houver no acervo bens
suficientes para igualar as legtimas (Cdigo Civil, art. 2003, pargrafo
nico), determinando, ainda, consoante o disposto no art. 2.004, que o
valor dos bens a serem colacionados ser aquele, certo ou estimativo,
que lhes atribuir o ato de liberalidade.20
18
MAXIMILIANO, Carlos. Direito das sucesses. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1937, v. 2, p. 716.
19
De acordo com Clovis Bevilqua, sendo mais natural que os ascendentes falleam antes dos
descendentes, e devendo ser mantida, com o possvel rigor, a egualdade entre os filhos, a lei
no chama os ascendentes collao. (BEVILQUA, Clvis. Cdigo Civil dos Estados Unidos
do Brasil comentado. 6. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1943, v. IV, p. 189-190).
20
A definio do critrio a ser aplicado depende da lei em vigor na abertura da sucesso.
Neste sentido, vale citar: Processo civil. Recurso especial. Inventrio. Precluso. Prequestio-
namento. Ausncia. Colao. Avaliao do bem. Valor poca da abertura da sucesso. - Invi-
vel o recurso especial na parte em que suscita questo federal no apreciada pelo Tribunal
de origem. - Os bens trazidos colao, para efeito de acertamento das legtimas, devem ser
avaliados com base no valor que possurem poca da abertura da sucesso, conforme o dis-
posto no art. 1.014, pargrafo nico, do CPC, dispositivo esse que corresponde norma
vigente poca da abertura das sucesses examinadas nos presentes autos. Recurso especial
parcialmente conhecido e provido. (STJ, REsp 595.742/SC, 3 T, Rel. Min. Nancy Andrighi, jul-
gado em 06.11.2003, DJ 01.12.2003, p. 356).
O Cdigo de Processo Civil de 2015 modifica novamente o sis-
tema da colao, reproduzindo em seu art. 639 o disposto no citado
art. 1.014 do Cdigo de Processo Civil de 1973. Dessa forma, a regra da
colao volta a ser a conferncia em substncia, com o retorno do bem
doado para o acervo hereditrio, s sendo prevista a colao in valo-
rem quando o donatrio no mais possuir o bem, restando determi-
nado no pargrafo nico do aludido art. 639 que o valor dos bens a
serem colacionados ser aquele que tiverem ao tempo da abertura da
sucesso.
Importante registrar que s o valor dos bens doados conferido,
estando excludas da colao as benfeitorias acrescidas, que perten-
cero ao herdeiro donatrio, correndo tambm conta deste os ren-
dimentos ou lucros, assim como os danos e perdas que eles sofrerem
(Cdigo Civil, art. 2004, 2 e Cdigo de Processo Civil de 2015, art.
639, pargrafo nico).
Realmente, a apurao do valor da doao sujeita colao con-
soante o momento da liberalidade no garante a finalidade da confe-
rncia. Isso porque a legtima s pode ser calculada no momento da
abertura da sucesso. Segundo Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, se a
colao tem por finalidade equalizar as legtimas, ela somente ser
necessria e possvel no momento em que estas puderem ser exigidas,
ou seja, quando da morte do autor da herana.21
De fato, se um filho recebe um bem como adiantamento da leg-
tima que posteriormente muito valorizado, a conferncia do mesmo
segundo o valor ao tempo da doao no trar a igualdade entre a leg-
tima dos herdeiros necessrios, uma vez que aquele herdeiro donat-
rio receber mais do que os outros, pois conferir valor menor do que
aquele que efetivamente atribudo ao bem no momento da abertura
da sucesso. O mesmo se passa se o bem recebido por doao pelo her-
deiro necessrio sofrer profunda desvalorizao sem culpa sua, como
na hiptese de um tombamento, hiptese em que o prejuzo ser do
herdeiro donatrio.
Apesar das ponderaes acima, na verdade, tambm o critrio de
se apurar o valor dos bens doados ao tempo da abertura da sucesso
pode no trazer a almejada igualdade entre as legtimas, uma vez que
o herdeiro donatrio pode ter alienado o bem doado antes da abertura
da sucesso e por ocasio desta ter havido substancial valorizao ou
desvalorizao do patrimnio doado.
A temtica ora em comento foi objeto de debates no mbito
das Jornadas de Direito Civil, promovidas pelo Centro de Estudos
CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Comentrios ao Cdigo de Processo Civil. 3. ed. Rio de
21
Janeiro: Forense, 2006, v. IX, t. I, p. 152.
Judicirios do Conselho da Justia Federal, tendo sido aprovado na I
Jornada de Direito Civil o enunciado n. 119 sobre a matria, que bus-
cou uma melhor intepretao para o art. 2.004 do Cdigo Civil, assim
ementado:
Art. 2.004. Para evitar o enriquecimento sem causa, a colao

ser efetuada com base no valor da poca da doao, nos termos
do caput do art. 2.004, exclusivamente na hiptese em que o bem
doado no mais pertena ao donatrio. Se, ao contrrio, o bem
ainda integrar seu patrimnio, a colao se far com base no valor
do bem na poca da abertura da sucesso, nos termos do art. 1.014
do CPC, de modo a preservar a quantia que efetivamente integrar a
legtima quando esta se constituiu, ou seja, na data do bito (resul-
tado da interpretao sistemtica do art. 2.004 e seus pargrafos,
juntamente com os arts. 1.832 e 884 do Cdigo Civil).
Trata-se de questo angustiante, que divide os doutrinadores.

Em sua obra Direito das Sucesses e luz da sistemtica do Cdigo
Civil, Luiz Paulo Viera de Carvalho louva a inteno do enunciado, mas
opina que deve ser aplicado o critrio legal de conferncia dos bens
efetuada pelo valor vigente poca da liberalidade, com aplicao da
correo monetria,22 prestigiando o disposto no art. 2.004 do citado
diploma legal.
Apesar de tal posicionamento, o referido doutrinador sensibi-
liza-se com a possibilidade de, apesar da correo monetria, restar
apurado, no caso concreto, real impossibilidade de alcance da igual-
dade entre os herdeiros necessrios, sugerindo o exemplo de um im-
vel localizado em rea que sofreu valorao patrimonial muito acima
do esperado pelo mercado imobilirio. Neste caso, segundo o referido
Autor, resta correta a estimao procedida atravs do valor corres-
pondente poca da abertura da sucesso, aduzindo, ainda, que se
restar comprovado ter o bem doado se desvalorizado enormemente,
tambm aconselhvel seja a colao realizada pelo valor apurado
poca da abertura da sucesso com o fim de evitar o prejuzo do her-
deiro donatrio.23
Atento a esta questo, Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, em seus
comentrios ao art. 1.014 do Cdigo de Processo Civil de 1973, argu-
menta que o valor a ser conferido deve ser o valor do benefcio que de
fato o herdeiro donatrio aufere com a doao: se o herdeiro ainda
tiver o bem, seu valor ser o da poca do passamento; se j no mais o
22
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das sucesses. So Paulo: Atlas, 2015.
23
possuir, o valor do benefcio ser aferido poca em que ele ocorreu,
devidamente corrigido.24
A posio de Paulo Cezar Pinheiro Carneiro parece alcanar a
finalidade da colao, a saber, a igualdade entre as legtimas dos her-
deiros necessrios, demonstrando que tanto o critrio do valor da doa-
o ao tempo da liberalidade, como aquele que se reporta ao valor do
bem poca da abertura da sucesso so falhos para a finalidade que
se propem.25
Sem dvida, entre os dois critrios, melhor ficar com a opo
do Cdigo de Processo Civil de 2015, que restaura a apurao do valor
dos bens a serem colacionados como aquele da poca da abertura da
sucesso, sendo tal previso aquela que alcana a igualdade entre as
legtimas nas hipteses em que o donatrio mantm o bem em seu
patrimnio por ocasio do falecimento do doador.
No entanto, como visto, o legislador de 2015 perdeu uma opor-
tunidade de resolver de vez a aludida problemtica, por meio da previ-
so do critrio do real benefcio do donatrio que, sem dvida, seria de
maior valia para a finalidade da colao.
6CRITRIOS PARA A PARTILHA DOS BENS E A TUTELA DE EVIDNCIA

NO MBITO DO INVENTRIO
Ao contrrio do Cdigo de Processo Civil de 1973, o Cdigo de

Processo Civil de 2015 contm dispositivo que consagra critrios para
a partilha dos bens. Trata-se do art. 648 do referido diploma legal, que
determina que, na partilha, sero observadas as seguintes regras: I
24
Janeiro: Forense, 2006, v. IX, t. I, p. 152.
25
Sobre a questo, vale citar interessante acrdo do Tribunal de Justia do Estado do Rio de
Janeiro que considerou para a soluo do caso concreto o comportamento da parte, privile-
giando o princpio da boa-f processual e da vedao do comportamento contraditrio:
AO ORDINRIA RECONHECIMENTO DE DIREITO SUCESSRIO E COLAO DE BENS
IMVEL DOADO AOS HERDEIROS - ANTECIPAO DE LEGTIMA - VENDA DO IMVEL
DOADO - PREJUZO AO DIREITO SUCESSRIO DA HERDEIRA NECESSRIA - COLAO
DOVALORATUAL DO BEM AVALIAO NO IMPUGNADA - PRINCPIO DA BOA-F OBJE-
TIVA - Os rus apresentaram comportamento contraditrio, pois se no se opuseram reali-
zao da avaliao judicial e ao laudo apresentado, no podendo agora, em sede de apelao,
entender que no cabe a atribuio devaloratual de mercado ao bem, e sim, somente a atua-
lizao dovalorda venda do mesmo, em agosto de 1997, posto que configurada a precluso
lgica. Pleito dos apelantes que no encontra amparo legal. A demora no prosseguimento do
feito, com a avaliao do bem em outra Comarca e a realizao de todos os atos processuais
necessrios para a finalizao da aludida avaliao propiciou aos rus situao confortvel,
uma vez que s devero restituir ao inventrio e por conseguinte apelada a parte que lhe
cabe, aps o deslinde desta lide. Ausncia de boa-f objetiva. Sentena que se mantm.
Negado seguimento ao recurso (TJRJ, Apelao Cvel n. 0014447-49.2004.8.19.0001, 17
Cmara Cvel, Rel. Des. Edson Velos, julgado em 02.10.2012).
mxima igualdade possvel quanto ao valor, natureza e qualidade
dos bens; II a preveno de litgios futuros, e III a mxima comodi-
dade dos coerdeiros, do cnjuge ou do companheiro, se for o caso. Dito
dispositivo espelha o que dispunha o art. 505 do Cdigo de Processo
Civil de 1939.
O Cdigo Civil contm regramento semelhante, determinando
o art. 2.017 do aludido diploma legal que, no partilhar os bens, obser-
var-se-, quanto ao seu valor, natureza e qualidade, a maior igualdade
possvel. Isso significa dizer que cada herdeiro deve receber a sua
parte em mveis, imveis, bens certos e duvidosos, coisas corpreas,
direitos e crditos,26 ou seja, cada herdeiro deve ter parte no bom e
no ruim.27 Os demais critrios quanto comodidade entre os herdei-
ros e preveno de litgios futuros restam depreendidos do disposto
no art. 2.019 do Cdigo Civil.
O citado art. 648 do Cdigo de Processo Civil refora, portanto,
os princpios que segundo a lei devem nortear a partilha, estando em
consonncia com o que dispe o Cdigo Civil quanto matria, inclu-
sive em relao aos bens insuscetveis de diviso cmoda, sobre os
quais resta determinada a venda judicial ou a licitao entre os interes-
sados quando mais de um deles requerer a sua adjudicao com repo-
sio em dinheiro ao monte, partilhando-se o valor apurado, salvo se
houver acordo para que sejam adjudicados a todos (Cdigo de Processo
Civil de 2015, art. 64928 e Cdigo Civil, art. 2.019).
Nas palavras de Paulo Csar Pinheiro Carneiro, a interpreta-
o do princpio da igualdade no enseja que cada herdeiro fique com
uma parte de cada um dos bens, mas, sim, que a partilha procure ser
equitativa quanto distribuio dos bens pela sua natureza, pois,
mais importante do que a rigorosa igualdade na diviso em espcie
dos bens componentes do acervo hereditrio a diviso que conceda
maior comodidade aos herdeiros e, ao mesmo tempo, possa prevenir
futuros litgios, ainda que seja utilizado o instituto da reposio.29
Desse modo, como alerta Pontes de Miranda, a igualdade
quanto ao valor dos quinhes absoluta, pois, esta no se pode
26
BEVILQUA, Clvis. Cdigo Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. 6. ed. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1943, v. IV, p. 268.
27
AMERICANO, Jorge. Comentrios ao Cdigo de Processo Civil do Brasil. So Paulo: Saraiva,
1941, v. 2 (arts. 291 a 674), p. 427.
28
O art. 1.117, I, do Cdigo de Processo Civil de 1973, na mesma linha do disposto no art. 639 do
Cdigo de Processo Civil de 2015, dispe que sero alienados em leilo o imvel que, na parti-
lha, no couber no quinho de um s herdeiro ou no admitir diviso cmoda, salvo se adjudi-
cado a um ou mais herdeiros.
29
Janeiro: Forense, 2006, v. IX, t. I,p. 183-184.
atenuar por comodidade ou por qualquer outro motivo.30 No entanto,
consoante Carlos Maximiliano, prefere-se dar a cada herdeiro os bens
mais proveitosos a ele, em razo da idade, profisso ou residncia.31
Por conseguinte:
O princpio da comodidade poder ensejar que uma fazenda seja

atribuda ao herdeiro fazendeiro, enquanto ao herdeiro menor
cujo representante legal um mdico, sejam atribudos bens de
fcil administrao. J o herdeiro dentista, pelo mesmo princpio
dever receber o consultrio de seu falecido pai, tambm dentista.
O cnjuge meeiro, que nunca trabalhou, tambm deve receber bens
de fcil administrao, ficando as cotas da empresa do falecido e
a administrao do negcio para o herdeiro economista e que j
administrava a empresa. 32
Da mesma maneira, deve-se dar ao herdeiro o prdio contguo

ao seu ou comum com este; se no imvel h dois condminos, aqui-
nhoa-se no mesmo, de preferncia, o dono da parte maior. Confere-se
a determinado sucessor um prdio da herana, por ser ele proprietrio
de outro que tinha naquele servido de gua, luz ou caminho, ou que
melhorar muito se receber qualquer das servides referidas.33
Observe-se que tal como ocorre com o art. 2.019 do Cdigo Civil,
o Cdigo de Processo Civil em seu art. 639 optou pelo critrio da lici-
tao no caso de disputa entre os herdeiros por um bem da herana
insuscetvel de diviso cmoda. Este processo consiste na adjudicao
do bem ao herdeiro que oferecer e pagar mais pelo mesmo.34
30
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado Parte Especial. Rio de Janeiro: Borsoi,
1969, t. LX, p. 247.
31
MAXIMILIANO, Carlos. Direito das sucesses. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1937, v. 2, p.
626.
32
Janeiro: Forense, 2006, v. IX, t. I, p. 184. Nessa linha, o Tribunal de Justia de So Paulo deu
provimento apelao de um dos herdeiros de um scio cotista de sociedade que continha
em seu estatuto determinao para a apurao de haveres das cotas em caso de falecimento
de scio, determinando o pagamento de seu quinho em dinheiro: Inventrio Partilha
Cotas de Sociedade O herdeiro que no faz parte da sociedade a que pertencia o de cujus
no est obrigado a receber em pagamento de seu quinho, na partilha, as cotas deixadas
pelo falecido. (Revista Forense, 171-229).
33
626. Na jurisprudncia, vale citar: Partilha em inventrio. A regra da igualdade na partilha
no assenta em atribuir a todos os herdeiros uma parte ideal em todos os imveis da herana,
pois assim o juiz manteria o condomnio, fonte de discrdias e de pleitos A equidade no
obsta, antes aconselha, a que se atribua um bem, tanto quanto possvel, ao herdeiro que j o
utiliza ou o detm, ou nele fez benfeitorias ou titular de uma parte dele. (TJRS, 3 CC, Ap.
Cv. n. 22374, Rel. Des. Athos Gusmo Carneiro, julg. em 18.04.1974).
34
VELOSO, Zeno. In: JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antnio (Coord.). Comentrios ao Cdigo
Civil Parte Especial: Do Direito das Sucesses (arts. 1.857 a 2.027). So Paulo: Saraiva, 2003,
v. 21, p. 438.
O Cdigo Civil de 1916 no previa a licitao, deixando a soluo
para o caso de mais de um herdeiro requerer a adjudicao do bem no
passvel de diviso cmoda a critrio do juiz. Segundo Clovis Bevil-
qua, nestes casos, o juiz deveria decidir atendendo s circunstncias
particulares do caso, situao do imvel, sua melhor explorao,
s benfeitorias e prioridade.35 O Cdigo de Processo Civil de 1939,
em seu art. 503, estabeleceu o procedimento de licitao e tal previso
contou com as crticas do autor acima citado, pois, segundo o mesmo,
na definio da partilha, no se pode preferir o critrio puramente
monetrio.36
O Cdigo de Processo Civil de 1973 omitiu a soluo pelo crit-
rio da licitao, embora alguns autores o admitissem.37 O Cdigo Civil
expressamente o restabeleceu para os casos de disputa entre herdei-
ros, cessionrios e cnjuge sobrevivente e agora o Cdigo de Processo
Civil de 2015 refora tal soluo, apesar da advertncia h muito susci-
tada pelos mais renomados doutrinadores, que argumentavam que a
licitao representa, no entanto, providncia extrema, encarada com
a maior preveno, porque favorece o herdeiro abastado, que, no ato,
disponha de maiores recursos.38
Vale ressaltar que possvel depreender do Cdigo Civil mais
um critrio para diviso dos bens, a saber, o sorteio, consoante resta
previsto no art. 817 do referido diploma legal. De acordo com Silvio de
Salvo Venosa, no havendo outra forma de dividir os bens, ser o juiz
forado a recorrer ao sorteio, como forma de inibir litgio pela disputa
da herana.39
Diante da normativa acima, verifica-se que no h no Direito
brasileiro uma atribuio preferencial a um herdeiro especfico de
bem integrante do acervo, consoante as particularidades do aludido
35
Janeiro: Francisco Alves, 1943, v. IV, p. 272.
36
Janeiro: Francisco Alves, 1943, v. IV, p. 271 (no Addendum).
37
Segundo Jos da Silva Pacheco: No caso de mais de um pedido de adjudicao, pode haver
licitao. Alis, consoante o disposto no art. 503 do anterior Cdigo de Processo Civil, reque-
rida a adjudicao por dois ou mais interessados, sem que fosse possvel acordo entre eles,
deveria o juiz marcar dia e hora, citando a todos, para a licitao. Dever-se-ia incluir os bens
no quinho de quem oferecesse maior lance. O atual Cdigo de Processo Civil no tem dispo-
sitivo semelhante. Sendo, porm, permitida a adjudicao e sendo possvel a pluralidade de
pedidos, h de se solucionar o impasse, se no houver acordo, procedendo-se licitao. Pre-
fere-se o que oferecer maior lance. (PACHECO, Jos da Silva. Inventrios e partilhas na
sucesso legtima e testamentria, revista e atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p.
574-575).
38
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. 34. ed. So Paulo: Saraiva, 2000,v.
6,p. 328-329.
39
VENOSA, Slvio de Salvo. Direito civil: direito das sucesses. 3. ed. So Paulo: Atlas, 2003, v.
7, p. 390.
sucessor, em especial a sua vinculao ao referido bem. Esta preocu-
pao ocorre em legislaes estrangeiras, como se d na Frana, em
que disciplinada a atribuio preferencial, que consiste em disposi-
es que derrogam as regras gerais da diviso hereditria, prevendo a
prerrogativa de determinados herdeiros requererem que certo bem lhe
seja atribudo em virtude de uma ligao especfica que tenham com o
aludido bem.40 O sucessor que exercita a atribuio preferencial dever
repor em dinheiro ao monte a parte que exceder o seu quinho.
De acordo com o art. 831 do Code Civil, a atribuio preferen-
cial ser prerrogativa do cnjuge sobrevivente ou de qualquer herdeiro
coproprietrio na sucesso: (i) de empresa agrcola, comercial, indus-
trial, artesanal ou liberal de cuja explorao aquele participe ou tenha
participado efetivamente; (ii) do local que lhe serve efetivamente de
habitao, se nele o beneficirio tem a sua residncia poca da aber-
tura da sucesso e dos mveis que o guarnecem; (iii) do local que lhe
serve efetivamente ao exerccio profissional e dos mveis que o guar-
necem e (iv) do conjunto dos bens mveis necessrios explorao de
um bem rural cultivado pelo autor da herana a ttulo de arrendat-
rio ou de rendeiro (este ltimo aquele que se encarrega da cultura de
um terreno com a condio de dar ao proprietrio metade dos frutos),
quando tal conjunto permanece no proveito do demandante ou quando
um novo contrato consentido em substituio ao antigo.
Em caso de conflito entre demandantes do direito de prefe-
rncia, a autoridade judiciria dever levar em conta as aptides dos
diferentes requerentes quanto gesto e manuteno dos bens dis-
putados, e, quanto s empresas, em particular, o tempo de durao da
participao pessoal daqueles na atividade que explorada (Code Civil,
arts. 832-833).
40
De acordo com Pierre Voirin e Gilles Goubeaux Il doit avoir um attachement particulier au
bien faisant lobjet de la demande dattribution, attachement qui se manifeste de la faon sui-
vante: pour lexploatacion agricole ou lentreprise comerciale, industrielle ou artisanale, par-
ticiper ou avoir particip effectivement la mise en valeur du bien (dans le cas de lhritier, la
participations peut tre le fait du conjoint); pour le local dhabitation, lhabiter effectivement
au moment du partage et y avior dj eu sa rsidence lpoque du dcs; pour le local et le
meubles usage professionel, en avoir lutilisation effective dans lexercise de sa propre pro-
fession; pour le train culture, bnficier du bail rural concernant le domaine quexplitant le
dfunt. Traduo livre: Deve existir uma ligao particular com o bem que objeto da
demanda de atribuio preferencial, ligao que se manifesta da seguinte forma: para a explo-
rao agrcola ou para a empresa comercial, industrial ou artesanal, participar ou ter partici-
pado efetivamente da valorizao do bem (no caso do herdeiro, a participao pode ser feita
pelo cnjuge); para o local de habitao, o habitar efetivamente no momento da partilha e j
ter tido nele sua residncia na poca da abertura da sucesso; para o local e os mveis para
uso profissional, ter a sua utilizao efetiva no exerccio de sua prpria profisso; quanto
cultura, se beneficiar do contrato de arrendamento rural referente ao domnio que o falecido
explorava. (VOIRIN, Pierre; GOUBEAUX, Gilles. Droit civil (Droit prive notarial, rgimes
matrimoniaux, successions-libralits). 22. ed. Paris: LGDJ, 2002, t. 2, p. 225).
Poder-se-ia dizer que pelos critrios da maior igualdade possvel,
da comodidade e da preveno de litgios futuros, aplicados segundo
a normativa constitucional, chegar-se-ia a resultados semelhantes, ou
seja, ao estabelecimento da partilha consoante a vinculao de deter-
minados sucessores a especficos bens integrantes do acervo, con-
forme as particularidades dos primeiros, inclusive com a possibilidade
de se afastar a licitao, pois, luz da dignidade da pessoa humana,
no se pode priorizar o critrio econmico em detrimento das espe-
cificidades dos sucessores em relao ao bem disputado. Entretanto,
seria mais salutar que a legislao sucessria efetivamente tivesse essa
preocupao, afastando-se da neutralidade, com garantia de realiza-
o dos valores constitucionais na diviso hereditria.
Em boa hora, portanto, o Cdigo de Processo Civil traz expe-
diente que permite no mbito do processo fazer valer os vnculos dos
herdeiros com determinados bens da herana, realizando, assim, a
concretude desejada para a partilha, segundo a tbua axiolgica da
Constituio Federal.
Trata-se do disposto no pargrafo nico do art. 647 do Cdigo de
Processo Civil, que prev a possibilidade de o juiz, em deciso funda-
mentada, deferir antecipadamente a qualquer dos herdeiros o exerc-
cio dos direitos de usar e de fruir de determinado bem, com a condio
de que, ao trmino do inventrio, tal bem integre a cota do respec-
tivo herdeiro, cabendo ao mesmo, desde o deferimento, todos os nus
e bnus decorrentes do exerccio daqueles direitos.
Embora dito dispositivo esteja previsto em artigo que trata dos
pedidos de quinho, formulados depois de ultimadas as declaraes
de bens, a avaliao judicial e o pagamento do imposto de transmisso
causa mortis, bem como o pagamento das dvidas do autor da herana,
ocasio em que o juiz deliberar a partilha, analisando a motivao do
pleito de cada herdeiro para a atribuio ao seu quinho de determi-
nado bem, assiste razo a Luciano Vianna de Arajo, quando afirma
que tal requerimento pode ser formulado a qualquer momento do pro-
cesso de inventrio.41
Pode-se dizer que o expediente contido no pargrafo nico do
art. 647 do Cdigo de Processo Civil configura a concretizao da
tutela de evidncia no mbito do inventrio. De fato, o Cdigo de Pro-
cesso Civil de 2015, em seu art. 294, estabelece que a tutela provis-
ria pode fundamentar-se em urgncia ou evidncia, sendo a tutela de
evidncia, conforme Alexandre Freitas Cmara, aquela de natureza
ARAJO, Luciano Vianna de; BUENO, Cassio Scarpinella (Coord.). Comentrios ao novo
41
Cdigo de Processo Civil. So Paulo: Saraiva. (No prelo). Originais gentilmente cedidos pelo
Autor.
satisfativa, cuja concesso prescinde do requisito da urgncia (art. 311).
Ainda segundo o autor citado:
Trata-se, ento, de uma tutela antecipada no urgente, isto , de

uma medida destinada a antecipar o prprio resultado prtico final
do processo, satisfazendo-se na prtica o direito do demandante,
independentemente da presena de periculum in mora. Est-se, a,
pois, diante de uma tcnica de acelerao do resultado do processo,
criada para casos em que se afigura evidente (isto , dotada de pro-
babilidade mxima) a existncia do direito material.42
Sem dvida, a previso da tutela de evidncia coaduna-se com o

propsito de durao razovel do processo, antecipando-se um resul-
tado que decorre de forma evidente do caso em exame. Para a tutela
de evidncia, portanto, no necessrio o periculum in mora, bas-
tando a evidncia do direito. O art. 311 do Cdigo de Processo Civil
prev as hipteses em que a tutela de evidncia dever ser concedida,
sendo o pargrafo nico do art. 647 uma hiptese especial da tutela de
evidncia.
Por ocasio do encontro do Frum Permanente de Processualis-
tas Civis realizado no Rio de Janeiro, foram aprovados os Enunciados
181 e 182, que preveem a possibilidade de extenso da fruio anteci-
pada do bem tambm para os legatrios.43
A questo ganha contornos complexos diante da possibilidade
de o testador estipular a partilha por meio do testamento, especifi-
cando os bens que devem compor os quinhes de cada um dos herdei-
ros. Nesse caso, poderia ser invocada a tutela de evidncia em questo
contra a disposio testamentria?
A possibilidade de o testador estipular os bens que devem com-
por os quinhes dos herdeiros no encontra qualquer resistncia
quando no h herdeiros necessrios,44 uma vez que a discusso exis-
tente entre os doutrinadores quanto possibilidade de o testador
determinar previamente os bens que constituem a legtima dos her-
deiros necessrios, tendo em vista o carter cogente de tal atribuio
hereditria.
42
CMARA, Alexandre de Freitas. O novo processo civil. So Paulo: Atlas, 2015, p. 169.
43
Enunciado n. 181 A previso do pargrafo nico do art. 647 aplicvel aos legatrios na
hiptese do inciso I do art. 645, desde que reservado patrimnio que garanta o pagamento do
esplio e Enunciado n. 182 - Aplica-se aos legatrios o disposto no pargrafo nico do art. 647,
quando ficar evidenciado que os pagamentos do esplio no iro reduzir os legados.
44
Segundo Carlos Maximiliano, quanto parte disponvel, menos calorosa a controvrsia:
dia a dia se cumprem legados de bens que so os melhores do esplio, ou pelo menos se
enquadram nos mais desejados pelos sucessores. (MAXIMILIANO, Carlos. Direito das suces-
ses. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1937, v. 2, p. 364).
De acordo com os ensinamentos de Estevam de Almeida, distin-
guem os autores a liberdade testamentria quantitativa, ou quanto ao
valor, da liberdade testamentria qualitativa, ou quanto espcie ou
natureza dos bens.45 No h dvida em afirmar que o Cdigo Civil no
contempla a liberdade testamentria quantitativa, que significa a liber-
dade de testar plena, a negao da legtima,46 pois, impede que aquele
que tenha herdeiro necessrio disponha de mais da metade de seus
bens.
A controvrsia surge em relao liberdade testamentria qua-
litativa e os seus debates so encontrados, em especial, na anlise
do instituto da converso dos bens da legtima em outros de espcie
diversa, que foi proibido pelo legislador do Cdigo Civil (Cdigo Civil,
art. 1.848, 2).
De fato, para alguns doutrinadores, o testador no poderia
determinar os bens que devem constituir os quinhes dos herdeiros
necessrios, pois, dessa maneira poderia favorecer certos herdeiros
em detrimento de outros. Para esta corrente, conforme esclarece Car-
los Maximiliano, no existiria plena liberdade de testar, nem quanti-
tativa, nem qualitativa, devendo a partilha obedecer a mais perfeita
igualdade, quer efetuada aps o bito do de cujus, quer efetuada por
ato entre vivos: a metade de cada espcie de bens caber reserva; a
outra metade quota disponvel.47
45
ALMEIDA, Estevam de. A nova lei sobre sucesses. O direito, v. 106, 1908, p. 28.
46
ALMEIDA, Estevam de. A nova lei sobre sucesses. O direito, v. 106, 1908, p. 28.
47
364. De acordo com Arthur Vasco Itabaiana de Oliveira Se o testador pudesse indicar os bens
do acervo para a constituio das legtimas, inclusive das conversveis, implicaria isso inge-
rncia preponderante do mesmo na formulao das partilhas, em detrimento dos preceitos
formativos desta, que devem ser respeitados, para que no sejam prejudicados os legitim-
rios. E isto porque converter em outras espcies os bens, que constituam a legtima, quer
dizer: substituir os bens existentes na herana por outros no existentes nela, e que forem
designados pelo testador; mas no quer dizer que o testador possa designar, dentre os bens
existentes na herana, quais os que devam compor o quinho de cada herdeiro necessrio [...].
Conseguintemente, a faculdade que tem o testador de determinar a converso dos bens da
legtima em outras espcies no arbitrria, porque, subsistindo a proibio ao testador de
designar os bens que devam constituir a quota disponvel, que deve ser formada da metade
dos bens existentes ao falecer o testador, claro est que a legtima ser constituda da outra
metade dos bens que, ento, possua o testador e, assim, dever ser observada a perfeita
igualdade na distribuio dos quinhes pelos herdeiros necessrios, conciliando-se a vontade
do testador com o direito destes herdeiros herana, cujo domnio e posse a lei lhes garante.
(ITABAIANA DE OLIVEIRA, Arthur Vasco. Tratado de direito das sucesses. So Paulo: Max
Limonad, 1952, v. 2, p. 642-643). (Grifos do autor). No diverso o entendimento de Joaquim
Ferreira Alves: Subsistindo a disposio que veda aos paes designar os bens que devam cons-
tituir a quota disponvel, devendo esta ser formada da metade dos bens existentes ao tempo
do fallecimento do de cujus, claro est que essa faculdade no arbitrria; deve o testador
na converso da legtima em outras espcies, proceder determinao dos bens que devem
compor a quota disponvel em partes eguaes, para cada espcie de bens existentes ao tempo
de seu fallecimento; sendo constituida a legtima da outra metade de cada espcie dos
No merecem prosperar as razes de tal posicionamento. Com
efeito, a Legislao Civil de 1916 no vedava a liberdade de testar quali-
tativa, pois, em seu art. 1.776 estabelecia expressamente que era vlida
a partilha feita em vida pelo pai (leia-se ascendente, em virtude do art.
5, inciso I da Constituio da Repblica Federativa do Brasil), por ato
entre vivos ou de ltima vontade, contanto que no prejudicasse a leg-
tima dos herdeiros necessrios. Ora, se a lei permitia ao ascendente
elaborar a partilha de seu patrimnio, permitia-lhe determinar os bens
que deveriam integrar os quinhes dos herdeiros necessrios.
Muitos autores no consideravam este arbtrio absoluto, invo-
cando o respeito aos princpios que regiam a partilha, dispostos nos
arts. 1.775 e 1.777 do Cdigo Civil de 1916, a saber, a maior igualdade
possvel entre os quinhes quanto ao valor, natureza e qualidade dos
bens que o compem e a no comunho entre os herdeiros, para evitar
litgios futuros.48 Assim, a regra da maior igualdade possvel, prevista
no art. 1.775 do Cdigo Civil de 1916 (atualmente art. 2.017 do CC 2002),
era considerada, por alguns autores, cogente, no podendo ser afas-
tada por imposio do morto.49
mesmos bens. (ALVES, Joaquim Ferreira. Manual do Cdigo Civil Brasileiro. Rio de Janeiro:
Jacintho Ribeiro dos Santos, 1917, v. XIX, p. 309).
48
Sobre o arbtrio do testador, vale citar: Inventrio Partilha Audincia de tentativa de
conciliao Omisso de que no resulta nulidade Partilha Clusulas de incomunicabili-
dade, inalienabilidade e impenhorabilidade Clusula de livre administrao da mulher her-
deira (inteligncia do art. 1.723 CC) Disposio da metade (inteligncia do art. 1.721 CC)
Colao (matria de alta indagao) Crditos (compensao em bens inconvenincia)
Sentena confirmada. No se decreta nulidade por omisso da tentativa de conciliao, nas
causas de natureza patrimonial. A instituio de clusulas sobre bens uma faculdade do
testador, mas ele a tem somente QUANTITATIVA, no QUALITATIVA. Por isso, somente depois
da partilha, que se recomenda a clausulao dos bens, para que seja evitado o indesejvel
exerccio do poder do testador de determinar os bens que devem tocar a cada herdeiro, com o
estabelecimento de situaes vantajosas para uns em prejuzo de outros. Tendo a colao a
finalidade precpua de comprovao do exerccio do poder de disponibilidade sobre a leg-
tima, porque consistente em matria de alta indagao, s poder ser examinada nas vias
ordinrias. Relativamente possibilidade do recebimento de crditos do esplio em bens, a
questo de mrito e poder ser resolvida por transao, mesmo porque, como se sabe, a
avaliao dos bens para efeitos fiscais no contm a mesma realidade do valor em espcie.
(TJMG, 3 Cmara Cvel, Apelao Cvel n. 1.0095.03.900018-7/001, Rel. Des. Maciel Pereira,
julgado em 10.03.2005) (grifei).
49
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. 34. ed. So Paulo: Saraiva, 2000,v.
6, p. 269. A mesma posio foi mantida na atualizao da obra segundo o Cdigo Civil de 2002
(35. edio, p. 326). No mesmo sentido, J. M. de Carvalho Santos: Feitas por ato entre vivos,
assim como em testamento, no podem fugir s normas da igualdade que so de sua essn-
cia. (Santos, J. M. de Carvalho. Cdigo Civil Brasileiro interpretado. 8. ed. Rio de Janeiro: Frei-
tas Bastos, 1963, v. XXIV, p. 392). Em sentido contrrio: A regra do art. 1.775 do Cdigo Civil,
que demanda observar, na partilha dos bens, a maior igualdade possvel quanto ao valor,
natureza e quantidade, destina-se precipuamente sucesso legtima, pois na sucesso tes-
tamentria prevalece a vontade do testador. (TJRS, 2 Cmara Especial, Apelao Cvel n.
23.541-Porto Alegre, Rel. Des. Tlio Medina Martins, julgado em 24.07.1975) (PACHECO, Jos
da Silva. Inventrios e partilhas na sucesso legtima e testamentria, revista e atualizada. Rio
de Janeiro: Forense, 1996 p. 578).
Em outras palavras, o testador poderia se valer da liber-
dade qualitativa, mantendo a diviso dos bens de modo a preservar a
maior igualdade possvel quanto natureza, ao valor e quantidade
daqueles, distribuindo-os de forma equitativa. De acordo com Carlos
Maximiliano:
Em todo o patrimnio h coisas melhores, preferveis, desejveis,

e desejadas precipuamente; impossvel no tocar a um o que o
outro pretenderia. Da as dissenses, que a providncia legal visa
desarmar com a prestigiosa interferncia de pessoa querida, amo-
rosa e insuspeita. O esprito da norma positiva leva a inclinar-se,
na dvida, pelo respeito ao veredictum paterno. Provada, porm, a
sugesto alheia, pblica ojeriza ou preveno contra herdeiro, clara
a parcialidade da diviso, evidente o prejuzo de uns e a vantagem
exagerada de outros; enfim, quando a falta de igualdade qualitativa
redunda em indiscutvel desigualdade quantitativa, notria injus-
tia; em casos tais a partilha antecipada no prevalece. Entretanto,
a m-f no se presume jamais; muito menos em corao de pai; e o
nus da prova, at mesmo quanto ao erro inocente, incumbe a quem
alega.50
Nessa linha, o Tribunal de Justia do Distrito Federal reformou

deciso que homologou partilha com base em testamento que deixava
para um filho apenas o usufruto de um dos imveis e aplices e no
aes de grandes companhias com elevados dividendos, aquinhoando
o outro herdeiro com todas as propriedades do esplio, determinando
que o princpio do art. 1.775 do Cdigo Civil de 1916 devia prevalecer
sobre a vontade do testador.51
O Cdigo Civil ps fim discusso ao prever em seu art. 2.014
que o testador pode indicar os bens e valores que devem compor os
quinhes dos herdeiros necessrios, deliberando ele prprio a partilha,
que prevalecer, salvo se o valor dos bens no corresponder s quo-
tas estabelecidas, sendo certo que o referido diploma legal reprodu-
ziu o art. 1.776 da Legislao Civil de 1916 em seu art. 2.018, bem como
prevendo em seu art. 2.019 a alienao dos bens insuscetveis de divi-
so cmoda, do que se conclui que o autor deve observar os critrios
50
367-370 (grifos do autor).
51
REVISTA dos Tribunais, v. 237, p. 595-596, julho de 1955 . L-se no acrdo: Quanto ao
mrito, no se justifica prevalea a vontade da testadora sobre a regra do art. 1.775 do Cdigo
Civil, que manda observar a maior igualdade possvel, na partilha, quanto ao valor, natureza e
qualidade dos bens. Justo , portanto, que nos termos do brilhante parecer da Procuradoria
Geral as fls., seja o imvel da rua da Carioca, 69, nesta cidade, atribudo, pela metade, a cada
um dos quinhes.
que regem a partilha, que foram reforados pelo disposto no Cdigo de
Processo Civil de 2015 em seus arts. 648 e 649.
Diante do referido art. 2.014 do Cdigo Civil, a questo relativa
aos limites do testador quanto ao estabelecimento da partilha ganha
novo flego, pois, na esteira da posio de Carlos Maximiliano acima
exposta, o limite o valor dos quinhes, ou seja, em ltima instncia, a
desigualdade quantitativa.
Poder-se-ia argumentar que ao se valer do art. 2.014, dever o
testador observar as regras da partilha acima citadas. No entanto, os
critrios da maior igualdade possvel, da comodidade entre os her-
deiros e da preveno de litgios futuros so fluidos e abertos, no
havendo parmetros especficos para sua aplicao, salvo aqueles que
culminam, em ltima instncia, numa demonstrao de desigualdade
quantitativa em relao aos quinhes estabelecidos na partilha elabo-
rada por testamento.
Alm disso, exatamente por no haver normas cogentes que atri-
buam determinados bens a certos herdeiros, limites liberdade testa-
mentria qualitativa encontram-se ausentes do ordenamento jurdico,
salvo se o exerccio desta causar uma desproporo quantitativa entre
os quinhes, como indicado acima.
Realmente, este o resultado da anlise da sistemtica do Cdigo
Civil e do Cdigo de Processo Civil, que estabeleceram mecanismos
que garantem o respeito quantitativo entre os quinhes dos herdeiros,
descuidando de outros interesses relevantes desses herdeiros na com-
posio de suas quotas, como se pode depreender do procedimento de
licitao estabelecido no art. 2.019, 2, do Cdigo Civil e no art. 649
do Cdigo de Processo Civil, que privilegia o maior lance numa disputa
entre herdeiros, alm do sorteio estipulado no art. 817 do Cdigo Civil
e, ainda, da regra de interpretao dos testamentos disposta no art.
1.899 e no citado art. 2.014, todos do Cdigo Civil.
Desse modo, na elaborao da partilha, o testador pode estipu-
lar os quinhes dos herdeiros em desacordo com os seus interesses e
expectativas, no privilegiando vnculos especficos daqueles em rela-
o a determinados bens da herana, bem como no atentando para
necessidades e especificidades de certos sucessores. Alm disso, ditos
vnculos podem se constituir aps a lavratura do testamento, que per-
manecer vlido se o testador no o alterar.
Sobre a questo, vale trazer a ttulo de ilustrao o art. 2.163 do
Cdigo Civil portugus, citado por Zeno Veloso52 em comentrio ao
52
VELOSO, Zeno. In: JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antnio (Coord.). Comentrios ao Cdigo
Civil Parte Especial: Do Direito das Sucesses (arts. 1.857 a 2.027). So Paulo: Saraiva, 2003,
v. 21, p. 435.
art. 2.014 do Cdigo Civil, que assim determina: O testador no pode
impor encargos sobre a legtima, nem designar os bens que a devem
preencher, contra a vontade do herdeiro (grifei).
Embora o posicionamento do ordenamento jurdico portugus
seja muito radical, havendo alguns mecanismos citados pela dou-
trina para minimizar os seus efeitos,53 nota-se uma tomada de posio
quanto liberdade testamentria qualitativa, ao menos quando diante
de herdeiros necessrios: prevalecem os interesses do herdeiro e no
aqueles do autor da herana.
O desafio, portanto, estabelecer critrios para a tenso que
pode surgir diante das disposies testamentrias entre os herdeiros
e seus interesses e a vontade do autor da herana. Em outras palavras,
trata-se da verificao de um conflito entre a autonomia privada tes-
tamentria, expresso da livre iniciativa e da liberdade (Constituio
Federal, art. 1, inciso IV, art. 5, caput, art. 170), e direitos fundamentais
calcados na dignidade da pessoa humana (Constituio Federal, art. 1,
III), quando o bem objeto da disposio testamentria serve ou indis-
pensvel/relevante moradia ou ao exerccio profissional do sucessor,
pois, as consequncias das disposies testamentrias passam a ser
muito relevantes num ordenamento jurdico que prioriza, em todas as
suas esferas, a proteo integral pessoa, sendo a propriedade um ins-
trumento para a concretizao desta proteo, a partir da sua funo
social.
Sobre as titularidades, assinala com razo Eroulths Cortiano
Jnior que preciso pensar a garantia do patrimnio com a conscin-
cia de que os bens no so um fim em si mesmo, mas servem subsis-
tncia fsica e moral do ser humano. Por conseguinte, segundo o autor,
deve ser buscada uma titularidade funcional, ou seja, dirigida manu-
teno da dignidade da pessoa humana e exercitvel sobre coisas con-
cretas, porque tm importncia concreta para o homem, sendo preciso
reaver o que a titularidade das coisas tem de instrumento para a reali-
zao concreta da existncia humana.54
por isso que, no campo das relaes jurdicas patrimoniais,
deve-se sempre ter em vista o vnculo que une a pessoa ao bem. Esta
verificao salutar para que sejam identificados os parmetros do
regime jurdico que ser dispensado quele bem, que, exatamente para
53
ASCENSO, Jos de Oliveira. O preenchimento pelo autor da sucesso da quota do herdeiro.
Direito e Justia, 2000, passim. Um exemplo atribuir ao reservatrio parte da disponvel,
aduzindo que o mesmo s ter direito a essa cota se aceitar a partilha tal como ela foi feita no
testamento.
54
CORTIANO JNIOR, Eroulths. Para alm das coisas (Breve ensaio sobre o direito, a pessoa e
o patrimnio mnimo). In: RAMOS, Carmen Lcia Silveira et al (Org). Dilogos sobre direito
civil: construindo a racionalidade contempornea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 162-163.
garantir a observncia de sua funo social, dever ter como foco a
pessoa vinculada ao mesmo.
Por conseguinte, vale ponderar, com apoio em Roberta Mauro:55
se o vnculo que une a pessoa ao bem tiver relevncia social, ou seja,
tiver relao direta com a realizao da existncia humana e com a
concretizao de uma vida digna, estar justificado um regime jurdico
diverso, configurado exatamente a partir de uma limitao ao exerc-
cio da autonomia privada quanto ao referido bem.
Em outras palavras, na medida em que o conjunto de interesses
relativo a determinado bem qualificado como essencial concreti-
zao da dignidade da pessoa humana, a tutela da autonomia privada
quanto ao mesmo dever ceder diante do aludido conjunto de interes-
ses. Nesta direo, vale retomar o alerta de Roberta Mauro: se o inte-
resse sobre um bem se refere manuteno da dignidade ou da vida da
pessoa que dele depende, sua relevncia social ser indiscutvel, j que
deste vnculo com a coisa depende a existncia do sujeito.56 Por con-
seguinte, ainda consoante autora citada:
[...] a destinao dos bens que se mostram essenciais manuten-

o da dignidade de terceiros no deve ser inteiramente submetida
autonomia privada: fixar sua destinao ou funo no deve ser
tarefa exclusiva de seus titulares.
Cumpre ressaltar que apenas com a anlise da destinao (ou fun-
o) de um bem em um vnculo concreto que se poder avaliar se
a funo social da propriedade sobre o mesmo est sendo plena-
mente atendida. Em linhas gerais, diante da essencialidade de um
bem, o seu titular no poder atribuir-lhe uma destinao que con-
trarie a funo social do mesmo.57
Com efeito, vale ressaltar as lies de Pietro Perlingieri quanto

s situaes jurdicas patrimoniais, no sentido de que estas, quando
instrumentos de concretizao de uma vida digna e do pleno desenvol-
vimento da pessoa, na medida em que permitam a libertao de suas
necessidades, assumem papel de valores.58
55
MAURO E SILVA, Roberta. A dignidade das pessoas doentes: sade e medicamentos luz do
direito civil-constitucional. Dissertao de Mestrado. Rio de Janeiro: UERJ, 2004, p. 112.
(mimeo).
56
direito civil-constitucional. Dissertao de Mestrado. Rio de Janeiro: UERJ, 2004, p. 115-116.
(mimeo)
57
direito civil-constitucional. Dissertao de Mestrado. Rio de Janeiro: UERJ, 2004, p. 116.
(mimeo)
58
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 32.
Ao se aplicar as ponderaes acima na esfera do Direito Suces-
srio, tem-se que, quando um bem integrante do acervo hereditrio
serve ao herdeiro como sua moradia ou como local ou instrumento
para o exerccio de sua profisso, sendo-lhe, portanto, essencial e
necessrio para a concretizao de sua dignidade, dever ser atribudo
in natura ao aludido sucessor, estando, em regra, subtrado de outros
destinos que lhe poderiam ser conferidos pela autonomia privada tes-
tamentria. O mesmo se diga quando o sucessor no utilizava o bem
antes da abertura da sucesso, porm aquele que rene as qualidades
para lhe dar a melhor destinao, por fora de suas necessidades espe-
cficas, aliadas sua formao profissional.
Desse modo, atribuir o bem integrante do acervo hereditrio
ao sucessor que rene as qualidades para lhe dar o melhor destino,
na linha da funo promocional do direito, medida que promove os
objetivos constitucionais, ou seja, medida que estimula o exerccio
da propriedade pelo herdeiro em atendimento s necessidades sociais,
exatamente como preconiza o projeto constitucional, por fora da con-
cepo da propriedade como fonte de deveres fundamentais, ou seja,
como instrumento para atendimento das necessidades sociais.59
Note-se que o resultado acima indicado no significa violao
aos valores das quotas dos sucessores, pois, se o bem objeto da atri-
buio preferencial in natura exceder o valor da cota do herdeiro que
o recebe, dever este repor em dinheiro o excesso, sendo certo que os
demais herdeiros tero uma garantia quanto ao recebimento da aludida
torna, a partir da hipoteca legal (Cdigo Civil, art.1.489, IV), quando se
tratar de adjudicao de imvel.
Quando estivermos diante de herdeiros facultativos, ser pre-
ciso ter maior cautela na anlise do aludido conflito entre a autonomia
privada testamentria e interesses relevantes segundo a tbua axiol-
gica prevista na Constituio Federal. Nesses casos, o mesmo racioc-
nio indicado acima poder ser alcanado quando o sucessor j utilizava
o bem no momento da abertura da sucesso para a sua moradia e/ou
exerccio profissional, pois, nestes casos, pode-se dizer que o autor da
herana, durante a sua vida, foi o responsvel pelo nascimento do vn-
culo entre o herdeiro e o bem integrante do acervo hereditrio, tor-
nando relevante a expectativa quanto ao recebimento de tal bem, por
fora da transmisso causa mortis.
O pargrafo nico do art. 647 do Cdigo de Processo Civil parece
reforar os interesses e vnculos relevantes dos herdeiros em relao
aos bens da herana, uma vez que no excepciona a hiptese em que o
Comparato, Fbio Konder. Direitos e Deveres fundamentais em matria de propriedade.

59
Revista do Ministrio Pblico, v. 4, n. 7, p. 80, jan./jun. 1998.
bem referido no aludido dispositivo esteja contemplado em disposio
testamentria.
Assim, conclui-se que a tutela de evidncia prevista na citada
disposio legal poder ser invocada mesmo contra eventual clu-
sula testamentria, j que na escala de valores sero mais relevantes
os vnculos especficos e qualificados do herdeiro com o bem, sendo
preciso que a deciso judicial que a conceda esteja fundamentada nos
aludidos vnculos, que devero estar devidamente comprovados pelo
interessado.
7O QUINHO DO NASCITURO
Conforme preceitua o art. 1.798 do Cdigo Civil, legitimam-se a

suceder as pessoas vivas ou as j concebidas por ocasio da abertura
da sucesso. preciso, portanto, que o sucessor coexista com o autor
da herana para que esteja legitimado a suceder, ainda que por fra-
es de segundo, sendo admitida a proteo dos direitos sucessrios
do nascituro.
Com efeito, o art. 2 do Cdigo Civil estabelece que a personali-
dade civil inicia-se com o nascimento com vida, mas a lei pe a salvo
os direitos do nascituro, ou seja, aquele que se encontra no ventre
materno.
Em primeiro lugar, como nos alerta Gustavo Tepedino, a perso-
nalidade pode ser entendida sob dois pontos de vista: sob o ponto de
vista dos atributos da pessoa humana, que a habilita a ser sujeito de
direito, tem-se a personalidade como capacidade, indicando a titula-
ridade das relaes jurdicas, j sob outro ponto de vista, a personali-
dade tomada como conjunto de caractersticas e atributos da pessoa
humana, considerada como objeto de proteo, por parte do ordena-
mento jurdico, sendo considerada como valor, a partir dos atributos
inerentes ao ser humano, ou seja, bens jurdicos em si mesmos, dignos
de tutela privilegiada.60
Para a anlise da legitimao para suceder mortis causa, toma-
-se o termo personalidade em seu aspecto estrutural, ou seja, na prer-
rogativa da pessoa em ser sujeito de direitos, estando o disposto no art.
1.798 do Cdigo Civil em consonncia com a proteo geral dos direitos
do nascituro prevista no j citado art. 2 do mesmo diploma legal.
A personalidade jurdica do nascituro objeto de muitas discus-
ses doutrinrias. Para a corrente natalista, o nascituro no tem per-
sonalidade jurdica, s adquirindo esta ao nascer com vida, possuindo
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 29.
60
apenas expectativas de direitos. J a teoria concepcionista, ao con-
trrio, sustenta que o nascituro dotado de personalidade jurdica,
sendo desde logo titular de direitos.61 Entre as referidas teorias, h,
ainda, a teoria da personalidade jurdica condicional, que aquela que
preconiza que a aquisio da personalidade ocorre com a concepo,
estando esta condicionada ao nascimento com vida.
A divergncia no afasta a constatao quanto atribuio de
direitos ao nascituro, como, por exemplo, aquele que lhe assegura ser
reconhecido (Cdigo Civil, art. 1.609, pargrafo nico), o direito de ter
um curador quando o pai falece estando a mulher grvida desprovida
do poder familiar (Cdigo Civil, art. 1.779), o direito de ser donatrio
(Cdigo Civil, art. 542), valendo mencionar, ainda, os alimentos gravdi-
cos (Lei 11.804/2008).
Os direitos relativos aos atributos inerentes vida e, portanto,
ligados personalidade como valor e dignidade da pessoa humana
61
Na jurisprudncia, vale citar: DIREITO CIVIL. INDENIZAO REFERENTE AO SEGURO
DPVAT EM DECORRNCIA DE MORTE DE NASCITURO. A beneficiria legal de seguro DPVAT,
que teve a sua gestao interrompida em razo de acidente de trnsito tem direito ao recebi-
mento da indenizao prevista no art. 3, I, da Lei 6.194/1974, devida no caso de morte. O art.
2 do CC, ao afirmar que a personalidade civil da pessoa comea com o nascimento, logica-
mente abraa uma premissa insofismvel: a de que personalidade civil e pessoa no cami-
nham umbilicalmente juntas. Isso porque, pela construo legal, apenas em um dado
momento da existncia da pessoa que se tem por iniciada sua personalidade jurdica, qual
seja, o nascimento. Conclui-se, dessa maneira, que, antes disso, embora no se possa falar em
personalidade jurdica segundo o rigor da literalidade do preceito legal , possvel, sim,
falar-se em pessoa. Caso contrrio, no se vislumbraria qualquer sentido lgico na frmula a
personalidade civil da pessoa comea, se ambas pessoa e personalidade civil tivessem
como comeo o mesmo acontecimento. Com efeito, quando a lei pretendeu estabelecer a
existncia da pessoa, o fez expressamente. o caso do art. 6 do CC, o qual afirma que a
existncia da pessoa natural termina com a morte, e do art. 45, caput, da mesma lei, segundo
o qual Comea a existncia legal das pessoas jurdicas de direito privado com a inscrio do
ato constitutivo no respectivo registro. Essa circunstncia torna eloquente o silncio da lei
quanto existncia da pessoa natural. Se, por um lado, no h uma afirmao expressa
sobre quando ela se inicia, por outro lado, no se pode consider-la iniciada to somente com
o nascimento com vida. Ademais, do direito penal que a condio de pessoa viva do nasci-
turo embora no nascida afirmada sem a menor cerimnia. que o crime de aborto
(arts. 124 a 127 do CP) sempre esteve alocado no ttulo referente a crimes contra a pessoa e
especificamente no captulo dos crimes contra a vida. Assim, o ordenamento jurdico como
um todo (e no apenas o CC) alinhou-se mais teoria concepcionista para a qual a persona-
lidade jurdica se inicia com a concepo, muito embora alguns direitos s possam ser plena-
mente exercitveis com o nascimento, haja vista que o nascituro pessoa e, portanto, sujeito
de direitos para a construo da situao jurdica do nascituro, concluso enfatica-
mentesufragada pela majoritria doutrina contempornea. Alm disso, apesar de existir con-
cepo mais restritiva sobre os direitos do nascituro, amparada pelas teorias natalista e da
personalidade condicional, atualmente h de se reconhecer a titularidade de direitos da per-
sonalidade ao nascituro, dos quais o direito vida o mais importante, uma vez que, garantir
ao nascituro expectativas de direitos, ou mesmo direitos condicionados ao nascimento, s faz
sentido se lhe for garantido tambm o direito de nascer, o direito vida, que direito pressu-
posto a todos os demais. Portanto, o aborto causado pelo acidente de trnsito subsume-se ao
comando normativo do art. 3 da Lei 6.194/1974, haja vista que outra coisa no ocorreu, seno
a morte do nascituro, ou o perecimento de uma vida intrauterina. (REsp 1.415.727-SC, Rel. Min.
Luis Felipe Salomo, julgado em 4.9.2014).
so indiscutivelmente atribudos ao nascituro, sendo certo que os
direitos de cunho patrimonial, tanto para a teoria natalista como para
aquela concepcionista, s sero exercidos uma vez ocorrendo o nasci-
mento com vida.
Assim, bem assinala Luiz Paulo Vieira de Carvalho, ao assentar
que, para qualquer das correntes, de suma importncia o nascimento
com vida, pois o agora nascido recebe seu direito subjetivo sucess-
rio, na opinio da corrente natalista, o confirma na opinio da corrente
concepcionista, ou o implementa, na opinio da corrente condiciona-
lista (arts. 2 e 1.784 do Cdigo Civil).62 Em suma, mesmo para a cor-
rente concepcionista, os direitos de cunho patrimonial dependem do
nascimento com vida, nestes includos os direitos hereditrios.
Desse modo, se nascer com vida, ter o nascituro seu direito
sucessrio confirmado e se falecer logo aps seu nascimento com vida
ou seja, logo aps o primeiro respiro transferir a herana recebida
para seus sucessores. Ao nascer com vida, adquire a propriedade e a
posse da herana como se j fosse nato desde o momento da abertura
da sucesso,63 havendo, portanto, um efeito retroativo em relao
aquisio sucessria. Ao contrrio, se nascer sem vida, deve ser consi-
derado como se nunca tivesse existido, sendo os bens que lhe caberiam
distribudos entre os sucessores legtimos do autor da herana ou atri-
budos a eventual sucessor nomeado em testamento.64
luz da legislao processual de 1973, h a regulamentao do
procedimento intitulado Da Posse em Nome do Nascituro, discipli-
nado no ttulo das medidas cautelares, nos arts. 877 e 878 do referido
diploma legal. Trata-se de procedimento que tem por objetivo pro-
teger os direitos do nascituro, no mbito do qual provado o estado
de gravidez da mulher, investindo-a, assim, na posse dos direitos que
assistam ao primeiro. Se requerente no couber o exerccio do poder
familiar, o juiz nomear curador ao nascituro.
O 1 do art. 877 prev que o requerimento ser instrudo
com a certido de bito da pessoa de quem o nascituro sucessor,
62
63
PEREIRA, Caio Mrio da Silva. Instituies de direito civil. Atualizada por Carlos Roberto
Barbosa Moreira. 22. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2015, v. VI, p. 25.
64
De acordo com Carlos Maximiliano, Quanto ao herdeiro imediato, eventual, herdeiro em
segundo lugar, basta que ainda exista e j exista quando o de cujus falecer; no necessrio
dar-se o mesmo por ocasio do bito do que deveria suceder em primeiro lugar, ou do nasci-
mento deste sem vida. (MAXIMILIANO, Carlos. Direito das sucesses. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1937, v. 2, p. 145). Caso especial mencionado por Caio Mrio da Silva Pereira, quando
a me falece durante o trabalho de parto e o filho retirado das entranhas da me falecida.
No se nega ao filho legitimao para suceder, embora no haja coexistido com a sua me.
(PEREIRA, Caio Mrio da Silva. Instituies de direito civil. Atualizada por Carlos Roberto
Barbosa Moreira. 22. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2015, v. VI, p. 26).
demonstrando a sua precpua finalidade nas hipteses de sucesso
hereditria na qual o nascituro sucessor, se nascer com vida, sendo
legitimados passivos para esta demanda os demais herdeiros que con-
corram com o nascituro.
Em que pese tal constatao, o legislador processual previu que,
a partir de dito procedimento, a mulher grvida ser investida nos
direitos do nascituro, admitindo que o procedimento possa ter reper-
cusso mais ampla. Com apoio em Pontes de Miranda e Humberto The-
odoro Jnior, Ovdio A. Baptista da Silva cita a possibilidade de imisso
na posse de direitos do nascituro que provenham de doao, hiptese
em que o legitimado passivo para a ao ser o doador, aduzindo que
o sentido da locuo permitir que a me, ou algum que haja obtido
essa posse defenda a pessoa e os bens que havero de caber ao nasci-
turo que nascer com vida.65
O Cdigo de Processo Civil de 2015 no disciplinou a Posse em
Nome do Nascituro. Segundo Nelson Nery Junior e Rosa Maria de
Andrade Nery, a justificativa para tanto est em que, nos tempos atu-
ais, se admite que a gestante postule em nome do nascituro sem que
haja sentena investindo-a na posse em nome daquele, invocando,
ainda, a tecnologia muito mais avanada quanto ao estabelecimento da
paternidade, em comparao com os mtodos ento existentes na oca-
sio da entrada em vigor do Cdigo de Processo Civil de 1973.66
Segundo o diploma processual de 2015, se um dos interessados
na sucesso hereditria for nascituro, o quinho que lhe caber ser
reservado em poder do inventariante at o seu nascimento, consoante
a redao de seu art. 650. Desse modo, o legislador j prev a reserva
de bens para o nascituro, sem necessidade de a mulher grvida ajuizar
procedimento especfico prvio para tal pleito.
Poder-se-ia ponderar que melhor seria ter o legislador previsto a
atribuio do aludido quinho genitora do nascituro, de forma inclu-
sive a propiciar que o nascituro pudesse se beneficiar dos frutos e ren-
dimentos dos bens componentes do aludido quinho.
Parece que nesse ponto o legislador priorizou a coeso da
herana para a hiptese de o nascituro nascer sem vida, j que, em
poder do inventariante, a conversao do quinho do nascituro, bem
como o recolhimento de seus frutos e rendimentos, ficar a cargo do
representante do esplio, sem contar que essa opo, para os demais
65
SILVA, Ovdio A. Baptista da. Curso de processo civil. 4. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2007, v.
2, p. 338/339.
66
Civil. 2. tir. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 1.470.
interessados na sucesso, mais segura quando h dvidas quanto
paternidade.
Desse modo, se nascer com vida, ao nascituro ser entregue os
bens da herana com todos os frutos percebidos desde a abertura da
sucesso. Na hiptese contrria, ditos bens e seus frutos cabero aos
herdeiros legtimos ou eventuais substitutos testamentrios, evitando-
-se o risco de sua deteriorao e da dificuldade na devoluo de seus
rendimentos.
Na escala de valores, talvez devessem ser privilegiados os inte-
resses do nascituro, ainda mais quando a paternidade incontestvel.
No entanto, diante da Lei 11.804/2008, que disciplina os alimentos gra-
vdicos, parece que eventuais distores sero sanadas com a possibi-
lidade de a mulher grvida exigir do esplio alimentos nos termos da
referida lei.
Por fim, importante registrar eventual conflito entre o art. 650
do Cdigo de Processo Civil de 2015 em exame e o disposto no art.
1.800, 1 do Cdigo Civil, uma vez que, este ltimo, estabelece que o
quinho destinado prole eventual beneficiada pelo testador (Cdigo
Civil, art. 1.799, I) ser confiado a curador nomeado pelo juiz, sendo
este, salvo estipulao em contrrio, o genitor cujo filho o testador
esperava ter por herdeiro.
Inicialmente, preciso diferenciar as hipteses, j que a disposi-
o em favor da prole eventual prev a hiptese de o testador nomear
como beneficirio no testamento pessoa que sequer foi concebida, no
sendo, portanto, um nascituro. No entanto, se dita prole beneficiada
no testamento j estiver concebida por ocasio da abertura da suces-
so, mas ainda no nascida, sendo, portanto, um nascituro, realmente,
o conflito existir e, ento, assiste razo a Nelson Nery e Rosa Maria de
Andrade Nery, ao asseverar que o ofcio do inventariante cessa ao fim
do inventrio, quando, ento, dever ser nomeado o curador indicado
no j citado art. 1.800 do Cdigo Civil.67
8A CELERIDADE DO INVENTRIO E A EXISTNCIA DE HERDEIROS

INCAPAZES
Sem dvida, a celeridade da prestao jurisdicional um obje-

tivo a ser alcanado, razo pela qual o legislador prev a reduo das
solenidades e atos do inventrio quando as partes so maiores e capa-
zes e h acordo em relao partilha dos bens, disciplinando, assim, o
67
Civil. 2. tir. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 1470/1471.
rito do arrolamento sumrio e aquele do arrolamento comum quando
o valor dos bens no ultrapassa determinado limite legal.
Na vida forense, recorrente o clamor pela celeridade de inven-
trios em que h herdeiros incapazes, que na maioria das vezes sofrem
muito mais com a delonga na tramitao dos feitos. A tentativa de pro-
teg-los com a interferncia estatal na avaliao dos bens, clculo do
imposto e partilha acaba, muitas vezes, prejudicando-os com a demora
natural da concretizao de todos esses atos.
Nessa esteira e sensvel problemtica, o Cdigo de Processo
Civil de 2015 autorizou de forma expressa, em seu art. 665, que sejam
processados na forma do citado art. 664, ou seja, por meio do arrola-
mento comum, procedimento mais simples quando os bens do esp-
lio no ultrapassam 1.000 (mil) salrios mnimos, os inventrios com
herdeiros incapazes, desde que concordem as partes e o Ministrio
Pblico.
luz da normativa do Cdigo de Processo Civil de 1973, a ques-
to debatida na doutrina e na jurisprudncia, ao argumento de que o
procedimento do inventrio por arrolamento comum depende apenas
do valor do acervo hereditrio, que deve observar o limite disposto no
art. 1.036 do referido diploma legal, no importando se existem ou no
herdeiros incapazes.
Nesse sentido, vale citar Paulo Csar Pinheiro Carneiro, que aduz
que incidir tambm o arrolamento comum quando uma das partes for
incapaz, apoiado em decises judiciais,68 bem como Sebastio Amorim
e Euclides de Oliveira, que esclarecem que o arrolamento comum est
68
Janeiro: Forense, 2006, v. IX, t. I, p. 225. Na jurisprudncia, vale citar Agravo de Instrumento.
Inventrio por arrolamento. Deciso interlocutria que determinou a adequao do pedido
para o rito ordinrio face existncia de incapaz interessado (art. 1.031 do CPC). O Cdigo de
Processo Civil prev duas modalidades de arrolamento: a primeira, prevista no artigo 1.031 a
1.035 (arrolamento sumrio), com as modificaes trazidas pela Lei 7.019/82, exige que todas
as partes interessadas na partilha amigvel sejam maiores e capazes; a segunda, consubstan-
ciada no artigo 1.036 (arrolamento comum), decorre to somente do valor atribudo aos bens
do esplio, haja ou no incapazes O valor do acervo hereditrio inferior quantia fixada pela
lei. Recurso a que se d provimento na forma do art. 557,1-A, do Cdigo de Processo Civil,
para manter o inventrio por arrolamento, nos termos do artigo 1.036 do mesmo diploma.
(TJRJ, Agravo de Instrumento n. 0000476-29.2006.8.19.0000, 7 Cmara Cvel, Rel. Maria
Henriqueta Lobo), AGRAVO DE INSTRUMENTO. O CHAMADOARROLAMENTO COMUM,
REGULADO NO ARTIGO 1036 ADMISSVEL SEJAM OU NO CAPAZES OS HERDEIROS,
QUANDO O VALOR DOS BENS DA HERANA FOR IGUAL OU INFERIOR, NA DICO DA LEI, A
2000 OTNS. PROVIMENTO DO RECURSO. (TJRJ, Agravo de Instrumento n. 0035323-
96.2002.8.19.0000 (2002.002.15691), 8 CC, Rel. Des. Odete Knaack de Souza, julgado em
15.04.2003) e Arrolamento. Incapaz. Ainda que incapaz o herdeiro, o inventario deve proces-
sar-se na forma dearrolamento,desde que o valor dos bens do espolio seja inferior a 2000
OTNs. Inteligncia do artigo 1.036 do Cdigo de Processo Civil. Provimento do recurso. (TJRJ,
Agravo de Instrumento n. 0010071-04.1996.8.19.0000 (1996.002.01597), 5 CC, Rel. Des. Carlos
Ferrari, julgado em 01.10.1996).
fundado no valor reduzido da herana, assinalando que sua adoo
de natureza cogente, ainda que no representados todos os herdeiros,
e mesmo que haja ausentes e incapazes, ou testamento, hipteses em
que intervir o Ministrio Pblico.69
De maneira extraordinria possvel encontrar na jurisprudn-
cia nacional casos em que foi admitida a adoo do rito do arrolamento
sumrio mesmo na presena de herdeiros incapazes70 ou situaes
que, apesar do rito ordinrio, depreendem-se do pronunciamento judi-
cial que algumas das solenidades poderiam ser mitigadas excepcional-
mente, de forma a priorizar a agilidade do feito.71
Embora sustente que no h interesse-necessidade para o
inventrio judicial quando todos os interessados na sucesso so maio-
res e capazes, ou quando h apenas um nico herdeiro capaz, em
virtude de, nesse caso, ser imperioso o recurso ao inventrio extraju-
dicial e, portanto, neste ponto afastado da doutrina e jurisprudncia
69
AMORIM, Sebastio; OLIVEIRA, Euclides de. Inventrios e partilhas. 14. ed., So Paulo:
Livraria e Editora Universitria de Direito, 2001, p. 325.
70
Inventrio. Filha menor. nica herdeira. Adjudicao dos bens. Se o finado deixou um nico
herdeiro, ainda que menor, pode o inventrio de seus bens se processar pela forma do arrola-
mento, prevista nos artigos 1.031 e seguintes do CPC com a redao dada pela Lei n. 7.019, de
31.8.82, uma vez protegido o interesse da menor com a interveno do rgo ministerial. A
forma de transmisso que mais atende aos interesses da menor e a adjudicao dos bens ao
herdeiro nico menor. Provimento do agravo. (TJRJ, Agravo de Instrumento n. 0021752-
97.1998.8.19.0000 (1998.002.07898), 16 CC, Rel. Des. Paulo Gustavo Horta, julgado em
01.06.1999) e AGRAVO DE INSTRUMENTO - PROCESSO JUDICIAL DE INVENTRIO - DECI-
SO DE CONVERSO DE INVENTRIO TRADICIONAL EM ARROLAMENTO - INTERLOCU-
TRIA QUE NO OFENDE A LEI PROCESSUAL POR TER SIDO NOMEADO CURADOR DO
HERDEIRO INCAPAZ - DESCONSIDERAO DO TETO PREVISTO NO ARTIGO 1.036, DO
CPC, QUE MANTM VALOR DESATUALIZADO - POSSIBILIDADE DE INTERVENO DO
MINISTRIO PBLICO PELO ARTIGO 82, I, DO CPC - SIMPLIFICAO DO PROCEDIMENTO,
PARA QUE SE POSSA OBTER O MAIOR RESULTADO COM O MNIMO DE EMPREGO DE ATI-
VIDADE PROCESSUAL. (Agravo de Instrumento n. 0436/2004, 6 Vara Cvel, Tribunal de Jus-
tia do Estado de Sergipe, Des. Jos Alves Neto, Relator, Julgado em 15.02.2005).
71
AGRAVO DE INSTRUMENTO. SUCESSES. INVENTRIO. PEDIDO DE ALIENAO DE IM-
VEL OBJETO DO INVENTRIO. EXISTNCIA DE HERDEIRO MENOR DE IDADE. NECESSI-
DADE DE AVALIAO JUDICIAL DO BEM. PRESERVAO DOS INTERESSES DO HERDEIRO
INCAPAZ. APLICAO DO ART. 1.007 DO CPC. 1. A teor do disposto nos art. 1.003 e 1.007 do
Cdigo de Processo Civil, a existncia de herdeiro incapaz, em regra, torna necessria a reali-
zao de avaliao judicial dos bens que compem o esplio, a fim de que sejam preservados
seus interesses no tocante apurao do valor quantitativo da herana, para que haja uma
igualitria e correta distribuio dos quinhes. A dispensa de tal providncia somente se
autoriza quando restar demonstrada a inexistncia de prejuzo ao incapaz com a supresso da
avaliao feita pelo perito. 2. Na espcie, considerando que o valor de avaliao servir de
parmetro mnimo para a alienao de imvel objeto do inventrio e que a herdeira incapaz
discorda do valor apontado pela Fazenda Pblica, indispensvel a realizao da avaliao
judicial, sobretudo para fins de resguardo dos interesses da incapaz, at mesmo porque a
avaliao fiscal de imvel sabidamente possui critrios distintos da avaliao de mercado.
DERAM PROVIMENTO. UNNIME. (Agravo de Instrumento n. 70059575324, Oitava Cmara
Cvel, Tribunal de Justia do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 25.09.2014)
(TJ-RS - AI: 70059575324 RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Data de Julgamento: 25.09.2014,
Oitava Cmara Cvel, Data de Publicao: Dirio da Justia do dia 30.09.2014).
dominantes, Alexandre de Freitas Cmara defende o procedimento do
arrolamento sumrio, ou seja, independentemente do valor do monte,
quando h apenas um herdeiro, ainda que seja incapaz.72
De fato, diante da questo em exame, parece que o Cdigo de
Processo Civil de 2015 foi tmido, porque a existncia de herdeiros
incapazes no deveria obstaculizar o processamento do inventrio
pelo rito do arrolamento sumrio, quando h apenas um nico her-
deiro, bem como quando o monte composto apenas por dinheiro,
no havendo nenhuma questo complexa a ser dirimida, salvo a diviso
aritmtica entre os sucessores, mantendo-se a garantia da atuao do
Ministrio Pblico para resguardar os interesses dos incapazes.
Do mesmo modo, o arrolamento sumrio deveria ser permitido
mesmo quando houver sucessores incapazes, quando restar cabal-
mente comprovado que a partilha apresentada no traz qualquer pre-
juzo ao menor ou incapaz, ainda que nesse ltimo caso fosse verificada
a posteriori do incio do processo a possibilidade de sua tramitao
pelo rito mais clere. Realmente, parece que essa seria a opo legisla-
tiva que estaria em melhor consonncia com a proteo do incapaz, de
forma a garantir-lhe um inventrio mais gil e efetivo.
9A CUMULAO DE INVENTRIOS
Ainda em ateno celeridade dos processos de inventrio, bem

como simplificao dos procedimentos e economia processual, o
legislador prev determinadas hipteses em que possvel a cumula-
o de inventrios, quando, evidentemente, ainda no ocorreu o tr-
mino do inventrio daquele que foi pr-morto.
No Cdigo de Processo Civil de 1973, a cumulao de inventrios
admitida quando falece o cnjuge meeiro suprstite antes da parti-
lha dos bens do consorte pr-morto, desde que os herdeiros de ambos
sejam os mesmos, havendo ou no bens diversos a inventariar (Cdigo
de Processo Civil de 1973, art. 1.043),73 bem como quando ocorre a
morte de algum dos herdeiros, no curso do inventrio, desde que dito
herdeiro no possua outros bens a inventariar alm de seu quinho na
herana (Cdigo de Processo Civil de 1973, art. 1.044).
72
Cmara, Alexandre de Freitas. Lies de direito processual civil. 21. ed. So Paulo: Atlas,
2014, v. 3, p. 494.
73
Inventrio. Art. 1.043 do Cdigo de Processo Civil. Dissdio. 1. O art. 1.043 do Cdigo de Pro-
cesso Civil prescreve que as duas heranas sero cumulativamente inventariadas e partilha-
das, se os herdeiros de ambos forem os mesmos, sendo este, portanto, o nico requisito legal
para a reunio dos inventrios, no repercutindo para esse efeito a existncia de bens diver-
sos. 2. Sem a devida demonstrao da divergncia com o Acrdo recorrido, o especial pelo
dissdio invivel. 3. Recurso especial no conhecido. (STJ, REsp 311506/AL, 3 T. Rel. Min.
Carlos Alberto Menezes Direito, julgado em 18.06.2002).
A prtica forense, no entanto, demonstra que a cumulao de
inventrios seria salutar e bem-vinda em outras hipteses, exatamente
em virtude da celeridade e da economia processual. o que ocorre,
por exemplo, quando h identidade quanto ao bem a ser inventariado,
em especial quando os sucessores so os mesmos.
luz dos dispositivos citados do Cdigo de Processo Civil de
1973, a jurisprudncia majoritria se posiciona no sentido de que as
hipteses de cumulao de inventrio so taxativas, no sendo admi-
tida uma interpretao extensiva ou analgica.74 No entanto, podem
ser citados precedentes em que a cumulao foi admitida, apesar de a
hiptese no estar enquadrada nos citados dispositivos da Legislao
Processual de 1973, exatamente porque no caso concreto, a cumula-
o demonstrou ser providncia em clara sintonia com os princpios da
celeridade e da economia processual.
Assim ocorreu, por exemplo, com deciso proferida pelo Tribu-
nal de Justia do Estado de So Paulo, na qual foi admitida a cumulao
de inventrio de esposa e genitora do Agravante, em virtude de ambas
terem deixado apenas um nico imvel a inventariar. No caso, faleceu
a esposa do Agravante e, posteriormente, sua genitora, sendo certo
que ambas deixaram o mesmo nico imvel a inventariar. A esposa do
Agravante deixou duas filhas advindas de seu casamento, enquanto que
sua genitora tinha apenas um nico herdeiro, seu filho, o Agravante
e marido da outra proprietria falecida do imvel. O Tribunal enten-
deu que, em se tratando de um s bem, concorrendo pai e filhas na
partilha, em prol da convenincia, melhor que sigam conjuntamente os
inventrios, pois a tramitao em separado poder tumultuar a admi-
nistrao desse nico imvel.75
Realmente, havendo identidade quanto aos bens a inventa-
riar, ainda que os falecidos tenham deixado sucessores diversos, a
74
A ttulo de exemplo, vale citar: INVENTRIO. PEDIDO PARA PROCESSAMENTO CONJUNTO
DA SUCESSO DE VRIOS DE CUJUS SEM SUCESSORES COMUNS. INADMISSIBILIDADE.
EXCEPCIONALIDADE DO INVENTRIO CONJUNTO QUE SOMENTE SE JUSTIFICA NAS
SITUAES EXPRESSAMENTE PREVISTAS EM LEI, AUSENTES NA HIPTESE DOS AUTOS.
INTELIGNCIA DOS ARTS. 1.043 E 1.044 DO CPC. IRRELEVNCIA DA EXISTNCIA DE BEM
IMVEL COMUM. DECISO MANTIDA. RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. (TJ-SP - AI:
01113963120138260000 SP 0111396-31.2013.8.26.0000, Relator: Vito Guglielmi, Data de Julga-
mento: 08/08/2013, 6 Cmara de Direito Privado, Data de Publicao: 13.08.2013).
75
AGRAVO DE INSTRUMENTO Inventrio Indeferimento do processamento conjunto de
dois inventrios, por no se subsumir ao quanto disposto no artigo 1043 do Cdigo de Pro-
cesso Civil. Inconformismo do agravante Autorizao do processamento conjunto, in casu,
em se tratando de um nico bem a ser partilhado entre o agravante e suas duas filhas
Observncia da comodidade e convenincia. Expedio de alvar para venda desse imvel
que no foi apreciado pelo juzo, que dever faz-lo, com primazia, sob pena de supresso de
um grau de jurisdio Deciso reformada Recurso provido na parte em que conhecido.
(TJSP, Agravo de Instrumento n. 2038471-32.2015.8.26.0000, 2 Cmara de Direito Privado,
Rel. Jos Joaquim dos Santos, julgado em 02.06.2015).
cumulao mostra-se conveniente,76 para evitar conflitos na adminis-
trao do acervo hereditrio, j que a reunio de inventrios pressupe
a existncia de um nico inventariante para as sucesses cumuladas,
bem como para facilitar a regularizao da transferncia dos bens do
monte.
O Cdigo de Processo Civil de 2015, atento convenincia da
cumulao de inventrios, previu em seu art. 672 a licitude da reunio
de inventrios para a partilha de heranas de pessoas diversas quando
houver identidade de sucessores entre os quais devem ser repartidos
os bens (inciso I), quando houver heranas deixadas pelos dois cnju-
ges ou companheiros (inciso II) e, ainda, quando houver dependncia
de uma das partilhas em relao outra, prevendo no pargrafo nico
do aludido dispositivo que neste ltimo caso, se a dependncia for par-
cial, o juiz pode ordenar a tramitao em separado dos inventrios, se
melhor convier ao interesse das partes ou celeridade processual.
Em seu primeiro inciso, o legislador no foi claro quanto exi-
gncia de haver tambm a identidade dos bens a inventariar, exign-
cia esta apenas para os sucessores. Assim, em prol dos princpios que
a cumulao de inventrios realiza, to caros na vida forense, no se
deve adotar uma interpretao restritiva, sendo lcita a cumulao,
portanto, quando os sucessores sejam os mesmos, ainda que os bens
dos falecidos sejam diferentes.
A cumulao de inventrios de pessoas casadas ou que vivam em
unio estvel sempre conveniente. Vale notar que, mais uma vez, o
legislador de 2015 no enrijeceu a previso legal, ao no exigir que o
regime de bens do casamento ou da unio estvel seja aquele da comu-
nho. A ideia facilitar a transmisso da herana no seio da famlia,
sendo certo que extremamente comum a identidade de herdeiros
entre pessoas casadas ou que vivam em unio estvel, bem como a
identidade de bens ou mesmo os vnculos entre os mesmos.
76
APELAO CVEL. AO DE INVENTRIO. POSSE DE BEM IMVEL. TRANSMISSO AOS
HERDEIROS. POSSIBILIDADE. CUMULAO DE INVENTRIOS. COMPOSSE. ADMINISSIBI-
LIDADE. INTERESSE DE AGIR PRESENTE. RECURSO PROVIDO. 1. O interesse de agir consiste
na imprescindibilidade de o autor vir a juzo para que o Estado decida a controvrsia existente
entre as partes e, ainda, na utilidade que o provimento jurisdicional poder proporcionar a
elas. 2. O art. 1.206 do Cdigo Civil de 2002, estabelece que a posse pode ser transmitida aos
herdeiros ou legatrios do possuidor, com todas as suas caractersticas. 3. Logo, pode haver a
transmisso aos herdeiros da posse de imvel que est sendo objeto de ao de usucapio. 4.
O art. 1.043 do CPC dispe que a reunio de inventrios s possvel se os herdeiros de ambos
os falecidos forem os mesmos. 5. Todavia, sendo os falecidos compossuidores do imvel, cuja
posse se pretende inventariar, perfeitamente admissvel a cumulao dos inventrios. 6.
Apelao cvel conhecida e provida, para determinar o prosseguimento do inventrio. (TJ-
MG, Relator: Caetano Levi Lopes, Data de Julgamento: 11.08.2015, Cmaras Cveis / 2 Cmara
Cvel) e Inventrio. Cumulao de sucesses no mesmo procedimento. Herdeiros diversos.
Bem nico objeto da herana. Possibilidade de aplicao do art. 1043 do CPC. Observncia aos
princpios da celeridade e economia processuais. Recurso provido. (TJ-SP, Relator: Caetano
Lagrasta, Data de Julgamento: 17.03.2010, 8 Cmara de Direito Privado).
Por fim, a ltima hiptese prevista para a cumulao foi a depen-
dncia de uma das partilhas em relao outra. A disposio ampla
e pode comportar casos diversos que sejam submetidos ao Judicirio.
Um exemplo pode ser extrado da hiptese de haver uma cadeia de
sucesses quanto ao mesmo acervo hereditrio.
O dispositivo em exame no previu a possibilidade de cumula-
o de inventrios quando as heranas deixadas recaem sobre os mes-
mos bens, embora em pores diversas desses ltimos, no havendo
identidade de sucessores. Um exemplo seria a hiptese de dois irmos
que sejam condminos do mesmo acervo hereditrio, deixando, no
entanto, herdeiros diversos. Nesse caso, como assinalado acima, seria
salutar a cumulao, para propiciar a mesma administrao quanto aos
bens, evitando conflitos entre os sucessores.
Parece que, mais uma vez, ser preciso contar com a atuao do
Judicirio para autorizar casos de cumulao de inventrios que no
estejam expressamente previstos no citado art. 672, sendo certo que,
a redao deste ltimo, em especial diante de seu pargrafo nico,
demonstra o critrio da discricionariedade do juiz em relao mat-
ria em exame.
10NOTAS CONCLUSIVAS
Diante do que foi exposto, verifica-se que o Cdigo de Processo

Civil de 2015 trouxe inovaes importantes para a efetividade do pro-
cesso de inventrio, ao aumentar o rol dos legitimados a exercer a
inventariana, bem como ao prever outras hipteses de cumulao de
inventrios, sem contar na atualizao do arrolamento comum, a par-
tir do estabelecimento de critrio valorativo quanto ao monte vincu-
lado ao salrio mnimo e a partir da previso expressa de que dito rito
ser aplicado para casos em que h interessado incapaz.
Alm disso, ao retomar o sistema da colao para aquele da con-
ferncia em substncia, valorando os bens doados na data da abertura
da sucesso, o novo Cdigo de Processo Civil permite uma maior efeti-
vidade do objetivo do instituto.
Sem dvida, a principal inovao do aludido Estatuto de Ritos foi a
previso da tutela de evidncia especial no mbito do inventrio, a par-
tir do disposto no pargrafo nico do art. 647, trazendo expediente que
fortalece os vnculos dos sucessores em relao aos bens da herana,
atendendo aos reclames de maior concretude sucesso hereditria,
luz da solidariedade preconizada pelo projeto constitucional.
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AS NOVAS FORMAS DE FILIAO ADVINDAS DAS TCNICAS DE
INSEMINAO ARTIFICIAL HOMLOGA POST MORTEM E AS SUAS
CONSEQUNCIAS NO DIREITO DE FAMLIA E DAS SUCESSES
Jos Roberto Moreira Filho
Diretor Nacional do IBDFAM. Mestre em Direito Privado pela

Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais.
Especialista em Biotica, Direito e Aplicaes pelo IEC PUC Minas.
Conselheiro Titular da Comisso Nacional de tica em Pesquisa
(CONEP). Professor de Direito de Famlia e Sucesses na PUC Minas,
Arnaldo Janssen e Pro Labore. Advogado militante.
Sumrio: 1. Introduo. 2. A reproduo humana assistida.

3. O tratamento jurdico sobre a inseminao artificial
homloga post mortem. 4. A presuno de filiao decor-
rente da inseminao artificial homloga post mortem no
Direito de Famlia. 5. Direitos sucessrios. 5.1 Da capaci-
dade sucessria. 5.1.1 Requisitos e pressupostos para her-
dar. 5.1.2 A capacidade sucessria do nascituro. 5.1.3 A
capacidade sucessria da prole eventual. 5.2 Os vncu-
los de filiao em face da Reproduo Humana Assistida
(RHA) homloga post mortem. 5.3 Os direitos sucess-
rios dos filhos havidos por Reproduo Humana Assistida
(RHA) homloga post mortem. 6. Concluso. 7. Referncias.
1INTRODUO
O Direito de Famlia sempre se baseou em presunes para

o estabelecimento da filiao e todas elas eram baseadas na relao
sexual havida entre o casal, primando assim pelo vnculo biolgico. A
Constituio da Repblica nos brindou, entre outros, com o princpio
do pluralismo e do livre planejamento familiar, da igualdade da filia-
o, da dignidade da pessoa humana que possibilitaram, no Direito de
Famlia, o surgimento do afeto como fundamento jurdico para o esta-
belecimento da filiao.
Outra grande mudana no cenrio familiar se deu com o advento
das novas tcnicas de reproduo humana, que possibilitaram que
casais, antes infrteis, pudessem realizar o sonho da filiao, seja por
meio de manipulao de seus prprios gametas, seja com o uso de
gametas de terceiros, modificando totalmente as bases antes slidas
das presunes de filiao.
Antigamente, a reproduo humana se dava apenas por meio de
sexo entre homem e mulher. No entanto, com o avano da cincia sur-
giram tcnicas que possibilitaram a reproduo sem sexo; a preser-
vao de embries congelados, de vulos, de espermatozoides e at
mesmo a fecundao fora do tero, conhecida como fecundao in
vitro.
Com esse cenrio, atualmente possvel a gestao post mortem.
Isto , h casais que congelam material gentico, como o smen e/ou
vulo, para que possam utilizar no futuro. No entanto, esse procedi-
mento vem sendo muito discutido no mbito jurdico, pois tem causado
vrios questionamentos nas reas de Direito de Famlia e Sucesses.
Nesse sentido, este artigo abordar a reproduo assistida, os
principais princpios do biodireito e da biotica, o tratamento jurdico
brasileiro sobre a inseminao artificial homloga post mortem e as
implicaes no Direito de Famlia e Sucesses.
2A REPRODUO HUMANA ASSISTIDA
Cotidianamente, so estudados procedimentos especficos para

casais que desejam ter filhos, mas por algum motivo no podem t-
-los pela gestao natural, sendo necessrio recorrer a determinadas
tcnicas para a realizao da maternidade ou paternidade. Vrias so
as expresses utilizadas na lei (art.1.597, CC/02) para denominar tais
tcnicas, como fecundao artificial, concepo artificial e inse-
minao artificial. No entanto, o Enunciado 105, da Jornada de Direito
Civil, do Conselho Nacional de Justia (CNJ) definiu que tais expres-
ses devem ser interpretadas como tcnica de reproduo assistida
(RA). Alguns doutrinadores acreditam que o termo mais indicado seria
manipulao de material gentico.1
Diferente do pensamento de Paulo Lbo, Dias2 concorda com
o termo proposto pelo CNJ, uma vez que so utilizadas tcnicas para
gerar vida, substituindo a concepo natural. Assim, acredita-se que
as tcnicas de reproduo assistida so tcnicas de interferncia
no processo natural, isto , a fecundao resultante de reproduo
LBO, Paulo. Direito civil: famlias. 4. ed. So Paulo: Saraiva, 2011, p. 219.
1
2
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famlias. 8. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais,
2011, p. 366.
medicamente assistida utilizada em substituio concepo natu-
ral, quando houver dificuldade ou impossibilidade de um ou ambos
gerar.3
Conforme relatam Dborah Oliveira e Edson Borges Jr.:
O primeiro caso de inseminao artificial humana encontra regis-

tro em 1791, praticada pelo mdico ingls John Hunter. Seguiram-
-se casos esparsos, com destaque para as experincias de Gregrio
Mendel, frade agostiniano. De 1866, data a primeira inoculao
direta de smen no tero, levada a efeito por Sims, com xito para a
gravidez, que no chegou a termo.4
Posteriormente, tal tcnica tornou-se superada na medida em

que, em alguns casos, no bastaria apenas a introduo do smen, pois
o mesmo poderia no conter espermatozoides aptos fecundao.
No incio do sculo XX, o ser humano conseguiu quase o total
controle sobre as tcnicas reprodutivas, primeiramente ao desenvolver
tcnicas para congelar o smen fora do organismo e, posteriormente,
ao manipular in vitro as clulas germinativas humanas.5
Tycho Brahe Fernandes relata:
J no incio do sculo XX, em 1910, a descoberta da conservao do

smen fora do organismo, por resfriamento, realizada pelo russo
Elie Ivanof possibilitou ampliar os estudos acerca da reproduo
humana e, consequentemente, por volta de 1940 teriam surgido os
primeiros bancos de smen nos Estados Unidos, sendo criado em
1980, na Austrlia, o primeiro banco de embries congelados.6
Vrias so as tcnicas utilizadas para resolver os problemas de

infertilidade, mas o que se considera relevante no presente estudo so
os reflexos e as implicaes dessas tcnicas e de seus procedimentos
no ordenamento jurdico ptrio, principalmente no Direito Sucessrio
e de Famlia.
3
2011, p. 366.
4
OLIVEIRA, Dbora Ciocci Alvarez; BORGES JR., Edson. Reproduo assistida: at onde pode-
mos chegar? So Paulo: Gaia, 2000, p. 11.
5
Deborah Ciocci lvares de Oliveira e Edson Borges Jr. (2000, p. 12) relatam que em 1944, dois
biologistas, Rock e Menkin, obtiveram quatro embries normais a partir de vulos humanos
colocados na presena de espermatozoides.
6
FERNANDES, Tycho Brahe. A reproduo assistida em face da biotica e do biodireito.
Diploma Legal, 2000, p. 51.
As implicaes jurdicas mais srias trazidas pelas novas tec-
nologias reprodutivas referem-se possibilidade de: 1) utilizarem-se
gametas de terceiros, ou seja, a chamada reproduo heterloga; 2) de
gestaes post mortem; 3) a possibilidade do congelamento das clu-
las germinativas humanas; e, principalmente, 4) o congelamento do
embrio humano.
Com o desenvolvimento das tcnicas reprodutivas artificiais foi
necessrio que os cientistas aperfeioassem procedimentos auxilia-
res procriao assistida, a fim de alcanar um bom ndice de xito
na aplicao da nova tecnologia. Assim, foram desenvolvidos procedi-
mentos aptos a auxiliarem os cientistas, tais como, a criopreservao
de smen, vulo e de embries, a criao de bancos de smen e de
ocitos,7 micromanipulao de gametas, tero de substituio, diag-
nstico gentico de pr-implantao, entre outros.
Dborah Ciocci Alvarez de Oliveira e Edson Borges Jr. informam
que o primeiro banco de smen foi criado em 1949 por Roberty Schay-
shean e que quatro anos mais tarde foi registrada a primeira utilizao
de smen congelado nos Estados Unidos.
A criopreservao, portanto, tem duas importantes funes para
a medicina reprodutiva: a primeira a possibilidade de se depositar
junto ao banco de smen material gentico prprio para ser utilizado
em futuras tentativas de inseminao, quando as anteriores no tive-
rem alado xito; a segunda a de possibilitar a pessoa ou ao casal
infrtil recorrer a smen de doador annimo para superar a infertili-
dade masculina.
A criopreservao de smen oferece ao Direito trs ordens de
problemas. A primeira diz respeito possibilidade de manipulao
gentica ilcita do gameta masculino; a segunda o fato que de que
o smen pode ficar congelado por tempo indeterminado,8 e ser utili-
zado at mesmo aps a morte de seu titular e, a terceira, a garan-
tia assegurada do anonimato do doador.9 Enfocaremos nesse artigo
uma dessas problemticas, ou seja, a utilizao post mortem do smen
criopreservado.
Nesse sentido, o Conselho Federal de Medicina (CFM), por meio
da Resoluo n. 2.121/2015, regulou os procedimentos deontolgicos
de inseminao artificial. Ressalta-se que esta , atualmente, a nica
7
vulo no fertilizado.
8
Neves (1984) apud Meirelles (2000, p. 22), afirma que: Embries, espermas e vulos tm pos-
sibilidade de permanecer em estado de vida latente at durante anos, se congelados a uma
temperatura de -196. Para sair da conservao a frio criopreservao so aquecidos e,
aps, utilizados normalmente.
9
Resoluo n. 2.121/2015 do Conselho Federal de Medicina (CFM).
norma legal existente sobre o tema, apesar dos vrios projetos de lei
em trmite no Congresso Nacional.10
Entre as tcnicas de RA utilizadas, h uma diviso entre as que
possibilitam a fecundao dentro da barriga da mulher, inseminaes
artificiais in vivo, e as em que a fecundao ocorre fora da barriga,
inseminaes artificiais in vitro.11
O Conselho Nacional da Justia unificou as expresses sobre
as tcnicas de reproduo assistida, mas h uma diviso quanto sua
concepo. A RA pode ser homloga, quando se utilizam os gametas
masculinos e femininos do prprio casal ou heterloga, quando se uti-
lizam gametas de terceiros.12
3O TRATAMENTO JURDICO SOBRE A INSEMINAO ARTIFICIAL

HOMLOGA POST MORTEM
O Conselho Federal de Medicina, por meio da Resoluo n.

2.121/15, inciso VIII, estabelece que: permitida a reproduo assis-
tida post-mortem desde que haja autorizao prvia especfica do(a)
falecido(a) para o uso do material biolgico criopreservado, de acordo
com a legislao vigente.
necessria a utilizao do termo de consentimento livre e
esclarecido das pessoas que se submetem a tais tcnicas de RA:
O consentimento livre e esclarecido informado ser obrigat-

rio para todos os pacientes submetidos s tcnicas de reproduo
assistida. Os aspectos mdicos envolvendo a totalidade das circuns-
tncias da aplicao de uma tcnica de RA sero detalhadamente
expostos, bem como os resultados obtidos naquela unidade de tra-
tamento com a tcnica proposta. As informaes devem tambm
atingir dados de carter biolgico, jurdico e tico. O documento
de consentimento livre e esclarecido informado ser elaborado
em formulrio especial e estar completo com a concordncia,
por escrito, obtida a partir de discusso bilateral entre as pessoas
10
Destaca-se o Projeto de Lei n. 1.184/2003 no qual esto apensados vrios outros sobre o
mesmo tema da RA.
11
Nesse sentido, destacam-se as principais tcnicas: a Inseminao intrauterina ou Insemina-
o Artificial, que consiste na manipulao do gameta masculino no laboratrio e a colocao
dentro do tero; a GIFT - Gamete Intrafallopian Transfer ou Transferncia intratubrica de
gametas permite que os gametas feminino e masculino sejam depositados diretamente na
tuba uterina da mulher; a ICSI - Injeo intracitoplasmtica de espermatozoides j uma tc-
nica em que a fertilizao ocorre in vitro, sendo que os espermatozoides so colocados den-
tro do vulo para que ocorra a fertilizao e, posteriormente, o depsito no tero.
12
2011, p. 367.
envolvidas nas tcnicas de reproduo assistida. (Captulo 1, item 4
da Resoluo 2.121/15 do CFM).
Apesar de a evoluo biotecnolgica andar a passos largos, o

Direito no a acompanha, primeiramente porque existe a necessidade
de que tais inovaes sejam amplamente discutidas na sociedade para
serem incorporadas ao ordenamento jurdico ptrio; em segundo lugar,
porque, mesmo aps o debate e o consenso, necessrio um longo e
moroso processo legislativo para que ganhe fora de lei; e, finalmente,
porque o Direito deve evitar inserir em seu bojo normas relativas a
fatos ainda no consolidados, e nem mesmo totalmente incorporados
no costume social, sob pena de se tornar obsoleto, ultrapassado e sem
eficcia.
Ainda que tardiamente, os legisladores brasileiros j se tm ocu-
pado do tema, e j constam no Novo Cdigo Civil dispositivos legais
que tratam da filiao advinda das tcnicas reprodutivas artificiais13
e, tramitam, no Congresso Nacional, vrios projetos de lei que regu-
lam questes biotecnolgicas, mas at o momento nenhuma lei espec-
fica sobre as implicaes jurdicas das tcnicas de reproduo humana
artificial foi publicada ou est em vigor.
No que tange ao tema proposto, ressaltamos que o Cdigo Civil
brasileiro em seu art. 1.597, inciso III, expressa que, presumem-se como
filhos os nascidos na constncia do casamento e os havidos por fecun-
dao artificial homloga, mesmo que falecido o marido.
A doutrina majoritria brasileira defende o mesmo pensamento
do Conselho Federal de Medicina, pois conforme Dias:
Ainda que o cnjuge tenha fornecido o smen, no h como presu-

mir o consentimento para a inseminao post mortem. Somente na
hiptese de ter havido expressa autorizao do marido que a fer-
tilizao pode ser feita aps o seu falecimento.14
Ocorre que essa autorizao expressa, alertado por Maria Bere-

nice Dias, no consta no texto legal, mas apenas nas normas deonto-
lgicas que regulamentam os procedimentos mdicos de inseminao
artificial, o que pode acarretar grandes problemas para o estabeleci-
mento da filiao decorrente de inseminao artifical post mortem, em
que no se tem uma prvia e expressa autorizao do falecido para o
Art. 1.597 do Novo Cdigo Civil.

13
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famlias. 8. ed. So Paulo: Revista dos Tribu-
14
nais, 2011, p. 368.
uso de seu material biolgico aps a sua morte, pois no se pode, a
priori, supor que queria ser pai pstumo.
4A PRESUNO DE FILIAO DECORRENTE DA INSEMINAO ARTI-

FICIAL HOMLOGA POST MORTEM NO DIREITO DE FAMLIA
Como dito, o nosso ordenamento jurdico sempre se baseou em

presunes para o estabelecimento da filiao e a base disso eram
as presunes constantes no Direito Romano, tais como mater certa
est ou pater is est nupciae demonstrat que conferiam presunes de
maternidade, iures et iures para a me e de paternidade iures tantum
para o pai e que estavam calcadas especialmente no liame biolgico
entre genitor e sua prole.
As afirmaes de Paulo Luiz Netto Lbo15 corroboram as conclu-
ses acima:
Em matria de filiao, o direito sempre se valeu de presunes16 ,

pela natural dificuldade em se atribuir a paternidade ou mater-
nidade a algum, ou ento de bices fundados em preconceitos
histricos decorrentes da hegemonia da famlia patriarcal e matri-
monializada. Assim, chegaram at ns:
a) a presuno pater is est quem nuptia demonstrant, impedindo
que se discuta a origem da filiao se o marido da me no a negar
em curto prazo preclusivo;
b) a presuno mater semper certa est, impedindo a investigao de
maternidade contra mulher casada;
c) a presuno de paternidade atribuda ao que teve relaes sexuais
com a me, no perodo da concepo;
d) a presuno de exceptio plurium concumbentium que se ope
presuno anterior;
e) a presuno de paternidade, para os filhos nascidos 180 dias
depois do casamento e 300 dias aps a dissoluo da sociedade
conjugal.
15
LBO, Paulo.Princpio jurdico da afetividade na filiao.Revista Jus Navigandi, Tere-
sina,ano 5,n. 41,1maio2000. Disponvel em:<https://jus.com.br/artigos/527>. Acesso
em:5 set. 2015.
16
Registros da presuno da paternidade so encontrados nas Leis das 12 Tbuas (462 a.C.),
que legitimava o filho pstumo, se este viesse a nascer at o dcimo ms aps a dissoluo do
matrimnio (Tbua Quarta n. 4).
A presuno de paternidade o reconhecimento de filiao por
presunes. Conforme Dias, so dedues que se tiram de um fato
certo para a prova de um fato desconhecido.17
O art. 1.597 do Cdigo Civil brasileiro trata da presuno de filia-
o no ordenamento jurdico brasileiro. Sendo assim, em seu inciso III,
prev que os havidos por fecundao artificial homloga, mesmo que
falecido o marido, so filhos presumidos como se fossem concebidos
na constncia do casamento. Todavia, importante ressaltar que o
Conselho Federal de Medicina exige que para a utilizao de material
aps a morte do doador necessrio que esse tenha deixado autoriza-
o expressa, para evitar que seja usado por m-f e pelo fato de o pai
no ter expressado a sua vontade.
Percebe-se que se dar a presuno de paternidade apenas se o
doador tiver expressado a sua vontade, isto , a sua autonomia. Caso
contrrio, estaria sendo ferido um dos principais princpios do biodi-
reito e da biotica.
O falecido deveria ter expressado a sua vontade de paternidade,
por meio de um consentimento expresso. A sua atitude de ter conge-
lado material gentico no reflete o seu desejo de ser pai.
Existe, sim, a possibilidade de a mulher fertilizar-se com o smen
de seu marido morto e trazer para si a presuno de paternidade nos
termos do art. 1.597, III do CC, mas o mdico que proceder feitura de
tal tcnica sem a autorizao prvia e por escrito do falecido estar
cometendo gravssima infrao tica nos termos da Resoluo n.
2.121/15 e do Estatuto de tica Mdica.
Devemos destacar, ainda, que a filiao paterna s se dar por
deciso judicial, por duas ordens de requisitos, ou seja, o suposto pai
j estar morto e no poder reconhecer-se voluntariamente como pai
quando do nascimento da criana e o nascimento provavelmente se
dar aps os 300 dias da morte do suposto pai, ou seja, da dissoluo
do casamento, afastando, assim, a presuno de filiao estabelecida
no art. 1.597, inciso II do CC/02.
Dessa forma, mesmo que ocorra a inseminao artificial ps-
tuma necessrio que o filho nascido interponha ao de investigao
de paternidade, com base no inciso III do art. 1.597 do CC/02, em que
deve provar a feitura da tcnica de inseminao artificial e o vnculo
biolgico com o falecido, para que a mesma seja reconhecidamente
17
2011, p. 360.
homloga, a fim de obter o reconhecimento de seu vnculo de filiao
com o pai morto.
Nesse contexto que se deve analisar a vontade do falecido em
ser pai aps a sua morte, se deixou autorizao expressa e/ou tcita
para o uso de seu gameta post mortem ou se tal desiderato apenas
por parte da me, pois se for esse o caso no se pode imputar paterni-
dade para quem no a queria em vida.
5DIREITOS SUCESSRIOS
No ordenamento jurdico brasileiro, o direito herana asse-

gurado constitucionalmente, como direito fundamental, no art. 5,
inciso XXX que enuncia: garantido o direito herana.18
O Direito ptrio, filiado sistemtica do Direito Romano, asse-
gura ab initio o direito herana e, de acordo com Washington de
Barros Monteiro (1999), um dos ramos do direito que mais se
transformou.
Clvis Bevilqua (1945, 1) diz que: Direito hereditrio ou das
sucesses o complexo dos princpios segundo os quais se realiza a
transmisso do patrimnio de algum que deixa de existir, no que
corroborado por Carlos Maximiliano quando define que o:
Direito das sucesses em sentido objetivo o conjunto das normas

reguladoras da transmisso dos bens e obrigaes de um indivduo
em consequncia de sua morte. No sentido subjetivo, mais propria-
mente se diria direito de suceder, isto , de receber o acervo heredi-
trio de um defunto.19
Portanto, o Direito das Sucesses, em sentido estrito, tem por

objetivo regular a transmisso do patrimnio de uma pessoa que morre
aos seus herdeiros legtimos e/ou testamentrios.
consenso entre os doutrinadores que o Direito Sucessrio est
ligado ao Direito de Famlia e de propriedade e que o legislador ptrio,
ao elencar as pessoas beneficiadas na ordem de vocao hereditria,
o fez com o firme propsito de agraciar, em primeiro lugar, a famlia
legtima ou natural do de cujus e, posteriormente, atender a sua ltima
vontade externada pela via testamentria.
18
BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988. Braslia, 5 out. 1988. Dispo-
nvel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/ constituicao.htm>.
Acesso em: 7 jun. 2015.
19
MAXIMILIANO, Carlos. Direito das Sucesses. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1958, p. 19.
Ocorre que os dois pressupostos bsicos da sucesso citados
por Orlando Gomes (1999) para que se ocorra a sucesso mortis causa,
a saber, a morte do de cujus e a vocao hereditria, esto sofrendo
modificaes em funo do estgio atual do desenvolvimento tecnol-
gico e a legislao ptria se omite perante as novas tcnicas reproduti-
vas e aos avanos biotecnolgicos. Contudo, a questo relevante e sem
soluo pacfica no ordenamento ptrio diz respeito possibilidade de
uma gestao pos mortem.
necessrio, portanto, que a pessoa tenha capacidade sucess-
ria para que possa vir a herdar. Diante desse fato, prope-se entender
a forma como se verifica tal legitimao para suceder nas chamadas
inseminaes artificiais homlogas post mortem.
5.1Da capacidade sucessria
De acordo com o art. 1.784 do Cdigo Civil, uma vez aberta a

sucesso, ou seja, verificada a morte do de cujus, a herana se trans-
mite, imediatamente e sem formalismos, aos herdeiros sobreviventes
que se tornam titulares dos direitos adquiridos.
Portanto, nas palavras de Caio Mrio da Silva Pereira:
[...] o princpio cardeal do Direito Sucessrio a transmisso ime-

diata dos bens aos herdeiros legtimos e testamentrios, subordi-
nada obviamente a que tenham capacidade para suceder.20
No basta, pois, que o herdeiro pertena classe chamada

sucesso, pois, antes de mais nada, necessrio que prove ser capaz e
no indigno de receber os bens da herana.
No que se refere capacidade testamentria passiva, se o her-
deiro era capaz ao tempo da feitura do testamento e tornou-se inca-
paz no momento da abertura da sucesso (morte do de cujus), no ter
direito herana. Mas se era incapaz ao tempo da feitura do testa-
mento e tornou-se capaz quando da abertura da sucesso, ter capaci-
dade sucessria e herdar os bens deixados pelo de cujus em seu favor.
5.1.1Requisitos e pressupostos para herdar
O primeiro e principal pressuposto para se apurar a capacidade

sucessria que ocorra a morte do de cujus porque s nesse momento
PEREIRA, Caio Mrio da Silva. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 18.
20
que a propriedade e a posse da herana se transmitem aos herdeiros
legtimos e testamentrios.21
Entende-se capacidade sucessria como a aptido para receber
bens de herana, sendo que tal capacidade pressuposto indispensvel
ao recolhimento da herana pelo interessado.
A identificao da condio de herdeiro ou legatrio se faz por
meio da observncia da ordem de vocao hereditria que estava em
vigor na data da morte e a disposio de ltima vontade, quando o de
cujus houver deixado testamento. Nas palavras de Giselda Hironaka e
Francisco Jos Cahali:
O primeiro passo identificao da condio de herdeiro a veri-

ficao de sua qualidade, que se d pela previso como sucessor
na ordem de vocao hereditria (sucesso legtima), ou pela ins-
tituio da pessoa por disposio de ltima vontade (sucesso tes-
tamentria). Para pretender a herana, haver necessidade de um
ttulo ou fundamento jurdico do direito hereditrio consistente na
convocao do interessado pela lei ou pelo testador.22
Nesse caso, conforme pontua Caio Mrio da Silva Pereira,
[...] a apurao da capacidade sucessria decorre da verificao de

um conjunto de pressupostos que se resumem nestas duas circuns-
tncias: a existncia para fins de sucesso e a sua convocao para
receber por causa de morte.23
Por outro lado, a doutrina clssica deferia capacidade sucess-

ria apenas s pessoas existentes no momento da abertura da sucesso,
pressupondo que a capacidade sucessria dos j concebidos e das pes-
soas jurdicas ainda no constitudas era uma exceo regra da pree-
xistncia. Dessa forma, propugna Caio Mrio da Silva Pereira:
O chamado sucesso deve existir no momento da delao da

herana. Esta no se defere ao vazio, no se transmite ao nada. Se
naquele instante o herdeiro j morto (Ruggiero e Maroi, Planiol,
Ripert et Boulanger, DePage) defere-se a herana aos outros de
sua classe, ou aos da imediata, se for ele o nico. Diz-se, pois, com
razo, que a delao da herana pressupe que o herdeiro exista e
seja conhecido - nescitur ubi sit et an sit - pois, do contrrio, ser
21
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 15. ed. So Paulo: Saraiva, 1999, p. 41.
22
CAHALI, Francisco Jos; HIRONAKA, Giselda M. F. N. Direito das sucesses. 4. ed. So Paulo:
Editora dos Tribunais, 2012, p. 133.
23
chamada outra pessoa que atenda a esses pressupostos. Este requi-
sito, definido no vocbulo coexistncia (Carlos Maximiliano), deve-
-se apreciar com a devida cautela, pois comporta suas excees.24
Ocorre que o Cdigo Civil brasileiro, na esteira dessas considera-

es, fez inserir novo dispositivo legal que positiva a legitimidade para
suceder das pessoas j concebidas no momento da abertura da suces-
so. O art. 1.798 do Cdigo Civil claro ao estipular in verbis: Legiti-
mam-se a suceder as pessoas nascidas ou j concebidas no momento
da abertura da sucesso.
primeira mo, possvel afirmar que toda e qualquer pessoa
que j esteja concebida no momento da abertura da sucesso capaz
de suceder aos bens deixados pelo de cujus, desde que pertencente
ordem vocacional deste e/ou desde que contemplada em um testa-
mento vlido e eficaz por este deixado.
A problemtica referente capacidade sucessria dos filhos con-
cebidos post mortem, mesmo afirmando o Cdigo Civil sua presuno
de paternidade em face do pai falecido, ainda muito grande, pois ape-
sar de poder ser considerado como filho daquele que j estava fale-
cido quando de sua concepo ele no estava nem concebido e muito
menos nascido quando da abertura da sucesso, no podendo, a priori,
vir a herdar.
Adiante, portanto, nos ocuparemos das demais excees que
interessam regra da preexistncia, ou seja, o nascituro e a prole
eventual, para que se possam construir elementos que permitam reti-
rar da justificativa que os ampara como herdeiros, a fundamentao
necessria para a definio da capacidade sucessria do filho conce-
bido post mortem.
5.1.2A capacidade sucessria do nascituro
J definida a noo de nascituro como o ser em desenvolvimento

no tero materno e, partindo do pressuposto de que o mesmo des-
cendente do de cujus, pode-se afirmar, sem nenhuma discordncia,
que o nascituro tem capacidade sucessria de receber os bens que lhe
foram deixados.
Os adeptos da corrente natalista afirmam que o nascituro recebe
a herana in utero com a condio suspensiva de nascer com vida,
ou seja, a herana no lhe pertence antes do nascimento e enquanto
estiver sendo gestado, mas a lei salvaguardando-lhe os interesses
24
determina que sua parte na herana fique disponvel e preservada at
o seu nascimento, quando ento, a mesma lhe ser definitivamente
entregue.
Por sua vez, os defensores da tese concepcionista propugnam
que o nascituro recebe a herana in utero sob a condio resolutiva do
nascimento sem vida, ou seja, o nascituro ter direito herana desde
a sua concepo, mas se nascer sem vida ocorrer a condio resolu-
tiva do seu direito hereditrio, que passar aos demais herdeiros de
sua classe ou da classe subsequente, se ele for o nico.
Silmara Chinelato e Almeida, como uma das vozes desta
doutrina,25 propugnam:
De acordo com posio por ns assumida de que a herana atri-

buda ao nascituro sob a condio resolutiva do nascimento sem
vida - porque a personalidade lhe atribuda desde a concepo,
conforme a interpretao do art. 4 do Cdigo Civil, dentro de todo
o sistema por ele agasalhado.26
Jussara Maria Leal de Meirelles pontua que:
A insuficincia de interpretao extensiva demonstrada medida

que, de acordo com a orientao tradicional, o reconhecimento da
personalidade jurdica ao embrio in vitro parece pretender carac-
teriz-lo, tal qual o nascituro, titular de direitos subordinados a
condio.
Essa condio seria de eficcia suspensiva (implantao no tero)
ou resolutiva (no implantao); ou ainda dplice, ou seja, suspen-
siva (nidao) e resolutiva (nascimento com vida), dependendo do
posicionamento adotado frente subjetividade do novo ser.27
Sugere-se que no h relevncia prtica entre os dois modos de

ver a situao hereditria do nascituro, pois tanto a doutrina nata-
lista quanto a doutrina concepcionista so unnimes em afirmar que
o natimorto perde ou no recebe a herana que lhe foi deixada, trans-
mitindo-a aos demais herdeiros do de cujus como se o nascituro nunca
houvesse existido, mas, enquanto em gestao, tem o seu direito here-
ditrio preservado.
25
Ver tambm DINIZ (1997, p. 42) e GOMES (1999, p. 26).
26
CHINELATO, Silmara J. A; ALMEIDA. Tutela civil do nascituro. So Paulo: Saraiva, 2000, p.
235.
27
MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. A vida humana embrionria e sua proteo jurdica. Rio
de Janeiro: Renovar, 2000, p. 76.
Como forma de preservar os direitos e interesses do nascituro,
no que se refere herana a ele deixada, o ordenamento jurdico tem
mecanismos que podem ser utilizados pela me ou seu representante
legal para se alcanar tal intento, conforme os arts. 877 e 878 do Cdigo
de Processo Civil.
Dessa forma a me, ou o curador nomeado ao ventre, nos casos
do art. 878, pargrafo nico do Cdigo do Processo Civil, poder reque-
rer em juzo a posse dos bens e direitos que couberem ao nascituro, a
fim de preserv-los at o seu nascimento com vida. A me ou o curador
tero a posse provisria dos bens at o nascimento do nascituro, sendo
que se este nascer com vida, os bens passam a pertencer ao nascituro
e tais pessoas os administraro at que a criana adquira capacidade
de fato. Contudo, se ele nascer morto, os bens, assim como seus frutos
e rendimentos havidos desde a morte do de cujus, devem ser entregues
aos demais herdeiros vocacionados.
5.1.3A capacidade sucessria da prole eventual
A prole eventual somente ter capacidade de herdar se o de cujus

deixar testamento vlido e eficaz que a contemple. Assim, tal capa-
cidade somente ser aferida na sucesso testamentria e nunca na
sucesso ab intestato.
O Direito Sucessrio da prole eventual necessariamente condi-
cional por estar subordinado a evento futuro e incerto, ou seja, a con-
cepo e o nascimento das pessoas que o testador esperava ter por
herdeiro.
necessrio reconhecer que o testador pode livremente estipu-
lar as disposies que regulam o direito hereditrio da prole eventual.
Em face disso, possvel que o mesmo estipule que somente os filhos
do sexo masculino de determinada pessoa que nascerem aps a sua
morte sero os beneficiados com o legado. Pode, tambm, dizer que
apenas os dois primeiros filhos sero beneficiados, ou, ainda, que ficam
excludos do legado os filhos advindos de tcnicas de Reproduo
Humana Assistida (RHA), ou aqueles que tenham sido adotados aps a
sua morte ou aps a feitura do testamento, por exemplo.
Tal liberdade discriminatria deve-se ao fato de que no se
aplica aqui o princpio constitucional de igualdade entre os filhos, pois
a prole eventual refere-se a filhos de pessoas designadas pelo testa-
dor e no seus prprios filhos. Ora, se possvel que uma pessoa possa
testar, estipulando um legado outra, sem beneficiar os irmos que
esta ltima porventura tenha, lgico que tal possibilidade, tambm,
aplica-se prole eventual.
Todavia, se o testador apenas mencionar em seu testamento que
deixa determinado bem ou bens aos filhos de uma pessoa que nasce-
rem aps a sua morte, sem ressalvas e nem imposies, tal disposio,
de acordo com os ditames constitucionais, beneficiar todos os filhos
da pessoa indicada, sem quaisquer discriminaes relativas origem
da filiao.
Silvio de Salvo Venosa, na esteira desse pensamento, diz: Cre-
mos que na atual legislao incumbe ao testador excluir expressa-
mente os filhos adotivos se no desejar inclu-los, por fora do art. 41
da Lei 8.069/90.28
Durante a vigncia do anterior Cdigo Civil brasileiro, at onde
se sabe, admitia-se que, no sendo possvel conferir direito heredit-
rio s pessoas inexistentes (prole eventual), e levando em conta que
os bens da herana no podiam ficar sem dono, o testador somente
poderia conferir tais direitos hereditrios utilizando-se do mecanismo
da substituio fideicomissria,29 estabelecendo que, por ocasio de
sua morte, a herana ou o legado se transmitisse a uma pessoa deno-
minada de fiducirio, na maioria das vezes o genitor da prole, resol-
vendo-se o direito deste, por sua morte, por determinado tempo ou
sob certa condio, em favor de outrem, a prole eventual, que se quali-
ficava de fideicomissrio.
Maria Helena Diniz, na esteira de Washington de Barros Mon-
teiro, Orozimbo Nonato, Itabaiana de Oliveira, Clvis Bevilqua,
Orlando Gomes e Caio Mrio da Silva Pereira, discorre sobre a necessi-
dade da instituio da substituio fideicomissria nesses casos:
Como os bens no podem ficar sem dono durante o intervalo

entre a morte do testador e o nascimento do beneficirio, o tes-
tador somente poder atingir seu objetivo mediante fideicomisso,
nomeando fiducirio para guardar tais bens. 30
Ocorre que o diploma Civil em vigor estabelece novidades ao

denominar de curador a pessoa que administrar e cuidar dos inte-
resses da prole eventual.31 Estabelece que tal curatela seja preferen-
cialmente exercida pela pessoa, cujo filho o testador esperava ter por
herdeiro e que os deveres e responsabilidades do curador regem-se
pelas regras concernentes curatela dos incapazes, nos termos dos
arts. 1.767 a 1.783 do Cdigo Civil.
28
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil. 6. ed. So Paulo: Atlas, 2003, p. 151.
29
Artigos 1.951 a 1.960 do Cdigo Civil.
30
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 15. ed. So Paulo: Saraiva, 1999, p. 135.
31
Artigo 1.800 do Cdigo Civil.
Desta forma, nascendo com vida o herdeiro esperado, ele rece-
ber, nos termos do art. 1.800, 3 do Cdigo Civil, o legado, com
todos os frutos e rendimentos havidos desde a morte do testador. Dada
a grande responsabilidade que pende sobre o curador, possvel que,
no sendo ele o pai ou a me, sua funo seja remunerada, conforme
assevera Silvio de Salvo Venosa.32
Outra novidade trazida pela nova codificao civilista foi a esti-
pulao de um prazo mximo para a concepo do herdeiro esperado,
salvo disposio em contrrio do testador, sob pena dos bens que lhe
forem reservados serem entregues aos herdeiros legtimos.
Tal dispositivo legal veio dar fim polmica que se apresentava
quando o testador estabelecia direitos prole eventual de determinada
pessoa, mas no delimitava o nmero de filhos que seriam beneficia-
dos e nem o tempo mnimo ou mximo para que esses viessem a ser
concebidos ou nascidos. Tais omisses provocaram situaes absur-
das, como casos em que pessoas ficavam indefinidamente na posse e
propriedade dos bens, sem nunca se preocuparem em terem o filho
que o testador esperava ter por herdeiro, fraudando assim sua vontade
e frustrando o direito dos herdeiros legtimos ou de possveis legat-
rios substitutos.
Francisco Jos Cahali e Giselda M. F. N. Hironaka, nos moldes de
Caio Mrio da Silva Pereira, demonstram tal problemtica e a soluo
que era anteriormente dada pela doutrina e pela jurisprudncia:
No estabelecido o limite temporal para o nascimento do herdeiro,

tem-se um problema de maior complexidade. Mas, prevalecendo o
princpio de que a herana no pode permanecer indefinidamente
sem destinatrio, tero os interessados (aqueles beneficiados com
a inexistncia da prole eventual) legitimidade para provocar a veri-
ficao do implemento da condio que, se no cumprida, autori-
za-lhes reclamarem a herana, assumindo a titularidade do direito
hereditrio.33
Em face disso, o legislador civilista resolveu estipular um tempo

mximo para a concepo da prole eventual de pessoas designadas
pelo testador, justamente para se evitar a perpetuao da curatela e
para atender a vontade do falecido. Silmara Chinelato e Almeida infor-
mam que o Projeto de Cdigo Civil de 1975, em seu art. 1.848, 4, esti-
pulava um prazo mximo de dez anos para a concepo do herdeiro
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil. 6. ed. So Paulo: Atlas, 2003.

32
CAHALI, Francisco Jos; HIRONAKA, Giselda M. F. N. Direito das sucesses. 4. ed. So Paulo:
33
Editora dos Tribunais, 2012, p. 137.
esperado, sob pena de reverso aos demais herdeiros legtimos e/ou
testamentrio.34
Atualmente, nos termos do 4 do art. 1.800 do Cdigo Civil bra-
sileiro, o herdeiro esperado, salvo disposio em contrrio do testa-
dor, dever estar concebido em at no mximo dois anos aps a morte
do testador, sob pena de que os bens que lhe forem reservados sejam
entregues aos herdeiros legtimos e/ou testamentrios, in verbis:
4. Se, decorridos dois anos aps a abertura da sucesso, no for con-
cebido o herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposio em
contrrio do testador, cabero aos herdeiros legtimos.
Ainda que o dispositivo legal no abrigue ambiguidades, enfa-
tiza-se que o que marca a caducidade da deixa a no concepo no
perodo de dois anos, ou, em prazo diverso estipulado pelo testador,
contados da data da morte e, no, o nascimento do herdeiro esperado,
que poder acontecer aps o fim do prazo legal ou estipulado.
Verifica-se, pois, que a capacidade da prole eventual uma exce-
o regra geral insculpida no art. 1.798 do Cdigo Civil, pois a prole
eventual, mesmo no estando ainda concebida e nem nascida, herdar,
se cumprir os requisitos j discutidos.
5.2Os vnculos de filiao em face da Reproduo Humana Assisti-

da (RHA) homloga post mortem
Apesar dos parmetros utilizados para o estabelecimento dos

liames de filiao, o advento das novas tecnologias reprodutivas provo-
cou grande abalo nas bases, at ento imutveis, do Direito de Famlia
e das sucesses.
Os principais dilemas jurdicos trazidos pela inseminao
humana artificial dizem respeito s chamadas inseminaes hete-
rlogas, possibilidade de congelamento de clulas germinativas e
de embries humanos, e to discutida e propalada possibilidade de
interveno e manipulao de clulas germinativas ou totipotentes
para fins de pesquisa ou clonagem.
Somente podem ser conferidos direitos hereditrios aos embri-
es humanos criopreservados se provado que os mesmos so descen-
dentes do de cujus e, dessa forma, ser necessrio que nasam e que
sejam devidamente reconhecidos e registrados como filhos do falecido
para que possam vir a herdar.
CHINELATO, Silmara J. A; ALMEIDA. Tutela civil do nascituro. So Paulo: Saraiva, 2000.

34
Diante dessas problemticas trazidas pela Reproduo Humana
Assistida (RHA), busca-se, na sequncia, discutir alguns dos efeitos
jurdicos que so sentidos pela sua utilizao nas inseminaes arti-
ficiais homlogas, especialmente naquelas em que o marido j est
falecido.
A inseminao homloga, por no apresentar distores na
hereditariedade biolgica do ser concebido, tendo em vista a utilizao
dos gametas do casal, no apresenta maiores conflitos jurdicos, pois
o ser nascido ser filho biolgico, jurdico e socioafetivo de ambos os
genitores.
As maiores complicaes podem ocorrer quando o smen do
marido ou do companheiro ou o vulo da mulher ou companheira
ficam armazenados para utilizao futura e um dos consortes ou con-
viventes venha a morrer antes da inseminao, podendo ocorrer o que
se denomina de inseminao post mortem, que o cerne deste artigo.
Nesses casos, o estabelecimento do liame da filiao s se reali-
zar por meio do reconhecimento judicial da filiao, por meio de pro-
vas genticas que atribuiro o vnculo biolgico.
Em relao aos companheiros, tambm no restam dvidas de
que estando caracterizada a unio estvel e sendo o filho nascido inse-
minado com o smen do companheiro, ele ser declarado filho leg-
timo daquele casal, mesmo que no se possa aplicar diretamente, em
tais casos, a presuno da paternidade imputada s pessoas casadas,
nos termos do art. 1.597 do Cdigo Civil, o que se aplica apenas por
analogia.
Na unio estvel, ser necessrio que haja, portanto, um reco-
nhecimento voluntrio da filiao ou que o filho prove a existncia da
unio estvel havida entre o suposto pai e sua me, para que se estabe-
lea o liame de filiao, com recurso at mesmo prova em DNA.
O Cdigo Civil estipulou em seu art. 1.597,35 incisos III e IV a pre-
suno da filiao em caso de inseminao artificial homloga post
mortem, ao dispor: Presumem-se concebidos na constncia do casa-
mento os filhos: havidos por fecundao artificial homloga, mesmo
que falecido o marido.
35
Guilherme Calmon Nogueira da Gama (2003) levanta dvidas sobre a constitucionalidade
dos incisos III, IV e V do art. 1.597 do Cdigo Civil por terem sido includos na Cmara dos
Deputados sem a cincia, aprovao ou devoluo da matria ao Senado Federal: H funda-
das dvidas a respeito da constitucionalidade formal das alteraes implementadas na
Cmara dos Deputados, considerando que, no exemplo do artigo 1.597, do Cdigo de 2002, os
incisos III e IV no foram objeto de apreciao pelo Senado Federal, alm do termo heter-
loga que passou a figurar no inciso V, do mesmo diploma legal.
De acordo com os novos ditames legais, se o casal recorrer tc-
nica de inseminao artificial homloga, o filho nascido por essa tc-
nica ser presumidamente concebido na constncia do casamento e
ter direito sua filiao, mesmo que seu pai biolgico j tenha falecido.
O inciso III do referido diploma legal, ao que parece, confere
direito de filiao mesmo na chamada inseminao artificial post mor-
tem, que poder ocorrer, por exemplo, quando o marido deixa seus
espermatozoides congelados para uma futura inseminao artificial e
se, aps a sua morte, sua esposa ou companheira, os utiliza e leva a
cabo a gravidez.
Ora, se para engravidar a consorte ou companheira utilizou-se
de smen de seu marido ou companheiro, lgico que a inseminao
homloga, por ter sido feita com os gametas do casal, e, pelo disposto
no inciso III, o filho nascido foi presumidamente concebido na cons-
tncia do casamento.
A presuno de o filho ter sido concebido na constncia do casa-
mento uma presuno iuris tantum. Portanto, se restar provado que
a concepo se deu aps a dissoluo do casamento,36 fica afastada a
presuno legal e vedada a imputao do liame de filiao. Da mesma
forma permitido ao suposto pai contestar a presuno estabelecida
nos incisos I e II do art. 1.597 do Cdigo Civil, ou seja, se provar que no
teve o relacionamento sexual que originou a gravidez, mesmo tendo
ocorrido o nascimento da criana nos prazos elencados em lei, afasta a
presuno da filiao.
Por bvio que a inseminao post mortem feita aps a disso-
luo do matrimnio, que ocorre pela morte de um dos consortes e,
dessa forma, por ter sido provado que a concepo se deu aps a morte
do marido, no lhe poderia ser imputada necessariamente filiao,
nos estritos termos do preceito legal.
Deve-se, no entanto, levar em conta que no pelo simples
fato de deixar gametas congelados que necessariamente devem ser
imputados ao falecido os liames de filiao de um ser gerado por seu
gameta. Primeiro, porque o congelamento dos gametas pode ter sido
feito apenas com intuito altrusta de auxiliar casais infrteis; segundo,
porque o congelamento pode ter sido feito por precauo do falecido
em casos de vir a se submeter a uma quimioterapia, que poderia resul-
tar em sequelas em sua fertilidade, ou, tambm, por exercer profisses
de risco para a fertilidade masculina, como por exemplo, os mergu-
lhadores de altas profundidades ou aqueles que lidam com altos-for-
nos. Outra hiptese, que pode se somar s anteriores, o fato de ser
Acredita-se que a mesma soluo deva se dar nos casos de unio estvel, observadas as suas
36
peculiaridades.
possvel que o cnjuge ou a companheira utilize-se de m-f na coleta
do gameta masculino, com o intuito de utilizao futura quando lhe for
conveniente, fraudando, assim, a vontade do falecido.
Nos casos, acima elencados, percebe-se a inexistncia de um
projeto parental por parte do falecido e da inteno de se tornar pai e
permitir que seu filho nasa, sabendo, de antemo, que no se conhe-
cero. Dessa forma, deve-se considerar que no existindo nenhuma
manifestao expressa e/ou tcita do falecido quanto filiao futura,
a mesma no lhe poderia ser imputada, justamente pelo fato de j estar
falecido quando da concepo e de no restar nenhuma comprovao
de sua vontade quanto aceitao de tal filiao.
O art. 1.599 do Cdigo Civil provoca ainda mais polmica no
assunto quando dispe que: A prova da impotncia do cnjuge para
gerar, poca da concepo, ilide a presuno da paternidade.
Ora, enorme a chance de o casal buscar apoio nas tcnicas de
inseminao artificial justamente pelo fato de o marido ser impotente
e no conseguir engravidar sua esposa. Dessa forma, h o recurso de
se extrair o seu gameta diretamente da bolsa escrotal e coloc-lo em
contato com o vulo de sua esposa para que possa vir a gerar o filho
esperado, fato que descredibiliza o art. 1.599, ao confundir os conceitos
biolgicos de impotncia e infertilidade. Contudo, se sua impotncia
poca da concepo ilide a presuno da paternidade, mais uma pro-
blemtica se soma inseminao post mortem, justamente pelo fato
de, j estando morto, no ser mais potente.
Mesmo com todas as problemticas acima citadas, pode-se dizer
que a filiao, refugindo ao aspecto legal, somente poderia lhe ser
imputada caso houvesse provas claras e inequvocas de sua aceitao
ao ato da inseminao post mortem e de seu querer em se tornar pai
dos filhos gerados por seus gametas criopreservados, aceitao esta
que poderia ser feita por meio de ato autntico, seja pblico ou parti-
cular, ou por meio de termo de consentimento informado, ou, ainda, na
forma de testamento.
Guilherme Calmon Nogueira da Gama critica a chamada inse-
minao post mortem e entende que a expresso mesmo que falecido
o marido somente autoriza o estabelecimento da filiao se ocorrer o
nascimento nos 300 dias subsequentes morte, pois, para ele:
relevante anotar que a clausula mesmo que falecido o marido
deva ser interpretada to somente para fins de estabelecimento da
paternidade, observado o prazo limite de trezentos dias da morte do
ex-marido.37
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiao: o biodireito e as relaes parentais.
37
Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 953.
5.3Os direitos sucessrios dos filhos havidos por Reproduo Hu-
mana Assistida (RHA) homloga post mortem
Verificamos que necessria a morte de uma pessoa para que

seus herdeiros legtimos venham a herdar e para que estes tenham
capacidade sucessria necessrio que estejam vivos ou j concebidos
ao tempo da morte do autor da herana (art. 1.784 c/c 1.798 do CC/02).
Conclumos, tambm, que a regra da preexistncia no abso-
luta, pois a lei atual permite que, por meio de testamento, pessoas que
sequer estejam concebidas ao tempo da morte possam vir a herdar, tais
como a prole eventual e a pessoa jurdica no constituda e que venha a
constituir-se como forma de fundao (art. 1799, I e III do CC/02).
Numa primeira anlise, poderamos concluir que o filho havido
por inseminao artificial homloga post mortem no teria direitos
sucessrios, pois no estaria nem vivo e nem concebido ao tempo da
abertura da sucesso.
Ocorre que a anlise dos seus direitos sucessrios deve ter por
base no apenas a lei infraconstitucional, mas principalmente os prin-
cpios constitucionais que amparam a famlia e os direitos dos filhos.
A Constituio da Repblica clara em consignar que os filhos
tero os mesmos direitos e qualificaes e que so proibidas quaisquer
designaes discriminatrias em relao aos mesmos, no art 227, 6.
Consignamos que o estabelecimento da filiao em face da tc-
nica de reproduo humana assistida post mortem necessita de pro-
cesso judicial e de sentena que assim a estabelea, justamente para
aferir a licitude do procedimento e o desejo do morto de ser pai e de
possibilitar o uso de seu material gentico aps a sua morte. Reco-
nhecido judicialmente como filho ter, nos termos da Constituio
da Repblica, os mesmos direitos e deveres que qualquer outro filho
havido e no poder ser discriminado em face de sua origem ou da
forma pela qual veio vida.
Dessa forma, conclumos que se um filho nascer de uma tc-
nica de inseminao homloga artificial post mortem e for reconhecido
judicialmente e registrado como filho do autor da herana ter seus
direitos sucessrios assegurados, pois a lei infraconstitucional dever
adequar-se aos princpios constitucionais.
Poderamos at mesmo justificar a assertiva acima por analogia
prole eventual que permite a uma pessoa contemplar filho de outra
que sequer est concebida e no seria justo e nem legal priv-lo de
contemplar sua prpria prole que seria concebida, tambm eventual-
mente, com a utilizao de seu material gentico aps a sua morte.
Devemos considerar, ainda, que no ocorre prescrio e nem
decadncia dos direitos sucessrios, pois no estando o filho nem nas-
cido e nem concebido no lhe poderiam ser imputados tais efeitos, pela
sua inexistncia e por no ter alcanado a maioridade, nos termos dos
arts. 197, inciso II, e 198, inciso I, ambos do CC/02, o que permite o
pleito da herana a qualquer momento aps o nascimento do filho.
Garantido, portanto, o Direito Sucessrio ao filho nascido das
tcnicas de RHA post mortem sua habilitao ou pleito da herana deve
observar o que dispe legislao civil e processual civil, ou seja, se o
inventrio j estiver findo, com partilha devidamente homologada, o
filho dever pleitear seus direitos sucessrios por meio de petio de
herana (art. 1.824 a 1.828 do CC/02) dirigida diretamente contra cada
um dos herdeiros contemplados e exigindo-lhes que lhe entreguem seu
quinho devido, seja por meio de entrega de bens herdados, de bens
particulares e/ou por meio de pagamento em dinheiro do seu qui-
nho hereditrio. Se o inventrio ainda estiver em trmite quando do
nascimento do filho o mesmo, representado por sua genitora, dever
ingressar no inventrio por meio de processo de habilitao (arts. 1.055
a 1.062 do CPC) e exigir que seja integrado ao rol de herdeiros para
que possa receber sua herana. Em ambos os casos possvel ao filho,
pessoalmente ou por intermdio de seu representante legal, em pro-
cesso autnomo ou incidental, requerer medidas protetivas, cautelares
e assecuratrias de seus direitos hereditrios.
6CONCLUSO
O advento das tcnicas reprodutivas tem gerado conflitos jur-

dicos nas reas do Direito da Famlia e das Sucesses, tanto no pro-
cesso de inseminao homloga quanto da inseminao heterloga. No
entanto, o maior questionamento a utilizao de smen ou de vulo
congelados, que so utilizados aps a morte do homem ou da mulher.
Para tanto, necessrio que tenha sido deixado um consentimento
expresso, autorizando a utilizao do material gentico aps a sua
morte. Apenas dessa forma ser reconhecida judicialmente a criana
nascida por Reproduo Humana Assistida post mortem.
Alm disso, necessrio ter como base os princpios fundamen-
tais, que buscam preservar a vida, a integridade fsica e a dignidade da
pessoa humana. Assim necessrio considerar os princpios do Direito
de Famlia, como a convivncia familiar, pois o nascido por RHA post
mortem no ter convivncia com o seu genitor; o princpio do livre
planejamento familiar, pois o congelamento do smen ou vulo no
expressa por si s, que o material poder ser utilizado aps a morte de
um dos consortes.
Todavia, o ordenamento jurdico brasileiro sempre se baseou em
presunes para o estabelecimento da filiao. Assim, o reconheci-
mento do filho gerado aps a morte do suposto pai ser dado apenas
por deciso judicial, por esse motivo necessrio analisar a vontade
do falecido, por meio de consentimento expresso, para a imputao de
paternidade.
Quanto aos direitos sucessrios, o art. 1.798 do Cdigo Civil dis-
pe que para ser herdeiro necessrio estar vivo ou j concebido no
momento da morte do autor da herana. No entanto, a Constituio da
Repblica, em seu art. 227, 6, prev que todos os filhos tero os mes-
mos direitos e que proibido qualquer tipo de discriminao. Assim,
uma vez que o filho nascer por inseminao artificial homloga post
mortem e for reconhecido judicialmente como filho do finado pai, ter
os seus direitos sucessrios assegurados.
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ASPECTOS PREVENTIVOS E POLTICAS PBLICAS NO
ENFRENTAMENTO VIOLNCIA CONTRA AS MULHERES
Adlia Moreira Pessoa
Professora de Direito de Famlia e Sucesses.

Presidente da Comisso Nacional de Gnero e Violncia Doms-
tica do Instituto Brasileiro de Direito de Famlia (IBDFAM).
Advogada. Presidente da Comisso de Defesa dos Direitos da
Mulher da OAB/SE. Presidente do Conselho Municipal dos Direitos da
Mulher. Professora-Adjunta da UFS (aposentada).
Promotora de Justia (aposentada). Pesquisadora do Grupo de
Pesquisa Hermenutica Constitucional Concretizadora dos Direi-
tos Fundamentais e seus Reflexos nas Relaes Sociais. Presidente da
Academia Sergipana de Letras Jurdicas. Autora de vrias publicaes.
Sumrio: 1. Consideraes iniciais. 2. Famlia: a violncia

nossa de cada dia. 3. Proteo mulher no direito brasi-
leiro. 4. Polticas pblicas como instrumento de concreti-
zao de direitos. 5. A Lei Maria da Penha e a previso de
polticas pblicas integrais para o enfrentamento da vio-
lncia domstica. 6. O enfrentamento violncia contra
a mulher por meio de polticas pblicas. 7. Consideraes
finais. 8. Referncias.
1CONSIDERAES INICIAIS
A violncia de gnero no pode ser vista como um ato isolado

ela emerge de uma combinao complexa de fatores histricos, eco-
nmicos, culturais, sociais, institucionais, interacionais, familiares,
pessoais em um contexto em que a mulher, apesar do reconhecimento
da igualdade nas leis, ainda, muitas vezes, tratada como inferior, no
protagonista de sua histria.
O uso da categoria de gnero pode explicar melhor a violncia
contra a mulher no sendo o sexo realidade biolgica do ser humano
suficiente para explicar o comportamento diferenciado do mascu-
lino e do feminino em sociedade. Dessa forma, os estudos de gnero,
envolvendo o jogo das diferenas, com a percepo de que os papis
sociais so definidos culturalmente entre agentes imersos em relaes
de poder distribudo de modo desigual entre os sexos, podem trazer
uma melhor compreenso sobre a violncia contra a mulher.
O conceito de gnero, assim, usado para afirmar algo mais
amplo que sexo, sendo produto social aprendido, institucionalizado e
transmitido de gerao em gerao. A diferenciao de papis a serem
desempenhados pelo homem/mulher era (ou ainda ?) fundamentada
na prpria natureza(?) que teria demarcado espaos para os sexos.
Filsofos, religies e at as cincias serviram para reforar a crena
na inferioridade do sexo feminino e as normas jurdicas foram instru-
mento de sujeio da mulher atravs dos sculos, contribuindo para a
herana do silncio, discriminao e da violncia, inclusive conferindo
ao marido o direito de disciplinar a mulher..
Assim no ser a mera existncia de lei que determinar a
mudana de padres culturais sexistas que imperam ainda em nossa
sociedade. H necessidade de polticas pblicas consistentes, inclu-
sive aes educativas em todos os nveis de ensino, mas, no apenas na
educao formal, mas tambm por meio de todos os canais de divulga-
o, especialmente a mdia social. Sabe-se que leis no so suficientes
para mudar a realidade da violncia contra a mulher.
2FAMLIA: A VIOLNCIA NOSSA DE CADA DIA
preciso lembrar inicialmente que, durante sculos, o direito

regulou o poder disciplinar marital e o espao da casa privatizou os
conflitos domsticos, sendo a violncia contra a mulher legitimada
pela cultura.
Pesquisas realizadas no Brasil1 revelam que a violncia doms-
tica est ainda presente no cotidiano da maior parte das famlias bra-
sileiras, no se restringindo ao lar, mas tendo nele sua origem, havendo
mulheres agredidas por seus parceiros em suas prprias residncias ou
em decorrncia dessas relaes de afeto. A violncia domstica um
fenmeno to generalizado que independe de classe social, de idade,
de raa/etnia. As famlias de baixa renda, no entanto, encontram-se
1
Entre os vrios sites que revelam os nmeros da violncia, vale citar: <http://www.com-
promissoeatitude.org.br>; <http://www.cnj.jus.br/>; <www.mapadaviolencia.org.br/>;
<www.spm.gov.br/assuntos/violencia/pesquisas-e-publicacoes>; <www.agenciapatri-
ciagalvao.org.br>. De acordo com estudo apresentado pelo Conselho Nacional de Justia
(CNJ), por meio da Comisso Permanente de Acesso Justia e Cidadania e do Depar-
tamento de Pesquisas Judicirias, o local onde mais comumente ocorrem situaes de
violncia contra a mulher a residncia da vtima, independente da faixa etria. At os 9
anos de idade, conforme foi identificado pelo estudo, os pais so os principais agressores.
Na adolescncia/juventude/fase adulta, a violncia materna/paterna substituda pela
do cnjuge e/ou namorado, que prepondera at os 59 anos da mulher. J a partir dos 60
anos, so os filhos que assumem esse papel.
mais expostas, mesmo nas residncias, na mdia, e mesmo em alguns
rgos. Por outro lado, em relao s mulheres de classe mdia e alta
h a preocupao da famlia de proteger e resguardar a prpria ima-
gem social a, mais constantes a omisso, silncios e segredos.
Existe uma viso recorrente e estereotipada de que os auto-
res de violncia so homens que se enquadram na trade alcoolismo,
pobreza e baixa escolaridade. Entretanto, so encontrados em todas as
classes sociais. Convm lembrar que o autor da tentativa de homicdio
de Maria da Penha Fernandes, seu marido, era professor universitrio.
Podemos alinhar, entretanto, alguns pontos em comum desses: con-
cepes sexistas; baixa expresso emocional; obsesso pelo controle
da mulher; tendncia a negar, minimizar e justificar comportamento
violento; pouco ou nenhum antecedente criminal.
Constata-se que a violncia domstica um problema secular
no Brasil. O que chega Polcia e Justia apenas a ponta do ice-
berg. Hoje, h maior visibilidade dessa violncia, pois a mulher busca as
delegacias e a justia quando a violncia torna-se intolervel ou porque
confia que ter um alvio em seu sofrimento.
Sem dvida, houve um aumento do nmero de ocorrncias poli-
ciais aps a vigncia da Lei Maria da Penha, e, um aumento de inquri-
tos policiais e de aes penais na Justia, especialmente aps a deciso
do STF, de 9 de fevereiro de 2012, no sentido de considerar a leso
corporal decorrente de violncia domstica um crime de ao penal
pblica incondicionada, pois a continuidade da ao penal independe
da vontade da vtima.
Com a previso das medidas protetivas na Lei Maria da Penha,
medidas essas que podem ser, de imediato, requeridas pela vtima na
delegacia e determinadas rapidamente pelo Judicirio, com as possi-
bilidades de priso em flagrante e outras providncias previstas na lei,
com a criao de rgos especializados no atendimento mulher, com
o aumento de informaes, com o trabalho de inmeros atores sociais
com o objetivo de contribuir para o empoderamento e autonomia da
mulher, esta tem adquirido foras para buscar novos caminhos para
sua vida e a de sua famlia.
3PROTEO MULHER NO DIREITO BRASILEIRO
A Constituio de 1988 tem enorme influncia na histria dos

direitos da mulher brasileira repetindo,2 em vrios artigos, os princ-
2
Assim a CF, ao dispor sobre os direitos individuais, estabelece no art. 5, inciso I homens e
mulheres so iguais em direitos e obrigaes, nos termos desta constituio; sobre os direi-
tos sociais, em relao mulher trabalhadora, no art. 7, inciso XXX, prescreve a proibio de
pios de igualdade entre homem e mulher. Alm disso, no 8 do art.
226, estabelece que o Estado deve assegurar assistncia famlia, na
pessoa de cada um dos que a integram, devendo criar mecanismos
para coibir a violncia no mbito de suas relaes.
O art. 3 da Constituio Federal enumera os objetivos funda-
mentais da Repblica Federativa do Brasil, deixando evidente que a
proteo social se materializa nas polticas sociais efetivadas. Entre
esses, o de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raa, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminao.
O Brasil ratificou vrias convenes internacionais, incorpo-
rando tais normas ao seu ordenamento jurdico.3 Importa relembrar
a Conveno Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Vio-
lncia contra a Mulher Conveno de Belm do Par (1994) que, em
seu art. 1 define violncia contra a mulher como qualquer ato ou con-
duta baseada no gnero, que cause morte, dano ou sofrimento fsico,
sexual ou psicolgico mulher, tanto na esfera pblica como na esfera
privada e, em seu art. 3, estabelece: Toda mulher tem direito a uma
vida livre de violncia, tanto na esfera pblica como na esfera privada.
Importante salientar que equipara a discriminao a uma forma de
violncia contra a mulher, deixando claro que a no violncia con-
dio fundamental para a fruio dos direitos das mulheres. A Con-
veno inova ao introduzir o conceito de violncia baseada no gnero
como aquela que cometida, pelo fato de a vtima ser mulher, e, amplia
o mbito de aplicao dos direitos humanos, tanto na esfera pblica
(ocorrida na comunidade) como na esfera privada (no mbito da famlia
ou unidade domstica).
Na Cpula Mundial da Famlia, realizada em Sanya-China, em
dezembro de 2004, constatou-se que diferenas entre os gneros per-
manece sendo um problema grave. Violncia domstica ainda viola os
direitos humanos das mulheres e ameaa sua segurana pessoal, auto-
estima e sade. Os participantes da Cpula Mundial da Famlia de 2004
comprometeram-se a disseminar o contedo da Declarao de Sanya
e convocar governos, sociedade civil e outras instituies a aumen-
tar esforos, entre outras coisas, no sentido de empoderar mulheres a
participarem da vida pblica e livr-las do descaso, explorao, abuso
e violncia.
diferenas de salrios, de exerccio de funes e de critrios da admisso por motivo de sexo;

ao tratar dos direitos na famlia, no art. 226, 5 afirma que os direitos e deveres referentes
sociedade conjugal so exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
3
O art. 5, 2, da CF no se contenta em afirmar o carter exemplificativo da enumerao
dos direitos, admitindo outros vinculados ao sistema e a seus princpios, inovando em relao
s constituies anteriores, ao acrescentar: ou dos tratados internacionais em que a Rep-
blica Federativa do Brasil seja parte.
A Lei n. 11.340/2006 regulamentou o 8 do art. 226 da Cons-
tituio de 1988 e inovou no cenrio jurdico brasileiro ao encampar a
proteo integral mulher vtima de violncia e representou um novo
captulo na luta pelo fim da violncia contra as mulheres. Com efeito,
prev o enfrentamento da violncia domstica e familiar contra as
mulheres em trs eixos: Proteo e Assistncia; Preveno e Educao;
Combate e Responsabilizao.
Reconhece, assim, a violncia contra as mulheres na esfera
domstica, como problema de mltiplas dimenses que no pode ser
tratada apenas como problema de justia criminal.
Assim, o enfrentamento violncia domstica demanda a ado-
o de polticas pblicas adequadas que envolvem reas diversas. Para
tanto, o prximo item far uma abordagem sobre esta matria.
4POLTICAS PBLICAS COMO INSTRUMENTO DE CONCRETIZAO

DE DIREITOS
No Brasil, o desenvolvimento das polticas pblicas foi lento e

tardio; na primeira Repblica, a questo social era tratada como caso
de polcia. Na Era Vargas (1930/1945), aparecia como favor.4 Com a
Redemocratizao (19451964), governos populistas, marcados pelas
medidas de cunho antecipatrio s demandas e presses sociais, per-
ceberam que era preciso conceder no perifrico para salvar o essen-
cial: grandes decises pela cpula, alianas de setores dominantes
minoritrios, afastamento das camadas populares.5 Com o Golpe Mili-
tar (1964), verifica-se violenta represso s manifestaes populares e
a poltica social integra o conjunto das estratgias de governo, bus-
cando a legitimao de um modelo de desenvolvimento sob o lema da
segurana nacional.
A partir de 1977, ocorre a abertura poltica, lenta e gradual, no
governo Geisel. A dcada de 1980 assistiu a uma recesso econ-
mica, com crise do petrleo, arrocho salarial, inflao, controle pelo
FMI, pagamento da dvida externa. Por outro lado, na sociedade civil
h a reorganizao dos sindicatos e dos partidos polticos e criao de
novos partidos.
4
Durante esse perodo, de cunho paternalista, constituiu-se um complexo sistema de gesto
e regulao dos conflitos sociais, marcado pela ideia de colaborao entre as classes. A CLT
de 1943, inspirada na Carta del Lavoro do regime fascista italiano, regulou as relaes entre os
empregadores e trabalhadores. Vivamos uma poca autoritria, com a subordinao da orga-
nizao sindical ao Estado.
5
Na dcada de 1950 (e at 1964), o movimento social avana no campo e na cidade e h uma
ampliao da conscincia sociopoltica de segmentos da burocracia estatal. Na sociedade
civil, desenvolve-se anseio por reformas sociais, polticas e econmicas.
O agravamento da questo social na dcada de 1980, em decor-
rncia do aumento da pobreza e da luta pela redemocratizao do
Estado, coloca em cena o debate a respeito das polticas pblicas.
Nesse contexto, mister a discusso no apenas do padro histrico que
tem caracterizado as polticas sociais no pas seletivo, fragmentado,
excludente e setorizado , mas a necessidade de repensar os processos
decisrios responsveis pela definio de prioridades e modos de ges-
to de polticas.
Nessa poca, as reivindicaes feministas pugnavam pela adoo
de polticas pblicas que pudessem alterar os padres culturais sexis-
tas dominantes e oferecer atendimento diferenciado mulher vtima
de violncia. Os movimentos de mulheres denunciavam a discrimina-
o baseada no gnero, inscrita nas leis; o descaso policial no registro
de ocorrncias de violncia sexual; a atuao discriminatria da justia
criminal, com decises que absolviam homens que agrediam suas par-
ceiras, legitimando, dessa forma, o comportamento masculino. Pugna-
vam pela formulao de polticas pblicas para enfrentar a violncia e a
discriminao, especialmente para acabar com a impunidade nos casos
de violncia praticadas contra as mulheres, fomentando a criao das
Delegacias de Defesa da Mulher, que permitiram maior visibilidade ao
problema, contribuindo eficazmente nos debates, polticas e estudos
sobre a violncia contra as mulheres.6
A Constituio de 1988 adota um perfil das polticas pblicas
como um direito que pode ser reclamado direito de cidadania e no
mais vistas como ajuda ou favor ocasional e emergencial; complemen-
tada pela Lei n. 8.742/93 (Lei Orgnica da Assistncia Social LOAS) e
outros diplomas normativos, estabelece o novo direito o cofinancia-
mento dos entes federados (Unio, estado, municpios), com enfoque
6
Cf LOCHE, A. Adriana; FERREIRA, R. S. Helder; SOUZA, Antnio F. Lus; IZUMINO, Pasinato
Wnia. Sociologia jurdica: Estudos de Sociologia, Direito e Sociedade. Porto Alegre: Sntese,
1999, p. 123-126 - A primeira Delegacia de Defesa da Mulher, situada So Paulo, foi criada em
agosto de 1985. Pela primeira vez no Brasil, a violncia baseada nas diferenas de gnero pas-
sava a ser tratada como um assunto de poltica pblica, institucionalizando-se a preveno e
a represso da violncia contra a mulher. Objetiva-se, dessa, forma, acabar com a impunidade
que favorecia os agressores, criminalizando esse tipo de comportamento enraizado na cul-
tura brasileira (p. 123-124) . E acrescentam: [...].. a criao das delegacias funcionou como um
importante divisor de guas, quando se aborda os estudos sobre o tema. Em primeiro lugar,
por que as delegacias de defesa da mulher representaram um enorme avano no reconheci-
mento da violncia contra a mulher como um problema social, um problema que no podia
ser deixado de lado, para ser resolvido dentro de casa, mas que deveria ser tomado como
objeto de uma poltica pblica de segurana[...].Em segundo lugar, depois que as delegacias
foram criadas, registrou-se um aumento no nmero de denncias que tornou evidente a exis-
tncia de um problema que precisava ser enfrentado com urgncia pelas autoridades. Em ter-
ceiro lugar, tornou-se mais fcil ter acesso aos nmeros oficiais de ocorrncias. Antes os
nmeros de ocorrncias contra as mulheres encontravam-se dispersos por todos os distritos
policiais e no havia como identific-los, porque as estatsticas pautam-se no tipo de crime
cometido, independente do sexo das vtimas ou dos agressores (p. 125-126).
na descentralizao e participao, destacando-se a importncia da
participao da sociedade civil.
Atualmente, as polticas pblicas figuram na ordem do dia nas
discusses jurdico-sociais. Elas se apresentam como medidas jurdi-
cas, administrativas, oramentrias e financeiras, adotadas no plano
governamental, e voltadas para a realizao de direitos de contedo
positivo, que exigem uma prestao por parte do Estado. Assim, so
programas de ao governamental para coordenar os meios disposi-
o do Estado e as atividades privadas, visando realizao de objeti-
vos socialmente relevantes e politicamente determinados.7
A expresso poltica pblica, no dizer de Mancuso,8 pode ser
entendida como conduta da Administrao Pblica voltada conse-
cuo de programa ou meta previstos em norma constitucional ou
legal no um fim em si, mas a criao de um mero instrumento de
governo, determinando obrigaes a serem adimplidas, de condutas a
serem implementadas sujeita ao controle jurisdicional.
Observa Vieira Junior (2009. p. 33/34) 9 que o conceito de pol-
ticas pblicas abrange vrios componentes que devem ser levados em
considerao: a) as competncias dos rgos e entidades na formula-
o, implementao e avaliao das polticas pblicas; b) o arranjo ins-
titucional eventual articulao envolvendo rgos e entidades da
administrao pblica federal, outros Poderes, outros entes da federa-
o, estruturao de sistemas e definio de contrapartidas; c) o finan-
ciamento da poltica pblica recursos pblicos finitos opes; d)
os mecanismos que viabilizem a participao popular controle social
do Estado definio sobre quais so os atores; e) os segmentos da
populao elegveis para cada poltica; f) os mecanismos de operacio-
nalizao; g) a avaliao, a realimentao e a eventual redefinio das
polticas pblicas.
As polticas pblicas demandam a atuao dos Poderes, do
Ministrio Pblico, e, cada vez mais, a participao social. Com efeito,
o Poder Executivo legitimado constitucionalmente a tomar a inicia-
tiva de formular e implementar polticas pblicas. Por sua vez, o Poder
Legislativo possui ampla possibilidade de manifestao e deliberao,
ressalvados os limites constitucionais, atuando, ainda, no controle e
fiscalizao das polticas pblicas com o auxlio do Tribunal de Contas.
7
BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e polticas pblicas. So Paulo: Saraiva,
2002, p. 241.
8
MANCUSO, Rodolfo de C. A ao civil pblica como instrumento de controle judicial das
chamadas polticas pblicas. In: MILAR, dis (Coord.). Ao civil pblica. Lei 7.347/85 15
anos, 2001, p.731.
9
VIEIRA JUNIOR (2009. p. 33-34)
O Poder Judicirio promove o controle de constitucionalidade e
de legalidade das polticas pblicas, havendo, inclusive, a possibilidade
de controle de mrito, nos casos de legislao ou atividade desarrazo-
ada ou proteo insuficiente. Segundo o Supremo Tribunal Federal, o
poder de legislar no ilimitado, havendo que se preservar o mnimo
intangvel assegurador da dignidade do ser humano. Alm disso, a atu-
ao do Poder Judicirio aduz que a norma programtica no pode
ser vista como promessa constitucional inconsequente.10 Assim a pos-
sibilidade de controle do mrito ocorre, tambm, quando os Poderes
Executivo e Legislativo demitem-se da obrigao de tornar efetivos os
direitos assegurados na Constituio. E o Ministrio Pblico tem sido
canalizador de demandas, merecendo destaque tambm a atuao de
entidades da sociedade civil e movimentos sociais que tm pressionado
o Poder Pblico, no sentido de implementao de polticas pblicas.
necessrio destacar que, na Constituio de 1988, os direitos
a prestaes encontraram grande receptividade, no s no captulo
especialmente dedicado aos direitos sociais, no elenco dos direitos
fundamentais, mas tambm em outras partes do texto constitucio-
nal, assegurando-se aos indivduos a possibilidade de exigir do Estado
prestaes especficas, materializadas em polticas pblicas.11
Anteriormente, no Estado liberal-burgus, pugnava-se pelo reco-
nhecimento dos direitos civis e polticos perante o Estado e, quanto
menos palpvel a presena do Estado, nos atos da vida humana, mais
larga e generosa a esfera de liberdade outorgada ao indivduo. Cabe-
ria a este fazer ou deixar de fazer o que lhe aprouvesse, no dizer de
Bonavides.12
Hoje, a Constituio brasileira contm normas definidoras de
tarefas e programas de ao a serem concretizados pelos poderes
pblicos.13 A meta central das Constituies modernas, e da Carta de
1988 em particular, pode ser resumida na promoo do bem-estar do
ser humano, cujo ponto de partida est em assegurar as condies de
sua prpria dignidade.14 O papel do Estado passou de provedor da equi-
dade a gerente de polticas pblicas, com nfase em novos paradigmas
na redefinio de suas funes. Emergem formas dinmicas de intera-
o entre o Estado e sociedade, voltadas para a melhoria da qualidade
de vida.
10
Cf ADPF n. 45, julgada em 29.04.2004, relator Ministro Celso de Mello; RE-AgR 410715/SP,
22.11.2005, Relator Celso de Mello.
11
Nesse sentido, SARLET, Ingo Wolfgang. A eficcia dos direitos fundamentais. 6. ed. rev.. e
atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 216.
12
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 31.
13
Conforme NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 2. ed. So Paulo: Mtodo, 2008.
14
STJ - REsp 811608 / RS, rel. Min. Luiz Fux.
Em uma viso democrtica de gesto, cabe ao estado articu-
lar iniciativas mltiplas, revitalizando o envolvimento voluntrio da
comunidade ou de setores da sociedade civil, estabelecendo parcerias
na gesto de polticas e programas sociais por meio de redes locais,
nacionais ou mundiais, e por meio delas, constituir fruns de escuta e
localizao de demandas, introduzindo-as na agenda poltica.
5A LEI MARIA DA PENHA E A PREVISO DE POLTICAS PBLICAS

INTEGRAIS PARA O ENFRENTAMENTO DA VIOLNCIA DOMSTICA
A Lei n. 11.340/2006 Lei Maria da Penha , antes de tudo,

uma norma diretiva de polticas pblicas de carter preventivo, pro-
tetivo (ateno vtima) e de interveno (educao e reabilitao de
agressores). Nela, h previso de polticas preventivas, incluindo imple-
mentar aes que desconstruam mitos e esteretipos de gnero e que
modifiquem os padres sexistas, perpetuadores das desigualdades
de poder entre homens e mulheres e da violncia contra as mulheres.
Inclui aes educativas e tambm culturais que disseminem atitu-
des igualitrias e valores ticos de irrestrito respeito diversidade de
gnero, raa/etnia, geracionais e de valorizao da paz. Recomenda
campanhas educativas, programas educacionais e incluso nos curr-
culos escolares de todos os nveis de ensino, de contedos relativos aos
direitos humanos, equidade de gnero e de raa.
Essa lei, depois de estabelecer disposies preliminares acerca
dos direitos humanos das mulheres, inaugura o Ttulo II com uma defi-
nio do que seja a violncia domstica e familiar contra a mulher,
fixando, portanto, sua abrangncia, a saber: qualquer ao ou omisso
baseada no gnero que lhe cause morte, leso, sofrimento fsico, sexual
ou psicolgico e dano moral ou patrimonial; seguindo com definies
tcnicas do que seja mbito domstico, alm das formas de manifesta-
o dessas violncias: fsica, psicolgica, sexual, patrimonial e moral.
Prescreve a implantao de polticas pblicas em vrios arti-
gos, nos trs eixos: Proteo e Assistncia; Preveno e Educao;
Combate e Responsabilizao. Assim, no Ttulo III, sinaliza as medidas
integradas de preveno e tambm de assistncia quando a violncia
j no tenha podido ser evitada. Ressalta a possibilidade de a vtima
em situao de violncia, iminente ou efetiva, ser assistida com medi-
das protetivas de urgncia deferidas pela autoridade judiciria. Deter-
mina ainda a criao de equipes de atendimento multidisciplinar (arts.
29 a 32), competindo Unio, Estados, Distrito Federal e Municpios
a criao de centros de atendimento integral e multidisciplinar, alm
de casas-abrigo, para mulheres e seus dependentes, delegacias, defen-
sorias pblicas, servios de sade e centros especializados de percia
mdico-legal, programas e campanhas de enfrentamento e centros de
educao e de reabilitao para os agressores (art. 35). Preconiza ainda
a elaborao de estatstica sobre a violncia domstica e familiar (art.
38). Prev a lei o comparecimento do agressor a programas de recupe-
rao e reeducao.15
Assim, a violncia domstica foi compreendida pela lei como
problema que requer polticas pblicas integrais para seu enfrenta-
mento, no se resumindo simples persecuo criminal do autor: deve
a mulher ser atendida em servios de sade e de assistncia psicos-
social e no apenas na delegacia; as medidas protetivas para a mulher
podem ser requeridas ao juiz de imediato pela autoridade policial ao
tomar conhecimento da violncia, e, entre essas encontramos, em
relao ao agressor: proibio de contato e aproximao ou frequncia
a determinados lugares; suspenso de porte arma; afastamento do lar
ou do local de convivncia com a ofendida; restrio ou suspenso de
visitas aos dependentes menores; prestao de alimentos provisrios,
entre outras.16
Em relao mulher, a lei traz uma enumerao exemplificativa
de medidas: encaminhamento da ofendida e seus dependentes a pro-
grama oficial ou comunitrio de proteo ou atendimento; reconduo
da ofendida e a de seus dependentes ao domiclio, aps afastamento
do agressor; proteo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos
e alimentos; separao de corpos. Outras medidas de assistncia so:
incluso da mulher em situao de risco em programas assistenciais do
governo federal, estadual ou municipal; acesso aos servios de Defen-
soria Pblica ou de assistncia judiciria gratuita, em sede policial e
judicial, mediante atendimento especfico e humanizado.
H previso legal de abrigos, cujos endereos so sigilosos, onde
podem ser colocadas as mulheres e seus filhos.
15
Vrias outras mudanas foram previstas na Lei Maria da Penha: retirou-se dos juizados
especiais criminais a competncia para julgar violncia contra a mulher, proibindo-se a apli-
cao de penas pecunirias (como as de cestas bsicas e de multas); as questes de urgncia
devem ser resolvidas nos juizados especiais de violncia domstica e familiar contra a mulher,
com competncia cvel e criminal; previso de priso em flagrante do agressor e ainda, a pre-
ventiva para os crimes de violncia domstica quando houver riscos integridade fsica ou
psicolgica da mulher; a mulher-vtima deve ser informada quanto ao andamento dos atos
processuais, especialmente quanto ao ingresso e sada da priso do agressor; dever estar
acompanhada e assistida em todos os atos processuais; alterou-se o CP para considerar-se
esse tipo de violncia como agravante da pena; a pena para o crime de leso corporal resul-
tante de violncia domstica, anteriormente fixada entre seis meses a 1 ano, passou a ser de 3
meses a 3 anos; em casos de violncia domstica contra mulher portadora de deficincia, a
pena ser aumentada em 1/3.
16
As medidas cautelares que obrigam o agressor a afastar-se do lar e proibio de contato e
aproximao da vtima, se bem fiscalizadas, poderiam amenizar este problema, pois o des-
cumprimento da medida protetiva pelo autor da agresso causa suficiente para sua priso
preventiva. Mas precisamos recordar que a simples priso no a soluo.
O apoio psicolgico fundamental, no s para vtima, mas tam-
bm para os demais envolvidos. A lei prev intervenes teraputicas
em relao ao autor da agresso e criao de servios especializados
para sua reeducao e recuperao.
6O ENFRENTAMENTO VIOLNCIA CONTRA A MULHER POR MEIO DE

POLTICAS PBLICAS
A abordagem da questo da violncia nas relaes domsticas

como um fenmeno social que exige aes pblicas enfrenta diver-
sas resistncias. Primeiramente, importante considerar a ideia, ainda
presente em alguns espaos sociais, de que em briga de marido e
mulher ningum mete a colher. Isso precisa ser insistentemente des-
construdo mudamos: em briga de marido e mulher, devemos meter a
colher!!!! Alm disso, ainda persistem compreenses limitadas na con-
ceituao das violncias: que tipos de comportamentos cada um dos
parceiros nomeia como violncia? O que os outros entendem como
violncia? Qual o seu limite em uma relao familiar? urgente des-
construir mitos e esteretipos que ainda permeiam a nossa sociedade,
inclusive entre os operadores de Direito.
A concretizao dos direitos da mulher, especialmente o direito
de viver sem violncia, demanda mltiplas aes no s do Estado,
mas com a participao indispensvel da sociedade e da famlia. A pr-
pria Lei Maria da Penha aponta vrias medidas que, se materializa-
das, seriam muito importantes no enfrentamento violncia contra a
mulher. A seguir, sero analisadas algumas.
Em primeiro lugar, necessrio frisar o papel fundamental da
educao. Sabe-se que mudanas de padres culturais sexistas no
so consequncia automtica da sociedade democrtica. Assim, h a
necessidade de repensar os saberes que a educao formal desde a
educao bsica at a graduao e ps-graduao, as Escolas da Magis-
tratura, da Advocacia ou do Ministrio Pblico esto construindo.
H milnios esta cultura de sujeio da mulher foi sendo cons-
truda... No ser de forma rpida que mitos, preconceitos e estereti-
pos sero desconstrudos. A vigncia de uma lei pode ajudar, funciona
como coadjuvante, como um dos fatores para o fim da violncia. Con-
tudo, as normas da preveno previstas na lei precisam ser concre-
tizadas no viver social. preciso que toda a sociedade se mobilize e
nunca demais enfatizar o papel fundamental da educao. Sabemos
que mudanas dos padres sexistas, de condutas e atitudes precon-
ceituosas no ocorrem como consequncia automtica da sociedade
democrtica. Assim, h a necessidade de repensar a educao que est
sendo ministrada e como as unidades escolares, em todos os graus,
esto construindo seus saberes de forma integrada, promovendo o
respeito dignidade humana. fundamental fomentar processos de
educao formal e no formal, de modo a contribuir para a construo
da cidadania, o conhecimento dos direitos fundamentais, da plurali-
dade, da igualdade sexual e o respeito diversidade.
Vale frisar que a Declarao Universal de Direitos Humanos,
adotada pela Assembleia Geral das Naes Unidas, em 10 de dezembro
de 1948, em seu prembulo, reafirma sua f nos direitos humanos fun-
damentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade
de direitos dos homens e das mulheres, proclamando que este um
ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as naes, [...],
atravs do ensino e da educao. Por isso, o seu art. 26 determina que a
educao deve ser orientada no sentido do pleno desenvolvimento da
personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos
humanos e pelas liberdades fundamentais.
Com o advento da Constituio de 1988, a educao firmou-se
como instrumento de cidadania e de dignidade da pessoa humana,
itens essenciais ao Estado Democrtico de Direito e condio para a
realizao dos objetivos fundamentais da Repblica, Com efeito, a
Constituio Federal de 1988, em seu art. 205, estabelece que a educa-
o deve visar ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exerccio da cidadania e sua qualificao para o trabalho.
Sem dvida, a educao para a cidadania deve perpassar todas
as disciplinas curriculares harmoniosamente, de forma que os conte-
dos reforcem os princpios de respeito dignidade do ser humano.
H de ser realado, entretanto, que a temtica referente a gnero deve
ser operacionalizada tanto no currculo explcito das escolas, ou seja,
aquele que se liga construo de conhecimentos e atitudes, como no
currculo oculto, o qual tem na ideologia da instituio de ensino e dos
seus mestres sua aplicao implcita. Isto porque os ensinamentos para
equidade de gnero podem ser validados ou invalidados, consciente ou
inconscientemente.
O currculo implcito est ligado tambm ao exemplo cotidiano
dos professores, diretores e dos prprios estudantes. Assim, a pr-
tica docente diria portadora de uma srie de mensagens, podendo
fortalecer o respeito dignidade humana, o respeito s diferenas ou
reforar preconceitos e os padres culturais sexistas.
Sem dvida, o professor pode ser o estimulador de um ambiente
plural, multidimensional. A prtica docente diria portadora de uma
srie de mensagens que pode fortalecer o respeito dignidade humana.
Na educao para a equidade de gnero necessrio considerar nveis
e processos diferenciados e articulados de transversalidade e inter-
disciplinaridade no processo de ensino de todas as disciplinas, e no
necessariamente a oferta de uma disciplina isolada. Isso precisa cons-
truir-se como valor, conhecimento e prtica, enquanto tema trans-
versal, atravessando todos os nveis da gesto, do ensino e da prtica
profissional e institucional de todos agentes dos sistemas de educao.
A educao seja formal ou no formal deve ser direcionada
vivncia da igualdade, no podendo ser produtora e reprodutora
da discriminao e violncia de gnero. Deve desvelar preconceitos e
esteretipos, problematizando o olhar para o mundo, no reforando
a separao por gnero por meio dos artefatos culturais, como, por
exemplo, brinquedos das meninas voltados para a maternagem, para
a vida domstica e brinquedos dos meninos que levam lgica das
aes. preciso repetir: a educao produz as representaes como
um processo de construo social em um sistema de significaes.
pela educao que diferenas sexuais se transformaram em desigual-
dades culturalmente constitudas no fundo o que necessrio a
desconstruo de padres culturais sexistas.
A Lei n. 9.394/1996 estabelece as diretrizes e bases da educao
nacional repetindo a CF, em seu art. 2 A educao, dever da fam-
lia e do Estado, inspirada nos princpios de liberdade e nos ideais de
solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do
educando, seu preparo para o exerccio da cidadania e sua qualificao
para o trabalho.17
As Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educao
Bsica, para o Ensino Fundamental e para o Ensino Mdio evidenciam
a funo da educao, na sua relao com um projeto de nao, tendo
como referncia os princpios constitucionais, realando a necessidade
de considerar nos componentes curriculares e as reas de conheci-
mento a abordagem de temas abrangentes e contemporneos que afe-
tam a vida humana. Entre esses temas, registram sexualidade e gnero,
vida familiar e social, atribuindo aos rgos executivos dos sistemas de
ensino a produo e a disseminao de materiais subsidirios ao tra-
balho docente, que contribuam para a eliminao de discriminaes,
e outros preconceitos e que conduzam adoo de comportamentos
responsveis e solidrios em relao aos outros.
Acrescenta o art. 27 da Lei n. 9.394/1996: Os contedos curriculares da educao bsica

17
observaro, ainda, as seguintes diretrizes: a difuso de valores fundamentais ao interesse

social, aos direitos e deveres dos cidados, de respeito ao bem comum e ordem democr-
tica; e ainda o art. 32: O ensino fundamental obrigatrio, com durao de 9 (nove) anos, gra-
tuito na escola pblica, iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, ter por objetivo a formao
bsica do cidado, mediante: IV - o fortalecimento dos vnculos de famlia, dos laos de soli-
dariedade humana e de tolerncia recproca em que se assenta a vida social.
Assim, com a incluso de discusso de temas relativos a gnero,
preferencialmente, de forma transversal e integradora bem como pr-
ticas que contribuam para a igualdade e para o enfrentamento de
todas as formas de preconceito, discriminao e violncia, a educao
pode contribuir para a construo da cidadania, da igualdade inclu-
sive sexual e o respeito diversidade.
Outra medida necessria para o enfrentamento violncia
domstica a atuao em rede. fundamental articular instituies
governamentais e no governamentais, constituindo a chamada Rede,
integrando programas, projetos e aes desenvolvidos por diversos
atores, com a superao de aes isoladas ou iniciativas pontuais e
aleatrias.
Em terceiro lugar, preciso atentar para a corresponsabili-
dade da Sociedade e Estado com a construo sistemtica de polticas
pblicas inclusivas, com o potencial suporte da participao social em
sua formulao, em todos os nveis, no sentido de um real enfrenta-
mento violncia contra a mulher. Devem ser levadas em considerao
a formulao, implementao, avaliao e a eventual redefinio das
polticas pblicas necessrias. H necessidade de mobilizar os muni-
cpios ou estados que no tm uma poltica pblica para o enfrenta-
mento violncia a introduzi-la ou implement-la e mobilizar os que
j tm, a aperfeio-la, seja em relao ao direito substancial (nmero
e qualidade das aes), seja com relao aos procedimentos (nmero
e qualidade dos controles, diagnsticos, monitoramento, avaliao).
indispensvel que haja controle e fiscalizao, tanto pelos poderes e
rgos do Estado como pelos Conselhos de Direitos e pelas entidades
da sociedade civil, para verificar se, como, e, em que grau, as normas e
as polticas foram acolhidas e respeitadas.
Por outro lado, indispensvel no apenas o compromisso dos
profissionais que trabalham direta ou indiretamente na rea, mas,
principalmente, o envolvimento da sociedade brasileira. As Confern-
cias de Polticas para Mulheres so um locus privilegiado de participa-
o da Sociedade civil. Assim, de maneira exemplificativa, vale trazer
nesta oportunidade as propostas e recomendaes pertinentes s
polticas de enfrentamento violncia contra a mulher, aprovadas com
a participao de vrios representantes da sociedade civil, na IV Con-
ferncia Municipal de Polticas para as Mulheres, com o tema: Mais
direitos, participao e poder para as mulheres, realizada dias 30/31
de julho de 2015, em Aracaju.
Entre as aes educativas e preventivas, listam-se as seguintes:
campanhas de promoo da igualdade de gnero em todos os veculos
da mdia; criao e veiculao de campanhas publicitrias municipais
de combate violncia contra mulher, nos equipamentos pblicos e
nos meios de comunicao, inclusive nas redes sociais, com divulgao
dos servios de ateno mulher; realizar campanhas educativas tanto
nas escolas, rgos pblicos e entidades no governamentais, quanto
nos meios de comunicao, a fim de promover o empoderamento da
populao feminina, o combate violncia de gnero e o respeito
diversidade de gnero e orientao sexual.
Alm disso, foram aprovadas outras recomendaes: fortale-
cer junto comunidade escolar programas permanentes e campanhas
educativas de preveno da violncia contra as mulheres e que discu-
tam as interfaces entre a violncia domstica contra mulheres e as vio-
lncias contra crianas, jovens, adolescentes e idosos.
Ainda com referncia a estudos e pesquisas foram aprovadas
as seguintes recomendaes: fortalecimento de pesquisas de gnero,
relativamente aos diversos mbitos da vida das mulheres, estabele-
cendo parcerias com instituies de ensino superior para aes con-
juntas; criao de frum permanente de debate sobre violncia contra
mulher incluindo o debate sobre a violncia obsttrica; firmar Termo
de Cooperao Tcnica entre rgos e entidades que atuam com pol-
ticas pblicas que produzam indicadores de gnero para viabilizar uma
base unificada de dados.
No que se refere assistncia mulher em situao de violn-
cia: criao/implantao de um centro de atendimento especializado
a mulher em situao de violncia, que contemple o servio de segu-
rana, assistncia social e sade, de funcionamento 24 horas, a exem-
plo da casa da mulher brasileira, com delegacias especializadas de
atendimento, com funcionamento aos fins de semana e feriados com
garantia de atendimento, com equipe multidisciplinar sensibilizada em
relao ao tema, com atendimento 24h em regime de planto e garan-
tia de encaminhamento para a Casa Abrigo 24h; ampliao do nmero
de delegacias da Mulher.
Destacam-se ainda as recomendaes quanto capacitao dos
agentes pblicos, com a sensibilizao continuada das redes de aten-
dimento mulher, nos nveis municipal, estadual e federal, no mbito
dos servios de sade, educao, assistncia social, segurana e outras
polticas pblicas; atualizao peridica com relao s leis e aes
desenvolvidas para as equipes da rede; formulao de projetos que tra-
balhem questes de gnero para os servios j existentes nos equi-
pamentos da Assistncia Social, em parceria com outras secretarias;
garantia de formao continuada e de ps-graduao dos profissionais
de educao, bem como para os demais profissionais que atuam dire-
tamente com o atendimento dos usurios de polticas pblicas, para a
abordagem de forma transversal de temas relacionados questo de
gnero (diversidade, violncia, empoderamento etc).
No mbito dos Conselhos Municipais dos Direitos da Mulher,
criar observatrios com o objetivo de fiscalizar a execuo das polti-
cas pblicas voltadas para a populao feminina, bem como a poltica
de igualdade em todos os mbitos; mapear as organizaes governa-
mentais e no governamentais que atuam com a questo de gnero nos
municpios.
No pertinente responsabilizao do autor de agresso, vale des-
tacar a recomendao de acompanhamento psicossocial dos agresso-
res e intervenes socioteraputicas para que ele possa ter a percepo
de seus atos e reformular seus padres de comportamento; implanta-
o de um centro de atendimento especializado para autores de vio-
lncia contra mulher, como j previsto na Lei Maria da Penha.
Varias outras recomendaes foram e sero aprovadas nas con-
ferncias municipais, territoriais e estaduais de polticas pblicas para
a mulher, devendo culminar no incio de 2016, com a conferncia nacio-
nal. Precisam, entretanto, que no permaneam nas gavetas e sejam
materializadas no cotidiano das mulheres brasileiras.
7CONSIDERAES FINAIS
A violncia domstica contra a mulher reveste-se de complexi-

dade: no possvel admitir um binarismo simplista homem-algoz e
mulher-vtima. O autor da agresso faz parte de um sistema e a vtima
um sujeito, uma mulher em situao de violncia, em uma relao;
necessrio que as mulheres e os homens tenham conscincia dos
diferentes esteretipos sexuais e dos papis limitadores o discurso
vitimista no s limita como tambm no oferece uma alternativa sufi-
ciente, posto que a mulher, no raras vezes, fica enredada em sua pr-
pria vitimizao por fora dos mitos culturais , e no consegue sair
dessa situao, se no tiver apoio.
Todas as discusses em face do tema perpassam pela necessi-
dade do emprego de esforo conjunto e engajado da famlia, da socie-
dade e do Poder Pblico trabalho em rede efetivamente. Todos,
indistintamente, precisam contribuir para efetivao do direito inte-
gridade fsica, moral, psicolgica e sexual da mulher que est sendo
cotidianamente violado. Assim, a violncia contra a mulher no ape-
nas um acontecimento da vida privada, pois em briga de marido e
mulher, o Estado precisa meter a colher!
As polticas pblicas conjunto de medidas adotadas com o obje-
tivo de concretizar direitos e garantias fundamentais dos indivduos
ou coletividades devem ser implementadas pelo Estado para aten-
dimento dos direitos essenciais consagrados pela Constituio, entre
eles uma vida sem violncia domstica e familiar. Entretanto, funda-
mental insistir que as leis no bastam para mudar um contexto cultural
marcado pela violncia, que foi legitimada e naturalizada historica-
mente. Induvidosamente, as polticas pblicas representam a materia-
lizao dos direitos e demandam a atuao dos poderes e do Ministrio
Pblico, e, cada vez mais, a participao indispensvel da sociedade
civil, por meio das entidades no governamentais e dos movimentos
sociais.
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Disponvel em: <www.dhnet.org.br>. Acesso em: 10 jun. 2008.
AO DE PRESTAO DE CONTAS DA ADMINISTRAO
DOS BENS DO CASAL E ALIMENTOS
Thiago Felipe Vargas Simes
Advogado. Mestre e Doutor em Direito Civil PUC/SP.

Professor de Direito de Famlia e Sucesses da Universidade Vila
Velha (UVV/ES). Professor de Direito de Famlia da Escola Superior
da Magistratura do ES (ESMAGES). Membro do Instituto Brasileiro de
Direito de Famlia (IBDFAM). Membro do Instituto Brasileiro de Direito
Civil (IBDCIVIL). Membro da Comisso de Estudos Constitucionais
da Famlia IBDFAM. Presidente do IBDFAM/ES (binios 2014/2015 e
2016/2017).
Sumrio: 1. Introito. 2. Da prestao de contas. 3. Da pres-

tao de contas na administrao de bens comuns do
casal. 4. Da prestao de contas nos alimentos. 5. As con-
tas no Novo Cdigo de Processo Civil. 6. Referncias.
1INTROITO
O projeto de vida comum sempre foi de grande importncia para

se determinar a extenso dos efeitos no cotidiano social, tutelando a
existncia da pessoa humana em toda sua plenitude. No por outro
motivo, o ordenamento brasileiro imbuiu-se de verdadeira carga axio-
lgica voltada contnua persecuo da erradicao das mais diversas
desigualdades.
E inegvel ser no seio de uma famlia que a personalidade
humana se desenvolve, partindo de valores sociojurdicos explcitos e
implcitos no tecido legislativo nacional.
Ao tratar da composio dos ncleos familiares, o Cdigo Civil
brasileiro, em seu artigo 1.511, estabelece a clusula geral da comunho
plena de vida com base na igualdade entre os membros que integram a
mais antiga das formas de relao jurdica entre pessoas: a famlia.
Como decorrncia deste vetor de interpretao da relao fami-
liar, possvel entender que todas as facetas que o Direito de Famlia
prev passam a atender, em plena isonomia, a promoo da personali-
dade humana a partir dos efeitos pessoais, patrimoniais e assistenciais
entre os integrantes da clula mater da sociedade brasileira.
A tica civilista, partindo do patrimnio e da desigualdade das
pessoas que compunham a famlia, preconizada pelo Codex de Bevi-
lqua, deu lugar primazia da dignidade humana, baseada em uma
imprescindvel personalizao das relaes civis, concretizada com
a promulgao do atual Cdigo Civil. Ou seja, a antiga viso de pes-
soas servindo-se dos mais diversos ajustes de vontades (autonomia
da vontade), com o fito de acumular riqueza, deu espao ao exerccio
condicionado da liberdade negocial (autonomia privada), sem que a
propriedade se sobreponha condio humana dos contratantes.
Na esfera da relao patrimonial do Direito de Famlia, temos nos
regimes de bens (Ttulo II, Subttulo I, do Livro IV da Parte Especial do
CC) uma flagrante observncia aos princpios da Dimenso Existencial
do Prximo (desenvolvida por Robert Alexy) e do Mnimo Existencial
(desenvolvida por Karl Larenz), quando o ordenamento prev a exis-
tncia de um conjunto de regras que dispem sobre a vida econmica
da famlia, possibilitando um acervo bsico de bens para satisfazer a
necessidade individual e comum de seus integrantes.
Tm-se, assim, os regimes de bens como um elemento baliza-
dor da igualdade patrimonial entre cnjuges e conviventes, devendo
ser observada eventual conveno neste sentido (pacto antenupcial
ou contrato de convivncia) ou a aplicao de preceitos legais trazidos
pelo legislador.
Ainda que o projeto de vida comum venha a ser interrompido por
vontade das partes, a paridade econmica do casal deve ser preservada
luz de uma justa (e inevitvel) preservao da solidariedade familiar e
manuteno da personalidade humana de cada um dos integrantes da
famlia, propiciando-lhes recursos para subsistncia digna.
Da a previso legal (material e processual) dos alimentos e seu
vis assistencial, voltado queles que necessitam do auxlio econmico
prestado por aquele que detm recursos financeiros para socorrer
quem deles precisa, bem como o instituto jurdico da meao, a fim de
assegurar uma correta distribuio de patrimnio luz do regramento
de bens do casal.
2DA PRESTAO DE CONTAS
No raro, quando do rompimento da vida comum, o acervo de

bens comuns fica sob a administrao de um dos ex-cnjuges/convi-
ventes, o qual passa a exercer, at a decretao da partilha dos bens,
atos de administrao e conservao patrimonial, retirando, destes,
seu sustento e/ou fonte de renda capaz de assegurar-lhe conforto
econmico, privando o outro da posse direta dos bens e dos frutos
gerados.
Para evitar um desequilbrio patrimonial enquanto no se deter-
mina a partilha dos bens comuns, o Cdigo de Processo Civil de 1973
prev, em seus artigos 914-919, o instituto da Prestao de Contas, cuja
finalidade verificar eventuais irregularidades por parte daquele que
pratica atos de administrao ou gesto de bens ou direitos.
Nessa linha, assim orienta a jurisprudncia do Tribunal de Jus-
tia do Rio Grande do Sul:
[...]. A ao de prestao de contas tambm no se presta finali-

dade de cobrana ou indenizao, o que parece ser, efetivamente, a
pretenso da parte autora, mas para fins de averiguao dos atos de
administrao. [...]. (TJRS; AC 0178838-38.2012.8.21.7000; Porto Ale-
gre; Sexta Cmara Cvel; Rel. Des. Sylvio Jos Costa da Silva Tavares;
Julg. 01.10.2015; DJERS 06.10.2015).
A prestao de contas consiste, como observa Humberto Theo-

doro Jnior,
[...] no relacionamento e na documentao comprobatria de todas

as receitas e de te todas as despesas referentes a uma administra-
o de bens, valores ou interesses de outrem, realizada por fora de
relao jurdica emergente da lei ou do contrato.1
Nota-se, assim, que a prestao de contas no se destina a inter-

ferir na livre administrao ou gesto de bens de seu titular, mas, sim,
para garantir direito daquele que no se encontra no exerccio do con-
trole material dos bens comuns, os quais devero integrar a justa divi-
so dos bens, bem como responsabilizar o mau administrador por
eventuais danos sofridos.
Por tal motivo, possvel afirmar que a ao de prestao de
contas possui natureza jurdica condenatria, haja vista que a sentena
prolatada nesse procedimento especial de jurisdio contenciosa reco-
nhece, a quem de direito, o status de credor, com base em um ttulo
executivo que traga um balano contbil referendado pelo juiz.
Pelos termos do artigo 917, do CPC/73, a prestao de contas
ser apresentada em forma mercantil, devendo ser especificados as
receitas, despesas e o saldo remanescente, acompanhados dos docu-
mentos comprobatrios, sob pena de as contas serem rejeitadas pelo
Cf. THEODORO JNIOR,Humberto. Curso de direito processual civil. 42. ed. Rio de Janeiro:
1
Forense, 2010, v. III, p. 79.
julgador, salvo se forem consideradas boas diante de razovel justifica-
tiva da parte.
Esta a orientao da jurisprudncia do Superior Tribunal de
Justia:
[...]. 2. A prestao de contas em forma mercantil uma necessi-

dade do processo, uma vez que o exame, a discusso e o julgamento
dos clculos devem ser facilitados para os sujeitos processuais. No
entanto, as contas apresentadas de forma no mercantil podem ser
consideradas boas diante do oferecimento de justificativa plaus-
vel pela parte, principalmente quando a complexidade dos clculos
imprescindir de realizao de percia contbil. [...]. (STJ; EDcl-REsp
1.218.899; Proc. 2010/0187075-8; PR; Quarta Turma; Rel. Min. Marco
Buzzi; DJE 18.12.2014).
Isto posto, h de se mencionar que so processualmente legti-

mos e interessados para iniciar o procedimento da prestao de con-
tas tanto aquele que tem o direito de exigi-las (prestao ativa) quanto
quem tem a obrigao de prest-las (prestao passiva), como preco-
niza o artigo 914, I e II, do CPC/73.
Trata-se, portanto, de verdadeiro carter dplice da ao, mas
sem que isso seja relevante, pois, segundo afirma Humberto Dalla
Bernardina de Pinho,2 [...] qualquer dos sujeitos da relao jurdica
material, geradora da obrigao de prestar contas, pode ocupar indis-
tintamente o polo ativo ou passivo da relao tendente ao acertamento
delas.
Em se tratando de prestao de contas ativa (ou ao de exigir
contas), a causa de pedir versa sobre a no realizao da apresenta-
o das contas por parte daquele que deveria prest-las, no havendo,
aqui, qualquer necessidade de se apontar insegurana ou incertezas
sobre os atos de administrao.3
J na hiptese de prestao de contas passiva (ou ao de dar
contas), a ao inicia-se com a apresentao espontnea das contas
por parte do administrador, com vistas a se livrar da sujeio de ser
2
Cf. PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Direito processual civil contemporneo. So
Paulo: Saraiva, 2012, v. 2, p. 550.
3
[...]. 4. Nos termos do artigo 914 do CPC, o requerimento de prestao de contas pode ser
realizado por quem tem direito de exigi-la em face de quem possui dever de prest-la. [...].
(TJES; APL 0011469-21.2013.8.08.0024; Segunda Cmara Cvel; Rel. Des. Fernando Estevam
Bravin Ruy; Julg. 17.03.2015; DJES 24.03.2015).
compelido judicialmente para praticar o ato, sendo, portanto, uma ver-
dadeira obrigao processual personalssima.4
3DA PRESTAO DE CONTAS NA ADMINISTRAO DE BENS CO-

MUNS DO CASAL
Como dito anteriormente, o fim do projeto de vida comum pode

colocar um dos ex-cnjuges/conviventes na condio de administra-
dor do acervo patrimonial do casal, por fora do estabelecimento da
mancomunho patrimonial ante a no decretao da partilha dos bens
comuns.
Nessa linha, a orientao da jurisprudncia do Tribunal de Jus-
tia de Minas Gerais:
[...]. 3. Os bens no partilhados aps a separao continuam per-

tencendo ao casal, em estado de mancomunho, caracterizando-se
como um todo unitrio e indivisvel, at que ocorra a partilha. [...].
(TJMG; APCV 1.0684.13.001033-4/001; Rel Des urea Brasil; Julg.
03.04.2014; DJEMG 14.04.2014).
Assim sendo, enquanto um dos ex-consortes exerce os atos

de administrao de bens, de interesse daquele que no se encon-
tra na posse direta dos bens exigir a prestao de contas, bem como
est obrigado o administrador de prest-las, sob pena de se colocar em
risco a justa diviso dos bens quando da partilha.
A situao de administrador dos bens comuns eleva o ex-cn-
juge/convivente condio de mandatrio tcito (art. 659, do CC),
obrigando-o, por este motivo, a prestar contas de sua gerncia e trans-
ferir ao outro as vantagens (frutos) provenientes do mandato, conso-
ante disposio do artigo 668, do Cdigo Civil.5-6
4
[...]. 3. A disposio do art. 914, II, do CPC, de que a ao de prestao de contas compete a
quem tiver a obrigao de prest-las, deve ser lida e interpretada no sentido de competir
somente quele que administra os bens e interesses de terceiros (obrigao personalssima),
porque a pessoa capaz de informar quais providncias e despesas foram feitas, como foram
feitas e por que o foram. [...]. (STJ; REsp 1.354.347; Proc. 2011/0299177-0; SP; Terceira Turma;
Rel Min Nancy Andrighi; DJE 20.05.2014).
5
[...]. I. Evidenciada a existncia de mandato tcito, ao mandatrio incumbe prestar contas
dos atos de gesto praticados. [...]. (TJDF; Rec 2013.01.1.067227-9; Ac. 862.485; Quarta Turma
Cvel; Rel. Des. James Eduardo Oliveira; DJDFTE 05.05.2015,p. 258).
6
[...]. 1 - De acordo com o artigo 656 do Cdigo Civil o contrato de mandato pode ser tcito,
no se exigindo forma especial. Configura-se o mandato quando algum recebe de outrem
poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses. [...]. (TJES; APL 0000003-
58.2009.8.08.0060; Primeira Cmara Cvel; Rel. Des. Subst. Lyrio Regis de Souza Lyrio; Julg.
11.11.2014; DJES 19.11.2014).
O Superior Tribunal de Justia j asseverou que:
[...].4. O casamento estabelece uma plena comunho, cujo consect-

rio no apenas o entrelaamento de vidas, mas tambm de patri-
mnios, que deve ser entendido com base na igualdade de direitos e
deveres dos cnjuges (art. 1.511 do cdigo civil), com o fim da vida
em comum pela ausncia do nimo socioafetivo, real motivao da
comunicao patrimonial, h a cessao do regime de bens. 5. A
administrao do patrimnio comum da famlia compete a ambos
os cnjuges (arts. 1.663 e 1.720 do cc), presumindo a Lei ter sido
adquirido pelo esforo comum do casal, sendo certo que o admi-
nistrador dos bens em estado de mancomunho tem a obrigao de
prestar contas ao outro cnjuge alijado do direito de propriedade.
[...]. (STJ; REsp 1.287.579; Proc. 2011/0245831-1; RN; Terceira Turma;
Rel. Min. Ricardo Villas Boas Cueva; DJE 02.08.2013, p. 1210).
Ponto de suma importncia em situaes desta natureza, aliada

(preconceituosa) tradio brasileira de privar a ex-cnjuge/convi-
vente mulher em detrimento do exerccio dos atos de administrao
por parte do varo, recrudesce, de sobremaneira, a necessidade da
prestao de contas quando da proibio e combate violncia patri-
monial contra a mulher, prevista no artigo 24, da Lei n. 11.340/2006.
H, pois, uma latente necessidade de enxergar, na prestao de
contas, um importante instrumento contra a injusta violncia prati-
cada contra a mulher que no est na administrao dos bens do casal.
4DA PRESTAO DE CONTAS NOS ALIMENTOS
Sempre foi consenso doutrinrio e jurisprudencial que a pres-

tao de contas, em matria de alimentos, restaria prejudicada pela
falta de ilegitimidade ativa e ausncia de interesse de agir por parte do
alimentante.
Estudiosos da matria sempre se posicionaram desta forma
arguindo que, dada a caracterstica da irrepetibilidade dos alimentos,
no haveria razo para exigir a prestao de contas por parte daquele
que presta a verba alimentcia, expondo que: i) em se tratando de ali-
mentos prestados a filhos menores, estes seriam os legitimados ativos
para exigir as contas contra o administrador direito de seus recursos
(v.g. um dos pais que est com sua guarda) e no o alimentante;7 ii) o
7
[...]. 2. O alimentante no detm interesse de agir para exigir prestao de contas de quem
administra valores pagos a seus filhos. 3. O pedido de prestao de contas cabe pessoa que
administra ou geriu bens ou interesses alheios, como quela em nome da qual se realiza ou se
realizou a administrao. O reconhecimento ao pai, em cuja guarda no esteja o filho,
alimentante no teria interesse de agir, ante a inutilidade da medida
pela falta de expressa previso legal.8
Em que pesem tais argumentos, somos por outra linha de inter-
pretao. Vejamos.
O pagamento de verba alimentcia a menores decorre do
comando constitucional da proteo integral (art. 227, caput, da CF/88),
sendo dever de todos fiscalizar o devido emprego de recursos mate-
riais destinados manuteno do menor alimentando, sob pena de pr
em risco sua dignidade humana.
Ademais, a matria ganha contornos ainda mais concretos
quando se nota a possibilidade de fiscalizao dos interesses dos infan-
tes por parte do Ministrio Pblico, conforme prev o artigo 82, I, do
CPC/73 (art. 178, II, do NCPC).
Engrossando esta possibilidade, com o advento da Lei da Guarda
Compartilha (Lei n. 13.058/2014), e a consequente introduo do 5,
no artigo 1.583, do CC, passou a legitimar o ascendente que presta ali-
mentos ao descendente que est sob a guarda unilateral, a supervisio-
nar os interesses dos filhos, e, para possibilitar tal superviso, qualquer
dos genitores sempre ser parte legtima para solicitar informaes e/
ou prestao de contas, objetivas ou subjetivas, em assuntos ou situa-
es que direta ou indiretamente afetem a sade fsica e psicolgica e
a educao de seus filhos.
Uma vez constatada a malversao dos recursos pagos a ttulo
de alimentos, poder acarretar no apenas a reverso da guarda, mas
tambm a possibilidade do menor alimentando pleitear danos morais
contra o administrador de seus recursos.
fiscalizar a manuteno da educao deste, no tem o efeito atribuir-lhe legitimao para, em

nome prprio, exigir contas da guardi do menor, relativamente aos alimentos ou a outras
verbas a ele destinadas, na forma do art. 914 do Cdigo Processo Civil [...]. (TJES; AC
12060032773; Conselho da Magistratura; Rel. Des. lvaro Manoel Rosindo Bourguignon; Julg.
03.04.2007; DJES 28.05.2007, p. 17).
8
[...]. 2. Ausncia de interesse processual daquele que presta alimentos a compelir o detentor
da guarda do menor a prestar contas nos moldes dos aludidos artigos legais, porquanto o
exerccio do direito de fiscalizao conferido a quaisquer dos genitores em relao aos ali-
mentos prestados ao filho menor, vai muito alm da mera averiguao aritmtica do que foi
ou deixou de ser investido em prol do alimentando. Toca mais intensamente na qualidade
daquilo que lhe proporcionado, a fim de assegurar sua sade, segurana e educao da
forma mais compatvel possvel com a condio social experimentada por sua famlia (CC, art.
1.694, caput). Ademais, o reconhecimento da m utilizao das quantias pelo genitor detentor
da guarda no culminar em qualquer vantagem ao autor da ao, ante o carter de irrepeti-
bilidade dos alimentos, e, ainda, em face de a obrigao alimentar, e seus respectivos valores,
restarem definidos por provimento jurisdicional que somente pode ser revisto atravs dos
meios processuais destinados a essa finalidade. [...]. (STJ; REsp 970.147; Proc. 2007/0172292-0;
SP; Quarta Turma; Rel. Min. Luis Felipe Salomo; Julg. 04.09.2012; DJE 16.10.2012).
Noutro giro, entendemos pela impossibilidade de prestao de
contas quando o alimentando for o ex-cnjuge/convivente, tendo em
vista que tal ato seria uma intromisso na esfera privada daquele que
se vale dos alimentos, sob pena de se violar o preceito fundamental
individual preconizado no artigo 5, X, da CF/88.
5AS CONTAS NO NOVO CDIGO DE PROCESSO CIVIL
Pelo que se depreende dos artigos 550-553, da Lei n. 13.105/2015

Novo Cdigo de Processo Civil , a Ao de Prestao de Contas dar
lugar Ao de Exigir Contas, prevendo, em seu artigo 550 que aquele
que afirmar ser titular do direito de exigir contas requerer a cita-
o do ru para que as preste ou oferea contestao no prazo de 15
(quinze) dias.
Sua finalidade ser apurar a existncia de eventual crdito e pro-
ceder com sua execuo, calcada na administrao de bens ou direitos
de terceiros.
A ao ser processada da seguinte maneira: i) busca-se a decla-
rao de existncia ou inexistncia de direito de exigir ou dever de
prest-las; ii) prestao das contas na forma adequada, ou seja, uma
clara demonstrao das receitas, despesas e investimentos realizados
com as receitas; iii) execuo do saldo apurado na sentena, mediante
o cumprimento do decisum.
Seguindo a trilha da desjudicializao preconizada pelo novel
diploma processual, fomentada pelo incentivo mediao e conci-
liao, h de cogitar a hiptese de se exigir e prestar contas pela via
extrajudicial quando o fim da relao pessoal se der por este caminho,
ou, ainda, como forma de se apurar eventual crdito sem movimen-
tar o Judicirio, levando apreciao do Estado-juiz questes pontuais
sobre a discordncia das contas apresentadas.
6REFERNCIAS
THEODORO JNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 42.

ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, v. III.
PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Direito processual civil contem-

porneo. So Paulo: Saraiva, 2012, v. 2.
DIREITO DE FAMLIA E RELIGIES:
COLISO DE PRINCPIOS JURDICOS E PRINCPIOS RELIGIOSOS
Pe. Alex Barbosa de Brito, EP
Doutor em Direito Cannico pela Pontifcia Universidade Late-

ranense (Roma). Membro da Sociedade Brasileira de Canonistas e
Professor de Teologia no Instituto Teolgico So Toms de Aquino
Sacerdote catlico, membro capitular da Sociedade de Vida Apostlica
de Direito Pontifcio Virgo Flos Carmeli Arautos do Evangelho.
Sumrio: 1. Introduo. 2. Definio antropolgica de

matrimnio e famlia, segundo autores clssicos. 3. Con-
ceito de famlia segundo as religies monotestas e
segundo o Estado brasileiro. 3.1 O matrimnio e a famlia,
segundo o Judasmo. 3.2 O matrimnio e a famlia, segundo
o Isl. 3.3 O matrimnio e a famlia, segundo a Igreja Orto-
doxa. 3.4 O conceito de famlia em igrejas de confisso
crist no catlicas. 3.5 O matrimnio e a famlia, segundo
a Igreja Catlica. 3.5.1 Os casos de nulidade matrimonial
na Igreja Catlica. 3.5.2 Casos de dissoluo do vnculo
matrimonial no sacramental. 3.6 O matrimnio e a fam-
lia, segundo a Constituio Federal brasileira. 3.6.1 Impor-
tantes aspectos constitucionais a respeito de matrimnio
e a famlia. 3.6.2 Inovaes das posteriores reformas codi-
ciais. 3.6.3 Breve anlise da atual legislao brasileira em
relao ao matrimnio e famlia. 4. Coliso de princpios
jurdicos e princpios religiosos. 4.1 Sntese dos conceitos
de matrimnio nas grandes religies. 4.2 A liberdade reli-
giosa: uma primeira resposta para evitar eventuais coli-
ses de princpios jurdicos e princpios religiosos. 4.3
Conflito se d entre o direito natural e o direito posi-
tivo: uma tentativa de explicao para as eventuais coli-
ses. 4.3.1 O direito natural e o direito positivo. 5. Estado e
Igreja so detentores de ordenamentos jurdicos origin-
rios e autnomos in ordine suo. 5.1 O Estado uma socie-
dade com ordenamento jurdico originrio e autnomo in
ordine suo. 5.2 A Igreja uma sociedade com ordenamento
jurdico originrio e autnomo in ordine suo. 6. A singu-
lar situao jurdica da Igreja Catlica. 6.1 uma religio.
6.1.1 A Igreja como sociedade e como povo de Deus. 6.1.2 A
personalidade jurdica internacional da Igreja Catlica. 6.2
A sede principal fica numa Cidade-Estado. 6.2.1 Breve his-
trico dos Estados Pontifcios Do Edito de Milo (Sc. IV)
Unificao Italiana (Sc. XIX). 6.2.1.1 A criao da Cidade-
-Estado do Vaticano com o Tratado de Latro (1929). 6.3 A
suprema autoridade da Igreja a Santa S personalidade
pblica de Direito Internacional. 6.3.1 A Santa S antes da
Unificao Italiana, quando havia os Estados Pontifcios.
6.3.2 A Santa S no perodo de transio, depois da Uni-
ficao Italiana. 6.3.3 A Santa S, a partir do Tratado de
Latro (1929). 7. Relao do Direito Cannico com o Direito
Civil em matria de direito matrimonial. 7.1 Como a Igreja,
no seu ordenamento jurdico, costuma tratar os casos
conflitantes com o direito civil nas causas matrimoniais.
7.2 Casos em que a Igreja canoniza ou recebe uma norma
civil em seu ordenamento jurdico, nas causas matrimo-
niais. 8. O Acordo Brasil Santa S: decisivo instrumento
para dirimir eventuais colises de princpios jurdicos e
princpios religiosos. 8.1 Exemplos da mtua relao entre
o ordenamento jurdico brasileiro e o ordenamento can-
nico. 8.2 Algumas concluses prticas desse Acordo. 8.2.1
A respeito da autoridade na Igreja. 8.2.2 Aspectos codi-
ciais do Acordo relacionados com o matrimnio. 8.2.2.1
Um perfeito exemplo de maturidade jurdica da Justia no
Brasil. 9. Concluso. 10. Referncias.
1INTRODUO
Falar a respeito de Direito de Famlia e Religies, em pleno sculo

XXI, no tarefa to simples; acrescentar ao tema a Coliso de Prin-
cpios Jurdicos e Princpios Religiosos tornaria a empreita inexequvel,
no fosse a meno aos Princpios Jurdicos: a aequitas, em harmonia
com os princpios religiosos, recordando a transcendncia e a natureza
mesma das coisas.
Jos Renato Nalini,1 em seu tratado tica Geral e Profissional, no
subttulo A famlia hoje e citando autores modernos, chega concluso,
com base em uma anlise sociolgica, de que a conceituao de fam-
lia polmica, especialmente em tempos nos quais para alguns no
h mais a vinculao entre a finalidade unitiva e a procriativa, entre
casamento e procriao. Contudo, o autor, com o gnio, simplicidade e
clareza que o caracterizam, conclui simplesmente: O dar luz debilita
a mulher. Ela no pode prescindir dos cuidados de um terceiro, o pai.
Est biologicamente justificado o nascimento da famlia.2
1
Jos Renato Nalini Presidente do Tribunal de Justia do Estado de So Paulo e Membro da
Academia Paulista de Letras.
2
NALINI, Jos Renato. tica geral e profissional. 7. ed. rev., atual. e ampl., So Paulo: Revista
dos Tribunais, 2009, p. 148-149.
A seguir, passando do campo sociolgico para o jurdico, o
mesmo autor, citando pesquisa do IBGE, traz a lume a indagao de
Paulo Luiz Neto Lbo: Ser que as entidades familiares constitucionali-
zadas constituem verdadeiramente numerus clausus, ou estariam dis-
tantes dos modelos apresentados pela legislao vigente? Com efeito,
assim enumera as entidades familiares, segundo a referida pesquisa: a)
o par andrgino, sob regime de casamento, com filhos biolgicos; b)
par andrgino, sob regime de casamento, com filhos biolgicos e filhos
adotivos, ou somente com filhos adotivos em que sobrelevam os laos
de afetividade; c) par andrgino, sem casamento, com filhos biolgicos
(unio estvel); d) par andrgino, sem casamento, com filhos biolgicos
e adotivos ou apenas adotivos (unio estvel); e) pai ou me e filhos bio-
lgicos (comunidade monoparental); f) pai ou me e filhos biolgicos e
adotivos ou apenas adotivos (comunidade monoparental); g) unio de
parentes e pessoas que convivem em interdependncia afetiva, sem
pai ou me que a chefie, como no caso de grupo de irmos, aps fale-
cimento ou abandono dos pais; h) pessoas sem laos de parentesco
que passam a conviver em carter permanente, com laos de afetivi-
dade e de ajuda mtua, sem finalidade sexual ou econmica; i) unies
homossexuais, de carter afetivo e sexual; j) unies concubinrias, com
ou sem filhos; l) comunidade afetiva formada com filhos de criao,
segundo generosa e solidria tradio brasileira, sem laos de filiao
natural ou adotiva regular.3
Hoje se poderia acrescentar ao item i, com ou sem filhos natu-
rais (inseminao artificial) ou adotivos. Por fim, questiona o ilustre
jurista e literato: Quando se fala hoje de famlia, tem-se de indagar:
qual famlia?.4
Por isso, com o objetivo de evitarmos elaborar um tratado de
filologia, nomeando ou mudando o nome das coisas, ou um tratado de
sociologia contempornea e recriar a sociedade, ou um romance de
fico cientfica, e antecipar o futuro, vimo-nos na contingncia de
limitar o campo de pesquisa tratando a respeito do matrimnio e fam-
lia como o entendem as religies monotestas, cuja inspirao comum
o Antigo Testamento da Bblia e, no caso do Isl, o Alcoro, e os prin-
cpios universais do direito natural, sujeitos a interpretaes, no raras
vezes peculiares; dando, entretanto, nfase no pensamento da Igreja
Catlica.
Como contraponto, temos a legislao brasileira que, alm de
ser ampla, sofreu sucessivas reformas. Por isso, limitar-nos-emos a
3
dos Tribunais, 2009., p. 150.
4
dos Tribunais, 2009p. 150.
estudar principalmente o texto da Carta Magna, a Constituio Fede-
ral, e o Cdigo de Direito Civil.
Outrossim, no se estar alheio s pluriformes opes de modi
vivendi hodiernos, uma vez que este estudo tem como fundo de qua-
dro a dignidade humana.
Sim, a dignidade humana, to propagada, mas quo pouco com-
preendida e respeitada. Falar dela, como em direitos humanos, est na
ordem do dia. Ora, o princpio fundamental a esse respeito agir res-
peitando a natureza e a ndole do homem, considerando a inteligncia
e o livre-arbtrio aspectos essenciais dele. Em razo disso, o mesmo
deve ser conduzido pela persuaso. Para respeit-lo, antes de tudo,
preciso apresentar a verdade sua inteligncia e convenc-lo racional-
mente, caso contrrio, faltaramos com o respeito sua prpria dig-
nidade de ser racional. Desta premissa, como se ver, est pervadido
todo este estudo.
Trata-se, antes de tudo, de uma exposio que no pretende
esgotar a matria. Explica-se a nfase na abordagem da Igreja Catlica
acerca do tema proposto pelo fato de ser a religio da maioria dos bra-
sileiros, a singular situao jurdica5 e histrica da Igreja, e o simples
fato de o autor ser sacerdote e especialista em Direito Cannico.
Sero tambm consideradas, com especial ateno, as rela-
es jurdicas entre a Igreja Catlica e o Estado brasileiro, mormente
em matria de matrimnio e famlia, tendo como parmetros funda-
mentais os princpios normativos da Constituio Federal vigente e o
Acordo celebrado e promulgado entre a Repblica Federativa do Brasil
e a Santa S (13 nov 2008),6 relativo ao estatuto jurdico da Igreja Cat-
lica no Brasil.
Para melhor compreender a razo de ser de um Acordo entre
uma Repblica e a Igreja Catlica, ser necessrio um mergulho his-
trico e jurdico na estrutura da Igreja, da Santa S, do Estado do Vati-
cano e da pessoa do Romano Pontfice, luz dos princpios jurdicos do
Direito Internacional, que fundamentam a inconteste validade de con-
cordatas deste gnero.
5
O ordenamento jurdico da Igreja Catlica se encontra estruturado fundamentalmente no
Cdigo de Direito Cannico (CDC), promulgado em 1983, em que se determinam os direitos e
deveres tanto das autoridades eclesisticas como dos fieis catlicos; e sua organizao e dis-
ciplina interna. O CDC se divide segundo as matrias em Livros, Partes e Sees, e cada
Artigo se denomina Cnon. As disposies deste Cdigo se mencionam neste parecer com a
abreviatura c. e o nmero correspondente (v.g.: c. 1.731, cc. 1.730, 1.731).
6
Para maior aprofundamento sobre o Acordo Brasil-Santa S h a seguinte obra: BALDISSERI,
Lorenzo; MARTINS FILHO, Ives Gandra (Coord.). Acordo Brasil-Santa S: comentado. So
Paulo: LTR, 2012.
Para se procurar chegar a alguma concluso foram de singular
apoio as palavras de apresentao do ilustre e ldimo membro do Con-
selho Cientfico do IBDFAM, o Ministro Luiz Edson Fachin, ao recordar
que: Viver e conviver traduzem, em um pas tomado por desafios e em
uma sociedade complexa, desigual e polissmica, demandas sobre os
limites e as possibilidades da instncia jurdica ofertar respostas, pro-
por caminhos e acolher a realizao de um direito fundamental: TER
E SER FAMLIA. preciso, continua o mesmo autor: Propor constru-
es de pontes em direo ao futuro, recolhendo o legado pretrito
e transformando o presente em abrigo terico e prtico do afeto, da
tolerncia, da liberdade, da autonomia, da responsabilidade e de todas
as estruturas que sonham e vivem como famlias.7
2DEFINIO ANTROPOLGICA DE MATRIMNIO E FAMLIA,

SEGUNDO AUTORES CLSSICOS
Matrimnio e famlia so realidades humanas anteriores ao

Cristianismo e, historicamente, em todas as civilizaes existiram
em estreita relao, numa relao andrgina, gerando filhos, ten-
dendo a ser monogmica, apesar de no raras vezes conhecerem e
viverem a poligamia e, em casos mais isolados, a poliandria.
Os povos primitivos eram regidos pelo princpio de que a
existncia de dois sexos na espcie humana, bem como em outros
seres vivos, tem como funo a reproduo e a propagao da
prpria espcie, que, em nosso caso, no mbito religioso, conjuga
natureza e transcendncia. Por isso, comenta Gonzalo Flrez, que
para estes povos e para aqueles que lhes sucederam, a relao mais
tpica e comum era a da heterossexualidade.8
Este mesmo autor, abordando o tema do ponto de vista antro-
polgico e deitando olhar nos primrdios da civilizao, recorda
que a existncia de dois sexos significa que o homem tem uma
dupla imagem, e esta diferena fazia com que se considerasse a
necessidade da complementaridade, capaz de gerar e de perpetuar
a prpria espcie, embora a anlise desta primitiva relao deve ser
sempre matizada.9
Por exemplo, continua o autor, os sentimentos de amor em
relao aos filhos, no se produzem da mesma forma no pai e na
me, pois o amor maternal sempre se caracterizava por estar mais
7
FACHIN, Luiz Edson. Apresentao do X Congresso de Direito da Famlia. Disponvel em: <
http://www.ibdfam.org.br/congresso/>. Acesso em: 12 set. 2015.
8
FLREZ, Gonzalo. Matrimonio y famlia. Madrid: BAC, 1995, p.17.
9
FLREZ, Gonzalo. Matrimonio y famlia. Madrid: BAC, 1995, p. 6-14.
diretamente comprometido com as necessidades imediatas da
prole.10
A unio heterossexual, a gerao de filhos e a necessidade
de proteg-los e cri-los, aliados ao desejo de perpetuar a prpria
espcie, faz surgir o ncleo social celular e primrio da formao
da sociedade humana.
A este propsito, Fustel de Coulanges comenta:
Pode-se entrever um longo perodo durante o qual os homens

no conheceram nenhuma outra forma de sociedade seno a
famlia... Cada famlia tem a sua religio, os seus deuses, o seu
sacerdcio... cada famlia tem tambm a sua propriedade, ou
seja, a sua parte de terra, que lhe est ligada inseparavelmente
pela sua religio... Enfim, cada famlia tem o seu chefe, como
uma nao teria o seu rei. Tem as suas leis, que sem dvida no
so escritas, mas que a crena religiosa grava no corao de
cada homem. Tem a sua justia interna, acima da qual nenhuma
outra h qual se possa apelar. Tudo aquilo de que o homem tem
rigorosa necessidade para a sua vida material ou para a sua vida
moral, a famlia o possui em si. No precisa de coisa alguma de
fora; a famlia um estado organizado, uma sociedade que basta
a si prpria. Mas esta famlia das antigas eras no se reduz s
propores da famlia moderna. Nas grandes sociedades a fam-
lia desmembra-se e diminui, mas na ausncia de qualquer outra
sociedade, estende-se, desenvolve-se, ramifica-se, sem se divi-
dir. Diversos ramos mais novos ficam agrupados em torno dum
ramo mais velho, junto do lar nico e do tmulo comum.11
Em todas as culturas e religies, a entrega do homem e da mulher

como marido e esposa vem sempre precedida de um pacto de doao
mtua, tendente a ser monogmico e estvel, como testemunham, por
exemplo, as antigas legislaes, como o Cdigo de Hamurabi e as leis
dos faras egpcios. A etimologia latina ratifica essa caracterstica do
matrimnio, ao chamar de amor conjugal.
A palavra conjugal vem do latim cum-iugum, para significar que
esto unidos pelo mesmo jugo. O mesmo se diga de consrcio, de cum-
-sortitus, donde a distino entre o ato de entrega, matrimnio in fieri,
cuja essncia o consentimento, e o matrimnio in facto esse, cuja
essncia o vnculo resultante do pacto conjugal.
Se verdade que o aforismo latino que ensina non amor, sed con-
sensus matrimonium facit, sem o afectus contratualis esse pacto ter
10
FLREZ, Gonzalo. Matrimonio y famlia. Madrid: BAC, 1995, p. 15.
COULANGES, Fustel de. La Cit antique. Paris: Hachette, v. II, p. 126-127.
11
dificuldades para proporcionar que os cnjuges compartam a mesma
sorte e o mesmo jugo, in facto esse.
Conforme o pensamento tomista, no matrimnio primeiramente
se considera a unio ou o vnculo, que seria a essncia e, em segundo
lugar a causa, que a aliana, a qual chamamos de casamento.12 A qui-
dditas ou a essncia o vnculo e o consentimento a causa.
Dessa concepo clssica, Agostinho de Hipona, em defesa da
bondade do matrimnio, desenvolve a teoria dos trs bens (tria bona) a
ele inerentes: bonum fidei, bonum prolis e bonum sacramenti. Segundo
ele, o bonum fidei diz respeito unidade e fidelidade; o bonum pro-
lis, gerao e educao da prole; o bonum sacramenti, diz respeito
indissolubilidade do vnculo.13
A partir dos tria bona de matriz agostiniana, Toms de Aquino
desenvolve a teoria dos fins, donde afirma que o homem procria
enquanto animal, fiel enquanto homem e torna sacramental a unio,
enquanto fiel cristo.14
Karl Marx, ao comentar as razes naturais do matrimnio,
comenta que aquele ou aquela que contrai matrimnio no cria, no
descobre o matrimnio []. Por conseguinte, no o matrimnio que
deve submeter-se a seu arbtrio, mas seu arbtrio ao matrimnio,15 e
Hegel, em comentrio de carter sociolgico a respeito do matrimnio
da famlia, afirma que o matrimnio, e, essencialmente a monogamia,
um dos principais absolutos nos quais se baseia a moralidade de uma
coletividade. Esta a razo pela qual a instituio do matrimnio apa-
rece como um dos episdios da fundao dos Estados pelos heris ou
pelos deuses.16
Seguindo a mesma linha de raciocnio, o que daria forma e
essncia famlia seria o conjunto desses laos, que se reduzem a trs
relaes bsicas: a primeira tem um polo masculino e outro feminino,
e chamada relao conjugal, reconhecida como matrimnio pelos
membros da sociedade; a segunda se d entre o complexo conjugal e os
filhos, e chamada relao paterno-filial; a terceira tem lugar entre os
irmos, chamada relao fraternal.17
12
TOMS DE AQUINO. Summa Theologiae, q. 44, a. 2.
13
AUGUSTINUS,De Genesi ad literam, IX, 7, 12. (PL 34, 397); De bono coniugali, XX, 24 (PL 40,
389).
14
TOMS DE AQUINO. Summa Theologiae, q. 65, a. 1.
15
MARX; ENGELS. Der Ehescheidungs gesetzentwurg, Werke. Berlin, 1956, v. I,, p. 149.
16
HEGEL Friedrich. Principios de la filosofia del derecho. In: ROSENFIELD, Denis Lerrer. Pol-
tica e liberdade em Hegel. So Paulo: Brasiliense, 1983, p. 151.
17
CRUZ, Juan. Metafsica de la familia. Pamplona: EUNSA Universidad de Navarra Pamplona,
1995, p. 351.
Concluindo, a conjuno fsica do casal gera a prole, mas a con-
jugalidade de vidas, a comum unio no mesmo jugo que nasce do
consentimento mtuo, o que fundamenta a unidade e a indissolubi-
lidade desta comum unio, alm de preparar o ambiente natural para a
educao e formao da prole.
Da conjugalidade dessa pequena sociedade, que recebe o nome
de famlia, nasce a nao, a grande sociedade.
Arriscando na lngua de Ccero, a famlia prima ordinata civi-
tas, generat magnam ordinatam civitatem, societatem de societatibus.
3CONCEITO DE FAMLIA SEGUNDO AS RELIGIES MONOTES-

TAS E SEGUNDO O ESTADO BRASILEIRO
3.1O matrimnio e a famlia, segundo o Judasmo
Na religio judaica, o matrimnio considerado um vnculo con-

tratual entre um homem e uma mulher, pelo qual se unem para cons-
tituir uma famlia. Casar-se e gerar filhos representa praticamente um
dever, de acordo com a tradio herdada dos seus maiores.
A cerimnia religiosa do casamento judaico, chamada de kidushin
(consagrao), revestida de muitos significados. Desta sorte, ao dar a
aliana a sua noiva, o noivo a consagra para si, os dois se unindo numa
s alma. A partir de ento, a noiva passa a pertencer ao noivo, sendo
proibida a qualquer outro homem. Sendo assim, mais do que a unio
entre os corpos, trata-se da adeso de duas almas pelo matrimnio por
meio da santificao de Deus, algo fora do alcance meramente humano.
A famlia, pois, representa a fora espiritual do povo judeu e, se
comparada ao lar, a prpria sinagoga desempenha um papel secund-
rio. por isso que o homem no casado considerado incompleto,
pois sua alma apenas uma parte de um todo maior.18
O matrimnio realizado dentro dos conceitos estabelecidos
da Torh, do Talmud e da Halach. Para dissolver esta unio divina,
somente Deus tem o poder para faz-lo, de acordo com o que instruiu
na Tor, o Cdigo de Leis. Isto ocorre por meio de um guet (documento
emitido para a efetivao de um divrcio judaico).
A lei judaica tradicional (Halach) exige que um casal obte-
nha um guet para pr fim ao casamento judaico. Esta determinao
Cabe salientar que os hebreus ultraortodoxos s aceitam o celibato quando o homem

18
resolve dedicar sua vida ao estudo da Torh. E, mesmo que seja por esse objetivo, o celibato
no encorajado.
compartilhada pelos Rabinatos Ortodoxo e Conservador, sendo a pol-
tica oficial do Estado de Israel. Sem o guet, podem ser considerados ile-
gtimos os filhos de qualquer unio subsequente, e s podero se casar
com judeus em semelhantes condies. Os filhos, assim, ficam exclu-
dos em grande parte dos segmentos da comunidade, e no podem
casar-se no Estado de Israel. Estigma que permanece para todas as
futuras geraes, como, por exemplo, no que tange s limitaes de se
desposar no futuro. Trata-se, pois, de uma prtica com efeitos de longo
alcance.
O divrcio civil no tomado em considerao no que toca
situao dos cnjuges. Medida adotada pelos Rabinatos Conservadores
e Ortodoxos, e poltica oficial do Estado de Israel.
O guet, por sua vez, no se relaciona com qualquer aspecto do
acordo civil, e no sujeita nenhuma das partes a perguntas pessoais.
Basta que haja consentimento mtuo na deciso optada, no havendo,
por isso mesmo, necessidade de declarar os motivos para o divrcio.
Embora tenha carter religioso, o processo no envolve oraes nem
exige confisso de f. O guet finaliza aquela unio que iniciou numa
cerimnia to marcada de simbolismos, e sob a beno de Deus. um
processo legal, formal e claro que exige apenas o consentimento das
duas partes.
No obstante, o Tribunal Religioso (Beit Din) considera o casa-
mento uma aliana deveras sagrada, e pondera muito antes de realizar
o divrcio,19 apesar da praticidade com que realizado.20 Desse modo,
incentivada a reconciliao do casal, propondo marido e mulher, inclu-
sive, a casar novamente aps a separao legal.
O divrcio seria como uma amputao, uma tragdia, se anali-
sada a cerimnia judaica na qual as almas dos cnjuges se uniram, pois
seria o reverso disso, uma amputao espiritual, separando uma parte
da alma unida da outra, criando dois seres separados.
19
Cf. GRONOWICZ, Gilda. O Guet judaico e o divrcio: harmonizao. Disponvel em: <http://
gronowiczfancioadv.com.br/>. Acesso em: 15 set. 2015.
20
Assim se constitui o processo do divrcio (Guet): 1 Cada parte declara estar ciente do que
est para acontecer e que age livremente, sem coero; 2 O marido autoriza o escriba a
escrever o documento; 3 O documento de doze linhas escrito pelo escriba e assinado
pelas testemunhas. A escrita e assinatura do documento geralmente leva de 30 a 45 minutos,
e no exige sesses adicionais; 4 O documento assinado apresentado esposa pelo marido
ou pelo procurador, na presena de testemunhas. No minuto em que ela o aceita, o divrcio
passa a valer imediatamente e definitivo; 5 O documento em si permanece nos arquivos do
rabino oficiante. cortado pelo rabino, portanto jamais pode ser usado ou apresentado nova-
mente. O rabino em seguida emite um certificado de prova a ambas as partes, atestando o
fato de que um guet foi adequadamente escrito, entregue e aceito, e que cada uma das partes
est livre para casar-se novamente. Disponvel em: <www.chabad.org.br>. Acesso em: 15 set.
2015.
3.2O matrimnio e a famlia, segundo o Isl
Entre os mltiplos modelos de famlia existentes nas sociedades

ao longo da Histria, encontramos um padro familiar muito singular:
o do islamismo.
Apesar da diversidade tnica, os vrios aspectos da vida dos
fiis islmicos poderiam ser considerados comumente como funda-
mentados na religio.21 Vamos encontrar o conceito de famlia, para o
muulmano, principalmente na interpretao dos esparsos coment-
rios relacionados a essa instituio contidos no Alcoro livro base
tanto para os sunitas quanto para os xiitas , assim como nas tradi-
es culturais ao longo do tempo. No campo legislativo, temos a sharia
(sharah), cuja fonte mais uma vez o Alcoro.
O islamismo tambm considera a famlia como o ncleo e o ali-
cerce da sociedade. A vida familiar fonte de progresso e fora para
a civilizao. O casamento que o muulmano entende como a unio
entre o homem e a mulher e um processo natural estabelecido por
Deus no Alcoro: e no vos criamos, acaso, em casais? (78, 8);22 o
meio lcito para constituir este fundamento social, e por isso conde-
nado com severas penas o ato sexual realizado fora do matrimnio.
Alm disso, o Isl v o casamento como um ato livre. A este res-
peito assim pronuncia o Alcoro: no herde as mulheres contra a sua
vontade (4:19). No entanto, pode existir uma certa persuaso por parte
dos pais a qualquer uma das partes, sendo que a deciso final compete
prpria pessoa. Contudo, na prtica, as mulheres nem sempre pare-
cem usufruir do direito da livre escolha como os homens.
No campo terico, em geral, os direitos do homem e da mulher
so iguais, embora o Alcoro expressa que os homens tm um grau
sobre elas, devido s suas responsabilidades (2:227). A eles dada a
posio de chefe da famlia. Por outro lado, as mulheres tm o direito
ao dote, como meio de honr-la, mant-la e garantir a segurana do
compromisso que assumem.
Para promover a proteo e consolidao da instituio familiar,
existem proibies que visam combater o perigo de praticar aes no
castas, segundo a concepo islmica. Alm disso, se nota um grande
incentivo ao casamento, cuja cerimnia possui uma estrutura muito
simples.
21
Sabemos que o islamismo no possui uma unidade, h diferentes concepes teolgicas,
entre as quais se destacam os sunitas e os xiitas. Alm do Alcoro, os sunitas seguem tambm
as Sunas, um conjunto de leis escritas pela tradio. J os xiitas desconsideram as Sunas e se
baseiam apenas no Alcoro, so a minoria.
22
Citao do Alcoro.
possvel esposar at quatro mulheres, entretanto o mais ade-
quado casar-se com apenas uma, diz o Alcoro (cf. 4:3). Assim, a poli-
gamia tratada como uma exceo, e a primeira esposa pode colocar
no documento de contrato nupcial a condio de que o marido prati-
que a monogamia.
H, ademais, uma lista de graus de parentesco proibidos para o
casamento (4: 23-24).
Em caso de adultrio por parte de uma mulher, o Alcoro pres-
creve que seja confinada em sua casa, at que lhe chegue a morte ou
que Deus lhe trace um novo destino (4:15).
Em si, o casamento no Isl permanente, mas admite o divr-
cio em circunstncias especiais. Entretanto: de todas as coisas per-
mitidas, a mais abominvel para os olhos de Allah o divrcio (114:96).
Tanto o homem quanto a mulher podem solicit-lo.
Por razes histricas, que visavam o afastamento da fornicao
e do adultrio, havia tambm no Islamismo a figura do casamento tem-
porrio, ou seja, o contrato entre duas pessoas por determinado per-
odo, costume este que teria sido revogado para sempre por Allah.
No que diz respeito s crianas, a alimentao, a proteo, a ves-
timenta, e a instruo na religio so direitos assegurados conforme a
cultura e legislao muulmana.
Percebe-se que a famlia, na concepo islmica, possui um car-
ter biolgico, espiritual, social, cultural e histrico. Do ponto de vista
religioso, cabe lembrar que em vrias sociedades islmicas o direito
no est separado da religio de Maom.
3.3O matrimnio e a famlia, segundo a Igreja Ortodoxa23
O matrimnio, segundo a concepo da Igreja Ortodoxa, reflete

o mistrio da Trindade, pois assim como h um s Deus em trs Pes-
soas, tambm no matrimnio h uma unidade dentro da diversidade.
O homem feito imagem da Trindade e apenas em casos especiais
compreende-se que viva sozinho. O casamento no s um estado da
natureza, mas um estado de graa. A vida matrimonial, no menos que
a vida monstica, uma vocao especial, o que exige um particular
dom ou carisma do Esprito Santo, o qual conferido pelo Sacramento
do Matrimnio, cuja instituio foi estabelecida por Deus.
Por Igreja Ortodoxa se entende o conjunto de igrejas crists autocfalas, que desde o Cisma
23
do Oriente, em 1054, separou-se da Igreja Catlica Apostlica Romana. Reconhecem o pri-

mado do Patriarca Ecumnico de Constantinopla, embora este seja um ttulo mais honorfico,
uma vez que cada uma dessas igrejas tem seu governo autnomo, que resolve as questes
com sua prpria autoridade.
A Igreja Ortodoxa permite o divrcio e o recasamento, tomando
como base o texto de Mateus 5, 32 e 19, 9, onde Jesus diz: [...] qualquer
que repudiar sua mulher, no sendo por causa de prostituio, e casar
com outra, comete adultrio [...] E, uma vez posta uma exceo para
a regra geral acerca da indissolubilidade do casamento, os ortodoxos
procedem com o costume de autorizar tal exceo.
Todavia, partindo do princpio de que ningum deve separar
aqueles que Deus uniu, a Igreja Ortodoxa toma o casamento como, em
princpio, para toda a vida e indissolvel, e condena o seu rompimento
como pecado. Contudo, apesar disso, a Igreja Ortodoxa ainda deseja
auxiliar os pecadores concedendo-lhes uma segunda oportunidade.
Desse modo, quando um casamento cessa inteiramente de ser uma
realidade nos fatos, a Igreja Ortodoxa no insiste na preservao legal.
O divrcio , ento, visto como uma excepcional, mas necess-
ria concesso ao pecado humano; seria um ato de oikonomia (econo-
mia ou dispensa) e de philanthropia (gentileza amorosa). Entretanto,
apesar da assistncia dada aos que erraram, no se deixa de considerar
que uma segunda unio nunca igual primeira, de modo que no of-
cio para o segundo casamento os ritos alegres cedem lugar s oraes
penitenciais.
A Lei Eclesistica da generalidade das igrejas ortodoxas permite
o segundo e ainda um terceiro casamento, mas probe terminante-
mente o quarto. Os Cnones, teoricamente, s permitem divrcio em
caso de adultrio, mas na prtica s vezes concedido tambm por
outros motivos.
O divrcio civil tambm na Igreja Ortodoxa no tem reconheci-
mento decisrio, e o novo matrimnio s possvel se as autoridades
tiverem concedido o divrcio.
3.4O conceito de famlia em igrejas de confisso crist no catlicas
Tratar sobre o conceito de famlia nas denominaes crists

no catlicas tarefa nada fcil, pois existem muitas ramificaes e
at mesmo dentro de uma mesma denominao pode no existir uma
identidade doutrinria e moral uniforme, mesmo no que tange a temas
mais centrais. A tudo isso somamos ainda a dificuldade de se encon-
trar um conjunto sistemtico de doutrinas teolgicas em muitas des-
sas igrejas.
Assim, tentando analisar sob um ponto de vista comum, essas
denominaes consideram que o casamento est subordinado Bblia,
e, de modo geral, eles tm o matrimnio como uma instituio que for-
maliza a unio entre um homem e uma mulher. Nas palavras de um
telogo evanglico o casamento o contrato jurdico de uma unio
espiritual.24 Com exceo do divrcio, costumam admitir as leis civis
no que tange ao matrimnio.
Sua origem divina, e remonta ao gnese da humanidade. Jesus
apenas o sancionou sem o elevar categoria de sacramento, assim
acredita a maior parte dos evanglicos. Deve ser celebrado segundo as
leis do pas, uma vez que no consta na Bblia o rito necessrio.
O casamento monogmico e, devido natureza do prprio
contrato natural estabelecido por Deus, indissolvel. Entretanto, inter-
pretam o Evangelho de Mateus (19, 9) 25 como uma permisso de Jesus
em autorizar o divrcio somente em caso de infidelidade conjugal, tra-
tando-se, portanto, de uma exceo.
Ficou clebre, nos primrdios da Reforma Protestante, o epi-
sdio de Henrique VIII, Rei da Inglaterra, que pretendera unir-se em
matrimnio com Anne Boleyn, dama de corte da Rainha. Assim, aps
18 anos de casamento com Catarina de Arago, o monarca alega ter
escrpulos na conscincia, pois esta era viva de seu irmo Arthur, e
desse primeiro enlace havia nascido uma menina, Maria. Solicita ao
Papa Clemente VII seu divrcio. Contudo, o Pontfice no se inclina
segundo os desejos reais. Seus conselheiros Thomas Cromwell e Tho-
mas Cranmer (padre que havia se casado secretamente, na Alemanha,
com a sobrinha de Osiander, e mesmo aps isso havia aceitado pasto-
rear a Diocese de Canterbery) alegaram a Henrique que, uma vez que
o Papa se recusava a satisfazer seu desejo, cabia-lhe seguir o exem-
plo dos prncipes alemes; e recomendaram-lhe nomear-se Protetor e
Chefe Supremo da Igreja e do Clero da Inglaterra. Diante da invarivel
firmeza de Clemente VII, Cranmer pronuncia o divrcio do Rei, e Hen-
rique se casa com Anne Boleyn (1533). No ano seguinte, Clemente VII
lana a Bula de excomunho de Henrique VIII.26
Tambm Calvino, em Genebra, asseverava que as Escrituras
(Bblia) eram a nica regra para a f, e terminou por aprovar o divrcio
de Henrique VIII.27
A este novo casamento com Anne Boleyn sucederam-se outros,
ficando igualmente clebres as aventuras romnticas e sangrentas do
monarca ingls.28
24
PEARLMAN, M. Manual do ministro. So Paulo: Vida, 2005, p. 86.
25
Ora, eu vos declaro que todo aquele que rejeita sua mulher, exceto no caso de matrimnio
falso, e desposa outra, comete adultrio (Mt 19,9a).
26
CHANTREL J.. Histoire populaire des papes: Les Papes et le Protestantisme (XVI sicle). 2.
ed. Paris: C. Dillet, 1865, v. XVIII, p. 199-202.
27
CHANTREL J.. Histoire populaire des papes: Saint Pie V et Sixte-Quint. Paris: C. Dillet, 1862,
v. XIX p. 18-20.
28
Anne Boleyn o precedera no cadafalso, aps ter dado uma filha a Henrique (que fora a
3.5O matrimnio e a famlia, segundo a Igreja Catlica
A Igreja Catlica em seu ordenamento jurdico29 define a aliana

matrimonial como um consrcio de toda a vida entre varo e mulher,
ordenado por sua mesma ndole natural ao bem dos cnjuges e gera-
o e educao da prole, elevado dignidade de sacramento por Jesus
Cristo, quando celebrado entre batizados. A causa eficiente do matri-
mnio o consentimento no revogvel das partes e d-se livremente
por pessoas juridicamente hbeis, algo que o poder humano no pode
suplantar. As propriedades essenciais so a unidade e a indissolubili-
dade, sendo indissociveis as funes unitiva e procriativa, ou seja, o
matrimnio deve estar ordinariamente ordenado fecundidade, isto ,
perpetuao da espcie. O matrimnio vlido, entre batizados e con-
sumado, s se dissolve pela morte de um dos cnjuges.
O divrcio no admitido, sendo invlido o matrimnio se um ou
ambos contraentes esto ligados por vnculo estabelecido em matri-
mnio anterior.
A Igreja admite a possibilidade da separao, seja por razes de
adultrio no compensado, seja por outra causa grave que impea a
convivncia conjugal. Entretanto, essa separao no dissolve o vn-
culo, o que impede qualquer tentativa de matrimnio. H, no entanto,
um forte apelo ao perdo e reconciliao.
3.5.1Os casos de nulidade matrimonial na Igreja Catlica
A Igreja no admite, como foi dito, a separao vincular dos

matrimnios vlidos, entre batizados e consumados. Entretanto,
quando se fala de nulidade, trata-se de uma situao muito distinta,
que no implica na dissoluo do vnculo, mas na declarao de que
nunca existiu.
Os fiis tm o direito de recorrer aos tribunais eclesisticos
para pedir que seus matrimnios sejam objeto de julgamento quanto
Rainha Elizabete I), culpada de traio e infidelidade ao Rei. No dia seguinte execuo, Hen-
rique casava-se com Jeanne Seymour, a qual morrera 17 meses depois, ao dar luz a um
menino que reinou sob o nome de Eduardo VI. O Monarca junta-se ento com Anne de Cleves,
a qual fora repudiada, sob o pretexto de que no era to bela quanto o mostrava um quadro
seu... A 5 mulher de Henrique fora Catherine Howard, que fora decapitada aps alguns
meses, pois o Rei apenas suspeitara de sua fidelidade... Por fim, sua 6 mulher, Catherine Parr,
quase sofreu a mesma sorte, ao demonstrar algumas dvidas em matria religiosa. Cf. CHAN-
TREL J.. Histoire populaire des papes: Les Papes et le Protestantisme (XVI sicle). 2. ed. Paris:
C. Dillet, 1865, v. XVIII,p. 203-206.
29
Cdigo de Direito Cannico, promulgado pelo Papa Joo Paulo II, em 1983. As referncias a
este Cdigo so feitas neste trabalho com a abreviatura c., que significa Cnon (assim deno-
mina cada artigo), seguido do nmero correspondente.
validade. Sim, como no direito civil, h situaes facti species , que
tornam nulo um matrimnio.
Em recente documento, publicado no dia 15 de agosto de 2015,
Francisco reformou o processo cannico das causas de nulidade
matrimoniais por meio do Motu Proprio Mitis et misericors Iesus (para
as Igrejas de Rito Oriental) e Mitis Iudex Dominus Iesus (para a Igreja
Latina). O documento visa favorecer a agilidade nos processos e no a
nulidade dos matrimnios, como expresso no prprio documento. As
normas entraram em vigor no dia 8 de dezembro de 2015.30
Em linhas gerais, pode-se enumerar em 25 ou 26 os capita nulli-
tatis para a declarao de nulidade. Assim divididos:
Primeiramente, as falhas na forma cannica do matrimnio (c. 1108).
Em seguida, as falhas no consentimento, por ser causa eficiente do
matrimnio, seja quanto razo terica (c. 1095, 1) ou quanto razo
prtica (c. 1095, 2), bem como a incapacidade de cumprir aquilo que
prometeu in re matrimoniale por causas de natureza psquica (c.
1095, 3).
A esses trs, soma-se a ignorncia de que o matrimnio consr-
cio permanente e ordenado procriao (c. 1096) e o erro, seja sobre as
propriedades do matrimnio (c. 1097 1), erro esse que somente vicia
quando determina a vontade (c. 1099), seja a respeito da identidade (c.
1097, 1) ou qualidade da pessoa com quem se casa, quando a qualidade
se pretenda direta e principalmente (c. 1097 2), alm do erro provo-
cado de forma dolosa sobre uma qualidade do outro cnjuge, com o
objetivo de obter o consentimento (c. 1098).
A simulao tambm invalida o matrimnio, seja total ou parcial
(c. 1101, 2), bem como o consentimento obtido por violncia ou medo
grave proveniente de causa externa (c. 1103). Por fim, h tambm um
vcio no consentimento da condio de futuro (c. 1102, 1) e a condio
de passado ou de presente imposta e no cumprida (c. 1102, 2).
Por fim, os impedimentos so chamados, segundo o Direito
vigente, dirimentes, alguns dos quais podem ser dispensados pela
autoridade competente.
Com efeito, h uma idade mnima (c. 1083); so considerados
incapazes os que sofrem impotncia para o ato conjugal impoten-
tia coeundi antecedente e perptua, absoluta ou relativa (no o
caso, da impotncia gerativa a impotentia generandi [c. 1084]); aque-
les que tenham vnculo matrimonial antecedente no dissolvido, nem
FRANCISCO. Mitis et misericors Iesus (15 de agosto de 2015). Disponvel em: <http://
30
w2.vatican.va/content/francesco/it/motu_proprio/documents/papa-francesco-motu-pro-
prio_20150815_mitis-et-misericors-iesus.html>. Acesso em: 12 set. 2015.
declarado nulo (c. 1085); a disparidade de culto ou mista religio31 entre
os nubentes (c. 1086); aqueles que tenham recebido as ordens sagradas
(c. 1087) ou que tenham feito voto pblico perptuo de castidade em
um instituto religioso (c. 1088); o rapto (c. 1089) ou o crime, quando se
trata de homicdio do cnjuge daquele com quem se pretende casar, ou
de seu prprio cnjuge, para contrair matrimnio com uma determi-
nada pessoa (c. 1090); alguns graus de consanguinidade (c. 1091) ou de
afinidade (c. 1092), alm do parentesco legal, por adoo (c. 1094) e, por
fim, a falta de honestidade pblica.32
H impedimentos dirimentes que nunca podem ser dispensados:
1 De vnculo o matrimnio validamente celebrado, entre
batizados e consumado, nunca pode ser dissolvido, nem pelo Romano
Pontfice (c. 1085); 2 Consanguinidade ascendente ou descendente e
entre irmos, nunca pode ser dispensado (c. 1078, 3);
3.5.2Casos de dissoluo do vnculo matrimonial no sacramental
Como foi dito, na Igreja Catlica um matrimnio entre batiza-

dos,vlido e consumado, no pode ser dissolvido por nenhuma autori-
dade, nem por causa alguma, salvo a morte de um dos cnjuges (c. 1141).
Por outro lado, o matrimnio no consumado pode ser dissolvido, com
causa justa, somente pelo Romano Pontfice (c. 1142).
Ademais, um matrimnio entre no batizados se dissolve pelo
denominado privilgio paulino, em favor da F de uma parte que tenha
recebido o Batismo, ao contrair esta parte um novo matrimnio, con-
tanto que a parte no batizada se separe (c. 1143, 1).33 Tambm um no
batizado que tenha simultaneamente vrias mulheres tampouco bati-
zadas, ao ser batizado, na hiptese de lhe ser difcil permanecer com
a primeira, pode ficar com qualquer das outras, apartando-se das
demais. O mesmo vale para mulher nas mesmas condies. o deno-
minado privilgio petrino (c. 1148).E um no batizado, uma vez rece-
bido o Batismo, se no pode restabelecer a coabitao com o outro
cnjuge no batizado, por razo deperseguio ou cativeiro, pode
31
Disparidade de culto: existe entre duas pessoas, quando uma delas no foi batizada e a outra
recebeu o Batismo na Igreja Catlica ou se converteu a ela. Matrimnio misto: aquele reali-
zado entre duas pessoas batizadas, uma das quais foi batizada na Igreja Catlica ou nela rece-
bida depois do batismo, e outra pertencente a uma Igreja ou comunidade eclesial sem plena
comunho com a Igreja Catlica.
32
Aqui se trata de um impedimento que surge de concubinato notrio e pblico, com relao
ao primeiro grau de linha direta entre o homem e os consanguneos da mulher e vice-versa (c.
1093).
33
A parte uma vez batizada, para contrair novo matrimnio vlido, deve interpelar previa-
mente parte no batizada, a respeito de seu desejo de tambm receber o Batismo; por
outra, se deseja ao menos conviver pacificamente sem ofender a Deus.
contrair novo matrimnio ainda que a outra parte tivesse recebido o
Batismo (c. 1149).
3.6O matrimnio e a famlia, segundo a Constituio Federal brasileira
O Brasil adota, em sua Carta Magna,34 a famlia como base da

sociedade, a qual d especial proteo do Estado. A este propsito
comenta Ives Gandra:
Tenho entendido, em vrios escritos, que o mais relevante princ-

pio da Constituio, depois do direito vida, a proteo fam-
lia. Assim no fosse, no teria o constituinte com particular
nfase declarado, no caput do artigo 226, que a famlia a base da
sociedade. 35
Apesar de a Carta Magna no afirmar de forma taxativa, inter-

preta-se que o casamento formalizado civilmente d origem ao insti-
tuto familiar, mas tambm se admite como entidade familiar a unio
estvel entre o homem e a mulher, devendo-se facilitar sua conver-
so em casamento. Deve-se destacar tambm a igualdade de direi-
tos e deveres do homem e a mulher em mbito da famlia, e dos filhos,
havidos ou no em casamento, ou adotivos, e a prioridade de garan-
tias ao menor. Finalmente, o casamento civil pode ser dissolvido pelo
divrcio.36
A respeito do divrcio, a Frana foi o primeiro pas a admiti-lo
como lei civil, quando aprovou, em 1792, a secularizao dos registros
de nascimento, falecimento e matrimnios, assim como o divrcio efe-
tivado de forma legal.37
34
Constituio Federal, cap. VII, redao dada por Emenda no. 65, de 2010.
35
SILVA MARTINS, Ives Gandra da. Famlia aquela que perpetua sociedade. Disponvel em:
<http://www.conjur.com.br/2011-mai-12/constituinte-familia-aquela-gera-descendendes-
-sociedade>. Acesso em: 10 set. 2015.
36
Emenda n. 66/2010.
37
Cf. CONSTITUTION CIVILE DU CLERG. In: CONSTANTIN, C. Dictionnaire de Thologie
Catholique. Vol. III, Paris: Letouzey et An, 1911, Ire partie Clarke-Constantinople. col. 1.586-
1.587. Leis complementares estaturam que os bispos constitucionais (os demais bispos Cat-
licos Romanos j estavam banidos da Frana) que resistissem ao casamento do clero, bem
como os padres que se opusessem ao divrcio estavam sujeitos deportao (decretos de 19
de julho e 12 de agosto de 1793). Cf. CONSTITUTION CIVILE DU CLERG. In: CONSTANTIN, C.
Dictionnaire de Thologie Catholique. Vol. III, Paris: Letouzey et An, 1911, col. 1.586-1.589.
3.6.1Importantes aspectos constitucionais a respeito de matri-
mnio e a famlia
Vimos como a Constituio Federal define a famlia. J o livro IV

do Cdigo Civil, Do Direito de Famlia, especifica e regula as normas
da lei fundamental.38
Sublinhou-se que a reforma constitucional de 1988 promulgou
cinco princpios basilares da Repblica Federativa do Brasil: dignidade
da pessoa humana e igualdade de direitos e obrigaes entre homens
e mulheres; pluralidade de opes para a formao da famlia; no dis-
criminao dos filhos, no importando a origem; paternidade respon-
svel; melhor interesse da criana.39
O Cdigo em forma expressa admite que a famlia civil aquela
advinda do casamento [...] um negcio jurdico formal e solene rati-
ficador da famlia desejada pelo Estado.40 E a define como comunho
plena de vida, estabelecida pelo casamento, com base na igualdade
de direitos e deveres dos cnjuges.41 Desta maneira, o casamento se
realiza quando homem e mulher manifestam ante o juiz a vontade de
estabelecer um vnculo conjugal.42 Na opinio da Professora Barroso,
a famlia que surge do novo Cdigo muito mais que uma instituio,
uma comunho de afeto entre pessoas, e fica claro, ademais, que o
casamento s existe entre homem e mulher.43
O matrimnio exige a fidelidade recproca e a vida em comum,
como deveres de ambos os cnjuges.44 monogmico, pois no podem
contrair casamento vlido as pessoas casadas.45 E caracteriza o adult-
rio como uma forma de impossibilidade da comunho de vida.46
O casamento civil, mas, ao mesmo tempo, o casamento reli-
gioso se equipara ao civil e produzir os mesmos efeitos, desde que
cumpra as exigncias da lei para sua validade, e anotado no registro
prprio.47 Fica evidenciada na codificao vigente a natureza mista do
38
Cf. Novo Cdigo Civil brasileiro, Lei 10.406/2002, que substitui o antigo Cdigo de 1916.
39
SUARES, Snia B. Brando. O Novo Estatuto Familiar: novidades e repeties. In: O Novo
Cdigo Civil: comentado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2002, v. II, p. 1418-9.
40
Cf. SUARES, Snia B. Brando. O Novo Estatuto Familiar: novidades e repeties. In: O Novo
Cdigo Civil: comentado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2002, v. II, p. 1.424.
41
Cf. Art. 1.511 do Cdigo Civil.
42
43
Cf. SUARES, Snia B. Brando. O Novo Estatuto Familiar: novidades e repeties. In: O Novo
Cdigo Civil: comentado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2002, v. II, p. 1.427.
44
45
Cf. Art. 1.521, inc. VI, do Cdigo Civil.
46
47
Cf. Arts. 1.512 e 1.515.
matrimnio, tambm reconhecida pela Igreja Catlica e outras religi-
es. O homem um ser que tem ou pode ter crenas religiosas, que
por sua prpria ndole abarcam todos os aspectos de sua vida, inclu-
dos o matrimnio e a famlia, mas tambm pessoa ante o Estado, no
qual determinados vnculos religiosos tm efeitos na sociedade tem-
poral segundo a lei. Neste sentido, a codificao cannica deixa os
efeitos econmicos e patrimoniais do matrimnio para ser regulado na
norma civil.48
Podemos afirmar que a atual legislao continua, de acordo com
os estudos feitos, a tradio herdada do Direito Romano, aperfeioada
pela Igreja Catlica, e seguida pelos modernos cdigos das naes lati-
nas, e em particular o de Portugal. Tradio que em suas linhas gerais
recolhe o Cdigo de 1916.
3.6.2Inovaes das posteriores reformas codiciais
Consideraremos, em homenagem brevidade, como as inova-

es das posteriores reformas codiciais se apresentam no Cdigo de
2002. O novo diploma civil admite a dissoluo do vnculo por causa do
divrcio diferena do casamento concebido como indissolvel , e a
denominada unio estvel.
a) A lei prev a separao judicial, a pedido de qualquer dos cn-

juges, por motivos graves, por ruptura da vida em comum por mais de
um ano, e quando o outro estiver acometido de doena mental grave,
manifestada aps o casamento e aps dois anos que tenha sido reco-
nhecida de continuidade improvvel. Por mtuo consentimento a sepa-
rao judicial poder pedir-se se forem casados por mais de um ano.49
Decorrido um ano da separao judicial qualquer das partes poder
requerer sua converso em divrcio; pode-se pedi-lo no caso de com-
provada separao de fato por mais de dois anos.50
b) O Ttulo III do Livro IV do corpo legal que estamos comen-

tando trata da unio estvel.51 reconhecida como entidade familiar;
deve dar-se entre homem e mulher, ser pblica, contnua e duradoura,
48
Cf. Cnones 1.134 e seguintes, do Cdigo de Direito Cannico.
49
Cf. Arts. 1.572 e 1.574 do Cdigo Civil
50
51
Seus antecedentes so a Lei 8.971/94, que falava de companheirismo e no de convivncia
duradoura entre homem e mulher, e requeria a unio comprovada por mais de cinco anos ou
se dela tivesse filhos; e a Lei 9.278/96, que no impunha o prazo dos cinco anos, e mencionava
que deveria ser duradoura, pblica e contnua, entre homem e mulher, com objetivo de cons-
tituir famlia.
e ter por objetivo constituir famlia.52 No poder constituir-se no
caso dos impedimentos previstos para o casamento, no se aplicando
o inciso VI, ou seja, a pessoa casada pode constituir a unio estvel,
estando separada judicialmente ou de fato.53 A unio estvel poder
converter-se em casamento mediante pedido dos companheiros ao
juiz, e assento no registro civil.54 Enquanto aos deveres recprocos so
os inerentes ao matrimnio, excluindo a obrigatoriedade da coabita-
o, ou seja, da vida em comum no mesmo domiclio conjugal.55
3.6.3Breve anlise da atual legislao brasileira em relao ao

matrimnio e famlia
Analisando a legislao brasileira, podemos concluir que o con-

ceito de entidade familiar configura-se como uma comunho plena de
vida, entre um homem e uma mulher, em igualdade de direitos e obri-
gaes, com alguma estabilidade, seja por meio do casamento ou da
unio estvel. No h duvida de que tenha sido inteno do legislador
procurar alguma estabilidade, pois ela parece ser-lhe indispensvel a
esse instituto para garantir a comunho plena de vida e a educao dos
filhos.
Sem embargo, por meio das diferentes reformas, pode-se adver-
tir que a proteo jurdica dessa estabilidade tem minguado, e hoje fica
sujeita livre vontade das partes com mais facilidade que os contratos
civis e comerciais. Est faltando ainda um srio estudo interdiscipli-
nar, de juristas, mdicos, psiclogos, educadores e pais de famlia, que
analise em todos seus aspectos os benefcios obtidos e os danos oca-
sionados pelas reformas legislativas, a realidade afetiva dos vnculos
familiares, e em particular aos menores, a quem a Constituio Federal
protege de maneira to especial.
Finalmente, no nos escapa que mais recentemente uma juris-
prudncia, que alguns admitem como vinculante, admitiu a unio est-
vel entre pessoas do mesmo sexo, se bem no se pode dizer que tais
decises integram o corpo legislativo, nem tem, do ponto de vista
democrtico, a mesma fora jurdica e moral que as leis sancionadas
por aqueles que tm o mandato do povo.
Com efeito, Ives Gandra da Silva Martins assinalou que a
Suprema Corte outorgou-se o direito de substituir o Congresso Nacio-
nal e a Constituinte; e criou norma constitucional inexistente sem o
52
Cf. art. 1.723 do Cdigo Civil.
53
Cf. Art. 1.723, inc. I, do Cdigo Civil.
54
55
processo das duas votaes nas duas Casas com 3/5 de todos os seg-
mentos do povo. Ainda em outros termos continua o ilustre jurista
o Congresso Nacional eleito por 130 milhes de brasileiros e com
poder de alterar a Constituio pelo voto de 3/5 de sua composio,
em dois escrutnios, foi substitudo por um colegiado de 11 pessoas
eleitas por um homem s!
Em sentido anlogo se pronunciou o Prof. Lenio Streck:56 Isso
espao para discusso do legislador, como se fez na Espanha e em
Portugal. L, esse assunto foi discutido pelo Parlamento. O Judici-
rio, nesse ponto, no pode substituir o legislador. Tambm, inmeros
juristas tm tecido consideraes de natureza jurdico-constitucional
discordando de tal interpretao.57
Fica claro, pois, que a questo da unio de pessoas do mesmo
gnero, e a prpria ideologia de gnero, algo que se encontra sau-
davelmente em debate em nossa sociedade; e o debate sempre sau-
dvel e permite adequadamente a participao cidad na formao da
lei. Talvez um plebiscito permitisse dar a esse debate a qualidade e a
amplitude que merece, e dessa forma se conhecer o pensamento do
povo brasileiro.58
O mesmo autor supracitado tambm de opinio de que o
Estado pode garantir direitos e obrigaes. Pode dar-lhe status de uma
unio civil, de obrigaes mtuas, mas no de famlia, aquela que cons-
titui a base da sociedade capaz de gerar sua perpetuao.59 Contudo,
argumenta que o respeito dignidade humana e a liberdade de unio
dos pares de homens e homens ou mulheres e mulheres que no jus-
tifica que se considere que tais unies sejam iguais quelas consti-
tudas por um homem e uma mulher60 e conclui afirmando que so
diferentes, jurdica e faticamente, sem que esta diferena represente
qualquer capitis diminutio na dignidade dos seres humanos, que opta-
ram por uma unio entre iguais.61
56
Entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, publicada em 6 de maio de 2011; citada pelo Prof.
Ives Gandra no referido artigo.
57
Cf. SILVA MARTINS, Ives Gandra da. Famlia aquela que perpetua sociedade. Disponvel
em: <http://www.conjur.com.br/2011-mai-12/constituinte-familia-aquela-gera-descenden-
des-sociedade>. Acesso em: 10 set. 2015.
58
-sociedade>. Acesso em: 10 set. 2015..
59
60
61
4COLISO DE PRINCPIOS JURDICOS E PRINCPIOS RELIGIOSOS
4.1Sntese dos conceitos de matrimnio nas grandes religies
Como se pode observar, em sntese, em todos os antigos povos,

culturas e religies, admitiam-se como prticas mais frequentes:
1 - matrimnio heterossexual;
2 tendncia monogamia, admitindo com certa frequncia a
poligamia e, mesmo neste ltimo, a escolha de uma esposa com certa
primazia em relao s outras, mormente para estabelecer a linha
sucessria principal;
3 - tendncia estabilidade do vnculo, mesmo admitindo a dis-
soluo em alguns casos, exceo feita da Igreja Catlica.
Estas trs tendncias principais so de algum modo admitidas

pelo ordenamento jurdico brasileiro, mesmo no que diz respeito
estabilidade, pois ao legislar a respeito da unio de fato, denomina-a de
unio estvel.
4.2A liberdade religiosa: uma primeira resposta para evitar eventuais

colises de princpios jurdicos e princpios religiosos
Como se pode facilmente perceber, h pontos de convergncia e

divergncia entre as concepes de matrimnio e famlia do Estado e
da Igreja.
Entretanto, a Constituio Federal, no seu artigo 5, inciso VI,
estabelece: inviolvel a liberdade de conscincia e de crena, sendo
assegurado o livre exerccio dos cultos religiosos e garantida, na forma
da lei, a proteo aos locais de culto e suas liturgias.
Da se depreende que:
1 assegurada pelo Estado a liberdade de culto, de crena e de

organizao religiosa.
2 Cabe ao Estado proteger os locais de culto e suas liturgias, ou
seja, tutelar a organizao interna e os atos de culto de cada institui-
o religiosa.
Portanto, h um princpio bsico constitucional do nosso orde-

namento jurdico que garante a todas as religies a liberdade de crena,
de conscincia e de culto. No caso concreto da Igreja Catlica, devido
sua singular situao jurdica internacional,62 em nosso pas como
em muitos outros , h Concordatas entre o Estado e a S Apostlica
ou Santa S.
No caso do Brasil, originado ademais pela longa tradio de
relaes com a Igreja Catlica, sendo tambm a religio majoritria,
o Governo brasileiro promulgou um Acordo com a Santa S, no qual
reafirma a separao da Igreja e do Estado, estabelecendo os critrios
de mtua relao entre as partes, respeitada a Soberania Jurdica das
Altas Partes, isto , a Santa S ou a Igreja Catlica, Apostlica, Romana,
baseando-se nos Documentos do Conclio Vaticano II e no Cdigo de
Direito Cannico, e a Repblica Federativa do Brasil, no seu ordena-
mento jurdico.63
Ora, uma eventual intromisso do Estado em princpios religio-
sos faria com que ele deixasse de ser laico e passasse a ser um Estado
religioso. Por outro lado, a Igreja no poderia proibir a existncia
ainda que no consonante com sua doutrina , de certos princpios lai-
cos emanados pelo Estado. Entretanto, sem correr o risco de ferir os
princpios da dignidade humana, a Igreja pode ter uma palavra a dizer
ou ensinar, no uma verdade a impor.
4.3Conflito se d entre o direito natural e o direito positivo: uma

tentativa de explicao para as eventuais colises
O cnon 22 do Cdigo de Direito Cannico, nas normas gerais,

estabelece um importante instrumento de dilogo entre a legislao
civil a legislao eclesistica:
As leis civis para que remete o direito da Igreja, observem-se no

direito cannico com os mesmos efeitos desde que no sejam con-
trrias ao direito divino e a no ser que outra coisa se determine no
direito cannico.
62
A autoridade suprema da Igreja Catlica, a Santa S, tem personalidade pblica de Direito
Internacional.
63
Este Acordo foi promulgado e Constitucional, Decreto Legislativo n. 698/2009 c/c
Decreto n. 7.107/2010.
H o inegvel respeito e um formal reconhecimento das normas
civis, de modo especial ressaltando a expresso utilizada: os mesmos
efeitos. Por outro lado, a afirmao seguinte poderia dar margem a um
eventual conflito de competncias: desde que no sejam contrrias
ao direito divino e a no ser que outra coisa se determine no direito
cannico.
Em alguns casos, costuma a Santa S, como veremos, dirimir
uma eventual dificuldade por meio de Acordos e Concordatas. Con-
tudo, o meio ordinrio o Estado que, por meio de sua legislao,
confirma a independncia de competncias, a liberdade religiosa e o
respeito dignidade humana.
4.3.1O direito natural e o direito positivo
Uma leitura ainda que superficial dos princpios que regem as

normas religiosas e aquelas do Estado faz ressaltar que a eventual coli-
so, no somente possvel, mas muitas vezes sempre presente entre o
ordenamento jurdico civil e os princpios religiosos, encontra sua ori-
gem e a sua explicao na independncia muitas vezes preconizada
pelos tericos do Direito Civil positivo, daqueles princpios do direito
natural e da lei natural.
Para Toms de Aquino h uma s lei, a lei eterna: a parte reve-
lada a lei divina; a outra, que fica esculpida na conscincia dos seres
racionais, o direito natural. Abaixo delas, a lei positiva, que aquela
convertida em norma pelos homens e que no pode contrariar nem a
lei natural, nem a lei divina, ou seja, a lei positiva seria uma transcrio,
para entendimento dos homens, da lei eterna. Por isso o Doutor Ang-
lico sustentava a possibilidade da resistncia lei inqua, isto , quando
a lei positiva contrariar a lei natural, no deve ser obedecida.64
Em recente artigo, Nalini recorda o princpio de que o Estado de
Direito o Estado sob a lei, sendo ademais o parmetro de comporta-
mento da sociedade civilizada. Contudo, o mesmo autor lamenta que a
a lei contempornea foi perdendo a sua sacralidade, seja porque ficou
abundante, seja porque se afastou daquele ideal de ser relao neces-
sria extrada da natureza das coisas.
Ora, esta afirmao, sem nenhum detrimento da fora da lei
positiva, nada mais do que o reconhecimento de uma das fontes pri-
mrias e mais evidentes de toda e qualquer legislao: o direito natural.
Cf. TOMS DE AQUINO. Summa Theologiae I-II, q. 94, a. 2. O mesmo conceito se encontra
64
em II Sent., 42, 1, 4 ad 3.
Assim, depois de recordar um princpio clssico de que todo
direito positivo humano contm a natureza do direito na medida em
que se origina do Direito Natural, e que se em algum ponto ele entrar
em conflito com a lei da natureza, no ser mais direito, e sim uma
perverso do direito, conclui o autor:
No difcil encontrar na Repblica do Brasil de hoje algumas leis

que entram em conflito com a lei da natureza.
Lei da natureza que , obviamente, superior a qualquer outra.
Parece refluir a ideia de que h limites jurdicos no direito em si e
que os legisladores so legalmente vinculados ao direito supremo. O
que aconteceu em relao lei? Comeou-se a duvidar da existn-
cia de princpios morais objetivos. [...] Vive-se a Repblica da Her-
menutica, pois as interpretaes so todas possveis, desde que
fundamentadas. Escolhe-se jurisprudncia la carte nos Tribunais
brasileiros. E a lei, embora sempre citada, um smbolo cada vez
mais fluido, ambguo e impreciso. Acabou-se o fetiche da lei.65
5ESTADO E IGREJA SO DETENTORES DE ORDENAMENTOS JURDICOS

ORIGINRIOS E AUTNOMOS IN ORDINE SUO
A Igreja e o Estado so sociedades perfeitas no porque den-

tro delas tudo perfeito; quer dizer, uma sociedade perfeita, quando
tem todos os elementos que uma sociedade deve ter. Uma e outra so
sociedades soberanas. Nada Estado sem ser soberano.
A expresso Sociedade Jurdica Perfeita j no se costuma uti-
lizar com frequncia atualmente. O Conclio Vaticano II emprega o
termo sociedade, em geral, para referir-se sociedade civil e socie-
dade humana. Ao se referir Igreja o faz enquanto sociedade hierar-
quicamente organizada. Apesar disso, a expresso Sociedade Perfeita
se encontra nos documentos do Magistrio. Preferimos utilizar, a
expresso Ordenamento Jurdico originrio e autnomo para evi-
tar riscos de entender a complexa realidade da Igreja, evitando assim
unilateralismos.
5.1O Estado uma sociedade com ordenamento jurdico originrio

e autnomo in ordine suo
O homem socivel pela prpria constituio de seu ser,

algo instintivo e, por isso mesmo, para atingir sua perfeio pessoal,
65
NALINI, Jos Renato.A lei, ora, a lei!. Disponvel em: <http://www.cotiatododia.com.br/a-
-lei-ora-a-lei/>. Acesso em: 18 set. 2015.
necessita ele de viver em sociedade, coadjuvado por outros que lhe
permitam viver em paz, com abundncia de bens.66
Segue-se que toda associao de homens, isto , uma socie-
dade, pela prpria natureza, exige um direito que, por sua vez, reclama
uma organizao jurdica, uma instituio, em suma, um Estado. E
por Estado poderamos adotar uma definio direta: uma unio est-
vel de indivduos e famlias, num determinado territrio, sob a mesma
autoridade soberana, para a consecuo de seus fins, ou seja, o bem
comum.67
Desta acepo podemos destacar os elementos essenciais para a
constituio do Estado:68
Povo e territrio: para a constituio de um Estado exige-se
uma certa populao sedentria, estvel, com uma solidariedade bio-
lgica ou de afinidades69 que convivam num determinado espao fsico,
onde desenvolve sua existncia. Em outras palavras, trata-se de uma
populao que abrange determinado espao geogrfico.
Considerando isso, delineia-se uma diferena fundamental entre
a Igreja e o Estado, pois este se vincula a um territrio, enquanto aquela
a uma corporao pessoal.
Soberania: a convivncia de vrios indivduos dentro de um

mesmo territrio reclama, por sua vez, uma autoridade; a qual, para
ser soberana, deve preencher alguns requisitos: no aspecto externo,
uma independncia com relao s outras sociedades; e no aspecto
interno, uma institucionalizao que exclua poderes pessoais incom-
patveis com a organizao estatal. Caso contrrio, seria impossvel
unificar o poder.
Contudo, tal soberania possui alguns aspectos principais

tambm:
66
SUREZ; De Legibus, Livro III, Cap. 12, n. 8.
67
LLANO CIFUENTES, Rafael. Relaes entre a Igreja e o Estado: a Igreja e o Estado luz do
Vaticano II, do Cdigo de Direito Cannico de 1983 e da Constituio Brasileira de 1988. 2. ed.
Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1989, p. 44.
68
Cf. LLANO CIFUENTES, Rafael. Relaes entre a Igreja e o Estado: a Igreja e o Estado luz
do Vaticano II, do Cdigo de Direito Cannico de 1983 e da Constituio Brasileira de 1988. 2.
ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1989, p. 44-48.
69
Na constituio de um Estado no se exige absolutamente uma integridade e uniformidade
racial ou cultural. Basta tomar o Estado brasileiro como exemplo.
o poder impessoal, o Estado no se fundamenta em um perso-
nalismo, mas em uma instituio;
poder limitado, respeitando as margens assinaladas pela pr-
pria constituio.
bem comum social: a realizao do bem comum social con-
dio indispensvel para a constituio de um Estado, pois, no sendo
este apenas pura forma, mas uma instituio que visa a consecuo
de um determinado fim, deve ter como escopo o bem daqueles que se
dignaram consentir na existncia de uma soberania. E tambm neste
ponto difere o Estado da Igreja, pois esta tem como finalidade um bem
mais amplo que o bem comum sobrenatural, o qual marca os contor-
nos da finalidade do prprio Estado.
O Estado, ento, possui uma soberania ao mesmo tempo plena e
limitada, soberana e restrita. tambm o equilbrio entre um libera-
lismo absoluto e um voluntarismo totalitrio. A sua misso, pois, con-
siste no em fazer, nem tampouco deixar fazer, mas sim ajudar a fazer,
dentro dos prprios limites e do fim prprio.
E precisamente dentro desta autonomia acompanhada de limita-
es surge um ponto de harmonia do Estado com a Igreja, sendo tam-
bm esta uma sociedade soberana e limitada, pois tudo o que pertence
ao bem pblico temporal est, pela prpria condio, fora do domnio
direto da Igreja e, do mesmo modo, tudo o que se relaciona com o bem
comum sobrenatural est fora do domnio do Estado, embora ambas as
jurisdies devam auxiliar-se mutuamente para o progresso completo
da sociedade.70
5.2A Igreja uma sociedade com ordenamento jurdico originrio e

autnomo in ordine suo
Em sua existncia bimilenar a Igreja sempre proclamou seu

carter de sociedade autnoma, isto , independente do poder estatal.
Deste modo, buscou-se um ordenamento jurdico mais adequado sua
identidade, dando-lhe suficiente coerncia interna e efetiva indepen-
dncia com relao s influncias externas.
Essa autonomia e capacidade de autogoverno so prerrogativas
consideradas essenciais natureza da Igreja. O que poderia ser deline-
ado nos tpicos a seguir:
70
a) A Igreja uma sociedade fundada diretamente por Deus e,
por isso mesmo, goza de um direito prprio, um ordenamento jurdico
originrio que no deriva do direito de nenhuma outra sociedade ou
transmisso do Estado. uma sociedade independente.
b) Ela , por sua vez, autossuficiente, basta-se a si mesma para
coordenar as atividades de seus membros e atingir seu fim prprio: o
bem comum sobrenatural e a santificao de seus fiis.
c) Possui uma plenitude de jurisdio in ordine suo, ou seja, sig-
nifica que no seu mbito tem a Igreja um poder pleno e independente.
d) Desta maneira, a Igreja, bem como o Estado, considerada
uma sociedade jurdica perfeita, isto , que possui um fim completo e
supremo na sua prpria ordem, que coordena soberanamente as aes
de seus membros, e que dispe de todos os meios para alcanar seu
fim. Definio essa que no pode ser aplicada, por exemplo, s associa-
es mercantis, partidos polticos, famlias, etc.
Por certo h de se considerar vantajosa essa definio, que pe
em analogia o Estado e a Igreja; o que durante sculos foi adotado nos
tratados de Direito Pblico Eclesistico, bem como em diversos docu-
mentos pontifcios. Foi um mtodo adequado para distinguir duas
sociedades ao mesmo tempo equiparveis e distintas, comparveis no
que tange sua plenitude de poder e distintas quanto natureza.
Contudo, a vantagem est ao passo de tornar-se perigosa se
originar uma espcie de estatificao da Igreja, ou procurar estru-
tur-la como se fosse um Estado mais espiritual 71 com as mesmas
caractersticas do Estado, e considerar de modo hipertrofiado o poder
jurisdicional.
A Igreja, ento, apesar de ser uma sociedade visvel, externa, e
jurdica, eminentemente espiritual, sem excluir os primeiros aspec-
tos. A qualificao como sociedade jurdica perfeita vem muito a pro-
psito para explicar um dos aspectos da Igreja, mas no abarca todo o
alcance de sua identidade que, convenhamos, por ser sobretudo espiri-
tual, ultrapassa os limites materiais e tcnicos.
71
6A SINGULAR SITUAO JURDICA DA IGREJA CATLICA
6.1 uma religio
6.1.1A Igreja como sociedade e como povo de Deus
A Igreja chamada pelo Apstolo o Corpo mstico do Deus encar-

nado, em comparao com o corpo natural do homem (Cf. Ef 1, 23). Ele
a cabea, Ela o corpo; Ele o motor e o influxo, Ela a realizadora do
bem; Ele o princpio da perfeio, Ela, embora perfeita na doutrina,
caminha para a perfeio dos membros; Ele o governo e a autoridade,
Ela protegida e ordenada; Ele o inigualvel Fundador, Ela a magnfica
fundao; Ele o escolhido das naes, Ela a sociedade dos homens elei-
tos, o Povo de Deus; Ele Deus e homem, Ela humana e divina, analogia
perfeita do mistrio da Encarnao.
Considerada como Povo de Deus, uma sociedade cujos mem-
bros, unidos no mais pelos vnculos de parentesco ou nacionalidade,
gozam da liberdade e dignidade de filhos de Deus, tm um fim comum
que o Reino dos Cus, e como lei o mandamento novo de amar uns
aos outros como o prprio Cristo nos amou.72 E embora sejam de natu-
reza essencialmente espiritual os vnculos sociais do Povo de Deus, ou
seja, uma comunho de afeto, entre irmos (Cf. LG, 9), deve ser tam-
bm entendida como uma realidade orgnica, que requer uma forma
jurdica, ao mesmo tempo que animada pela caridade. Por isso, o
direito que deve regular e estruturar as relaes desta sociedade sui
generis, o Direito Eclesistico, isto , a dimenso de justia existente no
mistrio de salvao que a Igreja; direito esse que, por muitas vezes
se expressa em cnones, sendo tambm chamado de Direito Cannico.
6.1.2A personalidade jurdica internacional da Igreja Catlica
Conforme o que at o presente momento se explanou, e dei-

xando de lado as vrias escolas que tratam do assunto, cada um desses
Sujeitos Estado e Igreja goza de subjetividade prpria, cuja ao se
poderia chamar de poltico-religiosa; e a figura que confere unidade
nesta complexa e orgnica estrutura da Igreja o Romano Pontfice, o
Papa: Chefe Religioso e Chefe de Estado.
Na prtica, isso pode ser objeto de conflito, mas a Igreja, ao longo
de sua histria bimilenar, tem delineado no seu ordenamento jurdico o
prprio campo de ao em cada nvel.
Cf. Constituio Dogmtica: Lumen Gentium, n. 9, 21 nov 1964. AAS LVII (1965), p. 6-71.
72
(Doravante simplesmente LG n.)
Como bem recorda Marcus Vinicius Brito de Macedo,73 est
baseada no cumprimento e no exerccio dos deveres e funes de um
sujeito de Direito Internacional, sendo os mais clssicos:
Ius legationis Direito de legao ativa e passiva. A Santa S
mantm atualmente relaes diplomticas com 180 naes e, no caso
do Brasil, j celebrou 180 anos.
Ius tratactum So convenes internacionais bilaterais e
multilaterais.74 Segundo a obra Concordatos Vigentes, que faz uma
compilao mais especfica no segundo milnio (desde 1098), somam-
-se cerca de 370.75Dentro do Ius tratactum temos as convenes
internacionais, que se definem como tendo vrios sujeitos de Direito
Internacional.
Ius foedorum So intervenes dirigidas para solucionar
pacificamente os conflitos internacionais, como bem recorda Brito de
Macedo, que subdivide em Bons ofcios e Medies ou Arbitragens.76
Assim, como o Ius Tratactum e o Ius legationis, a Santa S exerceu
habitualmente este direito de ius foedorum , mesmo com a perda
dos Estados Pontifcios, com a invaso garibaldina.77
73
BRITO DE MACEDO, Marcus Vinicius. La diplomacia pontificia como servicio petrino y su
participacin en la Organizacin de las Naciones Unidas. Citt del Vaticano: Librerie Editrice
Vaticana, 2010, p. 38-49.
74
Com o Brasil, foram celebrados dois Acordos desde o Pacto de Latro: Acordo entre a Santa
S e a Repblica Federativa do Brasil sobre a assistncia religiosa s Foras Armadas (23 de
outubro de 1989) e o Acordo entre a Santa S e a Repblica Federativa do Brasil (11 de fevereiro
de 2010).
75
Cf. SALVADOR, C.C. Y.; MARTINEZ, J.G.. Concordatos vigente. Madrid, 1981, v. I e II. Ressalta-
mos o Acordo entre a Santa S e a Repblica Federativa do Brasil (11 de fevereiro de 2010);
todavia, um nmero considervel de Concordatase Acordos foram feitos desde 1929. Para
alguns exemplos mais expressivos entre Acordos e Concordatas acessar: <http://www.vati-
can.va/roman_curia/secretariat_state/index_concordati-accordi_po.htm>.
76
BRITO DE MACEDO, Marcus Vinicius. La diplomacia pontificia como servicio petrino y su
participacin en la Organizacin de las Naciones Unidas. Citt del Vaticano: Librerie Editrice
Vaticana, 2010, p. 43-44.
77
1870 Pio IX oferece seus prstimos para tentar impedir a guerra entre a Frana e a Alema-
nha; 1885 Leo XIII concilia a Alemanha e a Espanha, a propsito da posse das Ilhas Caroli-
nas; 1890 Leo XIII intervm no conflito entre a Inglaterra e Portugal a respeito do Congo;
1891 Portugal e Congo aquiescem com a mediao de Leo XIII, caso no pudessem, por si
prprios, resolver o litgio de fronteiras; 1893 O nncio apostlico em Lima se faz mediador
num litgio que surge entre o Peru e o Equador; 1893-94 O nncio apostlico em Paris inter-
vm como mediador num conflito entre a Frana e a Espanha, relativamente a tarifas alfande-
grias; 1894 O governo da Venezuela pede a Leo XIII sua interveno num conflito com a
Gr-Bretanha; 1895 Leo XIII aceita ser rbitro num conflito entre o Haiti e a Repblica de
So Domingos por razes de fronteiras; 1898 Leo XIII mediador no conflito entre a Espa-
nha e os Estados Unidos da Amrica; 1898-99 A Rssia czarista convida o papa Leo XIII a
participar a primeira conferncia de Haia (infelizmente, neste caso, o governo italiano vetou a
atuao da Igreja; 1905 A Colmbia e o Peru, no podendo chegar a um acordo sobre ques-
tes de interesse bilateral, anuem com a arbitragem da Santa S; 1909-10 Monsenhor Tontie
e monsenhor Bavona presidem tribunais destinados a estabelecer a cota das indenizaes
devidas a cidados do Brasil, da Bolvia e do Peru; 1917 Bento XV envia uma nota de paz aos
6.2A sede principal fica numa Cidade-Estado
A Cidade-Estado do Vaticano um Estado independente, com

populao prpria e com uma forma de governo anloga a uma monar-
quia eletiva, sem diviso de poderes, pois o Romano Pontfice detm os
poderes Legislativo, Executivo e Judicirio, mas na prtica com divi-
so de funes exercidas por meio dos rgos competentes. Tem um
governo civil, um Governador nomeado pelo Papa, com tribunal pr-
prio, conforme o documento Le sollecitudini crescenti, do papa Joo
Paulo II.78 A Cidade-Estado coopera de modo conexo com o Romano
Pontfice, em seu ofcio a nvel internacional, sobretudo quando se faz
necessria uma soberania de tipo territorial.
Junto s Naes Unidas ONU , a Santa S, para no ferir os
princpios da universalidade de sua Misso, fica margem, como mem-
bro observador, muito embora tivesse pleno direito de ser Estado-
-Membro, como recorda a sua identidade utilizada neste organismo
internacional: Santa S (Estado do Vaticano).
6.2.1Breve histrico dos Estados Pontifcios Do Edito de Milo

(Sc. IV) Unificao Italiana (Sc. XIX)
No ano de 313, os imperadores Constantino e Licnio promulga-

ram o famoso Edito de Milo, com o qual era garantida Igreja Catlica
a plena liberdade religiosa.
Anos mais tarde, tal edito fora ainda definitivamente consagrado
quando o Imperador Teodsio I, o Grande, proclamou o Cristianismo
como religio oficial do Imprio, pela constituio Cunctos populos
(380),79 permitindo Igreja um empuxe apostlico sem precedentes,
alm de permitir-lhe evoluir e dar grandes passos em suas instituies
e organizao.
J em 568, os lombardos haviam invadido o Norte da Itlia. Con-
tudo, no lograram conquistar Ravena e a Pentpole, pertencentes ao
Estados beligerantes quando da primeira guerra mundial; 1920 O Haiti e So Domingos con-
cordam em requerer a mediao e a arbitragem do papa Bento XV para solucionar o conflito
de fronteiras entre os dois pases; 1939-1945 Pio XII, mais de uma vez, levanta a voz para
pedir paz e tentar, assim, evitar a guerra iminente; 1978-79 A Argentina e o Chile recorrem
mediao da Santa S, em favor da resoluo do problema do Canal de Beagle. (Cf. BRITO DE
MACEDO, Marcus Vinicius. La diplomacia pontificia como servicio petrino y su participacin
en la Organizacin de las Naciones Unidas. Citt del Vaticano: Librerie Editrice Vaticana, 2010,
p. 43-44). Entre 2003 e 2004, Joo Paulo II pede que americanos deixem de bombardear o Ira-
que e, em 2006, Bento XVI pede cessar-fogo entre Israel e Lbano. Mais recentemente, em
2014, Francisco promove restabelecimento nas relaes diplomticas entre Estados Unidos e
Cuba.
78
JOO PAULO II. Le sollecitudini crescenti.AAS, n. 76, p. 495-496, 1984, p. 495-496.
79
ORLANDIS, Jos. El Pontificado Romano en la Historia. Madrid: Palabra, 1996, p. 45.
Imprio Romano do Oriente. Com o crescimento das invases brbaras
e do caos, os romanos sem apoio do Imprio Romano do Oriente80
voltaram-se naturalmente para os papas, que passaram a organizar a
defesa, e foram se tornando aos poucos os chefes naturais ou efetivos,
se bem que ainda no oficiais.81
Em 752, Astolfo, rei lombardo, invade estas cidades e ame-
aa Roma. O Papa Estvo II, sem socorros por parte do Imperador
do Oriente, decide voltar-se para os francos, cujo chefe era Pepino,
o Breve. O Papa se apresenta a Pepino, acompanhado por seu clero,
levando cinzas e cilcio, para conjurar ao rei que libertasse a Santa S e
Roma da ameaa dos lombardos.82
Pepino promete ao Papa e a seus sucessores que, caso ele con-
quistasse aos lombardos o Latium, a Emlia, a Romagna, a Marca, a
Toscana e uma boa parte da Campanha (portanto, praticamente 1/3
da Itlia) ele entregaria todos esses territrios Santa S.83 Com isso,
contava o rei colocar o Papa e Roma ao abrigo das constantes invases
lombardas.84
Note-se que, na promessa de Pepino, o Breve, ao Papa Estvo II,
o rei franco promete restituir ao Papa os territrios conquistados aos
lombardos e no ao Imperador do Imprio Romano do Oriente, mesmo
se parte desses territrios pertenceu outrora ao Imprio do Oriente
(Exarcado de Ravena e a Pentpolis). Aos legados do Imperador Cons-
tantino Coprnimo, que ofereceram preciosos presentes em troca da
restituio dos territrios conquistados aos lombardos, respondeu
Pepino: Os francos derramaram o seu sangue no pelos gregos, mas
80
At mesmo, por volta de 732, o governo bizantino havia criado o Ducado de Roma (submisso
ao Imprio Romano do Oriente), e confiado ao Papa o governo legtimo. Cf. RUGGERI, Fausto
et al. Il Grande Dizionario dei Papi. Milano: Federico Motta, 2006,p. 155.
81
Cf. BOULENGER. Histoire Abrge de Lglise. Strasbourg: Expditions Pamphiliennes,
2012.
82
Cf. CHANTREL J.. Histoire Populaire des Papes: Saint Lon III et la Royaut Pontificale
(VIIIme sicle). 2. ed. Paris: C. Dillet, 1863, v. VII, p. 131-132.
83
Esta promessa que Pepino deitara por escrito, com o documento Promissio Carisiaca,
considerada como sendo a ata de fundao dos Estados Pontifcios, que perdurariam por 11
sculos, at 1870. (Cf. ORLANDIS, Jos. El Pontificado Romano en la Historia. Madrid: Palabra,
1996, p. 88).
84
Em 1840, fora encontrado numa biblioteca, por um palegrafo italiano, Carlo Troya, um
manuscrito autntico do pacto: Pacto de aliana concludo com o Papa Estvo, pelo Rei
Pepino, em Carisiacum (Quierzysur-Oise) com o consentimento de todos os Abades, Duques
e Condes Francos. Se o Senhor nosso Deus nos tornar vitoriosos contra a nao e o reino dos
Lombardos, ns concederemos a vs, Bem-aventurado Pedro, prncipe dos Apstolos e aos
Papas vossos Vigrios, para todo o sempre [...]. Cf. GORBY, Ivan. Dictionnaire des Papes. Paris:
Pygmalion, 2008, p. 149.
por So Pedro e pela salvao das almas; no h tesouro no mundo
capaz de me fazer faltar minha palavra.85
Mais tarde durante o pontificado de Adriano I (772-795) o rei
dos francos, Carlos Magno, acorrer a Roma para, uma vez mais, pro-
teger o Papa de uma invaso lombarda, e confirmar a doao que seu
pai, Pepino o Breve, fizera Santa S. Carlos ordena a seu capelo que
componha uma ata de doao ao Pontfice. Ser uma doao ainda mais
acrescida e considervel do que a que fizera seu pai. Com esta ddiva
Carlos assegurava para sempre Santa S o Exarcado de Ravena, a
ilha da Crsega, as Provncias de Mntua, Parma, Veneza e da stria,
com os Ducados de Espoleto e do Benevento. No documento, Carlos
coloca suas iniciais (seu monograma), e pede a todos os Bispos, Aba-
des e Condes que o acompanhavam que tambm o assinem; aps isso,
ele deposita a ata sobre o altar de So Pedro, em seguida no tmulo do
primeiro Papa, e jura, com todos os chefes francos, de conservar para a
Santa S estes territrios que eram restitudos ao Papa.86
Com este acordo, mais da tera parte da Itlia passaria a cons-
tituir o Patrimonium Petri. Trs exemplares da ata de doao foram
compostos: dois so deixados no tmulo de So Pedro, e o terceiro
levado para a Frana, com o rei. A partir deste momento, a chancelaria
pontifcia deixou de datar os documentos segundo os anos do Impera-
dor de Constantinopla.87
Com o tempo, o Imprio procurou imiscuir-se no domnio espi-
ritual, a tal ponto que o Imperador do Sacro Imprio Romano Ale-
mo, Othon I, prescreveu (963) que nenhum Papa pudesse ser eleito
se no fosse confirmado pelo prprio Imperador... Desvencilhando-
-se da tutela imperial, o Monge Hildebrando (futuro Papa Gregrio VII,
1073-1085), conselheiro do Papa Nicolau II, consegue independentizar
a Igreja, regulamentando88 a eleio pontifcia, que doravante reser-
vada unicamente aos cardeais, que teriam de se reunir a ss (1059). Tais
medidas suscitaro um dos mais graves conflitos nas relaes entre a
Igreja e o Imprio, o qual se refletir largamente pela Idade Mdia.
Com a ida do Papa e da Corte Pontifcia para a cidade de Avig-
non (1305-1378) outros territrios sero agregados Santa S: a cidade
de Avignon e o Condado do Venaissin. Estes territrios integraro os
Estados Pontifcios at a Revoluo Francesa, que os reincorporar
85
Cf. ROMAG, Dagoberto. Compndio da Histria da Igreja: a Idade Mdia. Petrpolis: Vozes,
1940, v. II, p. 44.
86
Cf. CHANTREL J.. Histoire Populaire des Papes: Saint Lon III et la Royaut Pontificale
(VIIIme sicle). 2. ed. Paris: C. Dillet, 1863, v. VII, p. 168-169.
87
Cf. PAREDE, Javier; BARRIO, Maximiliano; RAMOS-LISSN, Domingo; SUREZ, Luis. Dic-
cionario de los Papas y Concilios. Barcelona: Ariel, 1998, p. 103.
88
Decreto In Nomine Domini, do Papa Nicolau II.
Frana, a qual, sob o comando do ento General Bonaparte, ocupar
ainda outras partes dos Estados Pontifcios na pennsula italiana.
Assim mesmo, estes Estados conhecero certa prosperidade,
de tal forma que pelo sculo XV eles constituiro um dos mais vastos
estados da Itlia, e do ponto de vista econmico eram considerados
autossuficientes.
No sculo XIX, durante a Unificao Italiana, os Estados Pontif-
cios sero definitivamente perdidos pela Santa S (1870), e anexados ao
Reino da Itlia.
6.2.1.1A criao da Cidade-Estado do Vaticano com o Tratado de

Latro (1929)
Desde o Tratado de Latro89 (11/02/1929), a Igreja goza de um

reconhecimento internacional nesse diminuto territrio: a Cidade-
-Estado do Vaticano, o qual assegura Santa S uma absoluta e visvel
soberania e independncia, inclusive no domnio internacional.
Trata-se de uma superfcie de aproximadamente 40 hectares, e
povoado por umas 900 almas. O Estado do Vaticano situa-se dentro da
superfcie urbana de Roma (com exceo de Castelgandolfo). Sua ln-
gua oficial o latim e o italiano, tem por divisa monetria o Euro, e sua
economia se baseia mormente em atividades tursticas, entre outras.
Em estreita relao com o pas que a rodeia por todos os lados (Itlia),
possui sua prpria estao ferroviria, sua bandeira, servios postais
e telegrficos, servios bancrios, estao de rdio e de televiso, seu
prprio corpo de exrcito (Guarda Sua e Gendarmeria Pontificia) e
seus tribunais.90
Em suma, assim como o exprimiu o Papa Pio XI, em sua alocuo
Il nostro pi cordiale aos procos e pregadores, acerca do territrio da
Cidade-Estado do Vaticano, no mesmo dia em que firmou o Tratado
de Latro: So Francisco de Assis dizia no querer seno a poro de
carne suficiente para reter a alma; Ns, tambm, apenas quisemos a
poro de territrio suficiente para conter Nossa Soberania.91
89
Assinado pelo Secretrio de Estado Gasparri e Benito Mussolini aps as comoes do
sculo XIX este Tratado estatuiu essencialmente que A Santa S reconhece o Reino da It-
lia, sob a dinastia da Casa de Saboia, tendo Roma por capital do Estado Italiano. Por sua parte,
a Itlia reconhece o Estado da Cidade do Vaticano sob a soberania do Pontfice Romano. Este
novo estado que nascia foi aos poucos reconhecido pelas potncias internacionais. (Cf.
GORBY, Ivan. Dictionnaire des Papes. Paris: Pygmalion, 2008, p. 437).
90
RUGGERI, Fausto et al. Il Grande Dizionario dei Papi. Milano: Federico Motta, 2006, p.
156-165.
91
In terzo luogo volevamo mostrare in un modo perentorio che nessuna cupidit terrena
muove il Vicario di Ges Cristo, ma soltanto la coscienza di ci che non possibile non chie-
dere; perch una qualche sovranit territoriale condizione universalmente riconosciuta
Considerado para efeitos morais, o Tratado de Latro foi de
enorme vantagem. Assim, todas as naes contemporneas passam a
reconhecer a soberania do territrio Vaticano, de direito pblico inter-
nacional, com a mesma clareza que a das mais poderosas naes.
6.3A suprema autoridade da Igreja a Santa S personalidade

pblica de Direito Internacional
A histria da criao dos Estados Pontifcios, hoje Cidade-Estado

do Vaticano, quase se confunde com a prpria histria da Santa S ou
S Apostlica. Entretanto, so coisas distintas.
A Cidade-Estado do Vaticano um territrio, enquanto a Santa
S ou S Apostlica um ente, tambm com personalidade jurdica de
Direito Pblico internacional.
Ora, dentro do Territrio Estado do Vaticano, a Santa S, cons-
tituda pelo Papa, conhecido tambm como Romano Pontfice, e pela
Cria Romana, com os seus variados organismos,92 pessoa jurdica
de Direito Pblico Internacional, com capacidade ativa e passiva para
receber embaixadores, sendo que os seus so conhecidos como Nn-
cios Apostlicos. Acresce que o Papa retorna, depois da unificao
italiana, a ter um territrio (Cidade-Estado do Vaticano), onde exerce
em sua liberdade e inteira autonomia a administrao dos negcios
da Igreja. Concluso, perdido o territrio, no perderia, como nunca
perdeu, este carter de personalidade jurdica de Direito Pblico
Internacional.
Enquanto ente com personalidade jurdica de Direito Pblico
Internacional, a Santa S, alm da legao passiva e ativa, tem capa-
cidade para celebrar acordos e concordatas, como de fato tem feito
ao longo de toda a sua histria, alm de conhecidas mediaes e
arbitragens.
indispensabile ad ogni vera sovranit giurisdizionale: dunque almeno quel tanto di territorio
che basti come supporto della sovranit stessa; quel tanto di territorio, senza del quale questa
non potrebbe sussistere, perch non avrebbe dove poggiare. Ci pare insomma di vedere le
cose al punto in cui erano in San Francesco benedetto: quel tanto di corpo che bastava per
tenersi unita lanima. Cos per altri Santi: il corpo ridotto al puro necessario per servire
allanima e per continuare la vita umana, e colla vita lazione benefica. Sar chiaro, speriamo, a
tutti, che il Sommo Pontefice proprio non ha se non quel tanto di territorio materiale che
indispensabile per lesercizio di un potere spirituale affidato ad uomini in beneficio di uomini;
non esitiamo a dire che Ci compiacciamo che le cose stiano cos; Ci compiacciamo di vedere il
materiale terreno ridotto a cos minimi termini da potersi e doversi anche esso considerare
spiritualizzato dallimmensa, sublime e veramente divina spiritualit che esso destinato a
sorreggere ed a servire. (Cf. PIO XI. Alocuo: Il nostro pi cordiale. Disponvel em: <http://
w2.vatican.va/content/pius-xi/it/speeches/documents/hf_p-xi_spe_19290211_piu-cor-
diale.html>. Acesso em: 10 set. 2015).
92
Cf. C. 351 do CIC/83.
6.3.1A Santa S antes da Unificao Italiana, quando havia os
Estados Pontifcios
Antes de 1870, comenta Bruno Esposito, era fora de discusso ser

a Santa S sujeito da Comunidade Internacional e ser o Papa Chefe de
Estado, o Soberano dos Estados Pontifcios. O Congresso de Viena, em
1815, estabelece inclusive a precedncia diplomtica, fazendo com que
os Nncios93 sejam os Decanos do Corpo Diplomtico.94
Nessa poca, era fcil distinguir as duas funes do Papa:
1 Chefe Supremo da Igreja Catlica, que a funo espiritual;

2 Soberano dos Estados Pontifcios, que era a funo temporal.
Alguns autores consideravam que o sujeito de Direito Pblico

internacional era o Estado Pontifcio, cujo soberano era o Papa.95
6.3.2A Santa S no perodo de transio, depois da Unificao Italiana
ainda Bruno Esposito quem comenta que, apesar de no pos-

suir os Estados Pontifcios, uma vez que foram anexados ao Reino da
Itlia, a Santa S continuava sem dvida com presena e influncia
no ordenamento internacional, muito embora tivesse perdido os seus
territrios.96
H uma diviso entre os autores no que diz respeito ao status da
Santa S, depois que perdeu os Estados Pontifcios:
a) H quem diga que o Papa permaneceu Chefe da Igreja Cat-

lica, mas, no tendo mais um territrio, no seria mais Chefe de Estado
e, portanto, no poderia ter relaes com outros Chefes de Estado.97
b) H outros que admitem uma situao intermediria, pois
partem do princpio de que a Igreja mantm a personalidade jurdica
93
Os Embaixadores da Santa S so chamados de Nncios Apostlicos.
94
ESPOSITO, Bruno. Il rapporto del Codice di diritto canonioco latino con il diritto interna-
zionale: Commento sitematico-exegetico al can. 3 del CIC/83. Revista Angelicum,n.83, p.
410-411, 2006..
95
Cf. ANZILOTTI, Dionisio. Corso di diritto internazionale. Padova: Cedam, 1928, v. I, p. 129.
96
Cf. ESPOSITO, Bruno. Il rapporto del Codice di diritto canonioco latino con il diritto inter-
nazionale: Commento sitematico-exegetico al can. 3 del CIC/83. Revista Angelicum,n.83, p.
411, 2006.
97
Cf. V. ARANGIO-RUIZ, V.. Sulla personalit internazionale della Santa Sede. Rivista di Diritto
Publico, n. 1, 117-142, 1925.
internacional, tendo ou no territrios. De fato, a Igreja manteve a
legao diplomtica com os Estados, passiva e ativa.98 Com efeito, antes
do Tratado de Latro de 1929, vigorava a Legge delle Guarentigie, de
13 de maio de 1871, com o recm-formado Reino da Itlia, com 20 arti-
gos, garantindo a inviolabilidade da pessoa do Romano Pontfice, con-
ferindo-lhe as honras de soberano, de um Chefe de Estado estrangeiro,
e penalizando, em caso de atentado, com as mesmas penas impostas
queles que atentassem contra a pessoa do Rei da Itlia.99
c) Uma corrente prxima da anterior afirma que conservou a
personalidade jurdica, tanto mais que preservou um pequeno territ-
rio, a citt Leonina.100
6.3.3A Santa S, a partir do Tratado de Latro (1929)
No dia 7 de junho de 1929, com a criao da Cidade Estado do

Vaticano, termina a querela jurdica internacional, conhecida como
Questo Romana.
A partir de ento, temos quatro sujeitos com subjetividade jur-
dica internacional e atributos prprios:
a) A Igreja Catlica Religio fundada por Jesus Cristo, tendo

como fundamento Pedro e os Apstolos, sendo seus sucessores o Papa
e o Colgio Universal dos Bispos;
b) A Santa S O c. 361 assim a define: Com o nome de S Apos-
tlica ou Santa S designam-se neste Cdigo no s o Romano Pont-
fice, mas ainda, a no ser que por natureza das coisas ou do contexto
outra coisa se deduza, a Secretaria de Estado, o Conselho para os
Negcios Pblicos da Igreja, e os demais Organismos da Cria Romana.
Este um ente de Personalidade de Direito Pblico Internacional, com
capacidade ativa e passiva de legao diplomtica.
c) O Romano Pontfice, o Papa, enquanto Suprema autoridade
da Igreja, tem os seus atributos e finalidade regulados pelo Direito
Cannico. Exerce sua autoridade direta sobre cada um dos membros
da Igreja, que so os batizados. Governa a Igreja em comunho com o
Colgio Universal dos Bispos, tendo a Cria Romana como estrutura
mais direta deste governo espiritual, sendo os seus colaboradores mais
prximos o Colgio Cardinalcio.
98
Cf. ANZILOTTI, Dionisio. Corso di diritto internazionale. Padova: Cedam, 1928, v. I, p.
127-136.
99
Ver: <http://www.academia.edu/1741159/1871_Legge_delle_Guarentigie>
100
Cf. LINGUA, G.. La posizione giuridica e lapporto della Santa Sede nelle Conferenze di
Codificazione del Diritto Diplomatico. Roma: Diss. P.U.L., 1992, p. 19.
Enquanto Soberano da Cidade Estado do Vaticano Chefe de
Estado.
d) A Cidade-Estado do Vaticano Pequeno Estado, onde o Papa
reside e desde onde exerce sua soberania, conforme comentado acima.
7RELAO DO DIREITO CANNICO COM O DIREITO CIVIL EM MAT-

RIA DE DIREITO MATRIMONIAL
7.1Como a Igreja, no seu ordenamento jurdico, costuma tratar os

casos conflitantes com o direito civil nas causas matrimoniais
a) A Igreja determina que no sejam assistidos sem licena do

Ordinrio do lugar, exceto casu necessitatis, matrimnios que no pos-
sam ser reconhecidos ou celebrados civilmente (c. 1071, 2), bem como
daqueles que tenham obrigaes naturais originrias de unio prece-
dente (c. 1071, 3);
b) Casamento do menor, quando no tem o conhecimento ou
contra a vontade razovel dos pais (c. 1071, 6), mesmo estabelecendo a
idade nbio para os homens em 16 anos e, para as mulheres, em 14 anos
(c. 1083, 1);
c) H tambm a recomendao de afastar por meio de admoes-
taes aos jovens de contrair o matrimnio antes da idade costumeira
de cada regio (c. 1072).
7.2Casos em que a Igreja canoniza ou recebe uma norma civil em

seu ordenamento jurdico, nas causas matrimoniais
1 Nos casos de promessas de matrimnio ou esponsais, so

regidos pelas normas da Conferncia Episcopal, tendo em conta aos
costumes e leis civis. (c. 1062 1);
2 No podem contrair validamente o matrimnio aqueles que
estejam ligados entre si por vnculos de parentesco legal surgido por
vias de adoo, em linha direta e em segundo grau colateral (c. 1094), e
adoo, a Igreja remete ao direito civil (c. 110);
3 Para os casos de matrimnio por procurao, pode ser feito
por meio de documento autntico, de acordo com o direito civil (c.
1105 2);
4 Em casos de adultrio no compensado, lcita a separao,
temporria ou no. Esta separao pode ser feita por meio de recurso
interposto junto autoridade civil, ou seja, o divrcio civil, sem a
dissoluo vincular. Bem entendido, que o Cdigo incentiva com empe-
nho ao perdo do adltero, presumindo inclusive este perdo, continu-
ada a convivncia durante seis meses sem haver recorrido autoridade
eclesistica ou civil (c. 1152 2);
5 A autoridade eclesistica competente pode conceder, em
casos especiais, sendo provvel que as partes queiram perseverar na
vida conjugal, por meio de decreto, a sanao radical sanatio in
radice , a casamentos entre batizados, ou entre um batizado e outro
no batizado, em que se tenha dado validamente o consentimento
somente segundo a forma civil, desde que o consentimento continue
e no haja nenhum impedimento do direito natural ou divino, segundo
as normas cannicas (cc. 1161, 1163).
8O ACORDO BRASIL SANTA S: DECISIVO INSTRUMENTO PARA DIRI-

MIR EVENTUAIS COLISES DE PRINCPIOS JURDICOS E PRINC-
PIOS RELIGIOSOS
Este Acordo foi promulgado e Constitucional, conforme

Decreto Legislativo n. 698/2009 c/c Decreto n. 7.107/2010.
Assim, no artigo 2, determina-se: Repblica Federativa do
Brasil, com fundamento no direito de liberdade religiosa, reconhece
Igreja Catlica o direito de desempenhar a sua misso apostlica,
garantindo o exerccio pblico de suas atividades, observado o ordena-
mento jurdico brasileiro.
Ora, reconhecer o direito de desempenhar a sua misso apos-
tlica e garantir o exerccio pblico das atividades da Igreja Catlica
significa obviamente garantir e respeitar sua disciplina interna, que se
baseia fundamentalmente no Cdigo de Direito Cannico, e tambm
em outras leis eclesisticas recorde-se o artigo 5, inciso VI da Cons-
tituio Federal. H, portanto, um mtuo respeito entre as Altas Par-
tes, com relao aos respectivos ordenamentos jurdicos.
Como foi dito, o ordenamento jurdico da Igreja Catlica se
encontra estruturado fundamentalmente no Cdigo de Direito Can-
nico (CDC), promulgado em 1983, em que se determinam os direitos e
deveres tanto das autoridades eclesisticas como dos fiis catlicos; e
sua organizao e disciplina interna. O CDC se divide segundo as mat-
rias em Livros, Partes e Sees, e cada Artigo se denomina Cnon.
8.1Exemplos da mtua relao entre o ordenamento jurdico brasi-
leiro e o ordenamento cannico
A Igreja remete em algumas matrias s leis civis (c. 22): v.g.,

constituio dos tutores e os seus poderes (c. 98 2); adoes (c. 110);
prescries (c. 197); esponsais, ou promessas de matrimnio (c. 1062
1); administrao de bens (c. 1284 2, 3); contratos (1290); composio e
arbtrio, para evitar contendas jurdicas (cc. 1714, 1716, 1).
Por outro lado, o Estado brasileiro reconhece as leis cannicas
em diversos casos, como o valor civil do matrimnio religioso (artigo
12 do Acordo). Reconhece, outrossim, a homologao das sentenas
eclesisticas em matria matrimonial, nos termos da legislao sobre
homologao de sentenas estrangeiras (artigo 12 do Acordo, 1). Em
relao ao Servio Militar obrigatrio, estabelece-se iseno para ecle-
sisticos, ficando sujeitos a outros encargos que a lei lhes atribuir
(artigo 143 da Constituio Federal).
O mesmo Acordo, ao reafirmar a personalidade jurdica da Igreja
Catlica e de todas as suas instituies eclesisticas, em seu artigo 3
enumera entre elas a Diocese, ordinariamente registrada nos Cart-
rios como Mitra Diocesana, governada pelo Bispo, segundo o Direito
Cannico, com tribunal judicial prprio.
8.2Algumas concluses prticas desse Acordo
8.2.1A respeito da autoridade na Igreja
Neste sentido deve-se considerar que a Igreja, em geral, e a Dio-

cese, em particular, tm suas autoridades prprias, com faculdade de
ditar leis, aplic-las, guardar a disciplina interna, assim como ter seus
prprios tribunais. Julgam sobre as demandas das pessoas fsicas e
jurdicas, sobre os delitos e as penas correspondentes; e tm recursos
administrativos ante o superior hierrquico, em controvrsias prove-
nientes dos atos de autoridade (c. 1400).
As Dioceses tm seu territrio prprio, onde o Bispo exerce sua
autoridade, e a elas esto submetidos os batizados que residem e tm
domiclio nesse territrio (cc. 369; 372, 1; 375; 381, 1).
Pertencem Igreja Catlica os batizados nela; pelo batismo so
constitudas pessoas, com seus direitos e deveres (c. 96), que esto
submetidas s leis e autoridades referidas anteriormente (c. 11), e so
tambm chamadas de fiis (c. 204).
8.2.2Aspectos codiciais do Acordo relacionados com o matrimnio
O Acordo reafirma, em seu artigo 12, aquilo que constitucional-

mente definido quanto aos efeitos civis do matrimnio religioso, desde
que cumpridos os requisitos legais:
O casamento celebrado em conformidade com as leis cannicas,

que atender tambm s exigncias estabelecidas pelo direito brasi-
leiro para contrair o casamento, produz os efeitos civis, desde que
registrado no registro prprio, produzindo efeitos a partir da data
de sua celebrao.
Portanto, no h nenhuma novidade, uma vez que o Cdigo Civil

brasileiro j previa estes efeitos, nos seus artigos 1.515 e 1.516, em con-
formidade com o 2 do 226 artigo da Constituio Federal, que diz:
A famlia, base da sociedade, tem especial proteo do Estado [...]; O
casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
Comentando o artigo 226, Ives Gandra chega concluso que
sem famlia, no h Estado e, por esta razo, o Estado deve dar espe-
cial proteo famlia.101
8.2.2.1Um perfeito exemplo de maturidade jurdica da Justia no Brasil
Por outro lado, h uma novidade no ordenamento jurdico bra-

sileiro: as sentenas de nulidade podem ser reconhecidas pelo Poder
Judicirio brasileiro, na forma de sentenas estrangeiras:
1. A homologao das sentenas eclesisticas em matria matri-

monial, confirmadas pelo rgo de controle superior da Santa S,
ser efetuada nos termos da legislao brasileira sobre homologa-
o de sentenas estrangeiras.
Se era verdade que o casamento religioso gozava de efeitos civis,

a Constituio o garantia, como visto acima. Entretanto, quando um
catlico tinha o seu matrimnio decretado nulo por um tribunal eclesi-
stico competente, fazia-se necessrio recorrer ao divrcio para obter
o cancelamento do registro do matrimnio civil. Agora, isto no mais
estritamente necessrio.
101
Por meio desta novidade, o Estado brasileiro reconhece a ativi-
dade judiciria interna da Igreja Catlica, sem em nada ferir o princpio
de laicidade do Estado.
Mendes, Coelho e Branco comentam a este respeito:
[...] no h embarao, ao contrrio, parecem bem vindas, como

ocorre em tantos outros pases, iniciativas como a celebrao de
concordatas com a Santa S, para a fixao de termos de relaciona-
mento entre tal Pessoa de Direito Internacional e o Pas, tendo em
vista a misso religiosa da Igreja de proporcionar o bem integral do
indivduo, coincidente com o objetivo da Repblica de promover o
bem de todos(art 3, IV, da Constituio Federal).102
A homologao de sentenas estrangeiras de competncia

do Superior Tribunal de Justia, segundo artigo 105 da Constituio
Federal.
Assim, determina o artigo 5 da Resoluo n. 9 do Superior Tribu-
nal de Justia:
Art. 5 - Constituem requisitos indispensveis homologao de

sentena estrangeira:
I - haver sido proferida por autoridade competente;
II - terem sido as partes citadas ou haver-se legalmente verificado
a revelia;
III - ter transitado e julgado;
IV - estar autenticada pelo cnsul brasileiro e acompanhada de tra-
duo por tradutor oficial ou juramentado no Brasil.
Obviamente no h necessidade de traduo, pois as sentenas

sero promulgadas por tribunais eclesisticos da Igreja no Brasil, cuja
lngua o portugus.
A seguir, no mesmo texto da resoluo, encontramos o seguinte
texto: Art. 6 - No ser homologada sentena estrangeira ou conce-
dido exequatur a carta rogatria que ofendam a soberania ou a ordem
pblica.
A Suprema Corte no considerou ofensa soberania ou ordem
pblica a declarao de nulidade decretada pelo Tribunal Eclesis-
tico competente e, o primeiro precedente logo se verificou, com a
MENDES, G. F.; COELHO, I. M.; BRANCO, P. G. G.. Curso de direito constitucional. So

102
homologao feita pelo Ministro Felix Fischer, do Superior Tribunal de
Justia.103
Temos neste artigo e na consequente homologao, um perfeito
exemplo de maturidade jurdica da Justia no Brasil, ademais de um
magnfico exemplo de respeito na mtua relao entre as partes, ou
seja, a Igreja e a Sociedade Civil.
Sem entrar no trmite interno, muito menos nos dispositivos que
regem os processos cannicos, a homologao feita levando-se em
conta os requisitos objetivos indispensveis da Resoluo n. 9, do STJ.
9CONCLUSO
O Matrimnio uma realidade complexa, que pode ser abordada

do ponto de vista antropolgico, sociolgico, poltico, jurdico, psicol-
gico e religioso.
Toms de Aquino, com a sntese que o caracteriza, conclui:
Matrimonium, in quantum est sacramentum, statuitur iure divino;

in quantum est officium naturae, statuitur lege naturae; in quantum
est officium communitatis, statuitur iure civile.104
Portanto, desde que sejam respeitadas as legtimas autonomias

das esferas, no h razo para coliso ou conflitos.
Em socorro desta afirmao vem o princpio constitucional da
liberdade religiosa. Com efeito, comenta Nalini:
A laicidade da Repblica no significa atesmo. Apenas no h uma

religio oficial. Todas so permitidas. At incentivadas, porque
lcito celebrar acordos, convnios e tratados com organizaes reli-
giosas quando se cuida de implementar polticas pblicas.105
O perigo est quando o homem ou as instituies resolvem se

fazer como medida de todas as coisas, estabelecendo aquilo que se
pode chamar de ditadura do relativismo.
103
Ver: <http://www.conjur.com.br/2013-jun-19/stj-homologa-anulacao-casamento-
religioso-decretada-vaticano>.
104
TOMS DE AQUINO. Scriptum super Sententiis. Liber IV, Distin. 34, q.1, a.1, ad.4.
105
NALINI, Jos Renato. vv Disponvel em: <https://renatonalini.wordpress.
com/2014/03/28/a-cruz-e-inextinguivel/>. Acesso em: 12 set. 2015.
Neste sentido, muito relevante o papel do IBDFAM nesta qua-
dra histrica, bem definida pelo Ministro Fachin como tendo sombras
e luzes.106 Com efeito, sendo esse o Instituto de Direito da Famlia de
maior relevncia no Estado brasileiro, composto por juristas e forma-
dores de opinio, mister fazerem valer o estado de direito e a prima-
zia das liberdades garantidas pelas leis, o respeito dignidade humana,
alm do dilogo e da mtua relao e cooperao sadias que deve exis-
tir entre a sociedade e a religio, uma vez que o homem a encruzi-
lhada das esferas civil e religiosa: homem cidado e homem religioso,
ainda que seja ateu...
10REFERNCIAS
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106
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TOMS DE AQUINO. Summa Theologiae.
TOMS DE AQUINO. Scriptum super Sententiis. Liber IV.
ENCAMINHAMENTO CONSENSUAL ADEQUADO DAS AES DE
FAMLIA NO REGIME DO NOVO CDIGO DE PROCESSO CIVIL
Fernanda Tartuce
Doutora e Mestra em Direito Processual pela USP. Profes-

sora dos cursos de Mestrado e Doutorado da Faculdade Autnoma de
Direito de So Paulo (FADISP). Professora e Coordenadora de Pro-
cesso Civil da Escola Paulista de Direito (EPD). Advogada orientadora
do Departamento Jurdico do Centro Acadmico XI de Agosto. Mem-
bro do Instituto Brasileiro de Direito de Famlia (IBDFAM), do Instituto
Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e do Instituto dos Advogados de
So Paulo (IASP). Presidente do Conselho do Centro de Estudos Avan-
ados de Processo (CEAPRO). Mediadora e autora de obras jurdicas.
Sumrio: 1. Objeto deste artigo. 2. Foco na soluo con-

sensual e suspenso do processo. 3. Obrigatoriedade da
sesso inicial de autocomposio? 4. Consideraes finais.
5. Referncias.
1OBJETO DESTE ARTIGO
Este artigo apresenta destaques sobre algumas regras previstas

no Novo Cdigo de Processo Civil1 sobre demandas familiares.
A seo prevista no Novo Cdigo trata das aes de famlia entre
os artigos 693 e 699; embora no sejam muitos os dispositivos, sua
interpretao pode ensejar significativo impacto no trmite das lides
familiares.
Sero abordadas nesse artigo algumas situaes ligadas tenta-
tiva de encaminhamento consensual nos litgios familiares, com desta-
que para a discutida obrigatoriedade da designao de sesso inicial de
autocomposio. A tnica da abordagem considerar a adequao do
encaminhamento consensual em lides familiares atentando para sua
pertinncia em cada caso.
1
O tema foi abordado com maior detalhamento no Captulo 19 (intitulado Processos judiciais
e administrativos em direito de famlia) do Tratado das Famlias (PEREIRA, Rodrigo da Cunha
(Coord.). Belo Horizonte: IBDFAM, 2015).
2FOCO NA SOLUO CONSENSUAL E SUSPENSO DO PROCESSO
Entre os dispositivos voltados aos litgios familiares, a primeira diretriz

voltada ao consenso aparece no art. 694 do Novo CPC, segundo a qual
todos os esforos sero empreendidos para a soluo consensual da
controvrsia.
A previso salutar, em certa medida, por ser essencial disponi-
bilizar elementos para que os membros da famlia possam reforar tal
instituio de modo que ela mesma supra suas necessidades sem pre-
cisar delegar a soluo de suas crises a terceiros.2
Vale destacar, porm, que o empreendimento de esforos deve-
-se verificar sem coero para que as partes aceitem participar das
sesses consensuais.3 Alm de a autonomia da vontade ser um prin-
cpio essencial da mediao e da conciliao, h regra expressa no
Cdigo4 vedando iniciativas ensejadoras de constrangimento ou inti-
midao para que as partes se componham.
A interdisciplinaridade dos meios consensuais est reconhecida
no dispositivo, segundo o qual o juiz deve dispor do auxlio de profis-
sionais de outras reas de conhecimento para a mediao e concilia-
o. Aqui, o Cdigo aponta para a mediao ou conciliao judicial,
que acontece de forma organizada e promovida pelo Poder Judici-
rio, sendo a forma mais comum pela qual os meios consensuais tm-se
verificado no pas.
O pargrafo nico do art. 694 dispe que, a requerimento das
partes, o processo poder ser suspenso enquanto as partes se sub-
metem mediao extrajudicial, reconhecendo a importncia do
desenvolvimento de tal atividade tambm fora do controle do Poder
Judicirio.
A suspenso tambm possvel quando as partes se submeterem
a atendimento multidisciplinar. A expresso foi utilizada anterior-
mente na Lei Maria da Penha; segundo seu art. 29, a equipe multidis-
ciplinar integrada por profissionais das reas psicossocial, jurdica e
de sade.5
2
O tema muito bem desenvolvido por guida Arruda Barbosa especialmente na obra
Mediao familiar interdisciplinar (So Paulo: Atlas, 2015).
3
O estmulo aos meios consensuais foi desenvolvido com maior detalhamento em outra opor-
tunidade: TARTUCE, Fernanda. Mediao no Novo CPC: questionamentos reflexivos. Dispon-
vel em: <www.fernandatartuce.com.br.artigosdaprofessora>. Acesso em: 13 mar. 2015.
4
Art. 165, 2. O conciliador, que atuar preferencialmente nos casos em que no houver vn-
culo anterior entre as partes, poder sugerir solues para o litgio, sendo vedada a utilizao
de qualquer tipo de constrangimento ou intimidao para que as partes conciliem.
5
Compete a tal equipe, segundo o art. 30 da Lei n. 11.340, entre outras atribuies que lhe
forem reservadas pela legislao local, fornecer subsdios por escrito ao juiz, ao Ministrio
Pblico e Defensoria Pblica, mediante laudos ou verbalmente em audincia, e desenvolver
O atendimento multidisciplinar orientado a casos que deman-
dem acompanhamento psicossocial e at mdico, como os que envol-
vem patologias sociais (violncia domstica, maus-tratos, etc.) ou
ligadas sade (como problemas psiquitricos).
A prtica da suspenso do processo para que as partes negociem
ou se valham de outras tentativas para composio do conflito cor-
rente na prtica forense, bastando pedido conjunto.6
Embora haja prazo mximo estipulado para a pausa,7 o lapso deve
atender critrios de razoabilidade, o que pode significar um tempo um
pouco mais dilatado, em se tratando de mediao (j que o tempo das
partes pode variar) e, especialmente, de atendimento multidisciplinar.
Como exposto, a lei processual ressalta a possibilidade de sus-
penso do processo enquanto houver mediao extrajudicial ou aten-
dimento multidisciplinar.
A Lei de Mediao, por seu turno, sinaliza ser imperiosa a sus-
penso: havendo processo em curso, as partes podero submeter-se
mediao e requerero ao juiz a suspenso do feito por prazo sufi-
ciente para a soluo consensual do litgio (Lei n. 13.140/2015, art. 16).
Aps dispor ser irrecorrvel a deciso que suspende o processo nos
termos requeridos de comum acordo pelas partes, a lei afirma que a
suspenso no obsta o deferimento de medidas urgentes pelo juiz (Lei
n. 13.140/2015, art. 16, 1 e 2).8
Reconhecendo que a construo de uma resposta consensual
no fcil nem imediatamente obtida especialmente quando o con-
flito envolve o debate sobre sensveis situaes familiares , o art. 696
do Novo CPC prev que a audincia de mediao ou conciliao poder
dividir-se em tantas sesses quantas sejam necessrias para viabilizar
a soluo consensual (sem prejuzo da adoo de providncias jurisdi-
cionais para evitar o perecimento do direito).
A previso coerente com outras regras do ordenamento (Novo
CPC, art. 334, 2; Lei n. 13.140/2015, art. 28); como a dinmica con-
sensual demanda a abordagem cuidadosa dos interesses das partes,
importante haver tempo para reflexes e geraes de encaminhamen-
tos produtivos.
trabalhos de orientao, encaminhamento, preveno e outras medidas, voltados para a ofen-

dida, o agressor e os familiares, com especial ateno s crianas e aos adolescentes.
6
As partes podem pedir a suspenso do feito, convencionalmente (CPC/73, art. 265, II; Novo
CPC, art. 313, II e 4).
7
O Novo CPC, no art. 313, 4, dispe que o prazo de suspenso do processo nunca poder
exceder 6 (seis) meses na hiptese de conveno das partes.
8
TARTUCE, Fernanda; DELLORE, Luiz. 1.001 dicas sobre o Novo CPC. So Paulo: Foco, 2015, p. 119.
Ao ponto, vale lembrar que a mediao geralmente desenvol-
vida em mais de uma sesso porque costumam ser abordados diver-
sos pontos controvertidos do histrico dos envolvidos; j a conciliao
geralmente conta com apenas um ou dois encontros porque a relao
episdica, sendo a disputa trabalhada sob uma vertente mais pontual.9
Imaginemos um caso em que, na audincia inicial, a tentativa
restou infrutfera em termos de acordo, mas tenha havido um pro-
veitoso incio de restaurao da comunicao. Ao final da sesso, o
mediador pergunta se as partes desejam mais um encontro, afirmando
que a designao de nova data poder ser interessante para que as tra-
tativas possam progredir.
Espera-se que as pessoas estejam prontas para ser protagonis-
tas de seus destinos e consigam reconhecer a valiosa oportunidade
de construo conjunta viabilizada pela mediao. Para tanto, ser
importante que se permitam participar de ulteriores sesses, sendo
primordial que seus advogados contribuam em seu convencimento
destacando as vantagens da soluo consensual especialmente em
relao a fatores como tempo, satisfao e cumprimento espontneo
dos pactos.
3OBRIGATORIEDADE DA SESSO INICIAL DE AUTOCOMPOSIO?
Segundo o art. 695 do Novo CPC, recebida a petio inicial e,

se for o caso, tomadas as providncias referentes tutela provisria, o
juiz ordenar a citao do ru para comparecer audincia de media-
o e conciliao, observado o disposto no art. 694.
A previso, graas expresso se for o caso, permite duas
interpretaes. Pela primeira, aps receber a petio inicial (e, se o
caso, deferir uma medida liminar), o juiz ordenar a realizao da ses-
so consensual para a qual o ru ser citado. Por um segundo olhar,
aps apreciar a petio inicial e deferir a medida liminar, o juiz deter-
minar, se for o caso, a realizao de sesso consensual.
Ambas as interpretaes so possveis, embora apenas a primeira
venha predominando em manifestaes doutrinrias. Esse olhar coloca
grande peso sobre a necessidade de realizao da sesso consensual,
que tida como essencialmente obrigatria nos litgios familiares.
Segundo Leonardo Carneiro da Cunha, a nova lei processual
institui a obrigatoriedade da sesso consensual tanto no procedimento
9
TARTUCE, Fernanda. Comentrios ao art. 165. In: DANTAS, Bruno; DIDIER JR, Fredie; TALA-
MINI, Eduardo; WAMBIER, Teresa (Org). Breves comentrios ao Novo CPC. So Paulo: Revista
dos Tribunais, p. 525.
especfico das aes de famlia quanto no procedimento comum.10 A
diferena estaria no fato de que, no procedimento comum, seria poss-
vel a dispensa da audincia desde que as duas partes tivessem se mani-
festado previamente e por escrito quanto sua no realizao.11 No
procedimento especial para as aes de famlia, por outro lado, nem
sequer haveria essa possibilidade.12
A segunda interpretao, por outro lado, flexibiliza a necessi-
dade de realizao de sesses consensuais. Ela importante por res-
peitar a autonomia das partes principio basilar na autocomposio
e viabilizar o filtro adequado de causas, iniciativa que deve nortear a
adoo da mediao e da conciliao.
A expresso se for o caso, presente no art. 695 do Novo CPC,
coaduna-se com outro dispositivo do Cdigo: segundo o art. 3, 2,
o Estado promover, sempre que possvel, a soluo consensual dos
conflitos.
Pode-se entender ainda que a expresso se for o caso remete
diretamente s excees realizao da audincia de mediao pre-
sentes no art. 334, 4, que so: (i) manifestao expressa de ambas as
partes quanto ao desinteresse na composio consensual; e (ii) inad-
misso de autocomposio.
Apenas ser o caso de determinar a realizao de audincia de
mediao ou conciliao nas demandas de famlia quando no incidi-
rem essas duas excees.
A primeira delas se refere oposio de ambas as partes rea-
lizao da audincia inicial. importante considerar a inteno das
partes com vistas a preservar a voluntariedade na adoo do mtodo
consensual, diretriz ligada autonomia das partes na escolha de tal
meio. preciso verificar a manifestao das partes tambm para evitar
a prtica de um ato processual sem a menor potencialidade de compo-
sio ocorrncia que redundaria em dilao do tempo para soluo
do conflito.
10
Cf. Art. 334. Se a petio inicial preencher os requisitos essenciais e no for o caso de
improcedncia liminar do pedido, o juiz designar audincia de conciliao ou de mediao
com antecedncia mnima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o ru com pelo menos 20
(vinte) dias de antecedncia.
11
Cf. Art. 334. 4o A audincia no ser realizada: I - se ambas as partes manifestarem,
expressamente, desinteresse na composio consensual; 5o O autor dever indicar, na peti-
o inicial, seu desinteresse na autocomposio, e o ru dever faz-lo, por petio, apresen-
tada com 10 (dez) dias de antecedncia, contados da data da audincia.
12
CUNHA, Leonardo Carneiro da. Procedimento especial para as aes de famlia no Novo
Cdigo de Processo. In: FREIRE, Alexandre; DIDIER JR., Fredie; MACDO, Lucas Buril de; PEI-
XOTO, Ravi Medeiros. Coleo Novo CPC Doutrina Selecionada. Salvador, Juspodivm, 2015,
v. 4, p. 475.
Note-se, ainda, que o dispositivo parece sinalizar que a audincia
ser realizada quando apenas uma das partes discorde. Questiona-se
se a sesso consensual realizada nessa situao tambm no seria in-
til, visto que uma das partes j se manifestou previamente indisposta
autocomposio.
O legislador, em uma viso otimista, sinaliza entender que a
autocomposio pressupe um fluxo bilateral de comunicao em que
as partes se influenciam reciprocamente; assim, deixa espao para que
a parte interessada na autocomposio possa persuadir a outra a se
engajar no mtodo.
Sob outro prisma, para quem leva o princpio da autonomia da
vontade realmente a srio, a voluntariedade precisa ser objeto de con-
sidervel ateno, j que ela se conecta com a disposio das partes em
proceder com engajamento nas conversaes.13 Por esta perspectiva a
obrigatoriedade no se revela consentnea com a autodeterminao
de que so titulares as partes.
H dvidas quanto eficcia da mediao compulsria: havendo
obrigatoriedade, as partes no tm motivao suficiente para chegar
a uma soluo negociada, sendo a fase consensual apenas mais uma
etapa a ser superada; a partir do momento em que h voluntariedade,
as partes acham a mediao atrativa por poderem controlar o proce-
dimento e assumir a responsabilidade pessoal de resolver os prprios
problemas.14
A voluntariedade nota essencial da mediao, dado que ela s
pode ser realizada se houver aceitao expressa dos participantes;
eles devem escolher o caminho e aderir mediao do incio ao fim do
procedimento.15
A segunda exceo, que deve ser vista como imperiosa para
qualquer sistema que considera a adequada adoo de meios consen-
suais, a apreciao de sua impertinncia no caso em anlise. Eviden-
temente a expresso inadmissvel autocomposio configura uma
expresso que pode significar tanto a vedao jurdica da autocompo-
sio quanto a sua inadequao situao concreta. Ambas as leituras
so possveis.
De um lado, hoje no se apresentam mais vedaes jurdicas
legais ou doutrinrias para a autocomposio nas aes de famlia,
tendo sido superada a correlao direta entre direitos indisponveis
13
TARTUCE, Fernanda. Mediao nos conflitos civis. 2. ed. So Paulo: Mtodo, 2015, p. 188.
14
LOPES, Dulce; PATRO, Afonso. Lei da Mediao comentada. Coimbra: Almedina, 2014 (edi-
o eletrnica comentrio ao art. 4).
15
TARTUCE, Fernanda. Mediao nos conflitos civis. 2. ed. So Paulo: Mtodo, 2015, p. 294.
e impossibilidade de autocomposio, visto que aqueles tambm tm
aspectos que podem ser negociados.16
Tambm se entende superada, pelos mesmos motivos, a inter-
pretao literal do art. 841 do Cdigo Civil, segundo o qual somente
quanto a direitos patrimoniais de carter privado se permite a transa-
o. A interpretao prevalecente que os instrumentos consensu-
ais no podem ser usados apenas nos casos em que h vedao legal
expressa, como na Lei de Improbidade Administrativa.17
De outro lado, h situaes em que o uso da tcnica consensual
se revela inadequado. Tal inadequao pode ser explanada e justificada
pela parte.
Considere um caso marcado por violncia domstica em que a
esposa precisou obter uma medida protetiva contra o marido violento;
deve-se, na posterior demanda de divrcio litigioso, designar a realiza-
o de uma sesso inicial de autocomposio?
A resposta precisa ser consentnea com as circunstncias da
causa, razo pela qual deve iniciar sua definio a partir da anlise da
petio inicial.
Segundo o art. 319, VII, do Novo CPC, cabe parte autora indi-
car sua opo pela realizao, ou no, de audincia de conciliao ou
mediao. A expresso do Cdigo foi feliz: a palavra opo sinaliza a
importncia da vontade, essencial elemento do princpio da autonomia
(pilar regente da autocomposio).
Se a parte autora afirma no ter interesse na sesso inicial con-
sensual, explicando que a experincia de ameaas e/ou violncias a
atemoriza e inviabiliza conversaes com liberdade, obviamente tal
fato deve ser considerado.
16
A indisponibilidade do interesse no se confunde com sua intransigibilidade ou inego-
ciabilidade. Estas somente existem em casos em que a Lei expressamente veda, como no
caso de ao judicial de improbidade administrativa (art. 17, 1, da Lei n. 8.429/92). Rodolfo de
Camargo Mancuso apresenta inmeras situaes de direitos tidos como indisponveis, que
so passveis de autocomposio: os alimentos, que apesar de serem irrenunciveis, conforme
o art. 1.707 do Cdigo Civil, podem ter sua expresso pecuniria e outras caractersticas fixa-
das de forma consensual; os interesses defendidos via ao civil pblica que so claramente
indisponveis, mas que podem ser objeto de termo de compromisso quanto sua forma de
proteo; o crdito fiscal que, apesar de aparentar indisponvel a princpio, comporta parce-
lamento, transao e renncia; o errio pblico a princpio indisponvel, mas as desapro-
priaes, pagas com dinheiro pblico, podem ser feitas de forma amigvel (MANCUSO,
Rodolfo de Camargo. O plano piloto de conciliao em segundo grau de jurisdio, do Egrgio
Tribunal de Justia de So Paulo e sua possvel aplicao aos feitos da Fazenda Pblica. Revista
dos Tribunais, n. 820, p. 38, fev. 2004).
17
Lei n. 8.429/91. Art. 17. 1 vedada a transao, acordo ou conciliao nas aes de que
trata o caput.
Alm disso, havendo ainda uma medida protetiva soa bvio que
o prprio Estado determinou o distanciamento entre o casal. Simples-
mente revogar a ordem para que haja o comparecimento audincia
no soa adequado; afinal, o temor no passa simplesmente porque um
juiz pode estar presente no ato processual. At chegar ao frum e ao
sair de l, como assegurar que a mulher estar protegida?
Nos casos em que resta patente a inadequao da sesso consen-
sual para tentativa de autocomposio do conflito, mesmo que o ru
no manifeste sua oposio realizao da audincia, esta no deve
ser designada. O magistrado deve considerar as afirmaes da autora
e, com base no artigo 3, 2 do Novo CPC, reconhecer que no pos-
svel fomentar a soluo consensual; nessa hiptese, aplicar a expres-
so se for o caso presente no art. 695 do CPC de forma adequada,
identificando que no deve determinar a realizao da sesso inicial.
Ao ponto, vale trazer colao excerto de interessante acordo
do Tribunal de Justia do Distrito Federal. Provocado a reconhecer
irregularidade na representao de esposa que no declinou seu ende-
reo nos autos, entendeu o tribunal que tal ausncia de exposio foi
devidamente justificada sob a considerao de que a Apelada temia por
sua integridade fsica e psicolgica, haja vista j haver sido decretada
medida protetiva de urgncia em seu favor.18
A deciso irretocvel; afinal, havia uma fundada justificativa
de que a esposa pudesse ser perseguida pelo marido. O argumento de
j haver medida protetiva, no sentido de que a proteo estatal seja
infalvel pela pressuposio de que ser efetivamente assegurada, infe-
lizmente no se coaduna com a realidade de violncia vivenciada por
muitas mulheres do pas.
4CONSIDERAES FINAIS
inquestionvel a importncia dada pelo CPC/2015 aos meios

consensuais, sendo interessante a postura de indic-los como formas
prioritrias de abordagem de conflitos na seara do Direito de Famlia.
O Cdigo tambm cercou a prtica consensual de cuidados, ao prever
juntamente a ela o atendimento multidisciplinar e ao vedar iniciativas
de constrangimento para que as partes se autocomponham.
Alguns aspectos legais merecem, todavia, um olhar cuidadoso.
A interpretao sobre a suposta obrigatoriedade absoluta do uso
da via consensual que parece ser o mote do art. 695 do Novo Cdigo
TJDF; Rec 2012.01.1.039145-9; Ac. 767.419; Quinta Turma Cvel; Rel. Des. Angelo Canducci
18
Passareli; DJDFTE 18.03.2014; p. 166.
ao regular a audincia inicial no lugar da simples prioridade no se
coaduna com o princpio mais caro da autocomposio, verdadeiro
pilar que a sustenta: a autonomia da vontade.
Por tal motivo, a citao do ru para comparecimento audin-
cia de conciliao ou mediao prevista no art. 695 do CPC/2015 deve
ser antecedida pela anlise ensejada pela expresso se for o caso pre-
sente no dispositivo.
luz do que for narrado na petio inicial, o juiz determinar,
se for o caso, a realizao da sesso consensual para a qual o ru ser
citado; embora no seja esta a interpretao predominante, sua utili-
zao em prol de um adequado filtro das causas levadas autocompo-
sio pode contribuir para que esta deixe de angariar resistncias por
fora de sua indevida utilizao.
S ser o caso de designar a sesso consensual se esta for pos-
svel, nos termos do art. 3, 2 do CPC/2015. Uma sinalizao con-
sistente sobre essa possibilidade consta no prprio Cdigo; a sesso
inicial s ser pertinente se no estiverem presentes as excees do
art. 334, 4, que so: (i) se ambas as partes manifestarem, expressa-
mente, desinteresse na composio consensual; e (ii) quando no se
admitir a autocomposio.
Assim, se ambas as partes discordam da realizao da sesso
consensual o caso de no design-la; com isso evita-se a prtica de
um ato processual infrutfero, sem a menor potencialidade de com-
posio, que apenas redundaria em dilao do tempo para soluo do
conflito. Alm disso, a mediao e a conciliao preservam sua imagem
de mecanismo interessante de ser acessado, potencialmente, em ulte-
riores oportunidades.
A hiptese legal do art. 334, II, do CPC/2015 (quando no se
admitir a autocomposio) deve ser lida como referncia (i) a situaes
em que h impossibilidade jurdica da autocomposio, seja por veda-
o legal, seja por ser obrigatria a sentena de mrito (como no caso
da interdio); (ii) a situaes em que a autocomposio inadequada.
Essa leitura permite que em situaes como divrcios e dissolu-
es de unio estvel que envolvem violncia domstica, mesmo que a
parte agressora queira a realizao da sesso consensual, a vtima no
seja submetida a estar em sua presena.
5REFERNCIAS
BARBOSA, guida Arruda. Mediao familiar interdisciplinar. So Paulo:

Atlas, 2015.
CUNHA, Leonardo Carneiro da. Procedimento especial para as aes

de famlia no Novo Cdigo de Processo. In: FREIRE, Alexandre; DIDIER
JR., Fredie; MACDO, Lucas Buril de; PEIXOTO, Ravi Medeiros. Cole-
o Novo CPC Doutrina Selecionada. Salvador, Juspodivm, 2015, v. 4,
p. 469-477.
LOPES, Dulce; PATRO, Afonso. Lei da Mediao comentada. Coimbra:

Almedina, 2014.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. O plano piloto de conciliao em

segundo grau de jurisdio, do Egrgio Tribunal de Justia de So
Paulo e sua possvel aplicao aos feitos da Fazenda Pblica. Revista dos
Tribunais, n. 820, p. 11-49, fev. 2004 .
TARTUCE, Fernanda. Comentrios aos art. 165-175. In: DANTAS, Bruno;

DIDIER JR, Fredie; TALAMINI, Eduardo; WAMBIER, Teresa (Org). Breves
comentrios ao Novo CPC. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
TARTUCE, Fernanda. Mediao no Novo CPC: questionamen-

tos reflexivos.Disponvel em: <www.fernandatartuce.com.
br.artigosdaprofessora>. Acesso em: 13 mar. 2015.
TARTUCE, Fernanda. Mediao nos conflitos civis. 2. ed. So Paulo:

Mtodo, 2015.
TARTUCE, Fernanda. Processo civil aplicado ao direito de famlia. So

Paulo: Mtodo, 2012.
TARTUCE, Fernanda. Processos judiciais e administrativos em Direito

de Famlia. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Tratado das Fam-
lias. Belo Horizonte: IBDFAM, 2015.
TARTUCE, Fernanda; DELLORE, Luiz. 1.001 dicas sobre o Novo CPC. So

Paulo: Foco, 2015.
DIVRCIO E OS MODELOS DE SEPARAO ENTRE O CDIGO
CIVIL E O CDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
Paulo Lbo
Doutor em Direito Civil pela USP. Professor Emrito da UFAL.

Diretor Nacional do IBDFAM. Ex-Conselheiro do CNJ.
Sumrio: 1. A extino da separao conjugal judicial

no direito brasileiro, aps a Emenda Constitucional n.
66/2010. 2. Argumentos contra a permanncia da sepa-
rao judicial. 3. A orientao consagrada na doutrina e
em nossos tribunais. 4. As aluses no Cdigo de Processo
Civil de 2015 separao. 5. Consequncias jurdicas da
separao de corpos e da separao de fato. 6. A tentativa
de repristinao e a impossibilidade jurdica. 7. Interpreta-
o em conformidade com a Constituio das novas nor-
mas processuais.
1A EXTINO DA SEPARAO CONJUGAL JUDICIAL NO DIREITO

BRASILEIRO, APS A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 66/2010
Em 2010, com a Emenda Constitucional n. 66, foram removi-

dos os ltimos obstculos para realizao direta do divrcio judicial
ou extrajudicial, no Brasil: as exigncias de prvia separao judicial
ou prvia separao de fato mnima de dois anos. Essa interpretao,
que se tornou dominante, deve orientar a aplicao do CPC de 2015,
quando alude separao.
A mudana constitucional teve por finalidade a extino defini-
tiva da separao judicial, que se tornara anacrnica, como substituta
do desquite ou do anterior divrcio cannico, pois apenas compreens-
vel no modelo de indissolubilidade do matrimnio.
Parte minoritria da doutrina especializada, contudo, passou a
sustentar que:
1. A separao judicial permanecera como requisito prvio, por-
que a Emenda Constitucional n. 66 no revogara expressamente os
artigos do Cdigo Civil que a previam (corrente hard); ou
2. A separao judicial (ou extrajudicial) permanecera na legisla-
o civil, como opo aos cnjuges, ainda que reconhecendo que no
poderia servir de prvio requisito para o divrcio (corrente ligth).
Tanto uma quanto outra corrente so insustentveis, pois con-
tradizem a legalidade constitucional. A primeira nega qualquer efeito
jurdico emenda constitucional, pois o Cdigo Civil prevaleceria
sobre ela. Chegou-se a afirmar que a Constituio de 1988 apresenta
normas que so apenas formalmente constitucionais e nada mudou
sem que antes se fizesse alterao na lei ordinria. A segunda reduz o
alcance da norma constitucional, alm de sua inutilidade prtica.
Aparentemente, a segunda corrente influenciou o legislador do
novo CPC, como se l no parecer do ltimo relator, no Senado Fede-
ral, quando o projeto da lei retornou da Cmara dos Deputados. Con-
tudo, como demonstraremos, no altera a orientao que se tornou
dominante, tanto na doutrina quanto na jurisprudncia dos tribu-
nais, da revogao da separao conjugal pela emenda constitucio-
nal, excluindo-se a culpa e outras causas, no podendo a lei ordinria
sobrepor-se Constituio. Tampouco pode afastar a diretriz herme-
nutica de que as motivaes ou convices do legislador (mens legis-
latoris) no prevalecem sobre o sentido que se extrai da prpria lei, em
conformidade com o todo do sistema jurdico (mens legis).
2ARGUMENTOS CONTRA A PERMANNCIA DA SEPARAO JUDICIAL
O argumento de que a separao judicial permaneceria enquanto

no revogados os artigos que dela tratam no Cdigo Civil, porque a
nova redao do 6 do art. 226 da Constituio no a teria exclu-
do expressamente, somente poderia prosperar se arrancasse apenas
da interpretao literal, desprezando-se as exigncias de interpreta-
o histrica, sistemtica e teleolgica da norma.
Historicamente, criou-se, desde 1977, com o advento da legislao
do divrcio, uma duplicidade artificial entre dissoluo da sociedade
conjugal e dissoluo do casamento, como soluo de compromisso
entre divorcistas e antidivorcistas, o que no mais se sustenta. As cir-
cunstncias mudaram, profundamente, e a sociedade passou a aceitar
o divrcio como soluo normal para o desaparecimento da afetivi-
dade no casal, no mais repercutindo a demonizao manejada pelos
que o rejeitavam. A submisso a dois processos judiciais (separao
judicial e divrcio por converso) resultava em acrscimos de despe-
sas para o casal, alm de prolongar sofrimentos evitveis. O divrcio
direto, amigvel ou judicial, dispensando causas, contempla melhor a
dignidade das pessoas no delicado momento de suas separaes, sem
interferncias estatais constrangedoras e constitui a opo preferen-
cial delas, na atualidade.
No que respeita interpretao sistemtica, no se pode esten-
der o que a norma restringiu. Nem se pode interpretar e aplicar a
norma desligando-a de seu contexto normativo. Tampouco, podem
prevalecer normas do Cdigo Civil ou de outro diploma infraconsti-
tucional, que regulamentavam o que previsto de modo expresso na
Constituio e que esta excluiu posteriormente. Inverte-se a hierar-
quia normativa, quando se pretende que o Cdigo Civil valha mais que
a Constituio e que esta no tenha fora revocatria suficiente.
No Direito brasileiro, h grande consenso doutrinrio e jurispru-
dencial acerca da fora normativa prpria da Constituio. Sejam as
normas constitucionais regras ou princpios no dependem de normas
infraconstitucionais para estas prescreverem o que aquelas j prescre-
vem. O 6 do art. 226 da Constituio qualifica-se como norma-regra,
pois seu suporte ftico precisamente determinado: o casamento pode
ser dissolvido pelo divrcio, sem qualquer requisito prvio, por exclu-
sivo ato de vontade dos cnjuges.
No plano da interpretao teleolgica, indaga-se sobre quais
os fins sociais da nova norma constitucional. Responde-se: permitir
sem empeos e sem interveno estatal na intimidade dos cnjuges,
que estes possam exercer com liberdade seu direito de desconstituir a
sociedade conjugal, a qualquer tempo e sem precisar declinar os moti-
vos. Consequentemente, quais os fins sociais da suposta sobrevivncia
da separao judicial, considerando que no mais poderia ser conver-
tida em divrcio? Ou ainda, que interesse juridicamente relevante sub-
sistiria em buscar-se um caminho que no pode levar dissoluo do
casamento, pois o divrcio o nico modo previsto na Constituio?
O resultado da sobrevivncia da separao judicial de palmar ino-
cuidade, alm de aberto confronto com os valores que a Constitui-
o passou a exprimir, expurgando os resduos de quantum desptico:
liberdade e autonomia sem interferncia estatal.
Ainda que se admitisse a sobrevivncia da sociedade conjugal, a
nova redao da norma constitucional permite que os cnjuges alcan-
cem suas finalidades, com muito mais vantagem. Por outro lado, entre
duas interpretaes possveis, no poderia prevalecer a que consul-
tasse apenas o interesse individual do cnjuge que desejasse instru-
mentalizar a separao para o fim de punir o outro, comprometendo
a boa administrao da justia e a paz social. O uso da justia para
punir o outro cnjuge no atende aos fins sociais nem ao bem comum,
que devem iluminar a deciso judicial sobre os nicos pontos em lit-
gio, quando os cnjuges sobre eles no transigem: a guarda e a pro-
teo dos filhos menores, os alimentos que sejam devidos, a eventual
compensao econmica, a continuidade ou no do nome de casado e
a partilha dos bens comuns.
Anote-se, ainda, no plano da inutilidade da preservao da sepa-
rao judicial, que esta no pode mais ser convertida em divrcio. No
existe mais o divrcio por converso. Assim, tudo o que fosse objeto
de eventual separao convencional teria de ser repetido no pedido do
divrcio judicial ou no divrcio extrajudicial. A situao de incompa-
tibilidade agrava-se na hiptese de divrcio judicial litigioso, pois, se
neste no h acordo quanto aos itens necessrios (modo de exerccio
da guarda compartilhada, ou do quantum dos alimentos, partilha dos
bens, sobrenome), que tero de ser decididos pelo juiz, independente-
mente da existncia de separao convencional anterior.
A nova redao da norma constitucional teve a virtude de pr
cobro exigncia de comprovao da culpa do outro cnjuge e de
tempo mnimo. O divrcio, em que se convertia a separao judicial
litigiosa, contaminava-se dos azedumes e ressentimentos decorrentes
da imputao de culpa ao outro cnjuge, o que comprometia inevita-
velmente o relacionamento ps-conjugal, em detrimento, sobretudo,
da formao dos filhos comuns. O princpio do melhor interesse da
criana e do adolescente dificilmente consegue ser observado, quando
a arena da disputa alimentada pelas acusaes recprocas, que o
regime de imputao de culpa propiciava.
Quando o Poder Judicirio, mobilizado pelo cnjuge que se
apresentava como abandonado e ofendido pelo outro, investigava a
ocorrncia ou no da causa alegada e da culpa do indigitado ofensor,
ingressava na intimidade e na vida privada da sociedade conjugal e da
entidade familiar. A Constituio (art. 5, X) estabelece que so inviol-
veis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, sem
qualquer exceo ou restrio. Ora, nada mais ntimo e privado que
as relaes entretecidas na convivncia familiar. Sob esse importante
ngulo, no poderia a lei ordinria excepcionar, de modo to amplo, a
garantia constitucional da inviolabilidade, justamente no espao pri-
vado e existencial onde ela mais se realiza.
3A ORIENTAO CONSAGRADA NA DOUTRINA E EM NOSSOS TRIBU-

NAIS
A imensa maioria dos especialistas adotou desde o advento da

Emenda Constitucional n. 66, ou progressivamente, a interpretao de
sua fora revocatria em face das normas legais do Cdigo Civil, que
disciplinavam a separao judicial.
Assim que, reunidos no IX Congresso Brasileiro de Direito de
Famlia, em 2013, aprovaram o Enunciado Programtico de n. 1, de
seguinte teor: A Emenda Constitucional n. 66/2010, ao extinguir o
instituto da separao judicial, afastou a perquirio da culpa na disso-
luo do casamento e na quantificao dos alimentos.
Os tribunais de justia estaduais consagraram fortemente a
interpretao da revogao (e extino) da separao judicial, em vir-
tude de incompatibilidade com a norma constitucional de 2010, rejei-
tando a fundamentao do divrcio na culpa ou em qualquer outra
causa subjetiva ou objetiva.
Exemplifique-se com o TJPR, em deciso de 2015 (Processo
n. 1218369-4): A Emenda Constitucional n. 66, de 14 de julho de 2010
(Emenda Constitucional n. 66/2010), que conferiu nova redao ao
6, do art. 226, da CF, inseriu no ordenamento jurdico ptrio a permis-
so para que qualquer dos cnjuges ingresse com o pedido de divrcio,
independentemente da existncia de separao de fato ou de prvia
separao judicial, suprimindo qualquer discusso acerca da culpa pela
ruptura do vnculo matrimonial e, portanto, sendo descabida a preten-
so de que um dos consortes seja considerado o causador da ruptura.
No mesmo sentido, decidiu o Superior Tribunal de Justia em
2014 (REsp 1483841) que: 1. Em razo da modificao do art. 226, 6,
da CF, com a nova redao dada pela Emenda Constitucional n. 66/10,
descabe falar em requisitos para a concesso de divrcio. 2. Inexistindo
requisitos a serem comprovados, cabe, caso o magistrado entenda ser
a hiptese de concesso de plano do divrcio, a sua homologao.
Neste caso, o Tribunal afastou a exigncia de audincia de concilia-
o ou ratificao, em divrcio consensual, como defendemos doutri-
nariamente. Em outro julgado, mais incisivo, decidiu tambm em 2014
o STJ (REsp 236619) que aps a Emenda Constitucional n. 66/10 no
mais existe no ordenamento jurdico brasileiro o instituto da separa-
o judicial. No foi delegado ao legislador infraconstitucional poderes
para estabelecer qualquer condio que restrinja o direito ruptura do
vnculo conjugal. Nesse julgado, o Tribunal confirmou a orientao j
adotada pelos tribunais estaduais de converso de ofcio da separao
judicial em ao de divrcio.
Estava, assim, cada vez mais pacificada a orientao no sentido
da extino da separao judicial, tanto como requisito prvio quanto
como alternativa ao divrcio, quando adveio a Lei n. 13.105/2015).
4AS ALUSES NO CDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 SEPARAO
No se pode extrair do CPC de 2015, quando alude separao,

um conjunto sistemtico de normas que autorize afirmar que remete s
normas revogadas do Cdigo Civil relativas separao judicial. O pro-
jeto original aprovado no Senado Federal no aludia separao conju-
gal, concentrando-se no divrcio. Durante a tramitao na Cmara dos
Deputados do projeto do CPC, houve a insero do termo separao,
ao lado do divrcio, na tentativa de restaur-la. Assim ficou, na reda-
o final pelo Senado Federal, cuja tumultuada e confusa sesso cor-
respondente revelou o desconhecimento da matria pelos senadores
votantes, que se convenceram do argumento da autonomia dos cnju-
ges, ficando a separao como uma opo, que no descaracterizaria o
divrcio, afastando as emendas supressivas.
A tcnica legislativa criticvel e fomentadora de equvocos,
alm de ter sido fruto do oportunismo de correntes tradicionalistas,
que nunca se conformaram com o modelo irrestrito de divrcio e com
a extino da separao judicial. Como a lei processual no poderia
tratar de direito material, optou-se pela insero do termo separa-
o, ao lado das aluses ao divrcio, na expectativa de, assim, inten-
tar-se, de forma inadequada, a restaurao da separao judicial.
Destaquemos as referncias encontradas no novo CPC
separao:
O primeiro artigo (art. 23), em que h aluso expressa separa-

o judicial, norma de direito internacional privado, ou de conflito
de leis, cuidando da competncia da autoridade judiciria brasileira,
para proceder partilha dos bens situados no Brasil de estrangeiros ou
domiciliados fora do Brasil.
H quatro aluses separao, sem qualificao:
1. No art. 53, I, que trata de competncia do foro;

2. No art. 189, II, relativo ao segredo de justia;
3. No art. 189, 2, que permite certido do dispositivo da sen-
tena em processo com segredo de justia;
4. No art. 693, que define as aes de famlia, incluindo a
separao.
H duas aluses separao convencional:
1. No art. 731, que regula a homologao do divrcio ou da sepa-

rao convencionais;
2. No art. 733, que faculta o divrcio ou a separao consensu-
ais mediante escritura pblica, no havendo nascituro ou filho incapaz.
E, finalmente, uma nica aluso separao de corpos, no art.

189, II, incluindo-a no segredo de justia.
oportuno, para a apreenso do estado da arte do Direito bra-
sileiro nessa matria, um escoro sobre a normativa da separao de
fato e a separao de corpos, resultante da mudana constitucional
sobre o direito ao divrcio.
5CONSEQUNCIAS JURDICAS DA SEPARAO DE CORPOS E DA

SEPARAO DE FATO
Antes da ao de divrcio, o cnjuge, comprovando a necessi-

dade, poder requerer a separao de corpos, que ser concedida pelo
juiz com a possvel brevidade (art. 1.562 do Cdigo Civil). A medida
tambm pode ser autorizada pelo juiz na pendncia da ao principal,
para o fim do afastamento temporrio de um dos cnjuges da morada
do casal.
A separao de corpos providncia inevitvel quando h ame-
aa ou consumao de violncia fsica, psicolgica ou social de um dos
cnjuges contra o outro, ou contra os filhos, devendo o ofendido ter
a preferncia para permanecer na residncia familiar, estabelecendo
o juiz o modo de exerccio da autoridade parental, especialmente a
guarda e o sustento da famlia.
Contudo, o pedido de separao de corpos tambm pode ser
feito por quem deseja legitimar sua prpria sada, para que no se
caracterize o inadimplemento do dever conjugal de vida em comum,
no domiclio conjugal (art. 1.566 do Cdigo Civil), ainda que este no
tenha qualquer efeito ou consequncia para o divrcio, pois o aban-
dono voluntrio do lar conjugal era uma das causas subjetivas da sepa-
rao judicial, antes da extino desta pela Emenda Constitucional n.
66/2010. A separao de corpos d ensejo ao cnjuge necessitado a
pretender alimentos contra o outro que tenha condies de faz-lo.
A separao de corpos tem sido concedida pelos tribu-
nais em situaes especficas, como no caso em que o marido vinha
perturbando a vida do casal, com graves reflexos sobre a formao do
carter dos filhos (sada do marido); ou em caso de descoberta pelo
marido de fotos e mensagens da mulher em meio eletrnico, de carter
pornogrfico e ofensivas ao cnjuge, tendo sido justificada a medida
cautelar pelo potencial de violncia fsica e psquica que poderia eclo-
dir entre os cnjuges (sada da mulher).
H divergncia entre os doutrinadores acerca da caducidade da
medida cautelar, se a ao principal no for promovida at trinta dias
de sua efetivao. Todavia, essa norma geral no pode ser aplicada s
separaes de corpos, dadas as peculiaridades do direito de famlia, e
os fins sociais da norma do art. 1.562 do Cdigo Civil, que no prev tal
restrio.
A separao de fato perdeu sua funo de requisito alterna-
tivo para o divrcio. Todavia, remanescem outros efeitos que o direito
atribui a essa situao de fato. A separao de fato do cnjuge con-
templada no 1 do art. 1.723 do Cdigo Civil como pressuposto de
constituio de unio estvel, que no depende de prvio divrcio do
novo companheiro.
Separando-se de fato de seu cnjuge pode o companheiro ini-
ciar imediatamente, sem impedimento legal, unio estvel com outra
pessoa, passando a incidir o regime legal de comunho parcial de bens
adquiridos por ele a partir da.
Assim, a separao de fato gera dois efeitos jurdicos no Direito
brasileiro: cessao dos deveres conjugais e interrupo do regime
matrimonial de bens. Nesse sentido, o IX Congresso Brasileiro de
Direito de Famlia aprovou o Enunciado n. 2, de seguinte teor: A sepa-
rao de fato pe fim ao regime de bens e importa extino dos deve-
res entre os cnjuges e entre os companheiros.
Se tiver sido casado sob o regime legal de comunho parcial, os
bens que foram adquiridos na constncia do casamento permanecem,
so comuns dos cnjuges at a separao de fato. Se os cnjuges per-
manecerem separados, sem constiturem unio estvel com outras
pessoas, os bens que cada um adquirir so considerados particulares.
Se qualquer deles constituir unio estvel com outra pessoa, os bens
adquiridos a partir da so comuns dos companheiros.
Essas consequncias jurdicas especficas e distintas esto con-
templadas de modo claro no Projeto de Lei do Senado n. 470/2013, que
institui o Estatuto das Famlias. Esse PLS explicita que a separao
de fato se configura quando cessa a relao conjugal, ainda que resi-
dindo sob o mesmo teto (art. 59) [providncia indispensvel ante a
dificuldade eventual e temporria de acesso a outro imvel], podendo
ser formalizada consensualmente por escritura pblica ou documento
particular, ou decretada judicialmente.
6A TENTATIVA DE REPRISTINAO E A IMPOSSIBILIDADE JURDICA
A norma constitucional norma jurdica hierarquicamente supe-

rior. Tem fora normativa prpria, no dependendo de interposio do
legislador ordinrio para que possa produzir sua eficcia jurdica. Esse
o estgio em que se encontra o Direito brasileiro.
A norma constitucional, nomeadamente a advinda com a Emenda
Constitucional n. 66/2010, revogou, por incompatibilidade, todas as
normas do Cdigo Civil que regulamentavam a antiga redao do 6
do art. 226 da Constituio, relativa ao requisito prvio de separao
judicial. Houve revogao na modalidade tcita, no sendo necessrio
que a Emenda Constitucional o fizesse expressamente. Todas as nor-
mas que desta tratavam foram revogadas e desapareceram do ordena-
mento jurdico brasileiro.
Se a norma jurdica desaparece no pode ressurgir, quando
a norma revogadora revogada, ou quando a norma nova remete
norma antiga revogada. Costuma-se denominar tal diretriz de vedao
de repristinao. H norma geral expressa nesse sentido. Segundo o
art. 2, 3 da Lei de Introduo s Normas do Direito Brasileiro, salvo
disposio em contrrio, a lei revogada no se restaura por ter a lei
revogadora perdido a vigncia.
Assim, para que a norma anteriormente abolida se restaure
necessrio que a norma nova expressamente regule a matria. No foi
o que aconteceu com o CPC de 2015. A incluso do termo separao,
ao lado da normativa do divrcio, teve o propsito de provocar efeito
repristinador. Contudo, se a matria relativa separao judicial fora
revogada pela Emenda Constitucional n. 66/2010, ela no poderia ser
restaurada pela simples meno separao na lei processual, pois
remete ao que j no existia.
Dois caminhos se apresentam ao intrprete, relativamente s
aluses feitas no CPC de 2015 separao:
1. Entender que so inconstitucionais e, portanto, invlidas tais

aluses, por contrariedade Constituio.
2. Promover a interpretao em conformidade com a Constitui-
o, de modo a lhe conferir sentido vlido. Adotamos este caminho.
7INTERPRETAO EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIO DAS
NOVAS NORMAS PROCESSUAIS
No Direito brasileiro possvel superar a lgica do tudo ou nada,

em se tratando de controle de constitucionalidade, evitando-se decla-
rar a inconstitucionalidade da norma legal, sempre que a esta possa ser
atribudo sentido em conformidade com a Constituio, sem reduo do
texto.
Sendo assim, qual o sentido que se deve conferir ao termo sepa-
rao, que aparece sem qualificao nos quatro preceitos acima referi-
dos do CPC de 2015? No pode ser outro seno separao de fato ou
separao de corpos, as quais, como vimos, permanecem com efeitos
prprios aps o incio de vigncia da Emenda Constitucional n. 66/2010.
No separao judicial, substituta do desquite, porque no mais
existe no ordenamento jurdico, nem como requisito prvio nem como
alternativa ao divrcio.
Vejamos, agora, como interpretar a expresso separao conven-
cional, que comparece em dois preceitos, tambm referidos acima. Por
no mais existir a separao prvia, que apenas dissolvia a sociedade
conjugal sem dissolver o casamento, a expresso separao convencio-
nal, na lei processual, deve ser entendida como relativa separao de
fato. A separao de fato no necessita de acordo para que produza seus
efeitos jurdicos, mas os cnjuges podero dele se utilizar relativamente
aos itens que, em sua falta, dependero de deciso judicial: guarda e
proteo dos filhos, eventual penso alimentcia ao outro cnjuge, parti-
lha de bens. Trata-se, portanto, de separao de fato convencional, no
se confundindo com o instituto jurdico anterior da separao judicial.
Esse acordo poder ser objeto de homologao judicial ou de escritura
pblica.
Contudo, essa conveno sobre a separao de fato no neces-
sria para o divrcio, nem produz os efeitos da antiga separao judicial.
inevitvel o questionamento: para que serve?
Se os cnjuges, separados de fato ou no, podem requerer a
homologao judicial do divrcio convencional, sem necessidade de jus-
tificao ou causa ou prvio acordo, ou promover a escritura pblica do
divrcio convencional, permitindo-lhes dissolver o casamento, estando
de pleno acordo com os itens previsto em lei, qual a necessidade de rea-
lizar tal separao convencional?
Dados estatsticos recentes indicam que a escolha de separa-
o convencional, por falta de conhecimento ou convencimento de seu
desaparecimento, aps a Emenda Constitucional n. 66/2010 caiu expo-
nencialmente, com tendncia a total desaparecimento.
Estabelece o art. 5 da Lei de Introduo s Normas do Direito
Brasileiro que, na aplicao da lei, o juiz atender aos fins sociais a que
ela se dirige. Quais so os fins sociais dessa separao convencional,
criada pelo CPC de 2015, na v tentativa de ressuscitar a desaparecida
homloga do Cdigo Civil? Perdida sua razo histrica fundada na indis-
solubilidade matrimonial e de obstculo obteno do divrcio direto,
sua permanncia vai de encontro e no ao encontro dos valores con-
temporneos que se projetaram na Constituio e no ordenamento jur-
dico brasileiros de autonomia e liberdade de entrar e sair de qualquer
relacionamento conjugal. Os fins sociais do divrcio direto e irrestrito,
adotado pela Constituio, so, portanto, incompatveis com qualquer
dificuldade ou obstculo que a ele se anteponha, ainda que sob o sedu-
tor argumento de autonomia dos sujeitos.
Em concluso, o CPC de 2015 no recriou ou restaurou a separa-
o judicial, nem prvia nem autnoma. As aluses que faz a separa-
o e separao convencional devem ser entendidas como referentes
separao de fato.
Em uma de suas peas mais hilariantes, cujo ttulo Muito baru-
lho por nada, Shakespeare desenvolve uma trama em torno do casal de
apaixonados, vtimas de armao de um malvado que beija outra mulher
para confundir o namorado, induzindo-a a acreditar que era sua namo-
rada. No final, tudo se esclarece e os namorados se casam. Lembramo-
-nos dessa pea quando assistimos a votao final e lemos o texto do
novo CPC, aprovado pelo Senado Federal. Muito barulho por nada.
FAMLIAS ECTOGENTICAS OS LIMITES JURDICOS PARA
UTILIZAO DE TCNICAS DE REPRODUO ASSISTIDA
Marianna Chaves
Doutoranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Uni-

versidade de Coimbra. Mestra em Cincias Jurdicas pela Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa. Secretria de Relaes Internacio-
nais do IBDFAM. Membro fundador da Associao Lusfona de Direito
da Sade (ALDIS). Membro da World Association for Medical Law e da
International Society of Family Law. Advogada.
Sumrio: 1. Introduo. 2. Os beneficirios das tcnicas

de RA no Brasil. 3. Limites e excees. 4. A maternidade
de substituio. 5. Contratos de gerao de filhos. 6. O
problema dos embries excedentrios. 7. Consideraes
finais. 8. Referncias.
1INTRODUO
Em um passado no muito distante, as pessoas ou casais infr-

teis1 ou com grandes dificuldades para procriar estavam condenados a
no terem filhos com os quais fossem geneticamente ligados ou sim-
plesmente a no terem prole alguma. No mundo contemporneo, esse
cenrio mudou com o auxlio da tecnologia reprodutiva que expandiu
substancialmente o leque de possibilidades para procriao de casais
ou indivduos infrteis ou pares que pela sua natureza no podem se
reproduzir como casal, como os pares homoafetivos.2
1
A infertilidade uma realidade que est presente na histria da humanidade desde sempre. A
Bblia Sagrada traz diversos exemplos de mulheres acometidas pela infertilidade, como Sara
(mulher de Abrao) e Isabel (prima de Maria). No passado, a preocupao com a infertilidade
no se centrava em uma certificao do exerccio do direito fundamental parentalidade por
ambos os cnjuges. Ao contrrio, ligava-se funo social da mulher que era, de modo exclu-
sivo, gerar e criar filhos. Na hiptese de impossibilidade de exercer esse papel, a mulher era
considerada intil, estigmatizada, vivia no ostracismo e podia, inclusive, ser repudiada (como
ainda acontece em alguns lugares na atualidade). Neste sentido, ver NEVES, M. Patro. PMA:
do desejo de um filho ao filho desejado. In: Separata de Do incio ao fim da vida Actas do
Colquio de Biotica. Braga: Faculdade de Filosofia da Universidade Catlica Portuguesa,
2005, p. 115.
2
Em muito pouco tempo, a sociedade foi testemunha de acontecimentos e avanos cuja
transcendncia e impacto tero repercusses na vida das geraes atuais e futuras. O desen-
volvimento vertiginoso de at ento inditas tcnicas cientficas abriram caminho para uma
srie de oportunidades e procedimentos mdicos que antes eram considerados
Assim, com a viabilidade trazida pela Medicina reprodutiva e
a Biotecnologia, surgiram as famlias ectogenticas, que so aque-
les modelos familiares com filhos oriundos das tcnicas de procria-
o medicamente assistida.3 Como adverte Rodrigo da Cunha Pereira,4
as tcnicas reprodutivas, aliadas ao discurso jurdico, psicanaltico e
filosfico, promoveram passagens para a fundao de novos vnculos
de parentesco. Os tipos podem variar entre processos homlogos ou
heterlogos conforme o material gentico seja de ambos, apenas de
um ou de nenhum dos membros do casal5 e ainda incluir o recurso
maternidade de substituio tradicional ou gestacional (conforme o
vulo pertena ou no me portadora).
Regulamentos e legislaes relativas procriao so suscept-
veis de ter implicaes constitucionais significativas, de modo que os
esforos para regulamentao devem lidar com a natureza do direito
em jogo. A Constituio do Brasil indica que o planejamento familiar
dever basear-se na dignidade da pessoa humana e na paternidade res-
ponsvel, sendo vedado ao Estado qualquer tipo de controle ou inter-
ferncia no exerccio desse direito. Da se pode extrair o entendimento
de um direito fundamental reproduo6 e consequente constituio
de famlia.7 Qualquer territrio que negue o direito parentalidade a
uma parte dos indivduos, obstando a realizao pessoal dos mesmos,
inimaginveis. Tal progresso, entretanto, trouxe consigo muitas dvidas e dilemas. Neste
sentido, ver CRUZ, Myrel Marin. Diagnostico genetico preimplantacional: consideraciones
juridicas del uso de embriones pre-seleccionados para evitar condiciones geneticas. Revista
Juridica Universidad de Puerto Rico, v. 82, n. 1, p. 249, 2013.
3
Como se adverte na doutrina especializada, entre todas as matrias atualmente em desen-
volvimento no Direito da Sade, existem poucas to polmicas, dinmicas, que englobam e
atingem tantos ramos do Direito ao mesmo tempo, e com consequncias to diretas e pro-
fundas na vida das pessoas como a procriao medicamente assistida. Suas potencialidades
cientficas, os dilemas ticos gerados a partir do vertiginoso progresso das tcnicas utilizadas
na medicina reprodutiva, e a ausncia de parmetros jurdicos prvios para solucionar con-
trovrsias so alguns dos elementos que, agregados s transformaes na conduta e no modo
de pensar da sociedade, esto a instituir um cenrio novo, de possibilidades, alternativas e
veredas. A Medicina atual permite desenvolver embries, escolher suas caractersticas de
fentipo e gentipo, congel-los, implant-los em mulheres que gestaro filhos por outrem,
ou at mesmo permite que algum tenha filhos muitos anos aps a sua morte. At onde pode-
-se, ou deve-se ir? So questes levantadas por DANTAS, Eduardo. Direito mdico. 3 ed. Rio
de Janeiro: GZ, 2014, p. 289.
4
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionrio de direito de famlia e sucesses: ilustrado. So
5
Numa hiptese rara, mas no impossvel, de ambos serem infrteis.
6
A Suprema Corte dos EUA, em diversos julgados, estabeleceu o direito de procriar como um
direito fundamental, numa lgica de que os Estados no podem obrigar uma pessoa a repro-
duzir nem tampouco podem obstruir a sua capacidade para procriar. Assim, esse direito
existe em sentido positivo e em sentido negativo. Cfr. SHIVAKUMAR, Pryianka. Count Your
Chickens before They Hatch How Multiple Pregnancies Are Endangering the Right to Abor-
tion. Brooklyn Law Review, v. 78, n. 1, p. 214, 2012.
7
Como j afirmamos em CHAVES, Marianna. Homoafetividade e direito: proteo constitu-
cional, unies, casamento e parentalidade. 2. ed. Curitiba: Juru, 2012, p. 261.
viola seus direitos fundamentais igualdade e no discriminao,
obstrui o exerccio da cidadania e coloca em xeque a prpria democra-
cia e dignidade das pessoas, ao deixar de promover positiva e igualita-
riamente as liberdades fundamentais de todos os seus cidados.8
O Brasil, entretanto, vem deixando a regulao da matria
da procriao medicamente assistida (PMA) a cargo da deontologia
mdica. No parece ser a deciso mais acertada. Alis, as Resolues n.
1.957/2010, 2.013/2013 e 2.121/2015 do Conselho Federal de Medicina,
em suas exposies de motivos indicam expressamente a neces-
sidade de edio de uma legislao especfica e lembram a letargia do
Legislativo no cumprimento dessa obrigao.9 Portanto, preciso que
o Brasil avance e legisle nesse mbito.10 Certamente, levando em con-
siderao ou fazendo uma remisso a todas as normas presentes
e amplamente aceitas na Resoluo do CFM e tutelando questes que
no foram previstas, reguladas de forma inconsistente ou incompleta
na Resoluo ou na legislao vigente.
Ademais, importa referir que a PMA acarreta em novas dimen-
ses de conceitos bsicos como os da maternidade e da paternidade,
da dignidade da pessoa humana, da monogamia, da integridade moral
das pessoas, alm de suscitar novas interpretaes das regras jurdicas
8
Cfr., em igual sentido SAPKO, Vera Lucia da Silva. Do direito paternidade e maternidade
dos homossexuais: sua viabilizao pela adoo e reproduo assistida. Curitiba: Juru, 2005,
p. 101-102.
9
H quem defenda que esses assuntos deveriam ser deixados deciso das partes, dos mem-
bros da famlia, na moldura dos diversos ordenamentos intermdios a deontologia, a tica,
as orientaes das comisses de reflexo. Todavia, a opinio dominante em pases de matriz
romano-germnica ou do sistema da Civil Law no sentido de uma interveno legislativa. Os
prprios mdicos e profissionais de sade como se depreende da exposio de motivos do
CFM clamam por legislao. Tal necessidade pode residir no fato de que mdicos, bilogos e
outros profissionais relacionados sade no se satisfazem com diretrizes fundamentadas
to somente na deontologia ou na convico profissional, e almejam que o Direito determine
com segurana o que e o que no lcito. Impossibilitados de encontrarem sozinhos as fron-
teiras da sua arte, em um tempo em que expande as responsabilizao civil e criminal dos
atos mdicos, os profissionais possuem conscincia de que j no suficiente uma tica cor-
porativa para legitimar a prtica cientfica. Como adverte Guilherme de Oliveira em texto
publicado antes do surgimento da Lei de Procriao Medicamente Assistida (Lei n. 32/2006)
em Portugal. (OLIVEIRA, Guilherme de. Legislar sobre Procriao Assistida. In: OLIVEIRA,
Guilherme de. Temas de direito da medicina. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 91-92).
Entretanto, como indica o mesmo jurista, a reserva da intimidade da vida privada e vida fami-
liar no podem avocar o alcance de afastar o Estado e uma legislao de uma ampla interven-
o, nesta matria. No se mostra bastante apenas o ato de o Estado fixar balizas longnquas
de legalidade, deixando conscincia dos particulares o arbtrio de estabelecer o que bom e
lcito. Cfr. OLIVEIRA, Guilherme de. Aspectos jurdicos da procriao assistida. In: OLIVEIRA,
Guilherme de. Temas de direito da medicina. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 7.
10
A doutrina categrica no sentido de que uma falta de resposta legislativa nessa matria
termina pode expor as partes a um cenrio altos riscos, pautado pela insegurana jurdica e
muitas vezes pela explorao econmica, em virtude da ausncia de regulao e sanes aos
desvios legais. Nesse sentido, ver PREISLER, Andrea. Assisted Reproductive Technology: The
Dangers of an Unregulated Market and the Need for Reform. DePaul Journal of Health Care
Law, v. 15, n. 2, p. 214, 2013.
clssicas ou impor novas regras. Portanto, no matria que se deixe
pura e simplesmente deontologia dos profissionais da Medicina ou a
quaisquer outras disciplinas intermdias, livre conscincia das pes-
soas e da famlia ou ao cuidado de comits de reflexo. Como ressalta
Guilherme de Oliveira, matria de responsabilidade do Estado;
questo de interesse pblico que reclama interveno legislativa.11
O momento oportuno para reconsiderar o direito a procriar e
a reproduo assistida em um contexto do sculo XXI. Assim, os dias
atuais revelam um momento apto para voltar a dinamizar a discusso
acadmica sobre o significado do direito procriao em um mundo
ps-coital.12 Todo e qualquer estudo nessa matria deve levar em conta
as mudanas tecnolgicas, sociais e acadmicas nas ltimas dcadas,
uma vez que a reproduo assistida tornou-se uma forma amplamente
aceita de procriao e muitos tribunais e legislaturas como o caso
do Brasil tm continuado a fugir da considerao explcita da natu-
reza do direito de procriar com recurso s tcnicas de PMA.
Este artigo visa tratar de alguns pontos especificamente con-
trovertidos dentro da matria da procriao medicamente assistida,
evidenciando a necessidade urgente da edio de uma legislao espe-
cfica, assim como a inevitabilidade do amoldamento e harmonizao
de normas j existentes no sistema jurdico com as realidades criadas
pela PMA.13
2OS BENEFICIRIOS DAS TCNICAS DE RA NO BRASIL
A Resoluo n. 2.121/2015 do Conselho Federal de Medicina

determina que podero ser beneficirios das tcnicas de procriao
medicamente assistida todas as pessoas capazes, que tenham buscado
o procedimento e cuja indicao no se afaste dos limites da Resoluo,
11
Complementa ainda o professor portugus que esta necessidade de interveno do legisla-
dor foi dada por assente nas comisses Warnock e Benda, respectivamente na Inglaterra e na
Alemanha. A prpria responsvel da comisso inglesa, Mary Warnock, num comentrio breve
sobre o trabalho que dirigiu, afirmou destacadamente que h acordo na sociedade sobre um
ponto: o de que a legislao necessria. Por sua vez, o relatrio termina com uma lista de
recomendaes que supem ou expressamente exigem a interveno legislativa. Tambm o
relatrio BENDA faz amplas recomendaes de interveno legal. (Grifos no original). Cfr.
OLIVEIRA, Guilherme de. Legislar sobre Procriao Assistida. In: OLIVEIRA, Guilherme de.
Temas de direito da medicina. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 25, p. 95-97.
12
Como adverte MUTCHERSON, Kimberly M. Procreative pluralism. Berkeley Journal of Gen-
der, Law & Justice, v. 30, n. 1, p. 24, 2015.
13
Como se adverte na doutrina estrangeira, o histrico da (falta de) regulamentao da tecno-
logia reprodutiva reala o fenmeno que forte aceitao pblica e as foras do mercado
entrincheiradas ao redor das novas tecnologias muitas vezes resultam em padres de segu-
rana sub-timos. Cfr. PREISLER, Andrea. Assisted Reproductive Technology: The Dangers of
an Unregulated Market and the Need for Reform. DePaul Journal of Health Care Law, v. 15, n.
2, p. 214, 2013.
desde que as partes estejam totalmente de acordo e apropriadamente
esclarecidas,14 de acordo com a legislao vigente. Importa referir que
s se pode falar genuinamente em autonomia reprodutiva quando
existe uma escolha efetiva, fundamentada em informao correta e
apropriada. No raras vezes, as pessoas e casais so adequadamente
informados, mas tendem a focalizar mais nas vantagens do que nos
perigos das tcnicas de PMA. Em todo o processo, imprescindvel
que o mdico no condicione os pacientes, ainda que indiretamente, a
tomar determinada deciso, pois tal conduta configuraria uma opres-
so ao interesse de se decidir autonomamente.15 Somente a escolha
esclarecida preenche os requisitos necessrios e levam completude
do dever de informao do mdico.16
O corpo de normas deontolgicas do CFM relativas PMA indica
expressamente que autorizada a utilizao das tcnicas de RA em
pessoas solteiras e casais homoafetivos, sendo admitido, entretanto, o
direito do profissional da Medicina objeo de conscincia. A Reso-
luo estabelece ainda que admitida a gestao compartilhada na
hiptese de unio homoafetiva entre lsbicas, quando uma parceira
ou cnjuge carregar o embrio fertilizado com o vulo da outra, sem
que haja uma ocorrncia de infertilidade ou outra situao mdica que
contraindique a gravidez.
Assim, pode-se dizer que o acesso s tcnicas de PMA no Bra-
sil bastante amplo, estando o recurso Medicina reprodutiva aberto
a casais heterossexuais, pessoas solteiras, alm de casais homosse-
xuais femininos e masculinos, com recurso gravidez compartilhada
14
preciso referir que consentimento informado e escolha esclarecida no so necessaria-
mente a mesma coisa. Inclusive, a Resoluo n. 2.121/2015 passou a utilizar a terminologia
consentimento livre e esclarecido em substituio a consentimento informado que cons-
tava na Resoluo n. 2.013/2013. A atual Resoluo do CFM determina que, o consentimento
livre e esclarecido informado ser obrigatrio para todos os pacientes submetidos s tcnicas
de reproduo assistida. Os aspectos mdicos envolvendo a totalidade das circunstncias da
aplicao de uma tcnica de RA sero detalhadamente expostos, bem como os resultados
obtidos naquela unidade de tratamento com a tcnica proposta. As informaes devem tam-
bm atingir dados de carter biolgico, jurdico e tico. O documento de consentimento livre
e esclarecido informado ser elaborado em formulrio especial e estar completo com a con-
cordncia, por escrito, obtida a partir de discusso bilateral entre as pessoas envolvidas nas
tcnicas de reproduo assistida. Cfr. CFM, Resoluo 2.121/2015. Disponvel em: <http://
www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2015/2121_2015.pdf >. Acesso em: 20 set.
2015.
15
Neste sentido, ver SILVESTRE, Margarida. Embries excedentrios: entre a tcnica, a lei e a
tica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015, p. 61.
16
Sobre a questo, adverte a doutrina que ao paciente, necessrio estar de posse de todos
os elementos possveis a sua compreenso, para que a sim possa exercer a faculdade de
consentir com o tratamento ou interveno proposta, escolher outra das alternativas exis-
tentes, ainda que menos indicada pelo profissional que o assiste, ou mesmo recusar-se a se
tratar. A este procedimento, que engloba o consentimento informado sem com este se con-
fundir, se atribui o nome de escolha esclarecida. (Grifos no original). (DANTAS, Eduardo.
Direito mdico. 3 ed. Rio de Janeiro: GZ, 2014, p. 77).
e maternidade de substituio. E no poderia ser diferente, j que a
Constituio Federal protege a famlia, em qualquer das suas formas,
tendo todas igual dignidade e considerao, alm do Supremo Tribu-
nal Federal ter reconhecido as unies homoafetivas como entidades
familiares. Nessa lgica, no demais afirmar que o Brasil consagra
um pluralismo procriativo,17 amparado na ideia de autonomia, igual-
dade e justia na reproduo.18 Portanto, no territrio brasileiro ter-
minou por se reconhecer o direito fundamental procriao, onde
se inclui o direito fundamental ao acesso aos mtodos de reproduo
assistida por todas as pessoas e casais, sem diferenciaes de qualquer
natureza.
3LIMITES E EXCEES
A sexagem19 ou escolha de sexo proibida pelo Conselho Fede-

ral de Medicina. De acordo com a Resoluo n. 2.121/2015, no se pode
recorrer s tcnicas de procriao medicamente assistida com o obje-
tivo de selecionar o sexo (presena ou ausncia de cromossomo Y) ou
qualquer outro trao ou caracterstica biolgica (como cor dos olhos
ou estrutura do cabelo) da futura prole, exceto na hiptese de evitar
patologias no filho que venha a nascer.20 Ou seja, apenas na hiptese
em que a seleo de sexo seja levada a cabo por razes mdicas, como
evitar doenas ou anomalias vinculadas a um dos cromossomos sexu-
ais, ela estar autorizada pela Resoluo.21
17
Uma sociedade que reconhece o pluralismo na procriao reflete esforos para imaginar e
tutelar o pluralismo familiar como indica MUTCHERSON, Kimberly M. Procreative pluralism.
Berkeley Journal of Gender, Law & Justice, v. 30, n. 1, p. 27, 2015.
18
O movimento da justia reprodutiva (criado pensando nas pessoas do sexo feminino, mas
podendo hoje ser aplicado a todas as pessoas) visa criar um mundo onde os indivduos tm o
poder e os recursos econmico, social e poltico para tomar decises saudveis sobre seus
corpos, sexualidade e reproduo. Cfr. MUTCHERSON, Kimberly M. Transformative Repro-
duction. Journal of Gender, Race & Justice, v. 16, n. 1, p. 228, 2013.
19
H ainda quem se refira prtica como eugenismo sexista. Neste sentido, REIS, Rafael Vale
e. Responsabilidade penal na procriao medicamente assistida A criminalizao do recurso
maternidade de substituio e outras opes legais duvidosas. Lex Medicinae Revista Por-
tuguesa de Direito da Sade, ano 7, n. 13, p. 79, 2010.
20
Por exemplo, nas famlias com histrico de doenas ligadas ao cromossomo X, como a dis-
trofia muscular de Becker e a distrofia muscular de Duchenne, a determinao do sexo for-
nece uma ferramenta poderosa para a identificao de fetos masculinos em risco para as
doenas ligadas ao cromossomo X. Neste sentido, cfr. KING, Jaime S. And Genetic Testing for
All - The Coming Revolution in Non-Invasive Prenatal Genetic Testing. Rutgers Law Journal,
v. 42, n. 3, p. 607, 2011.
21
Como ressalta Vera Lcia Raposo, a maior parte das legislaes do mundo sobre a matria
veda a sexagem, excetuando-se na hiptese de preveno de doenas hereditrias conecta-
das a um determinado sexo. Esse tambm o posicionamento da Conveno sobre os Direi-
tos Humanos e Biomedicina (art. 14). Portanto, a escolha do sexo quando a opo no se jus-
tifique por razes mdicas ou a escolha de caractersticas diversas do sexo englobam a deno-
minao de frivolous choices: cor e estrutura dos cabelos, cor dos olhos, QI, tipo e vigor fsico,
A Resoluo expressamente veda a fecundao de ocitos huma-
nos com qualquer outro objetivo que no seja a procriao humana.22
Desta maneira, terminantemente proibida a criao de embries
humanos que no sejam destinados procriao das pessoas envolvi-
das no processo reprodutivo. Na hiptese de gravidez mltipla (ocor-
rncia no incomum em processos de PMA), a Resoluo do CFM
estabelece uma vedao utilizao de procedimentos e que objetivem
a reduo embrionria.23 Os riscos da gravidez multifetal aumentam
com cada feto adicional. Contudo, ainda que a Resoluo do Conse-
lho Federal de Medicina no possua fora de lei, a reduo embrionria
parece estar vedada dentro do ordenamento brasileiro, uma vez que
tal prtica constituiria o crime de aborto, nos termos do art. 124 do
Cdigo Penal.
Na Resoluo do CFM ainda est prevista a possibilidade de
recurso ao diagnstico gentico pr-implantao (DGPI), que um
dos possveis diagnsticos pr-natais, constituindo uma alternativa ao
diagnstico pr-natal clssico,24 com a peculiaridade de ter por objeto
enfim, caractersticas que levam ideia de um refinamento gentico da espcie. Cfr. RAPOSO,
Vera Lcia.Pode trazer o menu, por favor? Quero escolher o meu embrio Os mltiplos
casos de seleco de embries em sede de diagnstico gentico pr-implantao. Lex Medi-
cinae Revista Portuguesa de Direito da Sade, ano 4, n. 8, p. 67-69, 2007.
22
Como, por exemplo, a criao de hbridos e quimeras.
23
Importa referir que, em certa poca, a gravidez de mltiplos j foi considerada uma verda-
deira epidemia no mbito das tcnicas de reproduo assistida. Para tentar evitar ao mximo
essa ocorrncia, a Resoluo do CFM limita o nmero de vulos e embries a serem transferi-
dos para a paciente em um mximo de quatro, a depender da idade. Nos EUA, estima-se que
entre 30 e 35% das gravidezes de mulheres que recorrem s tcnicas de PMA resultam em
mltiplos filhos, o que acarreta em riscos para as mulheres e para os bebs. Ainda que a redu-
o embrionria ou fetal fosse autorizada, importante ressaltar que o processo significa no
apenas eliminar um ou mais fetos em desenvolvimento, mas tambm coloca toda a gravidez
em risco. Por outro lado, na hiptese de no reduo na gravidez multifetal, a paciente e seus
filhos enfrentam outros srios riscos. Gestaes mltiplas, incluindo gmeos, criam srios
riscos de sade para mes e seus filhos. Mes de mltiplos enfrentam maiores riscos de con-
dies prejudiciais tais como pr-eclmpsia, parto prematuro e diabetes gestacional. As mes
que carregam fetos mltiplos so tambm hospitalizadas com frequncia bem antes da gravi-
dez chegar a termo, tm de suportar repouso prolongado e apresentam taxas mais altas de
parto por cesariana. Assim, ainda que a reduo embrionria ou fetal fosse autorizada, a
melhor medicina se encaminha no sentido de sempre tentar evitar ao mximo a gravidez de
mltiplos. Cfr. GLENNON, Theresa. Choosing One: Resolving the Epidemic of Multiples in
Assisted Reproduction. Villanova Law Review, v. 55, n. 1, p. 147 e 158, 2010.
24
Testes genticos criaram oportunidades, mas tambm dilemas para uso nos cuidados de
sade privada assim como nos sistemas de sade pblica. A sequenciao do genoma humano
e avanos em reas como genmica e bioinformtica trouxeram novos procedimentos diag-
nsticos e teraputicos. Os EUA e alguns pases europeus aprovaram legislaes sobre a dis-
criminao que os testes genticos podem causar. Conforme tecnologias de testes genticos
avanam, diretrizes nacionais e internacionais tentam preparar e educar os profissionais de
sade para prescrever esses testes e interpretar seus resultados. Neste sentido, ver KATZ,
Gregory; SCHWEITZER, Stuart O. Implications of Genetic Testing for Health Policy. Yale
Journal of Health Policy, Law, and Ethics, v. 10, n. 1, p. 92, 2010.
embries existentes no exterior do ventre materno.25 A resoluo
indica ainda que, na hiptese de verificao de alteraes genticas
causadoras de doenas, os embries podem ser doados para pesquisa
ou descartados.
importante ressaltar que o DGPI no surge sem desafios e
complicaes. Muitas vezes, os prprios mdicos no compreendem
completamente os resultados de um teste gentico, ou no esto bem
treinados relativamente comunicao dos resultados encontrados
aos pacientes. Alm disso, embora a maioria dos testes genticos exis-
tentes examinem distrbios e patologias que surgem a partir da muta-
o de um nico gene, a grande maioria de condies hereditrias e
caractersticas resultam das interaes de mltiplos genes ou entre os
genes e o ambiente.26
No Brasil por meio da Resoluo n. 2.121/2015 tambm se
permite que as tcnicas de PMA sejam utilizadas para tipagem do sis-
tema HLA 27 do embrio, com objetivo de selecionar embries HLA
compatveis com algum(a) filho(a) do casal j afetado pela doena e
cujo tratamento efetivo seja o transplante de clulas-tronco, de acordo
com a legislao vigente.28 a denominada e controversa29 tcnica
do beb-medicamento, criado para ser geneticamente compatvel
25
Como adverte Vera Lcia Raposo, embora no funcione (ainda) como garantia segura de
um beb saudvel, certo que hodiernamente possvel despistar uma srie de doenas gra-
ves, desde logo as vrias aneuploidias (sndrome de Down, isto , trs cromossomas no 21
par; sndrome de Patau, trisomia 13; sndrome de Edward, trisomia 18; sndrome de Klinefelter,
que pressupe a existncia de dois cromossomas X, criando o trpeto XXY; sndrome de Tur-
ner, caracterizado pela inexistncia de um cromossoma sexual, o que deixa o cromossoma X
sozinho), detectveis por via de rastreio, mtodo que permite analisar o nmero de cromos-
somas (21, 18, 13, X e Y) dos embries disponveis, de forma a utilizar apenas aqueles que no
apresentam alteraes cromossmicas, para assim aumentar a taxa de sucesso da PMA e,
simultaneamente, reduzir o nmero de embries implantados a cada tentativa. (RAPOSO,
Vera Lcia.Pode trazer o menu, por favor? Quero escolher o meu embrio Os mltiplos
casos de seleco de embries em sede de diagnstico gentico pr-implantao. Lex Medi-
cinae Revista Portuguesa de Direito da Sade, ano 4, n. 8, p. 59-60, 2007).
26
Neste sentido, ver KING, Jaime S. And Genetic Testing for All - The Coming Revolution in
Non-Invasive Prenatal Genetic Testing. Rutgers Law Journal, v. 42, n. 3, p. 601, 2011.
27
a identificao laboratorial dos genes que codificam o HLA do indivduo. A tipagem pode
ser feita por tcnicas de sorologia ou biologia molecular e tem as seguintes finalidades:
1) determinar o grau de compatibilidade entre doador e receptor de rgos, em estudos de
pesquisa de doadores intra-familiares, ou de pacientes inscritos em lista de espera e possveis
doadores cadveres; 2) incluso de pacientes acometidos por doenas hematolgicas ou
outras doenas do sangue, e que necessitem de transplante de medula ssea, no Registro
Nacional de Receptores de Medula ssea (REREME); 3) incluso de voluntrios no Registro
Nacional de Doadores Voluntrio de Medula ssea (REDOME); 4) cadastro das bolsas de san-
gue de cordo umbilical e placentrio doadas Rede BrasilCord no Registro Nacional de
Sangue de Cordo Umbilical (RENACORD). Cfr. ANVISA. Tipagem HLA. Disponvel em:
<http://portal.anvisa.gov.br>. Acesso em: 21 set.2015..
28
Legislao essa, inexistente.
29
Os opositores deste processo alegam, em regra, que estar-se-ia diante de um caso patente
de instrumentalizao do ser humano.
com um irmo que sofra de grave patologia, cuja cura ou tratamento
importe em um transplante de clulas ou rgos, que s ser possvel
por meio da pessoa que ir nascer. Assim, o beb-remdio30 surge,
em regra, quando um casal se depara com a morte eminente de um
filho e numa tentativa desesperada de evitar o pior, decidem ter outra
criana, portadora de igual patrimnio gentico, cujos tecidos sero
compatveis com os do irmo e permitiro ser transplantados com
menor ou nenhum risco de rejeio.31
4A MATERNIDADE DE SUBSTITUIO
Certamente, a questo da legalidade dos contratos de gestao

por outrem um dos temas mais fascinantes e desafiadores, assim
como problemticos, dentro do direito da sade e do direito das fam-
lias. A Resoluo n. 2.121/2015 do CFM autoriza o recurso maternidade
de substituio, nas hipteses de existncia de algum impedimento ou
contraindicao de ordem mdica de que a gestao seja levada a cabo
pela doadora gentica ou de unio entre pessoas do mesmo sexo.
As doadoras temporrias do tero devem pertencer famlia de
um dos parceiros em parentesco32 at quarto grau, estando os demais
casos sujeitos anlise e autorizao do respectivo Conselho Regio-
nal de Medicina. Portanto, a nova Resoluo alargou a possibilidade de
a pessoa ou casal que recorra gestao de substituio, socorra-se
de uma pessoa que no seja familiar, desde que expressamente auto-
rizado pelo CRM. A doao temporria de tero, assim como a doa-
o de gametas e embries, de acordo com a Resoluo, no poder
ter carter comercial ou lucrativo, e os doadores no devem conhecer
a identidade dos receptores e vice-versa. Dessa afirmao e pelo fato
de que o CFM estabelece uma regra de parentesco entre os pacientes
e a me substituta, depreende-se que a me portadora no poder (ou
30
Em ingls denominado de savior sibling.
31
Cfr. RAPOSO, Vera Lcia.Pode trazer o menu, por favor? Quero escolher o meu embrio
Os mltiplos casos de seleco de embries em sede de diagnstico gentico pr-implanta-
o. Lex Medicinae Revista Portuguesa de Direito da Sade, ano 4, n. 8, p. 71, 2007.
32
A Resoluo fala em parentesco consanguneo mas, como sabido, o parentesco civil (ado-
tivo) e socioafetivo produzem os mesmos efeitos que o parentesco sanguneo, no fazendo
sentido qualquer interpretao restritiva apenas consanguinidade. Neste sentido, vale a
pena reproduzir o Enunciado n. 103, da I Jornada de Direito Civil do CJF: o Cdigo Civil reco-
nhece, no art. 1.593, outras espcies de parentesco civil alm daquele decorrente da adoo,
acolhendo, assim, a noo de que h tambm parentesco civil no vnculo parental proveniente
quer das tcnicas de reproduo assistida heterloga relativamente ao pai (ou me) que no
contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse
do estado de filho.
pelo menos no deveria ser) ser a me gentica da criana, devendo os
embries ser fertilizados com vulo de doadora annima.33
A Resoluo n. 2.121/2015 determina que nos centros de procria-
o medicamente assistida, os seguintes documentos e observaes
devero constar no pronturio do paciente: a) Termo de consentimento
livre e esclarecido informado assinado pelos pacientes e pela doadora
temporria do tero, observando dimenses biopsicossociais e riscos
compreendidos no processo gravdico-puerperal, bem como aspec-
tos jurdicos da filiao; b) Relatrio mdico com o perfil psicolgico,
certificando ajustamento clnico e emocional de todas as partes envol-
vidas no processo; c) Termo de Compromisso entre os pacientes e a
doadora temporria do tero, estabelecendo de forma clara a questo
da filiao dos embries; d) Garantia, por parte dos pacientes contra-
tantes de servios de PMA, de tratamento e cuidado mdico, inclusive
por equipes multidisciplinares, se prescrito, mulher que doar tem-
porariamente o tero, at o puerprio; e) Garantia do registro civil da
criana pelos pacientes, devendo esta documentao ser preparada
durante a gravidez; e) Autorizao do cnjuge ou companheiro, apre-
sentada por escrito, se a doadora temporria do tero for casada ou
viver em unio estvel.
H quem afirme que as Resolues do Conselho Federal de
Medicina, diante do silncio legislativo, possuiriam um carter obri-
gatrio-vinculativo geral, com fundamento no art. 59 da Constitui-
o Federal.34 Entretanto, as Resolues indicadas no art. 59, VII, da
CF/88, visam to somente regulamentar matria de interesse interno
(administrativo ou poltico) 35 da Cmara dos Deputados e do Senado
33
Assim, em tese, a maternidade de substituio tradicional em que a me portadora tam-
bm doadora do vulo seria prtica proibida. Para uma diferenciao mais aprofundada
entre as modalidades de maternidade de substituio, ver BARON, Noah; BAZZELL, Jennifer.
Assisted Reproductive Technologies. Georgetown Journal of Gender and the Law, v. 15, n. 1, p.
59, 2014.
34
Neste sentido se manifesta Eduardo Dantas: O Conselho Federal de Medicina autarquia
instituda por fora da Lei Federal n 3.268, de 30 de setembro de 1957, tendo sido regulamen-
tada pelo Decreto n 44.045, de 19 de julho de 1958. Posteriormente, foi alterada pela Lei Fede-
ral n 11.000, de 15 de dezembro de 2004, tambm regulamentada pelo Decreto n 6.281, de 14
de abril de 2009. Suas atribuies e competncias esto ali bem delineadas, e dentre elas,
esto as de disciplinar e fiscalizar o cumprimento das regras que regero a prtica da medi-
cina no pas, podendo, para tanto, editar resolues. Estas resolues, por sua vez, possuem
carter supletivo a todo o processo legislativo, por fora do determinado pelo artigo 59 da
Constituio Federal: Art. 59. O processo legislativo compreende a elaborao de: I - emendas
Constituio; II - leis complementares; III - leis ordinrias; IV - leis delegadas; V - medidas
provisrias; VI - decretos legislativos; VII - resolues. Vale dizer, portanto, que em tudo
aquilo que no conflitar com normas de hierarquia superior, suas diretrizes possuem fora
normativa e devem ser adotadas como parmetro legal. A fora legiferante emanada atua em
carter supletivo, como dito, e se manifesta sempre que h omisso daqueles incumbidos de
legislar. (DANTAS, Eduardo. Direito mdico. 3 ed. Rio de Janeiro: GZ, 2014, p.. 300-301).
35
Como indica Pedro Lenza, por meio das resolues, sero regulamentadas as matrias de
competncia privativa do Senado (CF, art. 52) e da Cmara dos Deputados (CF, art. 51). Os
Federal, em conjunto ou separadamente.36 Portanto, no parece fac-
tvel que a Resoluo do CFM sobre procriao medicamente assistida
possua fora de lei, vinculando as partes ou o juiz que venha a dirimir
um eventual litgio.
Todavia, isso no quer dizer que, na hiptese de lide judicial,
seus princpios e disposies no possam ser considerados na deciso.
O art. 126 do Cdigo Buzaid estabelece que o juiz no se desobriga de
sentenciar ou despachar arguindo lacuna ou obscuridade da lei. No jul-
gamento da contenda dever aplicar as normas legais; na hiptese de
inexistncia como esse caso especfico recorrer analogia, aos
costumes e aos princpios gerais de direito. Esse raciocnio tambm
apresentado pelo art. 4 da LINDB.37
Com esse panorama delineado e na ausncia de legislao espe-
cfica sobre as tcnicas de procriao medicamente assistida, algumas
questes podem ser colocadas: na hiptese de celebrao de um con-
trato gratuito de maternidade de substituio, o negcio celebrado
vlido? A sua obrigatoriedade nos termos pactuados poderia ser sus-
tentada na Resoluo do Conselho Federal de Medicina sem qualquer
espao para arrependimentos38 ou brechas numa lgica de pacta sunt
servanda? E na hiptese de celebrao de um contrato oneroso?39 Ele
seria imediatamente considerado nulo com base nas normas do CFM
ou da legislao infraconstitucional?40 A resposta no parece ser abso-
Regimentos Internos de cada Casa determinam as regras sobre o processo legislativo.

(LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12. ed. So Paulo: Saraiva, 2008, p. 392).
36
Ressalta Jos Afonso da Silva que, finalizada a elaborao do projeto de resoluo, ela ser
promulgada pelo Presidente do Congresso Nacional, se dispor sobre matria de interesse
compartilhado das duas Casas, como o Regimento Comum, sua reforma, etc. Na hiptese de
versar sobre matria apenas de interesse da Cmara dos Deputados, ela inicia e termina ali,
sendo promulgada pelo Presidente da Cmara; se for matria de interesse do Senado, comea
e termina ali, sendo promulgada pelo Presidente do Senado. (SILVA, Jos Afonso da. Coment-
rio contextual Constituio. 5. ed. So Paulo: Malheiros, 2008, p. 438).
37
LINDB, Art. 4:Quando a lei for omissa, o juiz decidir o caso de acordo com a analogia, os
costumes e os princpios gerais de direito.
38
Nomeadamente uma eventual resistncia ou desistncia da me portadora de entregar a
criana aos pais de inteno, ou ainda de os pais de inteno desistirem em virtude da
deteco de alguma patologia grave no beb, mas que no autorize a interrupo da gravidez,
como sndrome de Down, que j foi motivo de abandono de bebs oriundos de PMA e noti-
ciado amplamente na mdia internacional de assumir aquele filho como seu.
39
O fato de a Resoluo do Conselho Federal de Medicina indicar que proibida a materni-
dade de substituio no quer dizer muita coisa aos usurios das tcnicas. que apenas os
mdicos esto submetidos s Resolues do CFM que, em caso de descumprimento, podero
acarretar em sanes estipuladas pela prpria autarquia. O Cdigo de tica Mdica (Resolu-
o n. 1.931/2009 do CFM) estabelece no art. 15 que vedado ao mdico descumprir legisla-
o especfica nos casos de transplantes de rgos ou de tecidos, esterilizao, fecundao
artificial, abortamento, manipulao ou terapia gentica. S que a Resoluo n. 2.121/2015 do
CFM no constitui legislao especfica. So diretrizes deontolgicas que vinculam somente
os mdicos e os servios de sade.
40
Em Portugal, Fernando Arajo se manifesta favoravelmente aos contratos de maternidade
lutamente clara e pode descambar para qualquer lado, a depender da
viso do magistrado, posto que o Direito Civil brasileiro no admite e
nem tampouco probe os contratos de maternidade de substituio seja
a ttulo gratuito ou oneroso, ao contrrio de outros ordenamentos.41
O 4 do art. 199 da Constituio Federal afirma que a lei pres-
crever sobre as condies e os requisitos que facilitem a remoo de
rgos, tecidos e substncias humanas para fins de transplante, pes-
quisa e tratamento, assim como a coleta, processamento e transfuso
de sangue e seus derivados, sendo proibido todo tipo de comerciali-
zao. A Carta Magna, portanto, remete legislao especfica, sendo
esse dispositivo um daqueles de eficcia limitada e aplicabilidade
dependente de legislao infraconstitucional.42
No sistema jurdico brasileiro, a Lei n. 9.434/97 (Lei de Trans-
plantes) dispe sobre a remoo de rgos, tecidos e partes do corpo
humano para fins de transplante e tratamento e d outras providn-
cias. Todavia, logo em seu art. 1, estabelece que a disposio gratuita
de substituio a ttulo oneroso. Para o professor da Universidade de Lisboa, o aluguel do

tero no configuraria uma explorao unilateral ou danosa, e traria benefcios para ambas
as partes. Argumenta ainda que a noo de que tal aluguel s seria permitido pela portadora
em virtude de um estado de necessidade uma ideia que poderia se alargar para todas as
atividades que os indivduos somente aceitam por no serem mais abastados do que so. Por
fim, indica que a considerao de ser menos condenvel a venda de semn do que o aluguel do
tero introduz um elemento de discriminao sexista. (ARAJO, Fernando. A procriao
assistida e o problema da santidade da vida. Coimbra: Almedina, 1999, p. 29-31). Entre ns,
tambm se manifesta pela validade dos contratos de maternidade de substituio onerosos
ABREU, Laura Dutra de. A renncia da maternidade: reflexo jurdica sobre a maternidade de
substituio principais aspectos nos direitos portugus e brasileiro. Revista Brasileira de
Direito das Famlias e Sucesses, Porto Alegre: Magister, v. 11, p. 102, ago./set. 2009. Rodrigo
da Cunha Pereira tambm se manifesta de forma contundente em favor da maternidade de
substituio onerosa. Opina no sentido de que a regulao da modalidade onerosa evitaria
extorses, clandestinidade e at mesmo a denominada indstria da barriga de aluguel. Tra-
zendo ideias parecidas com as esboadas por Fernando Arajo em Portugal, afirma ser o
corpo um capital fsico, simblico e econmico, alm de que a possibilidade do pagamento
se daria na mesma lgica que permite remunerar o empregado no fim do ms pela sua fora
de trabalho, despendida muitas vezes em condies insalubres ou perigosas e na maior parte
das vezes considerado normal. Termina por advertir que no se estaria alugando ou com-
prando um beb, mas somente um espao (tero) para que ele possa ser gerado. (PEREIRA,
Rodrigo da Cunha. Dicionrio de direito de famlia e sucesses: ilustrado. So Paulo: Saraiva,
2015, p. 711-712).
41
Por exemplo, a Lei de Procriao Medicamente Assistida de Portugal estabelece que so
nulos os negcios jurdicos, gratuitos ou onerosos, de maternidade de substituio (art. 8, n.
1) e que a mulher que suportar uma gravidez de substituio de outrem havida, para todos
os efeitos legais, como a me da criana que vier a nascer (art. 8, n. 3), numa lgica inafastvel
de que me ser aquela que parir a criana. Alm disso, a legislao portuguesa tipifica crimi-
nalmente a prtica da maternidade de substituio comercial. Assim, quem realizar negcios
de maternidade de substituio a ttulo oneroso punido com pena de priso at 2 anos ou
pena de multa at 240 dias (art. 39, n. 1) e quem promover, por qualquer meio, designada-
mente atravs de convite direto ou por interposta pessoa, ou de anncio pblico, a materni-
dade de substituio a ttulo oneroso est sujeito mesma pena (art. 39, n. 2).
42
Cfr. SILVA, Jos Afonso da. Comentrio contextual Constituio. 5. ed. So Paulo: Malhei-
ros, 2008, p. 772.
de tecidos, rgos e partes do corpo humano, em vida ou post mortem,
para fins de transplante e tratamento, permitida. Entretanto, o par-
grafo nico assevera que para os efeitos dessa lei, no esto compre-
endidos o sangue, o esperma e o vulo.
A Lei n. 11.105/2005 (Lei de Biossegurana) estabelece seu art. 5,
3 ser vedada comercializao do material biolgico a que se refere
este artigo e sua prtica implica o crime tipificado no art. 15 da Lei
n. 9.434/97, que expressamente pune a compra ou venda de tecidos,
rgos ou partes do corpo humano com pena de recluso (de trs a
oito anos) e multa (200 a 360 dias-multa). Contudo, a prpria Lei de
Transplantes expressamente adverte que suas normas no se aplicam
ao esperma e ao vulo.
Sendo o embrio/feto um resultado da juno entre esperma
e vulo, estaria ele abrangido ou afastado do mbito de aplicao da
punio constante na legislao? Essa tormentosa pergunta evidencia
a necessidade urgente e inafastvel da criao de uma lei especfica
em matria de procriao medicamente assistida que enfrente essas
questes. A doutrina43 unnime sobre a necessidade urgente de dis-
ciplina legislativa da procriao medicamente assistida, com o intuito
de regulamentar a matria e evitar que se faam exegeses equivocadas
de outras legislaes.
A depender da interpretao que se d a esses dispositivos legais
existentes, o contrato de maternidade de substituio oneroso poder
ser considerado vlido ou no. Na hiptese de se considerar que o
embrio/feto estaria englobado nas disposies das legislaes supra-
mencionadas, o contrato deve ser considerado nulo, nos termos dos
incisos, II e VII do art. 166 do Cdigo Civil.44 Na ocorrncia de se con-
siderar que o feto/embrio no estaria abarcado na vedao da Lei n.
9.434/97, o contrato pode ser considerado vlido, ainda que moral-
mente reprovvel na viso de alguns, nos termos do art. 5, II da CF.45 E
43
Neste sentido, ver NAMBA, Edison Tetsuzo. Direito identidade gentica ou direito ao reco-
nhecimento das origens e a reproduo assistida heterloga. In: CAHALI, Yussef Said;
CAHALI, Francisco Jos (Orgs.). Doutrinas essenciais Famlia e sucesses: direito de famlia.
So Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 1.405.
44
H quem levante a invalidade do negcio com base no art. 13 do Cdigo Civil, mas tal ideia
no parece se sustentar, j que a disposio do tero no acarretaria em qualquer diminuio
permanente no corpo da mulher ou qualquer dano sua integridade fsica. A questo dos
bons costumes tambm deve ser afastada, j que se trata de um conceito jurdico indetermi-
nado, que deve estar aberto s demandas sociais contemporneas. Assim, salvo melhor juzo,
acompanham-se as ideias de Laura Abreu, no sentido da validade do negcio jurdico oneroso
de maternidade de substituio. Cfr.ABREU, Laura Dutra de. A renncia da maternidade:
reflexo jurdica sobre a maternidade de substituio principais aspectos nos direitos por-
tugus e brasileiro. Revista Brasileira de Direito das Famlias e Sucesses, Porto Alegre:
Magister, v. 11, p. 103-104, ago./set. 2009.
45
Em que est estabelecido que ningum ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa seno em virtude de lei.
ainda que se considere que est vedada a comercializao de material
biolgico incluindo-se fetos e embries pode-se alegar que a legis-
lao expressamente determina que essa proibio se d no mbito
dos transplantes e tratamentos. Excetuando-se na hiptese de estar
em causa uma situao de beb-medicamento, o embrio em questo
estaria fora do mbito de aplicao (e punio) da Lei de Transplantes,
pois no surgiria para possibilitar qualquer tipo de tratamento ou ser
doador de material biolgico para transplante.
Em se tratando de um arrependimento ou ruptura contratual
ainda durante a gravidez, a situao pode se evidenciar ainda mais
complexa. Sob uma rigorosa definio jurdica de pessoa, o embrio ou
pr-embrio46 no poder ser considerado uma pessoa. Todavia, eles
tampouco se encaixam numa definio de propriedade, porque deles
no se pode dispor em toda e qualquer situao, e nenhuma das par-
tes detm direitos exclusivos sobre eles. Esta concluso mostra que
quando se trata de embries, os direitos legais no so exatos. Assim,
pode-se dizer que os embries encontram-se algures entre as defini-
es de pessoa e propriedade.47
Importa referir que, ainda que o contrato de maternidade de
substituio a ttulo gratuito ou oneroso48 seja considerado vlido,
o mago do seu objeto versa sobre estabelecimento da filiao49 (de um
lado, a me portadora promete que entregar a criana que carrega em
seu ventre e abrir mo do poder familiar/responsabilidades parentais
relativos quele nascituro; do outro, as partes prometem pagar o preo
acordado na hiptese de contrato oneroso e registrar a criana em
nome de ambos os pais) devendo a sua anlise a exemplo de toda e
qualquer questo relativa a filhos menores ter como elemento norte-
ador o melhor interesse da criana nascida50 ou por nascer, que dever
46
O pr-embrio o embrio constitudo in vitro formado pelo grupo de clulas resultantes
da diviso progressiva do ovcito de que fecundado, at 14 dias mais tarde. Note-se que toda
a discusso presente neste estudo gira em torno dos embries in vitro que, de acordo com o
disposto na Resoluo do CFM tero um tempo mximo de desenvolvimento de 14 dias. Assim,
mais apropriado seria falar em pr-embrio, mas utilizou-se deliberadamente a terminologia
embrio por ser a que consta no documento do Conselho Federal de Medicina.
47
No mesmo sentido, ERICKSON, Thereza M.; ERICKSON, Megan T. What happens to
embryos when a marriage dissolves? Embryo disposition and divorce. William Mitchell
Law Review, v. 35, Issue 2, p. 481, 2009.
48
Essa a nossa posio, no sentido de enxergar validade tanto no negcio a ttulo gratuito
como a ttulo oneroso.
49
Passaremos ao largo do debate de outras questes, como um eventual inadimplemento
contratual por falta de pagamento do preo acordado ou quaisquer outras questes patrimo-
niais, focando nos elementos existenciais do negcio.
50
O melhor interesse da criana (ainda que por nascer) dever ter primazia sobre todos os
outros interesses em jogo.
ser ponderado ao lado da boa-f contratual e a proibio do venire
contra factum proprium.51
5CONTRATOS DE GERAO DE FILHOS
J h algum tempo ventila-se a possibilidade de existir um

arranjo ou um contrato entre pessoas para a gerao de filhos, numa
materializao de dissociao absoluta de sexualidade e parentalidade,
alicerada em uma lgica de que a maternidade e a paternidade so
funes que podem estar completamente apartadas da conjugalidade.
Nesse cenrio, o trip casamento sexo reproduo restou com-
pletamente alterado e o exerccio da parentalidade deixa de ser uma
consequncia da relao amorosa dos pais da criana. Como adverte
Rodrigo da Cunha Pereira, existem pessoas que somente desejam esta-
belecer uma vida em comum com outra, mas no querem ter filhos.
E h outras que desejam ter a sua prole sem estabelecer um vnculo
conjugal.52
Com a revoluo trazida pelas tcnicas de reproduo medica-
mente assistidas, duas pessoas podem ter um filho sem sequer toca-
rem um no outro, se assim for o desejo de ambos, em virtude do
cenrio amplamente permissivo da procriao medicamente assistida
no Brasil. Encontram-se, vo a uma clnica ou centro de reproduo
humana, escolhem uma das tcnicas e podem exercer a parentalidade
sem grandes bices, seja em termos de acesso s tcnicas, seja em ter-
mos de estabelecimento da filiao no momento posterior.
A complexidade desses acordos surgem quando esse projeto
parental edificado por mais de duas pessoas. Por exemplo, um casal
de gays e outro de lsbicas, em que uma das mulheres teria um filho
de um dos homens.53 Note-se que, no obstante inexistir dvidas em
relao maternidade e paternidade jurdica dessa criana, o pro-
jeto parental foi pensado por 4 pessoas. Provavelmente, a criana ir
viver habitualmente com um dos casais e passar temporadas com
o outro casal.54 Ou ambos os casais podero ter a guarda comparti-
lhada da criana. As questes que emergem: no caso de a me jurdica
51
Adverte-se na doutrina que se deve emprestar juridicidade a esse tipo de contratos de
forma a inibir posturas contraditrias e fraudes, j que inmeras clnicas de reproduo
assistida simulam contratos gratuitos que, na realidade, so onerosos. Cfr. OTERO, Marcelo
Truzzi. Contratao da barriga de aluguel gratuita e onerosa legalidade, efeitos e o melhor
interesse da criana. Revista Brasileira de Direito das Famlias e Sucesses, Porto Alegre:
Magister, v. 20, p. 33-34, fev./mar. 2011.
52
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionrio de direito de famlia e sucesses: ilustrado. So
53
Por meio de relaes sexuais tradicionais, autoinseminao ou recurso s tcnicas de PMA.
54
Como frias, feriados etc.
e gentica da criana vir a falecer, a criana automaticamente passa a
viver com o pai biolgico (que o progenitor sobrevivente), sem levar-
-se em considerao que sempre viveu com a me e sua companheira
ou esposa?55 Se o pai gentico do infante morrer, resta o seu compa-
nheiro ou marido sem direito ou dever algum para com a criana? Ser
obstado das visitas e convivncia frequente de uma hora para a outra?
Para que todas as partes tenham os seus direitos parentais reco-
nhecidos, ainda preciso se socorrer da justia para o reconhecimento
de uma multiparentalidade jurdica,56 que representa uma quebra de
paradigmas no direito da filiao, alicerado numa lgica binria. Um
contrato dessa natureza, ainda que no seja executvel em tribunal, em
um eventual processo para estabelecimento de filiao ou disputa de
guarda da criana, poder servir como uma robusta prova da inten-
o das pessoas envolvidas e ajudar a clarificar o melhor interesse da
criana no caso concreto.
6O PROBLEMA DOS EMBRIES EXCEDENTRIOS
Ao redor do mundo existem, atualmente, milhes de embries

congelados.57 Enquanto alguns destes esto criopreservados porque
55
Tomando-se como pressuposto que a criana residia habitualmente com o casal de
mulheres.
56
Como em recente caso no Rio Grande do Sul:Apelao cvel. Declaratria de multiparenta-
lidade. Registro civil. Dupla maternidade e paternidade. Impossibilidade jurdica do pedido.
Inocorrncia. Julgamento desde logo do mrito. Aplicao artigo 515, 3 do CPC. A ausncia
de lei para regncia de novos. E cada vez mais ocorrentes - fatos sociais decorrentes das ins-
tituies familiares, no indicador necessrio de impossibilidade jurdica do pedido. que
quando a lei for omissa, o juiz decidir o caso de acordo com a analogia, os costumes e os
princpios gerais de direito (artigo 4 da Lei de Introduo ao Cdigo Civil). Caso em que se
desconstitui a sentena que indeferiu a petio inicial por impossibilidade jurdica do pedido
e desde logo se enfrenta o mrito, fulcro no artigo 515, 3 do CPC. Dito isso, a aplicao dos
princpios da legalidade, tipicidade e especialidade, que norteiam os Registros Pblicos,
com legislao originria pr-constitucional, deve ser relativizada, naquilo que no se com-
patibiliza com os princpios constitucionais vigentes, notadamente a promoo do bem de
todos, sem preconceitos de sexo ou qualquer outra forma de discriminao (artigo 3, IV da
CF/88), bem como a proibio de designaes discriminatrias relativas filiao (artigo 227,
6, CF), objetivos e princpios fundamentais decorrentes do princpio fundamental da dig-
nidade da pessoa humana. Da mesma forma, h que se julgar a pretenso da parte, a partir da
interpretao sistemtica conjunta com demais princpios infraconstitucionais, tal como a
doutrina da proteo integral o do princpio do melhor interesse do menor, informadores do
Estatuto da Criana e do Adolescente (Lei 8.069/90), bem como, e especialmente, em ateno
do fenmeno da afetividade, como formador de relaes familiares e objeto de proteo Esta-
tal, no sendo o carter biolgico o critrio exclusivo na formao de vnculo familiar. Caso
em que no plano ftico, flagrante o nimo de paternidade e maternidade, em conjunto, entre
o casal formado pelas mes e do pai, em relao menor, sendo de rigor o reconhecimento
judicial da multiparentalidade, com a publicidade decorrente do registro pblico de nasci-
mento. Deram provimento. (TJRS, AC 70062692876, 8 C. Cv., Rel. Des. Jos Pedro de Oliveira
Eckert, j. 12.02.2015).
57
RAPOSO, Vera Lcia. O dilema do rei Salomo: conflitos de vontade quando ao destino dos
os casais ainda esto envolvidos em tratamentos de fertilidade, muitos
nunca sero implantados nestes casais e so denominados como exce-
dentrios ou supranumerrios.58 H um debate mundial sobre o que
deve acontecer com esses embries.59
De pronto suscita-se uma dvida: o eventual destino dado a
esses embries, para alm da sua utilizao em pesquisas cientficas
ou a prpria destruio, seria uma doao ou uma espcie sui generis
de adoo? A questo da adoo vs. doao nada mais do que o resul-
tado da definio de estarmos a falar de uma res, de um ser humano, de
uma vida humana em potencial ou de uma situao intermdia inomi-
nada. certo que as tcnicas da reproduo assistida devero evoluir
de modo a se garantir implantaes bem-sucedidas, sem a necessidade
de fecundao de vrios vulos, ou at mesmo se evoluir para o conge-
lamento e preservao dos gametas. Mas enquanto isso no acontece,
qual o destino dos embries supranumerrios? A utilizao por outro
casal? O descarte? A criopreservao? Por quanto tempo?60 Alm da
determinao da natureza jurdica do embrio, outra questo, quase
concomitantemente emerge: quem possui a legitimidade decisria
sobre o destino desses embries?61
embries excedentrios. Lex Medicinae Revista Portuguesa de Direito da Sade. Coimbra:

Centro de Direito Biomdico/ Coimbra Editora, ano 5, n. 9, p. 58, 2008.
58
Na doutrina anglo-saxnica, encontra-se, entre outras, as terminologias: spare, surplus,
excedentary e excess embryos.
59
J tratamos detalhadamente da questo no artigo CHAVES, Marianna. Algumas notas sobre
os embries excedentrios. In: COLARES, Virginia (Org.). Direito, linguagem e sociedade.
Recife: Appodi, p. 124 e ss, 2011.
60
Problemas tambm levantados por GUIMARES, Ana Paula. Alguns problemas jurdico-
-criminais da procriao medicamente assistida. Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 109.
61
Antes de qualquer coisa, importante saber o porqu da existncia de embries excedent-
rios. A coleta de vulos um procedimento em que se faz necessria uma interveno cirr-
gica, com utilizao de anestesia, o que se traduz em um risco para a mulher em causa e, por
bvio, no pode ser realizada com frequncia. Trata-se de uma situao que, alm disso,
existe algum sofrimento fsico e, por vezes, psquico. Por tal motivo, existem as denominadas
sobras embrionrias, que se devem vontade de se aproveitar, ao mximo, a hiperinduo
da ovulao. Durante muito tempo no existiu uma forma segura de conservao e congela-
mento dos vulos em baixa temperatura, que deveriam ser colhidos e fecundados de pronto,
em virtude da impossibilidade da sua conservao. E mais: devido possibilidade de falta de
xito no desenvolvimento dos vrios embries implantados, se fazia necessrio o preparo
simultneo de vrios embries, que seriam utilizados cada vez que as tentativas de implanta-
o e desenvolvimento fossem infrutferas. Esse era o panorama mdico-cientfico at muito
pouco tempo atrs e a gnese dos embries excedentrios, rfos biolgicos da cincia
atual. Nas palavras de Vera Lcia Raposo, para quem a fertilizao de um nmero excessivo
de ovcitos a responsvel pela criao de mais embries que podero ser transportados
para o tero materno em condies que permitam levar a bom termo a gravidez sem prejudi-
car a vida da me. (RAPOSO, Vera Lcia. RAPOSO, Vera Lcia.O dilema do rei Salomo: con-
flitos de vontade quando ao destino dos embries excedentrios. Lex Medicinae Revista
Portuguesa de Direito da Sade. Coimbra: Centro de Direito Biomdico/ Coimbra Editora,
ano 5, n. 9, p. 58, 2008 p. 58).
Uma pergunta bsica logo irrompe: quando que um agregado
de molculas deixa de ser uma simples mistura qumica e se trans-
forma em um organismo vivo? Existem duas grandes correntes a esse
respeito, que passaremos ao largo.62 O que est efetivamente em causa
determinar se o embrio uma coisa (res) 63 , uma quase-proprie-
dade64, um ser humano,65 um ser humano em potncia,66 ou um ter-
tium genus,67 uma categoria de direitos e relaes, ainda inominada.
Seguindo a ideia de Vera Lcia Raposo, esta ltima posio parece-nos
ser a mais razovel de se adotar.68 Assim, preciso ver o embrio exce-
dente numa espcie de teoria hbrida, em que o mesmo no se encaixa
na figura de pessoa, mas destinatrio de direitos visando coibir pr-
ticas excessivas e condutas antiticas do meio cientfico.69/70 Inde-
pendente da viso que se tenha sobre a natureza jurdica do embrio
uma coisa se deve ter por certa: existe um consenso quase geral de que
62
A concepcionista e a natalista. Existe ainda uma corrente com um nmero menor de adep-
tos, denominada de teoria da personalidade condicional.
63
Neste sentido se manifesta CAHN, Naomi R. Test tube families: why the fertility market
needs regulation. New York/London: New York University, 2009, p. 175, quando assevera que
no obstante os embries serem destinatrios de respeito especial, ainda constituem pro-
priedade, como o esperma e os vulos.
64
Propriedade para determinados propsitos, mas no todos, de acordo com GARRISON,
Marsha. Law Making for Baby Making: An Interpretive Approach to the Determination of
Legal Parentage. Harvard Law Review, v. 113, n. 4, p. 906, 2000.
65
Nessa corrente se filia Enrique Varsi Rospigliosi, para quem o embrio, ainda que ex utero,
uma vida humana que, independentemente da forma como tenha sido criada e da sua espera
de transferncia para a parede uterina, merece a proteo jurdica como sujeito de direito
que . Neste sentido, consultar ROSPIGLIOSI, Enrique Varsi. Derecho gentico y procretico.
4. ed. atual. La Paz: ABIODGE Asociacin Boliviana de Biotica & Derecho Gentico y Biotec-
nologa, 2005, p. 125.
66
Considera o embrio um ser humano em potencial e, por tal motivo se ope aos
experimentos que conduzam sua destruio MARSHALL, John. The Case Against Expe-
rimentation. In: DYSON, A.; HARRIS, J. (Ed.). Experiments on Embryos. London: Routledge,
1990, p. 55.
67
Expresso latina que designa a metade do caminho entre duas coisas. No caso em tela, os
embries estariam algures entre as coisas e as pessoas.
68
RAPOSO, Vera Lcia.O dilema do rei Salomo: conflitos de vontade quando ao destino dos
69
SOARES, Vladimir Salles. O embrio excedentrio e as terapias celulares uma anlise da
lei de biossegurana sob o prisma constitucional. In: NICOLAU JNIOR, Mauro. Novos direi-
tos. Curitiba: Juru, 2007,, p. 658.
70
No obstante no ter sido a ideia adotada no clebre julgamento Davis v. Davis nos EUA, tal
corrente j era ventilada pela doutrina e foi citada na sentena. A third view -- one that is
most widely held -- takes an intermediate position between the other two. It holds that
the pre-embryo deserves respect greater than that accorded to human tissue but not the
respect accorded to actual persons. The pre-embryo is due greater respect than other
human tissue because of its potential to become a person and because of its symbolic
meaning for many people. Yet, it should not be treated as a person, because it has not yet
developed the features of personhood, is not yet established as developmentally indivi-
dual, and may never realize its biologic potential. Davis v. Davis, 842 S.W. 2d 588 (Tennes-
see, 1992), [57].
eles merecem um especial respeito, porque completaram os primei-
ros passos aps a fertilizao para se tornar um beb.71
Num primeiro momento, deve-se questionar se devemos falar
em guarda dos embries em uma ntida remisso ao poder fami-
liar/responsabilidades parentais partindo de uma ideia de que os
embries constituem vida humana, ainda que de forma distinta do ser
humano nascido, ou se devemos falar em propriedade ou posse, numa
clara qualificao dos embries como simples res.72
Seja qual for a qualificao que seja dada ao embrio de coisa
ou de ser humano uma certeza se deve ter. Antes do momento da
concretizao da tcnica de fertilizao in vitro, ou, no mximo, at
o momento da criopreservao do embrio, o seu destino j deve
ou deveria estar previsto em um contrato ou no termo de consenti-
mento informado utilizado pela clnica, pois em caso contrrio, muitos
problemas podero surgir, nomeadamente em caso de separao/
divrcio do casal ou de morte de um deles.
De acordo com a Resoluo n. 2.121/2015 do CFM, no momento
da criopreservao, os pacientes devem expressar sua vontade, por
escrito, quanto ao destino a ser dado aos embries criopreservados em
caso de divrcio, doenas graves ou falecimento, de um deles ou de
ambos, e quando desejam do-los. Os embries criopreservados com
mais de cinco anos podero ser descartados se esta for a vontade dos
pacientes.73 A utilizao dos embries em pesquisas de clulas-tronco
no obrigatria, conforme previsto na Lei de Biossegurana. A solu-
o, na teoria, parece ter sido oferecida: o que estiver no contrato ou
no termo de consentimento informado, vale para decidir o destino dos
embries excedentes. E sero os autores do projeto parental que iro
decidir a questo.
Contudo, pode-se questionar: e na falta de um documento
escrito? O que poder acontecer? E se o consentimento no foi sufi-
cientemente esclarecido? E no caso de eventual desacordo entre os
71
H duas dcadas assim j se manifestava John Robertson, citado por GARRISON, Marsha.
Law Making for Baby Making: An Interpretive Approach to the Determination of Legal
Parentage. Harvard Law Review, v. 113, n. 4, p. 910, 2000.
72
Tal dvida tambm suscitada por RAPOSO, Vera Lcia. Direitos reprodutivos. Lex Medici-
nae Revista Portuguesa de Direito da Sade. Coimbra: Centro de Direito Biomdico/ Coim-
bra Editora, ano 2, n. 3, p. 129, 2005.
73
Sobre a experimentao ressalta Vera Raposo que se a alternativa , sem mais, destruir os
embries, por que no antes tirar deles uma utilidade, que pode vir a beneficiar em muito a
espcie humana? No se trata de instrumentalizar os embries, mas sim de verdadeiramente
os respeitar como seres vivos que so, permitindo que antes da sua eliminao contribuam
para o bem estar da humanidade da qual j fazem parte ou, pelo menos, viriam potencialmente
a fazer. (RAPOSO, Vera Lcia. Direitos reprodutivos. Lex Medicinae Revista Portuguesa de
Direito da Sade. Coimbra: Centro de Direito Biomdico/ Coimbra Editora, ano 2, n. 3, p. 128-
129, 2005).
beneficirios? Mais uma vez retornamos problemtica de determinar
se os embries devem ser considerados seres humanos e os conflitos
resolvidos como se soluciona a atribuio da guarda de um infante; se
devem ser considerados propriedade e o eventual desacordo ser sol-
vido como se o embrio constitusse uma mera coisa; ou, numa ter-
ceira possibilidade, se o caso deveria ser analisado como um conflito
de direitos, especificamente um conflito de direitos reprodutivos (por
exemplo, o direito a ter filhos de uma das partes com o direito a no
ter filhos da outra que no deseje mais exercer a parentalidade), como
assevera Vera Lcia Raposo.74/75 A jurista ainda afirma que os benefici-
rios das tcnicas de PMA podero invocar um poder decisrio sobre
os embries, alicerado em um dever de cuidado, de onde emergem
obrigaes de proteo, mas tambm direitos.76
Na ocorrncia de os progenitores estarem em concrdia sobre
o destino dos embries e, por bvio, esse destino seja lcito, no pare-
cem existir problemas. Entretanto, se o casal est em dissenso, a reso-
luo da situao deve ser deixada ao Judicirio com fundamento no
que se entenda por melhor interesse do embrio.77 E este desacordo
pode se manifestar de diversas maneiras. Ambos os pais podem que-
rer os embries para procriar. Um deles pode querer implant-los e o
outro se opor a envolver-se em um projeto parental. Por isso, mais uma
vez, imperioso reforar a necessidade de elaborao de um acordo
escrito,78 em que tais situaes de destinao dos embries j este-
74
RAPOSO, Vera Lcia.O dilema do rei Salomo: conflitos de vontade quando ao destino dos
75
A mesma dvida suscitada na doutrina norte-americana quando se afirma que existe ape-
nas um punhado de casos muitas vezes sem efeito vinculante esto disponveis para aju-
daro sistemajudiciriopara determinarsea disposio dosembriesdeve seranalisada
soba tica do direito contratual ou como um direitoconstitucional de terouno
terfilhos,que definidacomo liberdadede procriao. Nesse sentido, consultar ERICK-
SON, Thereza M.; ERICKSON, Megan T. What happens to embryos when a marriage dis-
solves? Embryo disposition and divorce. William Mitchell Law Review, v. 35, Issue 2, p.
475, 2009.
76
Antes de chegar a essa concluso, a jurista traz tona um caso ocorrido no Brasil sobre uma
disputa em relao a um animal, nomeadamente um co que, se encontram num limbo con-
ceitual, algures entre as pessoas e as coisas. Assim, os qualifica como tertium genus e afirma
que os embries encontram-se mais ou menos neste ponto: tal como os animais, so seres
vivos, mas no pessoas, e coloca uma questo: podero os tertium genus, para alguns efeitos
pelo menos, ser tratados como pessoas? A resposta que a doutrina brasileira avanou foi a de
um suposto dever de cuidado para com os animais, fundamento de direitos sobre eles e, con-
comitantemente, de deveres.(RAPOSO, Vera Lcia.O dilema do rei Salomo: conflitos de
vontade quando ao destino dos embries excedentrios. Lex Medicinae Revista Portuguesa
de Direito da Sade. Coimbra: Centro de Direito Biomdico/ Coimbra Editora, ano 5, n. 9, p.
56, 2008).
77
Como refere RAPOSO, Vera Lcia.O dilema do rei Salomo: conflitos de vontade quando ao
destino dos embries excedentrios. Lex Medicinae Revista Portuguesa de Direito da
Sade. Coimbra: Centro de Direito Biomdico/ Coimbra Editora, ano 5, n. 9, p. 61, 2008.
78
Na doutrina norte-americana denominado de disposition agreement.
jam decididas partida, esclarecidos os termos nos quais se operar
a transferncia uterina na ocorrncia de separao ou divrcio.79 A
deciso, como mencionado, dever ser pautada no melhor interesse do
embrio ou do nascituro eventual.80
Em relao s disputas de vontades entre progenitores vivos,
alinhamos pela seguinte soluo:81 1) no caso de desacordo entre os
beneficirios das tcnicas, dever-se- recorrer aos acordos prvios
estabelecidos entre as partes; 2) na falta dos referidos acordos, dever-
-se- ponderar o relevo da vontade de cada parte em utilizar ou no
os embries, havendo uma prevalncia do direito no reproduo,
em especial quando o desejo da outra parte for no sentido de desti-
nar os embries a terceiros; 3) todavia, se a pessoa que deseja utili-
zar os embries no dispuser de forma alternativa de se reproduzir, o
direito deste indivduo em reproduzir-se dever ter prevalncia, tendo
em vista que o projeto parental inicial teve o apoio de ambos os lados,
mesmo daquela parte que agora se ope implantao.
Todavia, a soluo proposta acima se encaixa para os casos
de disputa em vida. E no caso de morte, na ausncia de um acordo
escrito?82 Mais uma vez retornamos mesma questo: estamos a falar
de um bem que seria repassado por herana ou testamento, ou passa-
ria automaticamente a deciso para as mos do suprstite, como
acontece com as responsabilidades parentais?
Uma das formas que a reproduo assistida post mortem83 pode
assumir a de transferncia embrionria. Nessa modalidade, em regra,
existiu um consentimento da parte masculina, que autorizou a utiliza-
o do seu semn para a fertilizao dos vulos do elemento feminino
do casal. Entretanto, tal consentimento foi dado, usualmente, com o
79
No mesmo sentido, RAPOSO, Vera Lcia.O dilema do rei Salomo: conflitos de vontade
quando ao destino dos embries excedentrios. Lex Medicinae Revista Portuguesa de
Direito da Sade. Coimbra: Centro de Direito Biomdico/ Coimbra Editora, ano 5, n. 9, p. 63,
2008.
80
No parece ser inteiramente acertado considerar um embrio in vitro pura e simplesmente
como nascituro. que o embrio implantado no tero de uma mulher j se encontra em pleno
desenvolvimento celular. A outro giro, no parece ajustada a terminologia de concepturo, j
que o embrio ainda que in vitro, j foi concebido. Outra hiptese seria se referir a nascituro
no implantado.
81
Seguimos de perto Vera Lcia Raposo, j em outra oportunidade. Cfr. CHAVES, Marianna.
Algumas notas sobre os embries excedentrios. In: COLARES, Virginia (Org.). Direito, lin-
guagem e sociedade. Recife: Appodi, 2011, p. 143.
82
Que nem sempre garantia de que tudo v correr como acordado.Neste sentido, consultar
o caso A.Z. v. B.Z., 725 N.E.2d 1051 (Mass. 2000).Situao em que a Suprema Corte de Massa-
chusetts recusou a efetivao do acordo.
83
Historicamente, o nascimento de uma criana aps a morte de um pai biolgico s poderia
ter lugar dentro de uma janela de tempo limitada. No entanto, o armazenamento e implanta-
o posterior de embries congelados criou o potencial de a prole poder ser produzida anos
aps a morte de um pai biolgico.
intuito de que o processo fosse completado durante a vida do prprio.
Destarte que resta saber se o mesmo se manteria na eventualidade de
o indivduo ter cincia de que viria a falecer em breve, nascendo o seu
filho apenas em momento posterior. 84
A transferncia post mortem de embries, em nome da segu-
rana jurdica e respeito autonomia das partes (incluindo quem
j faleceu) deveria seguir dois pressupostos: 1) a existncia de uma
declarao expressa do falecido ou falecida a permiti-la; 2) que a tc-
nica fosse levada a cabo dentro de um perodo determinado a contar
do falecimento do de cujus.85 Tal raciocnio segue de perto o estipu-
lado pelo art. 22, n. 3 da Lei de Procriao Medicamente Assistida de
Portugal.86
No Brasil, na falta de um acordo que abarque tambm a ques-
to de uma eventual transferncia embrionria post mortem, h que
se recorrer legislao vigente. O art. 1.597 do Cdigo Civil estabe-
lece no inciso IV que sero presumidos concebidos na constncia do
casamento os filhos havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de
embries excedentrios, decorrentes de concepo artificial hom-
loga, ou seja, com material gentico das duas pessoas do casal. Assim,
na ausncia de pacto entre as partes e existindo embries excedent-
rios frutos de reproduo homloga, no parece haver qualquer limita-
o para disposio dos embries pelo cnjuge suprstite, a qualquer
tempo, desde que a pessoa em causa no estivesse separada ou divor-
ciada do de cujus.87
84
Neste sentido, consultar RAPOSO, Vera Lcia; DANTAS, Eduardo. Aspectos jurdicos da
reproduo assistida post-mortem, em perspectiva comparada Brasil-Portugal. Lex Medici-
nae Revista Portuguesa de Direito da Sade. Coimbra: Centro de Direito Biomdico/ Coim-
bra Editora, ano 7, n. 14, p. 83, 2010.
85
Em sentido parecido, consultar RAPOSO, Vera Lcia; DANTAS, Eduardo. Aspectos jurdicos
da reproduo assistida post-mortem, em perspectiva comparada Brasil-Portugal. Lex Medi-
cinae Revista Portuguesa de Direito da Sade. Coimbra: Centro de Direito Biomdico/
Coimbra Editora, ano 7, n. 14, p. 93, 2010. RAPOSO, Vera Lcia. Direitos reprodutivos. Lex
Medicinae Revista Portuguesa de Direito da Sade. Coimbra: Centro de Direito Biomdico/
Coimbra Editora, ano 2, n. 3, p. 124, 2005.
86
, porm, lcita a transferncia post mortem de embrio para permitir a realizao de um
projecto parental claramente estabelecido por escrito antes do falecimento do pai, decorrido
que seja o prazo considerado ajustado adequada ponderao da deciso.
87
Nesse sentido, o Enunciado n. 106 do CJF: Para que seja presumida a paternidade do marido
falecido, ser obrigatrio que a mulher, ao se submeter a uma das tcnicas de reproduo
assistida com o material gentico do falecido, esteja na condio de viva, sendo obrigatria,
ainda, a autorizao escrita do marido para que se utilize seu material gentico aps sua
morte. Importa ressaltar que, para atendimento ao mandamento constitucional da igualdade
e tambm em virtude do reconhecimento das unies homoafetivas, tal dispositivo tambm
deve ser aplicado extensivamente aos maridos sobrevivos em relao esposa ou ao marido.
Tambm na I Jornada de Direito Civil do CJF props-se uma supresso da ltima parte do art.
1.597 do CC justificando que no aceitvel o nascimento de uma criana j sem pai. Tal
ideia, entretanto, equivaleria a um desprestgio das famlias monoparentais. Se tal juzo fosse
aceito, tambm serviria para colocar em causa o acesso de pessoas solteiras s tcnicas de
E na hiptese de concepo heterloga, ou seja, com material
apenas de um dos membros do casal? O inciso V do mesmo disposi-
tivo do Cdigo Civil determina que sero considerados concebidos na
constncia do matrimnio os filhos havidos por inseminao artifi-
cial heterloga, desde que tenha havido prvia autorizao do marido.
Numa lgica de um Estado regido pela igualdade (entre as pessoas e as
famlias), pela liberdade (na constituio das entidades familiares), pela
dignidade humana e pela no discriminao (a includa por orientao
sexual e gnero) tal disposio no deveria ser interpretada como tam-
bm aplicvel esposa, de casal hetero ou homoafetivo? Desde 2011, os
casamentos civis entre pessoas do mesmo sexo passaram a ser auto-
rizados. Na hiptese de um casal heterossexual ou de gays, o marido
sobrevivente poder se socorrer da maternidade de substituio. Na
hiptese de um casal de lsbicas, no h maridos. A soluo legislativa
se mostra discriminatria (em termos de orientao sexual e gnero, j
que os homens tambm podem desejar exercer a parentalidade aps o
falecimento da esposa) e incompatvel com o estado atual do nosso sis-
tema jurdico. Tal fato evidencia a necessidade de reforma da legisla-
o existente em matria de filiao ou do tratamento dessas questes
em uma eventual legislao especial sobre reproduo assistida.88
Importa mencionar outro ponto bastante nevrlgico dessa ques-
to. O art. 1.597 do CC expressamente estabelece que os filhos (embri-
es excedentrios) originrios da procriao medicamente assistida
homloga sero presumidos concebidos na constncia do casamento.
De acordo com a redao do Cdigo Civil, o reconhecimento da filiao
se dar a qualquer tempo. No h qualquer restrio temporal. Toda-
via, o art. 1.800, 4 determina que, se transcorridos dois anos aps a
abertura da sucesso, no for concebido o herdeiro esperado, os bens
reservados, salvo disposio em contrrio do testador, cabero aos
herdeiros legtimos.
E na hiptese de ausncia de testamento? Nascer o filho, ter
a sua filiao estabelecida, mas no o direito herana? O art. 1.798
do CC estabelece que se legitimam a suceder as pessoas nascidas ou
j concebidas no momento da abertura da sucesso. Na hiptese de
embries excedentrios frutos de procriao homloga, o Diploma
Civil brasileiro estabelece que ser presumido filho matrimonial
ainda que tenha nascido muito tempo aps a morte do seu progenitor
PMA, assim como adoes individuais, o que se mostra incompatvel com os princpios da
liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana.
88
A doutrina norte-americana ressalta que o grande potencial de abuso no mercado da
reproduo humana deve ser controlado por uma legislao abrangente e centralizada. Gran-
des abusos no podem continuar simplesmente porque legisladores lutam com a redefinio
da famlia no sculo XXI e ignoram essa realidade. Cfr. PREISLER, Andrea. Assisted Reproduc-
tive Technology: The Dangers of an Unregulated Market and the Need for Reform. DePaul
Journal of Health Care Law, v. 15, n. 2, p. 236, 2013.
falecido. Nesse sentido, na III Jornada de Direito Civil do CJF foi apro-
vado o enunciado que afirma que a regra do art. 1.798 do CC deve ser
estendida aos embries formados mediante a utilizao das tcnicas
de PMA abarcando, assim, a vocao hereditria da pessoa humana
a nascer, cujos efeitos patrimoniais se submetem s regras previstas
para a petio da herana. Assim, o enunciado terminou por conside-
rar os embries como pessoas j concebidas.
Ainda que tenha havido disposio testamentria do falecido,
nos termos do art. 1.799, I, o art. 1.800, 4, estabelece um prazo de
caducidade para que esse embrio ou ser humano em potncia seja
implantado e possa herdar aps seu nascimento.89 Parece existir, por-
tanto, um claro conflito entre as regras. Das duas solues, preciso
optar por uma: ou se estabelece um prazo no art. 1.597, IV, determi-
nando que, para se operar o estabelecimento da filiao, a implanta-
o (e consequente gravidez) dos embries excedentrios deve ocorrer
dentro de um certo lapso temporal a contar da morte do pai falecido
(dois anos, para se harmonizar com o disposto mais frente) ou se eli-
mina o 4 do art. 1.800 do CC. No faz sentido continuar a existir
dispositivos jurdicos no mesmo diploma (Cdigo Civil) que indicam
que uma filiao (dos embries excedentes de reproduo homloga)
poder ser estabelecida a qualquer tempo, mas que o direito de parti-
cipar na herana caducar em dois anos.
Um eventual estabelecimento de prazo no configuraria discri-
minao na filiao, expressamente vedada pela Constituio Federal.
Nesse caso, est-se a falar de um ser humano em potncia, que ainda
no existe. O direito reprodutivo do cnjuge sobrevivente estaria asse-
gurado durante certo tempo e, se no exercido no perodo previsto,
deveria ceder ante os direitos patrimoniais dos outros herdeiros. Tal
ideia parece ser verossmil, pois assegura o direito procriao de um
lado com o respectivo direito herana do filho que est por vir90
e da segurana jurdica por outro lado. Assim, um eventual prazo para
requerer a herana s pode continuar existindo se tambm houver
prazo para estabelecimento da filiao do embrio em causa, j que
no h como se conceber dentro do ordenamento jurdico brasileiro
que algum possa ser filho a qualquer tempo, mas apenas para alguns
efeitos limitados como o direito ao nome.
89
A ttulo de curiosidade, o Estado da Califrnia e no Estado de Louisiana, nos EUA, o requi-
sito para que os filhos ainda no nascidos possam herdar de seus pais j falecidos so de dois
e trs anos, respectivamente, desde que exista um consentimento autorizando PMA post
mortem. Cfr. BARON, Noah; BAZZELL, Jennifer. Assisted Reproductive Technologies. George-
town Journal of Gender and the Law, v. 15, n. 1, p. 71-72, 2014.
90
Direito constitucionalmente assegurado no art. 5, XXX, da Constituio Federal que deve
ser articulado com o art. 227, 6 da Carta Magna, que veda discriminao entre os filhos,
independentemente da sua origem ou da relao dos seus progenitores.
Portanto, parece razovel a estipulao de um prazo entre 5 e
10 anos para os dispositivos supracitados.91 Um lapso temporal dessa
amplitude asseguraria tempo suficiente para que o (a) cnjuge sobrevi-
vente exercesse o seu direito de escolha em procriar ou no, certifica-
ria que o nascituro eventual seria tido como filho para todos os efeitos
jurdicos, respeitando, portanto, o princpio da igualdade da filiao
consagrado pela Constituio Federal.
7CONSIDERAES FINAIS
Reproduo artificial um desenvolvimento cientfico que invoca

uma infinidade de consideraes ticas e legais, com vrias nuances
sociais, religiosas e polticas. Vrias dcadas aps o nascimento da pri-
meira criana fruto da PMA, poucos lugares do mundo possuem leis
abrangentes e claras sobre o estabelecimento da filiao das crianas
originadas por essas tcnicas. O Brasil, apesar de tratar da matria no
Cdigo Civil, o fez de forma insuficiente, fato que encontra justificativa
na compreenso social de famlia e nas tecnologias existentes poca
de elaborao do projeto do Cdigo, na dcada de 1970.
Como foi evidenciado no decorrer do estudo, as Resolues do
Conselho Federal de Medicina no substituem a lei, nem mesmo pos-
suem um carter supletivo, constituindo meramente orientaes
deontolgicas que vinculam apenas os mdicos e servios de sade.
A noo social e jurdica de famlia avanou, as tcnicas de reprodu-
o assistida progrediram de maneira vertiginosa. preciso uma legis-
lao que emoldure essa realidade. A legislao existente, com todas
as adaptaes possveis, interpretaes extensivas e analogias que se
possa fazer, no oferece resposta a todas as perguntas que se apresen-
tam nessa matria.
Levando-se em considerao que a Resoluo n. 2.121/2015 do CFM fala em criopreservao

91
dos embries por 5 anos. Como adverte a doutrina os embries a partir de cinco ou mais
anos de criopreservao, e alguns antes, so quase todos moribundos, imprprios para a
transferncia intra-uterina (Declarao de Voto do Conselheiro Daniel Serro ao Parecer n.
44/CNECV/04).(RAPOSO, Vera Lcia.O dilema do rei Salomo: conflitos de vontade quando
ao destino dos embries excedentrios. Lex Medicinae Revista Portuguesa de Direito da
Sade. Coimbra: Centro de Direito Biomdico/ Coimbra Editora, ano 5, n. 9, p. 56, 2008).
Todavia, ainda que seja uma ocorrncia rarssima, h notcias de crianas que nasceram a
partir de embries congelados por 8, 13 e quase 20 anos. Como j indicamos em CHAVES,
Marianna. Algumas notas sobre os embries excedentrios. In: COLARES, Virginia (Org.).
Direito, linguagem e sociedade. Recife: Appodi, 2011, p. 151. Assim, tambm se poderia tomar
em considerao o prazo prescricional para petio de herana (aqui, passando ao largo da
divergncia doutrinria sobre a prescritibilidade ou no da ao de petio de herana e
tomando o prazo como existente). No faz sentido que um filho, cuja possvel concepo era
de conhecimento do de cujus possa herdar, com recurso justia em at 02 anos, e aquele
cuja existncia o falecido nem sabia, possa herdar se recorrer ao judicirio at uma dcada
depois.
Muitas crianas nascem todos os anos frutos das tcnicas de
PMA em todo o Brasil. Nos ltimos tempos, as tcnicas foram abertas
aos casais homossexuais femininos e masculinos, com possibilidade
de gestao compartilhada e maternidade de substituio. Contudo,
o direito da filiao no acompanhou esse avano. Por exemplo, o
Cdigo Civil brasileiro determina uma presuno de filiao em rela-
o ao marido da me. Mas ser que a presuno pater is est poder
ser alargada ao marido do pai? O que dizer da presuno mater sem-
per certa est numa lgica de maternidade de substituio e de gestao
por casais de lsbicas que, em regra, a me que ir carregar a criana
em seu ventre e a mulher que doou o vulo so pessoas diferentes?
Diante do estado atual da compreenso da filiao em nosso
ordenamento (como uma funo e no como uma fatalidade biolgica),
melhor seria que as presunes de maternidade e paternidade fossem
direcionadas aos pais de inteno, aos autores do projeto parental,
independentemente da orientao sexual do casal. Assim, pai e me, na
reproduo assistida, deveriam ser aqueles que buscaram os recursos
da Medicina reprodutiva para procriar.
O Direito deve se adaptar s realidades vigentes e estabelecer
que a maternidade no se d pelo fato do parto, mas, sim, pelo fato de
se desejar ser me. Assim, na hiptese de reproduo assistida entre
lsbicas, me ser aquela que der luz, assim como a mulher que for
sua esposa ou companheira, independentemente de quem houver
doado o material gentico. Seguindo o mesmo raciocnio, na hip-
tese de procriao medicamente assistida por gays, pai ser aquele que
doou o material gentico, assim como o homem que for seu marido ou
companheiro, sendo afastada a maternidade da me portadora, se no
for um caso de multiparentalidade ab initio revelada por um contrato
de gerao de filhos. Na hiptese de casais heterossexuais, a presun-
o de paternidade em relao ao marido da me poderia continuar
existindo, mas deveria tambm ser alargada ao companheiro, desde
que comprovada a unio estvel por escritura ou outro documento
com f pblica.
Uma eventual ingerncia ou interveno estatal em matria de
reproduo humana assistida se faz mais do que desejvel: neces-
sria. De preferncia, que se crie um diploma ou estatuto prprio, em
que sejam satisfatoriamente e sistematicamente regulados todos os
aspectos clnicos (nada obsta uma remisso Resoluo do CFM que
trata da matria ou que se utilize o texto como base da lei a ser criada),
administrativos, civis e penais da utilizao das tcnicas de procriao
medicamente assistida. Como mencionado, os legisladores tm sido
sistematicamente indolentes nessa seara e, certamente, essa no foi
uma boa estratgia. Essa demora deixou um vazio legal em uma rea
em franca expanso, com prticas que floresceram e desaguaram em
um mercado no regulamentado onde terminam por existir fraudes e
abusos ignorados. A Resoluo do Conselho Federal de Medicina acaba
oferecendo, to somente, uma falsa sensao de segurana jurdica.
Na realidade, no existem regras e restries, a no ser as de
carter deontolgico criadas pelo prprio CFM, que no vinculam
qualquer pessoa a no ser os mdicos e os servios de sade. O Brasil
terminou por tornar exequvel um sistema mdico de enfrentamento
da infertilidade e promoo da parentalidade, mas olvidou-se de legi-
timar legislativamente a prtica, fato reconhecido inclusive pelo pr-
prio CFM. inconcebvel que tal matria de ordem pblica seja
deixada a cargo de corpos autnomos e sem competncia legislativa,
em uma espcie de autoregulao extrajurdica.
O Congresso Nacional deve criar uma poltica nacional que obri-
gue a todos mdicos, pacientes, juristas a pensarem criticamente
sobre as implicaes sociais, familiares, mdicas e jurdicas das tc-
nicas de reproduo assistida, que j esto profundamente arraigadas
entre ns. S ento, depois que uma estrutura regulatria com fora
executiva for adotada, as famlias brasileiras que utilizam as tcni-
cas de PMA podero estar confiantes sobre todos os efeitos jurdicos
resultantes do recurso s tcnicas.
No mbito de situaes to labirnticas e complexas, com refle-
xos manifestos nas mais diversas esferas da vida das partes a inclu-
dos os pais, uma eventual me hospedeira, o embrio ou o nascituro,
e o mdico necessrio que a lei oferte caminhos seguros e ine-
quvocos para todos. Dito de outra forma, imprescindvel um ajuste
legislativo dos direitos, obrigaes e protees dos vrios intervenien-
tes no processo de reproduo assistida de forma a salvaguardar um
dos projetos mais sublimes da vida das pessoas. Por fim, deve se ter
por certo que o sistema de tutela da PMA deve ser baseado em uma
ideia de pluralismo procriativo e familiar, em atendimento aos manda-
mentos constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade,
da liberdade, da pluralidade familiar e da vedao do retrocesso social.
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INDENIZAO POR INADIMPLEMENTO ALIMENTAR
Dimas Messias de Carvalho
Mestre em Direito Constitucional pela FDSM. Promotor de Jus-

tia aposentado/MG. Professor de Graduao na UNIFENAS e UNILA-
VRAS. Professor convidado em cursos de ps-graduao em Goinia/
GO (IPOG), Florianpolis/SC (CESUSC), Belo Horizonte/MG (Univ.
Itana, Faculdade Arnaldo e FUMEC), Pouso Alegre/MG (FDSM), Porto
Alegre/RS (FADERGS) e Curitiba/PR (ABDConst). Advogado especia-
lizado em Direito de Famlia e Sucesses. Membro e vice-presidente
do IBDFAM/MG. Membro e vice-presidente da Academia Lavrense de
Letras (ALL). Autor de obras jurdicas.
Sumrio: 1. Introduo. 2. Responsabilidade Civil. 3.

Indenizao no Direito de Famlia. 4. Indenizao por
inadimplemento alimentar. 4.1. Dever jurdico de pres-
tar alimentos e obrigao alimentar. 4.2. Ilcito penal por
inadimplemento alimentar. 4.3. Dever de indenizar por
inadimplemento alimentar entre pais e filhos. 4.4. Dever
de indenizar por inadimplemento alimentar entre cnju-
ges e companheiros. 5. Efeitos da indenizao por inadim-
plemento alimentar. 6. Referncias.
1INTRODUO
A reparao civil nas relaes familiares, notadamente em razo

de dano moral, tema que no desperta muita simpatia em muitos
magistrados e mesmo entre familiaristas, como lembra Rolf Madaleno,
razo pela qual boa parte das decises judiciais, notadamente no pri-
meiro grau, tem afastado a indenizao pelo descumprimento de deve-
res nas relaes de famlia.1
Ressalta Maria Celina Bodin de Moraes2 que a famlia atual apre-
senta como elemento aglutinador mais a afetividade do que os vnculos
biolgicos, portanto, as relaes familiares e a responsabilidade civil,
1
MADALENO, Rolf. Responsabilidade civil na conjugalidade e alimentos compensatrios.
Revista Brasileira de Direito de Famlia. Porto Alegre: Magister; Belo Horizonte: IBDFAM, v. 13,
dez./jan. 2010,. p. 11.
2
MORAES, Maria Celina Bodin de. A responsabilidade e a reparao civil no direito de famlia.
In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Tratado de Direito das Famlias. Belo Horizonte:
IBDFAM, 2015, p. 805-807.
a princpio, so expresses que se excluiriam. Tanto que, a partir de
meados do sculo passado, era comum ao de indenizao por dano
moral somente em relao perda de um membro da famlia, ajuizada
em face de terceiros. O dever de indenizar nas relaes familiares
diverso, pois tanto a vtima quanto o ofensor fazem parte da mesma
famlia, tratando-se de tema novo em que a responsabilidade civil
inclui-se nas relaes afetivas no meio familiar, ao invs de se excluir,
conferindo maior autonomia e igualdade aos membros da famlia.
A famlia atual, aps o acolhimento do divrcio, notadamente com o
advento da Emenda Constitucional n. 66/2010, conferindo nova reda-
o ao art. 226, 6, da Constituio Federal,3 que facilitou e dissemi-
nou o divrcio, alm da maior autonomia dos membros, deslocou o eixo
central de sua constituio, da conjugalidade para a filiao, assentada
especialmente no princpio do melhor interesse do menor, conferido
pelo art. 227 da Constituio da Repblica.4
A responsabilidade civil no Direito de Famlia, entretanto, ainda
encontra opositores, sob o argumento de abalo paz familiar e manu-
teno da famlia, ausncia de previso legal e monetarizao das
relaes afetivas, devendo ser aplicadas as regras prprias do direito
familiarista. Os defensores da responsabilidade civil no seio familiar
rebatem os argumentos, fundamentando que prevalece no Direito o
respeito aos direitos fundamentais e a proteo da dignidade da pes-
soa humana, no podendo as relaes familiares isentarem de respon-
sabilidade o agente causador de dano.5
Esclarece Bruna Barbieri Waquim que o ser humano, por ser um
sujeito de desejos, age, muitas vezes, por impulso e libido, prejudicando
os que lhes so prximos, no podendo ser isento de responsabilidades
em razo das relaes familiares, em prol do restabelecimento de uma
coexistncia harmoniosa e da proteo da dignidade dos membros da
famlia, deve ser conferido o direito dos componentes de uma estru-
tura familiar de buscarem a reparao ou indenizao dos bens jur-
dicos violados na intimidade do lar. As relaes familiares no podem
excluir de responsabilidades o agente causador que lesiona o outro,
por ao ou omisso.6
3
Art. 226. A famlia, base da sociedade, tem especial proteo do Estado.
[...]
6 O casamento civil pode ser dissolvido pelo divrcio.
4
Art. 227. dever da famlia, da sociedade e do Estado assegurar criana, ao adolescente e
ao jovem, com absoluta prioridade, o direito vida, sade, alimentao, educao, ao
lazer, profissionalizao, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e convivncia
familiar e comunitria, alm de coloc-los a salvo de toda forma de negligncia, discrimina-
o, explorao, violncia, crueldade e opresso.
5
CARVALHO, Dimas Messias de. Direito das famlias. 4. ed. So Paulo: Saraiva, 2015, p.
134-135.
6
WAQUIM, Bruna Barbieri. Universos paralelos e danos do amor: balizas para a
Os danos materiais e morais causados em razo do descumpri-
mento do dever alimentar, por importar na subsistncia do alimen-
tado, so de graves consequncias para o ser humano. Tratando-se
de crianas e adolescentes podem comprometer, de forma irremedi-
vel, seu pleno desenvolvimento fsico, mental, moral e espiritual, vio-
lando direitos fundamentais que devem ser respeitados com absoluta
prioridade.7
Ressalta-se, assim, a importncia em abordar a indenizao
por inadimplemento alimentar, acolhendo a responsabilidade civil no
Direito de Famlia.
2RESPONSABILIDADE CIVIL
A responsabilidade civil, base da obrigao de indenizar, decorre

do nexo de causalidade entre uma conduta comissiva ou omissiva do
agente causador, em desconformidade com a lei, e o dano sofrido pela
vtima, que teve seus direitos subjetivos violados.8
Do verbo latino respondere, possui o sentido jurdico de a pessoa
assumir as consequncias de sua conduta desconforme, de responder
pelos atos que pratica. A responsabilidade importa no dever jurdico,
no compromisso legal de a pessoa satisfazer o que foi determinado
pelo ordenamento jurdico, ou convencionado, sob pena de sofrer as
sanes legais, aplicando-se nos diversos ramos do Direito.9
Rodrigo da Cunha Pereira ressalta que a responsabilidade
palavra de ordem na contemporaneidade e aplicada de forma mais
objetiva para incluir no mbito de proteo as pessoas em situao de
vulnerabilidade, o que inclui as pessoas carentes em alimentos, que
no possuem meios de prover a prpria subsistncia. A responsabili-
dade mais do que um valor jurdico, um princpio jurdico funda-
mental e norteador das relaes familiares, pois no busca apenas a
reparao para os atos do passado, busca, tambm, cumprir os precei-
tos ticos voltados para o futuro, ou seja, a responsabilidade com que
responsabilidade civil no mbito das relaes simultneas conjugais. Revista Brasileira de

Direito das Famlias e Sucesses. Porto Alegre: Magister; Belo Horizonte: IBDFAM, n. 23, p. 70,
ago./set.2011,
7
CARVALHO, Dimas Messias de. Dano Moral por Inadimplemento Alimentar. In: MADALENO,
Rolf; BARBOSA, Eduardo (Coord.). Responsabilidade civil no direito de famlia. So Paulo:
Atlas, 2015, p. 126.
8
VELOSO, Zeno. Invalidade do negcio jurdico. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 14-15.
9
FIZA, Csar. Direito civil: curso completo. 10. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 276-277.
se deve agir para preservao dos direitos e cuidados, notadamente
das pessoas vulnerveis.10
A responsabilidade mtua de proteo e de cuidados entre os
membros de uma entidade familiar, que surge em razo do parentesco,
biolgico ou afetivo, casamento ou unio estvel, uma das maiores
expresses do princpio da solidariedade familiar, notadamente no for-
necimento de alimentos, essenciais subsistncia. Novamente a lio
de Rodrigo da Cunha Pereira, ao ressaltar que a solidariedade, antes
considerada um dever moral, uma caridade, foi elevada a princpio jur-
dico, aplicado, sobretudo, no seio familiar com maior incidncia no
dever alimentar, ressaltando que:
O instituto jurdico dos alimentos decorre de valores humanos e

dos princpios da solidariedade e da dignidade humana, destinan-
do-se a amparar aqueles que no podem arcar com a sua prpria
subsistncia, cujo contedo est diretamente atrelado tutela da
pessoa e satisfao de suas necessidades fundamentais. A Emenda
Constitucional n. 64, de 2010, alterou o art. 6 da Constituio da
Repblica para introduzir a alimentao como um direito social, o
que refora a sua amplitude e importncia como direito essencial e
atributo da dignidade da pessoa humana e da solidariedade.11
A solidariedade familiar um dever jurdico, impondo aos mem-

bros de uma famlia serem responsveis para com os outros, e cumpri-
rem com seus deveres de cuidados e assistncia mtua.
A responsabilidade civil surge quando a pessoa no responde
por seu dever jurdico, descumprindo uma obrigao que viola direi-
tos subjetivos de outrem, causando danos12 ou abusa do exerccio dos
direitos,13 praticando ato ilcito cvel. Comprovada a ocorrncia de
dano o agente causador fica obrigado a repar-lo14 e, na impossibili-
dade, compensar a vtima pelos males sofridos.
10
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Responsabilidade civil pelo abandono afetivo. In: MADALENO,
Atlas, 2015, p. 399.
11
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princpios fundamentais norteadores do direito de famlia. 2.
ed. So Paulo: Saraiva, 2012, p. 227.
12
Art. 186. Aquele que, por ao ou omisso voluntria, negligncia ou imprudncia, violar
direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilcito.
13
Art. 187. Tambm comete ato ilcito o titular de um direito que, ao exerc-lo, excede mani-
festamente os limites impostos pelo seu fim econmico ou social, pela boa-f ou pelos bons
costumes.
14
Art. 927. Aquele que, por ato ilcito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a
repar-lo.
Pargrafo nico. Haver obrigao de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos
especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano
implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Assim, a responsabilidade civil, lecionam Conrado Paulino da
Rosa e Douglas Phillips Freitas, liga-se diretamente noo de que
as condutas humanas, tanto comissivas quanto omissivas, no devem
violar direitos de terceiros, no deve prejudicar o outro. Ocorrendo
agresso aos interesses de terceiros, por violao ou abuso, importa
em responsabilizao e o agente causador fica obrigado reparao do
dano e, se no for mais possvel, deve indenizar vtima, compensando
materialmente os males sofridos.15
Oportuno registrar que o conceito de responsabilidade civil vem
mudando, preocupando-se com o dano injusto ou injustificado, no se
prendendo exclusivamente no ato ilcito, buscando evitar que a vtima
no fique ressarcida. Assim, a responsabilidade civil passa a ser con-
siderada uma reao ao dano injusto, para proteo dos direitos fun-
damentais, deixando de ser uma forma de punio ao culpado para
assumir o papel de proteo ao lesado, constituindo em uma disciplina
civilstica mais prxima da noo de justia vigente na sociedade.16
A responsabilidade civil por danos patrimoniais tem funo res-
sarcitria, identificando e quantificando monetariamente o valor dos
prejuzos causados, removendo os efeitos danosos da leso sofrida. A
responsabilidade por danos extrapatrimoniais (morais) possui finali-
dade satisfatria, compensatria, j que o dano moral atinge os valores
mais caros ao ser humano, como a dignidade, a honra, a autoestima, a
intimidade, a reputao e a imagem, que no tem preo, dentro e fora
das relaes familiares. O dano moral diz respeito, portanto, aos sen-
timentos e afeies ntimas das pessoas, as leses que causam padeci-
mento fsico, que perturbam a tranquilidade e a normalidade da vida
da pessoa ofendida, o que no inclui, nesse contexto, uma mera irrita-
o, um dissabor diante das dificuldades da vida.17
Assim, o dano moral uma agresso aos direitos da
personalidade, violando a honra, a intimidade, a vida privada e a
imagem das pessoas, protegidos pelo art. 5, X, da Constituio
Federal.18 Ressalta-se que no existe proteo ao direito ao afeto, aqui
entendido como elemento subjetivo (amor) metajurdico, inapreensvel
15
ROSA, Conrado Paulino da; CARVALHO, Dimas Messias de; FREITAS, Douglas Phillips. Dano
moral & direito das famlias. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 37-38.
16
MORAES, Maria Celina Bodin de. A responsabilidade e a reparao civil no direito de fam-
lia. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Tratado de Direito das Famlias. Belo Horizonte:
IBDFAM, 2015, p. 807-808.
17
MADALENO, Rolf. A responsabilidade civil pela ausncia ou negligncia nas visitas. In:
MADALENO, Rolf; BARBOSA, Eduardo (Coord.). Responsabilidade civil no direito de famlia.
So Paulo: Atlas, 2015, p. 362-363.
18
Art. 5 Todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pas a inviolabilidade do direito vida, liber-
dade, igualdade, segurana e propriedade, nos termos seguintes:
[...]
pelo Direito, no autorizando indenizao por dano moral, ainda
que cause dor e sofrimento na pessoa, pois no caracterizado por
condutas externadas e objetivas, apreensveis pelo Direito, como o
dever de cuidados, que autoriza indenizao por abandono afetivo
(abandono de cuidar).
3INDENIZAO NO DIREITO DE FAMLIA
Como ressaltado na introduo, a responsabilidade civil no

Direito de Famlia tema novo que desperta debates entre os especia-
listas, sendo perceptvel o antagonismo na doutrina e na jurisprudncia.
Joo Aguirre ressalta as peculiaridades do Direito de Famlia, em
que as relaes humanas se desenvolvem no afeto, com diversidades de
arranjos, alguns duradouros, outros fugazes, que despertam dissabo-
res, mgoas e ressentimentos, desaguando nos tribunais. Alerta sobre
a necessidade de zelar para no pautar as relaes familiares com os
mesmos valores e juzos morais das relaes obrigacionais, tratando
a natureza humana pelo crivo dos negcios. A famlia no uma insti-
tuio diversa de seus membros, mas o locus para o desenvolvimento
pleno e sadio da pessoa humana, realizando seus interesses afetivos e
existenciais. Protege-se a famlia, no como ente autnomo, mas como
um ncleo de desenvolvimento e de promoo da dignidade de seus
integrantes. Acrescenta que:
O princpio norteador das relaes familiares consiste, pois, na dig-

nidade dos integrantes do ncleo familiar, em que a solidificao
dos sentimentos afetivos, a solidariedade social e a liberdade para
desenvolver projetos pessoais constituam elementos suficientes
para o melhor desenvolvimento da personalidade do ser humano.
Ao Estado cabe a preservao dos valores que fundamentam a fam-
lia, a fim de se assegurar sua proteo e assistncia, sem que isso
signifique interferir na liberdade individual de seus integrantes.
A aplicao das normas de Responsabilidade Civil ao Direito de
Famlia deve estar pautada sob essas premissas fundamentais.19
As peculiaridades prprias e especficas do Direito de Fam-

lia, que se pautam pela liberdade, solidariedade familiar, promoo da
dignidade humana e pleno desenvolvimento de seus integrantes, tm
X - so inviolveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o

direito a indenizao pelo dano material ou moral decorrente de sua violao;
19
AGUIRRE, Joo Ricardo Brando. O dano moral pela infidelidade. In: MADALENO, Rolf; BAR-
BOSA, Eduardo (Coord.). Responsabilidade civil no direito de famlia. So Paulo: Atlas, 2015, p.
236-237.
permitido interpretaes de alguns no sentido de no se aplicar as
normas do Direito das Obrigaes a ensejar indenizao.
A corrente contrria ao reconhecimento da indenizao nas
relaes familiares fundamenta sobre a inexistncia de previso legal
especfica como ocorre em algumas legislaes europeias; a impossi-
bilidade de aplicao das normas da responsabilidade civil na famlia;
a previso de sanes prprias do Direito de Famlia ao ente familiar
que descumprir com seus deveres, como a culpa na separao litigiosa,
priso civil ao devedor de alimentos, perda do poder familiar, exonera-
o dos alimentos por conduta indigna do credor, entre outros; com-
prometimento e o esfacelamento da paz familiar em razo das aes
indenizatrias;20 o dever do Estado em propiciar a manuteno da
famlia; a indevida monetizao do afeto; e, ainda, o risco de entu-
lhar ainda mais o Poder Judicirio com aes de danos nas relaes
familiares.
A corrente favorvel aplicao da responsabilidade civil no
Direito de Famlia, apesar de divergncias, rebate os opositores e res-
salta que a obrigao de indenizar genrica e reconhecida consti-
tucionalmente; a falta de previso especfica no ordenamento jurdico
no exclui a incidncia da responsabilidade nas relaes familiares; a
convivncia e as relaes entre familiares geram conflitos prprios e
especficos que no possuem previso e sano no Direito de Fam-
lia, devendo ser aplicadas as regras gerais da responsabilidade civil; as
relaes familiares no isentam de responsabilidade o agente causador
do dano; prevalece no direito o respeito aos direitos fundamentais e
a proteo da dignidade humana;21 a proteo e a assistncia fam-
lia assegurada na pessoa de cada um de seus membros (art. 226, 8,
CF) 22 e no na instituio como ente autnomo; cumpre ao Estado, sem
interferir na liberdade individual e no modelo de formao da entidade
familiar, assegurar e proteger os direitos fundamentais de cada um dos
que a integra, independente de as relaes jurdicas ocorrerem entre
os prprios membros ou terceiros.
A corrente que acolhe a aplicao da responsabilidade civil nas
relaes familiares vem-se fortalecendo, entretanto, no unnime,
20
AGUIAR JNIOR, Ruy Rosado de. Responsabilidade civil no direito de famlia. In: MADA-
LENO, Rolf; WELTER, Belmiro Pedro (Coord.). Direitos fundamentais no direito de famlia.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 366-367.
21
AGUIAR JNIOR, Ruy Rosado de. Responsabilidade civil no direito de famlia. In: MADA-
LENO, Rolf; WELTER, Belmiro Pedro (Coord.). Direitos fundamentais no direito de famlia.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 366-367.
22
Art. 226.
[...]
8 O Estado assegurar a assistncia famlia na pessoa de cada um dos que a integram,
criando mecanismos para coibir a violncia no mbito de suas relaes.
exigindo uma subcorrente do ato ilcito absoluto. Cristiano Chaves de
Farias e Nelson Rosenvald lecionam que a aplicao das regras da res-
ponsabilidade civil na seara familiar, portanto, depender da ocorrn-
cia de um ato ilcito, devidamente comprovado.23
O ato ilcito absoluto o geral e ocorre em quaisquer circuns-
tncias da vida civil, como dano patrimonial, agresses fsicas, danos
estticos, morais, ofensas honra, ocorrendo em relaes com tercei-
ros ou mesmo entre familiares. O ato ilcito especfico surge em razo
do descumprimento de deveres, ou por abuso de direito, previstos
no Direito de Famlia, como o inadimplemento alimentar, quebra dos
deveres conjugais, omisso do dever de cuidados com os filhos e pais
idosos, descumprimento do dever de solidariedade familiar e da pater-
nidade responsvel, entre outros.24
A outra subcorrente acolhe a responsabilidade civil por ato ilcito
absoluto e tambm por ato ilcito especfico.
Maria Celina Bodin de Moraes, ao tratar da responsabilidade civil
no seio familiar apresenta as duas correntes, lecionando que:
Parece oportuno distinguir, desde logo, as duas correntes jurdicas

contrapostas na matria. De um lado, aqueles que aceitam a res-
ponsabilizao ao interesse da famlia, mas apenas e to somente
nos casos em que haja ilcito absoluto (como previsto no art. 186 c/c
927 do Cdigo Civil); de outro lado, os que sustentam a indenizao
tanto em casos gerais (regidos pela clusula do art. 186) como em
casos especficos, isto , nas hipteses de violao dos deveres con-
jugais (previstos, entre outros pelo art. 1.566 do Cdigo Civil).
[...]
Surpreendentemente, enquanto a jurisprudncia nacional mostra-
-se mais inclinada a adotar a primeira posio, a doutrina vem sus-
tentando a segunda.25
Apesar da distino jurdica do ato ilcito absoluto e especfico,

na prtica aplica-se nas relaes familiares a regra geral do ato il-
cito absoluto, ainda que o dever violado esteja previsto no Direito de
Famlia (ato ilcito especfico). O genitor que, sem justa causa, deixa
de fornecer alimentos ao filho menor, est deixando de cumprir, por
omisso, um dever previsto no Direito de Famlia, mas que caracteriza
23
FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil Famlias. 5. ed. Sal-
vador: Jupodivm, 2013, v. 6, p. 163.
24
CARVALHO, Dimas Messias de. Direito das famlias. 4. ed. So Paulo: Saraiva, 2015, p.
138-139.
25
MORAES, Maria Celina Bodin de. A responsabilidade e a reparao civil no direito de fam-
lia. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Tratado de Direito das Famlias. Belo Horizonte:
IBDFAM, 2015, p. 806.
um ato ilcito civil, previsto no art. 186 do Cdigo Civil, pois descum-
priu um dever jurdico, ficando obrigado reparao se ocorrer algum
dano com sua conduta delituosa. Assim, justifica-se a indenizao,
aplicando-se a regra geral da responsabilidade civil, ainda que o ato il-
cito tenha ocorrido em razo de descumprimento de dever/obrigao
nas relaes familiares.
4INDENIZAO POR INADIMPLEMENTO ALIMENTAR
A responsabilidade de prestar alimentos nas relaes familiares

encontra fundamento no princpio da solidariedade familiar, neces-
srio para a subsistncia digna da pessoa humana e satisfazer suas
necessidades bsicas de sobrevivncia.
Alimentos uma necessidade vital do ser humano, um direito
fundamental, causando graves danos o descumprimento no seu forne-
cimento pelo responsvel.
A obrigao recproca de prestar alimentos prevista de forma
geral no art. 1.694 do Cdigo Civil, ao dispor que podem os paren-
tes, os cnjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos
de que necessitem para viver de modo compatvel com a sua condio
social. Logo, no Direito de Famlia, as fontes do direito a alimentos so
o parentesco, o casamento e a unio estvel.
4.1Dever jurdico de prestar alimentos e obrigao alimentar
A doutrina diferencia o dever jurdico de prestar alimentos e a

obrigao alimentar.
Ressalta Rolf Madaleno que a distino surge em favor dos filhos
menores sob o poder familiar, que so credores de um dever geral e
prioritrio de assistncia dos pais, no possuindo as limitaes da obri-
gao alimentar entre os parentes, fixada na proporo da necessidade
do reclamante e na possibilidade do obrigado. No dever alimentar ao
filho sob o poder familiar, a solidariedade ilimitada, em atendimento
ao princpio da dignidade humana, cabendo aos pais atenderem todas
as necessidades da prole, com absoluta prioridade (art. 227, CF), ainda
que com esforos e sacrifcios. O dever alimentar dos pais quanto aos
filhos menores (ou incapazes) incondicional, o que no ocorre no vn-
culo conjugal e no parentesco fora do poder familiar, que sofre limites
e restries, tratando-se de obrigao alimentar.26
MADALENO, Rolf. Curso de direito de famlia. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 947.
26
Flvio Tartuce amplia o dever de prestar alimentos para as rela-
es conjugais e convivenciais, em razo do dever de sustento entre
cnjuges e companheiros (arts. 1.566, III e 1.724, CC), que no se con-
funde com a obrigao alimentar. Somente com a dissoluo do
casamento ou da unio que o dever de sustento substitudo pela
obrigao alimentar, envolta pelo quantum a ser fixado.27
O dever jurdico de prestar alimentos no deve se limitar, entre-
tanto, aos filhos menores e aos cnjuges e companheiros durante a
unio. Tambm se estende aos filhos incapazes ou inaptos para o tra-
balho, bem como aos pais na velhice, carncia ou enfermidade, inde-
pendente de fixao do quantum judicialmente.
4.2Ilcito penal por inadimplemento alimentar
O Cdigo Penal tipifica ato ilcito omissivo prprio e permanente

o crime de abandono material, ao tratar dos crimes contra a assistncia
familiar, no ttulo que cuida dos crimes contra a famlia. Demonstra-se
tambm na legislao penal a preocupao com a proteo dos direitos
fundamentais da pessoa humana e o dever de solidariedade familiar
para prover a subsistncia do membro necessitado. Como sabido, o
Direito Penal tipifica como delito os atos ilcitos mais graves, entre eles
o ato ilcito civil, imputando sanes tambm na esfera criminal, j que
a ilicitude no conceito exclusivo da rea penal.28 Entre os atos ilci-
tos civis, entendeu o legislador que no prover a subsistncia nas rela-
es familiares ato que merece maior censura, tipificando-o tambm
como ilcito penal no art. 244 do Estatuto repressivo.29
O delito penal de abandono material apresenta trs figuras deli-
tuosas distintas.
A primeira conduta tpica deixar, sem justa causa, de prover
a subsistncia do cnjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou
inapto para o trabalho, ou de ascendente invlido ou maior de 60 (ses-
senta) anos. Prover a subsistncia inclui fornecer alimentos em sen-
tido amplo, no exigindo a figura tpica prvia fixao dos alimentos
e o quantum. Trata-se, portanto, de dever jurdico, incondicional,
27
TARTUCE, Flvio. Alimentos. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Tratado de Direito das
Famlias. Belo Horizonte: IBDFAM, 2015, p. 513.
28
CARVALHO, Dimas Messias de. Dano moral por inadimplemento alimentar. In: MADALENO,
Atlas, 2015, p. 139.
29
Art. 244. Deixar, sem justa causa, de prover a subsistncia do cnjuge, ou de filho menor de
18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente invlido ou maior de 60 (ses-
senta) anos, no lhes proporcionando os recursos necessrios ou faltando ao pagamento de
penso alimentcia judicialmente acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de
socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo:
sem necessidade de prvia fixao. A simples omisso de prestar ali-
mentos ao filho menor ou incapaz, ao cnjuge e ao ascendente inv-
lido ou idoso, sem uma causa justificada de absoluta impossibilidade,
configura ato ilcito penal e tambm ato ilcito civil, em razo do des-
cumprimento de um dever legal, violando direito subjetivo do familiar
necessitado.
A segunda conduta delituosa faltar ao pagamento de pen-
so alimentcia judicialmente acordada, fixada ou majorada. Exige-se
para a configurao do ilcito penal a prvia fixao dos alimentos e o
inadimplemento voluntrio do devedor. O fato tpico acolhe todas as
hipteses do art. 1.694 do Cdigo Civil, importando o descumprimento
da obrigao alimentar em ato omissivo prprio que viola direitos do
credor e, causando dano material ou imaterial, tambm configura il-
cito cvel a ensejar reparao.
A terceira conduta tpica reafirma na seara criminal o princ-
pio da solidariedade familiar, ao tipificar como crime deixar sem justa
causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo.
Inequvoco, portanto, que o art. 244 do Cdigo Penal, muitas
vezes esquecido no Direito de Famlia, amplia as hipteses do dever
jurdico de prestar alimentos para alm dos filhos menores sob o poder
familiar, acrescentando os filhos maiores incapazes, cnjuges e ascen-
dentes enfermos ou idosos.
4.3Dever de indenizar por inadimplemento alimentar entre pais e

filhos
A Constituio Federal de 1988 determina no art. 22930 o dever

legal e recproco dos pais em assistir, criar e educar os filhos menores,
e o dever dos filhos maiores em amparar e ajudar os pais idosos, caren-
tes ou enfermos, reafirmando o j previsto no art. 244 do Cdigo Penal.
Inequvoco que prover, assistir, criar e educar, importa em fornecer ali-
mentos, independente de prvia fixao judicial.
No que se refere ao sustento dos filhos menores, tambm o Esta-
tuto da Criana e do Adolescente dispe expressamente no art. 2231 que
aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educao dos filhos.
A criao e a educao dos filhos menores so deveres do poder
familiar, o dever de cuidados, configurando a sua omisso em ato ilcito
30
Art. 229. Os pais tm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores
tm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carncia ou enfermidade.
31
Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educao dos filhos menores,
cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigao de cumprir e fazer cumprir as determi-
naes judiciais.
civil. O Superior Tribunal de Justia j pronunciou no sentido de que
comprovar que a imposio legal de cuidar da prole foi descumprida
implica em se reconhecer a ocorrncia de ilicitude civil, sob a forma de
omisso.32
O descumprimento do dever legal de prestar alimentos aos filhos
menores ou invlidos e aos pais idosos, invlidos ou enfermos, mesmo
sem fixao judicial, ou descumprir a obrigao de prestar alimen-
tos aos filhos maiores ou aos pais, fixada judicialmente, causando ao
necessitado algum dano, moral ou material, configuram ato ilcito a
autorizar indenizao.
No se sustenta o argumento de que a ausncia de fixao do
quantum inviabiliza o cumprimento do dever legal quanto aos filhos
menores. Cabe aos pais, que so responsveis pelo sustento, querendo,
ajuizar a competente ao de oferta de alimentos para a fixao do
valor devido (art. 24 da Lei n. 5.478/1968).
Tratando-se de filhos menores, notadamente de crianas, o dano
causado em razo do inadimplemento alimentar evidente. Quanto
aos filhos maiores ou os pais torna-se necessria a comprovao do
dano, material ou moral.
O Tribunal de Justia de So Paulo, apesar de raras as aes de
responsabilidade civil por inadimplemento alimentar, reconheceu que
o no pagamento dos alimentos pelo pai s filhas, j maiores, no modo
e tempo devidos, causando constrangimentos, importa em descumpri-
mento do dever de solidariedade familiar e autoriza indenizao por
dano moral. Consta na ementa e em partes do voto que:
INDENIZAO DE DANOS MORAIS DESCUMPRIMENTO HABI-

TUAL DO PAI DO DEVER DE PAGAR ALIMENTOS S FILHAS NO
MODO E TEMPO DEVIDOS INADIMPLEMENTO QUE PERSISTIU
MESMO DEPOIS DE REDUZIDO, JUDICIALMENTE, O VALOR DAS
PENSES VIOLAO DO DEVER PREVISTO NO ART. 229 DA
CONSTITUIO DA REPBLICA CONDUTA QUE CARACTERIZA O
CRIME DE ABANDONO MATERIAL (CP, ART. 244) AGRESSO
DIGNIDADE, AMOR-PRPRIO E AUTOESTIMA DAS APELANTES
DANOS DE ORDEM MORAL DEVER DE INDENIZAR RECURSO
PROVIDO.
[...]
1 DOS LIMITES DA CONTROVRSIA Nestes autos, discute-se se
o inadimplemento contumaz da obrigao de pensionar as autoras
no modo e tempo devidos caracteriza ato ilcito e autoriza a conde-
nao do ru, ora apelado, ao pagamento de indenizao de danos
extrapatrimonais.
STJ. REsp. n. 1159242/SP. Rel. Ministra Nancy Andrighi. J. 24.04.2012.

32
[...]
3 DO DIREITO Ao impor aos pais o dever de assistir, criar e edu-
car seus filhos menores, a regra inscrita no art. 229 da Constitui-
o da Repblica, no dizer de GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA
GAMA, confirma a juridicizao do dever moral de solidariedade
no mbito dos vnculos mais prximos das pessoas (cf. Alimentos
e direito penal: o abandono material. In Alimentos no cdigo civil.
Coord. Francisco Jos Cahali e Rodrigo da Cunha Pereira. So Paulo:
Ed. Saraiva, 2005, p. 298).
[...]
4 DOS DANOS EXTRAPATRIMONIAIS Posto que o perito do
Juzo no tenha apontado a etiologia dos males que acometem Anna
Claudia e Anna Camila, estes muito mais graves do que aqueles (fls.
449 e 451), a jurisprudncia do Superior Tribunal de Justia tem se
orientado no sentido de que, para a caracterizao do dano moral,
basta a prova do fato que gerou a dor, o sofrimento, os sentimen-
tos ntimos que o ensejam. Provado o fato, impe-se a condenao,
dispensada a prova do dano moral em si (4a T., REsp 575.469-RJ, rei.
Min. Jorge Scartezzini, j. 18.11.2004, v.u., Boi. AASP 2.471/1.196).
[...]
Ao descumprir a obrigao de pensionar as apelantes no modo e
tempo devidos, o apelado faltou com o dever de solidariedade fami-
liar e privou-lhes de condies adequadas de subsistncia, dando
causa a constrangimentos, como, por exemplo, a devoluo de che-
ques sem suficiente proviso de fundos e a inscrio dos nomes
delas em cadastros restritivos de crdito, do que do mostra os
documentos de fls. 15, 19, 383 e 399, pouco importando, nesse parti-
cular, se as despesas eram, ou no, suprfluas, uma vez que, quela
altura, o dano j estava caracterizado.
Pela agresso dignidade, amor-prprio e autoestima das ape-
lantes, representada pelo descumprimento contumaz da obri-
gao de pension-las como deveria, conclui-se que o apelado
deve ser condenado a pagar-lhes indenizao de danos de carter
extrapatrimonial.33
4.4Dever de indenizar por inadimplemento alimentar entre os cn-

juges e companheiros
Conforme sustenta a corrente doutrinria dominante, conside-

rando que entre cnjuges e companheiros no ocorre dever de sus-
tento, mas obrigao alimentar, a teor dos arts. 1.694 e 1.695, do Cdigo
Civil, necessria a fixao de penso alimentcia nas relaes familia-
res conjugais e convivenciais, estabelecendo o quantum dos alimentos.
Somente aps a fixao com o descumprimento injustificado do
pagamento da penso alimentcia acordada ou determinada, conforme
TJSP. 8 CDP. AC n. 990.10.472009-5. Rel. Des. Theodureto Camargo. J. 23.02.2011.

33
previsto no art. 244 do Cdigo Penal, configura-se tambm o ato ilcito
civil, suscetvel de reparao ocorrendo dano material ou moral.
O entendimento predominante, entretanto, pode ser questio-
nado em face dos deveres conjugais e convivenciais.
Com efeito, as relaes pessoais entre cnjuges e companheiros
obedecero, entre outros, ao dever de mtua assistncia (art. 1.566, III
e 1.724 do Cdigo Civil), o que permite afirmar que os alimentos, tam-
bm nessas relaes familiares, um dever jurdico, o que independe
de prvia fixao do valor para ser cumprido.
Flvio Tartuce defende que o dever de sustento no pode dife-
renciar da obrigao alimentar apenas pelo critrio do poder familiar,
restringindo-se entre pais e filhos, devendo ampli-lo aos cnjuges e
companheiros. O dever de mtua assistncia mais amplo que a obri-
gao alimentar, englobando valores patrimoniais e tambm existen-
ciais, que acabam envoltos e mascarados pela fixao do quantum a ser
fixado.34 Nessa ordem de ideias, o descumprimento do dever de assis-
tncia (inadimplemento alimentar), independente de fixao do valor
previamente, importa em violao de dever jurdico, configurando ato
ilcito sujeito a reparao civil.
No demais lembrar que a Lei Maria da Penha tambm consi-
dera violncia domstica contra a mulher, a violncia patrimonial, con-
sistente na reteno e subtrao de direitos, incluindo os destinados a
satisfazer suas necessidades.
5EFEITOS DA INDENIZAO POR INADIMPLEMENTO ALIMENTAR
O descumprimento do dever alimentar fato de extrema gravi-

dade, por colocar em risco a subsistncia do necessitado.
O inadimplemento causa srios danos na pessoa necessitada,
material e moral, que passa por privaes e humilhaes de toda a
ordem. As formas de execuo de alimentos no so suficientes para
inibir o alto ndice de atrasos nos pagamentos, a maioria injustificada.
Nem mesmo a execuo indireta suficiente para inibir a inadim-
plncia, pois a maioria dos devedores s cumpre com o dever aps a
decretao da priso civil, depois de longo perodo de tramitao do
processo.
A indenizao por ato ilcito em razo do inadimplemento ali-
mentar produz diversos efeitos, podendo incluir entre eles a efetivao
dos direitos fundamentais dos credores de alimentos, conferindo-lhes
TARTUCE, Flvio. Alimentos. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Tratado de Direito das
34
Famlias. Belo Horizonte: IBDFAM, 2015, p. 513.
dignidade; reafirmar o princpio da solidariedade familiar, o dever rec-
proco de assistncia dos membros de uma famlia; compensar o ali-
mentado dos males e danos sofridos; sancionar o alimentante pelo
descumprimento do seu dever jurdico; e evitar a prtica e a continui-
dade do inadimplemento, produzindo um efeito pedaggico voltado
para o futuro, conferindo significado relevante para a responsabili-
dade, como princpio jurdico fundamental e norteador das relaes
familiares, aplicada efetivamente, de forma mais objetiva para proteger
as pessoas vulnerveis.35
6REFERNCIAS
AGUIAR JNIOR, Ruy Rosado de. Responsabilidade civil no direito de

famlia. In: MADALENO, Rolf; WELTER, Belmiro Pedro (Coord.). Direi-
tos fundamentais no direito de famlia. Porto Alegre: Livraria do Advo-
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AGUIRRE, Joo Ricardo Brando. O dano moral pela infidelidade. In:

MADALENO, Rolf; BARBOSA, Eduardo (Coord.). Responsabilidade civil
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CARVALHO, Dimas Messias de. Dano moral por inadimplemento

alimentar. In: MADALENO, Rolf; BARBOSA, Eduardo (Coord.). Responsa-
bilidade civil no direito de famlia. So Paulo: Atlas, 2015.
CARVALHO, Dimas Messias de. Direito das famlias. 4. ed. So Paulo:

Saraiva, 2015.
FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil

Famlias. 5. ed. Salvador: Jupodivm, 2013, v. 6.
FIZA, Csar. Direito civil: curso completo. 10. ed. Belo Horizonte: Del
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sabilidade civil no direito de famlia. So Paulo: Atlas, 2015.
MADALENO, Rolf. Curso de direito de famlia. 5. ed. Rio de Janeiro:

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PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Responsabilidade civil pelo abandono afetivo. In: MADALENO,
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MADALENO, Rolf. Responsabilidade civil na conjugalidade e alimentos
compensatrios. Revista Brasileira de Direito de Famlia. Porto Alegre:
Magister; Belo Horizonte: IBDFAM, v. 13, dez./jan. 2010.
MORAES, Maria Celina Bodin de. A responsabilidade e a reparao civil

no direito de famlia. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Tratado de
Direito das Famlias. Belo Horizonte: IBDFAM, 2015.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princpios fundamentais norteadores do

direito de famlia. 2. ed. So Paulo: Saraiva, 2012.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Responsabilidade civil pelo abandono

afetivo. In: MADALENO, Rolf; BARBOSA, Eduardo (Coord.). Responsabi-
lidade civil no direito de famlia. So Paulo: Atlas, 2015.
ROSA, Conrado Paulino da; CARVALHO, Dimas Messias de; FREITAS,

Douglas Phillips. Dano moral & direito das famlias. 2. ed. Belo Horizon-
te: Del Rey, 2012.
STJ. REsp. n. 1159242/SP. Rel. Ministra Nancy Andrighi. J. 24.04.2012.
TARTUCE, Flvio. Alimentos. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.).

Tratado de Direito das Famlias. Belo Horizonte: IBDFAM, 2015.
TJSP. 8 CDP. AC n. 990.10.472009-5. Rel. Des. Theodureto Camargo. J.

23.02.2011.
VELOSO, Zeno. Invalidade do negcio jurdico. Belo Horizonte: Del Rey,

2005.
WAQUIM, Bruna Barbieri. Universos paralelos e danos do amor: balizas

para a responsabilidade civil no mbito das relaes simultneas conju-
gais. Revista Brasileira de Direito das Famlias e Sucesses. Porto Alegre:
Magister; Belo Horizonte: IBDFAM, n. 23, ago./set. 2011.
O CALVRIO DA ADOO
Maria Berenice Dias
Advogada especializada em Famlias,

Sucesses e Direto Homoafetivo. Vice-Presidenta do Instituto
Sumrio: 1. Quem pariu que embale. 2. Uma legislao na

contramo. 3. A dor da entrega. 4. Tentativa de entrega
famlia extensa. 5. Destituio do poder familiar. 6. A
busca pela inscrio. 7. O dilema entre adoo e reprodu-
o assistida
1QUEM PARIU QUE EMBALE
Talvez o instituto da adoo seja um dos mais antigos do mundo.

Sempre existiram mes que no querem ou no podem ficar com
os filhos, seja pela causa que for.
Pessoas que no podem ter filhos tambm. Contudo, ainda h
certo sentimento de vergonha por parte de casais que temem o estigma
da infertilidade, por no conseguirem cumprir o designo divino de
crescei e multiplicai-vos. Afinal, por dogmas religiosos o exerccio da
sexualidade deve ser restrito funo procriativa. Sexo recreativo nem
pensar!
Da a dificuldade de enfrentarem a cobrana social. Parece que
falharam na sua obrigao de ter filhos. Quem sabe por esses motivos a
adoo era cercada de uma aurola de segredos e mentiras.
Todavia, uma nova realidade se instaurou.
As mulheres adquiriram a plena capacidade, mesmo as casadas.
Deixaram de ser consideradas mais ou menos idiotizadas, o que ser-
via para justificar a outorga, ao homem, da posio de cabea do casal,
chefe da sociedade conjugal e administrador de seus bens.
Graas ao movimento feminista a quem todas devem render
homenagens as mulheres passaram do mundo do trabalho para o
mercado de trabalho. At porque trabalhar sempre trabalharam, mas
as atividades domsticas nunca foram reconhecidas como dignas de
reconhecimento.
Depois, com o surgimento da plula anticoncepcional, as mulhe-
res adquiriram a liberdade sexual. E com isso a liberdade de ter ou no
filhos.
Mas como ainda ocorre gravidez indesejada?
Porque o Estado falha.
No existe educao sexual. No so implementadas polticas
pblicas para garantir a contracepo e nem respeitada a vontade
da mulher de interromper a gravidez. Ou melhor, este direito s existe
para quem tem dinheiro de pagar abortos, no to clandestinos assim.
Quem no tem recursos, ou faz uso de tcnicas caseiras nada seguras
ou tem o filho, s que no quer permanecer com ele.
Contudo, o Estado no respeita a vontade da mulher. Com rela-
o procriao, o princpio da autonomia da vontade no existe para
ela.
Praticamente a me obriga a ficar com o filho, mesmo que no
o queira. H uma campanha de demonizao contra ela, influenciada
muito de perto pela religio, que sacraliza a maternidade a ponto de se
falar em instinto maternal. Como se mulheres fossem bichos, pois s
bicho tem instinto. Pelo jeito, os homens no, pois nunca se ouviu falar
em instinto paternal.
Quando o Estado no consegue convencer ou melhor, obrigar
a me a ficar com o filho, acaba por descumprir o comando constitu-
cional, que lhe impe o dever de assegurar criana e ao adolescente o
direito convivncia familiar.1
A adoo a soluo mais lgica. S precisa ser rpida para ser
eficaz.
2UMA LEGISLAO NA CONTRAMO
Todas as tentativas feitas pelo legislador e pelo prprio Conselho

Nacional de Justia,2 em vez de facilitar, s tem conseguido retardar
o procedimento da adoo. A chamada Lei da Adoo,3 que deformou
o Estatuto da Criana e do Adolescente, excluiu o instituto da adoo
de incapazes do mbito do Cdigo Civil. No entanto, no previu um
1
CF, art. 227: dever da famlia, da sociedade e do Estado assegurar criana, ao adolescente
e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito vida, sade, alimentao, educao, ao
lazer, profissionalizao, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e convivncia
familiar e comunitria, alm de coloc-los a salvo de toda forma de negligncia, discrimina-
o, explorao, violncia, crueldade e opresso.
2
CNJ Resolues n. 54/08, 93/09 e 190/14 e Provimento n. 36/14.
3
Lei n. 12.010/2009.
procedimento para a adoo, o qual se encontra espraiado entre os
captulos que tratam da adoo,4 da colocao em famlia substituta5 e
da habilitao.6
Reiteradas vezes a adoo considera medida excepcional,7
sendo dada preferncia famlia natural ou extensa.8
3A DOR DA ENTREGA
No h nenhuma me que abra a mo de um filho sem dor,

sem culpa.
Contudo, certamente este um gesto de amor. preciso que-
rer o bem do filho, desejar que ele tenha uma vida melhor que a
sua, que tenha chance de ser feliz, para ter coragem de entreg-lo
adoo.
Sem atentar a este momento de extrema vulnerabilidade,
quando a me manifesta sua deciso, ao invs de receber ateno e
apoio, ela submetida a verdadeira lavagem cerebral, sendo-lhe im-
postos enormes e intransponveis obstculos para que no abra mo
daquela criana que gestou sem a querer. necessrio o consenti-
mento dela e do pai,9 que no vale ser levado a feito por escrito10 e
4
ECA, arts. 39 a 52-D.
5
ECA, arts. 165 a 170.
6
ECA, arts. 197-A a E.
7
ECA, art. 19: Toda criana ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua
famlia e, excepcionalmente, em famlia substituta, assegurada a convivncia familiar e comu-
nitria, em ambiente livre da presena de pessoas dependentes de substncias
entorpecentes.
ECA, art. 19, 3: A manuteno ou reintegrao de criana ou adolescente sua famlia ter
preferncia em relao a qualquer outra providncia, caso em que ser esta includa em pro-
gramas de orientao e auxlio, nos termos do pargrafo nico do art. 23, dos incisos I e IV do
caput do art. 101 e dos incisos I a IV do caput do art. 129 desta Lei.
ECA, art. 23: A falta ou a carncia de recursos materiais no constitui motivo suficiente para a
perda ou a suspenso do poder familiar.
ECA, art. 23: 1: No existindo outro motivo que por si s autorize a decretao da medida, a
criana ou o adolescente ser mantido em sua famlia de origem, a qual dever obrigatoria-
mente ser includa em programas oficiais de auxlio.
ECA, art. 39, 1: A adoo medida excepcional e irrevogvel, qual se deve recorrer apenas
quando esgotados os recursos de manuteno da criana ou adolescente na famlia natural
ou extensa,
8
ECA, art. 25: Entende-se por famlia natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer
deles e seus descendentes.
Pargrafo nico.Entende-se por famlia extensa ou ampliada aquela que se estende para alm
da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes prximos com os quais
a criana ou adolescente convive e mantm vnculos de afinidade e afetividade.
9
ECA, art. 45: A adoo depende do consentimento dos pais ou do representante legal do
adotando.
10
ECA, 166, 4: O consentimento prestado por escrito no ter validade se no for ratificado
na audincia a que se refere o 3 deste artigo.
s pode acontecer depois do nascimento.11
Antes de se manifestar em juzo, a me precisa receber de
equipe interprofissional orientaes e esclarecimentos sobre a irre-
vogabilidade da adoo.12 Depois ouvida, em audincia, pelo juiz e
pelo promotor, na presena do advogado ou defensor, os quais de-
vem esgotar os esforos para manuteno da criana com a famlia
natural ou extensa.13
Mesmo depois de reconhecido judicialmente ser livre a ma-
nifestao de vontade, qualquer dos pais pode, at o momento da
publicao da sentena de adoo, voltar atrs.14
4TENTATIVA DE ENTREGA FAMLIA EXTENSA
Concludo o moroso procedimento legal de entrega adoo, em

vez de a criana ser imediatamente entregue a quem est inscrito no
cadastro, recolhida a instituies de acolhimento mais conhecidas
como abrigo ou orfanato e l permanece enquanto a justia, de modo
absolutamente incompetente, tenta encontrar algum da famlia que
a deseje. Pela lei, esta busca pode durar dois anos. Contudo, sob a ale-
gao de falta de estrutura para realizar tais diligncias, o tempo de
espera se dilata.
Depois de os pais desistirem de ficar com o filho, o Estado sai
caa de algum parente que o queira.
No so procurados somente os familiares com quem a criana
mantm vnculos de afinidade e afetividade, elemento constitutivo do
prprio conceito de famlia extensa. A lei no diz que famlia extensa
a composta por todos os parentes em linha colateral. Dispe deste
qualificativo somente aqueles parentes com quem a criana convive e
quer bem.
Quando se trata de um recm-nascido, que ningum da fam-
lia chegou a conhecer, o equvoco deste proceder flagrante. Famlia
extensa definida como (ECA, art. 25, pargrafo nico): os parentes
prximos com os quais a criana ou adolescente convive e mantm
11
ECA, art. 166, 6: O consentimento somente ter valor se for dado aps o nascimento da
criana.
12
ECA, art. 166, 2: O consentimento dos titulares do poder familiar ser precedido de orien-
taes e esclarecimentos prestados pela equipe interprofissional da Justia da Infncia e da
Juventude, em especial, no caso de adoo, sobre a irrevogabilidade da medida.
13
ECA, art. 166, 3: O consentimento dos titulares do poder familiar ser colhido pela autori-
dade judiciria competente em audincia, presente o Ministrio Pblico, garantida a livre
manifestao de vontade e esgotados os esforos para manuteno da criana ou do adoles-
cente na famlia natural ou extensa.
14
ECA, art. 166, 5: O consentimento retratvel at a data da publicao da sentena cons-
titutiva da adoo.
vnculos de afinidade e afetividade. Ora, um recm-nascido no tem
vnculo com ningum, o que dispensa esta longa e ineficaz providn-
cia, que s aumenta o tempo em que ela vai fica sem um lar.
Sem atentar a isso, alm dos parentes, so convocados padrinhos
e at vizinhos. A cada um concedida mais de uma chance para dizer
se deseja ou no ficar com ela. A cada negativa, mais uma frustrao,
um novo abandono.
E enquanto isso onde fica a criana? Institucionalizada, claro.
5DESTITUIO DO PODER FAMILIAR
Somente aps esgotadas todas as possibilidades de manter o

filho junto aos pais ou de ser entregue algum de sua famlia, que
tem incio o processo de destituio do poder familiar. A ao pro-
posta pelo Ministrio Pblico e a me representada pela Defenso-
ria Pblica. Equivocadamente, no requerido, em carter liminar, que
a criana seja entregue guarda de quem est habilitado a adot-la.
Este processo tambm demora anos. Alm de percias e estudos psi-
cossociais, a Defensoria Pblica esgota todas as possibilidades recur-
sais, mesmo que a me seja revel.
E at ser encontrado no cadastro de adotantes algum que tenha
eleito o seu perfil, para ser seu filho, a adoo geralmente demora
muito. A cada ano que cresce, diminui a esperana de ser adotado.
Depois de todos estes trmites que, finalmente, ocorre sua
incluso no Cadastro de Adoo. Quanto tempo se passou? Quantas
chances a criana perdeu de ter um lar, de ter pais?
Ou seja, a criana cresce institucionalizada, o que desatende ao
comando constitucional que lhe assegura direito convivncia familiar.
6A BUSCA PELA INSCRIO
A burocracia no impera somente com relao s crianas

espera da adoo. Para algum se candidatar adoo precisa subme-
ter-se a um verdadeiro teste de pacincia.
O procedimento para a habilitao s tem incio mediante o
atendimento a oito requisitos.15 Alm de pagar pelas certides, precisa
ECA, Art. 197-A: Os postulantes adoo, domiciliados no Brasil, apresentaro petio ini-
15
cial na qual conste:I qualificao completa; II dados familiares; III cpias autenticadas
de certido de nascimento ou casamento, ou declarao relativa ao perodo de unio estvel;
IV cpias da cdula de identidade e inscrio no Cadastro de Pessoas Fsicas; V
contratar um advogado ou procurar a Defensoria Pblica, que vai ela-
borar uma petio a ser protocolada na Vara da Infncia e Juventude
do local onde mora.
O expediente autuado e enviado ao Ministrio Pblico, que
pode requerer diligncias e audincia para a ouvida dos postulantes e
de testemunhas.16 Os candidatos ficam sujeitos a um perodo de pre-
parao psicossocial e jurdica por equipe tcnica do Juizado da Infn-
cia e Juventude, que deve atuar com o apoio de tcnicos responsveis
pela execuo de poltica municipal de garantia do direito convivn-
cia familiar.17 A equipe interprofissional precisa elaborar estudo psicos-
social para aferir a capacidade e o preparo do candidato ao exerccio
da paternidade responsvel, segundo os princpios do ECA.18
Os postulantes, obrigatoriamente, tm de participar de pro-
grama que inclui preparao psicolgica, orientao e estmulo
adoo inter-racial, de crianas maiores ou de adolescentes, com
necessidades especficas de sade, ou com deficincias e de grupos de
irmos.19 Faz parte do estgio de preparao visitar estas crianas.20
Certamente no h requisito mais cruel.21 Apesar de estes serem os
comprovante de renda e domiclio; VI atestados de sanidade fsica e mental; VII certi-

do de antecedentes criminais;VIII certido negativa de distribuio cvel.
16
ECA, art. 197-B: A autoridade judiciria, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, dar vista
dos autos ao Ministrio Pblico, que no prazo de 5 (cinco) dias poder: I apresentar quesitos
a serem respondidos pela equipe interprofissional encarregada de elaborar o estudo tcnico a
que se refere o art. 197-C desta Lei; II requerer a designao de audincia para oitiva dos
postulantes em juzo e testemunhas; III requerer a juntada de documentos complementa-
res e a realizao de outras diligncias que entender necessrias.
17
ECA, art. 50, 3: A inscrio de postulantes adoo ser precedida de um perodo de pre-
parao psicossocial e jurdica, orientado pela equipe tcnica da Justia da Infncia e da
Juventude, preferencialmente com apoio dos tcnicos responsveis pela execuo da poltica
municipal de garantia do direito convivncia familiar.
18
ECA, art. 197-C: Intervir no feito, obrigatoriamente, equipe interprofissional a servio da
Justia da Infncia e da Juventude, que dever elaborar estudo psicossocial, que conter sub-
sdios que permitam aferir a capacidade e o preparo dos postulantes para o exerccio de uma
paternidade ou maternidade responsvel, luz dos requisitos e princpios desta Lei.
19
ECA, art. 197-C, 1: obrigatria a participao dos postulantes em programa oferecido
pela Justia da Infncia e da Juventude preferencialmente com apoio dos tcnicos respons-
veis pela execuo da poltica municipal de garantia do direito convivncia familiar, que
inclua preparao psicolgica, orientao e estmulo adoo inter-racial, de crianas maio-
res ou de adolescentes, com necessidades especficas de sade ou com deficincias e de gru-
pos de irmos.
20
ECA, art. 197-C, 2: Sempre que possvel e recomendvel, a etapa obrigatria da prepara-
o referida no 1 deste artigo incluir o contato com crianas e adolescentes em regime de
acolhimento familiar ou institucional em condies de serem adotados, a ser realizado sob a
orientao, superviso e avaliao da equipe tcnica da Justia da Infncia e da Juventude,
com o apoio dos tcnicos responsveis pelo programa de acolhimento familiar ou institucio-
nal e pela execuo da poltica municipal de garantia do direito convivncia familiar.
21
ECA, art. 50, 4: Sempre que possvel e recomendvel, a preparao referida no 3 deste
artigo incluir o contato com crianas e adolescentes em acolhimento familiar ou institucio-
nal em condies de serem adotados, a ser realizado sob a orientao, superviso e avaliao
mais vulnerveis, pois ningum os quer, eles no podem almejar ser
adotados por quem os visita. E, por mais que algum que se apaixone
por algum deles, no poder adot-lo, pois nem est cadastrado e vai
precisar submeter-se ao seu lugar na fila.
Concludas todas estas etapas, o juiz determina as diligncias
solicitadas pelo Ministrio Pblico. Caso ache conveniente pode desig-
nar audincia de instruo e julgamento para, finalmente, deferir a
habilitao.22
S depois de tudo isso o candidato inscrito no cadastro, pro-
cedimento que chega a demorar dois anos. Depois disso, aguarda ser
convocado.23 A habilitao tem validade por dois anos. Caso no ocorra
a adoo neste perodo o que o mais comum necessrio come-
ar tudo de novo.
Claro que todas as pessoas idealizam os filhos que desejam ter.
As mulheres, desde quando brincavam de bonecas. Por isso elegem um
perfil que corresponda aos sonhos da maternidade. Da a preferncia
por bebs ou crianas de pouca idade. Os candidatos so proibidos de
visitar as instituies de acolhimento, nem para fazer trabalho volun-
trio. No podem nem ao menos se candidatar ao programa chamado
Apadrinhamento Afetivo.
Como no tm a chance de conhecer as crianas, nem por meio
de foto ou vdeo, as que so maiores, pretas, pardas ou com algum
tipo de deficincia fsica ou mental, no tm a oportunidade de cati-
var algum. Afinal, ningum adota uma criana com alguma espcie
de limitao se no a tiver conhecido. Tambm no tero a chance de
mudarem o perfil eleito. E o jeito esperar. A busca feita de maneira
extremamente restritiva. Por exemplo, se algum indica que aceita
uma criana at os cinco anos de idade, se ela tiver cinco anos e um
ms, no entra na seleo.
Os candidatos no tm chance de conhecer, sequer ver uma foto
ou um vdeo das crianas que podem adotar. A escolha feita pelos
da equipe tcnica da Justia da Infncia e da Juventude, com apoio dos tcnicos responsveis
pelo programa de acolhimento e pela execuo da poltica municipal de garantia do direito
convivncia familiar.
22
ECA, art. 197-D: Certificada nos autos a concluso da participao no programa referido no
art. 197-C desta Lei, a autoridade judiciria, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, decidir
acerca das diligncias requeridas pelo Ministrio Pblico e determinar a juntada do estudo
psicossocial, designando, conforme o caso, audincia de instruo e julgamento. Pargrafo
nico.Caso no sejam requeridas diligncias, ou sendo essas indeferidas, a autoridade judici-
ria determinar a juntada do estudo psicossocial, abrindo a seguir vista dos autos ao Minis-
trio Pblico, por 5 (cinco) dias, decidindo em igual prazo.
23
ECA, art. 197-E: Deferida a habilitao, o postulante ser inscrito nos cadastros referidos no
art. 50 desta Lei, sendo a sua convocao para a adoo feita de acordo com ordem cronol-
gica de habilitao e conforme a disponibilidade de crianas ou adolescentes adotveis.
tcnicos e acaba acontecendo o que se chama de um encontro s escu-
ras. Normalmente, passam-se anos at que os futuros pais recebam
uma ligao informando que foi encontrada uma criana, que corres-
ponde ao perfil eleito. Durante este perodo, as pessoas procuram com-
pensar a frustrao, dedicando-se a outras coisas. Voltam aos estudos,
mudam de residncia, adotam um cachorro etc. E, quando so conta-
tadas, por ter sido encontrada a criana que desejavam, o desejo pela
adoo s vezes j desapareceu. Da o nmero significativo de devolu-
o de crianas.
Apesar de toda esta rigidez quase militar para atender ao melhor
interesse da criana, a lei admite excees.24 Autoriza a adoo por
candidato no habilitado,25 se comprovado o preenchimento de alguns
requisitos adoo.26 Entre estas excees est o pedido formulado
por parente ou por quem detm a tutela ou a guarda legal de criana
com mais de trs anos de idade, desde que comprovado vnculo de afi-
nidade e afetividade.
No entanto, o conceito de famlia e parentesco no mais est
atrelado ao vnculo de consanguinidade, mas ao da afetividade, tanto
que tem prevalncia a filiao socioafetiva filiao biolgica. Assim,
nada justifica o verdadeiro crime que cometem promotores ao reque-
rer e juzes deferirem a busca e apreenso e a retirada compulsria
de crianas de seus lares, do seio da nica famlia que conhecem, dos
pais que a cuidaram desde sempre.
Sequer feito, como deveria, um estudo social, para verificar
a existncia de vnculo de afetividade e afinidade e identificar o que
atende o seu melhor interesse.
A finalidade desta medida extrema punir eventual erro da me
que no teve chance de fazer com que sua vontade fosse respeitada,
quer quando engravidou, quer quando desejou entregar o filho ado-
o e encontrou resistncia de toda a ordem. Contudo, quem acaba
sendo punido o seu filho. Ele que foi rejeitado pela me, pela famlia
natural e extensa, no pode ser adotado por quem o acolheu. E, quando
24
ECA, art. 197-E, 1: A ordem cronolgica das habilitaes somente poder deixar de ser
observada pela autoridade judiciria nas hipteses previstas no 13 do art. 50 desta Lei,
quando comprovado ser essa a melhor soluo no interesse do adotando.
25
ECA, art. 50, 13: Somente poder ser deferida adoo em favor de candidato domiciliado
no Brasil no cadastrado previamente nos termos desta Lei quando: I se tratar de pedido de
adoo unilateral;II for formulada por parente com o qual a criana ou adolescente mante-
nha vnculos de afinidade e afetividade; III oriundo o pedido de quem detm a tutela ou
guarda legal de criana maior de 3 (trs) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de
convivncia comprove a fixao de laos de afinidade e afetividade, e no seja constatada a
ocorrncia de m-f ou qualquer das situaes previstas nos arts. 237 ou 238 desta Lei.
26
ECA, art. 50, 14: Nas hipteses previstas no 13 deste artigo, o candidato dever compro-
var, no curso do procedimento, que preenche os requisitos necessrios adoo, conforme
previsto nesta Lei.
encontra um lar para chamar de seu, de l arrancado e encarcerado
em um abrigo para dar cumprimento lei que no a protege.
Do jeito que est, quem deveria receber do Estado especial aten-
o com prioridade absoluta acaba alvo de sucessivas rejeies e per-
das. O Estado no consegue reconhecer que a adoo a melhor opo.
7O DILEMA ENTRE ADOO E REPRODUO ASSISTIDA
Em face dos enormes percalos impostos adoo, quem deseja

ter filhos, ao invs de se sujeitarem a anos de espera, est fazendo uso
das modernas tcnicas de reproduo assistida. Esta a soluo que
vem sendo encontrada por quem s deseja concretizar o sonho de ter
uma famlia com filhos. Eles simplesmente esto gestando os filhos.
O documentrio da HBO denominado Google Baby estarre-
cedor. Mostra a existncia de uma verdadeira indstria que comercia-
liza fertilizaes. Os procedimentos vm sendo utilizados com enorme
desenvoltura. Os candidatos escolhem via internet a mulher que se
dispe a vender seus vulos. Ela se submete a um tratamento que mul-
tiplica o nmero de vulos, que so extrados, congelados e transpor-
tados para que a inseminao seja feita no pas onde os contratantes
residem. Depois da fecundao, o embrio levado para a ndia, onde o
procedimento permitido e os custos so baixos. Implantado em mes
gestacionais, elas ficam confinadas durante a gravidez. Aps o nasci-
mento, o filho entregue a quem contratou o servio, que o registra
em seu nome.
Apesar de esta ser uma prtica legtima, tem um efeito assus-
tador, pois impede que as crianas abandonadaa, que se encontram
espalhadas pelo mundo, tenham a chance de conseguir uma famlia.
Quem sabe acabam perdendo a nica chance de sobreviver.
A realidade brasileira no diferente. A lei no probe, mas tam-
bm no admite de forma expressa a adoo por casais homoafetivos,
No entanto, o Conselho Federal de Medicina assegura o uso das tcni-
cas de reproduo assistida aos homossexuais.27 Assim, em vez de se
submeterem a frustradas tentativas de conseguirem adotar, os homos-
sexuais esto fazendo uso dessas tcnicas reprodutivas.
Crianas s querem ter um lar, algum para chamar de pai, de
me. No podem esperar pelo Estado que, em ao invs de cuid-las, as
desprotege, deixando-as anos encarceradas em abrigos. De outro lado,
tambm impe dolorosos anos de espera a quem s tem amor para dar.
Resoluo n. 1.221/2015.
27
Pelo jeito, todos os agentes pblicos esquecem o dever de cum-
prir o preceito constitucional de dar proteo especial, com absoluta
prioridade, a crianas e adolescentes. E, se o caminho da adoo
obstaculizado, sobra um contingente de futuros cidados a quem
negado o direito convivncia familiar.
Est na hora de acabar, em nome da Justia, de se cometer tantas
injustias!
COMO AS PERCIAS PSICOLGICAS PODEM AJUDAR OS
PROCESSOS JUDICIAIS. O CDIGO DE PROCESSO CIVIL 2015
Evani Zambon Marques da Silva
Mestra e Doutora em Psicologia Clnica pela Pontifcia

Universidade Catlica de So Paulo. Professora de Psicologia Judiciria
na Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Chefe do Setor de
Psicologia das Varas da Famlia do Frum Joo Mendes TJSP.
Sumrio: 1. Introduo. 2. A histria como pano de fundo.

3. A confeco do pano atual. 4. A tessitura de um novo
pano O Novo Cdigo de Processo Civil. 5. Concluindo a
confeco do pano. 6. Referncias.
1INTRODUO
O X Congresso Brasileiro de Direito de Famlia, ocorrido em

outubro de 2015 em Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais,
teve como tema geral Famlias Nossas de Cada Dia. Entre os diver-
sos painis apresentados, tivemos a honra de integrar o de nmero 18
denominado (Des)alienando a parentalidade.
As explanaes orbitaram em torno da temtica da parentali-
dade, suas novas formas, a possibilidade dela ser alienada e a maneira
como as percias podem auxiliar nos processos judiciais.
Tais questes foram elencadas e debatidas no apenas sobre a
ordem interna, estrutural e dinmica da famlia, mas tambm con-
siderando alguns aspectos psicossociais que incidem sobre ela. Bus-
cou-se ainda a indicao de pontos para reflexo em face da Lei n.
13.105/2015, que disciplina o novo Cdigo de Processo Civil brasileiro,
o qual, entre outras inovaes, trar a valorizao da cooperao em
diversos contextos.
Certamente, em funo de nossa experincia de 25 anos como
Psicloga do Tribunal de Justia de So Paulo, atuando com avalia-
es psicolgicas de cunho pericial, determinadas em aes judiciais
que tramitam nas 12 Varas de Famlia do Frum Joo Mendes (tambm
conhecido como Frum Civil Central de So Paulo), fomos convidadas
a discorrer sobre como as percias psicolgicas e sociais podem ajudar
nos processos, principalmente em face do novo Cdigo de Processo
Civil.
O assunto amplo, complexo e traz um necessrio enfrenta-
mento a todos os profissionais que militam nesse importante campo
que o Direito de Famlia. Na rea da Psicologia, apesar de no ser
recente a participao do profissional da rea da sade mental nos tri-
bunais brasileiros e internacionais, podemos dizer que ainda nova a
sistematizao dos trabalhos que so voltados especificamente para
essa esfera de atuao.
Sabemos que as famlias em conflito so estudadas por vrias
escolas do conhecimento, so usualmente debatidas e tambm orga-
nizadas pelas diferentes correntes tericas existentes. No entanto, o
que pretendemos apresentar so elementos pertencentes atuao do
psiclogo no campo pericial, trazendo aspectos sobre as famlias que
judicializam seus problemas e as possibilidades de contribuio da Psi-
cologia em relao s determinaes judiciais para percias psicosso-
ciais nas Varas de Famlia.
2A HISTRIA COMO PANO DE FUNDO
Desde 1985, data do primeiro concurso pblico aberto para essa

finalidade, o Tribunal de Justia de So Paulo (TJSP) conta com psiclo-
gos em seus quadros funcionais, distribudos nos diferentes espaos de
trabalho que so, na atualidade, Infncia e Juventude, Famlia e Suces-
ses, Idosos e Violncia Domstica. Cada local conta com uma espe-
cificidade de trabalho e na maior parte dos fruns do Estado de So
Paulo h acmulo de funes, ou seja, os psiclogos atuantes em um
local de trabalho assumem tambm outros, como por exemplo, o que
mais usual o psiclogo atuante nas Varas de Infncia e Juventude
atuar tambm nos casos oriundos das Varas de Famlia.
Isso remete-nos de pronto a diversos questionamentos, pois o
trabalho precpuo do psiclogo que atende as demandas das Varas de
Famlia avaliar ou, em sntese, realizar um psicodiagnstico, tendo
como cliente a demanda do juiz, muitos profissionais passam a trans-
por o modelo de trabalho realizado nas Varas de Infncia e Juventude
para as avaliaes dos casos das Varas de Famlia. Alm disso, h aque-
les que simplesmente transferem o raciocnio e/ou modelo clnico para
o trabalho determinado. O que consideramos uma severa inadequao,
conforme tambm pensam autores como Castro (2013); Rovinski (2009)
e Fonseca (2006) s para citarmos alguns.
Ocorre que a formao em Psicologia Jurdica (ou forense ou
judiciria) s recentemente integra a grade curricular dos cursos
oferecidos pelas inmeras faculdades de Psicologia do pas e, em mui-
tos, ainda como disciplina opcional e no obrigatria. Em Silva (2013), j
abordamos o assunto, esclarecendo que diversas instituies de ensino
superior oferecem disciplinas que tangenciam o assunto da Psicolo-
gia Jurdica, mas deixam ainda um hiato para que os alunos conheam
e ampliem sua formao, inclusive sobre cidadania, tica e assuntos
especficos que atravessam a subjetividade dos indivduos no mundo
atual, que judicializa e que institucionaliza muitos de seus problemas.
Apesar de constituir senso comum o necessrio conhecimento
do universo em que se trabalha, muitos profissionais isolam-se em face
da invencvel presso pela produtividade diria; protegem-se emocio-
nal e intelectualmente das inmeras e complexas demandas recebidas,
focando-se nica e exclusivamente no indivduo que est a sua frente.
Isso certamente se constitui num equvoco, isolando o psiclogo atu-
ante nos tribunais dentro do seu saber cientfico e por vezes reduzindo
a(s) chance(s) de se edificarem espaos para a discusso/reflexo do
papel da Psicologia nessa instituio. Nossos clientes so: os indivduos
e famlias que esto a nossa frente, os juzes que nos encaminharam
suas dvidas e questionamentos, e a prpria instituio, que recep-
ciona e cuida de alguma forma dessa clientela que busca solues e
sadas para a problemtica vivenciada. A eles devemos direcionar nosso
trabalho, promoo da sade mental e s proposies para futuras
alteraes que, na prtica, visam melhoria da qualidade de vida dos
indivduos, a integrao em uma cultura de paz e o rumo para o melhor
interesse da prole de forma geral.
A atuao do psiclogo nas Varas de Famlia atualmente objeto
de estudos e pesquisas diversas, entre as quais citamos Bernardi
(2005), Castro (2013), Lago (2008), Lima (1998), Maciel (2002), Martins
(1999), Miranda Jr. (2009), Silva (2005), Ortiz (2012), Rovinski (2004),
Santos (2013), Silva (2013), entre outros. O espao de trabalho vem
demonstrando grande interesse no s dos profissionais que atuam
diretamente com as percias como tambm para aqueles que na busca
de um objeto de pesquisa vislumbram na Psicologia Jurdica praticada
nas Varas da Famlia dos tribunais brasileiros um terreno frtil e ainda
pouco explorado para anlise.
Segundo Fonseca, a psicologia que praticada dentro dos tri-
bunais no deve se esgotar em conhecimentos da rea clnica. Destaca
que o beneficirio do trabalho psicolgico realizado nos tribunais
o juiz, a instituio e diversos outros rgos do sistema de justia, o
que demanda uma postura diferente daquela mantida pelo psiclogo
clnico.
[...] enquanto a relao entre o paciente e o psiclogo clnico se
caracteriza por uma atitude de empatia, compreenso e ajuda do
psiclogo que tem como objetivo diminuir o sofrimento ou mal
estar do paciente, no caso do psiclogo forense espera-se deste
uma atitude mais objectiva, mais neutra ou afectivamente despren-
dida, que contribua para o apuramento dos danos (causados ou
sofridos), para a determinao de responsabilidades ou para uma
avaliao rigorosa de capacidades ou incapacidades do arguido (ou
das vtimas).1
E ainda, a atuao nas Varas de Famlia traz tambm a necessi-

dade de o psiclogo ter noo que nem sempre as pessoas esto dis-
postas a colaborar na avaliao. A falta de motivao para colaborar e
a falta de credibilidade do testemunho dos clientes constitui um dos
maiores desafios que se colocam ao psiclogo forense.2
Hoje, aps um percurso de mais de trs dcadas da cincia psi-
colgica imbricada nas Varas de Famlia dos tribunais brasileiros,
diversos autores mencionam a importncia de o psiclogo conhecer o
sistema jurdico nacional, ainda que minimamente, com suas interpre-
taes, legislaes, atores diversos e porque no dizer, alcances e limi-
tes de auxlio e interveno. Nesse sentido, as informaes prestadas
por um psiclogo que atua no tribunal devem ser claras e passveis de
compreenso pelas mais diferentes instncias que constituem o pro-
cesso propriamente dito.
Assim, como assinalam Fonseca (2006), Silva e Rovinski (2012)
e Castro (2013), tambm sustentamos que a atuao do psiclogo
nas Varas de Famlia no deve ser apenas uma mera transposio do
conhecimento clnico, sob pena de reduzirmos o entendimento de ver-
dadeiras situaes de risco e vulnerabilidade que se apresentam mis-
turadas aos litgios familiares. Alm disso, pode incorrer o profissional
em inadequaes ticas e legais, as quais so impostas pelo prprio
contexto da avaliao em contexto forense. Segundo Melton e outros
(2007), a prtica forense requer conhecimentos e competncias mais
especializados do que os fornecidos no treino geral para os profissio-
nais de sade mental.
Discorremos em outro trabalho que, a despeito da adaptao da
Psicologia lgica e funcionamento dos tribunais, cabe a estes profis-
sionais no s levar aos autos a subjetividade das partes envolvidas nos
processos, como propor aes de interveno que possam dar conta
dos diferentes aspectos do conflito para minimiz-lo.
1
FONSECA, Antonio Castro et al. (Org.). Psicologia Forense: uma breve introduo. Lisboa:
Almedina, 2006, p. 8.
2
FONSECA, Antonio Castro et al. (Org.). Psicologia Forense: uma breve introduo. Lisboa:
Almedina, 2006, p. 9.
Todas estas atividades exigem do psiclogo uma adaptao de suas
tcnicas realidade forense, sem, contudo, descaracterizar os
aspectos ticos e tcnicos de sua atividade profissional. Ainda que o
psiclogo forense possa ter na base de sua atuao uma compreen-
so clnica dos sujeitos atendidos, precisa incluir em sua prtica os
aspectos da dinmica judicial, de forma a que seus achados possam
realmente auxiliar os agentes jurdicos numa melhor prtica da jus-
tia e, em ltima instncia, trazer benefcios ao prprio usurio do
sistema.3
3A CONFECO DO PANO ATUAL
A vivncia nas Varas de Famlia enquanto psicloga nos fez

desenvolver algumas prticas que em parte esto sendo sistematizadas
no cotidiano da equipe que, orgulhosamente, integramos, visto ser a
primeira e infelizmente ainda a nica a poder se dedicar com exclusivi-
dade aos processos oriundos das Varas de Famlia do frum central de
So Paulo (Frum Joo Mendes Jnior).
Em funo do nmero elevado de casos, forosamente fomos
levados enquanto equipe organizao de algumas prticas que, ao
final, conferem agilizao e transparncia a todo trabalho realizado
por seus integrantes.
S para termos uma ideia da dimenso, no ano de 2013 foram
realizados pela equipe do Setor de Psicologia das Varas da Famlia do
frum central da capital, uma mdia de 60 estudos periciais, e em 2015,
at o ms de outubro, foram apurados uma mdia de 200 estudos peri-
ciais. Tal aumento se deve no s ampliao da demanda, mas tam-
bm a um ligeiro aumento do nmero de componentes da equipe.
Essa aferio numrica realizada por meio de instrumento
prprio e seus dados so lanados mensalmente pelos componentes
da equipe em planilhas padronizadas pelo Setor de Psicologia. Alm do
nmero de laudos realizados, apuram-se tambm casos que entraram
em acordo, nmero de entrevistas, posio do atendimento naquele
ms (incio, meio ou fim do estudo, alm de algum tipo de travamento
que impede a realizao do trabalho). O material, de uso especfico do
Setor, serve para formatar as estatsticas anuais que so entregues na
correio ordinria anual.
Outro fator fundamental para a agilizao dos estudos foi a
informatizao dos processos, que conferiu maior rapidez para a pas-
sagem de autos, insero de peas e convocaes diversas s partes.
Hoje, aps a audincia judicial, por exemplo, quando h determinao
SILVA, Evani Z. M. da; ROVINSKI, Sonia L. R. A famlia no Judicirio. In: BAPTISTA, M.; THEO-
3
DORO, M. (Orgs.). Psicologia de famlia. Porto Alegre: Artmed, 2012, p. 210.
de estudo psicolgico pelo juiz do feito, no mesmo dia, via de regra, o
processo chega ao Setor para leitura e tomada de providncias para
seu incio.
Se por um lado lidamos com a presso do tempo para a finaliza-
o dos estudos, por outro, temos que dar a devida ateno delica-
deza do drama familiar que se encontra invariavelmente a nossa frente.
O chamado labirinto de mgoas, como designa o psiquiatra portugus
Daniel Sampaio em seu livro do mesmo nome,4 envolve sobremaneira
o profissional que necessita ter a empatia necessria para o entendi-
mento e explorao devida da problemtica do caso, mas, ao mesmo
tempo, a lucidez e a habilidade tcnica condizentes para se afastar e
avaliar a dinmica litigiosa diante da qual se encontra.
O Conselho Federal de Psicologia, no ano de 2010, ofereceu
categoria de profissionais psiclogos que militam na rea atinente s
Varas de Famlia um documento, denominado Referncias Tcnicas
para atuao do Psiclogo em Varas de Famlia.5 O texto busca ofere-
cer subsdios aos psiclogos que atuam nesse campo e queles que no
possuem vnculo empregatcio no Poder Judicirio, mas emitem pare-
ceres que so anexados a processos, desenvolvendo prticas relativas
Psicologia Jurdica. O material, no entendimento do rgo federal,
seria pautado nos princpios ticos e polticos norteadores do trabalho
dos psiclogos, e possibilitam a elaborao de parmetros comparti-
lhados e legitimados pela participao crtica e reflexiva da categoria.6
Foi aberta uma consulta pblica, nos Conselhos Regionais de Psi-
cologia, para que os profissionais tecessem consideraes sobre o con-
tedo do documento. A equipe paulista, pioneira na atuao nas Varas
de Famlia e, diga-se de passagem, a mais antiga que milita no pas,
manifestou-se elaborando material prprio, cuja relevncia motivou,
no ano de 2010, um evento no Conselho Regional de Psicologia 6
Regio (SP). As consideraes tecidas integram documento individua-
lizado, no publicado, porm protocolado (no CRP 6 Regio SP) em
funo da chamada pblica que foi realizada.
Outro material importante que serve como guia para que o psi-
clogo possa embasar sua atuao nas Varas de Famlia o denominado
Gua de Buenas Prcticas para Elaboracin de Informes Psicolgicos
4
SAMPAIO, Daniel. Labirinto de mgoas. As crises do casamento e como enfrent-las. Portu-
gal: Caminho, 2012.
5
Disponvel em: <http://site.cfp.org.br/publicacoes/relatorios-e-cartilhas/>. Acesso em: 9
dez. 2015.
6
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Referncias Tcnicas para atuao do Psiclogo em
Varas de Famlia. Braslia: CFP, 2010.
Periciales sobre Custdia y Regimen de Visitas de Menores,7 do Colgio
Oficial de Psiclogos de Madrid, elaborado em 2009 e que se prope: a)
servir de guia, estabelecendo critrios de qualidade para os profissio-
nais da Psicologia; b) orientar os juzes sobre os critrios de qualidade
dos informes periciais, de maneira que sua demanda de assessora-
mento possa alinhar-se de maneira mais adequada; c) servir de fonte
de informao aos diferentes atores implicados no processo de separa-
o ou divrcio, apontando elementos que clarifiquem o que puderem
[...]; d) contribuir a uma tomada de decises mais homognea por parte
das comisses deontolgicas; e) constituir um instrumento til para a
formao de profissionais no mbito pericial (traduo da autora).
De modo geral, frisamos que o Brasil ainda est distante da ela-
borao de protocolos de atendimentos e avaliaes psicolgicas como
os existentes em diversos pases estrangeiros. Os chamados guidelines,
existentes na rea da Psicologia e tambm em muitas outras profis-
ses, assinalariam ao psiclogo a pertinncia de determinadas avalia-
es visando o alcance de resultados; isso poderia melhor assegurar o
profissional na emisso dos pareceres.
Por fugir ao escopo do presente texto, deixamos de citar tais
materiais registrando apenas que a falta de padres mais uniformi-
zados de avaliaes psicolgicas periciais nas aes envolvendo, por
exemplo, disputas de guarda de filhos, regulamentaes de visitas,
questes de vulnerabilidade e risco; existncia ou no de prticas abu-
sivas (fsicas, sexuais e/ou morais), provocam elevados nveis de varia-
bilidade e tambm de subjetivismos, na conduo dos trabalhos e
sugestes propostas.
No se trata de engessarmos as avaliaes dentro de padres
rgidos submetidos a pontuaes, deixando muito claro aqui nosso
respeito ao livre arbtrio que os profissionais devem ter assegurados
na realizao das avaliaes, mas, sim, apresentar a possibilidade da
construo de materiais de referncia que pudessem estar um tanto
mais isentos da prpria subjetividade de interpretao do profissional.
Temos claro que o assunto demanda a realizao de diversas
pesquisas e de um universo de profissionais que pudessem se dedicar a
essa sistematizao com afinco e seriedade.
7

Disponvel em: <http://www.copmadrid.org/webcopm/recursos/guiadebuenaspracti-
casA4.pmd.pdf > Acesso em:5dez. 2015.
4A TESSITURA DE UM NOVO PANO O NOVO CDIGO DE PROCESSO
CIVIL
As avaliaes de guarda de filhos so extremamente complexas

e provavelmente so as avaliaes forenses mais difceis de realizar
devido ao conhecimento exigido e sua natureza de juzo de valor.
Na mesma esteira, podemos refletir sobre a dificuldade que
existe nos tempos atuais para chegarmos a uma definio de fam-
lia. As cincias humanas deparam-se com isso, assistindo discusses
sobre parentalidade, multiplicidade de relacionamentos, conjugalida-
des construdas e destrudas rapidamente, divrcios sucessivos, alm
de conceitos que brotam to facilmente como as prprias alteraes
da famlia. Assim, famlias recombinadas, recompostas, mosaico, reca-
sadas, reconstitudas, recasadas, misturadas, refeitas, reorganizadas,
reestruturadas e com diversos outros nomes apresentam-se como
adjetivos colocados diante da famlia que acaba por mostrar um movi-
mento paradoxal, qual seja, o dos indivduos continuarem a se casar, a
se separarem e novamente se casarem, num movimento muitas vezes
contnuo e perseverante.
Hoje, necessitamos desconstruir o conceito de casamento atre-
lado a uma famlia e ampli-lo de modo a abarcar as novas formas e os
novos arranjos da convivncia; necessrio um redimensionamento de
seus limites e uma abertura para o surgimento de novas dinmicas nos
vnculos estabelecidos entre seus membros.
Segundo Groeninga (2015), no cabe sermos indiferentes quanto
s diferenas, sendo necessrio tratarmos com muito cuidado as ques-
tes familiares para no imprimirmos juzos de valor e ideologias para
formas diversas que no so nem piores, nem melhores, mas apenas
outros modos e, por vezes, mais trabalhosos.8
Por consequncia, ns temos um universo cada vez mais com-
plexo para analisarmos nas percias psicolgicas determinadas nas
Varas de Famlia, vez que muitas vezes nem os prprios protagonis-
tas das discusses conseguem entender o que desejam, o que espe-
ram e para onde pretendem rumar com todo aquele conflito travado
judicialmente.
Nos casos por ns atendidos, os quais j se submetem na maior
parte das vezes a uma audincia no Setor de Conciliao instalado no
Frum Joo Mendes Jr. (SP) oferecida pelo magistrado antes da deter-
minao da percia, temos presenciado grande animosidade e disfun-
cionalidade nas relaes.
8
Disponvel em: < http://www.conjur.com.br/2015-mai-24/processo-familiar-latente-dis-
cussoes-respeito-guarda-filhos-alienacao-parental>. Acesso em: 5 dez. 2015.
Os filhos so apresentados de forma a j terem se submetido a
um rol de violncias, derivadas de uma conjugalidade mal-acabada, um
luto ainda por ser feito ou mesmo pela continuidade quase patolgica
que permanece conduzindo a animosidade ainda que distncia. A
destruio do(s) outros dentro dele(s) uma realidade que aparece tra-
vestida com diversas roupagens.
Sem pretendermos aqui entrarmos no mago das discusses que
so travadas entre as partes por ns avaliadas, preocupa-nos sobrema-
neira algumas inovaes trazidas pelo novo Cdigo de Processo Civil
(Lei n. 13.105/2015).
Por no possuirmos qualquer formao jurdica, nosso enten-
dimento sobre leis pequeno, o que justifica a ausncia de interpre-
taes ou ilaes que devero ser explanadas pelos prprios juristas.
No entanto, pela necessria atualizao dos itens do diploma legal que
est por vir e que mencionam nosso trabalho pericial, apresentamos
aqui algumas consideraes, as quais so relativas exclusivamente
rea psicolgica.
Partimos ento da seguinte definio de percia:
A percia um meio de prova que pressupe que a matria sobre

a qual recai o objeto de conhecimento do magistrado seja tcnica,
isto , que se trate de matria que, para sua perfeita e adequada
compreenso, exige conhecimentos especializados que o magis-
trado no possui ou no domina.9
Uma das novidades trazidas pelo novo CPC consiste na men-

o a uma prova tcnica simplificada (art.464, 2) definindo logo
frente que a prova tcnica simplificada consistir apenas na inquiri-
o de especialista pelo juiz, sobre ponto controvertido da causa que
demande especial conhecimento cientfico ou tcnico (art. 464, 3).
Ora, muito nos inquieta a expresso prova tcnica simplificada,
vez que entendemos que qualquer questo envolvendo crianas e ado-
lescentes, bem como a anlise de seu superior interesse no pode ser
chamada de simplificada, correndo-se o risco de novamente passar-
mos a tratar a situao desses indivduos com o rano advindo de sua
condio de menor importncia, que tanto assolou nossa sociedade at
a promulgao do Estatuto da Criana e do Adolescente em 1990.
O prprio perito, no caso o psiclogo que recebe a determinao
para o estudo pericial, que dever avaliar se ir tratar de uma situ-
ao em que poder ser aplicada uma avaliao mais sucinta ou como
9
SCARPINELLA BUENO, Cassio. Manual de direito processual civil. So Paulo: Saraiva, 2015, p.
336.
se quer, simplificada. Nesse sentido, preciso frisar que muitas vezes
a situao que nos chega apenas aparentemente simples e de rpida
avaliao, embutindo, pois sua complexidade e dificuldade no desenro-
lar das entrevistas e demais mtodos de anlise para o entendimento.
O juiz de direito no possui condies, ainda que imbudo da melhor
inteno, de indicar se a prova a ser feita dever ser simplificada ou
no, correndo o risco de minimizar ou banalizar importantes aspectos
da situao-problema.
Os casos envolvendo crianas e adolescentes em meio aos lit-
gios conjugais esto muitas vezes envoltos em situaes de risco e vul-
nerabilidade, geralmente apresentados de forma mascarada, as quais
expem no s a prole, mas como a famlia em si a uma gama de mal-
dades e/ou aspectos mais doentios da personalidade e da dinmica
familiar instalada.
Assim, salientamos que no se pode tratar de maneira simplifi-
cada situaes de guarda e visitas, por exemplo, que trazem por vezes,
nem sempre de forma aparente, a implantao de falsas memrias,
negligncias, abusos diversos, atitudes alienadoras entre outras. Alm
disso, os prprios sentimentos dos filhos, muitas vezes sufocados em
meio ao litgio familiar, tm necessidade de ser acolhidos e interpreta-
dos corretamente, j que tambm podem lev-los degradao fsica e
emocional. A percia, ao ler e interpretar correta e pontualmente uma
situao, pode representar uma conscientizao (muitas vezes negada
ou ausente) dos riscos inerentes situao conflituosa.
Outro artigo que nos chama a ateno e costuma trazer emba-
raos cotidianos para a percia psicolgica est na possibilidade dos
assistentes das partes acompanharem as diligncias (art. 466, 2).
No raro surgem situaes delicadas com tais profissionais que tm
dificuldade ou mesmo desconhecem a necessidade de adaptarem a sua
rea de especializao ao diploma legal.
necessrio que o profissional cumpra seu encargo com o zelo
de um profissional srio e conhecedor da sua rea de especializao, o
que implica obviamente a cincia das Resolues do Conselho Federal
de Psicologia, em especial a de n. 017/2012, que dispe sobre a atua-
o do psiclogo como perito nos diversos contextos. Citamos abaixo
alguns artigos da respectiva legislao profissional:
Art. 1 A atuao do psiclogo como perito consiste em uma ava-

liao direcionada a responder demandas especficas, originada no
contexto pericial.
Art. 2 O Psiclogo Perito deve evitar qualquer tipo de interfe-
rncia durante a avaliao que possa prejudicar o princpio da
autonomia terico-tcnica e tico-profissional, e que possa cons-
tranger o periciando durante o atendimento.
Art. 3 Conforme a especificidade de cada situao, o trabalho
pericial poder contemplar observaes, entrevistas, visitas domi-
ciliares e institucionais, aplicao de testes psicolgicos, utiliza-
o de recursos ldicos e outros instrumentos, mtodos e tcnicas
reconhecidas pela cincia psicolgica, garantindo como princpio
fundamental o bem-estar de todos os sujeitos envolvidos.
Outra Resoluo importante do Conselho Federal de Psicologia

a de n. 08/2010, que dispe sobre a atuao do psiclogo como perito e
assistente tcnico no Poder Judicirio:
CAPTULO I
REALIZAO DA PERCIA
Art. 1 - O Psiclogo Perito e o psiclogo assistente tcnico devem
evitar qualquer tipo de interferncia durante a avaliao que possa
prejudicar o princpio da autonomia terico-tcnica e tico-profis-
sional, e que possa constranger o periciando durante o atendimento.
Art. 2 - O psiclogo assistente tcnico no deve estar presente
durante a realizao dos procedimentos metodolgicos que nor-
teiam o atendimento do psiclogo perito e vice-versa, para que no
haja interferncia na dinmica e qualidade do servio realizado.
Pargrafo nico - A relao entre os profissionais deve se pautar
no respeito e colaborao, cada qual exercendo suas competncias,
podendo o assistente tcnico formular quesitos ao psiclogo perito.
(Grifamos)
Assim, em obedincia ao Cdigo de Processo Civil e s Resolu-

es do Conselho Federal de Psicologia, temos oferecido um espao
para reunio prvia (data e horrios predefinidos e informados nos
autos) com os assistentes tcnicos das partes e/ou posterior coleta
de dados da percia, com o fito de apresentarmos minimamente nossas
hipteses, planejamento de trabalho e ao final, os resultados alcana-
dos. Esses encontros, obrigatoriamente so marcados na mesma data e
horrio com os assistentes de ambos os lados (quando houver), garan-
tindo assim a participao e acompanhamento dos trabalhos periciais
determinados pela lei, j que o perito (conforme art. 466, 2) deve
assegurar aos assistentes das partes o acesso e o acompanhamento
das diligncias e dos exames que realizar com antecedncia mnima de
5 (cinco) dias.
Tecnicamente, isso preserva as crianas e adolescentes que
sero objetos de anlises das percias e das avaliaes dos assisten-
tes das partes, de uma exposio demasiada s tcnicas, entrevistas
e outros mtodos que, certamente, podem lev-los a um stress com
consequente desestabilizao emocional. Tal condio, preciso dizer,
afetar sobremaneira o resultado de todos os trabalhos, causando vie-
ses importantes na interpretao dos dados coletados.
Ainda preciso mencionar que a despeito do novo diploma men-
cionar que os assistentes tcnicos so de confiana da parte e no
esto sujeitos a impedimento ou suspeio (art. 466, 1), a Resoluo
do Conselho Federal de Psicologia de n. 08/2010 clara ao indicar a
necessria preservao da intimidade das partes.
CAPTULO IV
O PSICLOGO QUE ATUA COMO PSICOTERAPEUTA DAS PARTES
Art. 10 - Com intuito de preservar o direito intimidade e equidade
de condies, vedado ao psiclogo que esteja atuando como psi-
coterapeuta das partes envolvidas em um litgio:
I - Atuar como perito ou assistente tcnico de pessoas atendidas
por ele e/ou de terceiros envolvidos na mesma situao litigiosa;
5CONCLUINDO A CONFECO DO PANO
O assunto sobre a participao da prova pericial no mbito da

Psicologia amplo e no se esgota neste texto.
Certa vez atendemos no mbito pericial uma criana de 6 anos
que, ao realizar o desenho da famlia, desenhou uma famlia de lixos,
com latas amassadas, papis sujos, cascas de banana e brinquedos
quebrados.
A percia no se ateve ao desenho isoladamente, como bvio,
mas, no desenrolar das entrevistas pode constatar com clareza que
no s circulavam muitos lixos emocionais na famlia, como tambm
ela prpria, uma criana, inocente e pura, estava ali, a servio de fun-
cionar como uma lata de lixo dos dejetos da famlia.
Como outros espaos no se apresentaram a essa famlia (psico-
terapias, mediao, ludoterapia, etc.) o espao pericial pode fazer uma
leitura que sensibilizou as partes para o tratamento. A sentena judicial
apoiada na cincia psicolgica pode valorizar a problemtica, incorpo-
rando tambm os aspectos emocionais da famlia.
Em relao ao exposto, e considerando a prtica e pesquisas rea-
lizadas na rea, apontamos de forma resumida o tipo de ajuda que as
percias psicolgicas podem dar aos processos judiciais, nos casos
claro, em que outras formas alternativas de resoluo dos conflitos no
puderam ser oferecidas ou no obtiveram o sucesso esperado.
As percias psicolgicas tm condies de:
a) apontar construes familiares prprias, despatologizando-as,

voltando-se para suas peculiaridades, sua importncia na formao e
desenvolvimento de cada membro da famlia; reconhecer diferenas;
b) entender e traduzir o que prtica e o que retrica; diferen-
ciar o que interesse genuno na prole ou na preservao das relaes
familiares do que o uso da alienao parental e seus subsequentes
mecanismos legais de proteo;
c) avaliar recursos emocionais e estruturas de comportamento
que podem incidir sobre a dinmica familiar;
d) buscar o resgate do(s) filho(s) perdidos em meio ao litgio,
dando-lhes voz;
e) diferenciar a propalada alienao parental da necessria pro-
teo integral da criana;
f) apontar riscos e vulnerabilidades da manuteno ou alterao
de determinados arranjos familiares individuais e/ou conjuntos;
g) buscar alternativas e apresent-las ao magistrado de forma
coerente, plausvel e que apontem ou incentivem, na medida do poss-
vel, o esforo necessrio para que a questo no seja mais judicializada;
h) valorizar e interpretar aspectos transgeracionais, rede fami-
liar, manuteno de segredos e lealdades que podem colaborar para
situaes danosas para a prole;
i) valorizar o empoderamento dos pais de forma conjunta, impul-

sionando, na medida do possvel, arranjos que valorizem a continui-
dade da parentalidade de forma compartilhada.
6REFERNCIAS
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FAMLIAS PLURALIZADAS. NOVA DOUTRINA
E EXPERINCIA JUDICIRIA 1
Jones Figueirdo Alves
Desembargador Decano do Tribunal de Justia de Pernambuco.
preciso que se diga, antes de mais nada, que tem sido constru-
da uma base conceitual de famlia, a exigir uma nova doutrina que dia-
logue a evoluo da famlia com o seu importante papel na sociedade
moderna.
No ser suficiente incorporar as novas entidades familiares,
pelo pluralismo existente de famlias, para que o conceito de famlia
seja integrado em suas desejadas concretude e completude; ou que se
estabelea um novo e mesmo fogo domstico da cl reunida, no bero
das origens, em uma ancestral associao religiosa de grupo.
O conceito de famlia est a receber importantes redesignaes,
como instituio em sua natureza social, e mesmo que no mais ela se
compreenda, apenas formada por uma nica origem, a do casamento,
pelo modelo tradicional, as dinmicas familiares apontam conceitos
emergentes, como a da famlia extensa ou famlia ampliada do art.
25 da Lei n. 8.069/1990 (Estatuto da Criana e do Adolescente), com a
redao dada pela Lei n. 12.010/2009 (Lei da Adoo) ou o da famlia
adesiva, tal como se extrai do art. 5, inciso II, da Lei n. 11.340/2006.
Em bom rigor, a Lei Maria da Penha trouxe consigo o primeiro
conceito legal de famlia, assinalando, naquele inciso, entender a fam-
lia compreendida como a comunidade formada por indivduos que so
ou se consideram aparentados, unidos por laos naturais, por afini-
dade ou por vontade expressa.
O elemento da vontade expressa o mais novo liame familiar-
-parental, no plano civil. Esse significante tem sua preciso finalstica,
definindo outros vnculos que no os meramente biolgicos. De efeito,
a famlia funcionalmente emoo. influncia comportamental, o
Texto resumido da palestra: Famlias Pluralizadas. Experincia judiciria e problematizao,

1
proferida no X Congresso Brasileiro de Direito de Famlia, tendo como tema central: Famlias
Nossas de Cada Dia, em painel 2: Direito das Famlias, Judicirio e internacionalidades, pro-
movido pelo Instituto Brasileiro de Direito de Famlia. Coordenadora do painel: Paula Giutti
Leite (MS). Demais participantes: Fabrcio Polido (MG) e Paulo Lins e Silva (RJ). Auditrio do
Hotel Ouro Minas em 22.10.2015, Belo Horizonte (MG).
desenvolvimento de cada um dos que a integram, tem o seu papel de
valores sociais e morais que baseiam a sociedade que temos.
O principal abrigo da famlia a sua realidade contempornea e
nela se confortam as transformaes culturais e sociais do tempo, para
reconhec-la em suas mutaes evolutivas, nos seus valores emergen-
tes, e por novas configuraes que a dimensionam em seu pluralismo e
variabilidades que desafiam permanentes reflexes jurdicas.
Uma concepo multifacetada de famlia, bem dizer, importa,
portanto, no estabelecimento de novas categorias jurdicas familistas,
que a prpria experincia judiciria e uma doutrina avanada conver-
gentes esto a conceber.
Estas novas categorias se apresentam, s expressas, como bons
exemplos, pela construo jurisdicional mais recente da:
(i) multiparentalidade concomitante ou sucessiva, sob o princ-
pio dominante da socioafetividade, que tem superado a clssica famlia
parental natural;
(ii) pelo reconhecimento jurdico das unies simultneas;
(iii) pela definio pretoriana do princpio da comunidade
familiar;
(iv) ou ainda, pelas denominadas famlias pluralizadas, em que se
perfaz a extenso familiar por admisso dos fatos da vida com uma sig-
nificao jurdica impostergvel, a exemplo das famlias mtuas ou do
novo instituto da adoo multiparental.
O tema que nos entregue para esse breve comunicado ibder-
mano sugere, portanto, por seu amplo espectro, que fique, aqui, obje-
tivado por uma viso sistmica, em que cada categoria jurdica seja
aferida pela mais recente jurisprudncia pontual a seu respeito e,
sobremodo, por algumas controvrsias ultimamente postas.
Sobre cada uma delas, como adiante trataremos, incide o seu
tratamento constitucionalizado, porquanto onde houver famlia,
entendida como tal, caber proteo especial do Estado, prevista e
consagrada no art. 226, caput, da Constituio Federal.
No mais um nico modelo de famlia, como base social, mas
famlias, distintas e autnomas, no contexto pluralista e diferenciado.
famlia parental, soma-se a famlia socioafetiva, o que pode implicar,
entre si, mutualidade e multiparentalidade, ou apenas a predominncia
de uma sobre a outra, no se verificando, na hiptese, a ocorrncia de
famlias pluralizadas.
Pois bem. O termo famlias pluralizadas, em primeiro eixo do
tema, destina-se, propriamente, para o seu sentido expansivo. Disso,
resulta uma pragmtica de observao eficiente quanto ao significado
do que seja comunidade familiar.
A comunidade familiar no est delineada em ncleos fechados,
alcanando sob a influncia da identidade afetiva pessoas outras que
estejam ligadas, iniludivelmente, a esse direito comunitrio, a exemplo
de irmos, tios e sobrinhos, proclama o STJ por 3 Turma, no REsp. n.
1405456-RJ, Relator: Ministra Nancy Andrighi, julgado em 03.06.2014
(DJe 18.06.2014).
Esse direito comunitrio de famlia ou o direito comunidade
familiar, oriundo do princpio geral de proteo da famlia, aponta que
a identidade familiar da pessoa alcana toda a comunidade dos mem-
bros a que ela pertena, no se resumindo, apenas, famlia nuclear
(pais e filhos).
no atinente legitimidade ativa para as demandas indenizat-
rias que mais se aperfeioa o princpio, e os avanos da jurisprudncia
apresentam essa diretiva comunitria de famlia. Cabem, aqui, serem
apontados dois importantes julgados, preceituando que:
(i) ascendentes e sua prole integram um ncleo inextinguvel
para fins de demanda indenizatria por morte, para alm do ncleo
familiar estrito, constitudo pela famlia imediata viva e filhos (STJ
REsp. 1.095.762-SP, j. em 21.02.2013);
(ii) Por analogia do que dispem os artigos 12 e 948 do Cdigo
Civil de 2002; art. 76 do Cdigo Civil de 1916; e art. 63 do Cdigo de
Processo Penal, com inspirao tambm no art. 1.829 do Cdigo Civil
de 2002, como regra que pode comportar excees diante de pecu-
liaridades de casos concretos , os legitimados para a propositura de
ao indenizatria em razo de morte de parentes so o cnjuge ou
companheiro(a), os descendentes, os ascendentes e os colaterais, de
forma no excludente e ressalvada a anlise de peculiaridades do caso
concreto que possam inserir sujeitos nessa cadeia de legitimao ou
dela excluir. ( (STJ 4 Turma, REsp. 1.291.845-RJ, Rel. Min. Luis Felipe
Salomo j. em 04.12.2014).
A questo aqui posta ganha maior relevo, sob os seguintes
enfoques:
(i) o direito comunidade familiar significa o pertencimento,
em nveis de protagonismo jurdico e afetivo, no plano da existncia
familiar. Pais e irmos (STJ REsp. 861.074-RJ), cnjuge e filhos, e por
extenso, outros inseridos na legitimao comunitria, todos podem
vivenciar a mesma dor da perda de membro da comunidade, assu-
mindo, portanto, os mesmos direitos indenizatrios;
(ii) a nova ordem jurdica estabeleceu a comunidade familiar, na
forma parental natural ou civil, e mais ainda, por vontade expressa,
na forma do art. 5, II, da Lei 11.340/2006, como antes referido, impli-
cando essa legitimao.
Cabe observar que, no Direito portugus, conforme assinala o
artigo 496 do seu Cdigo Civil por morte da vtima, o direito inde-
nizao por danos no patrimoniais cabe, em conjunto, ao cnjuge no
separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na
falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e por ltimo, aos irmos
e sobrinhos que os representem. Essa ordem de legitimidade ativa
indenizao, por graus e sucessiva, segue a da vocao hereditria.
No Direito brasileiro, no existe dispositivo semelhante, a tratar
da ordem de preferncia reparao civil pelo dano moral causado em
pessoa da famlia, preferindo uns ou excluindo outros.
Em ser assim, a legitimidade ativa para o pleito de condenaes
por danos morais em face de morte de ente querido alcana, para alm
do ncleo tpico familiar do modelo clssico, uns e outros da comuni-
dade familiar existente.
Por esse vis, a saber que a comunidade familiar se perfaz como
ncleo aberto e plural, por identidade afetiva dos que a integram, ine-
vitvel ser, com maior atualidade, confrontar o princpio comuni-
trio familiar diante das denominadas unies poliafetivas que, em
seu substrato, implica em uma comunidade constituda por vontade
expressa dos que aderem ao liame afetivo, formando um ncleo nico e
no famlias simultneas.
A propsito, efeitos familiares s unies concomitantes j tm
sido admitidos pela jurisprudncia mais recente, e o paradigma situa-se
em data de 09.04.2013, no julgado seguinte: o devedor, possuindo fam-
lias simultneas, no pode ter penhorados imveis seus que sirvam, em
respectivo, s suas famlias (STJ 3 Turma, REsp. n. 1.126.173-MG).
Segue-se, ento, foroso entender que a recente formalizao
de unio poliafetiva por escritura pblica, em 15 Ofcio de Notas da
cidade do Rio de Janeiro, na Barra da Tijuca, em outubro de 2015, por
um trio de mulheres, no pode deixar de ser reconhecida como comu-
nidade familiar estabelecida, nada obstante atpica. Suas repercusses
jurdicas so inegveis, quando ali dispostas em escritura as delibera-
es patrimoniais e as vitais e, sobremodo, o projeto parental de um
filho por reproduo assistida. A prpria estruturao psquica que a
orienta em seus fins a demonstra includa como comunidade familiar
que se arregimenta a tanto.
Nessa toada, impende, alis, considerar que o filho do trio polia-
fetivo agora constitudo em unio escritural poder ser havido como
biolgico, por gestao de uma delas; gentico, por entrega de vulo da
outra; e socioafetivo pela terceira, tudo a configurar fenmeno diverso
da multiparentalidade, nos exatos termos das construes jurispru-
denciais intercorrentes. De efeito, a configurao de comunidade
familiar no pode ser afastada.
Para alm disso, a recente Resoluo n. 2.121/2015 do Conselho
Federal de Medicina, de 24 de setembro ltimo, veio admitir a gesta-
o compartilhada por casais homoafetivos femininos, permitindo que
uma mulher possa transferir o embrio gerado a partir da fertilizao
de um vulo de sua parceira. Resta, da, concebido que uma terceira
pessoa, nesse projeto parental, colocar-se-ia, de forma iniludvel, como
genitora socioafetiva.
A propsito, a figura de filho de trs mes tem precedente na
Inglaterra, em 2005, o do menino Charlie, nascido do projeto parental
de Alex que, vtima de um cncer cervical e no podendo engravidar,
com a ajuda de duas irms obteve de uma, a gmea Charlote, os vulos
e da mais velha, Helen, o emprstimo do tero. Cada uma delas, nada
obstante as relaes fraternas, guarnecem consigo uma famlia plura-
lizada, pelos seus correspondentes papis contributivos de mes de um
mesmo filho.
Anota-se, ainda, deciso judicial indita da Justia brasileira, em
outubro de 2014, a permitir incluso em registro civil de nome de trs
mes de uma criana adotada. O juiz da Vara da Infncia e da Juven-
tude de Vitria da Conquista, Cludio Daltro, determinou em processo
de adoo que, alm do nome da me biolgica, constasse os nomes
das mes adotivas, que viviam em unio homoafetiva. Ela entregou
a filha s duas mulheres, com trs meses de vida, e permaneceu, ao
depois, com o direito de convvio, sem a ruptura do vnculo biolgico.
A hiptese encerra, em si mesma, a adoo multiparental, como
a mais nova e eloquente vertente da multiparentalidade que j recolhe,
por suas circunstncias jurdicas, o protagonismo das atuais famlias
pluralizadas.
O instituto da adoo multiparental sucedeu, entretanto, criado
pela jurisprudncia de piso, um ano antes. Pela primeira vez no pas,
uma deciso judicial admitiu acrescentar ao registro de nascimento de
menor adotado, o nome de seu genitor e de seus avs paternos, man-
tendo-se a paternidade adotiva e registral, com o acrscimo do patro-
nmico do pai biolgico.
A deciso foi proferida, em 01.10.2013, pelo Juiz de Direito Clicrio
Bezerra e Silva, da 1 Vara de Famlia do Recife, em Ao de Investigao
de Paternidade, em que a filha adotada, em expresso de sua identidade
gentica, com anuncia expressa dos pais adotivos e do prprio inves-
tigado, requereu o reconhecimento do vnculo biolgico para os fins de
admisso da multiparentalidade existente, quando as relaes de afe-
tividade reuniam todos eles. (Processo n. 0034634-20.2013.8.17.0001).
Como consabido, o instituto da adoo atribui a situao de
filho ao adotado (art. 1.626, CC), constituindo um vnculo parental civil,
na forma do que dispe o art. 1.593 do Cdigo Civil, por se tratar de
parentalidade decorrente de outra origem que no a natural resultante
da consanguinidade. Ocorre que, em seus efeitos jurdicos, carrega
consigo, ope legis, a ruptura instante de qualquer vnculo com os pais e
os parentes consanguneos (art. 1.626, 2 parte, CC).
Essa ruptura, a par de ocultar a realidade do vnculo gentico,
em malferimento a um direito constitucional da verdade da origem,
aponta na dissociao absoluta do adotado com a sua famlia biol-
gica, a coloc-la, assim, to distante quanto limitada ao seu ponto de
origem.
Recentemente, a legislao espanhola trouxe importante avano,
ao manter intacto o vnculo biolgico nos processos de adoo, opor-
tunizando no apenas o direito autodeterminao da origem gen-
tica, mas o fortalecimento afetivo daquele vnculo, na manifesta e mais
comum forma de multiparentalidade concomitante.
As duas decises judiciais antes mencionadas, introduzindo no
Direito de Famlia brasileiro o instituto da adoo multiparental, ser-
vem de referncia possibilidade da formao das famlias plurali-
zadas, na espcie, por esse dilogo de parentalidades que se somam,
biolgica e socioafetivamente.
Uma outra hiptese factvel para a adoo multiparental sucede
quando inexistente a filiao registral, j que desconhecido o pai bio-
lgico, por certo tempo, ou no ponto, desconhecendo o pai a exis-
tncia do seu filho, a tanto por isso mesmo no expressando a sua
concordncia com a adoo (art. 1.621 e 1, CC), venha ele, ao depois,
saber do fato; operando-se, como fato da vida, a multiparentalidade
concorrente.
Lado outro, em julgado tambm paradigma, admitiu-se, muito
alm dos limites da adoo conjunta apenas destinada a duas pessoas
que forem marido e mulher ou conviventes, como se pressupe do art.
1.622 do CC, a possibilidade de ser deferido pedido de adoo conjunta
a dois irmos, em face do infante (STJ 3 Turma, REsp. n. 1217415-RS, j.
em 19.06.2012), tudo mediante a interpretao ampliativa do art. 42,
2 do Estatuto da Criana e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990).
Tudo isso ensina e exercita uma pragmtica de afeto, que sina-
liza a verdadeira base das famlias atuais.
Certo que a famlia pluralizada, no referido alcance de sua
expanso, encontra hipteses outras, dentro da multiparentalidade
descrita pela doutrina, impe-se, anotar, um tema novo, o da eventual
multiparentalidade avoenga.
Anota-se, nesse sentido, uma ao contestatria de paternidade
movida pelo pai registral, que no tinha vnculo afetivo com o suposto
filho, e a reao divergente dos avs registrais, genitores daquele.
A 3 Turma do Superior Tribunal de Justia rejeitou o recurso no
qual pretendiam eles a manuteno da condio de avs socioafetivos,
quando ento decretada a negativa da paternidade, desconstituiu-se o
registro original para assinalar o pai biolgico verdadeiro.
Deixou o julgado do tribunal superior de legitimar o vnculo afe-
tivo avoengo, independente de sua origem, desprezando, no tema, a
possibilidade de uma multiparentalidade avoenga, quando os avs deti-
nham, iniludivelmente, o interesse jurdico e moral de tal pronuncia-
mento. Preferiu o tribunal quedar-se unicamente a incurses de ordem
processual. Em sntese, no mnimo uma desconstruo analgica do
1 do art. 1.595 do Cdigo Civil e a falta de uma doutrina jurdica mais
consistente a respeito.
Admitido que a importncia do afeto tem suas latitudes expan-
didas, pela jurisprudncia, em consubstanciao das multiparentalida-
des existentes, impe-se reconhecer a necessidade de novos avanos
da jurisdio.
Impende urgente cogitar sobre a multiparentalidade, no ape-
nas quando tem sido admitida em situaes pontuais, coexistindo a
parentalidade socioafetiva e a biolgica, em filiaes plurais. Situaes
outras, diferenciadas pelos fatos da vida, sugerem deva ser, igualmente,
recepcionada a multiparentalidade no nimo de suas multifacetadas
ocorrncias. De modo decisivo, a multiparentalidade a consolidao
da afetividade como princpio jurdico e, nesse ser assim, acentuam-se
as famlias pluralizadas, na concepo das parentalidades mltiplas.
A primeira evidncia de base situou-se com a Lei n. 11.924/2009,
colocando as figuras jurdicas do padrastio e do madrastio como equi-
valentes s paternidade e maternidade socioafetivas, a permitir a
insero por acrscimo dos patronmicos em composio dos nomes
dos enteados, na forma de pargrafo introduzido ao art. 57 da Lei n.
6.015/73.
Uma latitude maior ocorre quando no plano da prpria filiao
registral, ou seja, para alm do mero registro nominal do patronmico.
Em acrdo pioneiro da 1 Cmara de Direito Privado do Tribunal de
Justia de So Paulo, onde Relator o des. Alcides Leopoldo e Silva Jr.,
determinou-se constar do registro de um jovem, alm dos nomes de
seu pai biolgico e de sua me biolgica, o de sua madrasta como geni-
tora socioafetiva (AC 0006422-26.2011.8.26.0286; DJESP 11/10/2012).
Nesse caso, registra-se o primeiro reconhecimento jurdico da multi-
parentalidade na sua forma sucessiva, a saber que a me biolgica hou-
vera j falecido.
Induvidoso se torna admitir que a aplicao da Lei n. 11.924/2009,
de natureza registral, interimplica, por regra de experincia mxima,
em admisso de paternidade ou maternidade socioafetivas com o
reconhecimento ftico e voluntrio dessa relao parental, ditando a
existncia de uma famlia pluralizada que no mais se desconstituir,
mesmo que desfeita venha a ser a unio conjugal ou convivencial.
Tecnicamente, famlias pluralizadas no se confundem com
famlias simultneas, estas ltimas ditas paralelas e que se colocam
reconhecidas mediante a duplicidade de unies. Quer significar aque-
las um novo arranjo familiar, pelo crivo da mutualidade das relaes
de afeto, expandindo o seu ncleo primitivo. Pluraliza-se uma famlia,
quando nela incorporam-se os valores jurdicos do afeto, em decorrn-
cia de uma maior interatividade superveniente.
Relaes de parentalidade que envolvem irmos no germanos,
em face das famlias de cada um deles ou as de irmos socioafetivos
integrantes das famlias mosaicos que compem o ncleo central da
famlia expandida, descrevem situaes jurdicas proficientes a deter-
minar que se produzam outras e novas construes doutrinrias ou
jurisprudenciais a respeito de famlias pluralizadas, a exemplo dos efei-
tos familiares e legais da socioafetividade fraterna, nomeadamente sob
o princpio da solidariedade familiar.
Por sua vez, entendam-se por famlias mtuas, as consolidadas
em multivnculos familiares ditados em situaes excepcionais. Veja-
mos algumas hipteses:
(i) A induo a erro daquele que registra suposto filho, sob a
crena de ser o pai biolgico no pode macular o vnculo socioafetivo
do pai registral, que venha a ser consolidado ao longo do tempo; a tanto
o permitir defend-lo perante o pai biolgico, quando este ciente da
condio de paternidade que lhe tenha sido at ento sonegada. Solu-
es de conformidade aos interesses comuns de ambos os pas plu-
raliza a famlia pela multiparentalidade construda em consenso pela
realidade dos fatos.
(ii) A posse errada de filho, por troca de recm-nascidos em
maternidade, apurada ao depois, quando a filiao socioafetiva
consolidada no cede e no haver de prejudicar a biolgica, tem sig-
nificado, mais das vezes, a preservao dos vnculos ento existentes
conjugados aos novos vnculos que se tornam existentes.
As decises recprocas dos pais afetivos, uns e outros, de mant-
-los no lar onde cada um j se achava, onde ali criados e amados, ao
tempo que exaltam a paternidade e maternidade socioafetivas em uma
cumplicidade inevitvel com o destino deles e de todos, congregam,
por definitivo, ambas as famlias. Elas tornam, por essa diretiva, plura-
lizadas na convivncia mtua com os filhos das duas origens, devendo
merecer especial amparo do Estado.
(iii) Finalmente famlias mtuas tambm existiro pluralizadas,
pelo instituto da adoo solidria, de pouco uso no Direito brasileiro,
quando adotados irmos em famlias diferentes e ambas, comprome-
tam-se a uma convivncia recproca, em benefcio e estmulo da per-
manente interao fraterna daqueles.
Os diversos vnculos familiares criados em situaes assim refe-
ridas assumem em seus arranjos os melhores ganhos de juridicidade,
em uma etapa transformadora e moderna do Direito de Famlia mais
avanado.
Em construto fenomnico dos fatos da vida, tambm as famlias
pluralizadas ganham a sua melhor doutrina.
Na contemporaneidade, as famlias se reinventam em prol do
seu papel indutor e institucional na sociedade organizada. Afinal,
como expressou Leon Tostoi, em Anna Karenina, as famlias felizes
parecem-se todas; as famlias infelizes so infelizes cada uma sua
maneira. Na busca da felicidade de todas elas, as famlias parecero
iguais, embora diferentes que sejam.
REDESIGNAO DE SEXO E A DESNECESSIDADE DE
JUDICIALIZAO PARA RETIFICAO DO REGISTRO
DE NASCIMENTO. ELIMINAO DE RITUAIS DE
PASSAGENS NA BUSCA DE IMPLEMENTAO IMEDIATA
DE DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS TRANSEXUAIS
Newton Teixeira Carvalho
Especializado em Direito de Empresa pela Fundao Dom

Cabral. Mestre em Direito Processual Civil. Doutorando pela PUC/RJ.
Desembargador da 13 Cmara Cvel do TJMG.
Professor de Direito de Famlia da Escola
Superior Dom Helder Cmara. Membro do IBDFAM.
Sumrio: 1. Introduo. 2. Construo do sujeito pela

norma tica, moral e jurdica. 3. Travestismo fetichista,
homossexualismo, intersexo e transexualismo, distines
necessrias sobre estes modos do exerccio da sexuali-
dade. 4. A transexualidade. 5. Interlocuo entre Psico-
logia e Psiquiatria e Direito. 6. Redesignao sexual por
meio do tratamento hormonocirrgico, uma opo. 7. A
Resoluo n. 1.955/2010, expedida pelo Conselho Federal
de Medicina. 8. Natureza jurdica dos conselhos profissio-
nais. 9. A finalidade e a matria enfocada na Resoluo n.
1.955/2010. 10. Interveno do Conselho Federal de Medi-
cina para descriminalizao. 11. Consentimento esclare-
cido do transexual. 12. Contribuio da Psicanlise para
a identificao sexual e discusso sobre o gnero, com
repercusso no campo jurdico. 13. Identificando os gne-
ros. 14. Desencontro e encontro da teoria butleriana com a
Psicanlise. 15. A teoria lacaniana da sexuao. 16. Conclu-
so. 17. Referncias.
1INTRODUO
Como Juiz da 1 Vara de Famlia de Belo Horizonte, h 17 (dezes-

sete) anos, quando em Minas Gerais sequer fazia a cirurgia de trans-
genitalizao, autorizamos a mudana de sexo e nome de um homem
que, por meio da primeira resoluo expedida pelo Conselho Federal
de Medicina, fez a cirurgia em So Paulo e se transformou em mulher.
Entretanto, o Promotor de Justia apelou de nossa de sentena
e o egrgio Tribunal de Justia de Minas Gerais acabou reformando-a,
por dois a um, o que ensejou, na poca, a oferta, pela advogada Juliana
Gontijo, do recurso de embargos infringentes. Entretanto, por trs a
dois o acrdo restou mantido. Contudo, a combativa e culta advogada,
antes citada, ofertou recurso especial e sete anos depois o acrdo foi
reformado, permitindo a mudana de sexo e nome do requerente.
O detalhe negativo de tudo isso foi que, antes de os autos retor-
narem primeira instncia, o ento requerente acabou morrendo,
vtima de um atropelamento e sequer pode utilizar-se, juridicamente,
do nome de mulher.
por tal razo que resolvemos escrever a tese de doutorado, na
PUC/RJ, que ser defendida no segundo semestre de 2016, sobre a des-
necessidade de judicializao dessa questo, ou seja, de mudana de
nome e sexo.
Ora, se h resoluo do Conselho Federal de Medicina, permi-
tindo, aps um rduo ritual, a cirurgia de transgenitalizao, quer nos
parecer que basta a pessoa, que fez a cirurgia, comparecer, com um
documento expedido pela equipe que acompanhou o transexual e opi-
nou favoravelmente cirurgia, no Cartrio e indicar o novo nome e
sexo. Alis, tambm j chegado o momento de no mais constar dos
documentos o sexo das pessoas.
Assim e por intermdio, principalmente, de Foucault1 pretende-
mos demonstrar que a autonomia almejada na construo do sujeito
est ainda distante de ser concretizada, em face da enorme interven-
o do Estado em assuntos que dizem respeito apenas aos interes-
ses das prprias pessoas envolvidas, relacionados vida de cada uma
e circunscritos aos aspectos ticos. Alis, o Direito das Famlias a
demonstrao cabal de que o princpio de interveno mnima nem
sempre respeitado, a exemplo da lei da guarda compartilhada,2 apro-
vada no ms de dezembro de 2014, a elegendo, o legislador, de antemo,
como a melhor entre todas as demais existentes para, em seguida, exi-
gir que o juiz a determine, nos casos de disputa entre as partes envol-
vendo filhos menores.
Ora, no o Estado que, desprezando os fatos, poder dizer
qual a melhor guarda. Os primeiros interessados, em tal escolha, so
1
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurdicas. Trad. Eduardo Jardim e Roberto
Machado. Rio de Janeiro: Nau, 2013. Neste livro, esto as conferncias realizadas por Foucault
na PUC-Rio. Em 1973, com destaque, neste trabalho, a quarta conferncia, que aqui estou sin-
tetizando-a como sociedade contempornea, sociedade disciplinar.
2
Lei n. 13.058, vigente desde a data da publicao, em 22 de dezembro deste ano de 2014, a
incluir no art. 1.583 do Cdigo Civil o 2 determinando a preferncia pela guarda
compartilhada.
os prprios pais e, depois, na ausncia de consenso entre eles, cada
caso dever ser analisado, em sua individualidade. E a melhor guarda
poder no ser a ditada pelo legislador, principalmente considerando
tambm os princpios constitucionais, entre eles o do melhor interesse
da criana, a exigir, no caso concreto, ponderao.3
O exemplo acima foi com o escopo de demonstrar que o Estado
tem dificuldade em afastar da vida das pessoas e, em desrespeito
liberdade individual, acaba por estancar o dilogo e, por consequn-
cia, interfere na busca da melhor maneira de se viver bem. A pessoa,
paradoxalmente, pode at no estar vivendo bem. Contudo, se houve
a participao do Estado, mesmo que em termos de interdio e em
determinados assuntos relacionados exclusivamente com a vida dela,
o que basta. O legalismo sobrepe ao direito de viver bem e o forma-
lismo pressupe, erradamente, este viver bem. A responsabilidade de
cada um no poder de escolha, na prtica, inexiste, em razo da cons-
tante normatizao pelo Estado.
Com relao moral sexual,4 questionar a normatividade do
gnero e da sexualidade indagar sobre a lgica binria, a definir as
pessoas como homens ou mulheres e, consequentemente, os gneros
considerados como dois e tambm investigar sobre esta normalidade
que considera apenas o exerccio da sexualidade com pessoas de sexo/
gnero opostos. Conforme esclarece, Guacira,5 A heteronormatividade
que d suporte a essa lgica, como todas as outras normas, se exercita
de modo silencioso, invisvel, disseminado.
3
Conforme ressalta vila (Teoria dos princpios, da definio aplicao dos princpios jur-
dicos. 14. ed. So Paulo: Malheiros, 2012p. 92), toda norma jurdica inclusive as regras, s
tem seu contedo de sentido e sua finalidade subjacente definidos mediante um processo de
ponderao.
4
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de famlia do sculo XXI. In: FIUZA, Csar; S, Maria de
Ftima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coord.). Direito civil Atualidades. Belo
Horizonte: Del Rey, 2003, p. 235, esclarece que As transformaes da famlia certamente
esto associadas a um novo discurso sobre a sexualidade, cuja base foi formada com a Psica-
nlise na virada do sculo XX. Como ser a famlia do novo sculo diante de um novo discurso
da sexualidade? A partir da considerao de que a sexualidade da ordem do desejo, muito
mais que da genitalidade, como sempre foi tratada pelo Direito, o pensamento contempor-
neo ampliou seu entendimento e compreenso sobre as formas de manifestao do afeto, do
carinho e consequentemente sobre as vrias formas e possibilidades de se constituir uma
famlia. Tudo isso interessa ao Direito, pois a reside um sentido de liberdade e libertao dos
sujeitos, um dos pilares que sustenta a cincia jurdica, repita-se..
5
RODRIGUES, Carla. O potencial poltico da Teoria queer. Revista Cult. So Paulo, n. 193, ano
17, ago. 2014, p. 37, entrevistou Guacira Lopes Louro, que estuda a teoria queer no Brasil e a
levou para a rea de educao, por entend-la (p. 36), como uma espcie de disposio exis-
tencial e poltica, uma tendncia e tambm como um conjunto de saberes que poderiam ser
qualificados como subalternos, quer dizer, saberes que se construram e se constroem fora
das sistematizaes tradicionais, saberes predominantemente desconstrutivos mais do que
propositivos.
Urge, pois, o afastamento do Estado, em casos nos quais a deci-
so interfere exclusivamente nas partes envolvidas,6 dando-lhes maior
liberdade nas resolues de suas diferenas e, na medida do possvel,
que estes assuntos no necessariamente sejam judicializados, dei-
xando de exigir a interveno de outros atores que, embora distantes
das vidas dos diretamente interessados, acabam impondo outra deci-
so, em desprezo, por exemplo, a uma composio que foi costurada
pelas partes ao longo de vrios meses ou anos ou j resolvida, cons-
cientemente, pela prpria pessoa interessada e que acaba, decepcio-
nantemente e com frustrante inverso de expectativa, por no obter a
chancela estatal.
No precisamos, mais, de tanta vigilncia em nossas vidas, em
desprezo nossa liberdade, principalmente a sexual. Devemos rejei-
tar esta sociedade panptica, a exigir, em desprezo ao princpio da
interveno mnima, ainda a presena forte do Estado em nossas vidas,
vigiando-nos, constantemente, e ceifando a nossa liberdade de viver,
segundo nossos projetos de vida, desde que responsavelmente e sem
prejudicar terceiras pessoas.
2CONSTRUO DO SUJEITO PELA NORMA TICA, MORAL E JURDICA
Na sua maneira direta e sincera de colocar suas reflexes, Fou-

cault7 afirma que entramos na era por ele rotulada de ortopedia social
generalizada, ou seja, em uma sociedade disciplinar, que tem por obje-
tivo o controle no somente social como tambm individual das pes-
soas. Nossos movimentos so observados constantemente. E, para
fazer esta afirmativa, de que vivemos em uma sociedade de vigilncia,
Foucault, aps pedir escusas aos historiadores da Filosofia, afirma que
Jeremy Bentham, para ele mais importante do que Kant, Hegel etc., foi
6
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de famlia do sculo XXI. In: FIUZA, Csar; S, Maria de
Ftima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coord.). Direito civil Atualidades. Belo
Horizonte: Del Rey, 2003, p. 230, afirma: O amor est para o Direito de Famlia assim como a
vontade est para o Direito das Obrigaes. Esta premissa do cientista do Direito Joo Bap-
tista Villela talvez seja a chave para a compreenso da atual e da futura organizao jurdica
sobre a famlia. E, p. 232, indaga esse doutrinador: Poderia o Estado regulamentar detalha-
damente as relaes afetivas daquelas pessoas que optam por viver uma relao amorosa sem
o selo da oficialidade do casamento? Em outras palavras, um Estatuto do Concubinato, pro-
jeto de lei em trmite no Congresso Nacional, no seria uma invaso privacidade daqueles
que, exatamente, no sejam a interveno do Estado em sua vida privada? [...] no se pode
mais desconsiderar que na objetividade dos atos e fatos jurdicos permeia uma subjetividade
que interfere no mundo jurdico e o determina, particularmente o Direito de Famlia, que
pode ser considerado uma (tentativa de) regulamentao das relaes de afeto e das conse-
quncias da decorrentes.
7
Machado. Rio de Janeiro: Nau, 2013, p. 87.
quem, de certa maneira, previu este estado de coisa, no sculo XIX, em
detrimento de nossa liberdade.
E um pouco adiante obra antes citada, Foucault,8 aps afirmar
que o panoptismo um dos traos caractersticos da nossa sociedade,
esclarece que tal fenmeno uma forma de poder de vigilncia indivi-
dual e contnua, em forma de correo, isto , de formao e transfor-
mao dos indivduos em funo de certas normas. Portanto, h uma
trplice sujeio das pessoas, por meio da vigilncia, do controle e da
correo, que as modulam para viver nesta sociedade panptica.
Assim e contraditoriamente, verifica-se que est havendo uma
estatizao constante de nossos hbitos, em evidente burla ao princpio
da liberdade. O Estado insiste, teima, estratgica e ideologicamente,9
em no afastar de nossas vidas privadas. Temos como exemplo, em
nosso pas, a unio estvel, que foi uma reao burocracia estatal, de
vigiar as pessoas que pretendiam viver sob o mesmo teto, antes e aps
o casamento. Para a celebrao das npcias necessria era e ainda o
uma srie de providncias preliminares,10 que desguam na habilitao
das pessoas para celebrao do casamento e no prprio ritual do casa-
mento, ainda carregado de frmulas e exigncias inmeras.
Desse modo, burlando a vigilncia estatal que sacralizava o casa-
mento, as pessoas estavam vivendo em unio estvel, algo que o Estado
no via com bons olhos, eis que perdia o controle sobre a vigilncia
de inmeras famlias. Era necessria uma resposta a este estado de
coisa. Foi assim que o Estado acabou por encampar tal instituto, tra-
zendo as pessoas que vivem sob essa espcie de entidade familiar tam-
bm para debaixo da proteo dele, incentivando a lavratura de um
documento para formaliz-la e at mesmo estipulando o regime de
bens e incitando a transformao desta entidade em casamento.11 Em
sntese, o Estado institucionalizou a unio estvel, normalizou-a aps
normatiz-la e, por consequncia, voltou a poder vigiar, de perto, o
8
Machado. Rio de Janeiro: Nau, 2013, p. 103.
9
Entendemos com Rosa M. C. Cunha (O carter retrico do princpio da legalidade. Porto Ale-
gre: Sntese, 1979, p. 20), o que seja ideologia: Pensamos a ideologia como uma necessria
dimenso da vida social, enraizada nos modos de produo que se combinam e existem em
sociedades especficas e, ainda, na relao de suas classes sociais contraditrias. Portanto,
uma dimenso, uma estrutura, um sistema de ideias e de prticas institucionalizadas que
atuam sobre o sujeito e o tem como protagonista, como uma forma de conhecimento da
realidade e como um modo de dominao social.
10
Mtodos de vigilncia estatal: prova de inexistncia de impedimento (art. 1.521, CC); ausn-
cia de causas suspensivas (art. 1.523, CC); procedimento de habilitao (art. 1525, CC) e cele-
brao do casamento (art. 1.532, do CC) etc.
11
O art. 226, 3, da Constituio Federal, deixa expresso que o Estado dever facilitar a con-
verso da unio estvel em casamento.
comportamento destas pessoas. Menos liberdade, mas vigilncia, por
meio da imposio da verdade!12
Delgado,13 ao criticar a disciplina legislativa14 da unio estvel no
Brasil, doutrina:
A orientao infraconstitucional no pode anular a liberdade

daqueles que no desejam se submeter ao regime tpico de casa-
mento, sob pena de tornar ineficaz a parte final do 3 do art. 226
da Carga Magna. No compete ao legislador regulamentar a prpria
relao informal, atribuindo-lhe direta e autoritariamente os efei-
tos da sociedade conjugal.
ainda no ramo do Direito das Famlias15 que a liberdade das

pessoas, diante da necessria judicializao at mesmo para simples
homologao de acordo, olvidada, fortemente, eis que a vontade
dever ser supervisionada por outras pessoas, a pessoa do Minist-
rio Pblico, que poder discordar do querer das partes e tambm a
pessoa do juiz, que poder no homologar o acordo e, pior, estabele-
cer outras condies alheias s vontades das partes. a prevalncia,
ainda, do paternalismo, aqui entendido sempre em carter pejorativo,
ou seja, continuamos incapazes, limitados que somos em nossas aes
individuais.
Com relao ao transexual, nota-se que o Estado, aps procedi-
mento moroso para realizao da cirurgia de redesignao de sexo,16
12
Anota CORREA, Adriana Espndola.Consentimento livre e esclarecido: o corpo objeto de
relaes jurdicas. Florianpolis: Conceito Editorial, 2010, p.136, com apoio nas teorias fou-
caultianas, que: O peso da verdade na constituio do sujeito faz-se sentir pela definio do
padro de normalidade (a norma), que fundamenta a classificao entre normal e anormal,
so e doente, e orientam as prticas subjetivas normalizando o sujeito. ainda Correa, na
mesma obra, agora p. 137, a afirmar e, por conseguinte, a confirmar, que estamos vivendo em
uma sociedade panptica: a possibilidade de agir de forma autnoma limitada na prpria
constituio do sujeito, que no fundante, mas fundado no interior da histria por discursos
de verdade, prticas de sujeio e normalizao para concluir, esta mesma autora, agora p.
165: ... inexiste uma plena autonomia de sujeito autoconsciente e racional, livre de interfern-
cias externas, porquanto o homem concreto est inserido em contextos sociais e em relaes
de poder, que condicionam sua autonomia ao constitu-lo como sujeito.
13
DELGADO, Mrio Luiz. O paradoxo da unio estvel: um casamento forado. Revista Nacio-
nal de Direito de Famlia e Sucesses, Porto Alegre: Magister, v. 2, p. 13, set./out. 2014.
14
Leis n. 8.971/94 e 9.278/96 e o Cdigo Civil.
15
Insistimos em mencionar sempre Direito das Famlias, contrariamente ao dito no Livro IV
do Cdigo Civil: do Direito de Famlia, eis que inclusivo, abarcando todas as famlias e enten-
dendo que suas espcies no um nmero fechado. Rejeita o Direito das Famlias o singula-
rismo, que entendia o casamento heterossexual como nica forma legtima de constituio
de famlia. Hoje, temos inmeras espcies de famlias que, paraserem constitudas, indepen-
dem da diversidade de sexo e de estarem sob as benes do casamento.
16
BENTO, Berenice. Quer o qu? Ativismo e estudos transviados. Revista Cult, So Paulo, n.
193, ano 17, agosto 2014, p. 44, esclarece a respeito do burocrtico e conservador procedi-
mento que poder desaguar na cirurgia: A autorizao para fazer a cirurgia demora, no
normatizada atualmente pela Resoluo n. 1.955/2010, expedida pelo
Conselho Federal de Medicina, considerou, para autorizao do trata-
mento cirrgico, o transexual como patolgico. E, ultrapassada esta
demorada e burocrtica fase, outro percurso h que ser realizado pelo
transexual, ou seja, o judicial, que tambm poder levar anos e, pior, o
Judicirio poder recusar a pretenso do requerente de modificao
da mudana do estado civil e do nome, ou apenas permitir a modifica-
o do nome ou entender que deva anotar, no assento de nascimento
do requerente, que a pessoa tem um terceiro gnero, o de transexual.
Enfim, que a pessoa anormal.
Depois de realizada a cirurgia, quer ns parecer totalmente des-
necessria a presena, novamente, do Estado, agora por intermdio da
funo judiciria, antes, por meio da Medicina. O corpo esteve vigiado
pela Medicina e, como se no bastasse todo o ritual anterior, continua
vigiado agora pelo sisudo Judicirio que, paradoxalmente, poder pre-
tender fazer desacontecer o j acontecido, em desnecessria frustra-
o do transexual. H, nesses procedimentos, dispensvel duplicidade
de decises, principalmente considerando que, neste caso, j prevale-
ceu o saber do mdico.
assim que Foucault, na Microfsica do Poder,17 acrescenta, con-
siderando que a preocupao maior dos pensadores do Direito foi em
cuidar mais da legitimao, olvidando-se da no opresso:
O direito deve ser visto como um procedimento de sujeio, que ele

desencadeia, e no como uma legitimidade a ser estabelecida. Para
mim, o problema evitar a questo central para o direito da
soberania e da obedincia dos indivduos que lhe so submetidos e
fazer aparecer em seu lugar o problema da dominao e da sujeio.
Portanto, vemos que a questo da liberdade ainda muito abs-

trata e, na prtica, no observada, o que acaba por interferir na autono-
mia das pessoas que no tm condies de escolher livremente como
viver bem, precisando sempre da intromisso do outro, do Estado.
Entretanto, no mais carecemos de interdio, de paternalismo.18
mnimo, dois anos. Durante esse perodo, o/a candidato (assim como identificam as pessoas
trans que esperam a cirurgia) tem uma rotina semanal de idas ao hospital. O protocolo
organizado em torno de trs questes: 1) a exigncia do teste de vida (os/as candidatos/as
passam a usar as roupas apropriadas para o gnero com o qual se identifica); 2) a terapia hor-
monal; 3) os testes de personalidade (HIP, MMPI, Haven e o Rorscharch). Alm das sesses de
terapia e dos exames clnicos. Enfim, uma parafernlia discursiva voltada permanente pato-
logizao das experincias trans.
17
FOUCAULT, Michel. Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 182.
18
Paternalismo impor uma deciso a algum, supostamente pelo bem dessa pessoa, mas em
contradio com a noo que ela prpria tem acerca do que lhe bom. (DWORKIN, Ronald.A
Precisamos de resgatar nossa liberdade, inclusive interrogando sobre
a normalizao da heterossexualidade, com superao do entendi-
mento da naturalidade dos corpos e, principalmente, considerando
que, para vigiar o corpo, como esclarece Preciado,19 j no h mais
necessidade de hospital, quartel ou priso, porque, com os hormnios
sintticos, as tcnicas de controle se instalam no corpo, ferramenta
definitiva da vigilncia.
3TRAVESTISMO FETICHISTA, HOMOSSEXUALISMO, INTERSEXO E

TRANSEXUALISMO, DISTINES NECESSRIAS SOBRE ESTES MODOS
DO EXERCCIO DA SEXUALIDADE
Nery demonstra que temos o hbito de adequar comportamen-

tos das pessoas em algo j existente e, se no emoldurada tal atitude,
essas pessoas se tornam anormais e, por conseguinte, excludas. Foi
assim que, durante muito tempo, o transexualismo foi uma subespcie
do homossexualismo. Com efeito, diz este primeiro transexual mascu-
lino operado no Brasil, que,
Quando entrei na adolescncia, ainda no existia sequer o con-

ceito de transexualismo. Eu me sentia homem, com um fsico inex-
pressivo, que no convencia ningum. Eu no via de forma alguma
como homossexual, embora os outros assim o fizessem. Desco-
nhecia outra categoria na qual pudesse me enquadrar e tampouco
sabia de pessoas iguais a mim. Sentindo-me um fenmeno nico e
sem o amparo de explicaes, travava uma batalha tenaz contra a
marginalizao.20
Ressalte-se que prevalecem nesses conceitos (travestismo,

homossexualismo, intersexo e transexualismo), advindos principal-
mente da Psicologia e da Medicina, aceitos sem maiores reflexes em
raposa e o porco-espinho: justia e valor. Trad. Marcelo Brando Cipolla. So Paulo: Martins
Fontes, 2014, p. 553).
19
RODRIGUES, Carla. O potencial poltico da Teoria queer. Revista Cult. So Paulo, n. 193, ano
17, p. 13, ago. 2014, em entrevista realizada com Beatriz Preciado, autora do livro, Manifesto
contrassexual: prticas subversivas de identidade sexual, traduo livre da prpria entrevis-
tadora, afirma que Preciado, Irreverente e transgressora, ela encarnou o questionamento
sobre identidade de gnero numa experincia em que se fez cobaia. Durante duzentos e trinta
e seis dias, se autoaplicou testosterona, o hormnio produzido pelo testculo, sem seguir
nenhum tipo de protocolo mdico prvio, demonstrando, com essa intoxicao voluntria,
que o gnero (palavras da prpria entrevistada): no pertence nem minha famlia, nem ao
Estado, nem indstria farmacutica. uma experincia poltica. Preciado foi aluna, no final
dos anos 1990, de Jacques Derrida e leciona, atualmente, na Universidade Paris 8 e coordena o
projeto Tecnologias do gnero no Museu de Arte Contempornea de Barcelona.
20
NERY, Joo W. Viagem solitria: memrias de um transexual 30 anos depois. So Paulo:
Leya, 2011, p. 53
outras reas, em face do argumento de autoridade, a dicotomia mas-
culino/feminino, razo da persistncia em no aceitar as pessoas fora
deste binrio como normais. Assim, o travesti fetichista e o homosse-
xual21 so entendidos como um misto de masculino com o feminino,
enquanto o transexual limita-se apenas em uma delas, porm, do lado
oposto ao que se apresenta fisicamente.
certo que tanto os travestis fetichistas como os homossexu-
ais, como tambm os transexuais, no possuem anormalidades anato-
mofisiolgicas nas genitlias. Contudo, as duas primeiras maneiras de
comportar-se sexualmente no desprezam ou desvalorizam as zonas
ergenas de seus rgos genitais, enquanto o transexual rejeita, por
completo, a genitlia existente fisicamente, desprezando-a, repe-
lindo-a, razo de, para alguns, a cirurgia ser o nico e indispensvel
percurso.
Assim, o transexual busca o reconhecimento, principalmente
pelo parceiro, como possuidor do sexo que atribuiu a si mesmo, de
nada valendo argumentar com a presena da genitlia com a qual se
apresenta fisicamente, caso no opte por extirp-la. Ademais, o tran-
sexual no se transveste para obter gratificao sexual ou com fins de
fetichizao.22
Os travestis, no obstante assumindo o esteretipo feminino
e alguns promovendo modificaes em seu corpo, para assemelhar-
-se s mulheres, mantm a genitlia masculina, debelando o impulso,
que em alguns surgem, causados pelas leis de mercado ou pela pres-
so do grupo, de mudana de sexo, pela masculinidade preservada e
pelo gozo que obtm a partir do jogo ertico que promovem com seus
rgos genitais.23
com base na pretenso de os travestis extirparem a genit-
lia masculina ao apresentarem, a partir de um determinado momento
de suas vidas, desejos transexuais, que so eles considerados falsos
21
FARAMERZ, Dabhoiwala. As origens do sexo: uma histria da primeira revoluo sexual.
Trad. Rafael Mantovani. So Paulo: Biblioteca Azul, 2013, p. 564, deixe expresso o preconceito
que ainda h com relao homossexualidade, ressaltando que, no final da dcada de 1980, a
Suprema Corte dos Estados Unidos afirmava a imoralidade e a punio do sexo consensual
entre homens, enquanto o Reino Unido tornava ilegal que qualquer autoridade local promo-
vesse a homossexualidade, ou ensinasse nas escolas a aceitao da homossexualidade, como
pretenso relacionamento familiar, leis discriminatrias estas que somente foram revogadas
em 2003, razo de esta autora afirmar: Acima de tudo, apesar da crescente aceitao intelec-
tual de ideias de privacidade e igualdade, a extenso da liberdade homossexual mostrou-se
uma questo que continua sendo disputada, acrescentaramos, principalmente em nosso
pas, em que se pretende limitar as entidades familiares e destacando a importncia do casa-
mento apenas entre homens e mulheres.
22
RAMSEY, G. Transexuais perguntas e respostas. So Paulo: Summus, 1998, p. 176.
23
COSSI, Rafael Kalaf. Corpo em obra: contribuies para a clnica psicanaltica do transexua-
lismo. So Paulo: nVersos, 2011, p. 50.
transexuais. Portanto, a eles negada a cirurgia de redesignao de
sexo, de antemo. Entretanto, reafirmamos que esta questo dever
ser mais bem enfrentada e despida de falsos moralismos e no, como
est correndo, simplesmente negada essa possibilidade, sob a justifica-
tiva de ser um ato meramente mercantil (prostituio) ou presso do
meio.
O travestismo fetichista, no obstante mantendo a identidade
masculina, excita com o uso de roupas femininas, expondo-se, com
exuberncia e at mesmo com exagero, tem o gozo, muito particu-
lar, ao mostrar ao companheiro sexual o pnis camuflado por trs dos
trajes, desvelando a surpresa. Vrios sustentam, ao contrrio do que
acontece com o transexual, relacionamentos sexuais heterossexuais.
Com relao homossexualidade, a identidade sexual da pessoa
geralmente no est em questionamento. Portanto, no considera o
homossexual como pertencente ao outro sexo. A aproximao, afetiva
ou no, com as pessoas do mesmo sexo.
Assim e num linguajar psicanaltico, pode-se afirmar que a sexu-
alidade do homossexual e a do travesti fetichista determinada por
formaes reativas, por sinthomas, isto , por intermdio de impulsos
inconscientes, advindos das diferentes instncias psquicas. Com rela-
o ao transexual, no h desejos inconscientes, mas apenas secretos.
No h conflito interno, mas sim externo, eis que a luta, pelo reco-
nhecimento, com a sociedade, que tende a desconsider-lo na sua
singularidade.
Com relao aos psicticos, h uma aproximao com o transe-
xual, quando se comportam como pessoas do sexo oposto, consequn-
cia de alucinaes e delrios, apenas. No h, neste caso, o sentimento
de pertencimento ao outro sexo. J o transexual reconhece a anatomo-
fisiologia do seu corpo e no desvirtua mentalmente tal entendimento,
rejeitando-o, eis que prevalente o sexo mentalmente eleito.
Levando em considerando que a atribuio do sexo lastreada
na aparncia dos rgos sexuais externos da criana, necessrio, nas
distines aqui discutidas, examinar o intersexo, para que no pairem
dvidas sobre as distines necessrias a uma melhor compreenso do
transexualismo, despido de preconceitos.
O intersexo ocorre quando, no desenvolvimento embrionrio
do feto, acontecem variaes ou algum problema pertinente indu-
o de hormnios sexuais, acarretando m-formao do sexo anato-
mofisiolgico, com a consequente ausncia de representao sexual.
Assim e por meio da aparncia fsica no possvel saber qual o sexo
da criana, eis que seus rgos sexuais externos no coincidem com os
rgos universais anatmicos, impedindo, ocularmente, definir o sexo.
Portanto, intersexo ou distrbio de desenvolvimento do sexo, antigo
hermafroditismo, o nome que se d a este processo de diferenciao
incompleto do sexo. Assim, atribui-se, aleatoriamente, o sexo pessoa.
Na verdade, a substituio do rtulo hermafroditismo por inter-
sexo no foi bem assimilada e a preferncia ainda pela utilizao
do termo hermafroditismo, que se caracteriza pela coexistncia de
tecido ovariano (com folculos) e testicular (com tbulos seminferos,
com ou sem espermatozoides) no mesmo indivduo, em geral associada
ambiguidade genital interna e externa em graus variveis.24
Tambm com relao ao hermafroditismo h o falso, chamado
de pseudo-hermafrodita, por exibir distintas expresses de elementos
biolgicos masculinos e femininos e a presena de somente um tipo de
tecido gonadal, ocorrendo a ambiguidade genital, por exemplo, com a
presena de cromossomos XY e rgos externos femininos. Portanto,
falso ou verdadeiro, mais uma vez, demonstra apenas uma maneira
especializada de ver a coisa.
Interessa ainda a distino entre o intersexo e o transexual,
quando se afirma que, no hermafroditismo, h a predominncia do sexo
de atribuio, que o designado (o nomeado) pelos pais, sobrepondo ao
sexo anatmico. Neste caso, prevalece, como em vrios atos de nossa
vivncia, o simblico sobre o orgnico, o que acaba por demonstrar,
em socorro aos direitos dos transexuais, que a identidade sexual no
advm da determinao biolgica e, sim, de fatores psicossoais.
Portanto e no caso do intersexo, a atribuio do sexo pelos pais
que determinar, na criana, a identidade sexual, no obstante as irre-
gularidades biolgicas existentes. a insegurana nesta atribuio
identitria que poder ser transmitida ao filho, que poder desenvol-
ver identidade hermafrodita (acredita ser tanto homem como mulher,
ou mesmo no ser nenhum deles). No transexual, no h malforma-
o anatomofisiolgica dos rgos genitais nem qualquer desequilbrio
hormonal.25 Conforme dito acima, o transexual no tem dvida quanto
ao sexo possudo, no obstante tenha desenvolvido uma identificao
sexual em total descompasso com tal imputao.
Assim sendo, com relao ao trabalho com o intersexo, a par-
tir John Money26 e retomado por Stoller, pode-se afirmar que no h
determinismo biolgico quanto construo da identidade sexual;
24
25
26
MONEY, John. Pesquisa de gnero homossexual/heterossexual: do pecado cincia e pol-
cia secreta, sexus Estudo multidisciplinar da sexualidade humana, v.1, 1990.
sexo e gnero so distintos e este prevalece sobre aquele em tal forma-
o identitria.27
4A TRANSEXUALIDADE
De entender-se a transexualidade como um fenmeno poltico-

-social, manifestado no mbito da identidade sexual, que da clandesti-
nidade dos anos 1950, quando se iniciaram as primeiras intervenes
cirrgicas, aos dias atuais, ocorreram muitos avanos, em razo de
reformas legislativas e jurisprudencial, assegurando a realizao des-
ses procedimentos clnico-cirrgicos e mudana do estatuto civil.
No Brasil, conforme demonstraremos a seguir, a cirurgia de
transgenitalizao hoje realizada, por resoluo do Conselho Federal
de Medicina, que tambm em outro captulo deste trabalho ser dis-
cutida. Entretanto, para que o Conselho Federal de Medicina pudesse
permitir, por intermdio de resoluo, esta interveno cirurgia,
necessrio foi que se considerassem os transexuais como portadores
de um distrbio psquico.
Todavia, necessria a antipsiquiatrizao dessa abordagem
ortodoxa do transexualismo,28 advinda de parte dos tericos da Psi-
canlise e que perdura at a presente data, no obstante a questo, no
momento, esteja em discusso e, na Frana, tal entendimento j restou
superado, tambm conforme ser demonstrado a seguir.
Portanto, necessrio discutir melhor o pensamento psicanal-
tico ortodoxo,29 ainda em uso, com reflexo na Medicina, a respeito dos
27
28

Como sabido, o sufixo ismo denota patologizao. Por isso, escolhemos o termo
transexualismo, reforando que nossa pretensodemonstrar que a qualificao correta
transexualidade, uma vez superadaesta manifestao da sexualidade como doena.
29
PORCHAT, Patrcia. Psicanlise e transexualismo: desconstruindo gneros e patologias com
Judith Butler. Curitiba: Juru, 2014, p. 24, tambm esclarece que, At o sculo XVIII, o dis-
curso dominante teria construdo os corpos masculino e feminino como verses hierarquica-
mente ordenadas de um nico sexo. Esse modelo hierrquico, mas de sexo nico, interpretava
o corpo feminino como uma verso inferior e invertida do masculino. No sculo XIX, esse
modelo substitudo por um modelo reprodutivo que enfatiza a existncia de dois corpos
radicalmente diferentes, com uma oposio radical das sexualidades masculina e feminina.
Isso repercutiu em termos de gnero. Passa a haver uma diferena absoluta entre homens e
mulheres: no mais um corpo parcialmente diferente, mas dois corpos singulares, o mascu-
lino e o feminino. Podemos dizer que a psicanlise vai se inserir nesse contexto, ou pelo
menos, herdeira dessa ideia de que a percepo da diferena radical entre os corpos tem um
papel de destaque na construo da subjetividade. Porchat, no pargrafo seguinte, s coloca-
es ora transcritas, conclui: A percepo da distino radical entre os sexos e os gneros,
estabelecidos a partir da realidade biolgica da reproduo, concede importncia aos geni-
tais como marcas da oposio sexual. Mas essa importncia, segundo Laqueur, seria muito
recente, considerando a histria da medicina ocidental.
transexuais, para que os resqucios de preconceitos sejam superados e
a questo possa ser mais bem dialogada e compreendia pela sociedade
que, em tempos atuais, deve ser necessariamente inclusiva, para ser
considerada plural e democrtica.
Assim e doravante teremos que nos amparar neste primeiro cap-
tulo, necessariamente dos ensinamentos da Lacan,30 entendido, para
fins de nosso estudo, como dividido em duas partes, que sero exami-
nadas para enfrentarmos melhor a questo, envolvendo a designao
sexual ou mudana de gnero e seus equvocos no curso da histria.
o prprio Lacan a afirmar que a antipsiquiatria , principalmente,
uma maneira de libertar os psiquiatras dos seus muros, atrs dos quais
estavam presos juntos com seus pacientes.31 Libertao, evidente-
mente, dos muros fsicos e tambm dos muros intelectuais, a impedir
o processamento do novo, que poder, tranquilamente, conviver com
o velho, inclusive interagindo, para aperfeioamento e evoluo, sem
trauma, de ambos.
Na verdade, a antipsiquiatria a derrubada de muros, tanto para
os psiquiatras como para os pacientes, principalmente considerando
que inmeras so as pessoas que foram internadas, no hospital ou no
presdio, que no tinham nenhuma anormalidade e foram vtimas do
prprio Estado, que acabou por apart-las do meio social, na maioria
das vezes por ter uma posio ou uma atitude no compreendida.
por tal razo que Foucault32 criticou severamente o exame psi-
quitrico que possibilita a transferncia do ponto de aplicao do cas-
tigo, da infrao definida pela lei criminalidade apreciada do ponto
de vista psicolgico-moral e tem por escopo legitimar, na forma de
conhecimento cientfico, a extenso do poder de punir a outra coisa
que no a infrao. Para tanto e em razo do fato perpetrado, para
considerar se era imputvel ou se, como louco, carecia de internao,
reconstrua-se o passado da suposta vtima, analisando todo o com-
portamento desta pessoa, prevalecendo, para tanto, o aspecto moral.
Esta regresso para analisar a vida pretrita de algum, repro-
vando-a para legitimar o encarceramento ou o tratamento da vtima,
tinha por finalidade mostrar que a pessoa se assemelhava ao delito
perpetrado, com a localizao de possveis desvios, e foi chamada por
30
Evidentemente que nosso estudo, sobre a Psicanlise, restrito ao que nos interessa para
demonstrar que os especialistas so os primeiros a estigmatizar as pessoas, procurando des-
vios naqueles que tm uma proposta de viver fora do padro considerado como normal.
31
32
FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collge de France. Trad. Eduardo Brando. So
Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 16.
Foucault33 de parapatolgica, eis que tais atitudes, analisadas pelo
psiquitrico, aproximavam-se da doena, no obstante fossem apenas
defeitos morais.
Assim, tambm chegado o momento de superarmos a aborda-
gem clssica do transexualismo, que no pode, neste sculo XXI, ser
considerado como algo patolgico, entendimento ainda prevalente,
no obstante sobre forte bombardeio, que encontrou apoio nas ideias
dos psicanalistas, principalmente a Psicanlise lacaniana, da primeira
fase, dos anos 1950, com reflexo na Medicina.34 Essa tcnica de norma-
lizao, por meio da correo, to combatida por Foucault, continua
presente a partir do momento em que o transexualismo dito como
doena e, por conseguinte, possvel de correo.35
Com efeito, na viso mdica, prevalece o ponto de vista retr-
grado, com reflexo, por sua vez, no jurssico direito, de que estes
sujeitos so portadores de um transtorno de identidade sexual, j que
apresentam o sexo biolgico em total contradio com a identidade
sexual.36 Assim, entende a Medicina, numa concepo normativa, que
h necessidade de reparar tal equvoco, por meio do tratamento hor-
monal e cirrgico, eis que o corpo biolgico deve estar em consonn-
cia com o gnero sexual o qual a pessoa pertence. Necessrio , ainda,
que prevalea a identidade de corpo e gnero: o corpo de homem deve
ser coeso masculinidade e o da mulher feminilidade.
33
FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collge de France. Trad. Eduardo Brando. So
34
A ndreia e Gil Guerra, na obra Menino ou menina? Os distrbios da diferenciao do sexo,
citam o ilustre professor Armando Canger Rodrigues, que j exerceu a funo de diretor do
Instituto Oscar Freire, em So Paulo, e que, no artigo Aspectos ticos do Transexualismo,
assinala que o transexualismo uma entidade clnica autnoma, bem individualizada entre
os desvios do comportamento sexual, que foi definitivamente separada do homossexualismo
por Benjamin e Gutheil. (GUERRA, Andra Trevas Maciel; GUERRA JNIOR, Gil. Menino ou
menina? Os distrbios da diferenciao do sexo. So Paulo: Manole, 2002, p. 309).Portanto, a
Medicina tambm considera, ainda, a transexualidade como doena e tal questo confir-
mada logo p. 3, da obra ora citada, com a seguinte colocao, de Roberta Pagon: Menino ou
menina? Quando no se pode responder a essa pergunta sem pensar duas vezes, trata-se de
uma emergncia mdica.
35
No MANIFESTO dos participantes do Dilogo Latino-Americano sobre Sexualidade e Geo-
poltica, em reunio realizada entre os dias 24 e 26 de agosto de 2009, na cidade do Rio de
Janeiro, constou que a prtica de promover supostos gneros saudveis, mediante o uso de
bisturi, da administrao de hormnios ou por tratamentos psiquitricos e psicolgicos,
moeda corrente naqueles pases, onde o establishment mdico particularmente poderoso
em termos econmicos. No obstante, a validade cientfica das premissas mdicas nas quais
esses procedimentos esto baseados foi fortemente questionada. O grau de arbitrariedade
desse conhecimento fica evidenciado nas profundas mudanas conceituais que o prprio sis-
tema de nomenclaturas psiquitricas sofreu a cada nova edio do DSM, particularmente no
que trata de desordens sexuais e de identidade de gnero.
36
lismo. So Paulo: nVersos, 2011, p. 17, da introduo.
Destarte, o transexualismo interroga de maneira radical as
noes de identidade sexual, normalidade e patologia,37 remetendo-
-nos tanto a Canguilhem,38 cuja doutrina acima foi sintetizada, bem
como tambm a Foucault, como a Butler e a Lacan (estes trs ltimos
autores sero constantemente citados e no momento prprio ser feita
referncia obra respectiva), este ltimo principalmente na teoria da
sexuao, quando expurga entendimento anterior, em prol da incluso
de outras formas de identidade sexual.
Imperativo ser, por conseguinte, que apartemos a transexu-
alidade de um diagnstico que rotula o transexual como psictico,
neurtico ou perverso. Para tanto, ser necessrio deslig-lo, com-
pletamente, de condies anatmicas do intersexo, ou seja, no h
como socorrer do hermafroditismo39 para analis-lo e muito menos do
travestismo.
Deste modo, necessrio que a transexualidade seja tratada
como uma demanda histrica que dever ser decomposta para que a
redesignao ocorra com sucesso e o redesignado possa viver des-
preocupado com relao superao de mais um ritual de passagem,
necessrio para que pudesse participar ativamente da sociedade.
Assim sendo e para compreender o transexualismo, como
expresso da diversidade da sexualidade, necessrio que tenhamos
como referncia inicial Stoller, eis que este autor, em 1964, introduziu na
Psicanlise a noo de gnero, demonstrando que o sexo (no sentido
corporal) diferencia-se da identidade, no sentido social ou psquico, e
que gnero e sexo no necessariamente so correspondentes.40 Entre-
tanto, para Stoller, com enorme adeso da classe mdica, a dissociao
entre gnero e sexo entendida como patolgica.
Por conseguinte, discute-se, na Medicina e na Psicanlise, como
sair ou superar este pseudoestado patolgico, de diagnstico variado
37
lismo. So Paulo: nVersos, 2011, p. 17, da introduo.
38
GANGUILHEM, Georges. O normal e o patolgico. Trad. Maria Thereza Redig de Carvalho
Barrocas.7. ed.Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2014..
39
Ainda do MANIFESTO dos participantes do Dilogo Latino-Americano sobre Sexualidade e
Geopoltica, em reunio realizada entre os dias 24 e 26 de agosto de 2009, na cidade do Rio de
Janeiro, tambm constou que A subordinao das identidades de gnero s determinaes
da cincia produz danos irreversveis em pessoas que tm sua autonomia violada aos serem
objetos da interveno mdica muito cedo em suas vidas, por efeito de ansiedade normaliza-
dora, cuja legitimidade deve ser questionada. Todos os dias, meninos e meninas que nascem
com genitlia de aparncia atpica segundo as determinaes da Medicina so submeti-
dos/as a procedimentos cirrgicos que pretendem corrigir sua aparncia a partir do pressu-
posto de que uma genitlia mais normal promoveria e sustentaria a formao de uma identi-
dade de gnero mais saudvel.
40
lismo. So Paulo: nVersos, 2011, p.17, da introduo.
(disfunes neurolgicas e endcrinas, psicose e distrbio na consti-
tuio do ego corporal etc) e tambm sobre a necessidade ou no de
intervenes hormonocirrgicas, possvel tratamento psicolgico e
qual ser a contribuio da Psicanlise para a clnica deste quadro. Em
outras palavras, assim como at hoje h os que pretendem curar os
isoafetivos, tambm no faltam mdicos, psiclogos e psiquiatras que
pretendem tratar do transexual, como pessoa doente. Alm da cura
gay, necessrio tambm curar os transexuais, numa viso mope e
normativa da sociedade.
Seria mais interessante, em vez de represso, de normatizao,
ouvir os transexuais, suas propostas de negao da diferena entre os
sexos, com a pretenso de abertura do debate no sentido de demons-
trar o que , de fato, ser um homem ou ser uma mulher e se a pertena
a um ou outro sexo ditada realmente pelo corpo. Logo, necessrio
aprender, antes de tudo, como escutar a demanda dessas pessoas,
excluindo, da clnica do transexual, a ideia de que tal fenmeno psi-
ctico, neurtico ou perverso.
O prprio Cossideclara que, na clnica psicanaltica dele, situ-
ada em Jundia, So Paulo, deparou com casos que podem ser classi-
ficados, segundo a teoria queer, como gneros ininteligveis, ou seja,
ocorrncias (tais como o travestismo e o transexualismo, por exemplo)
que no se enquadram na denominada heteronormatividade vigente.41
Interessa saber tambm se a transexualidade um fenmeno
atemporal, diante da manifestao deste modo de ser em diversas cul-
turas, principalmente considerando que dados histricos demonstram
que o trnsito entre os gneros sempre existiu. A dvida relevante,
considerando que o corpo foi objeto de manifestao em diferentes
pocas histricas, nem sempre prevalecendo a concepo binria mas-
culino/feminino, consequncia de uma viso dimrfica.
A heteronormatividade, prevalente ainda no momento presente,
exige a concordncia entre anatomia, gnero, desejo e prticas sexuais.
um sistema suposto como perfeito, pela coerncia e continuidade.
Assim e conforme alerta Porchat,42 em sintonia com os ensinamentos
butlerianos, agir fora deste entendimento ausncia de correspon-
dncia aos gneros inteligveis, masculino e feminino. Portanto, estas
pessoas, a exemplo dos transexuais, so tidas como seres abjetos, ou
seja, no tm acesso categoria humana, excludas que so da norma-
lidade. De tal modo, os gneros no inteligveis so seres abjetos.43
41
lismo. So Paulo: nVersos, 2011p.19.
42
PORCHAT, Patrcia. Psicanlise e transexualismo: desconstruindo gneros e patologias com
Judith Butler. Curitiba: Juru, 2014.
43
MILLER, Jacques Alan. Perspectivas dos escritos de Lacan. Trad. Vera Avellar Ribeiro. Rio de
Butler, indo ao encontro das srias colocaes foucaultianas,
acusa essa estrutura de poder existente, de manuteno da ordem
vigente. O trabalho de Butler o de demonstrar que o transexua-
lismo no uma patologia, o alando, corretamente, a uma possibili-
dade de existncia humana. Para tanto, Butler discorda da Psicanlise,
de orientao estruturalista,44 que a partir de seus conceitos de dife-
rena sexual e simblico, por exemplo, ratifica a viso patologizante
dos gneros ininteligveis.45
Tocantemente cirurgia de redesignao sexual, autorizada
apenas com relao aos candidatos diagnosticados como transexuais
verdadeiros, ou seja, que podem ser beneficiados com o tratamento
hormonocirrgico, outra iluso, a exemplo da identidade masculina
ou feminina, principalmente considerando que tambm no correto
falar em uma identidade transexual. No se pode olvidar que no h
uma transexualidade e a soluo no sempre unvoca, razo de no
se poder desprezar a individualidade de cada pessoa. Assim, o trata-
mento hormonocirrgico no a nica alternativa. Alguns transexuais
no pretendem se submeter a tal cirurgia, mesmo porque, afinal de
contas, alteraes anatmicas no transforma o sujeito em um ser do
outro sexo.46
H que se questionar juridicamente, a exemplo de como o vem
fazendo determinada vertente psicanaltica, o modelo de cincia posi-
tiva (dogmtica), eis que, pela Psicanlise lacaniana, ps-dcada de
1950, no so os traos fsicos que definem o pertencimento do sujeito
a este ou aquele sexo. Sua clnica opera a partir de outras vertentes, tais
como o sujeito do inconsciente, o gozo, o semblante e o sinthoma.47-48
Janeiro: Jorge Zahar, 2011, p. 214, fundamenta o aparecimento do termo abjeto, em Lacan: O
termo abjeo possua um alcance polmico. Lacan era sustentado pela ideia de que tinha de
lidar com a abjeo de seus colegas psicanalistas. E foi com essa viso que a palavra foi
empregada, se minha lembrana no falha, trs vezes nos Escritos. Contudo, a palavra abje-
o tem tambm um alcance terico, uma vez que o psicanalista, a favor ou contra Lacan,
por ele nomeado posio de objeto chamado a, com minscula. E esse objeto, como lhe
ocorreu dizer mais tarde, tambm um abjeto.
44
Por meio da corrente estruturalista procura explorar as interrelaes, por intermdios das
quais o significado produzido dentro de uma cultura.
45
lismo. So Paulo: nVersos, 2011, p.19.
46
47
lismo. So Paulo: nVersos, 2011, p.20. Na mesma obra, agora p. 21, Cossi esclarece a noo de
sinthoma, advinda dos ltimos anos de ensino de Lacan, ressaltando que, a partir da, a
maneira de se enodar o real, o simblico e o imaginrio cada vez mais tributria da singula-
ridade de cada um. Singular tambm a forma de gozo do sujeito, sendo o corpo seu espao
de direito.
48
Janeiro: Jorge Zahar, 2011, p. 11, esclarece tambm a diferena entre sinthoma e sintoma Em
De desprezar, como o faz Canguilham, os mtodos quantitativos,
que consideram as pessoas estatisticamente, em desprezo a singulari-
dade de cada uma. Ainda so necessrios, psicanaliticamente falando,
mais esclarecimentos dos processos psquicos submersos na dinmica
transexual e a relao destas pessoas com o corpo. necessrio ques-
tionar, sempre, o laudo psicolgico,49 o psiquitrico, principalmente
considerando que so peas realizadas unilateralmente e por meio do
discurso da verdade dos especialistas, na busca da correo das pes-
soas, pela normatizao.
Para tanto, de observar-se que a tcnica psicanaltica laca-
niana no sentido de que no h uma resposta imediata demanda do
sujeito. Tenta-se, procura-se, por conseguinte, entender o que existe
de oculto nesse pleito. Portanto, a Psicanlise lacaniana, dos anos 1960
para frente, no objetiva acabar com o sinthoma, mas busca fazer
com que venha a luz, para o sujeito, um saber sobre aquilo que incons-
cientemente preside sua demanda e engendra seu sintoma.50 A con-
tribuio do psicanalista , portanto, a de pretender fazer emergir a
razo subjetiva do pedido interiorizado pelo transexual, colocando em
debate, escutando-o como sujeito e no como mero pretendente a um
procedimento mdico, com o escopo principal de retificaes de apa-
rncia esttica.
Deste modo, a partir de Lacan, dos anos 1960 para frente, que
se dirige ao real para alm do simblico, referido heterossexualidade
compulsria, que novas manifestaes da sexualidade, dentre elas o
transexualismo, podem ser contempladas e assim extradas do campo
da patologia.51 Desse modo, a teoria lacaniana merece ser mais bem
compreendida, na busca de superao de preconceitos e estigmas. H
psicanlise, quando falamos de sintoma, entendemos com isso um elemento passvel de dis-
solver-se ou, supostamente, desaparecer, suspender-se, ao passo que sinthoma designa o ele-
mento que no pode desaparecer, que constante. Em outras palavras, a chamada nova cl-
nica psicanaltica uma teoria do incurvel. Ento, que ironia fazer essa teoria do incurvel
sustentar uma prtica toda orientada para a terapia e fazer dessa terapia um slogan!. E, logo
no pargrafo seguinte a tal colocao, ainda interessante ressaltar o que foi enfatizado por
Lacan: impossvel terapizar o psiquismo.
49
Apenas a ttulo de ilustrao e demonstrao do peso de um laudo psicolgico na vida das
pessoas e tambm diante das consideraes foucaultianas aludidas neste trabalho, ressalta-
mos que, at o advento da Constituio de 1988, era de fundamental importncia para o
ingresso em cargos pblicos, como, por exemplo, Magistratura e Ministrio Pblico, entre
outros, a palavra do psicolgico. Antes da Constituio, o laudo era excludente e, mesmo
depois, ainda indispensvel na avaliao do candidato, prevalecendo, para tanto, as realiza-
es pretritas do postulante e tambm o perfil do candidato, tudo com a finalidade de
encaixar o aspirante a um modelo previamente pensado, que o leva a ser considerado como
apto ou no apto.
50
FRIGNETE, H. O transexualismo. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2002, p.19.
51
um novo Lacan, no obstante muitos ainda socorrem apenas das colo-
caes anteriores deste psicanalista.
Necessrio, por conseguinte, que passamos a trabalhar com o
fenmeno transexual, entendido como uma realidade, que busca cons-
tante reconhecimento, principalmente no mundo jurdico, que se cur-
vou e se petrificou dicotomia homem/mulher, como forma exclusiva
de vivncia em sociedade. por essa razo que precisamos, necessa-
riamente, na elaborao deste trabalho, de continuar adentrando nos
ensinamentos psicanalticos, na pretenso de demonstrar que o Direito
granjeia, de outras reas, discursos prontos e acata-os, integralmente,
como se verdadeiros e, por conseguinte, ceifando, mais uma vez, a
abertura de dilogo diretamente com as partes interessadas. o que
faremos no captulo seguinte.
5INTERLOCUO ENTRE PSICOLOGIA E PSIQUIATRIA E DIREITO
Para rotular o transexualismo como doena, analisam-se os

sinais comportamentais, os pensamentos e os sentimentos das pes-
soas, que insiste ser do sexo oposto, num desconforto persistente com
o prprio sexo. Procuram-se evidncias de sofrimentos clinicamente
significativos ou inapetncia social ou ocupacional desta pessoa.
Assim, as preocupantes teorias (nunca comprovadas) lastreadas
em fundamentos biolgicos (anomalia biolgica ou alteraes genti-
cas), como, por exemplo, de serem os fatores neuronais os causado-
res do transexualismo, no so aceitveis, como tambm no h que se
procurar uma etiologia para o transexual.
Todavia, urge encontrar uma patologia para o normal transexual.
Do contrrio, a Medicina no se contenta. A sociedade abruma, eis que,
por rejeitar o prprio sexo, por no admitir uma dicotomia fechada
entre homem/mulher, esta pessoa j e taxada, pelo consciente cole-
tivo, de anormal. Resta apenas enquadr-lo, encontrar CID para esta
pessoa doente.
Chegou-se a pensar, absurdamente, que a cincia nos abasteceria
de respostas genticas e/ou desenvolvimentistas para essa patologia,
corrigindo o defeito, em outras palavras, prevenindo ou intervindo
antes que o desenvolvimento defeituoso se d no feto ou na criana,
conforme destaca Ramsey,52 apontando que, entre estes pesquisado-
res, encontrava-se o prprio John Money, tambm um estudioso do
transexualismo.
RAMSEY, G. Transexuais perguntas e respostas. So Paulo: Summus, 1998, p. 154.

52
Tambm havia outra frente de pesquisa, na sempre insistncia de
comprovar que o transexual no poderia ficar sem o ismo. Tais estu-
dos se pautam em alteraes hormonais e no controle que os horm-
nios, masculino e feminino, desempenham sob a diferenciao cerebral
entre os humanos.
Entretanto, as pesquisas, antes aludidas, nunca chegaram a
resultados conclusivos, conforme apontou Saadeh53 e tambm Kaplan,54
este ltimo afirmando: embora os entendidos no assunto considerem
o transexualismo resultado de fatores genticos, hormonais ou de sis-
tema nervoso central, nenhuma dessas evidncias foi encontrada nos
seres humanos.
Tambm a Psicologia e a Psicanlise no chegaram ao consenso
no tocante definio diagnstica e etiolgica do transexualismo e
sua teraputica. No se sabe, at o presente momento, se a cirurgia
de redesignao sexual realmente a mais adequada, diante da pos-
sibilidade de outros mtodos, inclusive a de no submisso a tal cirur-
gia, como bem acontecendo no momento, o que no torna essa pessoa
infeliz, em razo de tal opo. Parece-nos que a questo deve ser enca-
rada como alternativas e que, prestados os devidos e isentos esclare-
cimentos, possa o transexual decidir o destino dele, no pleno exerccio
de sua autonomia privada.
Em se tratando de transexualidade, sequer h sintomas preci-
sos. Portanto, no correto pretender insistir em definir o transexua-
lismo, por meio de semelhanas existentes entre eles, que so gentica
e anatomicamente normais, com as genitlias normais e tambm com
os cromossomos correspondentes aos respectivos sexos, ou seja, XX
para as transexuais femininas e XY para os masculinos.
A discordncia apenas no tocante realidade anatmica. Dis-
cordam os transexuais com a identidade sexual fsica, ou seja, no
aceitam o sexo anatmico. Nery55 descreve bem a rejeio e a incom-
preenso para com os transexuais, que eram continuamente mar-
ginalizados. Assim, Nery sentia que no pertencia nem ao grupo
majoritrio heterossexual e aceito, nem a qualquer grupo minoritrio
53
SAADEH, A. Transtorno da identidade sexual um estudo psicopatolgico de transexua-
lismo e feminino. Tese de doutorado em Psiquiatria. So Paulo: Faculdade de Medicina de Uni-
versidade de So Paulo, 2006, p. 50-1, 55.
54
KAPLAN, H. I; SASOCH, B. J. Compndio de psiquiatria dinmica. 3. ed., Porto Alegre: Artes
Mdicas, 1984, p. 480.
55
Leya, 2011, livro sobre uma saga do sexo e da vida. E, segundo o prefaciador desta indispen-
svel obra, Antnio Houaiss, Nery conta a prpria histria dele, primeiro transexual mascu-
lino operado neste pas e anuncia, talvez, um mundo menos solitrio para os diferentes, para
aqueles que no se enquadram entre as maiorias... (p. 17-18).
e discriminado. No me sentia mulher nem homossexual. Ainda desco-
nhecia todas as categorias inventadas em meados do sculo XX.56
Na verdade e para entender o transexual, necessrio admitir
que essa pessoa j pertence ao outro sexo, no restando mais dvida
alguma a respeito deste pertencimento. Portanto, h o prevalecimento
da identidade sexual, j definida, sobre o sexo apresentado. por tal
razo, ou seja, reconhecimento de sua realidade, independente do sexo
apresentado, que vrios transexuais se submetem s cirurgias para que
o sexo anatomofisiolgico seja adequado identidade sexual. , por
conseguinte, a adequao da anatomia identidade sexual, para que
haja tambm o reconhecimento pelo outro, evitando discriminaes e
demais estigmas.
Assim, no correto partimos de diagnsticos preestabelecidos,
considerando a transexualidade como disforia de gnero, uma psicose
ou uma desordem narcsica. Tais rtulos, alm de patologizar o qua-
dro, empobrecem-no, impedindo que nos voltemos singularidade de
cada sujeito transexual.57
Portanto, incorreto designar como transexuais apenas as pes-
soas que pretendem ou se submetem aos tratamentos hormonais e
cirurgia de transgenitalizao. Tal opo muito pessoal. Vrios tran-
sexuais apenas buscam a alterao do prenome. A ajuda psicolgica
ou psicanaltica seria exclusivamente quanto aos que esto em dvida
tocantemente necessidade de alterao anatmica do corpo, eis que
a questo, envolvendo a rejeio do sexo apresentado, j est superada
e seria interdio pretender possvel reverso deste quadro.
O teratolgico, na rea mdica e psicolgica, chega ao ponto de
se estabelecer uma distino diagnstica entre transexuais verdadeiros
ou primrios e transexuais secundrios (ou mentirosos, para contra-
por aos verdadeiros). Assim, Ceccarelli58 afirma que somente os transe-
xuais verdadeiros59 poderiam se submeter cirurgia de redesignao
56
Leya, 2011, P. 45, ainda esclareceu que: Sabia que no era aprovado pela maioria. Em que
grupo existente me enquadrava? Algo errado havia. Se fosse uma doena, onde e como? No
inspirava pena ou compaixo. E como explicar minha refinada sensibilidade, que me fazia ter
uma doda lucidez, a ponto de viver minhas fantasias to intensamente sem perder o senso de
realidade? Por esta incompatibilidade de minha mente com as partes do meu corpo, numa
inverso total de imagem, tornei-me, cada vez mais, um ser angustiado. Alm de tudo, cnscio
de que argumento algum poderia me justificar.
57
58
CECCARELLI, P. R. Transexualismo. So Paulo: Casa do Psiclogo, 2008, CECCARELLIp.22.
59
Transexual verdadeiro ou primrio, psicologicamente falando, o que sempre teve averso
ao sexo biolgico dele, no exercendo funes sociais atribudas ao sexo possudo e desejante
de um corpo sexualmente oposto ao do nascimento dele. Nos transexuais secundrios, o
desejo ao sexo oposto ao possudo oscilante ou tardio. Nota-se que a opo do transexual
sexual, j que no apresentam distrbios psquicos e tambm no pre-
tendem a transformao corporal, com fins mercadolgicos, como a
prostituio, por exemplo. Nota-se que o paternalismo e a inverso do
princpio da boa-f no se fazem presentes apenas no mundo jurdico.
Tambm em outras reas do conhecimento duvidam sempre da pro-
posta do outro e pretendem impor um modo de vida, diferente do per-
seguido pela parte diretamente interessada.
assim que Ceccarelli continua afirmando, na mesma obra e
pgina anteriormente citadas, que a cirurgia de mudana de sexo
poderia tambm ser pretendida por psicticos, perversos, travestis e
alguns homossexuais, o que dever ser recusada, eis que pleiteada para
o exerccio da sexualidade.
Desse modo, os transexuais ficam na dependncia de um pr-
vio diagnstico psicolgico, se falsos ou verdadeiros, caso pretendam
se submeter cirurgia de redesignao sexual, o mesmo acontecendo
se a pretenso for apenas de mudana de registro, ou seja, o parecer
do psiclogo ser no sentido de que no seja realizada a modificao
no assento do registro civil do pretendente, diante da dvida se a pes-
soa um transexual falso ou verdadeiro, considerando que os estudos
realizados no paciente no foram conclusivos. Haja pacincia! Haja
vigilncia!
Cossi, encampando as paternalistas colocaes de Ceccarelli,
acaba entendendo que a subordinao a tais processos mdicos, por
pessoas equivocamente diagnosticados como tal, pode fazer com que
futuramente eles venham a se arrepender, desenvolver problemas ps-
quicos, envolver-se com drogas, lcool ou outras substncias psicoati-
vas podendo chegar ao suicdio.60 Desprezou, esse ilustre psiclogo,
com formao em Psicanlise, que o inverso tambm poder levar a
tais episdios, ou seja, a no realizao da cirurgia e, outrossim, que
pessoas se envolvem com drogas, lcool etc., por inmeros outros
problemas.
Portanto, e em hiptese alguma, podemos aderir s colocaes
de Cossi, quando lana a seguinte assertiva: concordamos com a pos-
tura de que se deve realizar um rigoroso diagnstico para que assim
sejam selecionados para se submeter a tais drsticas e irreversveis
intervenes mdicas somente aqueles candidatos que possam ser
secundrio, pela cirurgia de mudana de sexo, previamente negada. Portanto, h uma pr-
via excluso diagnstica de pertencimento e o transexual somente o , se nasceu primaria-
mente assim.
60
considerados como transexuais verdadeiros,61 para, logo em seguida
sentenciar, esse ilustre autor, como se o assunto no carecesse de mais
debates: Quanto menos primrio for o transexualismo, menos satisfa-
trios sero os resultados.62
Com a finalidade de reconhecer apenas o transexual verda-
deiro, Stoller63 exclui o menino da passagem pelo complexo de dipo.
Segundo este doutrinador, no h o desejo do menino pela me, que
sequer disputada com o pai. H total desinteresse do menino pela
trama edpica, considerando que foi ele capturado pelos aspectos exte-
riores da feminilidade. Com relao s meninas, o pai no um objeto
sexual e sim um parceiro, diante da manifestao da masculinidade.
Assim e segundo Stoller,64 a ausncia da passagem edpica dos
transexuais tem por consequncia que tais sujeitos parecem ter
desenvolvido certa irresponsabilidade frente Lei e certa aptido
a mentir infantilmente. No h, porm, que se falar em psicopa-
tia, logo concerta o autor ora citado, na ausncia de gozo na trans-
gresso. Tambm, continua Stoller, sem convico: parecem no
desenvolver relacionamentos mais profundos com o outro, mas sim
pseudorrelacionamentos.65
Nota-se que o socorro ao complexo de dipo, com excludente
do transexualismo (ou a confirmao do transexual verdadeiro) no
suficiente para desconsiderao do transexual secundrio. Ao con-
trrio, seria at mesmo afirmao, eis que no teriam eles a tendncia
mentira ou transgresso e, assim, se optassem pela cirurgia, tal
escolha seria irreversvel.
Seja como for, cada cincia defende seu ponto de vista. Tem o
seu discurso, a sua verdade, conforme afirmou Foucault. Geralmente,
no h interlocuo entre as cincias. Cada corrente tem a sua ideia,
na pretenso de que seja a melhor. Entretanto, no momento em que
se discute a prevalncia da autonomia privada, a interveno mnima
na vida das pessoas, esses juzos de valores so sempre excludentes,
por desprezarem, completamente, a ideia de um grupo dissonante
dessa normalidade imposta. E, para a feitura deste trabalho, tivemos
que adentrar em outros saberes e, decepcionantemente, concluir que
no divergem em nada do mundo jurdico, considerando que tambm
61
62
63
STOLLER, R. J. A experincia sexual. Rio de Janeiro: Imago, 1982, p. 37.
64
STOLLER, R. J. A experincia sexual. Rio de Janeiro: Imago, 1982, p. 110-113.
65
STOLLER, R. J. A experincia sexual. Rio de Janeiro: Imago, 1982p. 110-113.
nestes saberes o pensamento majoritrio no consegue dialogar com o
minoritrio e entender a especificidade de cada um.
6REDESIGNAO SEXUAL POR MEIO DO TRATAMENTO HORMONOCI-

RRGICO, UMA OPO
Necessrio, primeiro, discutir a pertinncia do tratamento hor-

monocirrgico, o que ser aqui realizado com base na teoria stolle-
riana e da Psicanlise, bem como tambm considerando as colocaes
de Cossi, vrias vezes citado neste trabalho, a exemplo tambm de
Stoller.
A administrao de hormnios nos transexuais tem por finali-
dade reduzir os caracteres sexuais. H a feminilizao dos homens,
com o desenvolvimento dos seios e com a diminuio da musculatura e
involuo dos testculos e do pnis. Com a eletrlise os pelos so reti-
rados. As mulheres, lado outro, so masculinizadas com acrscimo de
massas, gorduras, de musculatura e reduo dos seios. O tom de voz se
torna grave, a pilosidade tpica masculina surge.
Com a cirurgia, nos homens, h a supresso do pnis e dos test-
culos e a feitura da neovagina, com a preservao das peles do escroto
e do pnis, que sero utilizadas na construo do novo rgo. Nas
mulheres, h a remoo dos seios, a realizao da histerectomia, bem
como a feitura de um pnis, mediante enxertos de pele, inapto con-
duo de urina e de produzir estmulos sexuais.66
No Brasil, e considerando que vrios transexuais se submete-
ram interveno cirrgica principalmente na Europa, bem como
neste pas, por conta e risco de alguns mdicos, que foram at mesmo
a ser processo, criminalmente, a ento Resoluo n. 1.482/1997, expe-
dida pelo Conselho Federal de Medicina (CRM), acabou permitindo
a cirurgia de redesignao sexual e os procedimentos acessrios.
66
Aproximadamente 1 em cada 30.000 homens adultos e 1 em cada 100.000 mulheres adultas
buscam a cirurgia de redesignao de sexo, conforme estatstica de pequenos pases da
Europa (Cfr. RAMSEY, G. Transexuais perguntas e respostas. So Paulo: Summus, 1998, p.
47). Na verdade, tal estatstica demonstra, como acontece no Brasil, que os homens se subme-
tem mais a tal cirurgia. E o prprio Ramsey aponta esta discrepncia estatstica entre o
nmero de transexuais masculinos diante do grau de dificuldade do processo cirrgico em
homens e mulheres e na qualidade do resultado final, fato este tambm confirmado por um
mdico, em Belo Horizonte, que j fez inmeras destas cirurgias em mulheres, inclusive pelo
SUS, e uma apenas no homem, que no restou perfeita, segundo afirmativa do prprio
mdico, levando-o a afirmar que nunca mais realizaria este tipo de interveno em homens, o
que tambm confirmado por Cossi (p. 55): Do ponto de vista tcnico, a cirurgia de redesig-
nao sexual no homem e a criao de uma neovagina menos complexa do que a cirurgia
correspondente em uma mulher e do que a criao de um neofalo, alm do fato de tal proce-
dimento mdico no homem apresentar melhores resultados esttica e funcionalmente.
Inicialmente, aludida resoluo previa que estas cirurgias somente
poderiam ser perpetradas em hospitais universitrios ou pblicos.
A primeira cirurgia de mudana de sexo no Brasil foi realizada
em janeiro de 1999, no Hospital das Clnicas da Faculdade de Medicina
da Universidade de So Paulo. Hoje, esta cirurgia realizada em vrios
Estados deste pas, democratizando o acesso dos que pretendem a ela
se submeter, alm de tambm ser realizada pelo SUS, por meio de por-
taria baixada pelo Ministrio de Sade, em junho de 2008, tanto para
transexuais masculinos como femininos.
A Resoluo n. 1.482/1997 foi revogada pela de n. 1.652/2002 e
esta, por sua vez, pela Resoluo n. 1.955/2010, esta ltima ainda em
vigor, permitindo, de maneira correta, que as cirurgias de redesignao
sexual, do masculino para o feminino, fossem perpetradas. Entretanto,
tratando-se de fentipo feminino para o masculino e comprovando a
maior dificuldade na satisfao de tal interveno, a realizao con-
tinuou condicionada prtica de pesquisa em hospitais universitrios
ou pblicos. Entretanto, tal exigncia, corretamente, acabou superada
pela portaria baixada pelo Ministrio de Sade, ao determinar que as
cirurgias, independentemente do fentipo, fosse realizadas pelo SUS.
No obstante a ausncia de critrios universalmente aceitos para
a autorizao da cirurgia de redesignao sexual noticia Cossi67 que
a World Professional Association for Transgender Health WPATH,
antes chamada de Harry Benjamin International Gender Dysphoria
Associaton, uma instituio referncia e que recomenda quais os
procedimentos a serem adotados quanto teraputica anunciada aos
transexuais.
Assim, tanto a redesignao hormonal ou a cirrgica no podem
acontecer por escolha do prprio hospital ou mdico, mas a pedido do
interessado. Contudo, aps tal requerimento, o interessado est nas
mos do mdico, psiclogo ou psiquiatra, considerando que a pessoa
passa, necessariamente, por um alongado e burocrtico ritual, muito
alm das determinaes constantes da resoluo do Conselho Federal
de Medicina.
Assim que, apontado por Cossi,68 no ambulatrio de Endocri-
nologia do Hospital das Clnicas da FUMUSP, o pretendente cirurgia
de redesignao de sexo tem que ser persistente, eis que, primeira-
mente, ter que passar por uma triagem, diante de um mdico espe-
cialista. Aps, encaminhado ao psiclogo, que apresentar avaliao
67
68
lastreada em entrevistas livres e em uma bateria de testes, de um sub-
jetivismo escancarado (HTP, Szond, Rorscharch, desenhos livres, dese-
nho da famlia etc.).
Confirmado pelo psiclogo o diagnstico de transexualismo, o
pretendente cirurgia de redesignao sexual agora encaminhado
Psiquiatria, com a feitura de um novo diagnstico, por dois especialis-
tas. Depois, a pessoa passa por um acompanhamento psicolgico obri-
gatrio (individualmente e em grupo), por no mnimo dois anos e, ao
final, a equipe multiprofissional indicar, se for o caso, a conduta hor-
monal ou cirrgica.
Diante de todo o estafante percurso acima, h a pretenso de
avaliar os nveis de masculinidade e de feminilidade dos candidatos
para posterior tratamento hormonocirrgico. Tambm h o teste de
vida real, pelo qual o pretendente redesignao sexual viver como
se j fosse o sexo pretendido, em tempo integral, pelo perodo de
observao, que de 2 (dois) anos.
O tratamento hormonal poder ter implicaes imprevisveis,
diante da transformao em um outro corpo, que carecer constante-
mente de hormnios do sexo querido e de presumveis novas cirurgias
corretivas. A cirurgia considerada drstica, com intervenes defi-
nitivas no organismo. Assim, compete ao mdico esclarecer o cliente,
corretamente, sobre os efeitos desta cirurgia, posto que, no obstante
querida pelo candidato, no tem o mesmo cincia de todas as consequ-
ncias dessa cirurgia.
Assim, em vez de se preocupar com um diagnstico preciso, que
j vimos nem sempre possvel, o melhor ser explicar o que acontece
com o cliente, bem como demonstrar como realizada a cirurgia, suas
consequncias. Para tanto, esto disposio do profissional, respon-
svel pelos esclarecimentos, os recursos visuais, at mesmo a gravao
de cirurgias anteriores. Esse especialista tambm poder colher tes-
temunhos dos que passaram por tal cirurgia, um, trs, quatro e mais
anos depois, na ausncia de pesquisas relacionadas s convivncias dos
transexuais que fizeram a cirurgia de redesignao sexual. Ouvi-los
, por conseguinte, ajudar no debate sobre a questo; permitir cor-
rees de rumos, alm de auxiliar no consentimento esclarecido dos
candidatos a tal procedimento.
A respeito dessa colocao, ou seja, da oitiva dos transexuais
que se submeteram cirurgia, ilustrativo o depoimento de Nery,69 j
citado acima como o primeiro transexual masculino a se submeter
cirurgia de redesignao sexual:
NERY, Joo W. Erro de pessoa: Joana ou Joo? Rio de Janeiro: Record, 1984, p 234-238.
69
Um ano havia transcorrido aps o trmino das cirurgias. Finalmente
eu era um homem! Um homem de carne e osso, e no somente na
imaginao [...). Agora meu corpo se moldava expressivamente
minha essncia. Deixa-a transparecer numa expansividade natu-
ral e vigorosa, at mesmo nos gestos mais tmidos de outrora [...].
O to esperado bigode resplandecia no rosto, conferindo matu-
ridade aparncia [...]. s vezes, eu parava de capinar e ficava me
maravilhando com o fato de estar sem camisa ao sol; poder chegar
at o porto ou falar com os vizinhos por cima do muro, sem ter
nada para esconder. As cicatrizes se tornaram insignificantes como
motivo de constrangimento. Alm do mais, os cabelos do peito
comeavam a cobrir parte delas. Eu largava o cabo da enxada, abria
os braos, respirava fundo e alisava o peito, to reto e lisinho... Ina-
creditvel!!! [...].O espelho voltava a ser o meu grande companheiro.
Mas, agora, ao me deslumbar, sentia-me mais forte e ntegro. No
procurava propriamente a beleza, mas a coerncia, e isso eu encon-
trava cada vez mais.
Portanto, compete pessoa, aps os devidos esclarecimentos,

recusar a submeter-se cirurgia e no ao mdico, como a inteno
da resoluo do Conselho Federal de Medicina, ao proibir a realizao
de tal interveno, sob o argumento de que o cliente no est hbito
para tanto e, ainda, socorrendo-se, para assim proceder, de pr-testes
de psicolgicos e psiquitricos, que geralmente desprezam a singulari-
dade de cada pretendente.
Alis, considerando a preocupao com o acompanhamento psi-
colgico prvio, este deveria tambm ter continuidade, para os que
quisessem, aps o tratamento, pelo tempo que fosse necessrio, prin-
cipalmente considerando que, aps a cirurgia de redesignao sexual,
h a construo de uma nova imagem, dia aps dia.
Assim, e em face da importncia da Resoluo n. 1.955/2010,
expedida pelo Conselho Federal de Medicina, em nosso ordenamento
jurdico, bem como diante da omisso legislativa a respeito da cirurgia
de transgenitalizao e em face do disposto no art. 13, do Cdigo Civil,
necessrio ser esclarecer, no tpico adiante, sobre a natureza jur-
dica desta aludida resoluo e tambm adentrar, logo em seguida, no
necessrio consentimento consentido.
7A RESOLUO N. 1.955/2010,70 EXPEDIDA PELO CONSELHO FEDERAL
DE MEDICINA
Nos tpicos seguintes deste trabalho pretendemos demonstrar a

desnecessidade de requerimento judicial, realizado por meio de juris-
dio voluntria, para modificao do sexo e do nome no Cartrio res-
pectivo, aps realizao de cirurgia de resignao sexual. Entendemos
que, a partir da Resoluo n. 1.482/1997, expedida pelo Conselho Fede-
ral de Medicina, desnecessria a judicializao dessa questo.
Em socorro a essa nossa pretenso, esclarecemos que h uma
tendncia, exigncia da sociedade atual, de no se exigir a judicializa-
o de questes atinentes aos procedimentos de jurisdio voluntria,
como aconteceu com a separao e divrcio consensuais e tambm no
que tange ao inventrio e partilha, desde que no existam menores ou
incapazes,71 que podem ser realizados diretamente no cartrio extra-
judicial, quebrando o rgido monoplio judicial acerca das solues das
questes envolvendo essas temticas.
Nossa proposta a seguinte: se a cirurgia realizada aps o
acompanhamento do paciente por uma equipe multidisciplinar,72 opi-
nando, os componentes dessa equipe, no final de dois anos, pela feitura
ou no da cirurgia, basta, para tanto, aps realizada esta interveno
corporal, na expedio de um documento mdico, para que o redesig-
nado, sexualmente falando, dirija-se ao cartrio e modifique o nome e
o estado civil, a exemplo do que acontece quando nasce uma criana.
Deixamos ressaltado que essa nossa proposta sequer h necessi-
dade de cirurgia, que seria opcional. Caso no realizada a cirurgia, o
psiclogo, em um primeiro momento, a pessoa que fornecer o docu-
mento necessrio modificao do sexo e nome no cartrio, em que
lavrado o registro da pessoa que almeja tal modificao. Evidentemente
que temos a pretenso de que a atuao do psiclogo, com relao
70
A Resoluo n. 1.652/02 foi revogada pela 1955/2010 e, na verdade, veio apenas aperfeioar
aquele anterior instrumento normativo, encampando vrios artigos da revoluo revogada.
71
Tal proposta foi viabilizada pela Lei n.11.441/2007 modificadora dos arts. 982, caput, e res-
pectivo pargrafo nico, 983 e 1.031 e 1.124-A, todos do Cdigo de Processo Civil, que permite
a prtica de tais atos por escritura pblica. Posteriormente, a Resoluo n. 35/2007 do Con-
selho Nacional de Justia regulamentou a Lei n. 11.441/2007, que trouxe as inovaes antes
citadas, a fim de adotar medidas uniformes e tornar os atos mais geis e com menor custo,
descongestionando o Poder Judicirio. Estabeleceu, entre outras situaes, a liberdade de
escolha do tabelio de notas; a faculdade de opo pela via judicial ou extrajudicial.
72
Art. 4, da Resoluo n. 1.955/2010: Que a seleo dos pacientes para cirurgia de transgeni-
talismo obedecer avaliao de equipe multidisciplinar constituda por mdico psiquiatra,
cirurgio, endocrinologista, psiclogo e assistente social, obedecendo aos critrios a seguir
definidos, aps, no mnimo, dois anos de acompanhamento conjunto:
1) Diagnstico mdico de transgenitalismo;
2) Maior de 21 (vinte e um) anos;
3) Ausncia de caractersticas fsicas inapropriadas para a cirurgia.
pessoa trans, no a de trat-la como doente, mas, sim, auxili-la e
esclarec-la acerca da deciso a ser tomada. Num segundo momento,
e rompido mais um lano cultural paternalista, que a prpria pessoa se
dirija ao cartrio e faa a mudana necessria, ficando a presena do
psiclogo como mera opo da parte interessada.
que, aps se submeter cirurgia de mudana de sexo, a pessoa,
em juzo, volta a rediscutir a questo e, pior, poder encontrar um juiz
conservador, que no permitir as mudanas necessrias, que devem
ser entendidas como meras consequncias da cirurgia a que j foi sub-
metido o requerente.
Evitando este duplo e moroso ritual de passagem, principal-
mente considerando que o ltimo, no Judicirio, excesso de buro-
cracia, que pretendemos demonstrar que no h necessidade dessa
segunda etapa. A proposta parece fcil. Contudo, vrias questes, nos
tpicos adiante, sero suscitadas. A primeira a busca da natureza
jurdica desta resoluo, a permitir, para os que querem fazer a cirur-
gia, a mudana de sexo.
Assim, passamos a enfrentar a questo aqui proposta, que tam-
bm parece simplista, mas no o . A doutrina enfrenta, levemente, tal
problema. Alis, a discusso comea com relao prpria natureza
jurdica do Conselho Federal de Medicina, se autarquia ou no.
8NATUREZA JURDICA DOS CONSELHOS PROFISSIONAIS
Os conselhos profissionais so considerados como autarquias

neste pas. Portanto, so rgos da Administrao Indireta, possuindo
competncia normativa para editar resoluo atinente s respectivas
profisses. Os limites desta produo legislativa que devem ser con-
siderados, para certificar se est havendo invaso de competncia e,
por conseguinte, declarada invlida determinada resoluo, por ir alm
do permitido.
O Conselho Federal de Medicina uma autarquia que, constan-
temente, tem apresentado resolues administrativas, com a finalidade
de efetivar o direito constitucional sade. Algumas dessas resolues
foram ou esto em discusso no Poder Judicirio.
Certo que as autarquias no so autnomas. Entretanto, como
entidades da Administrao tm o exerccio do poder normativo, desde
que no confrontantes com a lei e no imponham obrigaes, proibi-
es ou sanes que devem ser previstas exclusivamente em legislao
advinda do Congresso Nacional.
Esse poder normativo das autarquias, especificamente no que
tange ao Conselho Federal de Medicina, vem regulamentar, por conse-
guinte, diversas temticas da rea mdica, no acobertadas por legis-
lao prpria e tem por escopo encampar postulado constitucional,
que considera a sade como direito fundamental, conforme constam
dos arts. 196 a 200 da Constituio Republicana de 1988.
Para adentrar mais no tema, registre-se que o Conselho Fede-
ral de Medicina compe a Administrao Pblica Indireta e, por con-
seguinte, est submetido aos princpios previstos no art. 37,caput, da
Constituio da Repblica, e tambm pode expedir atos normativos,
vlidos e vinculantes, a todo e qualquer mdico, no exerccio de sua
profisso, bem como aos usurios deste servio pblico.
Demonstrando que o Conselho Federal de Medicina pratica atos
da Administrao Pblica, por ser autarquia federal, esclarece Ronaldo
Pinheiro de Queiroz73 que:
As atividades do CFM so tpicas da Administrao Pblica. Os con-

selhos so rgos delegados do Estado para o exerccio da regu-
lamentao e fiscalizao das profisses liberais. A delegao
federal tendo em vista que, segundo a Constituio da Repblica, a
teor do art. 21, XXIV, compete Unio Federal organizar, manter e
executar a inspeo do trabalho, atividade tpica de Estado que foi
objeto de descentralizao administrativa, colocando-a no mbito
da Administrao Indireta, a ser executada por autarquia, pessoa
jurdica de direito pblico criada para esse fim.
Portanto, o Conselho Federal de Medicina uma autarquia fede-

ral, criada a partir do Decreto-Lei n. 7.955/1945, revogado pela Lei n.
3.268/1957 e regulamentado pelo Decreto n. 4.045/1958, com a finali-
dade, em consonncia com o art. 2 da Lei n. 3.268, de supervisionar
o exerccio da profisso mdica em todo o pas, bem como julgar faltas
no decorrer da atividade profissional e pelo seu bom conceito, atinen-
tes tica mdica.
Confirma ser o Conselho Federal de Medicina uma autarquia,
Sylvia Zanella Di Pietro,74 ao doutrinar que o Estado pode instituir
pessoa jurdica constituda por sujeitos unidos (ainda que compulso-
riamente) para a consecuo de um fim de interesse pblico.
adepto desse entendimento, Queiroz,75 ao afirmar que,
73
QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de. A natureza jurdica dos conselhos fiscais de profisses
regulamentadas.Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1211, 25 out. 2006. Disponvel em: <http://
jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9082>. Acesso em: 20 abr. 2010.
74
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella.Direito administrativo. 23. ed., So Paulo: Atlas, 2010, p. 433
75
Os conselhos fiscais de profisses regulamentadas so criados por
meio de lei federal, em que geralmente se prev autonomia admi-
nistrativa e financeira, e se destinam a zelar pela fiel observncia
dos princpios da tica e da disciplina da classe dos que exercem
atividades profissionais afetas a sua existncia. No raro, na pr-
pria lei de constituio dos conselhos vem expresso que os mesmos
so dotados de personalidade jurdica de direito pblico, sendo que
outras leis preferem apont-los, desde logo, como autarquias fede-
rais. Todos os conselhos profissionais so criados por lei, dotan-
do-os de personalidade jurdica. Citem-se, a ttulo de exemplo, os
conselhos federais de farmcia e de medicina, criados respectiva-
mente pelas Leis 3.820/60 e 3.268/57.
Justifica ainda Queiroz, antes citado, a natureza jurdica de

direito pblico do Conselho Federal de Medicina, em razo da arreca-
dao tributria prpria:
Alm disso, os conselhos de fiscalizao so detentores de auto-

nomia administrativa e financeira, caracterstica essencial de uma
autarquia, cujo patrimnio, prprio deles, constitudo pela arreca-
dao de contribuies sociais de interesse das categorias sociais,
tambm chamadas de contribuies parafiscais, tendo ntido car-
ter tributrio. Nesse ensejo, cabe enfatizar que, j que as contri-
buies possuem natureza tributria, segundo o art. 119 do Cdigo
Tributrio Nacional, sujeito ativo titular da obrigao a pessoa
jurdica de direito pblico titular da competncia para exigir o seu
cumprimento.76
Por meio de resolues e diante da inrcia do legislador, o Con-

selho Federal de Medicina acaba por diminuir a mora do Estado, com
relao aos direitos garantidos constitucionalmente e ainda no efe-
tivados. Ressalta-se que a primeira resoluo, expedida por esse
Conselho, sobre a permisso para realizao da cirurgia de transgeni-
talizao, a de n. 1.482, de 1997. Depois, duas outras foram expedidas,
a intermediria, em 2002, e a ltima, a de n, 1.959, em 2010, a demons-
trar o desinteresse total do Congresso Nacional acerca do assunto.
Ademais, o mdico no pode se omitir, diante de um problema
que lhe apresentado. Deve agir, o mais rapidamente possvel. O Con-
gresso no to gil ou no interessa por alguns temas, de imediato.
Entretanto, o problema existe. Assim, no fosse o poder normativo do
Conselho Federal de Medicina, cada mdico passaria a atuar, diante
76
do caso concreto, sua maneira e, por conseguinte, diversos procedi-
mentos surgiriam, encarecendo os custos, ensejando diversidades de
tratamento e podendo at mesmo colocar em risco a sade da pessoa
interessada em se submeter cirurgia de redesignao de sexo, alm
do risco de serem processados, mdico e cliente, criminalmente.
nesse momento, ou seja, da necessidade de uniformizao
de procedimentos que, se continuassem diversificados, poderiam at
mesmo causar inmeros prejuzos, alm de interferir na prpria tica
mdica, que surge o poder normativo do Conselho Federal de Medi-
cina, numa atitude, primeiro, em prol da sociedade e, depois, da prpria
classe mdica, que trabalhar com mais segurana, com um atendi-
mento melhor, eis que, para a expedio de uma resoluo, o Conselho
Federal de Medicina analisa, com vrios mdicos, os procedimentos
at ento realizados, confirmando-os ou no e, a partir de ento, exi-
gindo que a classe mdica labore de uma determinada maneira, com o
sepultamento de possveis procedimentos equivocados.
A Resoluo n. 1.482/1997 e suas sucessoras, expedidas pelo
Conselho Federal de Medicina, evitaram que vrios mdicos fossem
processados pelo crime de leso corporal, caso realizassem a cirur-
gia de redesignao sexual, como chegou a acontecer neste pas, o que
demonstra a correo de sua edio, posto que veio ao encontro das
propostas dos transexuais que pretendiam fazer a cirurgia e os mdi-
cos acabavam no realizando-a, para evitar contragostos e de serem
taxados de criminosos em face da possvel denncia pelo Ministrio
Pblico e o acatamento de tal pea pelo formal e legalista Judicirio.
Portanto, as resolues em anlise, expedidas pelo Conse-
lho Federal de Medicina, com a ressalva da desnecessidade de pato-
logizao do transexual, vieram em boa hora, considerando que tais
instrumentos normativos no ferem o princpio da liberdade, j que
trabalham sobre o vazio legislativo, no extrapolando ou indo alm das
determinaes legais existentes em prol da populao. E a cirurgia de
mudana de sexo depende, antes de tudo, da vontade esclarecida do
transexual. No uma imposio.
Sobre o consentimento nessas cirurgias de redesignao de
sexo, exigncia das resolues permissivas da cirurgia de transge-
nitalizao, esclarecemos que tal proposta tica exigncia do atual
direito e, a respeito, doutrina Konder77 que, A comear pela forma, o
consentimento no biodireito reveste-se de uma quantidade de pecu-
liaridades de tal monta que denominado distintamente consen-
timento livre e esclarecido. Tambm chamado de: consentimento
KONDER, Carlos Nelson. O consentimento no biodireito: os casos de transexuais e dos wan-

77
nabes. Revista Trimestral de Jurisprudncia, Rio de Janeiro: Padma, v. 15, p. 62, jul./set. 2003.
informado ou consentimento ps-informao, um instrumento
do biodireito que teve grande evoluo em sua trajetria. Nasceu do
Cdigo de Nuremberg como a afirmao da necessidade de consen-
timento para pesquisa com seres humanos, em reao s experin-
cias nazistas, generalizando-se por toda a prtica mdico-cientfica,
sendo requisitado hoje para qualquer interveno mdica invasiva ou
extraordinria.
Assim, essas normas, emanadas do Conselho Federal de Medi-
cina, vm ao encontro dos anseios e das necessidades da prpria
sociedade civil, mais rapidamente do que se fosse editada pelo prprio
legislativo que, por outro lado, a qualquer momento poder rediscutir
o assunto, editando leis prprias. Podem ser consideradas at mesmo
como uma provocao salutar do Congresso Nacional, que at ento
no atinou para um especfico problema. O debate, a partir das resolu-
es expedidas pelo Conselho Federal de Medicina, foi apenas iniciado.
No est pronto e acabado.
certo que essas normas no tm carter meramente adminis-
trativo, ou seja, no so destinadas apenas aos aspectos de organizao
e do funcionamento daquela Autarquia. Na verdade, so prescries de
natureza diversas, que devem ser seguidas por pessoas fora do Con-
selho tambm. So normas de proposies prescritivas, direcionadas
tambm aos usurios do servio pblico de sade. Por isso, reafirma-
mos: so leis, no sentido material.
9A FINALIDADE E A MATRIA ENFOCADA NA RESOLUO N. 1.955/2010
A Resoluo n. 1.955/2010, veio em melhoramento anterior-

mente editada, para regulamentar a cirurgia de transgenitalizao,
autorizando os hospitais pblicos e privados, independentemente da
atividade de pesquisa, a procederem cirurgia de transgenitaliza-
o e/ou procedimentos complementares sobre gnadas e caracteres
sexuais secundrios, como tratamento dos casos de transexualismo.
Necessrias foram as edies de tais resolues,78 no obs-
tante a ausncia de patologia no caso transexual, conforme restou
demonstrado acima, considerando que a conduta do mdico podia ser
considerada como crime de leso corporal, apesar de visar, este pro-
fissional de sade, to somente o bem-estar do paciente que o pro-
curou. Demonstrando o equvoco das denncias contra mdicos que
Constou de um dos CONSIDERANDOS da Resoluo n. 1.955/2010, que a cirurgia de trans-

78
formao plstico-reconstrutiva da genitlia externa, interna e caracteres sexuais secund-

rios no constitui crime de mutilao previsto no art. 129 do Cdigo Penal brasileiro, haja
vista que tem o propsito teraputico especfico de adequar a genitlia ao sexo psquico.
realizavam cirurgias de mudana de sexo nos pacientes necessitados,
esclarece Elimar Szaniawski:79
A atividade mdica tem sempre por escopo a conservao da vida

e da sade do indivduo mediante a cura das molstias. Por isso,
nas atividades mdicas curativas, est ausente o dolo na prtica de
leses corporais. Outrossim, a terapia cirrgica, que visa cura do
doente, mesmo que ocorram mutilaes, no se enquadra no tipo
leso corporal, descrito nos Cdigos Penais.
Contudo, h entendimento no sentido de que, no Estado Demo-

crtico de Direito, as normas devem advir das casas legislativas, como
legtimas representantes do povo. Assim, surge a preocupao de defi-
nir qual a natureza jurdica das resolues expedidas pelo Conse-
lho Federal de Medicina, principalmente da Resoluo n. 1.955/2010,
sucessora da Resoluo n. 1.652/2002.
Na verdade, entendemos que no correto rotular, de chofre,
um documento normativo como inconstitucional, apenas conside-
rando a origem deste material jurdico. Vrios outros aspectos devero
ser avaliados, principalmente a inrcia do prprio Congresso Nacional
em legislar sobre assuntos j tratados na Constituio, ainda carentes
de regulamentao.
Depois, no consegue o Congresso Nacional legislar, de pronto,
sobre todas as questes. H casos que sequer necessitam de legislao,
como ato especfico do Poder Legislativo. Contudo, no mbito dos res-
pectivos conselhos de profissionais liberais carecem de normatizao,
com a finalidade de simplificar procedimentos, estancar dvidas e de
servir de modelos aos que ainda no esto familiarizados com deter-
minadas questo, simplificando a vida da populao.
No h contradio nessa nossa proposta, com o que acima res-
tou dito, no que tange insistncia equivocada de normatizar tudo
em nossas vidas. A normatizao aqui pretendida , na verdade, para
melhorar a vida das pessoas e vem ao encontro de um comportamento
j existente, at ento marginalizado. uma opo e no uma obriga-
o. Por meio desta normatizao, houve a incluso dos transexuais no
Sistema nico de Sade.
Assim, havendo mora na implementao de direitos fundamen-
tais ou se houver negativas desses direitos, bem como surgindo algo
especfico, no mbito de cada profisso e na ausncia de legislao
SZANIAWSKI, Elimar. Limites e possibilidades do direito de redesignao do estado sexual

79
Estudo sobre o transexualismo Aspectos mdicos e jurdicos. So Paulo: Revista dos Tri-
bunais, 1998, p. 276.
regulamentadora prpria, os Conselhos Federais podem e devem emi-
tir resolues, que so consideradas como leis, materialmente falando.
No precisa, nestes casos, de leis em sentido estrito.
Portanto, o Conselho Federal de Medicina, ao editar resolues,
age por delegao, eis que o art. 2, da Lei n. 3.268, criador do Conselho
Federal de Medicina, determina que,
Art. 2. O Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina

so os rgos supervisores da tica profissional em toda a Repblica
e ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da classe mdica,
cabendo-lhes zelar e trabalhar por todos os meios ao seu alcance,
pelo perfeito desempenho tico da medicina e pelo prestgio e bom
conceito da profisso e dos que a exeram legalmente.
Assim, comum o Conselho Federal de Medicina editar resolu-

es, na ausncia de lei, no sentido estrito, sobre determinado assunto,
como aconteceu com a edio da Resoluo n. 1.652/2002 e sua suces-
sora, a Resoluo n. 1.955/2010, que, com lastro na tica profissional,
acabou por esclarecer que a cirurgia de mudana de sexo tem car-
ter teraputico, eis que tem por finalidade tratar uma patologia, ade-
quando o sexo psquico e colocando fim a um srio conflito individual.
O equvoco, voltamos a insistir, desta resoluo em anlise, tra-
tar o transexual como patolgico. Srio conflito individual no torna,
necessariamente, a pessoa em doente. por tal razo que o assunto
dever ser discutido, caso queira o transexual, com o psiclogo e no
com o mdico. Evidente que o trabalho do psiclogo apenas o de
esclarecimentos sobre o assunto. No final, caso queira o consulente, a
cirurgia poder ser realizada, sem necessidade de rotular como doente
tal pessoa. No correto entender que os conflitos desguam sempre
em doena. Ao contrrio, devem ser solucionados, da melhor maneira
possvel. Assim que o transexual poder ter o apoio do psiclogo,
para que possa decidir, com esclarecimento, qual rumo tomar.
Para compreenso da competncia do Conselho Federal de Medi-
cina na edio de resolues, no se pode desprezar a natureza jurdica
deste rgo composto por profissionais liberais. So, o Conselho Fede-
ral e respectivos Conselhos Regionais de Medicina, conforme demons-
trado acima, autarquias criadas pela Lei n. 3.268, de 30 de setembro de
1957, com a funo, conforme consta do art. 2 desta lei, de supervisio-
nar a tica profissional e fiscalizar o exerccio da profisso.
Nota-se que a Lei n. 3.268/1957 no limita a funo do Conselho
Federal de Medicina apenas fiscalizao das atividades dos mdicos,
como tambm se preocupa com o desempenho tico desta profisso.
Assim, no se trata de invaso de competncia de legislar, reservada
constitucionalmente Unio, Estado, Distrito Federal e Municpio (art.
23, II, da CF), eis que o Conselho Federal de Medicina tem a funo de
regular as matrias relacionadas com o exerccio da profisso, no que
tange aos critrios tcnicos e ticos (morais)80 desta profisso.
Ressalta-se que, com o advento da Resoluo n. 1.955/2010 e
suas antecessoras, no houve restrio ao exerccio de profisso, a exi-
gir, a sim, edio de lei formal, em face do disposto no art. 5, XIII, da
Constituio Federal, a permitir o livre exerccio profissional e a deter-
minar que somente a Unio legisle sobre as condies e requisitos das
atividades de profissionais liberais.
A Resoluo n. 1.955/2010 e suas antecessoras, em anlise, limi-
taram-se a cuidar, especificamente, do exerccio da prtica terapu-
tica, sem criar limitaes administrativas e sem afrontar a Constituio
ou lei infraconstitucional.
Na verdade, acabaram por regulamentar uma prtica que j no
era incomum, apesar de inexistir instrumento normativo a respeito do
assunto, at a edio dessas aludidas e indispensveis resolues, que
tambm contriburam, sobremaneira, para superao de preconceitos,
no tocante aos transexuais, cooperando, por conseguinte, para trazer
baila o debate desse tema que estava adormecido no seio de pessoas
que insistiam em desconsiderar a Constituio Federal como norma
de incluso.
Portanto, respeitado foi, pelas resolues em anlise, o princpio
da legalidade, ditado pelo art. 5, II, da Constituio Federal, bem como
o prprio art. 5, da Lei n. 3.268/1957, instituidora do prprio Conse-
lho Federal de Medicina. Ditas resolues so direcionadas atuao
dos mdicos, que devero agir em consonncia com a tica e visando o
bem-estar de todos, a partir dos ditames constitucionais de uma sade
universal e abrangente.
10INTERVENO DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA PARA DES-

CRIMINALIZAO
Ressaltamos que a norma ruim quando interdita, castra ou

desconsidera as pessoas, em sua individualidade. Ao contrrio, quanto
liberta, quando vem ao encontro dos anseios dos necessitados, de pr-
ticas j em andamento, sempre bem-vinda e mesmo indispensvel,
conforme so as resolues do Conselho Federal de Medicina, que
tratam da cirurgia de redesignao sexual. As normas assim editadas
Destacamos outro CONSIDERANDO, da Resoluo n. 1.955/2010: que o esprito de licitude

80
tica pretendido visa fomentar o aperfeioamento de novas tcnicas, bem como estimular a
pesquisa cirrgica de transformao da genitlia e aprimorar os critrios de seleo.
incorporam aspectos ticos na legislao, nessa nossa proposta de o
Direito no desprezar a pessoa, em sua individualidade. E, se vrios
esto compartilhando o mesmo modo de vida, houve um alargamento
do aspecto tico, que agora j moral e que no pode ser desprezado
pelo Direito.
Foi a Resoluo n. 1.652/2002, bem como a sua antecessora, e
agora a Resoluo n. 1.955/2010, todas expedidas pela autarquia Con-
selho Federal de Medicina, atos administrativos com carter de impe-
ratividade, vinculando a todos os afiliados. Esse ato administrativo
normativo definido por Hely Lopes Meirelles,81 nos seguintes ter-
mos, Ato administrativo toda manifestao unilateral de vontade
da Administrao Pblica, que, agindo, nessa qualidade, tenha por fim
imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e decla-
rar direito, ou impor obrigaes aos administrados ou a si prpria.
Aludidas resolues so perfeitamente constitucionais, na
ausncia de lei tratando especificamente do tema, alm de aventar
assunto relacionado com a tica mdica e de encontrar fundamento no
art. 282 da Lei n. 3.268 de 30 de setembro de 1957.
Note-se que a Resoluo n. 1.955/2010, a exemplo das anterior-
mente expedidas, cuidou de assunto relacionado teraputica, devol-
vendo a tranquilidade a quem se encontrava em atrito consigo mesmo.83
e que, persistisse a inrcia dos legisladores, poderia levar automutila-
o ou ao autoextermnio.
Assim e apesar de vrias das resolues expedidas pelo Conselho
Federal de Medicina serem questionadas no Judicirio, essas aludidas
resolues nunca o foram. Essa ltima, de n. 1.955/2010, tambm pro-
vavelmente no o ser, eis que tambm veio ao encontro das pessoas
que eram excludas ou, quando achavam mdicos, dispostos a fazer a
necessria cirurgia de mudana de sexo, acabavam processados, cri-
minalmente, pelo Ministrio Pblico.
Ora, o vazio legislativo existente antes da edio das resolues
aqui comentadas, no permitia que fosse dada efetividade s normas
constitucionais e ressaltava o preconceito de o legislador discutir tema
81
MEIRELLES, Hely Lopes.Direito administrativo brasileiro.16. ed. So Paulo: Revista dos Tri-
bunais, 1990, p. 152.
82
A rt. 2 O Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina so os rgos supervisores
da tica profissional em toda a Repblica e ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da
classe mdica, cabendo-lhes zelar e trabalhar por todos os meios ao seu alcance, pelo per-
feito desempenho tico da Medicina e pelo prestgio e bom conceito da profisso e dos que a
exeram legalmente.
83
Vejamos outro CONSIDERANDO da Resoluo n. 1.955/2010: CONSIDERANDO ser o
paciente transexual portador de desvio psicolgico permanente de identidade sexual, com
rejeio do fentipo e tendncia automutilao e/ou autoextermnio.
referente mudana de sexo, desprezando o fato de que tal cirurgia,
para alguns dos transexuais, ser uma necessidade.
No se pode olvidar que as resolues citadas esto afinadas
com o Estado Democrtico de Direito, eis que no restringem projetos
individuais de vida daqueles que necessitam da mudana de sexo, na
busca de superao e sepultamento de transtornos que poderia carre-
gar por toda uma vida de infelicidade.
A respeito do tema, porm com relao resoluo que regu-
lamenta a ortotansia, por meio da morte digna, esclarece Maria de
Ftima Freire de S:84
Levantar bandeiras de um Estado Democrtico de Direito e descon-

siderar a participao daquele que busca a materializao de seu
direito nada mais que bradar por algo oco em sentido, desprovido,
exatamente, das caractersticas que lhe conferem rtulo e susten-
tam seus contornos lexicais. No h como se falar em democracia,
desconsiderando a pluralidade e esta no existe se excludos os ras-
gos da diferena.
Portanto, a resolues aludidas, regulamentadoras da cirurgia

de mudana de sexo dos transexuais, so marcos importantes para a
efetivao da dignidade da pessoa humana, pela incluso destas pes-
soas que, consequncia das cirurgias, podem ter uma vida melhor.
Viver com dignidade antes de tudo respeitar a individualidade do
outro, bem como aceit-lo ou estancar, o mais rapidamente possvel, o
seus sofrimentos.
Sobre a normatividade infraconstitucional, doutrina Konder85
que:
Em especial, a normativa infraconstitucional civilstica no mais

das vezes petrificada em um tempo pr-industrial e patrimonialista
e examinada por uma doutrina reacionria atravs de olhos enve-
lhecidos deve ser revista luz da tbua principiolgica consagrada
na Constituio de 1988. Ignorar isto e, ao contrrio, interpretar os
princpios constitucionais luz da legislao codificada significa
violar o princpio da democracia, porque enquanto o Cdigo Civil
foi redigido por uma elite de jurista luz dos valores da classe diri-
gente, o texto constitucional de autoria da soberana assembleia
constituinte.
84
S, Maria de Fatia Freire de. Aspectos jurdicos da eutansia. In: TAITSON, Paulo Franco
(Ed.) et al.Biotica:vida e morte. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2008, p. 149.
85
KONDER, Carlos Nelson. O consentimento no biodireito: os casos de transexuais e dos wan-
nabes. Revista Trimestral de Jurisprudncia, Rio de Janeiro: Padma, v. 15, p. 52, jul./set. 2003.
Com certeza, as resolues em comento souberam abarcar as
lies acima, ao considerar, em seus bojos, os princpios constitucio-
nais e normatizando fato que carecia de urgente regulamentao, com
desprezo a velhos e surrados conceitos, como o de ser crime de leso
corporal e o de que era, a cirurgia de mudana de sexo, mutilao.
Antes destas resolues comentadas, fcil era notar as angs-
tias de um mdico, que estava, diante da necessidade do consulente,
pronto para submet-lo cirurgia. Contudo, no poderia faz-lo, eis
que poderia ser processado por crime de leso corporal.
Portanto, a atual Resoluo n. 1.955/2010, norma que prevale-
cer, enquanto o assunto no for devidamente analisado no Congresso
Nacional e, se o for, tambm no poder ser desconsiderada, como
ponto de partida, aludida resoluo, sob pena de escancarado retro-
cesso e a, sim, h possibilidade de a legislao ser declarada incons-
titucional, com o prevalecimento, mais uma vez, da resoluo vigente,
que veio dar efetividade ao texto constitucional, com a prevalncia de
diversos princpios, at ento desprezados.
A constitucionalidade e a legalidade da Resoluo n. 1.652/2002,
de sua antecessora, e da atual, de n. 1.955/2010, como norma (como lei
no sentido material), advm do fato de ser o Conselho Federal de Medi-
cina uma autarquia federal e que, por conseguinte, tem por escopo a
regulamentao de atos e procedimentos mdicos, atribuindo-lhe
legitimidade, na ausncia de lei a respeito do assunto.
Portanto, essas resolues, que permitem, sem interveno do
Judicirio,86 a cirurgia de transgenitalizao so vlidas, como normas
jurdicas permissivas, eis que so congruentes com os dispositivos da
Constituio, tanto no que se refere o seu processo de promulgao
como no que diz respeito ao seu contedo.87
Assim, no o Legislativo o nico rgo produtor de lei, o nico
a determinar o direito, diante das inmeras solicitaes de vivncia
social. Ademais, as resolues em comento no se tratam de normati-
zao pela coao, mas, sim, de encampar fatos sociais que se encon-
travam desguarnecidos juridicamente falando.
86
Antes da Resoluo n. 1.652/02 entendia-se que at mesmo para se submeter cirurgia de
redesignao do sexo, necessrio era a autorizao judicial, para tanto tal fato foi superado.
Entretanto, feita a cirurgia, a pessoa dever socorrer-se do Judicirio, para mudana de nome
e sexo, o que parece ser at mesmo contraditrio.
87
SIMONE, Goyard-Fabre. Os fundamentos da ordem jurdica. Trad. Claudia Berliner. 2. ed.
So Paulo: Martins Fontes, 2007, p.132.
Lado outro e como esclarece Nino,88 forte nas lies de John
Austin,89 algumas vezes, o soberano legisla de forma direta e outras,
por intermdio de um legislador delegado, ou seja, de um indivduo a
quem o soberano confere competncia para legislar.
Assim, age o Conselho Federal de Medicina, ao editar resolues,
por delegao do prprio Congresso Nacional. Contudo, tal cirurgia
dever ser realizada com o consentimento esclarecido do paciente,
sendo necessrio que, durante o perodo de 2 (dois) anos, exigido
pela resoluo, que tambm no dever ser rgido, que seja um per-
odo de esclarecimento, inclusive com relao s consequncias deste
ato cirrgico, sua irreversibilidade, enfim, que a cirurgia seja realizada
por meio da livre escolha do transexual e com conscincia do ato a ser
realizado.
11CONSENTIMENTO ESCLARECIDO DO TRANSEXUAL
Ressalte-se que no sculo XIX j se observava a necessidade de

no se desprezar as singularidades e os particularismos provocados
pelos movimentos sociais e econmicos. A crena da razo universal90
demonstrou-se contraditria, diante da impossibilidade de superao
da liberdade tica, ento encarcerada principalmente nos ordenamen-
tos jurdicos. O agir tico era o agir em consonncia com a norma. Fora
dela, tudo era marginalizado.
Assim, necessrio era reformular a tradicional e fechada con-
cepo da razo e, por conseguinte, tambm repensar o conceito de
88
NINO, Carlos Santiago. Introduo anlise do direito. Trad. Elza Maria Gasparotto. So
89
Segundo Nino, na mesma pgina da obra antes citada, O critrio de pertinncia a um sis-
tema, na teoria de Austin, pode, portanto, ser formulado assim: uma norma pertence ao sis-
tema originado em um soberano quando foi estabelecida diretamente por ele ou por um
legislador cuja competncia deriva de outras normasestabelecidaspelo soberano.
90
FEYERABEND, Paul. Adeus razo. Traduo Vera Joscelyne. So Paulo: Editora UNESP,
2010, p. 7, afirma que a obra dele pretende mostrar que, enquanto a diversidade benfica, a
uniformidade diminui nossas alegrias e nossos recursos (intelectuais, emocionais e materiais)
e ainda esclarece, na mesma pgina, que Existem tradies poderosas contrrias a esse
ponto de vista. Essas tradies podem at admitir a possibilidade de as pessoas organizarem
suas vidas de vrias maneiras; acrescentam, porm, que a variedade precisa ter limites. Esses
limites, dizem elas, so constitudos pelas leis morais, que regulam as aes humanas, e pelas
leis fsicas, que definem nossa posio na natureza. E, pgina 9, Feyerabend acrescenta que
O que est sendo imposto, exportado e uma vez mais imposto uma coleo de ideias e pr-
ticas uniformes que tm o apoio intelectual e poltico de grupos e instituies poderosas. [...]
As diferenas culturais desaparecem e artesanatos, costumes e instituies nativas vo sendo
substitudos por objetos, costumes e formas organizacionais ocidentais. Na pgina 19, tam-
bm da mesma obra, acrescenta Feyeraben: Os cidados seguem as sugestes de especialis-
tas, no do pensamento independente. Isso o que ser racional. Partes cada vez maiores das
vidas dos indivduos, das famlias, das aldeias e das cidades so dominadas por especialistas.
sujeito, conforme bem colocou Rouanet,91 considerando que a identifi-
cao entre sujeito autnomo e racional passa, portanto, a ser negada,
gradativamente, colocando-se em causa a noo de que o sujeito
fundante do conhecimento e da histria.92
A partir de Foucault, no h que se falar em sujeito fundante de
sua prpria razo, eis que ele constitudo na histria por determina-
das prticas discursivas e no discursivas em determinadas relaes de
poder,93 em conluio com as cincias humanas, aliadas que se encon-
tram ao poder disciplinar, para normatiz-lo e subjetiv-lo pela sexua-
lidade anatmica, j de antemo exigida pela sociedade que a estipulou
dicotomicamente entre masculino e feminino.
Portanto, em Foucault a razo est atrelada vontade de saber e
poder e, por conseguinte, resultante destes jogos de verdade e poder,
no prevalecendo a crena iluminista neste poder libertador da ver-
dade e da razo e tambm o sujeito do tipo cartesiano, antecipada-
mente pensado e querido.
Foucault repele esse sujeito normalizado e disciplinado, subje-
tivado pela sexualidade e, como menciona Arajo,94 este filsofo pre-
tendeu dar uma contribuio para o pensamento da modernidade,
para a construo do sujeito numa tica feita de atos de liberdade. E,
no obstante a impossibilidade de uma emancipao completa, diante
da presena constante dos jogos de poder e verdade, aceitvel enten-
der e encampar novas maneiras de subjetividade, a enfraquecer esta
tcnica de dominao existente.
Destarte, trabalha Foucault na perspectiva do sujeito autocons-
ciente, a do sujeito que se constitui pelas prticas de si, com o que
inclui o elemento liberdade. Ao lado das prticas de sujeio, o sujeito
se constitui, tambm, por prticas de libertao.95 Essas colocaes
tm reflexos sobre o sujeito de direito, modelado a partir dessas
91
ROUANET, Srgio Paulo. As razes do iluminismo. So Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 12:
Depois de Marx e Freud, no podemos mais aceitar a ideia de uma razo soberana, livre de
condicionamentos materiais e psquicos. Depois de Weber, no h como ignorar a diferena
entre uma razo substantiva, capaz de pensar fins e valores, e uma razo instrumental, cuja
competncia se esgota no ajustamento de meios a fins. Depois de Adorno, no possvel
escamotear o lado repressivo da razo, a servio de uma astcia imemorial, de um projeto
imemorial de dominao da natureza e sobre os homens. Depois de Foucault, no lcito
fechar os olhos ao entrelaamento do saber e do poder. Precisamos de um racionalismo novo,
fundado numa nova razo.
92
CORREA, Adriana Espndola. Consentimento livre e esclarecido: o corpo objeto de relaes
jurdicas. Florianpolis: Conceito Editorial, 2010, p. 31.
93
jurdicas. Florianpolis: Conceito Editorial, 2010, p 31.
94
ARAJO, Ins Lacerda. Foucault e a crtica ao sujeito. Curitiba: Editora da UFPR, 2000, p. 211.
95
prticas discursivas e normalizado pelas disciplinas e pelo biopoder, e
que, por conseguinte, tem reduzida, enormemente, sua autonomia, eis
que disciplinado e controlado estrategicamente, inclusive pelo saber
clnico.
Portanto, no Direito ainda h o prevalecimento dos atributos que
se pretendem ultrapassados na caracterizao do conceito de sujeito,
com destaque para a abstrao e o universalismo, o que impede uma
melhor compresso das pessoas, em suas particularidades. De tal
modo e dogmaticamente falando, todos ns somos titulares de direi-
tos e deveres. No se consideram, nesta abstrao cmoda, as diferen-
as culturais e sociais existentes. O sujeito, no Direito, mais do que
nunca uma categoria universal, arquitetado em comparao s coisas
do mundo, que pretende apropriar-se.
A autonomia da vontade reduzida, pelo direito, enormemente,
pela prevalncia de inmeras leis e se manifesta basicamente no tr-
fego entre o chamado direito subjetivo e a liberdade negocial. E, com
relao dimenso corporal do sujeito, a manifestao da vontade
restringida mais ainda, principalmente considerando que o conceito
de direito subjetivo resta marcado pela ideia de autorregulamenta-
o nos limites da ordem jurdica, voltada ao exerccio da liberdade na
defesa dos interesses privados,96 prevalecendo aspecto morais, que
so includos no ordenamento jurdico ou, se no legislado, sobrepem
como maneira de se comportar socialmente.
Na verdade, a resistncia na aceitao do prprio corpo como
objeto de relao jurdica atravancou o entendimento sobre a possibi-
lidade de o ser humano exercer o domnio e de dispor de parte deste
prprio corpo (ius in se ipsum). Este domnio da pessoa sobre si mesma
adveio, por conseguinte, dessa dissociao entre corpo e sujeito. E para
tanto, de esclarecer-se que na metade do sculo XIX a discusso foi
marcada pela polmica entre Savigny e Puchta, em torno da existncia
ou no de um direito subjetivo sobre o corpo.97
Puchta considerava o corpo como coisa e, por conseguinte, pos-
svel de ser objeto de relao jurdica. Savigny refutava a existncia
desse direito, ainda atrelado ao entendimento que a pessoa tem direito
sobre algo posto externamente no mundo, ou seja, o direito sobre uma
coisa externa e advinda de uma obrigao assumida por outra pessoa,
principalmente considerando o direito subjetivo, com o prevalecimento
de nossa vontade sobre uma poro do mundo exterior. Portanto, no
era possvel, para ele, admitir a existncia de um direito sobre a prpria
96
GEDIEL, Jos Antnio Peres. Os transplantes de rgos e a inveno moderna do corpo.
Curitiba: Moinho do Verbo, 2000, p. 21.
97
CORREA, Adriana Espndola.Consentimento livre e esclarecido: o corpo objeto de relaes
pessoa, porque implicaria a disponibilidade de si prprio, o que, no
limite, legitimaria o suicdio.98
Essa controvrsia, iniciada entre os juristas do sculo XIX,
demonstrava o quanto era difcil solucionar questes atinentes ao
corpo, consequncia de uma viso integral e indissocivel com relao
ao sujeito e tambm em razo da ausncia de carter patrimonial desta
questo. Para superar tal entrave, necessrio foi, mais tarde, desenvol-
ver-se o conceito de direitos da personalidade, includos em uma cate-
goria especial de direitos subjetivos.
Para a superao dessa incapacidade de admisso dos direi-
tos que extrapolam o mbito patrimonial, contribuiu sobremaneira
os direitos autorais que, em razo de abranger direitos patrimoniais
e morais, concomitantemente, ampliaram o entendimento sobre os
bens jurdicos, no mais reduzidos ao conceito de coisa material e
patrimonial.
Assim, e consequncia dessa discusso iniciada no sculo ante-
rior, no incio do sculo XX j eram admitidos como direitos subjetivos
os prolongamentos da personalidade, corpreos ou incorpreos, posi-
tivados e regulados pelo ordenamento jurdico. No aspecto do corpo
humano, destacam-se o direito vida, integridade fsica e o direito
disposio corporal.99
Entretanto, e diante da ameaa advinda das novas tecnologias de
interveno do corpo, na segunda metade do sculo XX, o princpio da
dignidade da pessoa humana, elevado a patamar constitucional, torna-
-se indispensvel na orientao do estatuto jurdico do corpo humano,
principalmente ao pretender reconciliar o Direito com a tica neste
campo geral de personalidade, aps a Segunda Guerra Mundial.
Assim, de entender-se que faz parte da dignidade da pessoa pre-
tender esclarecer o que est acontecendo tambm com o prprio corpo
e de poder opinar sobre qual o melhor tratamento que considera para
si e at mesmo se realmente o deseja faz-lo. No mais correto falar
em paciente, no sentido de apto a receber, calado, o tratamento, sem
questionar, o prprio mdico, a respeito desse tratamento. Necessria
a participao ativa do cliente na busca do tratamento adequado.
E nesse aspecto que a concordncia informada e esclarecida
exigida como condio antecedente para qualquer interveno no
corpo humano, com a finalidade de proporcionar o bem-estar s pes-
soas, teraputica ou cientfica, decorrente do princpio jurdico da
98
99
autonomia privada, isto , de a pessoa poder decidir sobre os contextos
atinentes a sua vida e seu corpo.100
Entretanto, este consentimento sobre a interveno no prprio
corpo limitado, isto , contido e regulado pelo Direito, que nem sem-
pre acompanha os avanos cientficos, alm de influenciar, nesta limi-
tao genrica, o silencio legislativo, bem como os equvocos tericos
e a carncia de debate pblico sobre o assunto. H, por conseguinte,
na prtica, uma constante tenso entre a autonomia do paciente, que
pretende v-la ampliada, a cada dia, e a autonomia do mdico, limitada
pelo prprio conservadorismo e por intermdio de inmeras leis e por
diversas resolues do Conselho Federal de Medicina. Portanto, o pro-
fissional mdico acaba por no realizar a pretenso do cliente, por pr-
via vedao ou por ausncia de permisso legal.
Ademais, a viso paternalista do mdico, que carece ser supe-
rada, advinda da tradio hipocrtica da Medicina,101 acaba prevale-
cendo principalmente diante da ausncia de conhecimento tcnico
do paciente e da confiana irrestrita que o mesmo tem com relao
a este profissional da Medicina. Assim sendo, a exigncia do prvio
consentimento h que ser compreendida, levando-se em perspectiva
possvel discordncia do cliente, em relao ao procedimento indi-
cado pelo mdico, interferindo, por conseguinte, o consulente, sobre
as ponderaes mdicas, o que ainda no admitido por vrias destes
profissionais.102
Todavia, a tenso existente nessa relao mdico/cliente h que
ser superada, diante das indispensveis informaes que devero ser
repassadas ao consulente, com iseno, para que a tomada de deciso
dele seja consciente, no valendo, aps essa atitude assumida, do juzo
100
RENAUT, Alain. O indivduo: reflexo acerca da filosofia do sujeito. Rio de Janeiro: Difel,
1988, p.10, afirma que o homem do humanismo aquele que no concebe mais receber nor-
mas e leis nem da natureza das coisas, nem de Deus, mas que pretende fund-las, ele prprio
a partir de sua razo e de sua vontade.
101
O mdico, ao prestar juramento, assume o compromisso de prestar seus servios promo-
vendo o bem-estar do paciente, no podendo omitir-se no exerccio da profisso, tendo a
obrigao de evitar causar mal ao paciente.Portanto, tem o mdico, pelo juramento hipocr-
tico, o poder sobre a sade e a vida do paciente.
102
ROUANET, Srgio Paulo. Mal estar na modernidade. So Paulo: Cia. das Letras, 1993, p. 9,
apontada, sem desprezar os diversos percursos seguidos na construo da modernidade, as
suas principais caractersticas, hoje muito contestadas, em razo da radical abstrao das
diferenas existentes entre os homens, se analisadas concretamente: O projeto civilizatrio
da modernidade tem como ingredientes principais os conceitos de universalidade, individua-
lidade e autonomia. A universalidade significa que ele visa todos os seres humanos, indepen-
dentemente de barreiras nacionais, tnicas e culturais. A individualidade significa que esses
seres humanos so considerados como pessoas concretas e no como integrantes de uma
coletividade e que se atribui valor tico positivo sua crescente individualizao. A autono-
mia significa que esses seres humanos individualizados so aptos a pensarem por si mesmos,
sem a tutela da religio ou da ideologia, a agirem no espao pblico e a adquirirem pelo seu
trabalho os bens e servios necessrios sobrevivncia material.
mdico a respeito dela. Nessa perspectiva, o dever de informar, pau-
tado pelo princpio da boa-f objetiva, constitui uma forma de reco-
nhecer e compensar o desequilbrio intrnseco a essas relaes.103
Portanto, superada restou a ausncia de espao para o reconhe-
cimento da deciso do cliente, diante da valorizao da subjetividade,
a atribuir efeitos vontade individual. Para tanto, necessrio que ao
consulente sejam prestadas as necessrias informaes, a respeito do
quadro clnico dele, do tratamento e interveno propostos e conse-
quentes benefcios e riscos possveis. Com tais informaes, a liber-
dade da pessoa, para tomada de deciso, estar garantida. O dever
de informao sobre o diagnstico, o prognstico, os riscos e objeti-
vos do tratamento est previsto no art. 46, do Cdigo de tica Mdica
brasileiro.
Contudo, e novamente h de se socorrer a Foucault, para que no
aceitemos, ingenuamente, o reconhecimento da autonomia do cliente
integralmente, com relao ao poder mdico. Na verdade, tal liberta-
o incompleta, em razo dos constantes jogos de poder insepar-
veis desta relao, que so exercidos pelos profissionais e sustentadas
pelas instituies polticas, pblicas e pelo saber mdico.104
Por tal razo, necessrio que no nos prendamos apenas ao
poder que o mdico possui sobre o cliente, individualmente falando,
mas que tambm e principalmente nos preocupemos com o poder
camuflado que ainda persiste nessa relao, em face da vinculao com
o discurso cientfico repressor. Para tanto e conforme anota Correa,105
escorada em Foucault, necessrio procurar identificar os efeitos
de poder do discurso cientfico, desvinculando o poder de uma noo
exclusivamente repressora, para pensar suas potencialidades produti-
vas, ou seja, sua capacidade de produzir e fazer circular a verdade, que
por sua vez sustenta e torna eficaz o poder.
Com efeito, combatendo essa produo artificial e estrat-
gica da verdade, esse discurso vlido na Medicina, a prescrever, dia-
riamente, como viver, como alimentar-se, como comportar-se, como
morrer, enfim, presente na constituio da pessoa pelo padro da nor-
malidade, Foucault106 deixa reflexo as seguintes colocaes:
103
104
105
jurdicas. Florianpolis: Conceito Editorial, 2010p. 135.
106
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. So Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 299.
Temos de produzir a verdade como, afinal de constas, temos
de produzir riquezas, e temos de produzir a verdade para poder pro-
duzir riquezas. E, de outro lado, somos igualmente submetidos ver-
dade, no sentido de que a verdade a norma; o discurso verdadeiro,
que, ao menos em parte, decide; ele veicula, ele prprio propulsa efei-
tos de poder. Afinal de contas, somos julgados, condenados, classifica-
dos, obrigados a tarefas, destinados a uma certa maneira de viver ou
a uma certa maneira de morrer, em funo de discursos verdadeiros,
que trazem consigo efeitos especficos de poder.
essa verdade posta, adrede, pelo discurso cientfico da Medicina,

como padro de normalidade, como norma, que motiva a classifica-
o entre normal e anormal. Assim, essas prticas subjetivas nor-
malizadoras do sujeito influenciam na relao mdico/cliente, no
o deixando totalmente isento ao consentir.107 Na deciso do cliente,
aps os esclarecimentos mdicos, est subjacente esse discurso da
verdade.
Portanto, ainda h cerceamento de liberdade de agir de maneira

autnoma nessa relao mdico/cliente, razo de se afirmar, cada vez
mais, que a pessoa no fundante, mas fundada no interior da hist-
ria por discursos de verdade, prticas de sujeio e normalizao.108
Esse poder mdico a desqualificar e desprezar a deciso do cliente no
uma nica realidade, eis que ainda se faz presente aps a autoriza-
o para a realizao da cirurgia clinicamente indicada, que somente
realizada baseada nos exames antes concretizados, sem desprezar
o diagnstico, prognsticos e probabilidades clnicas disponveis, bus-
cando atingir a norma.
No obstante esta relativa autonomia do cliente, que precisa se
libertar cada vez mais na produo de deciso isenta de interferncias
do discurso clnico, necessrio , alm de afastar-se do paternalismo
mdico, a evidenciar a face indigesta dos jogos de poder, reconhecer o
espao limitado desta autonomia no com o intuito de aceit-lo passi-
vamente, mas, sim, de expandi-lo, por meio de estudos, de consulta a
outros profissionais, inclusive fora da rea da Medicina, e tambm por
107
jurdicas. Florianpolis: Conceito Editorial, 2010, p. 137, esclarece que o critrio de racionali-
dade claramente a verdade produzida pelo discurso mdico e sustentada pelas prticas ins-
titucionais, tanto no exerccio da profisso como no sistema de ensino. As justificaes que
extrapolam os limites do discurso cientfico so rejeitadas e classificadas de irracionais, legi-
timando-se, por conseguinte, o desrespeito pelas decises delas resultantes..
108
meio de permuta de informaes com as outras pessoas que passaram
pelo mesmo problema, antes e aps o tratamento.
Desta forma, necessrio desvincular a obteno do consenti-
mento informado, direito do cliente, por meio do dever de informar do
mdico, da razo instrumental,109 que se faz presente no discurso da
produo da verdade, nos jogos de poder, dos quais a Medicina nunca
se olvidou, o que levou Arajo110 a afirmar:
Pode-se estranhar que psicologizar o sujeito e cuidar da sade das

populaes no seja em si sempre benfico. que nossa sociedade
confia no saber como libertador e desconfia que o poder sem-
pre e unicamente opressor. Mas o saber/poder cria relaes, induz
verdade, produz a subjetividade. Nos habituamos a pensar dentro
da tica iluminista, que libertar o subjeito e seus desejos, livr-lo
das represses, instauraria uma poltica e uma tica de liberdade.
Foucault v nesses discursos a produo de uma subjetividade que
favorece a subjugao ou sujeio a uma nica forma de verdade, a
cientfica.
Assim e na pretenso de desvincular o mdico dessa verdade

cientfica, surge no Direito o princpio da boa-f objetiva, como pro-
posta de reequilibrar a relao mdico/cliente, na busca dessa afir-
mao da deciso consciente do cliente, com o estabelecimento da
confiana entre estas partes e de uma diminuio das desigualdades
materiais da relao mdico-paciente, na medida em que condiciona o
dever de informar aos parmetros de conduta de boa-f.111
Destarte, o princpio da boa-f objetiva busca a reincluso da
tica no direito, em uma expectativa de valorao do comportamento
regulado pela considerao e pela fidelidade exigveis de todos os par-
ticipantes das relaes intersubjetivas. Por ser uma clusula aberta
possvel, na anlise do caso concreto, despir-se de recursos e de deci-
ses formalistas e genricas, previstas nas legislaes prprias. Por
intermdio desse princpio possvel aplicar-se a equidade, no caso em
particular, bem como possibilita a imediata observao e incluso de
109
Max Horkheimer utilizou-se deste termo para demonstrar que a cincia afastou da busca
do conhecimento verdadeiro para se tornar instrumento de dominao, de poder e explora-
o. Portanto, a razo no mais autnoma. Na verdade, a razo instrumental a prpria
ao racional de Max Weber, eis que as aes das pessoas so orientadas pelos fins. A razo
instrumental ou ao racional tambm recebe a crtica de Habermas, que pretende, afas-
tando o pessimismo de Weber quanto ao futuro da humanidade, substituir esse racionalismo
instrumental pelo comunicativo, expressado por meio do discurso.
110
ARAJO, Ins Lacerda. Foucault e a crtica ao sujeito. Curitiba: Editora da UFPR, 2000, p. 120.
111
jurdicas. Florianpolis: Conceito Editorial, 2010, , p. 141.
possveis mudanas sociais. O Direito, no mais to esttico, a partir
de ento.
Nota-se que, no Brasil, esse princpio foi positivado pelo Cdigo
Civil atual, como critrio de interpretao dos negcios jurdicos, con-
forme previso do art. 113 e, como princpio geral contratual, segundo
o disposto no art. 422. No Cdigo anterior, era considerado princpio
implcito e, por conseguinte, acanhadamente observado. O Cdigo de
Defesa do Consumidor o prev, em seu art. 4, III, reforando, a par-
tir de ento, a aplicao deste princpio tambm na jurisprudncia dos
tribunais. Para fins de compreenso, basta entender-se que tal prin-
cpio veio contrapor ao outro, o da boa-f subjetiva, que se refere ao
estado psicolgico das pessoas, como, por exemplo, a ignorncia ou
o erro, no momento da celebrao do negcio jurdico, a correo de
conduta, ignorando, esse princpio, os aspectos exteriores que podem
macular esse negcio.
Assim e pelo princpio da boa-f subjetiva, para no ser consi-
derado como contratante de m-f, necessrio era observar o que foi
combinado entre as partes, o que levou aplicao do cmodo e hoje
combalido princpio do pacta sun servanda, causador de inmeras
injustias, eis que o critrio de deciso era sempre em prol de prevale-
cer o que foi ajustado, mesmo diante da desgraa da parte econmica
e at mesmo intelectualmente mais fraca, ento igualada formalmente
ao mais forte.
No nosso caso especfico, a boa-f objetiva constitui um padro
de conduta legal, que deve ser observado por ambas as partes,112 ou
seja, tanto pelo mdico como pelo cliente, podendo este, parte mais
fraca nessa relao, se necessrio, socorrer-se do Cdigo de Defesa do
Consumidor. Para concretizao desse princpio da boa-f objetiva, de
observarem-se os valores ditados pela Constituio atual, com desta-
que ao princpio da dignidade da pessoa humana, alm dos objetivos
proclamados pelo art. 3, daquela Carta, incluindo tambm os direitos
fundamentais.
por tal razo que se afirma que o comportamento das partes,
na relao jurdica, h que ser considerado no apenas juridicamente
como tambm eticamente. O Direito dever ler os contratos ou neg-
cios jurdicos, observando o critrio hermenutico integrativo, no
se atendo mais apenas no pacto celebrado, podendo, inclusive, limi-
tar ou ampliar certos direitos subjetivos, considerando o desequilibro
que poder existir nas relaes, principalmente quando h carncia de
conhecimento especfico.

112
Assim, novamente surge, na relao mdico/cliente, o dever de
informar, como obrigao anexa a qualquer relao celebrada entre
essas pessoas. Esse dever de informar aparece antes mesmo da exis-
tncia da relao, que poder no advir justamente em razo dos
esclarecimentos prestados, como tambm se prorroga para depois
da extino da obrigao, considerando que o mdico no dever
abandonar o cliente, enquanto houver necessidade e mesmo aps o
tratamento, em razo da desigualdade ftica e da maior concentra-
o de informaes em um dos lados da relao, advindas do saber/
poder mdico, que dever ser reduzido ao mnimo possvel, atravs
das informaes prestadas e a prestar, enquanto o cliente carecer de
esclarecimentos.
Nota-se que o princpio da boa-f objetiva no contenta mais
apenas com a igualdade formal, ento ditada pelo princpio da boa-f
subjetiva. Assim, o dever de informar hoje regra e no exceo ou
mero dever acessrio. E, principalmente nas relaes relativas a direi-
tos fundamentais e ao corpo humano, avoluma-se a relevncia da
ampla informao, que tutela a confiana do paciente e restabelece de
forma mnima o equilbrio entre as partes, visto que os efeitos do con-
sentimento, baseado em tais informaes, refletem-se sobre o prprio
sujeito.113
De tal modo, ao se submeter-se cirurgia de transgenitalizao,
a pessoa, mesmo que j tenha cincia de que pretende faz-la, dever
ser esclarecida sobre este ato e suas consequncias. Poder, aps os
esclarecimentos, at mudar de ideia. Contudo, tal juzo dever ser
exclusivo dela, devendo o mdico e a equipe multidisciplinar no emi-
tir sugesto sobre tal questo, numa indevida intromisso na esfera
privada da pessoa. Prestar esclarecimentos no impor opinio. Por-
tanto, o consentimento dever ser livre, ou seja, sem intervenes na
esfera privada de quem o prolatar, e esclarecido, ou seja, com conhe-
cimento de causa. Alis, sem esclarecimento o consentimento j no
livre. A obteno deste esclarecimento , por conseguinte, um pro-
cesso dinmico de permuta de informaes entre mdico e cliente.
12CONTRIBUIO DA PSICANLISE PARA A IDENTIFICAO SEXUAL E

DISCUSSO SOBRE O GNERO, COM REPERCUSSO NO CAMPO JURDICO
A noo de gnero foi introduzida por Stoller, na Psicanlise,

quando do estudo da transexualidade, na busca da diferenciao entre
sexo e identidade. Nesse contexto, pode-se dizer que o conceito de

113
gnero rene aspectos psicolgicos, sociais e histricos, associados
feminilidade, por um lado, e masculinidade por outro.114 Entretanto,
no se pode desprezar que o masculino e o feminino questo cul-
tural, logo, cambiante. Depois, identidade sexual no o mesmo que
sexo, entendido este como elemento biolgico do corpo.
Entretanto, antes mesmo da formalizao da existncia da noo
de gnero, as pesquisas atinentes ao desenvolvimento da masculini-
dade e da feminilidade e identificao sexual e suas diferenas j eram
discutidas pela teoria freudiana. Portanto, urge buscar o elo entre esta
aludida teoria e a viso stolleriana sobre a aquisio do gnero, para,
em seguida, adentrarmos em Judith Butler e a crtica dela psicanlise
modelada no figurino estrutural.
Tambm h que analisar a teoria realista da sexuao de Lacan, a
romper com o entendimento dele tambm, at certo momento, no sen-
tido de que a transexualidade era um fenmeno patolgico, para con-
cluirmos se realmente existe uma identidade transexual.
Partindo de premissas universais, Freud buscava uma teoria uni-
ficada da sexualidade e em diversas obras115 ocupava ele com a mascu-
linizao dos meninos e a feminilizao das meninas, no obstante tais
diferenciaes no fossem para ele de fcil definio. Assim, inicial-
mente Freud associou o conceito de atividade ao masculino e de passi-
vidade feminilidade. Tais colocaes no foram sustentadas ao longo
da obra freudiana. Em Freud, a formao de um gnero no estava con-
dicionada pelo sexo.
Todavia, em 1905, Freud, em seus Trs ensaios sobre a teoria
da sexualidade declara que a bissexualidade uma condio origin-
ria de todo sujeito. Todo ser humano apresenta um misto de traos
de carter masculinos e feminino.116 Assim, a preferncia sexual pela
homossexualidade abonada pela condio originria da bissexuali-
dade psquica, existindo a probabilidade de o menino ostentar ambos
os arranjos sexuais no dipo: a masculina, diante da me, e a feminina,
ante o pai.117
No desenvolvimento da libido, em suas primeiras fases, a cate-
xia libidinal do menino, o perverso polimorfo como distingue Freud,
114
115
A dissoluo do complexo de dipo (1924). Algumas consequncias psquicas das distines
anatmicas entre os sexos (1925). A sexualidade feminina (1931) e a conferncia 23, intitulada A
feminilidade (1933).
116
117
FREUD, Sigmund. O Eu e o Id. Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Rio de Janeiro,
c2007 [1923], v. III, p. 43.
governada por pulses parciais e no est integrada ao rgo genital.
Nesta fase, o falo existe em ambos os sexos e a libido pertence exclusi-
vamente ao sexo masculino e o pnis elevado condio de zona er-
gena principal somente na fase flica.
Dissolvido o complexo de dipo.118 sob a ameaa de castrao, h
o abandono de desejo incestuoso pelo menino, que no mais interessa
pela me, abrindo mo dela, como objeto de investimento libidinal dele,
voltando-se, a partir de ento, a outras mulheres. nesta fase que o
menino identifica com o pai e assume a prpria masculinidade.
Entretanto, Freud, sempre com dificuldade para teorizar sobre
o feminino, lamentando-se da obscuridade que abarcava a vida sexual
e o desenvolvimento psicolgico das mulheres, no disse como elas
encaram o complexo de dipo. Assim, em trabalho realizado em 1925
e ao contrrio do que vinha tentando provar, pode este psiclogo afir-
mar que no h uma identidade adequada entre os sexos, diante das
especificidades inerentes ao desenvolvimento sexual das meninas. De
tal modo, as diferenas do desenvolvimento sexual entre as meninas e
os meninos foram divididas em trs contextos: zona genital (zona er-
gena principal); encontro do objeto e o complexo de dito.
O pnis, durante toda a vida, a nica zona sexual principal no
homem. Entretanto, as mulheres alm do clitris, de carter viril, tem
a vagina, como rgo feminino propriamente dito. O desenvolvimento
sexual da mulher consiste no deslocamento libidinal de uma zona
outra. Contudo, o clitris continua a funcionar na posterior vida sexual
feminina.
Alm dessa importante diferena, a outra se refere ao encontro
do objeto. A me o primeiro objeto amoroso do homem. E o sexo,
como objeto de amor do homem, continuar sempre o mesmo. Na
menina, a me continua sempre o primeiro objeto. Entretanto, ao final
do desenvolvimento feminino, haveria necessidade de outro objeto
amoroso, advindo da figura paterna. Assim, nos meninos, a defron-
tao com a castrao que ocasiona a transformao e a dissoluo do
complexo de dipo. Inteiramente diferentes so os efeitos do complexo
de castrao na mulher.119
Portanto e para Freud, o complexo de dipo, nas mulheres,
resulta de um desenvolvimento muito delongado e no extinto, como
acontece no menino, pela castrao. Contudo, este complexo advm
118
O Complexo de dipo, teorizado por Freud, um procedimento por meio do qual a pessoa
se coloca sexualmente do lado masculino ou feminino, numa identificao com os prprios
membros e considerando o membro do outro sexo como seu objeto sexual.
119
da influncia desta prpria castrao. Assim e neste procedimento das
mulheres em direo ao dipo, de se considerar outra transformao
caracterizada por uma aguada reduo dos impulsos instituais ativos,
que so atrelados masculinidade, e uma elevao dos passivos, ati-
nentes ao feminino.
Assim sendo, a necessidade de se passar pelo complexo de dipo,
tanto pelo menino como pela menina, no tocante identificao. O
menino, reconhecendo no pai a potncia flica, identifica-se com ele
na construo de sua prpria identidade varonil. J com relao s
meninas, a identificao com me no simples, considerando que a
castrao materna fator de desvalorizao da me perante a filha,
eis que a me, objeto de amor inicial, era a me flica, sem privao de
atributos de potncia, da concluindo Freud pela dificuldade na menina
da constituio, para si, de uma identidade positiva.
Esta sntese da teoria freudiana do dipo necessria para
entendermos o transexualismo que, segundo Stoller, vinculado ao
mais primitivo estgio do desenvolvimento da masculinidade e da
feminilidade, o ncleo da identidade genrica: o senso de pertencer ao
sexo masculino ou feminino.120
Para Stoller, em A experincia transexual, o estudo do transe-
xualismo permite uma reviso das teorias freudianas sobre o desen-
volvimento sexual. Assim, Stoller desenvolveu teoria prpria sobre a
dinmica e a etiologia do transexualismo, com preponderncia para
o masculino, aps ouvir os transexuais, aos quais prestou atendimento
clnico, bem como s respectivas famlias.
Na teoria stolleriana, o transexualismo pode ser estudado a par-
tir da mais tenra infncia, como um problema de identidade sexual,
indo de encontro s clssicas posies da Psicanlise, inclusive no que
tange ao papel da castrao e do complexo de dipo, no desenvolvi-
mento da feminilidade e da masculinidade. Pelo tratamento psicanal-
tico e para os que, equivocamente, procuram patologia ao transexual,
transformando-o em transexualismo, esta questo seria incur-
vel, diante da irreversibilidade do quadro com relao ao adulto. Con-
tudo, o tratamento para as crianas existe, mormente se considerado
o transexualismo como distrbio da masculinidade e da feminilidade.
Assim e como ressalta Cossi, para entendermos as hipteses
suscitadas por Stoller, necessria a compreenso da distino por ele
feita entre sexo e gnero. Sexo diz respeito anatomia, ao corpo bio-
lgico, e gnero designa o sentimento social ou psquico de identidade
STOLLER, R. J. A experincia sexual. Rio de Janeiro: Imago: 1982, p. 292.

120
sexual.121 De tal modo, apesar de ser masculino implicar em ser
homem e ser mulher em ser feminina, tais caractersticas no esto
obrigatoriamente includas. H uma perseverana cultural de que sexo
e gnero coincidem: corpo de homem com gnero masculino e corpo
de mulher com gnero feminino. Todavia, nem sempre isto acontece,
a exemplo do transexual, a demonstrar a ausncia de coerncia entre
sexo anatmico e gnero o que, para Stoller, traduz em uma anormali-
dade, em uma patologia.
Na discordncia entre a teoria stolleriana e a freudiana, pode-
mos destacar dois pressupostos tericos fundamentais. O primeiro:
pela tese da masculinidade primria, entende Freud que a masculini-
dade (dado biolgico), o estado primeiro e a libido nica e mascu-
lina. Para Stoller, primria a feminilidade e todos necessariamente
passam por esta fase, em funo da qualidade simbitica do vnculo
inicial estabelecido entre me e filho.122 Para Stoller no h primazia
quanto determinao da masculinidade ou da feminilidade: a inscri-
o de uma ou de outra no ncleo da identidade de gnero seria igual-
mente arbitrria.123
O segundo ponto de discordncia, em discusso, que, para
Freud, o relacionamento do menino com a me , desde o incio, hete-
rossexual, por ser ela, como objeto de amor do filho, sexo oposto ao
dele. Assim e segundo Stoller, a teoria freudiana surge da formao
do ncleo da identidade genrica na masculinidade, se menino. Antes
disso, ou seja, antes do dipo, no h distino entre me e filho e
Freud ignora o que ocorre antes do dipo, no obstante de importn-
cia fundamental na formao da identidade de gnero.
Destarte, Stoller se insurge contra o pressuposto do fundamento
biolgico de que a bissexualidade constitucional e universal influencia-
ria na preferncia do objeto e no grau de masculinidade e feminilidade.
H influncia dos sistemas biolgicos, porm muitos reduzidos, quando
confrontados ao papel do ambiente. Consequentemente, a masculi-
nidade e a feminilidade so situadas no comeo da vida, advindas de
foras psicolgicas, que podem se manifestar em oposio ao estado
biolgico. Para Stoller h um estgio de feminilidade primria contra
o qual o menino dever se insurgir para buscar a via da masculinidade:
121
122
123
Se meninos, no interior da normal simbiose criana-me, identifi-
cam-se com suas mes, e se a excessiva, prolongada e feliz proxi-
midade produz neles uma extrema feminilidade, o menino que se
deve tornar masculino ter de repudiar aquela feminilidade. Mas
ento a feminilidade (identificao feminina) estar presente no
por ser parte da herana biolgica da humanidade, mas, antes, por-
que todos os meninos tm mulheres como mes. 124
Para Stoller, h diferena conceitual entre identidade e identi-

ficao. Identidade diz respeito formao do gnero. A identificao
sexual relaciona-se a uma atividade inconsciente na qual o sujeito apro-
pria-se de aspectos masculinos ou femininos dos pais, durante o pro-
cedimento edpico. A constituio da identidade de gnero tem como
principal pilar a formao do ncleo de identidade de gnero, constitu-
do antes da fase flica. A identificao um processo posterior.
Assim, para Stoller, o desenvolvimento da feminilidade no
menino no estaria na fase de identificao, que ocorre durante a
realizao do complexo de dipo. Para que se realizasse nesta fase o
desenvolvimento da feminilidade no homem, precisaria, no menino, de
satisfatrio desenvolvimento da memria e da fantasia, para absoro
e incorporao dos aspectos maternos, para interioriz-los como dele.
Stoller entende que a feminilidade comunicada ao filho pela me em
um estgio antecedente. Portanto e nos primeiros meses de vida have-
ria uma fase primordial, independentemente do sexo, de unidade entre
me e filho(a). Este efeito feminino deve ser vencido, em se tratando de
menino. Para as meninas, evidentemente, no haveria necessidade de
superao tal etapa. Assim, no acesso ao conflito edipiano e no estado
heterossexual, necessrio a superao deste primeiro elo simbitico
e feminilizante do filho com a me.
Stoller entende, ao contrrio de Freud, que incumbe ao menino
percorrer a passagem, mais tortuosa, na busca da identidade sexual,
correndo o risco de no desenvolver a masculinidade, nesta expe-
rimentao inicial achegada e fecunda com a me. Deste modo e no
confronto direto com a teoria freudiana, Stoller125 entende que a parte
basilar da identidade sexual, masculina e feminina, independente
tanto das imposies biolgicas como do complexo de dipo.
Na teoria stolleriana, a aproximao inicial entre me e filho no
heterossexual, na ausncia do incio do conflito edipiano. Apenas a
partir da separao entre eles, com a interveno de um terceiro, o
pai, que o menino poder almejar a me, como objeto de amor. Com o
ingresso paterno e a manifestao da me, no sentido de que o pai do

124
STOLLER, R. J. A experincia sexual. Rio de Janeiro: Imago: 1982, p. 36-37.

125
menino o seu objeto sexual (e no o filho), desenvolve-se as oposies
do filho contra os pais. a fase da castrao, pela qual o menino abre
mo da me, preferindo resguardar o pnis (smbolo de sua virilidade)
e nomeadamente sua identidade como homem.
Assim e diante deste crescido senso de masculinidade e diante
do temor de perd-lo que a castrao tem uma expectativa atemo-
rizante. O menino volve-se, por conseguinte, para outras mulheres
e enraza sua identificao com o pai, concretizando sua masculini-
dade. Assim sendo, resolve-se o clssico conflito edipiano. Entretanto,
Sotller sublinha que o conflito edipiano no se faz presente no sujeito
transexual.
Para Stoller, so essenciais produo da masculinidade o
trauma psquico, o conflito edpico e sua resoluo, bem como a for-
mao de identidade. No aparece, no menino transexual, o conflito
edpico e, como consequncia, no h o desenvolvimento da masculi-
nidade. A me no desejada como objeto heterossexual, como tam-
bm inexistira a disputa contra um rival masculino (o pai) pela posse
dela. O pai, que no interfere nesta relao, no considerado como
objeto de identificao.
Eis a descrio, no pargrafo anterior, do menino transexual,
que, mesmo j podendo se expressar, no d indcios, por interm-
dio de atos, comportamentos, sonhos, fantasias, brincadeiras etc., de
desenvolvimento da masculinidade, demonstrando e delatando que-
rer se transformar em menina. No se sente ameaado pela perda do
pnis, ao contrrio, deseja a remoo deste rgo, que sequer preci-
sava existir.
Stoller continuou insistindo na possibilidade de cura do transe-
xual, entendendo que, aps anos de tratamento, a masculinidade des-
ses meninos poderia vir tona, ingressando no dipo e esclarecendo
que, nesses casos, o labor do terapeuta seria o de induzir o complexo
de dipo aflorando a masculinidade normal nos meninos e a feminili-
dade normal nas meninas.
13IDENTIFICANDO OS GNEROS
Pelo conceito stolleriano de identidade de gnero e sua inclu-

so no campo psicanaltico, questionada foi a teoria freudiana, com a
diferenciao entre sexo anatmico e identidade sexual, no obstante
tal distino tenha ocorrido por intermdio dos chamados distrbios,
principalmente em se tratando do transexualismo, com os estudos de
quadros clnicos.
Aps analisar os casos de trs meninos considerados como
transexuais, Stoller observou a ausncia neles de alterao gentica
e tambm havia correspondncia do fentipo com o sexo masculino.
Entretanto, o comportamento deles era de meninas, que assim se iden-
tificavam e acreditavam ser, no obstante a ausncia de negativa de
pertencimento biologicamente ao sexo masculino, demarcando, esta
anlise, os conceitos de gnero e de sexo.
Portanto, a partir desses estudos, aparece a concepo identi-
dade de gnero (ou genrica), que se expressa no indivduo a partir
da convico que este tem quanto ao pertencimento a este ou aquele
sexo. Tal convico no inata, mas adquirida e precocemente: por
volta dos dois ou trs anos, o sentido de homem ou mulher j est
estabelecido.126
Ressalta Stoller que essa identidade de gnero um processo
iniciado na primeira e fundamental percepo de pertencimento ao
sexo: o ser menino ou o ser menina, que ocorre sem conflitos
e, por consequncia, o torna menos passvel de alterao, principal-
mente considerando que foi determinado em tenra idade e diante da
inexistncia de conflitos ou traumas. Assim, este ncleo inalterado.
Para Stoller, essa primeira parte do desenvolvimento da identidade
sexual acontece antes da entrada do drama edpico. A identificao
que acontece durante o processo edpico, incidindo sobre o desejo. O
gnero no.
Na teoria stolleriana, os fatores biolgicos, psicolgicos e biop-
squicos (aqui representados pelo condicionamento e imprinting) con-
tribuem para a formao da identidade genrica.127 Por conseguinte,
modificaes inerentes a esses trs fatores podem implicar no desen-
volvimento da identidade, em desacordo com o sexo anatmico. Evi-
dentemente que foras biolgicas interferem fundamentalmente na
identidade de gnero. Entretanto, a preocupao de Stoller com rela-
o aos aspectos psicolgicos na formao desta identidade, razo da
escolha dele pelo transexualismo masculino.
A etiologia desse pseudoquadro clnico, rotulado de transexu-
alismo, se atm aos aspectos psicolgicos e no a fatores biolgicos
ou genticos, j que a fora ambiental reprimiria os efeitos biolgi-
cos. Na identidade genrica do transexual, segundo a teoria stolle-
riana, este aspecto psicolgico que prevalece, no incio da infncia,
principalmente no tocante s relaes intrafamiliares, que ocupam
126
127
papel decisivo na formao deste sujeito. Portanto, a est a gnese do
transexualismo.
Stoller explica a ocorrncia desse desenvolvimento genrico
e sem conflitos, na ausncia do complexo de dipo, trazendo para a
Psicanlise a teoria behaviorista,128 tal qual se apropriou da noo de
imprinting, como um processo psicobiolgico, e tambm de aprendi-
zagem, agindo silenciosamente e sem conflito na indicao do gnero
que a criana possuir.
A noo de imprinting, de ocorrncia no conflitual, para
demonstrar que em alguns animais ou aves a escolha de objeto pode
acontecer em total desarmonia com o esperado quela espcie, como,
por exemplo, se houver limitao, durante um perodo inicial da vida
de determinada espcie de aves, que passam a ter contado exclusiva-
mente com seres humanos, haver a tentativa, por partes dessas aves,
de acasalamento somente com os humanos.
Stoller, preso noo de imprinting, afirma que tal fenmeno
tambm influencia na eleio de objeto ou do comportamento da iden-
tidade genrica sexual dos seres humanos,129 no sendo, entretanto, o
processo mais importante na construo dessa identidade. O imprin-
ting agiria direto sobre o crebro e em outras partes do sistema ner-
voso antes que existisse qualquer sistema mental mais elaborado e a
despeito do ego nascente, fixando nos primeiros meses de vida uma
percepo de carter inaltervel.130
As influncias da aprendizagem, que podem ser entendi-
das tambm como condicionamento, iniciam-se com o nascimento,
no estabelecimento da identidade genrica, sem conflito, advindo da
assuno, pelos filhos, das expectativas dos pais, do reforo de deter-
minados comportamento e desprezo por outros. Portanto, o meio
social determina como comportar-se em consonncia com o sexo ana-
tmico, constituindo-se, por conseguinte, os primeiros ncleos da
128
Conhecido tambm como comportamentalismo, por ser uma rea da psicologia que tem
como objeto de estudo o comportamento. O behaviorismo advm do termo behavior, que em
ingls significa comportamento ou conduta e apareceu em oposio ao funcionalismo e
estruturalismo. O behaviorismo considera o comportamento como uma forma funcional e
reacional de organismos vivos. Repele qualquer afinidade com o transcendental, com a
introspeco e aspectos filosficos, com a pretenso de estudar comportamentos que podem
objetivamente ser observados.
129
PORCHAT, Patrcia. Psicanlise e transexualismo: desconstruindo gneros e patologias
com Judith Butler. Curitiba: Juru, 2014, p. 20, esclarece: O que Stoller chamou de imprinting
vem sendo recuperado nos ltimos anos em sua relao com a imitao e a identidade de
gnero. [....]. De ummodelo biolgico em que imitar implicaria em perceber, desenvolve-se
um modelo psquico em que aquele mecanismo se torna um imitar para ser, estabelecendo
um elo entre imitao e identificao.
130
identidade sexual que, somados a outros fatores culturais de apren-
dizagem, no primeiro ano de vida restar configurada a masculini-
dade. Cada cultura, por conseguinte, modela o esteretipo feminino e
o masculino.
Assim, Stoller afirma, coerente com o entendimento errneo
dele, de que o transexualismo um doena, que a partir do nas-
cimento, ento, as experincias no traumticas e no conflituais
comeam a criar a masculinidade em meninos... e, infelizmente, a femi-
nilidade tambm, como acontece com os transexuais.131
Desse modo e na teoria stolleriana, a constituio do transe-
xual advm da persistente conexo entre me e filho, surgindo da a
chamada feminilidade primria. Para acontecer a masculinidade h
necessidade do afastamento desta dependncia maternal do filho e a
consequente passagem do menor pelo conflito edpico. No havendo
esta superao e esta necessria passagem pelo complexo de dipo,
o menino pode sofrer um dano em seu ego corporal com relao ao
senso de feminilidade, correndo o risco de desenvolver a identidade
sexual feminina, como se d no transexual.132
14DESENCONTRO E ENCONTRO DA TEORIA BUTLERIANA COM A

PSICANLISE
A partir de Freud e com a teoria da bissexualidade no h mais

necessariamente uma continuidade entre os fatores sexo, gnero,
desejo e prticas sexuais, no obstante este descompasso visto, na
viso freudiana e stolleriana, como patolgico. Entretanto, esta des-
continuidade necessria entre sexo e gnero ser ressaltada na teo-
ria de Butler133 que, debatendo com a Psicanlise, discorda de Freud e
tambm de Stoller, ao demonstrar que a coerncia exigida entre sexo e
gnero no passa de uma arbitrariedade da sociedade, idealizadora dos
gneros inteligveis, masculino e feminino.
Para Freud, a partir do dipo que surge o posiciona-
mento masculino e feminino. Butler refuta tal colocao ao repelir o
131
132
133
Judith Butler filsofa, feminista e labora com o conceito de gnero e suas relaes com o
poder e a transformao social. Ao dialogar com a Psicanlise, problematiza conceitos e cri-
tica, severamente, a epistemologia psicanaltica, notadamente no que tange aos pressupostos
estruturalistas.
Por meio da teoria queer, insurge contra a instabilidade das identidades, desconstitui a bina-
ridade dos gneros masculino e feminino, bem como busca legitimar as manifestaes da
sexualidade divergentes, despontando a estrutura de poder a exigir a aceitao ou no de
identidades e prticas sexuais.
binarismo do gnero e tambm o dimorfismo sexual. Portanto, a teoria
butleriana repele, em boa hora, o termo transexualismo, como indi-
cador patolgico, preferindo, esta filsofa, a palavra transexualidade
modificando-se, por conseguinte, o entendimento da viso do transe-
xualismo como doena para o de transexualidade, como possibilidade.
Portanto, a teoria butleriana, estribada na teoria da constru-
o social foucaultiana e na obra de Laqueur, pretende demonstrar
que a produo dos conflitos no est no sujeito, mas nas normas de
gnero, nos mecanismos histricos e sociais que produzem identida-
des patologizadas.134 Assim, o questionamento das normas regulativas
da produo humana, provocadoras de transformaes sociais, ocor-
rer pela voz do abjeto (do excludo).
Na constituio da identidade, h que se considerar a indepen-
dncia entre anatomia, gnero e sexualidade, principalmente diante de
novas possibilidades de convivncias, a exemplo dos drag queens, drag
kings, butchs etc. Assim, a excludente noo de gnero, como at ento
entendida, no pode mais prevalecer. H que se repensar o conceito de
gnero, sugere Butler, admitindo como ato performativo. Para tanto, o
ponto de partida so os gneros no inteligveis, ou seja, os que vo de
encontro a esta relao de descontinuidade e de incoerncia existente
entre sexo anatmico, gnero, desejo e prtica sexual.
Laqueur135 afirma, com relao ao corpo, que o entendimento
sobre o dimorfismo sexual e tambm sobre sexo oposto tem data certa,
considerando que, at o sculo XVIII, o discurso preponderante era o
do isomorfismo, isto , os corpos masculinos e femininos eram varian-
tes, no se reduzindo, a diferena sexual, oposio binria.
Todavia, a partir do sculo XIX, com base no modelo reprodu-
tivo, os corpos masculinos e femininos so entendidos como radical-
mente diferentes e a marca desta diferena sexual so os genitais. Esta
simplificao da leitura de oposio exclusivamente binria dos corpos
evitou outros entendimentos sobre corpo e gnero. Tudo que no con-
formar normatividade binria de gnero considerado como patol-
gico. O trabalho de Butler foi desconstruir este equvoco e focalizar a
entendimento de gnero em sua vertente poltica.
Assegura Foucault136 que, a partir do sculo XIX, discursos proli-
feraram afirmando que a sexualidade em geral est relacionada bio-
logia dos corpos. Coerente com estes discursos inventou-se os dois
134
135
LAQUER, Thomas. Inventando o sexo corpo e gnero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro:
Relume Dumar, 2001.
136
FOUCAULT, Michel. Histria da sexualidade I a vontade de saber. 15. ed. Rio de Janeiro:
Graal, 2003c.
sexos, masculino e feminino. Os corpos justificariam as desigualda-
des e diferenas irrelativizveis e hierarquizadas entre o masculino e o
feminino. Com o tempo, tal diferenciao passou a ter estatuto de fato
originrio e foi encarada como determinada pela natureza.137 Assim, o
gnero foi edificado comodamente, considerando apenas a diferena
sexual que, por sua vez, limitou-se anatomia masculina e feminina do
corpo.
Admitindo a heterossexualidade e a reproduo da espcie
como referencial natural, surge, por consequncia, no final do sculo
XIX e comeo do sculo XX, o normal e o anormal. E a sexologia tomou
o cuidado de inventariar as prticas sexuais: fora da norma heterosse-
xual, tudo era patologizado. No mais bastava o mundo doente, pelo
preconceito, era necessrio tambm criar doenas, enxergar o outro
como doente, se porventura no enquadrado na normatizao.
Assim, observou Butler que sexo e gnero, em nossa sociedade,
advm de uma unidade, substancializada, traduzida na matriz de inte-
ligibilidade, a heterossexualidade. Da este modelo hegemnico, com
a naturalizao de corpos, gneros e desejos. O corpo ser coerente e
ter sentido se atrelado a um sexo estvel, que se manifesta diante do
gnero estvel. O homem necessariamente o masculino e mulher a
feminina. Com efeito, destaca Butler138 que,
A instituio de uma heterossexualidade compulsria e naturali-

zada exige e regula o gnero como uma relao binria em que o
termo masculino diferencia-se do termo feminino, realizando-se
essa diferenciao por meio das prticas do desejo heterossexual.
O ato de diferenciar os dois momentos oposicionais da estrutura
binria resulta numa consolidao de cada um de seus termos, da
coerncia interna respectiva do sexo, do gnero e do desejo.
Para Butler, a afinidade instituda entre sexo, gnero e sexuali-

dade contingente, e no conforme equivocado entendimento pre-
valente, natural. Destarte, depende de contextos histrico e cultural,
tendo seu marco criador numa formao especfica de poder, eis que
essas aludidas noes heteronormativas (sexo, gnero e sexualidade)
so produzidas pelas instituies polticas e pelas prticas sociais.
Foucault acrescenta que esta construo de gnero deve surgir de pr-
ticas discursivas, principalmente considerando que gnero no neces-
sariamente tem elo com sexo.
137
138
BUTLER, Judith. Problemas de gnero: feminismo e subverso da identidade. Trad. Renato
Aguiar. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003, p. 45-46.
Cossi afirma, criticamente, que gnero, na teoria da construo
social,139 entendido como fruto de um processo histrico e enfatiza,
sobretudo, a relao de desigualdades e hierarquias travada entre os
homens e as mulheres,140 sustentando-se na noo binria de gnero.
Contudo, esta almejada coerncia no prevalece, considerando que a
identidade pessoal e coletiva malevel e invariavelmente recons-
truda. A mutabilidade, a incoerncia so inerentes aos desejos. Assim,
as prticas sexuais e o sentimento sobre gnero no podem ser est-
veis. Nestas querncias no h um figurino, um modelo nico. Pensar
o contrrio perpetuar a castrao. Necessrio entender que gnero
no pode ser uma norma.141
Para a teoria butleriana, a demarcao das identidades de gnero,
a partir da heterossexualidade obrigatria, uma manobra de poder
medico-jurdica, introduzida como maneira de perpetuar o cenrio
social e no passando de mais uma prtica reguladora dos indivduos.
Portanto, prtica de castrao.
O que eleva o corpo condio humana, neste mundo heteros-
sexual, a inscrio das pessoas no gnero masculino ou no feminino.
As pessoas abjetas142 so as que no se moldam neste gnero inteli-
139
PORCHAT, Patrcia. Psicanlise e transexualismo: desconstruindo gneros e patologias
com Judith Butler. Curitiba: Juru, 2014, p. 23, afirma que, A partir da teoria da construo
social, desenvolvida por Foucault e outros autores na dcada de 70, o olhar para as questes
relativas sexualidade incluiu uma forte crtica biologia, uma distino entre sexo e gnero
e uma oposio s teorias essencialistas. Assim, toda forma de comportamento construdo
social e historicamente. Porchat, p. 30, ainda acrescenta que Foucault o principal referen-
cial quando se fala de construo social, embora no se dizer que ele tenha criado esta teoria,
que passou a influenciar grande parte dos estudos sobre a sexualidade e a homossexuali-
dade. Mary MacIntosh, Kenneth Plummer e Jeffrey Weeks que citei acima so igualmente
considerados nomes importantes nessa rea, contemporneos a Foucault e no apenas inspi-
rados por ele. Contudo, com certeza, a influncia de Foucault foi grande. Sua aceitao na
academia norte-americana se deveu principalmente possibilidade de historicizar categorias
antes aceitas como naturais.
140
COSSI, Rafael Kalaf. Corpo em obra: contribuies para a clnica psicanaltica do transexu-
alismo. So Paulo: nVersos, 2011, p.85.
141
Norma o que estabelece inteligibilidade. Portanto, e a exemplo do que ocorre no mundo
jurdico, no entendida esta palavra como sinnimo de regra ou lei. produo de realidade,
a partir da deciso do que includo ou excludo do cenrio social. Em se tratando de sexuali-
dade, este poder regulador persiste na manuteno do binrio sexual e de gnero. Assim, per-
siste a marginalizao, a partir do momento em que se expulsa algo, para que se possa cons-
truir o lado de dentro. O que no est dentro permanece do lado de fora e, como excludo,
abjeto.
142
MISKOLCI, Richard. Crtica hegemonia heterossexual. Revista Cult. So Paulo, n. 193, ano
17, p. 35, ago. 2014, esclarece, que os estudos queer tm-se caracterizado por criarem conhe-
cimento a partir do abjeto, por meio do que a sociedade considera como ameaando sua viso
idealizada sobre si prpria. Nesse sentido, o abjeto vai alm da sua definio psicanaltica
como a esfera do que causa nusea e nojo e alcana a de um espao-condio que problema-
tiza verses idealizadas que se instituram como o que a maior parte da teoria social ainda
compreende como sociedade. Em suma, a Teoria queer prov ferramentas conceituais e te-
ricas para desconstruir ontologias do social e da cultura construdas em uma perspectiva
masculinista e heterossexual.
gvel, no mantendo relaes de coerncia e continuidade entre sexo,
gnero, prtica sexual e desejo. Butler quer justamente dar conta do
abjeto, que no tem direito cidadania, que no tem lugar no Outro,
que no tem acesso categoria de sujeito e que no so reconhecidos
como humanos.143
Esse sujeito abjeto, excludo e sem reconhecimento na categoria
humana, ainda existe no sculo XXI e, pelo visto, ainda e infelizmente
vai demorar sua incluso, conforme demonstrou, de maneira cabal, o
sempre lcido transexual masculino144 Nery,145 quando afirma:
Considero que somos rebentos esprios de uma sociedade inspita,

que se recusa segurar a nos aceitar em sua jurisprudncia mdica e
legal. Somos rejeitados porque no correspondemos s suas aspira-
es preestabelecidas, e transformam-nos em minorias asfixiadas.
Ela tenta, em funo do sexo genital de cada um, moldar seus filhos
num s sentido, seja para o instrumental masculino, ou para o
expressivo feminino, e por ns no nos sujeitarmos aos seus anto-
lhos sociais, tornamo-nos objetos folclricos.
A noo de gnero, em Butler, estudada a partir do paradigma

gneros no inteligveis, tidos como patolgicos. Portanto, Butler no
aceita as colocaes de Stoller, intransigente defensor do dimorfismo,
e que entende os ncleos de identidade de gnero como algo natural
e imutvel. Na teoria butleriana, esses ncleos, de uma coerncia cul-
turalmente estabelecida, advm da produo ficcional. Portanto, so
alterveis.
Buscando integrar na sociedade os gneros no inteligveis,
incluindo neles a experincia transexual, despatologizando-os, Butler,
por meio do questionamento dos fundamentos da prpria noo de
gnero, no detm, a exemplo de Stoller, apenas no indivduo que, por
ser transexual, apresentava, para este psiclogo, distrbio e, por con-
seguinte, at um determinado momento da vida, poderia ser curado.
assim que a teoria butleriana entende e critica o gnero como ato per-
formativo, ou seja, respeitante criao de uma iluso de substncia,
por meio de significaes j estabelecidas e consolidadas socialmente,
com o escopo, poltico e estratgico, de manuteno, pela repetio,
de sua estrutura binria. Necessrio o questionamento acerca dessa
143
144
Transexual feminino e transexual masculino tambm so excludentes. Neste trabalho,
foram mantidos apenas para fins pedaggicos e para uma melhor compreenso do tema.
145
NERY, Joo W. Erro de pessoa: Joana ou Joo? Rio de Janeiro: Record, 1984, p. 172.
naturalizao dos gneros cominada, a partir da experincia de uma
determinada genitlia.
Assim, gnero, como conjunto de atos encenados e repetidos,
no possuidor de essncia e tambm no pode se impor por si s,
eis que contingente e, no obstante sem origem, copiado. A chamada
pardia de gnero persiste justamente nesta insistncia de se encon-
trar um gnero original mtico.
O gnero, portanto, constitudo de atos performativos, ou
seja, de sinais exteriores que, postos em ao, estabilizam e do visi-
bilidade ao corpo, criando um estilo corporal que tanto intencional
como performativo, ou seja, o gnero tornaria real e produziria aquilo
que nomeasse ou atuasse sobre.146
Esses atos performativos so produes escoradas em signos
corpreos e por meio de distintos meios discursivos. So pretensa ou
ilusoriamente naturais ou a-histricos, por se repetirem, como refe-
rncia de um ato original. Entretanto, no passam de citaes monta-
das, a partir de convenes. Ademais, a necessidade de tais reiteraes
para produo da iluso da estabilidade do gnero demonstra a fra-
queza deste ato, que ser ainda mais escancarada, considerando que
as normas do gnero tm por contedo o corpo, que extremamente
malevel e que tambm no possui status ontolgico.
A heteronormatividade, como produtora de gnero, unifica corpo
e gnero, que passam a ser conceitos complementares e dependentes.
Surge o corpo sexuado que, por conseguinte, no dado natural, mas
consequncia de um discurso elaborado sobre normas preexistentes,
de maneira que ser sempre excludente, eis que avesso ao novo e tam-
bm singularidade, entendida sempre como revolucionria, isto ,
fora dos padres aceitveis de convivncia na sociedade, por meio de
um estatuto que admite poucas mudanas.
Assim, o carter performativo do gnero limitado pelo poder
existente nas normas atinentes a este assunto, impedindo novas pos-
sibilidades sexuais e tambm dificultando estrategicamente o enten-
dimento de que no existe gnero original. Desse modo, esse poder
mantm a iluso de que os gneros, masculino e feminino, so a-his-
tricos e pr-discursivos e, por conseguinte, no so categorias cons-
trudas, a exemplo do transexual ou o transgnero. De tal modo,
permanece inalterado, ao longo do tempo, o entendimento da bina-
riedade de gnero que, por conseguinte, considerada, por muitos e
mantida pelo poder, como numerus clausus.
146
Tambm esse poder, presente nessas normas de gnero, tem
por escopo manter a coerncia da incoerncia interna das identidades
sexuais, no tocante ao corpo, gnero e sexualidade. Pelo poder e por
meio da normatizao constri-se a coerncia, ocultando, por conse-
guinte, a descontinuidade desses conceitos. Assim, a estabilidade do
gnero artificialmente mantida, necessitando, para no ser desmas-
carada, de repetio dos atos que o compem. nesse eterno fazer e
constante repetibilidade que o novo ou o subversivo, como desafiador
do poder, acontece.
Assim a Psicanlise acaba por encampar a heteronormatividade
dos gneros, por meio dos conceitos de diferena sexual e do simb-
lico, conforme afirma Butler e com a qual concordamos plenamente.
Alis, assim tambm j entendia Focault, em vrias de suas obras, com
destaque para A histria da sexualidade, Os normais, e tambm em
diversas passagens de Vigiar e Punir.
O sexo, masculino e feminino, na perspectiva lacaniana estru-
turalista, regulado pelo simblico, entendido esse como estrutura
de representaes aliceradas na linguagem. Assim e seguindo, neste
entendimento Freud, tambm em Lacan a constituio da identidade
sexual necessariamente carece da fase edpica e da consequente cas-
trao simblica, como fechamento dessa etapa. diante do posicio-
namento em relao ao falo e sob a incidncia do Nome-do-Pai, que
a criana assume a identidade sexual, homem ou mulher. Segundo
Lacan,147
O complexo de dipo tem uma funo normativa, no simplesmente

na estrutura moral do sujeito, nem em suas relaes com a reali-
dade, mas quanto assuno do seu sexo [...] h no dipo a assun-
o do prprio sexo pelo sujeito, isto , para darmos os nomes s
coisas, aquilo que faz com que o homem assuma o tipo viril e com
que a mulher assuma um certo tipo feminino, se reconhea como
mulher, identifique-se com suas funes de mulher. A virilidade e a
feminilizao so os dois termos que traduzem o que , essencial-
mente, a funo do dipo.
Tambm em outra manifestao, Lacan reafirma a funo nor-

mativa do complexo de dipo, ao ressaltar que a castrao inconsciente
tem uma funo de n [...] uma regulao do desenvolvimento que se
d a esse primeiro papel sua ratio, ou seja, a instalao, no sujeito, de
LACAN, J. O seminrio. As informaes do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, c1999

147
[1957-1958]..
uma posio inconsciente sem a qual ele no poderia identificar-se
com o tipo ideal de seu sexo.148
Destarte, em Lacan, o sujeito psicanaltico estrutura-se na
matriz das relaes normativas da heterossexualidade. Para a nor-
malizao do sujeito, indispensvel a passagem edpica, sem a qual
no haveria correspondncia entre sexo e gnero. Essa incoerncia
demonstrao de que o sujeito no adentrou no dipo e, por conse-
guinte, patolgico.
Alerta Cossi149 que, por meio de Lacan outra leitura possvel
que a constituio do sujeito s d medida que este se posiciona de
um lado ou de outro. A diferena sexual seria premissa, condio do
sujeito. Para ingressar no simblico necessrio a subordinao
diferena sexual. Fora deste quadro heterossexual o sujeito, por no
estar tambm includo na linguagem, tornar-se-ia um psictico. Assim,
na obra lacaniana a necessria e nica diferenciao sexual (homem/
mulher), para no ser rotulado de patolgico, ocorre a partir da insti-
tuio do significante150 falo.
O entendimento de Lacan no se sustenta, considerando que
sua teoria pressupunha uma substncia intrnseca aos gneros, que
no tem status ontolgico. impossvel assumir e realizar as identi-
dades sexuais, cujas naturezas so fantassticas. Alm do mais, o falo
concebido como uma referncia universal a partir da qual as posies
masculinas e femininas seriam dedutveis.151 Deste modo, haveria ape-
nas duas maneiras de se relacionar com este falo simblico, encarado
como substncia nica: o masculino e o feminino.152
Em Butler no h que se falar em diferena sexual e simb-
lico, conceitos encampados, em determinados momentos, pela teo-
ria lacaniana, eis que tais noes reforam o entendimento de que a
promoo da inteligibilidade o atrelamento s normas da heterosse-
xualidade imposta e centradas no falocentrismo. Assim, condicionada
restou a existncia do sujeito ao ingresso no simblico e consequente
posicionamento a um dos lados da binaridade sexual.
148
LACAN, J. O seminrio. A significao do falo. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar c1998
[1958]], p. 692.
149
150
No final dos anos 1950, o falo descrito como um significante, representando a falta que a
castrao produziu. Assim, para as mulheres, a questo era ser ou no ser falo. No homem, a
dialtica era do ter: ter ou no ter o falo.
151
152
Como esclarecido em vrias passagens deste trabalho, Lacan, a partir dos anos 1960, modi-
fica tal entendimento, assunto que voltaremos a falar, tambm logo abaixo.
Ressalte-se, entretanto, que mesmo na Psicanlise h possibi-
lidade de incluir os gneros no inteligveis, sem consider-lo como
patolgicos, bem como se pode afirmar, tambm, que a Psicanlise no
se reduz ao referencial heteronormativo, no obstante a dificuldade
dos psicanalistas atuais de se desvincularem, por completo, dos ensi-
namentos, primeiro, de Freud, e, depois, de Lacan, antes da dcada de
1960.
Assim, o discurso atual materializa o corpo na produo bin-
ria. Entretanto, aludida materializao incompleta, segundo a teoria
butleriana, carecendo de frequente empenho de repetio e de reite-
rao das normas. Consequentemente, a construo do corpo par-
cial, levando-se em considerao que, na relao dele com a linguagem
discursiva, esta no consegue traduzi-lo por completo. Isso ocorre,
em razo de no se poder abandonar integralmente o pr-discurso,
impossibilitando o corpo de no encampar totalmente as normas, o
que pode ser denominado de pulso, na teoria butleriana, demons-
trando a impossibilidade de modelao da heteronormatividade.
Portanto, possvel coerncia de qualquer identidade rompida
pelas pulses, razo de poder entender que a Psicanlise pode, sim,
contemplar os gneros no inteligveis, partindo-se das pulses.
Nota-se que a teoria butleriana no se manteve atrelada con-
cepo lacaniana, disseminada antes da dcada de 1960, da diferena
sexual ajustada no apontamento do simblico. Contudo, o prprio
Lacan no manteve tal entendimento. Assim, este reposicionamento
lacaniano considerou que, na verdade, a diferena sexual, por ser da
ordem do real, no pode ser simbolizada, permitindo a existncia dos
gneros no inteligveis, j que a diferena sexual no se atm em
nenhuma identidade. A partir desta fase, com Lacan preocupado mais
com o real, as novas sexualidades adquirem possibilidades de serem
consideradas como legtimas e desatreladas da patologia.
A partir de ento, mudam-se os efeitos teraputicos da Psi-
canlise, que so, doravante, de tampo, de adaptao, de alvio, na
medida exata em que reconhece a singularidade do desejo. Ela opera
no quando reconduz norma e, sim, quando autoriza o desejo no seu
desvio constitucional.153 Desse modo, no h pretenso de recondu-
o desse desvio norma, mas, sim, de permiti-lo, se fundamentado no
autntico.
MILLER, Jacques Alan. Perspectivas dos escritos de Lacan. Trad. Vera Avellar Ribeiro. Rio
153
de Janeiro: Jorge Zahar, 2011, p.32.
15A TEORIA LACANIANA DA SEXUAO
O termo sexuao, em Lacan, assinala a maneira como o incons-

ciente reconhece e distingue os dois sexos, com a pretenso de esvaziar
a universalidade do falo, trazendo, em modificao ao entendimento
prprio anterior, a sexualidade dimenso de contingncia. Portanto,
o corpo seria um terreno aberto imprevisibilidade, no mais limitado
matriz da heterossexualidade compulsria.154
At o fim da dcada de 1950, Lacan, preso em conceitos padres
(desejo, alienao e significante), entendia que o sujeito, por meio da
ordem simblica (e no real) seria constitudo, nascendo da o desejo.
Contudo, posteriormente Lacan admite, em contraponto ao desejo,
tambm o gozo.
Foi no Seminrio XX que Lacan esmia a diferena entre o
gozo masculino e feminino, que no mais relacionado s diferencia-
es biolgicas existentes entre homens e mulheres. Apesar do papel
decisivo da funo flica na estrutura masculina e feminina no ela
suficiente, principalmente considerando a ausncia de relao e a des-
proporcionalidade entre ambos o gozo, a demonstrar que a diferena
sexual da ordem do real e as modalidades do gozo so determinantes
para a tomada de posio sexuada do sujeito.
Na at ento concepo universalista da sexualidade, o falo era o
nico organizador das prticas de gozo. Entretanto, tal concepo foi
desconsiderada pelo Lacan. Cai o falocentrismo, como ncleo opera-
dor de toda a sexualidade. Existem sexualidades em contraponto com
a sexualidade. Nessa nova compreenso, Lacan aproxima-se de Butler,
ao considerar que nem toda sexualidade flica ou deduzida do sim-
blico. A partir de ento, a sexualidade plural.
Portanto, mesmo nesse momento mais adiantado da teoria laca-
niana, possvel continuar entendendo que a sexualidade ainda tem
como referncia a binaridade homem/mulher ou ao gozo masculino
ou feminino, no obstante no mais complementares ou determinados
anatomofisiologicamente.
Todavia, encampamos o entendimento de que, mesmo prevale-
cendo a binariedade homem/mulher, nesta nova postura terica laca-
niana, h fissura com incluso de outras formas de sexualidade, a partir
do momento em que se afirma que existe algo para alm do flico. E
com este novo posicionamento que aparece o objeto a, incompatvel
binariedade de gnero e ao estatuto flico.155
154
155
Assim, esta nova teoria lacaniana demonstra que a sexualidade
humana marcada pelo gozo. Contudo, tal constatao no determi-
nante para o gnero. Assim sendo, a teoria da sexuao, aqui resumida,
tem por escopo demonstrar que a Psicanlise lacaniana tem duas eta-
pas, a primeira ortodoxa e por meio dela que inmeros profissionais
ainda se encontram atrelados; a segunda, inovadora, subversiva, inclu-
siva. Em Lacan, da primeira vertente, o real dependente do simblico.
Na segunda fase lacaniana, o real adquire autonomia.
essa segunda etapa que vai ao encontro da teoria butleriana,
a partir do momento em que Lacan olvida, em grande parte, o sim-
blico que, numa comparao com o direito, seria a preocupao
exclusivamente com o abstrato, mesmo que em desacordo com o con-
creto. Nessa etapa, Lacan se tornou mais real e, por conseguinte, mais
humano, ao perceber que, alm do feminino e masculino, existem
outras maneiras de viver, sexualmente falando, e que estas pessoas, ao
contrrio da primeira concepo lacaniana, so normais, perfeitas.
Portanto, a partir do Seminrio XX, com a teoria da sexuao, a
sexualidade em Lacan no mais pensada como atributo substantivo e,
sim, concebida como contingncia, como sexuao. A partir de ento,
o modelo de heterossexualidade compulsria no considerado como
normalizador e natural e as variadas relaes que podem ser estabele-
cidas entre sexo, gnero e sexualidade so construes legtimas.
Em concluso, Butler diverge do posicionamento inicial de
Lacan, a respeito de sexo, gnero e sexualidade. Contudo, tal ensina-
mento restou superado pelo prprio Lacan e, com tal superao, no
existe nenhuma divergncia entre estes dois mestres. Por outro lado,
Stoller, infelizmente, no conseguiu avanar em sua teoria, insistindo
na patologizao dos no enquadrados no binrio masculino/feminino,
teimando em transformar a transexualidade, como modo de viver, em
transexualidade, em doena.
Embora equivocada a posio de Stoller, era a que estava pre-
valecendo mundo afora, considerando que a ausncia de coincidn-
cia entre o sexo e gnero foi considerada como anormalidade, como
Janeiro: Jorge Zahar, 2011, p.31, demonstra que a partir da dcada de 1960 h um Lacan preo-
cupado avesso ao universalismo, eis que, a verdadeira psicanlise, no sentido de Lacan,
aquela que se pe no rastro do desejo e visa isolar, para cada um, sua diferena absoluta, a
causa de seu desejo na sua singularidade, eventualmente a mais contingente. Disse eventual-
mente! A causa do desejo para cada um sempre contingente. E uma propriedade fundamen-
tal do ser falante, a causa de seu desejo sempre tem a ver com um encontro, o seu gozo no
genrico, no tem a ver com a espcie. A modalidade prpria do gozo tem a ver, em cada caso,
com uma contingncia, com um encontro. O gozo no programado na espcie humana.
Temos a uma ausncia do vazio. O que d ao gozo, para cada um, uma figura singular uma
experincia vivida, um encontro. A est o escndalo. Gostariam que o gozo fosse genrico,
que fosse normatizado para a espcie. Pois bem, ele no . A se destroam todos os discursos
universalistas.
patologia, denominada de transtorno da sexualidade e de gnero e
classificada pela Organizao Mundial da Sade e pela Associao Psi-
quitrica Americana. A discusso entre os transexuais e as demais pes-
soas contrrias a essa patologizao por no ser correto definir e
diagnosticar um gnero.
16CONCLUSO
Consequncia do movimento de despatologizao156 da transe-

xualidade foi que na Frana, desde 2010, tal maneira de comportar-se
no mais considerada uma patologia psiquitrica de longa durao,
classificao ditada pela Organizao Mundial de Sade. Antes desta
atitude, a ministra da Sade daquele pas, Roselyne Bachelot, anunciou
tal proposta, no dia 16 de maio de 2009, antecipando s comemoraes
do mundial da luta contra a homofobia. A partir desta despatologiza-
o, inmeras personalidades do mundo poltico e cientfico pleite-
aram, por escrito, que a OMS no mais considerasse os transexuais
como pessoas afetadas por transtornos mentais e, por conseguinte,
em breve, tal proposta poder sair tambm vitoriosa, o que refletir na
legitimao dos transexuais em diversos pases.
At ento, a Organizao Mundial de Sade justificava a manu-
teno da classificao afirmando que o transexualismo est na lista
de patologias constantes do manual mdico DSM (Diagnostic and Sta-
tistical Manual of Mental Disorders), realizada por mdicos america-
nos. Entretanto, poderia a prpria OMS se antecipar (e emancipar-se)
tomada de deciso dos mdicos americanos, que no tm o monoplio
do saber, contribuindo para apagar mais este estigma e at mesmo
para que o DSM desconsidere tal questo como patologia mental.157
156
Os participantes do Dilogo Latino-Americano sobre Sexualidade e Geopoltica, em reu-
nio realizada entre os dias 24 e 26 de agosto de 2009 no Rio de Janeiro, aderiram campanha
internacional Stop Pathologization 2012 e publicaram MANIFESTO com o seguinte ttulo:
Transexualidade no doena! Pela retirada da transexualidade do DSM e do CID!. Tal
movimento aflorou em razo de, naquele ano de 2012, a conservadora Associao Psiquitrica
Norte-Americana (APA) estava por publicar, o que acabou acontecendo, a quinta verso do
Manual Diagnstico e Estatstico dos Transtornos Mentais (DSM, sigla em ingls), mantendo a
transexualidade como um transtorno de identidade de gnero.Aquele MANIFESTO aler-
tava, a p.265: A patologizao da intersexualidade e da transexualidade est baseada no pres-
suposto de que os gneros so determinados pelo dimorfismo dos corpos. A ausncia de um
pnis e um orifcio vaginal seriam condies necessrias para determinar a identidade de
gnero feminino, e a coerncia do gnero masculino estaria dada pela presena do pnis. Esse
determinismo, apoiado no saber/poder mdico, como instncia hegemnica de produo de
discursos sobre sexo e gnero, fundamenta polticas estatais de sade pblica e direitos, esti-
pulando o acesso das pessoas categoria de humano. Tal noo de humanidade, mediada
pelo arbtrio mdico, violenta o direito identidade e ao reconhecimento da diversidade.
157
A Folha de S. Paulo, na edio 1/12, noticiou que a Organizao Mundial de Sade, na pr-
xima edio da CID-11 (Classificao Internacional de Doenas) deixar de considerar como
transtornos vrios comportamentos relacionados identidade de gnero, j partir de de 2015.
Esse fato esperado por todos, de desassociar uma condio de
vida doena, motivo de preocupao dos brasileiros no tocante aos
transexuais, principalmente os carentes, que necessitam da utiliza-
o do Sistema nico de Sade e que no mais podero se submeter
cirurgia e a outras terapias gratuitamente, entendo que, a partir de
ento, no mais prevalecer a Resoluo n. 1.955/2010, expedida pelo
Conselho Federal de Medicina, que ainda no foi questionada justa-
mente por considerar a transexualidade uma patologia.
Todavia, tal preocupao no prevalecer, considerando que a
despatologizao da transexualidade no significa estar de acordo com
a ideia de que os estados sejam excludos do financiamento integral de
todo o processo transexualizador.158 O Estado tem o dever de garan-
tir assistncia universal, integral e igualitria de sade populao, na
busca de padres mximos de bem-estar. Portanto, se pessoas preten-
dem fazer a cirurgia de transgenitalizao, para adequao do corpo
identidade de gnero, continua sendo obrigao do Estado garanti-
-la. Pensar o contrrio no preocupar-se com o bem-estar de cada
pessoa, condio indispensvel para atingir o bem-estar de todos. O
Estado tem o dever de garantir a sade e no a doena. Deve agir pre-
ventivamente, para evit-la, o que poder acontecer, com relao ao
transexual que, resoluto, no quer manter sua genitlia que se encon-
tra em descompasso com a escolha de vida dele.
Portanto, e diante da necessidade de cirurgia para alguns tran-
sexuais, basta a publicao de nova resoluo, deixando de conside-
rar apenas o aspecto patolgico neste novo texto normativo. Proibir a
cirurgia retroceder. desconsiderar a vontade, irreversvel, daqueles
transexuais que necessitam desse ato para se considerarem integrados
sociedade.
Assim, no mais correto entender a transexu-
alidade como doena. que o imperativo heterosse-
xual sempre foi excludente, surgindo da os seres abjetos.
No apropriado, por conseguinte, rotular as pessoas, se no mol-
duradas no binrio masculino/feminino. Existem muitas expres-
ses de gnero e estar fora da binariedade, imposta historicamente,
no nenhuma anormalidade. A homossexualidade, reconhecida pelo
A modificao incluir os transexuais em um captulo prprio, pertinente s outras condi-

es relativas sexualidade, no mais relacionados com doenas. Pretende-se tambm eli-
minar o sadomasoquismo e o travestismo como patologias. Interessante e correta a coloca-
o do diretor de sade mental da OMS, Geoffrey Reed, reportagem da folha, ao afirmar que
se trata de despatologizar o sexo e que comportamentos sexuais inteiramente privados ou
consensuais e que no resultem em danos s outras pessoas no devem ser considerados uma
condio de sade.
158
A inda citao constante do Manifesto apresentado pelos participantes do Dilogo Latino-
-Americano sobre Sexualidade e Geopoltica, em reunio realizada entre os dias 24 e 26 de
agosto de 2009 no Rio de Janeiro, p. 267.
Direito, por meio de histrica deciso do Supremo Tribunal Federal,
um exemplo de incluso. A experincia identitria dos transexuais
tambm demonstra o carter plural do gnero, ratificando a importn-
cia do respeito individualidade.
Entretanto, a dificuldade do transexual em modificar o nome e
at o gnero encontra ainda resistncia no Direito, ao exigir que tal
questo seja discutida, se o transexual no pretende fazer a cirur-
gia, ou rediscutida, se j realizada a cirurgia, no Judicirio, em total
descompasso com o princpio da autonomia privada e com o preva-
lecimento de um absurdo paternalismo ou de uma pseudossegurana
jurdica por parte de terceiros.
Contudo, desnecessria esta passagem pelo Judicirio, na ausn-
cia de conflito de interesses e tambm considerando que no mais
compete a esta outra instncia ir contra ao que j est solucionado,
para aqueles transexuais que j se submeteram cirurgia de redesig-
nao de sexo.
Pensar o contrrio, ou seja, que a questo ainda carece de judi-
cializao, motivar o retrocesso. Com efeito, antes, at para realizar-
-se a cirurgia havia necessidade de autorizao judicial. Depois e em
bom momento, entendeu-se desnecessria essa prvia autorizao,
em face da publicao da primeira resoluo, expedida pelo Conselho
Federal de Medicina, a de n. 1.482/1997. Ora, a partir do momento em
que se entendeu, corretamente, que no precisava mais de a pessoa
socorrer-se do Judicirio para submeter-se a tal cirurgia, parece-nos
que a consequncia natural desta desjudicializao seria tambm no
necessitar, posteriormente, de vir ao Judicirio para mudar o nome e o
sexo.
Entretanto, considerando a ortodoxia no Direito, necessrio
ainda ser, neste Pas, a publicao de lei, autorizando que o transexual
modifique diretamente no cartrio o nome e que tambm no mais
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DAS DISPOSIES TESTAMENTRIAS
Zeno Veloso
Professor de Direito Civil e de Direito Constitucional Aplicado.

Notrio Saber reconhecido pela Universidade Federal do Par.
Doutor Honoris Causa da Universidade da Amaznia.
Escritor. Diretor do IBDFAM.
Membro da Academia Brasileira de Letras Jurdicas.
Permitam-me saud-los de maneira bem simples, afetiva, afir-

mando: meus queridos IBDermanos, que todos integramos este Ins-
tituto Brasileiro de Direito de Famlia (IBDFAM), organismo pujante,
vitorioso, que tantos e to relevantes servios tem prestado e, se Deus
quiser, vai continuar prestando cultura jurdica de nosso pas. Vejo
uma plateia numerosssima, e vislumbro dezenas de mestres renoma-
dos e consagrados do Direito Civil, e visvel a minha emoo, minha
apreenso, falando para gente to douta e qualificada, entretanto,
so amigos, e amigos to queridos que havero de relevar minhas
limitaes.
Vou abordar o tema Das disposies testamentrias, que
se acha regulado nos arts. 1.897 a 1.911 do Cdigo Civil. J falei deste
importante assunto em vrios livros e escritos, antigos e mais novos,
como no Cdigo Civil Comentado,1 obra coletiva, que teve como pri-
meiro coordenador o saudoso deputado Ricardo Fiuza, no Manual de
Direito das Famlias e das Sucesses,2 obra coletiva, coordenada pelos
professores Ana Carolina Brochado Teixeira e Gustavo Pereira Leite
Ribeiro, e no Comentrios ao Cdigo Civil,3 coordenador Antnio Jun-
queira de Azevedo.
Obviamente, a exposio que farei, aqui e agora, neste memo-
rvel X Congresso Nacional do IBDFAM, na cidade de Belo Horizonte,
onde o instituto nasceu, segue o roteiro e, de modo geral, o que j disse
antes nos mencionados livros.
1
FIUZA, Ricardo; SILVA, Regina Beatriz Tavares da (Coord.). Cdigo Civil comentado. 9. ed. So
2
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite (Coord.). Manual de
direito das famlias e das sucesses. Belo Horizonte: Del Rey : Mandamentos, 2008.
3
VELOSO, Zeno. In: AZEVEDO, Antnio Junqueira de (Coord.). Comentrios ao Cdigo Civil.
So Paulo: Saraiva, 2003, v. 21.
O captulo denominado Das disposies testamentrias de
nosso Cdigo Civil inaugura-se com o art. 1.897 que dispe: A nomea-
o de herdeiro, ou legatrio, pode fazer-se pura e simplesmente, sob
condio, para certo fim ou modo, ou por certo motivo.
O testamento negcio jurdico tpico, que contm as ltimas
vontades do autor da sucesso. As disposies testamentrias fazem
parte de um todo o ato testamentrio , e se h vrios testamen-
tos, que no se repelem, dos vrios testamentos compossveis. Todavia,
embora participando de um conjunto, cada disposio testamentria,
em princpio, vale por si, bastante por si mesma, deve ser recebida
e cumprida como negcio jurdico independente, dentro, claro, da
viso global da manifestao mortis causa.
Nosso Cdigo Civil tratou, antes, das formas dos testamentos,
com as respectivas formalidades e solenidades, assunto que se enqua-
dra na forma extrnseca, no contedo externo dos atos de disposio
de ltima vontade. Este captulo inaugura a disciplina do objeto, do
contedo interno ou intrnseco dos testamentos, que, na maioria dos
casos, representado pela instituio de herdeiros, nomeao de lega-
trios, distribuio dos bens do testador, embora o testamento possa
conter disposies no patrimoniais (cf. art. 1.857, 2, do Cdigo Civil).
Este artigo, iniciando o regramento (at excessivo) que faz o
legislador a respeito das disposies testamentrias, afirma que a
nomeao de herdeiro, ou legatrio, pode fazer-se, pura e simples-
mente, sob condio, para certo fim ou modo, ou por certo motivo.
Note-se bem: no o testamento, como negcio jurdico, ou o
ato testamentrio, como um todo, que pode ser submetido a condies,
a alguma causa ou a certo motivo. O testamento, no seu conjunto, no
vinculvel a condies ou motivos de testar, e se aparecerem alguns,
no tm efeito jurdico.
Se, por exemplo, o testador enuncia que o seu testamento
outorgado porque vai submeter-se a delicada cirurgia, e que ser cum-
prido se morrer da operao; ou se expe que seu testamento feito
porque est muito apreensivo, prevendo que vai ocorrer, brevemente,
um ato terrorista em sua cidade; ou se afirma que seu testamento s
ter efeito se ele morrer no mesmo ano em que testou, nada disso ter
valor algum. O testamento vlido ter eficcia, ainda que o testador
sobreviva operao e morra por outra razo, mesmo que no ocorra
qualquer ato terrorista na sua cidade, e, igualmente, se falecer muito
depois do ano em que fez o testamento.
J as disposies testamentrias so suscetveis de condies,
causas, modos.
O presente dispositivo inicia mencionando a nomeao de her-
deiro, ou legatrio. E convm distinguir.
As disposies patrimoniais do testador podem ordenar que o
sucessor receba a universalidade da herana ou quota-parte (ideal,
abstrata) dela, ou estabelecer que o sucessor ficar com um bem indi-
viduado, definido, destacado do acervo, ou quantia determinada.
No primeiro caso, a disposio a ttulo universal, e o nomeado
herdeiro; no segundo caso, a disposio a ttulo singular ou parti-
cular, e o beneficiado legatrio. Os sucessores, ento, so herdeiros
ou legatrios.4
Ainda em nosso tempo, pode ser aproveitada a antiqussima defi-
nio de Modestino: legatum est donatio testamento relicta = legado
a doao deixada em testamento.5
A qualidade de herdeiro pode decorrer da lei e do testamento;
s o testamento faz legatrio. O legado, assim, figura exclusiva da
sucesso testamentria.
O legado se distingue da herana, como vimos, pelo objeto da
vocao sucessria. O legatrio tem de ser explicitamente indicado
pelo testador. Contudo, no a qualificao dada pelo disponente que
decide. Se o testador diz que certa pessoa herdeira de determinado
imvel, e que outra legatria de um tero da herana, na verdade,
apesar da denominao equivocada, temos, no primeiro caso, a insti-
tuio de legatrio, e, no segundo, a nomeao de herdeiro.
Para que o legatrio possa assumir essa qualidade e exercer o
respectivo direito, necessrio que aceite o legado. E a aceitao tem
de ser total. Contudo, se o herdeiro for tambm legatrio, pode acei-
tar o legado renunciando a herana, ou aceitar a herana e repudiar o
legado (art. 1.808, 1).
Se o testador destinou a algum coisa ou coisas determina-
das, individuadas, destacadas, trata-se de legado, independentemente
do valor da deixa. Pode ocorrer de o legatrio receber mais do que o
herdeiro.
A nomeao do herdeiro, ou legatrio, pode ser pura e simples,
bem como sob condio (suspensiva ou dilatria e resolutiva ou extin-
tiva), para certo fim ou modo, ou por certo motivo, diz este art. 1.897.
Os elementos acidentais do negcio jurdico, regulados na Parte Geral
Cf. art. 2.030 do Cdigo Civil portugus; art. 588 do Cdigo Civil italiano.
4
Digesto, 30, II, fr. 36.

5
do Cdigo Civil arts. 121 a 137 foram abordados em meu livro Condi-
o, Termo e Encargo.6
A nomeao pura e simples a que no impe qualquer nus,
encargo ou obrigao ao herdeiro ou legatrio, tornando-se eficaz
desde a morte do testador. Havendo pureza e simplicidade, a disposi-
o testamentria opera sem mais nada, com a abertura da sucesso.
Para a nomeao condicional, devem ser observados os arts. 121 a
130, que regulam a condio, ou seja, a clusula que, derivando exclusi-
vamente da vontade das partes, subordina o efeito do negcio jurdico
a evento futuro e incerto. Esses preceitos so aplicveis s disposies
testamentrias, especialmente quanto liceidade e possibilidade das
condies.
Intervm aqui, igualmente, o que estatui o art. 121: Considera-se
condio a clusula que, derivando exclusivamente da vontade das par-
tes, subordina o efeito do negcio jurdico a evento futuro e incerto. A
contrario sensu, se um evento componente da figura jurdica, efeito
necessrio de determinado negcio, se decorre dele, inevitavelmente,
ainda que as partes o prevejam e o mencionem no contexto negocial,
tratar-sede uma abundncia, de uma disposio ociosa e desneces-
sria, pois o referido efeito inexorvel. No estaremos diante de uma
condio, no sentido tcnico-jurdico do instituto, mas daquilo que os
romanos chamavam conditio juris. Em sede de disposies testamen-
trias, se o disponente prev: este ato ter efeito quando eu morrer;
deixo minha casa a Jos, se ele tiver legitimao para suceder; Fran-
cisca ser minha herdeira, se aceitar a herana; Antnio s herdar se
me sobreviver, nada disso condio, pois nada disso deriva, exclu-
sivamente, da vontade do testador, so enunciados que expressam
requisitos de eficcia impostos pela prpria lei. So conditiones juris. A
disposio, nos casos exemplificados, pura e simples.
O art. 123, I a III, enuncia que invalidam os negcios jurdicos que
lhes so subordinados: as condies fsica ou juridicamente impos
sveis, quando suspensivas, as condies ilcitas, ou de fazer coisa il-
cita, e as condies incompreensveis e contraditrias. Como o art. 116
do Cdigo Civil de 1916, adota este um regime uniforme para os neg-
cios jurdicos, sejam inter vivos, sejam de ltima vontade.
Os Cdigos Civis da Espanha (art. 792), da Itlia (art. 634) e de
Portugal (art. 2.230) resolvem que as condies impossveis ou ilcitas,
nas disposies testamentrias, consideram-se no escritas, no apos-
tas, ou seja, a condio desprezada e vale a disposio testamentria,
ao passo que nos negcios inter vivos estabelecem a invalidade destes
VELOSO, Zeno. Condio, termo e encargo. So Paulo: Malheiros, 1997.

6
quando subordinados a tais condies. Seguem, pois, o regime dua-
lista, adotando a soluo sabiniana.
Embora no exista em nossa legislao texto expresso sufra-
gando a distino, Orlando Gomes e Caio Mrio da Silva Pereira aco-
lhem a antiga distino romana seguida, igualmente, por Savigny ,
e lecionam que a impossibilidade e a iliceidade da condio no con-
taminam o ato mortis causa, como sucede nos negcios inter vivos,
tendo-se, ao contrrio, como no escrita, valendo a disposio testa-
mentria como pura e simples.
Estando vinculada a disposio testamentria condio sus-
pensiva, enquanto esta no se verificar, no se ter adquirido o direito
a que ela visa (art. 125). A liberalidade s ganha eficcia, e ser exe-
cutada, se ocorrer o evento futuro e incerto mencionado pelo testa-
dor. Com o implemento da condio, o direito que o favorecido adquire
retroage data da abertura da sucesso.
Se a condio resolutiva, o beneficiado adquire o direito desde
a data da abertura da sucesso, mas, verificada a condio, para todos
os efeitos o direito se extingue (arts. 128, primeira parte, e 1.359 do
Cdigo Civil).
Nesse passo, o Direito brasileiro abandona as fontes romanas,
admitindo, francamente, tanto na instituio de herdeiro como de
legatrio, a aposio de condio resolutiva.
Sobrevindo a condio resolutiva, diz o art. 128, primeira parte,
extingue-se, para todos os efeitos, o direito a que ela se ope. A con-
dio resolutiva, ento, opera ex tunc. Edita, por sinal, o art. 1.359 que,
resolvida a propriedade pelo implemento da condio ou pelo advento
do termo, entende-se tambm resolvidos os direitos reais concedidos
na sua pendncia, e o proprietrio, em cujo favor se opera a resoluo,
pode reivindicar a coisa do poder de quem a possua ou detenha. Esse
preceito se estende ao direito sucessrio.
Todavia, a retroao dos efeitos da condio no pode ser abso-
luta, pois isso causaria injustias notveis. A equidade e o respeito
boa-f tm de ser, aqui, especialmente considerados. O sucessor, que
teve o seu direito fulminado pelo advento da condio, no precisa res-
tituir os frutos e rendimentos que percebeu desde a morte do testador
at a data em que foi verificada a condio resolutiva.
No que se refere condio suspensiva h uma diferena impor-
tante, conforme esteja aposta a negcio inter vivos ou a disposio
testamentria: se o negcio inter vivos (uma doao, por exemplo),
e o adquirente falece antes do implemento da condio, transmite ao
seu herdeiro o negcio condicional; na sucesso mortis causa, se o
institudo (herdeiro ou legatrio) morrer antes do implemento da con-
dio, a instituio caduca, extingue-se, no ter efeito, e o herdeiro
ou legatrio condicional no transmite a sua qualidade aos prprios
herdeiros.7
Contudo, alm de subordinar a disposio a uma condio, o tes-
tador pode especificar que a nomeao do herdeiro ou do legatrio
feita para certo fim ou modo, ou por certo motivo.
Por certo motivo a disposio em que o de cujus explica a razo
da liberalidade, identifica o que impulsionou a sua vontade, o que ori-
ginou, influenciou ou estimulou a sua deliberao, como, por exemplo,
se o testador afirma que nomeou o herdeiro por ser este um cientista
notvel, ou porque o socorreu em momento de dificuldade.
No caso de o testador incorrer em erro, no sendo verdadeiro
o motivo apontado, a disposio ineficaz se se depreender do testa-
mento que sem a causa, a razo apresentada, o benefcio mortis causa
no teria sido feito. Quando o motivo determinante da declarao
de vontade, o erro quanto ao motivo anula a atribuio testamentria
(art. 1.909, caput, de nosso Cdigo Civil, matria tambm tratada no
art. 2.202 do Cdigo Civil portugus e no art. 624, al. 2, do Cdigo Civil
italiano).
Para certo fim ou modo a disposio submetida a encargo, ou
seja, ao beneficiado imposta uma obrigao. O encargo tem de ser
lcito e possvel. Na condio, a liberalidade tem o efeito subordinado a
evento futuro e incerto; o encargo nus, uma restrio liberalidade,
no um correspectivo da atribuio feita no testamento, mas mode-
rao, limitao dela, e, no geral dos casos, no suspende a eficcia
da disposio (art. 136). Conforme a lio repetidssima do venerando
Savigny, a condio (suspensiva) suspende e no obriga e o encargo ou
modo obriga e no suspende.8 O art. 136 de nosso Cdigo Civil em vigor
corresponde ao art. 128 do Cdigo Civil de 1916, e a fonte de ambos o
art. 655 do Esboo, de Teixeira de Freitas.
O modo, assim, no suspende a aquisio nem o exerccio do
direito do herdeiro ou legatrio. A inexecuo do encargo no tem a
consequncia de, ipso jure, tornar ineficaz a disposio. Os herdeiros
do testador, ou quem apresente legtimo interesse, podem requerer em
juzo a ineficcia da liberalidade, e a sentena opera ex nunc, e assim
Cf. art. 1.809, especialmente a segunda parte do mesmo.

7
SAVIGNY, Friedrich Karl von. Sistema del Derecho Romano Actual. Trad. Jacinto Mesa e
8
Manuel Poley. Pamplona: Analecta, 2004, t. II, p. 284.
lecionam Pontes de Miranda,9 Carlos Maximiliano,10 Orosimbo Nonato,11
Silvio Rodrigues,12 obra que a pedido do Autor tive a honra de atuali-
zar. Registre-se, no entanto, a opinio contrria de Orlando Gomes13 e
de Caio Mrio da Silva Pereira,14 no sentido de que o inadimplemento
da disposio testamentria modal no acarreta a resoluo do direito
do herdeiro, ou legatrio, no podendo nenhum interessado pedir a
caducidade da mesma, a no ser que essa caducidade esteja prevista
na prpria disposio testamentria. O tema, como se v, controver-
tido. Flvio Tartuce e Jos Fernando Simo, jovens e vitoriosos juristas
brasileiros, amigos queridssimos e que aqui esto presentes, no livro
Direito Civil, v. 6, Direito das Sucesses, que tive o prazer de prefaciar,15
discordam da opinio doutrinria majoritria e acham que a inexecu-
o do encargo no permite a revogao da disposio testamentria,
pois no h previso expressa com relao herana e por ser norma
restritiva de direito no comporta interpretao analgica.
Penso que o encargo no mero conselho, simples recomenda-
o (nuda praecepta), mas, ao contrrio, funciona a vontade do testa-
dor de forma imperativa, uma ordem, como lex privata, nas palavras
do egrgio Pontes de Miranda, que no canso de citar, de homenagear,
de enaltecer. No cumprido o encargo, desrespeitada e prescrio do
falecido, no seria justo que ficasse por isso mesmo. Acompanho a
doutrina que admite a revogao judicial da liberalidade pelo inadim-
plemento do modus, embora com efeitos ex nunc (prospectivos e no
retroativos ex tunc), salvo se outra coisa foi determinada pelo testa-
dor, como, por exemplo, se estabeleceu o encargo e dispensou sano
pelo descumprimento.
O Cdigo Civil alemo, art. 2.194, afirma que a execuo de um
encargo pode ser exigida pelo herdeiro, pelo co-herdeiro, ou por aquele
a quem aproveitaria, de forma imediata, o afastamento do gravado em
primeiro lugar com o encargo. Se a execuo do encargo estiver ligada
a um interesse pblico, tambm pode exigir essa execuo a autori-
dade competente. Adotam a mesma soluo o Cdigo Civil italiano, art.
9PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, t.
LVI, 5.708, p. 275.
10
MAXIMILIANO, Carlos. Direito das sucesses. 5. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,1964, v. II,
n. 843, p. 274.
11
NONATO, Orosimbo. Estudos sobre sucesso testamentria. Rio de Janeiro: Forense, 1957, v.
II, n. 597, p. 287.
12
RODRIGUES, Silvio. Direito civil. 26. ed. atualizada por Zeno Veloso. So Paulo: Saraiva, 2007,
v. 7, n. 113, p. 215.
13
GOMES, Orlando. 16. ed. Sucesses. Rio de Janeiro: Forense, 2015, n.124, p.146.
14
PEREIRA, Caio Mrio da Silva. Instituies de direito civil. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, v.
VI, n. 465, 1991, p. 176.
15
TARTUCE, Flvio; SIMO, Jos Fernando. Direito civil. 6. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro:
Forense; So Paulo: Mtodo, 2013. v. 6 Direito das Sucesses (Prefcio Zeno Veloso), p. 354.
648, al. 1, e o Cdigo Civil portugus, art. 2.247, que diz: No caso de o
herdeiro ou legatrio no satisfazer os encargos, a qualquer interes-
sado lcito exigir o seu cumprimento.16
No obstante, se no for possvel alcanar a execuo, e ocorrer
o inadimplemento do encargo, admitem a revogao ou resoluo da
respectiva disposio testamentria o Cdigo Civil francs, art. 1.046,
o alemo, art. 2.196, o italiano, art. 648, II. O Cdigo Civil portugus,
art. 2.248, 1, enuncia:
Art. 2.248, 1. Qualquer interessado pode tambm pedir a resoluo
da disposio testamentria pelo no cumprimento do encargo, se
o testador assim houver determinado, ou se for lcito concluir do
testamento que a disposio no teria sido mantida sem o cumpri-
mento do encargo.17
No vlido o encargo que for aposto s legtimas dos herdeiros

necessrios, que so intangveis (arts. 1.846 e 1.857, 1).
Em seguida, nosso Cdigo prev: Art. 1.898. A designao do
tempo em que deva comear ou cessar o direito do herdeiro, salvo nas
disposies fideicomissrias, ter-se- por no escrita.
Termo o prazo, o espao de tempo a que se subordina a efic-
cia do negcio jurdico. O termo pode ser inicial ou suspensivo e final
ou resolutivo, aplicando-se, respectivamente, no que couber, as dispo-
sies relativas s condies suspensivas e resolutivas (arts. 131 e 135).
A no ser que se trate de substituio fideicomissria (arts. 1.951
e ss.), a nomeao de herdeiro no pode estar vinculada a termo. No
se pode nomear herdeiro ex die, isto , a partir de certo tempo, nem
ad diem, ou seja, at certo tempo. J entre os romanos, o herdeiro no
podia ser nomeado ex certo tempore ou ad certum tempus, vigorando o
brocardo semel heres semper heres. O Direito alemo, todavia, admite
que a instituio de herdeiro fique sujeita a termo (BGB, art. 2.104).
Entre ns, o egrgio Clvis Bevilqua critica a disposio do art. 1.665
do Cdigo Civil de 1916, que corresponde ao art. 1.898 do novo Cdigo
Civil, apontando:
Para sermos lgicos, deveramos considerar tambm

como no escrita a condio resolutiva, que torna fun-
o temporria a instituio do herdeiro, que interrompe a
Cf. Cdigo Civil de Macau, art. 2.077.

16
Cf.. Cdigo Civil de Macau, art. 2.078, 1.

17
representao do herdeiro na qualidade de continuador da
pessoa do de cujus.18
Se, apesar da proibio, o testador designa o tempo em que

deve comear ou cessar o direito do herdeiro, a clusula tem-se por
no escrita. A instituio no fica prejudicada, e o direito do herdeiro
adquirido desde a data da abertura da sucesso. Cai o termo que era
inadmissvel , tem-se a designao temporal como no escrita; mas a
instituio fica, e ser cumprida.
admitida, porm, a aposio de termo ou prazo nos legados. Se
o testador nomeou legatrio, fixando termo inicial, o direito respectivo
j se considera adquirido, e, se o legatrio falece antes do decurso do
prazo, transmite o seu direito a seus sucessores, que tm, no entanto,
de aguardar o termo para pedir a posse do legado. Como se v, dife-
rente a soluo, comparando com o caso de condio suspensiva.19
Leiamos o art. 1.899: Quando a clusula testamentria for sus-
cetvel de interpretaes diferentes, prevalecer a que melhor asse-
gure a observncia da vontade do testador.
Qualquer ato destinado produo de efeitos jurdicos precisa
ser interpretado. Interpretar fixar o alcance, determinar o sentido de
uma proposio. Seja legislativo, seja negocial (bilateral ou unilateral),
o ato carece de interpretao, para ser compreendido e aplicado.
Antes de cumprir e executar, necessrio interpretar, na medida
em que interpretar conhecer, descobrir o contedo, desvendar o
esprito, estabelecer a ideia, fixar o objetivo, revelar a inteno.
s vezes, a expresso verbal, o enunciado gramatical, o contedo
literal se apresenta singelo, escorreito, inconfundvel, havendo perfeita
sintonia, imediata consonncia, integral harmonia entre o pensamento
e a palavra, entre a enunciao e o contedo, entre o posto e o disposto,
entre a vontade e a declarao.
Alerte-se, desde j, com a melhor doutrina, que os procedimentos
de interpretao (gramatical lgico) no representam compartimen-
tos estanques, no so antagnicos, e, na verdade, complementam-se,
reciprocamente, aparecendo como fases integrativas, mtodos de um
processo interpretativo, que unitrio. No obstante, foroso reco-
nhecer que a utilizao do mtodo gramatical tem uma importncia
muito maior na interpretao do testamento do que na interpretao
da lei ou do contrato.
18
BEVILQUA, Clvis. Cdigo Civil comentado. 3. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1954, v.
VI, p.135.
19
Cf. art. 2.243, 1, do Cdigo Civil portugus.
No se julgue que a clareza do texto nulifica a atividade interpre-
tativa. Nem se imagine possa prosperar a velha sentena in claris ces-
sat interpretatio = nas coisas claras no se admite interpretao. At
porque o conceito de clareza ou de obscuridade no absoluto, mas
relativo: o que retilneo e translcido para um, pode ser confuso e
dbio para outro.
Tem-se, sempre, de interpretar. Para aplicar, interpretar indis-
pensvel. Concluir que o texto claro, alis, j representa uma ao
interpretativa. O que proclama que o cu azul tem, na mente, a per-
cepo do vermelho, do branco, do negro, e fez, previamente, a com-
parao, ainda que essa avaliao, no caso, seja rpida, espontnea,
automtica.
O escorreito ou o ambguo da expresso verbal depende da an-
lise prvia de quem a recebe; de quem tem de interpret-la, para bem
compreend-la, entend-la sem rebuos, e aplic-la, com certeza e
segurana. O in claris cessat interpretatio inacolhvel, representando
tal adgio, inclusive, uma contradio. Como excluir a interpretao, se
o texto claro, quando, para saber que claro, j se teve de interpret-
-lo? Desenvolvi o tema interpretao da lei e dos negcios jurdicos no
livro Comentrios Lei de Introduo ao Cdigo Civil - arts. 1 ao 6. 20
A lei, o contrato e o testamento tm notveis semelhanas.
Como afirmou Teixeira de Freitas nosso genial e imortal Juris-
consulto do Imprio, conforme o chamou Slvio Meira os testadores
so legisladores, o que, de resto, j proclamava a Lei das XII Tbuas,
ancianssima, do sculo V antes do nascimento de Nosso Senhor Jesus
Cristo: dicat testator et erit lex = diga o testador, e o que disser lei.
A disposio testamentria uma regra equiparvel norma
jurdica; o negcio jurdico produz, tambm, normas de direito, sem
que, com isso, estejamos afirmando que a norma individual, que
decorre do contrato, ou fixada em um testamento, seja da mesma
natureza, extenso, grau e amplitude da norma geral e abstrata, edi-
tada pelo Estado.
Certo que a lei, o contrato e o testamento concretizam mani-
festao de vontade (do povo por meio de seus representantes das
partes e do disponente, conforme o caso), que necessita de interpreta-
o para ser cumprida e executada.
Aplicam-se, ento, aos testamentos as regras de interpretao
das leis e dos contratos?
VELOSO, Zeno. Comentrios Lei de Introduo ao Cdigo Civil arts. 1 ao 6.2. ed.
20
Belm: Editora Unama, 2006, n. 34, p. 52.
A resposta afirmativa, com as ressalvas e ponderaes que
farei, adiante. Pela aproximao entre as figuras, a analogia possvel.
Em princpio, as regras interpretativas da lei so extensveis aos con-
tratos e aos testamentos, espcies que so de negcios jurdicos, bila-
terais os primeiros, unilaterais os segundos.
A lei, nos sistemas de direito escrito, a principal fonte do
Direito, ou, como querem outros, a forma mais importante de revela-
o do Direito. Em sentido estrito, lei norma jurdica, permanente
e de ordem geral, emanada do poder estatal. Na interpretao da lei,
busca-se revelar no a mens legislatoris, mas a mens legis, vale dizer,
no a vontade do legislador, mas a prpria vontade da lei, a vontade
imanente da norma legal, que tem existncia independente e vive por
si mesma. No testamento, procura-se definir a vontade do testador,
investigando-se o alcance e significado de uma ordem privada e indi-
vidual. J se v que a extenso e o contedo do processo variam consi-
deravelmente. Inclusive quanto aos possveis autores da interpretao:
a legal pode ser feita pelo prprio legislador (interpretao autntica),
pela doutrina e pelo Poder Judicirio. A interpretao do testamento
penso exclusiva do juiz.
Quanto ao contrato e ao testamento, ambos contm declarao
de vontade, que precisa ser interpretada, para que se alcance seu ver-
dadeiro sentido, o real querer dos declarantes. Contudo, o contrato
consentimento, acordo mtuo, gerando uma vontade contratual, que
a interao ou a integrao dos propsitos das partes. No contrato, as
vontades so receptcias, os conflitos de interesses so compostos, o
acordo vai circular no comrcio jurdico, projetando-se a sua eficcia
perante terceiros, levando-se em conta, precipuamente, a boa-f dos
convenentes. No testamento, a vontade unilateral, personalssima,
no receptcia, s produzindo efeitos aps a morte do testador.
Observadas essas peculiaridades, pode-se dizer, tambm, que as
regras de interpretao dos contratos se aplicam aos testamentos. Na
Alemanha, a lio de muitos autores, no sentido de que a interpre-
tao das disposies de ltima vontade est submetida aos preceitos
gerais sobre a interpretao dos negcios jurdicos, aplicando-se o art.
133 do BGB: Bei der Auslegung einer Willenserklrung ist der wirkliche
Wille zu erforschen und nicht an dem buchstblichen Sinne des Aus-
drucks zu haften = Na interpretao de uma declarao de vontade,
deve-se investigar a vontade real, e no ficar preso ao sentido literal
da expresso. No testamento, porm, no se pode cogitar de conflito
de interesses, no h partes, sua eficcia diferida para o tempo em
que o declarante no vive mais, e o que se tem de investigar, funda-
mentalmente, o real querer do de cujus.
Com as limitaes que tais diferenas ensejam, as necessrias
adaptaes e naturais restries, que admito que as regras de inter-
pretao dos contratos sejam aplicveis aos testamentos, alertando,
ainda, que o testamento submetido a um formalismo rigoroso, sendo
de sua natureza e essncia a solenidade, o que repercute na sua inter-
pretao, cingindo-se a atividade do intrprete, pela via ordinria, ao
instrumento, ao teor do documento, balizando-se no prprio texto dei-
xado pelo testador a pesquisa de sua vontade, de sua verdadeira inten-
o, o que se exprime pelo brocardo Quod non est in testamento, non
est in mundo, o que aceito com ressalvas, pois admito, excepcional-
mente, que se verifique o alcance, o sentido de uma disposio mortis
causa com o auxlio de elementos extratestamentrios.
O intrprete do testamento deve estar atento para isso: conside-
rar o tempo e o lugar em que o testamento foi outorgado; o nvel cul-
tural do testador; o estado em que se encontrava; o ambiente em que
vivia; as circunstncias que o envolviam; as tipicidades do vocabulrio
etc.
Alerte-se, ainda, que na interpretao dos negcios inter vivos,
as partes em regra esto vivas e presentes. Prestam depoimento,
argumentam, explicam. So chamadas e podem esclarecer seu pensa-
mento, seus objetivos. Praticaram atos decorrentes dos contratos que
celebraram, e sua atitude pode ser elemento de prova e de convico.
Pode, tambm, o contrato ser alterado, retificado, ratificado, produzin-
do-se um novo instrumento, expurgado das dvidas do anterior, redi-
gindo-se novas clusulas, disposies mais claras e seguras. Nada disso
se pode fazer quando se interpreta o testamento, porque, quando se o
analisa, o disponente j no pode ser chamado, j no pode depor, j
no pode defender a sua vontade, explicar-se, aclarar seu pensamento.
Pelo menos, nos gabinetes dos juzes, no ambiente forense, nas audin-
cias, os mortos no aparecem nem falam. Ento, quando o testamento
recobre-se de eficcia, quando vai ser executado e cumprido, e surgem
dvidas ou questes sobre as suas disposies, o seu autor no est
presente. Deixou ali, naquele papel, solenizada, a sua derradeira von-
tade, perenizando-a, na expectativa de que seja fielmente cumprida.
No se trata, claro, de obedecer vontade de um defunto, mas de
observar a vontade de um homem que morreu, e que no pode depor
sobre o real significado de suas determinaes, o sentido de suas dis-
posies, sua vera vontade, sua real inteno.
Avulta, ento, a responsabilidade do juiz que, com inteligncia,
pacincia e acuidade, numa operao retrospectiva, investigatria,
tomando por base, principalmente, os termos do testamento, ter de
desobscurecer as expresses, aclarar as ideias, dar sentido s deter-
minaes, expungir o escrito de dvidas, libertando a vontade que,
eventualmente, est cativa nas palavras, descobrindo o contedo que o
continente grfico, muita vez, aprisiona ou amesquinha.
Este art. 1.899 contm uma regra direta sobre a interpretao
dos testamentos, e copia o art. 1.666 do Cdigo Civil de 1916.
O princpio cabedal, a noo capital, o critrio rigorosssimo,
nesse tema, o de que a interpretao do testamento representa uma
atividade subjetiva submetida pesquisa da real vontade do testador,
busca do efetivo querer do disponente, com base, claro, no texto que
ele deixou para a posteridade.
O testamento tem de ser interpretado sempre a posio que
assumo. Quando se conclui que suas disposies so escorreitas, as
determinaes manifestas, as designaes claras, as verbas evidentes,
j se fez interpretao, j se deduziu que a declarao corresponde
vontade, j se est seguro de que a expresso literal foi fiel ideia e ao
esprito.
Pelo que diz o art. 1.899, entretanto a consider-lo na sua litera-
lidade , teramos de concluir que a interpretao s cabvel havendo
dvida, ocorrendo ambiguidade, abrindo-se ao intrprete caminhos ou
solues diferentes. A, sim, ele interpretar o testamento ou a verba
testamentria equvoca, vacilante , fazendo com que prevalea o sen-
tido que melhor assegure a observncia da vontade do testador.
O art. 1.899, porm, at por ser uma regra de interpretao, pre-
cisa, por sua vez, ser interpretado. No o recebamos na sua expresso
literal, somente. Busquemos o seu esprito, revelemos a ratio contida
nas suas palavras, fixemos a sua extenso e verdadeiro sentido. Inclu-
sive, trazendo para a anlise e isso exigncia do sistema o dis-
posto no art. 112, que se aplica aos negcios jurdicos em geral: Nas
declaraes de vontade se atender mais inteno nelas consubstan-
ciada do que ao sentido literal da linguagem. Fixe-se bem isso: o art.
1.899 mera especializao, simples particularizao do disposto no
art. 112. Um desenvolvimento dele, para os atos mortis causa.
Assim, dando-se a devida interpretao ao art. 1.899, utilizando-
-se os elementos filolgico, lgico, sistemtico e teleolgico, entendo
que o referido preceito ordena que o testamento deve ser interpre-
tado com rigorosa observncia da vontade do testador, alcanando-se
a real inteno do disponente, com vistas a dar os efeitos queridos pelo
declarante.
A meu ver, dos Cdigos estrangeiros, o que melhor se expressou
sobre o tema foi o lusitano, cujo art. 2.187, 1, edita: Na interpretao
das disposies testamentrias observar-se- o que parecer mais ajus-
tado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento.
Corretamente, a lei portuguesa se refere interpretao das disposi-
es testamentrias, no limitando o trabalho do intrprete ao caso de
serem dbias ou equvocas as clusulas, e mandando que ele observe
o que lhe parea mais ajustado com a vontade do testador, alertando
que essa pesquisa deve incidir no contexto do testamento. Consagra o
Cdigo Civil portugus, portanto, a tese da interpretao subjetivista
dos testamentos, limitada, porm, ao contexto do testamento, dado o
carter formal e solene desse negcio jurdico.
importante registrar que, na interpretao do testamento, na
fixao da real vontade do testador, deve o intrprete circunscrever
sua atividade ao texto, ao contexto do instrumento testamentrio,
ao contedo do documento. Em suma: o verdadeiro querer, a real
vontade que se deve perquirir e revelar, no aquela que o intrprete
conclui que poderia ter sido a do testador, mas a vontade que deve ter
sido, conforme a declarao constante no prprio testamento, e foi
para isso mesmo, presume-se, que o testador outorgou, em vida, um
instrumento formal e solene com as suas disposies morturias. No
testamento, em regra, tem de achar-se toda a vontade do testador.
H limites, todavia, para a atividade interpretativa. Se a disposi-
o do testador manifestada de modo que existe sinonmia, paridade,
igualdade entre declarao e vontade; se a inteno perceptvel, ou
fcil; se o significado da verba escorreito e unvoco, no pode o intr-
prete ir alm, imaginando outros efeitos, dando outras consequncias,
impondo outro contedo clara e induvidosa declarao do testador.
Em sendo equvoca a disposio, ambgua a declarao, podendo dar-
-se mais de um sentido clusula testamentria, a ao do intrprete
menos restrita, devendo ele pesquisar a real vontade do testador,
para dar um efeito clusula, cuidando que esse efeito corresponda,
com toda fidelidade, ao querer do defunto, deduzido do testamento.
Embora, em ambos os casos, tenha havido interpretao, sem dvida,
no primeiro, a atuao do intrprete mais fcil, mais simples, e, no
segundo, bem mais complexa e penosa.
Estabelea-se, inflexivelmente, que cabe ao intrprete ana-
lisar, investigar, pesquisar, mas com o intuito e o objetivo de desco-
brir e revelar a real vontade, a vera inteno do testador. Sob pretexto
de apurar qual essa inteno, no tem direito o intrprete de criar,
inventar, estabelecer o que ele acha coerente, racionvel e justo,
impondo, afinal, a sua vontade, substituindo-a pela do defunto, traindo
a memria do de cujus e o que este deixou perenizado no seu testa-
mento. Enfim, no pode o intrprete, interpretando, travestir-se de
testador do testamento alheio. O que ele tem de buscar a vontade, o
desejo, a inteno do falecido, e no a dele. A lealdade e a imparciali-
dade so requisitos essenciais a que o intrprete deve submisso.
H uma lio de Pontes de Miranda21 que bem se aplica a tudo o
que foi dito acima. O jurisconsulto alagoano, brasileiro do mundo, con-
terrneo de nosso mestre, aqui presente, Paulo Lbo, menciona que,
certa vez, Andreas Von Tuhr definiu testador como a pessoa que os
juristas ordinariamente contrariam. E no s o jurista, acrescenta
Pontes de Miranda, mas as gentes do foro, os prticos, os interessados,
todo o mundo.
Ao interpretar, procura-se a real vontade do testador, busca-
-se o verdadeiro querer do de cujus. No uma vontade qualquer, mas a
vontade que est manifestada no instrumento; nem algum querer, mas
o que o falecido deixou consignado no ato testamentrio. E isso em
razo de a ltima vontade s ser valedia, s produzir efeito, se expres-
sada no ato formal e solene, que o testamento.
Diante do testamento, entretanto, e na pesquisa do verdadeiro
significado das disposies, no exame do que seja a real inteno do
disponente, deve o intrprete levar em conta a pessoa do testador, sua
idade, carter, estado de sade, nvel cultural e intelectual, modo como
se expressava, o ambiente em que vivia, suas relaes familiares e afe-
tivas; enfim, tem o intrprete se bom intrprete de se colocar no
lugar do testador, levando em conta as circunstncias que o envolviam,
quanto testou. A apurao da vontade, com tais providncias, ser mais
segura, fidedigna. Mais humana, com certeza.
Nessa matria, sempre foi objeto de muita discusso permitir, ou
no, que o intrprete v buscar indcios externos, apanhar elementos
estranhos, aproveitar, em suma, a prova extrnseca, para efeito de che-
gar verdade e alcanar o pensamento do testador, o perfeito sentido,
o real significado de suas disposies.
Em princpio, como regra geral, o intrprete no pode recorrer a
elementos extratestamentrios. O labor do intrprete comea e acaba
no testamento, embora possa e deva ele ter presente aquelas circuns-
tncias a que acima aludi. A vontade que se apura, a inteno que se
investiga, a disposio que se quer esclarecer e revelar a que est no
documento, a que foi manifestada pelo testador, embora, s vezes, com
erronias, falhas, dubiedades, obscuridades. Os equvocos devem ser
superados, as dvidas, suplantadas, as ambiguidades, resolvidas com a
prova que se conseguir no prprio instrumento, diante dos termos do
testamento mesmo, com seus elementos e dados intrnsecos, at por-
que a ltima vontade s por essa forma solene pode ser exteriorizada.
S vale, como tal, o que consta naquele escrito.
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, t.
21
LVI, 5.725, p. 334.
Nosso Cdigo Civil no tem qualquer disposio direta, nesse
sentido, ou seja, no estatui uma regra geral sobre a admissibilidade da
prova extrnseca, na interpretao dos testamentos. No obstante, o
art. 1.903 declara:
Art. 1.903. O erro na designao da pessoa do herdeiro, do legat-

rio, ou da coisa legada anula a disposio, salvo se, pelo contexto
do testamento, por outros documentos, ou por fatos inequvo-
cos, se puder identificar a pessoa ou coisa, a que o testador queria
referir-se.
V-se, pois, que no se anula a disposio, apesar do erro na

designao, se a identificao da pessoa ou da coisa puder ser alcan-
ada pelo contexto do testamento (elemento intrnseco), por outros
documentos, ou por fatos inequvocos, representando estes dois lti-
mos, sem dvida, casos de prova extrnseca. Embora o art. 1.903 men-
cione uma hiptese particular de erro na designao da pessoa do
herdeiro, do legatrio, ou da coisa legada , a admissibilidade que ele
confere prova extratestamentria pode ser generalizada a todos os
casos de interpretao dos testamentos, com as restries e ressalvas
que fiz acima, e, claro, com muita cautela.
A admisso, para efeito interpretativo e com muita cautela ,
desses elementos externos, como acima explicado, no leva a que se
aceite ou reconhea o testamento per relationem, em que o testador
menciona que a sua ltima vontade foi confiada a outrem, ou est con-
tida em outros papis e documentos.
O Cdigo Civil adotou uma s regra de interpretao dos testa-
mentos, a deste art. 1.899, e tem o legislador de ser elogiado por isso.
Realmente, no so as leis lugar apropriado para acolher preceitos de
hermenutica. Expor regras de interpretao, observadas as circuns-
tncias sociais, tarefa eminentemente cientfica, cabendo, portanto,
doutrina. Parcimoniosos foram os Cdigos mais importantes do
mundo, na enunciao de regras interpretativas, e o brasileiro insere-
-se nesse grupo. Referindo-se, direta e explicitamente, questo da
interpretao, temos os arts. 112, 113, 114, 423 e 1.899.
verdade que o art. 1.899 a nica regra geral de interpretao
dos testamentos. Contudo, dedicou o nosso Cdigo alguns arti-
gos visando solucionar casos especiais, situaes particulares, que
so, tambm, normas de interpretao, embora de carter subsidi-
rio, supletivo, funcionando como a vontade presumida do testador, e
valendo na medida em que o prprio disponente no tenha regulado a
situao, de outro modo.
Vou indicar algumas dessas normas interpretativas, do Cdigo
Civil, aplicveis aos casos determinados a que esto direcionadas:
os arts. 1.902; 1.904; 1.905; 1.906; 1.907; 1.920; 1.921; 1.922; 1.932; 1.934;
1.966. Para encerrar, sem que se considerem esgotados os casos, o art.
1.947, que admite possa o testador substituir outra pessoa ao herdeiro,
ou legatrio, nomeado, para o caso de um ou outro no querer ou no
poder aceitar a herana, ou o legado, presumindo que a substituio foi
determinada para as duas alternativas, ainda que o testador s a uma
se refira.
Por sua vez, diz o art. 1.900:
Art. 1.900. nula a disposio:

I que institua herdeiro ou legatrio sob a condio captatria de
que este disponha, tambm por testamento, em benefcio do testa-
dor, ou de terceiro;
II que se refira a pessoa incerta, cuja identidade no se possa
averiguar;
III que favorea a pessoa incerta, cometendo a determinao de
sua identidade a terceiro;
IV que deixe a arbtrio do herdeiro, ou de outrem, fixar o valor do
legado;
V que favorea as pessoas a que se referem os arts. 1.801 e 1.802.
Os casos enumerados nos cinco incisos deste artigo so de nuli-

dade da disposio testamentria. A invalidade, aqui, de grau mximo.
Tratando-se de disposio nula e no apenas anulvel , deve ser
pronunciada pelo juiz ex officio , quando conhecer do testamento
que a contm e a encontrar provada (art. 168, pargrafo nico).
Observe-se que a lei determina a nulidade da disposio tes-
tamentria, dela s, e no de todo o testamento, ocorrendo caso de
reduo legal. Contudo, h o art. 1.910 se a disposio testamentria
nula, por incidir nas hipteses do art. 1.900, a ineficcia da disposio
importa a das outras que, sem aquela, no teriam sido determinadas
pelo testador.
No inciso I, o art. 1.900 fulmina de nulidade a disposio que
institua herdeiro ou legatrio sob a condio captatria de que este
disponha, tambm, por testamento, em benefcio do testador ou de
terceiro. Na prtica, uma pessoa testa em favor de outra, sob a condi-
o de esta, por sua vez, outorgar testamento em benefcio do testador
ou de terceiro.
A condio captatria j era reprovada no direito romano.22 Atu-
almente, vrios Cdigos Civis repelem tal condio, editando normas
equivalentes ao nosso art. 1.900, I: Cdigos Civis espanhol, art. 794; ita-
liano, art. 635; chileno, art. 1.059; mexicano, art. 1.349; portugus, art.
2.231; macauense, art. 2.061.
Para que se tenha como captatria a condio, necessrio que
o arranjo tenha sido doloso. Mediante artifcios e manobras fraudu-
lentas consegue-se seduzir, captar a vontade de outrem, com o fito de
obter contrapartida do benefcio testamentrio.
A captao proibida a que decorreu de expedientes reprovveis,
de meios ilcitos. O agente consegue exercer influncia na vontade de
algum, combinando institu-lo herdeiro ou legatrio, na condio de
que ele disponha, tambm por testamento, em benefcio do testador,
ou de terceiro.
No toda disposio testamentria recproca que recebe essa
repulsa do legislador, no toda captao que o direito reprova. O
amor, a simpatia, a amizade, podem inspirar disposies testament-
rias de uma pessoa em favor de outra, e vice-versa. Como alerta Pontes
de Miranda, a reciprocidade das disposies fato que ordinariamente
acontece, pela qualidade do carter recproco das afeies. Por isso
mesmo, no se h de presumir a reciprocidade intencional.
Num clebre parecer, Francisco Campos, citado por Veloso,
explica:
O que o direito condena no a captao; o que torna a captao

sujeita censura do direito e, assim, exposta incidncia da san-
o de nulidade, o dolo. A captao em si mesma, ou a captao
simples, ou a captao que se exerce sem recurso a manobras ou
artifcios fraudulentos, ou pela influncia direta dos dons pessoais,
de natureza fsica, intelectual ou moral, um fenmeno geral, ordi-
nrio e comum, e se exerce diariamente entre os homens, nos mais
variados domnios das relaes humanas, s incorrendo na censura
da lei quando aquela influncia, s por si, no se tornou suficiente,
tornando-se necessrio, para refor-la, o recurso fraude, ao dolo
ou prtica de atos ilcitos.23
A captao nulifica a disposio quando a reciprocidade de

benefcios a causa de morte foi resultado de arranjo malicioso. pre-
ciso que exista o animus captandi, a blandcia, a velhacaria, a inteno
de obter a anuncia da vtima para angariar vantagens, para si, ou para
Digesto, 28, 5, fr. 29 e 71, 1.
22
CAMPOS, Francisco apud VELOSO, Zeno. In: AZEVEDO, Antnio Junqueira de (Coord.).
23
Comentrios ao Cdigo Civil: parte especial. So Paulo: Saraiva, 2003, v. 21, p. 222.
outrem. Nesse caso, sem dvida, ao dispor por testamento em bene-
fcio do outro testador, ou de terceiro, o que foi induzido, envolvido,
enganado, teve cerceada e comprometida a sua vontade, violando-se o
princpio da autonomia e da liberdade de quem faz disposies mortis
causa.
Alm desse aspecto, o arranjo se assemelha ao pacto sucessrio,
que, igualmente, vedado pela lei (art. 426). Na disposio captatria
h uma dependncia entre as disposies. Contudo, no a reciproci-
dade intencional a marca principal que fere de morte a clusula. O que
a compromete e invalida, fundamentalmente, que a sua causa no a
gratido, o afeto, a deciso espontnea de gratificar, porm o fato de a
vontade do disponente ter sido obtida pela captao.
No disposio captatria vedada pelo art. 1.900, I, por exem-
plo, a determinao seguinte: Celso testou em meu favor e eu quero
que ele seja meu herdeiro. O testamento posterior ao de Celso, no
h o vnculo proibido entre as disposies. at natural que ocorra
essa reciprocidade pelo sentimento de gratido. Como diz o vulgo,
uma mo lava a outra.
O inciso II diz que nula a disposio que se refira a pes-
soa incerta, cuja identidade no se possa averiguar.24 A incerteza, no
caso, absoluta, insupervel, no h maneira de que a pessoa se torne
certa. A incerteza relativa da pessoa beneficiada no proibida, como
na hiptese de o testador fazer um legado para quem tirar o primeiro
lugar no concurso para juiz que ocorrer aps o seu falecimento. Porm,
se a determinao da pessoa beneficiada, apesar de todos os esforos
interpretativos, impossvel, se no h meio de superar a ambiguidade
ou o laconismo em que o testador incorreu, a disposio invlida.
No caso, por exemplo, de o testador nomear herdeira sua prima
Slvia, verificando-se, com a abertura da sucesso, que o de cujus tinha
duas primas com esse mesmo nome, no sendo possvel determinar,
com segurana e certeza, a qual delas ele queria se referir, a disposio
testamentria nula, sendo chamados os herdeiros legtimos.
nula, tambm (inciso III), a disposio que favorea pessoa
incerta, cometendo a determinao de sua identidade a terceiro.25
Seria o mesmo que delegar a faculdade de testar, ferindo o princpio de
que o testamento ato personalssimo. A manifestao de vontade do
testador, em aspecto substancial, dependeria do arbtrio de terceiro.
Ver, todavia, o art. 1.901, I, de que falarei, adiante.
24
Cf. art. 750 do Cdigo Civil espanhol; art. 628 do Cdigo Civil italiano; art. 2.185 do Cdigo
Civil portugus.
25
BGB, art. 2.065; Cdigo Civil argentino, arts. 3.619 e 3.711.
Por motivos idnticos, no pode o testador deixar ao arbtrio do
herdeiro, ou de outrem, fixar o valor do legado (inciso IV). No obs-
tante, ver o art. 1.901, II. O dispositivo s se refere ao valor do legado,
mas a herana deve estar includa no preceito, pois isso decorre do
princpio de que ningum pode, pelo testador, fixar o valor ou a exten-
so da quota do herdeiro institudo. Nula, por exemplo, a disposio:
Andra ser minha herdeira, ficando com a frao que minha irm
fixar.
O inciso V desnecessrio; afirma que so nulas as disposies
em favor das pessoas mencionadas no art. 1.801 (no legitimadas a
suceder), o que o art. 1.802 j resolveu.
O art. 1.901 prev:
Art. 1.901. Valer a disposio:

I em favor de pessoa incerta que deva ser determinada por ter-
ceiro, dentre duas ou mais pessoas mencionadas pelo testador, ou
pertencentes a uma famlia, ou a um corpo coletivo, ou a um esta-
belecimento por ele designado;
II em remunerao de servios prestados ao testador, por ocasio
da molstia de que faleceu, ainda que fique ao arbtrio do herdeiro
ou de outrem determinar o valor do legado.
Moderando ou atenuando o estatudo no art. 1.900, III, o inciso

I deste artigo diz que vale a disposio se a incerteza com relao
pessoa beneficiada pelo testador for relativa (supervel, vencvel), e no
absoluta. O prprio testador indica, menciona duas ou mais pessoas,
ou pertencentes a uma famlia, ou a um corpo coletivo, ou a um esta-
belecimento por ele designado.
Por fora do art. 1.900, III, nula a disposio seguinte: deixo a
casa da rua 7 de Setembro pessoa que mame indicar; mas, diante
do art. 1.901, I, vlida a clusula que estabelece: deixo a casa da rua 7
de Setembro para uma de minhas irms, que ser escolhida por minha
me.
O terceiro, que, obviamente, pessoa de confiana do testador,
vai fazer a determinao do favorecido num grupo restrito, limitado,
dentre pessoas mencionadas, j indicadas pelo testador. O terceiro,
afinal, faz a opo, mas quem escolheu as pessoas foi o de cujus.
E se o terceiro, que deveria determinar a pessoa, morre logo
depois do testador, sem ter podido cumprir a delegao? E se o ter-
ceiro se recusa, simplesmente, a fazer a escolha? E se foi acometido de
doena mental, e tornou-se incapaz?
Nem o Cdigo Civil anterior nem este Cdigo do a soluo para
o problema.
O Cdigo Civil alemo, art. 2.151, al. 3, prevendo o caso, decide
que, se o terceiro no levar a cabo a indicao, os designados so cre-
dores solidrios.26
Por falta de norma expressa, entre ns, no razovel propor
que, diante do impasse, a disposio testamentria perde a eficcia,
soluo que se apresenta com extremo radicalismo e desconsidera,
completamente, a vontade do testador.
Penso que se pode invocar o art. 1.930, que regula o legado de
coisa determinada pelo gnero, quando a escolha for deixada ao arb-
trio de terceiro, e este no aceitar tal encargo ou no puder exerc-
-lo, decidindo-se que a escolha ser feita pelo juiz. Se no for a melhor
soluo, para o caso enunciado no art. 1.901, I, dado que as situaes
ao mesmo tempo se assemelham e se distinguem, pelo menos a sada
que pode resolver a questo, na falta de normatividade expressa. O que
se no pode admitir que, pela impossibilidade de o terceiro escolher,
fique no vazio a disposio testamentria. A vontade manifestada pelo
que morreu precisa ser cumprida, tem de ser cumprida, a todo poder
que se possa.
Da mesma forma, no inciso II, o herdeiro ou outra pessoa, que
vai determinar o valor do legado, ter atuao balizada, limitada, pois
o prprio testador decidiu remunerar os servios (de mdicos, enfer-
meiros etc.) que lhe foram prestados por ocasio da molstia de que
faleceu. A quantia ser estabelecida considerando a remunerao que
paga normalmente, usualmente, para os respectivos servios, e as cir-
cunstncias do caso. Note-se que no se trata de pagamento dos ser-
vios, no sentido estrito, mas de ato de liberalidade, reconhecimento,
gratido, e esse elemento de generosidade deve, tambm, influir na
fixao do valor do legado.
Analisemos o art. 1.902, que enuncia:
Art. 1.902. A disposio geral em favor dos pobres, dos estabele-

cimentos particulares de caridade, ou dos de assistncia pblica,
entender-se- relativa aos pobres do lugar do domiclio do testador
ao tempo de sua morte, ou dos estabelecimentos a sitos, salvo se
manifestamente constar que tinha em mente beneficiar os de outra
localidade.
Pargrafo nico. Nos casos deste artigo, as instituies particulares
preferiro sempre s pblicas.
Cf. art. 2.182, al. 3, do Cdigo Civil portugus.

26
Trata este artigo da disposio ad pias causas.
Se o testador no especificar de onde so os pobres, ou onde
esto os estabelecimentos particulares, ou os de assistncia pblica,
que vigorar a presuno deste artigo, de que so os do lugar do
domiclio do testador, ao tempo de sua morte.27 O art. 1.902 s incide
quando o testador fez disposio geral, sem mencionar, diretamente, a
quem quis gratificar. Trata-se, pois, de regra jurdica interpretativa da
vontade do de cujus.
A norma correspondente, no Cdigo Civil portugus, art. 2.225,
melhor, tem um campo de aplicao mais largo, e diz: A disposio
em favor de uma generalidade de pessoas, sem qualquer outra indica-
o, considera-se feita a favor das existentes no lugar em que o testa-
dor tinha o seu domiclio data da morte. A regra portuguesa, ento,
aplica-se aos pobres, mas vale para outros grupos de pessoas, como a
deixa testamentria feita em favor dos ancios, das crianas abando-
nadas, dos cancerosos etc.
Na dvida quanto s instituies de caridade ou de assistncia
que sero beneficiadas, dar-se-, sempre, preferncia s particulares,
que, segundo o legislador, precisam de mais apoio e recursos do que as
entidades pblicas.
O art. 1.903 determina: O erro na designao da pessoa do her-
deiro, do legatrio, ou da coisa legada anula a disposio, salvo se, pelo
contexto do testamento, por outros documentos, ou por fatos inequ-
vocos, se puder identificar a pessoa ou coisa a que o testador queria
referir-se.
A determinao do sujeito e do objeto fundamental nas dispo-
sies testamentrias (art. 1.900, II, III e IV), com as excees do art.
1.901. O erro, tanto na designao da pessoa do herdeiro ou do legat-
rio (error in personam) como em relao coisa legada, anula a dispo-
sio. Esse um caso particular de anulabilidade, pois o erro essencial
ou substancial, alm desse caso, determina a anulabilidade do testa-
mento (art. 1.859) ou da disposio testamentria (art. 1.909).
Contudo, a disposio testamentria pode salvar-se se, apesar
do erro, pelo contexto do testamento, por outros documentos, ou por
fatos inequvocos, se puder fazer a retificao e identificar a pessoa ou
a coisa a que o testador queria referir-se (art. 142).
Se o erro supervel, vencvel, no h por que deixar de obe-
decer vontade do testador. Interpreta-se o testamento, utiliza-se,
Cf. BGB, art. 2.072; Cdigo Civil italiano, art. 630; Cdigo Civil portugus, art. 2.225; Cdigo
27
Civil espanhol, art. 749; Cdigo Civil argentino, art. 3.722; Cdigo Civil chileno, art. 1.056, als. 3
e 5.
inclusive, prova exterior ou complementar, e a disposio ser cumpri-
da.28 um caso, excepcional, em que se pode buscar a real vontade do
de cujus fora do contexto do testamento, buscando-se, com a devida
precauo, a prova aliunde = em outro lugar.
O art. 1.904, resolve: Se o testamento nomear dois ou mais her-
deiros, sem discriminar a parte de cada um, partilhar-se- por igual,
entre todos, a poro disponvel do testador.
O testador nomeia dois ou mais herdeiros, ordenando que eles
fiquem com a sua parte disponvel (art. 1.789), e essa parte disponvel
dever ser dividida, por igual, entre os institudos, salvo, claro, se o
testador discriminar a quota-parte de cada herdeiro, quando a diviso
obedecer ao que foi determinado pelo de cujus. A regra do art. 1.904
(presuno de igualdade) s incide quando o testador no estabeleceu
o que caberia a cada um deles, individualmente.
Se o testador no tem herdeiros necessrios, e nomear herdeiros
para toda a herana, a soluo a mesma.
Outra norma importante traz o art. 1.905: Se o testador nomear
certos herdeiros individualmente e outros coletivamente, a herana
ser dividida em tantas quotas quantos forem os indivduos e os gru-
pos designados.
Como tantas outras, deste Captulo, esta mais uma disposio
legal supletiva, e a soluo se apoia no direito romano.
A instituio mista: certos herdeiros so nomeados individual-
mente: Lygia, Odette; e outros so nomeados coletivamente: os filhos
de Elias. Para cumprir o disposto neste artigo, a herana, no exem-
plo dado, dividida em trs partes iguais: uma para Lygia, outra para
Odette, e a terceira parte para os filhos de Elias, herdando estes por
estirpe. Aos herdeiros nomeados coletivamente cabe uma parte igual
que recebe cada herdeiro designado individualmente.
Acompanha este artigo o Direito romano29 e se trata, porm
como disse , de regra supletiva: se o testador, embora fazendo a
designao individual e coletiva dos herdeiros, determina que todos
herdaro por igual (per capita), assim ser.
O Cdigo Civil espanhol, art. 769, d soluo diferente da
seguida neste artigo. O vigente Cdigo Civil portugus, adotando pre-
ceito do art. 1.797 do Cdigo Civil de 1867, como no direito espanhol,
enuncia, no art. 2.227, que se o testador designar certos sucessores
28
Cf. art. 773 do Cdigo Civil espanhol; art. 625 do Cdigo Civil italiano; art. 2.203 do Cdigo
Civil portugus; art. 1.057 do Cdigo Civil chileno.
29
Digesto, 25, 5, fr. 11 e 13.
individualmente e outros coletivamente, so estes havidos por indivi-
dualmente designados.
Por fora do nosso art. 1.905, se o testador diz que sua herana
caber Lygia, Odette, e aos filhos de Elias, falecendo o disponente, os
herdeiros so chamados simultaneamente e no sucessivamente. Se o
valor da herana for de trezentos mil, e tendo Elias dois filhos, cem mil
sero de Lygia, cem mil sero de Odette, e cem mil cabero aos filhos
de Elias por estirpe , ficando cada um deles com cinquenta mil. Em
Portugal, conforme o art. 2.227 do Cdigo Civil, a soluo diferente:
os trezentos mil seriam divididos em quatro partes iguais, entre Lygia,
Odette, e os dois filhos de Elias.
O art. 1.906 afirma: Se forem determinadas as quotas de cada
herdeiro, e no absorverem toda a herana, o remanescente perten-
cer aos herdeiros legtimos, segundo a ordem da vocao hereditria.
Se as quotas dos herdeiros nomeados pelo testador no absorve-
rem toda a herana, o que sobrar pertencer aos herdeiros legtimos,
obedecida a ordem da vocao hereditria (arts. 1.829 e ss.). Este pre-
ceito aplicao do que estatui o art. 1.788, e a sucesso ser testa-
mentria e legtima, como no caso do art. 1.966.
O art. 1.907 leciona: Se forem determinados os quinhes de uns
e no os de outros herdeiros, distribuir-se- por igual a estes ltimos o
que restar, depois de completas as pores hereditrias dos primeiros.
O testador, neste caso, disps de toda a herana, mas deter-
minou os quinhes de uns herdeiros e no designou os de outros. Os
primeiros recebero as suas quotas, que foram especificadas. Depois
de completas essas pores, o que sobrar ser repartido, igualmente,
entre os herdeiros cujos quinhes no foram determinados (art. 1.904).
Se nada sobrar, nada herdaro os que foram institudos sem designa-
o do quinho.
Vejamos, agora, o art. 1.908: Dispondo o testador que no
caiba ao herdeiro institudo certo e determinado objeto, dentre os da
herana, tocar ele aos herdeiros legtimos.
Este artigo prev a instituio excepta res certa, de origem
romana.
Se o testador nomeia o herdeiro, mas estabelece que, dentre os
da herana, certo e determinado objeto no deve caber a ele, o objeto
tocar aos herdeiros legtimos, soluo que segue a que foi dada no art.
1.906.
O art. 1.909 determina:
Art. 1.909. So anulveis as disposies testamentrias inquinadas

de erro, dolo ou coao.
Pargrafo nico. Extingue-se em quatro anos o direito de anular a
disposio, contados de quando o interessado tiver conhecimento
do vcio.
O testamento tem de obedecer aos requisitos dos negcios jur-

dicos, e pode ser vlido e invlido. A invalidade tem dois graus: nuli-
dade e anulabilidade. O testamento inteiro ou alguma de suas clusulas
pode ser nulo ou anulvel.
Este artigo especifica que as disposies testamentrias podem
ser anuladas por vcios de vontade: erro, dolo ou coao (arts. 138, 145
e 151).
A anulao da disposio testamentria, em consequncia desses
vcios, est sujeita a prazo de caducidade, de quatro anos, contados de
quando o interessado tiver conhecimento do vcio. A meu ver, o prazo
de decadncia devia ser contado da abertura da sucesso, o que daria
mais certeza e segurana jurdica.
O art. 1.910 prev: A ineficcia de uma disposio testamentria
importa a das outras que, sem aquela, no teriam sido determinadas
pelo testador.
Inspirado no brocardo utile per inutile non vitiatur, o art. 184,
primeira parte, prev que, respeitada a inteno das partes, a inva-
lidade parcial de um negcio jurdico no o prejudicar na parte
vlida, se esta for separvel. Esse princpio se aplica s invalidades
testamentrias.
O caso previsto no art. 1.910 precisamente o inverso: a invali-
dade, ou ineficcia (em sentido amplo) de uma disposio testamentria
importa a das outras, que, sem aquela, no teriam sido determinadas
pelo testador. uma regra que obedece aos ditames da lgica, e sua
aplicao vai depender da interpretao da vontade do testador. Basi-
camente, este artigo pressupe a interdependncia das disposies
testamentrias: se uma ineficaz, e cai, as outras caem tambm.
J vimos que as disposies testamentrias, embora contidas
no ato testamentrio, que se caracteriza pela unidade e completude,
gozam de autonomia, valendo cada uma delas por si, o que no impede
que, para efeito de interpretao e busca da real vontade do de cujus,
tenhamos de recorrer ao contexto testamentrio (e at, excepcional-
mente, a elementos extratestamentrios).
Em sede de testamento, o preceito que a ineficcia de uma dis-
posio no se irradia nem se estende outra ou s outras. A regra a
separabilidade, se for possvel a partio ou o isolamento. Ser o caso,
por exemplo, de o testamento conter vrias disposies e, numa delas,
o testador ter feito legado pessoa que, a rogo, escreveu o testamento,
sendo tal determinao nula, por fora do art. 1.801, I, combinado com
o art. 1.802. Em princpio, s esta disposio que fica prejudicada, no
a outra ou as outras que o testamento apresenta.
Contudo, a ineficcia (lato sensu, incluindo a invalidade e outras
causas) de uma disposio vai contagiar as demais, se ficar provado
que, sem a disposio ineficaz, no teriam as outras sido determinadas
pelo testador.
Por ltimo o art. 1.911:
Art. 1.911. A clusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de

liberalidade, implica impenhorabilidade e incomunicabilidade.
Pargrafo nico. No caso de desapropriao de bens clausulados,
ou de sua alienao, por convenincia econmica do donatrio ou
do herdeiro, mediante autorizao judicial, o produto da venda con-
verter-se- em outros bens, sobre os quais incidiro as restries
apostas aos primeiros.
O estabelecimento da clusula de inalienabilidade, quanto aos

bens que integram a legtima, deve observar o que dispe o art. 1.848.
Este Cdigo limitou bastante a aposio de clusulas restritivas, que
eram admitidas, francamente, pelo art. 1.723 do Cdigo Civil de 1916.
Agora, nos termos do art. 1.848, salvo se houver justa causa, declarada
no testamento, no pode o testador estabelecer clusula de inalienabi-
lidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da
legtima.
No que se refere quota disponvel, o art. 1.848 no incide,
ficando livre o testador para dispor de sua metade, impondo as clusu-
las restritivas que achar convenientes.
Estabelecida a inalienabilidade, este artigo, para qualquer dos
casos, resolve que a clusula de inalienabilidade importa impenhorabi-
lidade e incomunicabilidade, assunto que foi objeto de acesa contenda
na doutrina brasileira, e que a jurisprudncia assentou na forma regu-
lada neste artigo.30
O pargrafo nico, prevendo o caso de desapropriao de bens
clausulados, ou a alienao destes, por convenincia econmica do
V. Smula 49 do STF.
30
donatrio ou do herdeiro (o que s pode ocorrer mediante autorizao
judicial), estabelece que o produto da venda converter-se- em outros
bens, sobre os quais incidiro as restries apostas aos primeiros. H,
portanto, sub-rogao do gravame.
Era o que tinha a expor e agradeo a ateno que me dispensaram.
REFERNCIAS
AZEVEDO, Antnio Junqueira de (Coord.). Comentrios ao Cdigo Civil.

So Paulo: Saraiva, 2003, v. 21.
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A TOMADA DE DECISO APOIADA PRIMEIRAS
LINHAS SOBRE UM NOVO MODELO JURDICO
PROMOCIONAL DA PESSOA COM DEFICINCIA
Nelson Rosenvald
Procurador de Justia do Ministrio Pblico/MG.

Ps-Doutor em Direito Civil pela Universidade Roma Tre.
Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP.
Sumrio: 1. Noes gerais. 2. Regulamentao legal. 3.

Concluso.
1NOES GERAIS
O art. 116 da Lei n. 13.146/15 cria um tertium genus em mat-

ria de modelos protetivos de pessoas em situao de vulnerabilidade.
Alm dos tradicionais institutos da tutela e curatela surge a Tomada de
Deciso Apoiada. O Ttulo IV do Livro IV da Parte Especial do Cdigo
Civil passa a vigorar acrescido do art. 1.783-A, consubstanciando 11
pargrafos.
Essa interessante figura j era aguardada. Ela concretizar o art.
12.3 do Decreto n. 6.949/09, que promulgou a Conveno das Naes
Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia, nos seguintes
termos: Os Estados Partes tomaro medidas apropriadas para pro-
ver o acesso de pessoas com deficincia ao apoio que necessitarem no
exerccio de sua capacidade legal. O novo modelo jurdico tambm se
inspira no legislador italiano que, por meio da Lei n. 6/2004, introduziu
no Cdigo Civil (arts. 404 a 413) a figura do amministratore di sostegno,
ou seja, o administrador de apoio, e ingressa no Brasil por meio do
Estatuto da Pessoa com Deficincia, quase que simultaneamente com
a sua introduo no art. 43 do Cdigo Civil da Argentina, com vigncia
programada para 2016.1
1
De acordo com o art. 43 do novo CC da Argentina, Entende-se por apoio qualquer medida de
carter judicial ou extrajudicial que facilite a pessoa a tomada de decises para dirigir sua
pessoa, administrar seus bens e celebrar atos jurdicos em geral. As medidas de apoio tm
como funo a de promover a autonomia e facilitar a comunicao, a compreenso e a mani-
festao de vontade da pessoa para o exerccio de seus direitos. O interessado pode propor ao
juiz a designao de uma ou mais pessoas de sua confiana para que lhe prestem apoio. O juiz
deve avaliar os alcances da designao e procurar proteger a pessoa diante de eventuais
Tutela e curatela so instituies protetivas da pessoa e dos bens
dos que detm limitada capacidade de agir seja pela idade ou pela
submisso a prvio processo de incapacitao , evitando os riscos
que essa carncia possa impor aos exerccios das situaes jurdicas
por parte de indivduos juridicamente vulnerveis. Contudo, por mais
que o legislador paulatinamente procure reformar esses tradicionais
mecanismos de substituio de forma a adequ-los ao modelo perso-
nalista do direito civil constitucional , pela prpria estrutura, tutela e
curatela so medidas prioritariamente funcionalizadas ao campo estri-
tamente patrimonial.
A tomada de deciso apoiada um modelo jurdico que se aparta
dos institutos protetivos clssicos na estrutura e na funo. Ela con-
templada pelo art. 116 da Lei n. 13.146/15 para ingressar no Ttulo IV, do
Livro IV da Parte Especial do Cdigo Civil, que passa a vigorar acres-
cido do Captulo III (aps o estudo da tutela e curatela). O novo art.
1.783-A veicula a sua essncia: A tomada de deciso apoiada o pro-
cesso pelo qual a pessoa com deficincia elege pelo menos 2 (duas)
pessoas idneas, com as quais mantenha vnculos e que gozem de sua
confiana, para prestar-lhe apoio na tomada de deciso sobre atos da
vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informaes necessrios
para que possa exercer sua capacidade.
Na tomada de deciso apoiada, o beneficirio conservar a capa-
cidade de fato. Mesmo nos especficos atos em que seja coadjuvados
pelos apoiadores, a pessoa com deficincia no sofrer restrio em
seu estado de plena capacidade, apenas ser privada de legitimidade
para praticar episdicos atos da vida civil. Assim, esse modelo poder
beneficiar pessoas deficientes com capacidade psquica plena, porm
com impossibilidade fsica ou sensorial (v.g. tetraplgicos, obesos mr-
bidos, cegos, sequelados de AVC e portadores de outras enfermidades
que as privem da deambulao para a prtica de negcios e atos jurdi-
cos de cunho econmico).
Pensemos em uma pessoa com mais de 18 anos ou emanci-
pada (pois para os menores o sistema dispe da autoridade parental e
tutela), que em razo de uma dificuldade qualquer ou um dficit fun-
cional (fsico, sensorial ou psquico), permanente ou temporrio, sinta-
-se impedida de gerir os seus prprios interesses e at mesmo de se
conduzir pelo cotidiano da vida. Ela necessita de auxlio e, para tanto,
o Direito Civil lhe defere a tomada de deciso apoiada. Cuida-se de
figura bem mais elstica do que a tutela e a curatela, pois estimula a
capacidade de agir e a autodeterminao da pessoa beneficiria do
conflitos de interesses ou influncia indevida. A resoluo deve estabelecer a condio e qua-

lidade das medidas de apoio e, se necessrio, ser inscrita no Registro de Estado Civil e Capa-
cidade de Pessoas.
apoio, sem que sofra o estigma social da curatela, medida nitidamente
invasiva liberdade da pessoa. No se trata de um modelo limitador da
capacidade de agir, mas de um remdio personalizado para as neces-
sidades existenciais da pessoa, no qual as medidas de cunho patrimo-
nial surgem em carter acessrio, prevalecendo o cuidado assistencial
e vital ao ser humano. Enquanto a curatela e a incapacidade relativa
parecem atender preferentemente sociedade (isolando os incapazes)
e famlia (impedindo que dilapide o seu patrimnio), em detrimento
do prprio curatelado, a tomada de deciso apoiada uma medida pro-
mocional de autonomia que resguarda a liberdade e dignidade da pes-
soa com deficincia, sem amputar ou restringir indiscriminadamente
os seus desejos e anseios vitais.
Na iminncia da vigncia da Lei n. 13.146/15, vaticinamos que a
tomada de deciso apoiada ter amplo espao na zona gris que separa
as pessoas com total autodeterminao e aquelas que no conseguem
se fazer compreender. Por inmeras razes, um contingente enorme de
seres humanos possuem limitaes no exerccio do autogoverno, no
obstante preservem de forma precria a aptido de se expressar e de
se conectar com o mundo. Em prol dessas pessoas, caminho no ser
o binmio incapacidade relativa/curatela. A tomada de deciso apoiada
(art. 1.783-A, CC) se coloca de forma intermediria entre os extremos
das pessoas ditas normais nos aspectos fsico, sensorial e psquico
e aquelas pessoas com deficincia qualificada pela curatela. A partir
de janeiro de 2016, haver uma gradao tripartite de interveno na
autonomia: a) pessoas sem deficincia tero capacidade plena; b) pes-
soas com deficincia se serviro da tomada de deciso apoiada, a fim
de que exeram a sua capacidade de exerccio em condio de igual-
dade com os demais; c) pessoas com deficincia qualificada pela cura-
tela em razo da impossibilidade de autogoverno sero interditadas.
2REGULAMENTAO LEGAL
De acordo com o 1 do art. 1.783-A, Para formular pedido de

tomada de deciso apoiada, a pessoa com deficincia e os apoiadores
devem apresentar termo em que constem os limites do apoio a ser ofe-
recido e os compromissos dos apoiadores, inclusive o prazo de vign-
cia do acordo e o respeito vontade, aos direitos e aos interesses da
pessoa que devem apoiar. O preceito revela que o ncleo do apoio
fornecer qualidade de vida pessoa com deficincia, cabendo aos dois
apoiadores seguir fielmente o termo levado a juzo, tendo em conside-
rao as concretas e efetivas necessidades e aspiraes do beneficirio.
O beneficirio do apoio conservar a sua autodeterminao em todos
os atos que no estejam includos no acordo. Assim, para a satisfao
dos atos ordinrios da vida cotidiana, no necessitar de auxlio dos
apoiadores. Mais uma vez, constatamos que o apoio uma medida de
natureza ortopdica, jamais amputativa de direitos.
Malgrado a lacuna legislativa, o termo a ser apresentado ao juiz
pelo candidato ao apoio pode ser instrumentalizado por escritura
pblica constituda no Cartrio de Notas ou simples documento par-
ticular. Outrossim, caso a iniciativa no parta da prpria pessoa com
deficincia, nada impede que o requerimento de tomada de apoio seja
apresentado por um familiar, pelo Ministrio Pblico ou pelo curador,
caso a pessoa a ser beneficiada esteja interditada. Alis, como veremos,
at a prpria pessoa interessada ser legitimada a pleitear o apoio, em
substituio ao regime da curatela, na busca por um regime prote-
tivo em que recupere a capacidade ftica, com menor limitao ao seu
autogoverno.
A normativa italiana mais detalhada quanto ao contedo do
termo de apoio submetido apreciao judicial. O documento trar
indicaes sobre as caractersticas da pessoa beneficiria, a dura-
o e objeto do encargo, com especificao dos atos que podero ser
cumpridos apenas com a assistncia dos apoiadores, dos limites das
despesas que os apoiadores so autorizados a realizar, bem como da
periodicidade na qual se reportaro ao juiz para relatar as atividades
desenvolvidas e o progresso das condies de vida pessoal e social do
beneficirio.
A nova lei brasileira deixa em aberto um palpitante pormenor:
ser que os apoiadores podem realizar atos existenciais privativos da
pessoa beneficiria? Os apoiadores poderiam, ilustrativamente, reco-
nhecer um filho ou consentir na prtica de tratamentos mdicos? A
resposta ser negativa se entendermos que at mesmo a tradicio-
nal curatela afetar to somente os atos relacionados aos direitos
de natureza patrimonial e negocial (art. 85, Lei n. 13.146/15). Todavia,
com uma reflexo mais apurada, podemos legitimar uma excepcio-
nal forma de restrio de direitos da personalidade, pela transfern-
cia de poder decisrio aos apoiadores sobre aspectos da intimidade da
pessoa apoiada, sendo o ato decisrio digno de proteo pelo orde-
namento quando promova a dignidade do beneficirio, no se con-
vertendo em uma renncia a direitos fundamentais, pela faculdade da
pessoa apoiada revogar os poderes dos apoiadores a qualquer tempo.
Outra indagao que resulta da omisso legislativa: sendo a
escolha dos apoiadores uma deliberao que objetiva resguardar os
interesses da pessoa apoiada, inclusive com a designao partindo
do prprio beneficirio da medida, poder o magistrado de ofcio
ou por iniciativa do Ministrio Pblico , justificadamente, designar
um ou ambos os apoiadores em substituio queles indicados pela
pessoa com deficincia? Tendemos a responder afirmativamente, prin-
cipalmente luz do princpio da cooperao, que ilumina o art. 6 do
CPC/15. A Lei n. 13.146/15 no concebeu um papel meramente homo-
logatrio ao juiz, deve haver uma colaborao de sua parte para com
os requerentes da medida, na busca da organizao de um processo
justo. Se motivos graves desaconselham a indicao de A ou B como
apoiadores tais como a existncia das causas que impedem o exerc-
cio da tutela (art. 1.735, CC) ser de bom alvitre substitu-los por pes-
soas idneas, cujo vnculo seja mais slido, notadamente os parentes
mais prximos. Alternativamente, sendo desaconselhvel prima facie
a substituio da(s) pessoa(s) designada(s) como apoiador(es), poder
o magistrado cercar o termo de apoio de maiores garantias, determi-
nando a limitao de seus efeitos, ou estendendo aos apoiadores as
restries legais aplicveis a tutores e curadores, com o fito de prote-
ger mais adequadamente os interesses da pessoa deficiente.
Sendo certo que o beneficirio do apoio preserva a sua capaci-
dade de fato, se no houver restrio no termo de apoio, poder testar
livremente, mesmo que indique como herdeiro ou legatrio um fami-
liar (cnjuge, companheiro ou colateral), que eventualmente ocupe a
posio de apoiador. No se pode impugnar um testamento com base
em uma presuno de incapacidade legal de seu autor, to somente em
virtude de uma vulnerabilidade manifesta, sem que existam vcios do
consentimento. oportuno rememorar que todo deficiente uma pes-
soa vulnervel, mas, extraordinariamente, s se converter em relati-
vamente incapaz aps a formalizao da curatela.
Ao contrrio do art. 410 do CC da Itlia que estipula um prazo
mximo de 10 anos de durao da administrao de apoio (com exce-
o dos familiares mais prximos), o Estatuto da Pessoa com Deficin-
cia dispensou a fixao de um mandato para os apoiadores, deixando
a vigncia da medida para a livre eleio do beneficirio do apoio,
incluindo-se a possibilidade de prorrogao. Independentemente do
prazo estipulado, o 9o do art. 1.783-A faculta uma espcie de resilio
unilateral submetida ao magistrado, no qual A pessoa apoiada pode,
a qualquer tempo, solicitar o trmino de acordo firmado em processo
de tomada de deciso apoiada. Apesar do emprego do termo solici-
tar, cremos que o beneficirio exercer verdadeiro direito potestativo,
cabendo ao magistrado apenas respeitar a sua deliberao unilate-
ral. Todavia, se a opo pelo desligamento for de iniciativa de um dos
apoiadores, enuncia o 10, do art. 1.783-A, que O apoiador pode soli-
citar ao juiz a excluso de sua participao do processo de tomada de
deciso apoiada, sendo seu desligamento condicionado manifestao
do juiz sobre a matria.
Em complemento, preceitua o 2o que O pedido de tomada de
deciso apoiada ser requerido pela pessoa a ser apoiada, com indica-
o expressa das pessoas aptas a prestarem o apoio previsto no caput
deste artigo. Aqui possvel perceber o protagonismo do benefici-
rio do apoio, ele mesmo com legitimidade para iniciar o processo, o
que refora a posio do novo modelo em base axiolgica preferencial
curatela e incapacitao. Com efeito, a tomada de deciso apoiada
apresenta filosofia bem distinta da curatela, pois respeita ao mximo a
capacidade de agir da pessoa vulnervel juridicamente que requer pro-
teo, sem, contudo, anular ou restringir os seus direitos bsicos, que
restam salvaguardados.
A tomada de deciso apoiada no surge em substituio cura-
tela, mas lateralmente a ela, em carter concorrente, jamais cumula-
tivo. Em razo dessa forosa convivncia, paulatinamente a doutrina
ter que desenvolver critrios objetivos para apartar a sutil delimita-
o entre o mbito de aplicao de cada uma dessas medidas. Desde
j podemos cogitar das zonas cinzentas em que concorrem todos os
pressupostos legais para a incapacitao judicial, porm, antes que
se inicie o processo de curatela, o vulnervel delibera por requerer a
tomada de deciso apoiada. Estender-se-ia ela pessoa com deficin-
cia psquica permanente, ainda no curatelada, que almeja ser benefi-
ciria do apoio?
Cremos, inclusive, que a tomada de deciso de apoio poder con-
tribuir decisivamente para uma avalanche de levantamento de inter-
dies. Em vez de restringirmos a possibilidade de a pessoa curatelada
acessar o regime de tomada de deciso apoiada enquanto no ocorre o
levantamento da curatela, podemos tranquilamente admitir que, com
base no tradicional, quem pode o mais, pode o menos, defira-se
pessoa curatelada ou o curador, ou o Ministrio Pblico a legitimi-
dade de, alternativamente ao requerimento de levantamento de cura-
tela (que se acolhido lhe restituir capacidade plena), pleitear ao juiz
competente a substituio da curatela pelo modelo de tomada de deci-
so apoiada, no qual se libertar das amarras da incapacidade relativa,
com preservao do importante auxlio de dois apoiadores.
Em sentido inverso, aps certo tempo de sua constituio, juiz e
Ministrio Pblico podero constatar que a tomada de deciso apoiada
j no mais se revela uma medida adequada para realizar a plena tutela
de certo beneficirio, em razo do agravamento das condies psqui-
cas da pessoa apoiada, que a impea de compreender o sentido de seus
atos (art. 1.767, com a redao conferida pela Lei n. 13.146/15). Entendo
que, conferindo-se pessoa deficiente todas as garantias substanciais
e processuais, poder a medida de apoio cessar em razo da decre-
tao da curatela, com a substituio dos apoiadores pelo curador
designado pelo magistrado, cabendo mesmo a nomeao de um cura-
dor provisrio na constncia do processo. Realmente, a incapacitao
uma resposta excepcional e residual do sistema, que somente proce-
der quando a alternativa menos gravosa da restrio capacidade
resultar inadequada perante a impossibilidade absoluta da pessoa inte-
ragir com o seu entorno e expressar a sua vontade, revelando-se insu-
ficiente o sistema da tomada de deciso apoiada.
Tambm vivel cogitar de um planejamento pessoal que envolva
sucessivamente a tomada de deciso apoiada e a curatela. Imagine-
mos uma pessoa portadora de doena degenerativa como o diagns-
tico de Alzheimer. Nas primeiras fases da enfermidade, o requerimento
de apoio ser importante instrumento de preservao da dignidade e
autonomia da pessoa vulnervel. Contudo, com a progressiva evoluo
da doena, a pessoa poder programar a autocuratela, consistente em
uma espcie de Diretiva Antecipada da Vontade, na qual designar um
representante duradouro de sua confiana que a substituir pratica-
mente em todas as decises da vida cotidiana.
O xito desse novo instrumento requer um processo judicial
dinmico, restrito designao dos apoiadores, a ttulo gratuito, sem
a necessidade de representao, demandando apenas os cuidados do
3o, do art. 1.783-A: Antes de se pronunciar sobre o pedido de tomada
de deciso apoiada, o juiz, assistido por equipe multidisciplinar, aps
oitiva do Ministrio Pblico, ouvir pessoalmente o requerente e as
pessoas que lhe prestaro apoio. Essa entrevista servir como apro-
ximao com a pessoa a qual o processo se refere. O juiz e o promotor
de justia devem ouvir a narrativa do candidato ao apoio e perceber se
o termo de deciso apoiada refletir os seus interesses, exigncias e
reais necessidades. A equipe multidisciplinar subsidiar as autoridades
na verificao dos aspectos tcnicos do apoio.
A participao do Ministrio Pblico, na qualidade de fiscal da
ordem jurdica (art. 179, CPC/15) tambm ser decisiva se houver con-
flito de interesses entre o beneficirio e os apoiadores. Como se extrai
do 6o, do art. 1.783-A, Em caso de negcio jurdico que possa trazer
risco ou prejuzo relevante, havendo divergncia de opinies entre a
pessoa apoiada e um dos apoiadores, dever o juiz, ouvido o Minist-
rio Pblico, decidir sobre a questo. Na vertente da boa-f objetiva, os
apoiadores exercero os deveres de proteo, cooperao e informao
perante a pessoa com deficincia e, em caso de dissenso, advertiro o
magistrado sobre o conflito de interesses. Atos danosos ao interesse
do beneficirio podero motivar a incidncia do 7o, do art. 1783-A:
Se o apoiador agir com negligncia, exercer presso indevida ou no
adimplir as obrigaes assumidas, poder a pessoa apoiada ou qual-
quer pessoa apresentar denncia ao Ministrio Pblico ou ao juiz. Se
procedente a denncia, o juiz destituir o apoiador e nomear, ouvida
a pessoa apoiada e se for de seu interesse, outra pessoa para prestao
de apoio ( 8o, art. 1.783-A).
Acresa-se a isso, a possibilidade de invalidao de todos os atos
praticados em conflito de interesses, seja por iniciativa do Ministrio
Pblico, do prprio beneficirio, ou mesmo de seus sucessores. Em
simetria, tal poder desconstitutivo se estende em favor dos apoiadores,
em todos as hipteses em que o beneficirio tenha sido prejudicado
em sua atuao pessoal, violando as disposies contidas no termo que
instituiu as medidas de apoio. Nesse sentido, disciplina o 4o, do art.
1.783-A, que a deciso tomada por pessoa apoiada ter validade e efei-
tos sobre terceiros, sem restries, desde que esteja inserida nos limi-
tes do apoio acordado.
Retornando ao 6o, do art. 1.783-A, ao prever possibilidade de
divergncia de opinies entre a pessoa apoiada e um dos apoiado-
res, infere-se que, eventualmente, os apoiadores tero percepes
distintas sobre decises que refletiro na vida da pessoa apoiada. Por
tal razo, no obstante o silncio da norma, ser recomendvel que o
termo de apoio estabelea uma ordem de prioridade, ou um critrio de
resoluo de conflitos. Essa hierarquia ser necessria tambm para
acautelar a pessoa apoiada nos casos de ocasional indisponibilidade do
apoiador principal para a tomada de decises, transferindo a responsa-
bilidade da escolha para o apoiador subsidirio.
Adiante, apesar da omisso da lei, entendemos que a constitui-
o da tomada de deciso apoiada ser remetida ao Registro Civil de
Pessoas Naturais, com averbao na margem da certido de nasci-
mento. O desiderato bvio da publicidade o de proporcionar segu-
rana jurdica a terceiros que desejam estabelecer ou prosseguir em
relaes jurdicas com a pessoa apoiada. Somente com a prvia cin-
cia sobre a medida protetiva poder a contraparte se desincumbir do
exposto no 5 do art. 1783-A: Terceiro com quem a pessoa apoiada
mantenha relao negocial pode solicitar que os apoiadores contra-
-assinem o contrato ou acordo, especificando, por escrito, sua funo
em relao ao apoiado.
A tomada de deciso apoiada pode beneficiar qualquer pessoa
privada total ou parcialmente da autonomia, mesmo por efeito de uma
deficincia puramente fsica ou sensorial e sem qualquer dficit ps-
quico , que a impossibilite de prover os prprios interesses. Por tal
razo, o inciso VII do art. 123 da Lei n. 13.146/15 revogou o art. 1.780 do
Cdigo Civil, com o seguinte contedo: A requerimento do enfermo
ou portador de deficincia fsica, ou, na impossibilidade de faz-lo, de
qualquer das pessoas a que se refere o art. 1.768, dar-se-lhe- curador
para cuidar de todos ou alguns de seus negcios ou bens. (Lembramos
que o art. 1.072, I, do CPC/15 j havia revogado o art. 1,768 do CC/02,
substitudo pelo rol do art. 747 do CPC/15).
O modelo jurdico criado pelo Cdigo Civil de 2002 era valioso,
pois supria um vcuo jurdico. Ou seja, em uma ponderao prvia e
abstrata entre os valores da segurana jurdica e da dignidade da
pessoa humana, o legislador considerou que hgido o consentimento
quando inexistente ausncia ou reduo do discernimento , a inter-
dio seria uma sano desproporcional a ser aplicada nos casos em
que a pessoa necessitasse de um representante judicial apenas por
uma impossibilidade fsica (definitiva ou transitria) de gerir o seu
patrimnio.
Assim, pessoas com capacidade psquica plena, porm vulner-
veis, tais como deficientes fsicos (v.g. tetraplgicos), obesos mrbidos,
cegos, sequelados de AVC e portadores de outras enfermidades que as
privassem da deambulao para a prtica de negcios e atos jurdicos
de cunho econmico, com base no art. 1.780 do CC/2002, poderiam se
servir de sua autonomia para indicar um curador que se responsabi-
lizaria por tais atribuies, sem que o representante judicial interfe-
risse nas deliberaes existenciais da pessoa curatelada, pois esta no
sofreria nenhuma mitigao em sua autodeterminao.
Todavia, a tomada de deciso apoiada elimina a funo exer-
cida pelo art. 1.780, justificando a sua revogao. Quando a defici-
ncia se restringe ao aspecto fsico ou sensorial, sem impactos no
funcionamento da psique, a instituio de um termo de apoio equivale
designao de um procurador para cuidados com a sade, potencia-
lizando-se a autonomia do sujeito, agora coadjuvado pelos apoiadores.
Alis, a tomada de deciso apoiada ultrapassa amplamente o mbito do
revogado art. 1.780 do Cdigo Civil, pois atrai para o seu centro gra-
vitacional no apenas as pessoas com deficincia fsica ou sensorial,
porm, preferencialmente aquelas com deficincia psquica ou intelec-
tual que tenham limitaes na sua aptido de se expressar e fazer-se
compreender. Ao contrrio das pessoas objetivamente impossibilitadas
de se autogovernar que sero interditadas e se convertero em relati-
vamente incapazes , os sujeitos que sofram restries no autogoverno
preservaro a capacidade plena e tero nos apoiadores a garantia da
promoo de sua autonomia.
Poder-se-ia indagar sobre a necessidade de previso legal de uma
Tomada de Deciso Apoiada, quando nada impediria que o indivduo
autonomamente se servisse da tcnica de manifestao da vontade da
representao voluntria, para alcanar idnticos fins. Consiste essa
em substituio na exteriorizao da vontade pela realizao de um
negcio em nome de outra pessoa, sobre quem devam recair os efeitos
negociais. Assim, h uma dissociao entre quem age (representante)
e aquele em cuja esfera jurdica se produz a eficcia jurdica da ao
(representado).
Ocorre, que quando a transferncia dos poderes de representa-
o instrumentalizada pela via do negcio unilateral de procurao,
o outorgante estar naturalmente sujeito ao risco do mal cumpri-
mento de suas determinaes pelo procurador. A quebra da confiana
se acentua pela assimetria das partes, facilitando a ocorrncia de abu-
sos ou desvios de finalidade. Ademais, prprio da representao
que o procurador ostente discricionariedade para deliberar e decidir,
havendo espao de liberdade para rejeitar os poderes representativos
(art. 116, CC). Todavia, tal como desenhada no Cdigo Civil, a responsa-
bilidade dos apoiadores rigorosa e fiscalizao judicial e do Minist-
rio Pblico tendem a direcionar os atos dos apoiadores s finalidades
eleitas pela pessoa com deficincia.
3CONCLUSO
Dos 11 anos de experincia italiana, extrai-se que, mais do que

uma reforma, a introduo da administrao apoiada se tornou uma
verdadeira revoluo institucional reconhecida, inclusive, pela Corte
Constitucional (9/12/2005, n. 440), culminando por confinar a cura-
tela em um espao residual. Realmente, a experincia demonstra que
a curatela desempenha uma funo patrimonial bsica: a de solucio-
nar problemas concretos como comprar, vender, alugar um imvel e
investir uma soma em dinheiro. medida que o Estatuto da Pessoa
Deficiente supre essa finalidade, por meio de auxiliares tidos como
apoiadores, sem que a pessoa apoiada seja privada de sua capacidade
de fato, a tendncia inexorvel que no Brasil se reproduza o xito do
Cdigo Civil da Itlia. Afinal, modelos jurdicos como esse materiali-
zam o princpio da Dignidade da Pessoa Humana na dupla acepo:
protetiva e promocional das situaes existenciais.
OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE PROTEO
S CRIANAS E AOS ADOLESCENTES
Paulo Lins e Silva
Presidente de Honra da Union Internationale des Avocats (UIA)

(2006-2007). Presidente de Honra da Federao Interamericana de
Advogados (FIA/IABA) (1998-1999). Diretor Internacional do Instituto
Sumrio: 1. Introduo. 2. Conveno de Viena sobre o

Direito dos Tratados. 3. Tratados internacionais de pro-
teo s crianas e aos adolescentes. 3.1. Declarao de
Genebra. 3.2 Instituto Interamericano da Criana. 3.3.
UNICEF. 3.4. Declarao Universal dos Direitos Humanos.
3.5. Declarao dos Direitos da Criana. 3.6. Conveno
Internacional sobre os Direitos da Criana. 3.7. Conveno
Americana de Direitos Humanos. 4. Indevido abandono
PEC 512/10.
1INTRODUO
Recebe a denominao de Tratado Internacional o acordo cele-

brado entre dois ou mais sujeitos de direito internacional pblico, por
meio de instrumento escrito, visando produo de efeitos jurdicos
em mbito internacional.
No mesmo sentido a definio apresentada pela Conveno de
Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 em seu artigo 2, ponto 1,
alnea a, in verbis:
a) tratado significa um acordo internacional concludo por escrito

entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer conste de
um instrumento nico, quer de dois ou mais instrumentos conexos,
qualquer que seja sua denominao especfica;
Importante no perder de vista que somente poder haver aplica-

bilidade dos tratados internacionais entre Estados que, de forma livre e
em pleno exerccio de sua soberania, consentirem expressamente com
seus termos. Isto significa dizer que os tratados no impem nenhuma
espcie de obrigao queles Estados que no manifestarem seu livre
consentimento.
2CONVENO DE VIENA SOBRE O DIREITO DOS TRATADOS
A Conveno Internacional sobre o Direito dos Tratados foi cele-

brada no ano de 1969 na cidade de Viena, com o intuito de promover
a soluo das controvrsias e divergncias sobre a aplicabilidade dos
tratados internacionais, bem como estabelecer regras e parmetros
para a assinatura, adeso, formulao e outras obrigaes em mbito
internacional.
Sob essa tica, so considerados como princpios norteadores
da Conveno: a boa-f, o livre consentimento, bem como o princ-
pio bsico do Direito Internacional pacta sunt servanda (art. 26). Na
mesma linha de raciocnio, o artigo 27 traz expressa proibio de invo-
car-se direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado.
Cumpre esclarecer que a Conveno de Viena de 1969 possui
condo de disciplinar tratados internacionais vinculados to somente
partio de Estados, deixando de apreciar a aplicabilidade daque-
les celebrados entre organizaes internacionais, sendo certo que a
regulamentao destes ltimos ocorreu somente em 1986, quando
da realizao da Conveno de Viena sobre o Direito dos Tratados
entre Estados e Organizaes Internacionais ou entre Organizaes
Internacionais.
No obstante a notria importncia da referida Conveno,
o Brasil somente a ratificou em julho de 2009 por meio do Decreto
Legislativo n. 496/2009 e posterior promulgao por meio do Decreto
n. 7.030/2009.
3TRATADOS INTERNACIONAIS DE PROTEO S CRIANAS E AOS

ADOLESCENTES
3.1Declarao de Genebra
Em 1924, a extinta Liga das Naes adotou a Declarao dos

Direitos da Criana formulada no ano anterior pelo Conselho da Unio
Internacional de Proteo Infncia (Save the Children International
Union) organizao de carter no governamental , para criar o pri-
meiro instrumento normativo de mbito internacional a tratar direta e
especificamente de questes relacionadas s crianas e adolescentes,
conhecido como Declarao de Genebra.
Entretanto, cumpre esclarecer que 1 ano antes, em 1923, a Liga
das Naes criou o Comit de Proteo da Infncia, motivo pelo qual
os Estados deixaram de ser considerados como os nicos soberanos
em matrias relacionadas aos direitos das crianas.
Pois bem. Ainda que como primeiro registro internacional acerca
do tema, a Declarao de Genebra j continha determinao no sentido
de proteo a toda e qualquer criana, sem qualquer tipo de discrimi-
nao, prevendo, ainda, que todas elas devem ser auxiliadas e coloca-
das em plenas condies de possuir um regular desenvolvimento.
Alm disso, entre outros pontos, estipula que os rfos e aban-
donados devem ser recolhidos, a fim de que, como toda criana, pos-
sam ser alimentados, auxiliados, tratados e reeducados.
3.2Instituto Interamericano da Criana
Criado em 1927 durante o IV Congresso Panamericano da

Criana e posteriormente vinculado Organizao dos Estados Ame-
ricanos em 1949.
Foi fundado por 10 (dez) pases, entre eles o Brasil, Estados Uni-
dos, Cuba, Argentina e Uruguai.
Possui como principal objetivo o zelo pelos direitos das crianas,
mas tambm presta assessoramento legislativo e poltico-social aos
Estados-Membros.
3.3UNICEF
O Fundo das Naes Unidas para Infncia (UNICEF) foi criado

em 1946, aps o trmino da Segunda Guerra Mundial e consequente
devastao em escala global, por deciso unnime da Assembleia Geral
da Organizao das Naes Unidas.
Justamente em razo do perodo de sua criao, os primeiro pro-
gramas da UNICEF foram direcionados prestao de assistncia em
carter emergencial a crianas no perodo ps-guerra no continente
Europeu, no Oriente Mdio e na China.
A princpio, o UNICEF foi constitudo to somente para auxiliar
na reconstruo dos pases europeus e, quando isso ocorreu, alguns
entenderam que a misso estava completa. Entretanto, naes menos
favorecidas se manifestaram pela sua manuteno, alegando que as
Naes Unidas no poderiam ignorar as crianas ameaadas pela fome,
doenas e misria em outros pases.
Nesse sentido, em 1953 a UNICEF tornou-se rgo de carter
permanente na ONU e teve sua competncia ampliada para atender
as crianas ao redor do globo terrestre.
No obstante o fato da competncia do UNICEF ter sido ampliada
to somente em 1953, seu primeiro escritrio em solo brasileiro foi ins-
talado em 1950, na cidade de Joo Pessoa/PB, sendo o primeiro acordo
assinado com o governo brasileiro destinado proteo da sade da
criana e da gestante nos estados do Cear, Paraba, Piau e Rio Grande
do Norte.
3.4Declarao Universal dos Direitos Humanos
Em 1948, apenas 2 dois anos aps a criao da UNICEF, a Assem-

bleia Geral da ONU aprovou a Declarao Universal dos Direitos
Humanos, representando significativo avano nos direitos e liberdades
individuais do ser humano, bem como no reconhecimento do princpio
fundamental da dignidade da pessoa humana.
Apesar do instrumento no tratar de forma exclusiva e expressa
sobre os direitos da criana e do adolescente, mas to somente de
forma implcita, prev em seu artigo 25, ponto 2:
A maternidade e a infncia tm direito a cuidados e assistncia

especiais. Todas as crianas nascidas dentro ou fora do matrimnio
gozaro da mesma proteo social.
Entretanto, e por bvio, como esta Declarao enuncia direitos

civis, polticos, econmicos, sociais e culturais a todos os seres huma-
nos, as crianas e adolescentes tambm esto includos.
3.5Declarao dos Direitos da Criana
Proclamada em 20 de novembro de 1959 e preconizada por meio

de 10 (dez) princpios listados a seguir , possui como fundamentao
os direitos bsicos de toda criana, entre eles: liberdade, estudo, ali-
mentao, educao e convvio social.
Princpio I Direito igualdade, sem distino de raa religio

ou nacionalidade.
A criana desfrutar de todos os direitos enunciados nesta Decla-

rao. Estes direitos sero outorgados a todas as crianas, sem
qualquer exceo, distino ou discriminao por motivos de raa,
cor, sexo, idioma, religio, opinies polticas ou de outra natureza,
nacionalidade ou origem social, posio econmica, nascimento ou
outra condio, seja inerente prpria criana ou sua famlia.
Princpio II Direito a especial proteo para o seu desenvolvi-
mento fsico, mental e social.
A criana gozar de proteo especial e dispor de oportunidade e

servios, a serem estabelecidos em lei por outros meios, de modo
que possa desenvolver-se fsica, mental, moral, espiritual e social-
mente de forma saudvel e normal, assim como em condies de
liberdade e dignidade. Ao promulgar leis com este fim, a conside-
rao fundamental a que se atender ser o interesse superior da
criana.
Princpio III Direito a um nome e a uma nacionalidade.
A criana tem direito, desde o seu nascimento, a um nome e a uma

nacionalidade.
Princpio IV Direito alimentao, moradia e assistncia

mdica adequadas para a criana e a me.
A criana deve gozar dos benefcios da previdncia social. Ter

direito a crescer e desenvolver-se em boa sade; para essa finali-
dade devero ser proporcionados, tanto a ela, quanto sua me,
cuidados especiais, incluindo-se a alimentao pr e ps-natal. A
criana ter direito a desfrutar de alimentao, moradia, lazer e
servios mdicos adequados.
Princpio V Direito educao e a cuidados especiais para a

criana fsica ou mentalmente deficiente.
A criana fsica ou mentalmente deficiente ou aquela que sofre da

algum impedimento social deve receber o tratamento, a educao e
os cuidados especiais que requeira o seu caso particular.
Princpio VI Direito ao amor e compreenso por parte dos

pais e da sociedade.
A criana necessita de amor e compreenso, para o desenvolvi-

mento pleno e harmonioso de sua personalidade; sempre que poss-
vel, dever crescer com o amparo e sob a responsabilidade de seus
pais, mas, em qualquer caso, em um ambiente de afeto e segurana
moral e material; salvo circunstncias excepcionais, no se dever
separar a criana de tenra idade de sua me. A sociedade e as auto-
ridades pblicas tero a obrigao de cuidar especialmente do
menor abandonado ou daqueles que caream de meios adequados
de subsistncia. Convm que se concedam subsdios governamen-
tais, ou de outra espcie, para a manuteno dos filhos de famlias
numerosas.
Princpio VII Direito educao gratuita e ao lazer infantil.
A criana tem direito a receber educao escolar, a qual ser gra-

tuita e obrigatria, ao menos nas etapas elementares. Dar-se-
criana uma educao que favorea sua cultura geral e lhe permita
em condies de igualdade de oportunidades desenvolver suas
aptides e sua individualidade, seu senso de responsabilidade social
e moral. Chegando a ser um membro til sociedade.
O interesse superior da criana dever ser o interesse diretor

daqueles que tm a responsabilidade por sua educao e orienta-
o; tal responsabilidade incumbe, em primeira instncia, a seus
pais.
A criana deve desfrutar plenamente de jogos e brincadeiras os

quais devero estar dirigidos para educao; a sociedade e as auto-
ridades pblicas se esforaro para promover o exerccio deste
direito.
Princpio VIII Direito a ser socorrida em primeiro lugar, em

caso de catstrofes.
A criana deve em todas as circunstncias figurar entre os pri-

meiros a receber proteo e auxlio.
Princpio IX Direito a ser protegida contra o abandono e a

explorao no trabalho.
A criana deve ser protegida contra toda forma de abandono, cruel-

dade e explorao. No ser objeto de nenhum tipo de trfico.
No se dever permitir que a criana trabalhe antes de uma idade

mnima adequada; em caso algum ser permitido que a criana
dedique-se, ou a ela se imponha, qualquer ocupao ou emprego
que possa prejudicar sua sade ou sua educao, ou impedir seu
desenvolvimento fsico, mental ou moral.
Princpio X Direito a crescer dentro de um esprito de solida-
riedade, compreenso, amizade e justia entre os povos.
A criana deve ser protegida contra as prticas que possam fomen-

tar a discriminao racial, religiosa, ou de qualquer outra ndole.
Deve ser educada dentro de um esprito de compreenso, tolern-
cia, amizade entre os povos, paz e fraternidade universais e com
plena conscincia de que deve consagrar suas energias e aptides
ao servio de seus semelhantes.
Ainda que indubitavelmente importantes os princpios estipula-

dos pela referida Declarao, esta no possui qualquer carter obriga-
cional jurdico, no sendo, portanto, de cumprimento obrigatrio para
os Estados-Membros.
A Declarao dos Direitos da Criana ainda sofreu acrscimos
oriundos das Regras de Beijing, de 1985; Regras de Tquio, de 1990 e,
enfim, Diretrizes de Raid, tambm de 1990.
3.6Conveno Internacional sobre os Direitos da Criana
Aprovada pela Assembleia Geral da ONU em novembro de 1989,

tornou-se o instrumento legal em mbito internacional mais repre-
sentativo dos direitos e conquistas institudos em favor da infncia e
adolescncia.
A proposta original para que a ONU adotasse um instrumento
em favor dos direitos da criana foi formalmente apresentada pelo
governo polons em 1978, com o objetivo de que a Conveno fosse
adotada j em 1979, o Ano Internacional da Criana.
Em razo do intento de obter celeridade na tramitao do
documento apresentado para que pudesse ser adotado j no ano fes-
tivo supramencionado, este se aproximava em muito da Declarao dos
Direitos da Criana de 1959.
Entretanto, quando a proposta de Conveno foi apresentada a
outros pases pelo Secretrio Geral da ONU com o objetivo de obter
sugestes e observaes, muitos asseveraram que o texto era em
grande parte omisso, eis que no se referia a uma srie de direitos das
crianas.
Nesse aps, aps longos 10 anos de intenso trabalho e modifi-
caes, a Conveno Internacional sobre os Direitos da Criana foi
finalmente adotada em 20 de novembro de 1989, exatamente 30 anos
depois da promulgao da Declarao dos Direitos da Criana.
O exato decurso de 30 anos entre a Declarao e a Conveno
no por acaso, a data do dia 20 de novembro foi decretada pela ONU
como Dia Universal da Criana.
Por fim, a Conveno foi aberta assinatura e ratificao em 26
de janeiro de 1990 na cidade de Nova Iorque, EUA, sendo certo que o
Brasil assim o fez por meio do Decreto n. 99.710 de 21 de novembro de
1990.
Composta por 54 artigos e ainda, por extenso prembulo, exe-
cutada e cumprida inteiramente em solo brasileiro.
3.7Conveno Americana de Direitos Humanos
Tambm conhecida como Pacto de San Jos da Costa Rica, um

tratado internacional celebrado entre os Pases-Membros da Organi-
zao dos Estados Americanos. Foi subscrita ao longo da realizao
da Conferncia Especializada Interamericana de Direitos Humanos em
1969.
Alm de outros assuntos de notria importncia abrangidos pela
referida Conveno, dispe no artigo 19 que, in verbis:
Toda criana tem direito s medidas de proteo que sua condio

de menor requer por parte da famlia, da sociedade e do Estado.
4INDEVIDO ABANDONO PEC 512/10
A Proposta de Emenda Constituio n. 512/10 pretendia garan-

tir Justia Estadual competncia para julgar causas internacionais
ambientadas no Brasil que envolvam o interesse de crianas, ao passo
que, atualmente, cabe a Justia Federal processar e julgar casos desse
teor.
de se concordar que o Juzo Federal no est familiarizado com
situaes que envolvem fortes aspectos psicolgicos e sentimentos,
enquanto o Juzo de Famlia lida com tais situaes rotineiramente.
Alm do mais, os Juzos de Famlia possuem extenso apoio tc-
nico, promovido por psiclogos e assistentes sociais capacitados e
ambientados aos acontecimentos dirios de uma Vara de Famlia,
enquanto, por outro lado, a Justia Federal carece de tais profissionais
em sua composio.
Entretanto, apesar de ter recebido parecer favorvel do relator
na Comisso de Constituio e Justia em setembro de 2011, a Proposta
de Emenda Constituio n. 512, de 2010, foi completamente abando-
nada e, por conseguinte, arquivada em 31 de janeiro de 2015.
Nesse passo, e infelizmente, as causas internacionais ambien-
tadas em solo brasileiro que envolvem o interesse de crianas e ado-
lescentes, ainda tramitam na Justia Federal, permanecendo sob
julgamentos extremamente tcnicos, afastados dos sentimentos que
so intrnsecos a essas situaes.
Imperioso destacar que, ainda que carente de melhores informa-
es, a PEC foi devolvida Coordenao de Comisses Permanentes
em 15 de setembro de 2015.
MUDANA DE DOMICLIO E FORO DE DISCUSSO
DA GUARDA: SEQUESTRO INTERPARENTAL?
Ana Carla Harmatiuk Matos
Doutora pela Universidade Federal do Paran (2003). Mestra

em Direito pela Universidade Federal do Paran (1999) e Mestra em
Derecho Humano pela Universidad Internacional de Andaluca (1997).
Tuttora Diritto na Universidade di Pisa- Itlia (2002). Professora na
Graduao, Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade Fede-
ral do Paran . Vice-Coordenadora do Programa de Ps-Graduao
em Direito da Universidade Federal do Paran. Professora de Direito
Civil, de Direitos Humanos e de Novos Direitos. Advogada. Diretora da
Regio Sul do IBDFAM. Vice-Presidente do IBDCivil.
Autora de artigos e livros jurdicos.
Sumrio: 1. Introduo. 2. Aspectos do chamado seques-

tro interparental. 3. Interpretao sistemtica, segundo
os novos valores do direito de famlia contemporneo bra-
sileiro. 4. Alteraes legtimas da residncia habitual. 5.
Consideraes finais. 6. Referncias.
1INTRODUO
O tema de reflexo desse artigo, espelhado no ttulo, como se

nota, sugere uma provocativa inter-relao de saberes de inspirao
propositadamente crtica. Procura-se tratar a temtica numa abor-
dagem que no aquela puramente processual. Desse modo, diferen-
temente do que se pode num primeiro momento imaginar, no se
pretende restringir a anlise influncia da mudana de domiclio da
criana ou adolescente no curso da ao que versa sobre o estabeleci-
mento da guarda.
Busca-se, assim, neste trabalho, trazer outros argumentos com
o escopo de contribuir para uma melhor proteo da criana e do ado-
lescente, abordando uma possvel analogia com o Direito Internacional
Privado. Para tanto, indica-se que a retirada ilegtima de um infante de
sua residncia habitual, mesmo que dentro do territrio nacional, pode
ser considerada uma modalidade de sequestro interparental, para
finalidades relacionadas ao restabelecimento do domiclio originrio e
fixao do foro.
Isto porque se percebe uma aproximao de argumentos de
fundo do Direito Internacional Privado com os fundamentos valora-
tivos do Direito de Famlia contemporneo brasileiro, que busca nas
noes de guarda compartilhada e alienao parental, entre outras,
evitar condutas abusivas e ilegtimas de um dos genitores.
Ao mesmo tempo, procura-se afastar de uma concepo sim-
plista da convivncia paterna e materno-filial a partir do apontamento
de circunstncias que justificam a mudana do contexto espacial
infanto-juvenil, especialmente quando se busca, com isso, romper com
ciclos de violncia intrafamiliar.
2ASPECTOS DO CHAMADO SEQUESTRO INTERPARENTAL
As situaes personalssimas e familiares que podem estar rela-

cionadas a mais de um pas so habituais no mundo contemporneo.
E estas comumente podem ser afetadas pelas diferenas que existem
entre os sistemas jurdicos vigentes de determinadas naes. Para
resolver essas questes, como sabido, os Estados adotam regras
especiais do Direito Internacional Privado.
Alm do mais, essas diferenas entre os diversos ordenamentos
jurdicos envolvidos podem gerar migraes propositais de pessoas ou
serem utilizadas, ainda que inconscientemente, pelas partes envolvi-
das, como modo de descumprirem determinados direitos e deveres.
Da a necessidade de cooperao jurdica internacional e admi-
nistrativa na rea de direito privado, principalmente nas reas da pro-
teo criana e famlia. Relevante, tambm, ter-se estabilizado o
direito aplicvel para determinada hiptese ftica.
Destarte, a Conveno de Haia de 25 de outubro de 1980 sobre
os aspectos civis da subtrao internacional de menores trata de com-
bater o sequestro parental de crianas e objetiva um sistema de coo-
perao entre os Estados, bem como um procedimento rpido para
restituio do infante ao pas de residncia habitual.
As autoridades centrais em cada pas, assim, devem proporcio-
nar assistncia para a localizao da criana e para alcanar, onde seja
possvel, a restituio voluntria da criana ou uma soluo consensual
para as questes de guarda. Igualmente, devem cooperar para preve-
nir maiores prejuzos criana, iniciando ou apoiando o procedimento
para a restituio, e atendendo os assuntos administrativos necess-
rios para garantir criana o menor impacto negativo possvel.
Compreende-se a noo de sequestro interparental (ou seques-
tro internacional de crianas ou adolescentes) como aquele que se
verifica quando h o deslocamento ilegal de infantes e jovens de seu
pas ou sua reteno indevida em outro local que no seja o de sua
residncia habitual.
Assim, numa situao de disputa de guarda, o princpio da resi-
dncia habitual, prprio do Direito Internacional Privado, merece des-
taque. Entende-se este princpio como preveno de uma situao em
que a criana retirada do ambiente familiar e social em que sua vida
se desenvolveu e sobre como obter retorno imediato dela ao ambiente
ao qual foi removida.1
No que se refere ao uso do vocbulo sequestro para o desloca-
mento ou manuteno ilegtima de genitor com seu prprio filho cabe
uma explicitao. Segundo Carolina Helena Lucas Mrida:
[...] por dificuldade tcnica, o termo abduction, do ttulo em ingls,

foi traduzido como sequestro, na verso oficial brasileira. Dessa
forma, h que se compreender que a conveno, apesar de usar o
termo sequestro, pretende regular a transferncia ou reteno irre-
gular de crianas, tratando da questo da guarda de menores.2
Destarte, observa-se que a Conveno de Haia de 1980, ratifi-

cada pelo Brasil por meio do Decreto n. 3.413/2000, prev medidas
para evitar e solucionar situaes nas quais crianas ou adolescen-
tes tm seu direito de convivncia com um dos pais (ou at mesmo de
ambos) subtrado.
Neste sentido, as observaes de Mnica Sifuentes so esclare-
cedoras, a saber:
Ficou estabelecido pelos estados-membros, aps longas discusses,

que a melhor soluo para o conflito seria o retorno da criana ao
local de sua ltima residncia, para que o juiz daquele pas decida
sobre quem dever ser atribuda a guarda. No se trata, como erro-
neamente se supe, de devolv-la ao outro genitor, mas de enca-
minh-la autoridade competente, pois ali que a criana tinha
sua vida, seu crculo de amizades, a escola, a vizinhana. O juiz ou a
autoridade local dispe, sem dvida, de melhores meios para colher
provas e avaliar qual dos pais deve ficar com o menor. 3
1
MRIDA, Carolina Helena. Sequestro interparental: princpio da residncia habitual. Revista
de Direito Internacional. Braslia, v. 8, n. 2, p. 255-272, jul./dez. 2011.
2
MRIDA, Carolina Helena Lucas. Sequestro interparental: o novo direito das crianas.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 9, p. 7-16, fev. 2011.
3
SIFUENTES, Mnica. Sequestro interparental: a experincia brasileira na aplicao da Con-
veno da Haia de 1989. Revista da SJRJ, Rio de Janeiro, n. 25, p. 135-144, 2009.
Contudo, nem sempre a essncia do instituto se evidencia nas
decises. Vejamos:
Ao cautelar de busca e apreenso [...] Procedncia do pedido de

restituio. Se a legislao do local de residncia habitual prev a
guarda compartilhada, o deslocamento dos filhos do casal, com
a fixao de nova residncia no Brasil, sem a autorizao do pai,
caracteriza a violao do direito de guarda, a justificar o deferi-
mento do pedido de regresso [...] (TRF 1 So Paulo - Ao Cautelar
2007.61.00.018633 data de julgamento: 10 de setembro de 2007).
Outrossim, importante observar, para uma melhor elucidao

da temtica, os casos aos quais se aplica a Conveno da Haia: o pas
de residncia habitual da criana e o pas em que a criana foi levada
devem ter aderido conveno; a criana em questo deve ser menor
de 16 anos de idade; e a criana deve ter sido ilicitamente transferida
ou retida, em violao do direito de guarda nos termos da lei do estado
de sua residncia habitual.
Caso notrio foi o do menino Sean Goldman, amplamente divul-
gado e explorado pela mdia de maneira exaustiva no Brasil, sem espe-
lhar suficientemente os objetivos dos valores que a conveno procura
tutelar. Alm das dificuldades prprias da especificidade do caso, des-
taca-se o agravamento dos dramas humanos envolvidos em razo das
dificuldades de compreenso e aplicao da conveno. Aliado a estes
fatores, com o passar do tempo e com o falecimento da me, estabe-
leceu-se uma famlia recomposta, com o padrasto de Sean, segundo
marido da me, e nova irm. Alm disso, a famlia materna brasileira
muito convivia e participava dos cuidados com as crianas.
Em 2004, iniciou-se o conflito pela obteno da guarda do
menino, nascido em 2000, em Nova Jersey, nos Estados Unidos, filho
de me brasileira e pai estadunidense. Naquele ano (2004), houve, con-
forme noticiado, a retirada da criana do convvio paterno, na poca
com sua autorizao. J no Brasil, a me de Sean divorciou-se do ame-
ricano e, em 2008, faleceu em razo de complicaes no parto de sua
segunda filha. A justia brasileira concedeu ao padrasto a guarda pro-
visria do Sean e houve sucessiva manuteno da criana, no Brasil,
com seu novo ncleo familiar e com seus avs maternos. Apenas em
2009, a justia brasileira determinou que a criana fosse entregue ao
seu pai biolgico para que a deciso acerca da guarda fosse realizada
nos Estados Unidos.
Em contrapartida, a famlia brasileira recorreu dessa deter-
minao e obteve, junto ao Supremo Tribunal Federal, uma liminar
estabelecendo que o menino permanecesse no pas, at ser ouvido,
iniciando-se uma questo complexa entre os pases envolvidos (Brasil
e Estados Unidos).
O pice do conflito ocorreu no mesmo ano, quando o STF deter-
minou que Sean retornasse ao local de sua ltima residncia para que o
juzo daquele pas decidisse sobre a quem atribuir a sua guarda. Desde
ento, o garoto vive nos Estados Unidos.4
Esse emblemtico caso que tanta comoo gerou, ao menos,
chamou a ateno da sociedade e dos juristas para a aplicao da refe-
rida conveno no Brasil.
Assim, vrias medidas foram tomadas para superar as dificul-
dades inicialmente enfrentadas. Entre outras iniciativas, destaca-se
o Grupo Permanente de Estudos sobre a Conveno de Haia de 1980,
institudo em agosto de 2006, pela ento Presidente do Supremo Tri-
bunal Federal (STF), Ministra Ellen Gracie Northfleet. Esse coletivo,
composto por representantes dos rgos pblicos envolvidos no trata-
mento do tema, tem o objetivo de divulgar este importante documento
entre os operadores jurdicos, fomentar estudos e pesquisas, participar
no mbito interno e internacional de discusses a respeito, fornecendo
elementos para auxiliar sua interpretao e aplicao.5
Isto porque h alguns problemas a serem observados, segundo
Mnica Sifuentes, principalmente decorrentes do lapso temporal entre
a aprovao da conveno no plano internacional e a sua ratificao
pelo pas, quais sejam: conflitos de jurisdio entre a Justia Comum e
a Justia Federal;6 falta de domnio, por parte dos juzes e dos operado-
res do Direito, em geral, sobre a Conveno de 1980; e lacunas norma-
tivas internas para a efetivao da celeridade prevista na Conveno.7
Superadas as dificuldades de compreenso e aplicao, desta-
cam-se algumas decises sobre a Conveno de Haia que ilustram os
valores essenciais da temtica, como a que segue:
Internacional. Remoo ilcita de menor. Conveno da Haia.

Mrito da guarda. Impertinncia. Interesse da criana. Busca e
apreenso. Canad. Deferimento. Guarda compartilhada. A vio-
lao da guarda compartilhada, com a retirada da criana, sem a
4
Resumo do caso por Yves Zamataro. Disponvel em:
<http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI215815,81042-Sequestro+Interparental+Aplicaca
o+da+Convencao+de+Haia+no+Direito>. Acesso em: 5 mar. 2016.
5
A propsito: < http://www.stf.jus.br/convencaohaia>. Acesso em: 5 mar. 2016.
6
Por aquela ser a competente para julgar as aes que envolvem conflitos relacionados ao
direito das famlias e, no caso, para decidir sobre a guarda do menor, e esta ter reconhecida a
competncia para julgar os pedidos de restituio do infante, com base na Conveno.
7
SIFUENTES, Mnica. Sequestro interparental: a experincia brasileira na aplicao da Con-
veno da Haia de 1989. Revista da SJRJ, Rio de Janeiro, n. 25, p. 138, 2009.
concordncia do pai, do pas de sua residncia habitual, autoriza o
pedido de regresso. No comprovada nenhuma das situaes pre-
vistas no art. 13 da Conveno da Haia, de ser deferido o pedido de
regresso. Procedncia da ao [...] 4. A ratio essendi da conveno
sobre sequestro coibir o deslocamento ilegal de crianas e permi-
tir a rpida devoluo ao pas de sua residncia habitual anterior ao
sequestro, onde dever ser apreciado o mrito do direito de guarda
(arts. 16 e 17). A ideia tudo fazer para que a criana possa, no futuro
mais prximo possvel, manter contato com ambos os pais, mesmo
que estes estejam vivendo em pases diferentes [...]. (TRF-2 - AC:
200551010097929 RJ 2005.51.01.009792-9, Relator: Desembargador
Federal Luiz Paulo Araujo, data de julgamento: 17/10/2007, Stima
Turma Especializada). (Grifos nossos)
Observe-se que, ao lado do aspecto procedimental, qual seja,

devolver ao local de residncia habitual para somente ento se ter pro-
priamente uma anlise do mrito da questo, h como fundamento de
base a percepo de que o juiz da localidade onde morava a criana o
mais habilitado para verificar as condies fticas do seu melhor inte-
resse e primar pela sua proteo integral.
Do mesmo modo, destaca-se que o tempo fundamental para
guardar o objetivo proposto pela conveno. Se se tarda na prestao
jurisdicional de devoluo da criana ou adolescente, sua convivn-
cia familiar e comunitria j ter sido em muito alterada, prejudicando
enormemente o contexto daquele que se deve prioritariamente tutelar.
Segundo dispe seu artigo 12:
Quando uma criana tiver sido ilicitamente transferida ou retida

nos termos do Artigo 3 e tenha decorrido um perodo de menos de 1
ano entre a data da transferncia ou da reteno indevidas e a data
do incio do processo perante a autoridade judicial ou administra-
tiva do Estado Contratante onde a criana se encontrar, a autori-
dade respectiva dever ordenar o retomo imediato da criana.
A autoridade judicial ou administrativa respectiva, mesmo aps
expirado o perodo de uma ano referido no pargrafo anterior,
dever ordenar o retorno da criana, salvo quando for provado que
a criana j se encontra integrada no seu novo meio. [...]
No se desconhece, na hiptese, que podem ocorrer em deter-

minadas situaes (graves e excepcionais) deslocamentos e reten-
es que so considerados legtimos, dado a necessidade de se afastar
de outro dano maior. H, inclusive, previso expressa nesse sentido.
Observe-se a previso do artigo 13:
Sem prejuzo das disposies contidas no Artigo anterior, a autori-
dade judicial ou administrativa do Estado requerido no obrigada
a ordenar o retomo da criana se a pessoa, instituio ou organismo
que se oponha a seu retomo provar: [...]
b) que existe um risco grave de a criana, no seu retorno, ficar
sujeita a perigos de ordem fsica ou psquica, ou, de qualquer outro
modo, ficar numa situao intolervel.
A autoridade judicial ou administrativa pode tambm recusar-se a
ordenar o e retorno da criana se verificar que esta se ope a ele
e que a criana atingiu j idade e grau de maturidade tais que seja
apropriado levar em considerao as suas opinies sobre o assunto.
Ao apreciar as circunstncias referidas neste Artigo, as autorida-
des judiciais ou administrativas devero tomar em considerao as
informaes relativas situao social da criana fornecidas pela
Autoridade Central ou por qualquer outra autoridade competente
do Estado de residncia habitual da criana.
Do mesmo modo, regulamenta o artigo 20: O retomo da criana

de acordo com as disposies contidas no Artigo 12 poder ser recu-
sado quando no for compatvel com os princpios fundamentais do
Estado requerido com relao proteo dos direitos humanos e das
liberdades fundamentais.
Trata-se, pois, de relevante hiptese na qual se presta a devida
ateno anlise dos contextos especficos, mesmo que excepcionais.
Assim j se decidiu:
[...] Como ensina Jacob Dolinger, as excees devem ser entendidas

em carter humanitrio, visando a evitar que a criana seja enviada
a uma famlia perigosa ou abusiva, a um ambiente social ou nacional
perigoso, como um pas em plena convulso [...] 7. A Conveno da
Haia atende perfeitamente no apenas aos direitos liberdade e
convivncia familiar e comunitria do menor - que no se reduzem,
por bvio, famlia e comunidade do sequestrador -, assegurados
na Constituio da Repblica (art. 227), como tambm ao direito
de ser a criana cuidada pelos pais e de preservar sua identidade,
inclusive a nacionalidade, o nome e as relaes familiares, de acordo
com a lei, sem interferncias ilcitas, como asseguram os artigos 7
e 8 da conveno da ONU sobre os direitos da criana. 8. Apelao
improvida. (TRF-2 - AC: 200551010097929 RJ 2005.51.01.009792-9,
Relator: Desembargador Federal Luiz Paulo Araujo. Data de julga-
mento: 17/10/2007, Stima Turma Especializada).
Destaque-se que a Conveno de Haia de 1980 encontra-se atu-

almente vigente em 78 pases e j contribuiu para a resoluo com
sucesso em vrios casos de subtrao ou reteno indevida de crian-
as. Portanto, o emblemtico e mais conhecido caso brasileiro, bem
como as dificuldades apontadas, devem ser tomados como motivao
para se seguir na trilha do aprimoramento do Direito Internacional
Privado e da proteo superior das crianas.
Alm do mais, cumpre esclarecer que por recomendao
expressa da conferncia de Haia, sempre deve ser tentada uma solu-
o acordada para o retorno das crianas, observando-se que efetiva-
mente um grande nmero de casos resolvido por via da mediao ou
da conciliao, com retorno voluntrio e menos traumtico da criana
ao pas de residncia habitual.
Alm do pragmatismo da conveno e a simplicidade de seu ins-
trumento fundamental, que a ordem de restituio ao pas de resi-
dncia habitual da criana, efetuada da forma mais rpida possvel;
tem-se presente igualmente uma funo que poderia se dizer pedag-
gica, porque se busca servir como desestmulo conduta da subtrao
de crianas de seus lares. Almeja-se, assim, o carter preventivo, na
clareza de sua mensagem de que o sequestro interparental prejudi-
cial criana, que tem direito a manter contato com ambos os pais e a
convivncia comunitria a que est habituada.
3INTERPRETAO SISTEMTICA, SEGUNDO OS NOVOS VALORES DO

DIREITO DE FAMLIA CONTEMPORNEO BRASILEIRO
Se tomado anlogo assunto, contudo circunscrito dentro do ter-

ritrio brasileiro, quanto quele genitor que se desloca ou retm filho
em lugar fora da residncia habitual deste, predominam solues sob
uma perspectiva preponderantemente processual.
No que se refere especificamente mudana de domiclio no
curso da lide, podemos observar o seguinte entendimento dos tribu-
nais nacionais:
Processual civil. Conflito positivo de competncia. Menor [...]

Guarda exercida pela me. Mudana de domiclio no curso da lide.
Irrelevncia. CPC, art. 87. Jurisprudncia do STJ. I. Prevalece o art.
87 do CPC sobre a norma do art. 147, i, do ECA, que tem natureza
absoluta quando, em curso a ao originria, proposta regular-
mente no foro de residncia do menor, o detentor da guarda altera
seu domiclio. II. Precedentes do STJ. III. Inexistncia de circuns-
tncia excepcional a indicar soluo diversa. IV. Conflito conhecido,
para declarar competente o juzo de direito da 3 vara de famlia,
sucesses e cvel de Goinia, GO, o suscitado. (STJ - CC: 94723 RJ
2008/0060262-5, Relator: Ministro Aldir Passarinho Junior. Data de
julgamento: 24/09/2008. Segunda Seo).
Direito constitucional - direito de famlia - direito processual civil
- agravo de instrumento - ao cautelar de distribuio do poder
familiar - modificao de competncia - cdigo de processo civil,
artigo 87 - momento de fixao da competncia - mudana de
domiclio - irrelevncia - recurso provido. - a mudana de domic-
lio da detentora da guarda dos menores, ou de qualquer das partes,
aps a distribuio da ao, no implica em alterao da competn-
cia, nos termos do artigo 87 do cdigo de processo civil. (TJ-MG,
Relator: Moreira Diniz, data de julgamento: 11/06/2015, 4 Cmara
Cvel).
Mesmo que a alterao for para o exterior, a fixao da compe-

tncia impera, vejamos:
1. A mudana de domiclio da menor e de seu representante legal

depois de configurada a relao processual no modifica a com-
petncia firmada no momento em que a ao proposta, depois
de fixada aquela, as modificaes do estado de fato ou de direito
ocorridas so irrelevantes, salvo quando suprimirem o rgo judi-
cirio ou alterarem a competncia em razo da matria ou da hie-
rarquia. Prevalncia do art. 87 do CPC sobre a norma do art. 147, i,
do ECA. Precedentes. 2. Na hiptese, o fato da genitora das meno-
res - detentora da guarda e domiciliadas em Braslia/DF - ter-se
mudado durante o curso da ao para o exterior, levando consigo
suas filhas, ainda assim o art. 87 do CPC prevalece sobre a norma
inscrita no art. 147, i, do Estatuto da Criana e do Adolescente,
que prev que a competncia das aes que envolvem menores
o do foro do domiclio dos pais ou responsveis. 3. Agravo de Ins-
trumento conhecido e provido. (TJ-DF - AI: 70701920118070000
0007070-19.2011.807.0000, Relator: Humberto Adjuto Ulha, data de
julgamento: 08/06/2011. 3 Turma Cvel) 8
De qualquer modo, acredita-se que restringir o manto da discus-

so competncia tcnica no desvela a essncia dos valores funda-
mentais que esto em jogo, em descompasso com as transformaes
atuais no Direito de Famlia.
Parece-nos que o tema de deslocamento ou reteno de criana
e adolescente fora de sua residncia habitual, especialmente em
momento de disputa de guarda, central e diz respeito essenciali-
dade da proteo das pessoas em desenvolvimento da personalidade.
8
Assim ementado: PROCESSO CIVIL - AGRAVO DE INSTRUMENTO - FAMLIA - AO DE
MODIFICAO DE CLUSULA DE VISITA INTENTADA PELAS MENORES CONTRA SEU GENI-
TOR - GUARDA EXERCIDA PELA ME - MUDANA DE DOMICLIO DAS MENORES E DE SUA
GENITORA NO CURSO DA LIDE - IRRELEVNCIA - FIXAO DA COMPETNCIA NO
MOMENTO DA PROPOSITURA DA AO - CPC, ART. 87 - DECLNIO DA COMPETNCIA EM
FAVOR DO DOMICLIO DO GENITOR - IMPOSSIBILIDADE - DECISO REFORMADA.
Por este motivo, tal qual nos fundamentos que aparecem na
base da noo de sequestro interparental, de ndole internacional,
necessita-se compreender melhor a gravidade que o assunto engloba,
mesmo que dentro das fronteiras nacionais. Para tanto, acredita-se
que os contornos processuais no so suficientes, em busca da uni-
dade do sistema brasileiro numa interpretao que leve em conside-
rao as demais fontes legislativas, indicativas dos princpios e valores
atuais para o tema.
Nesse sentido, relevante trazer para o debate a noo de alie-
nao parental. A propsito de uma compreenso adequada do ins-
tituto, Darnall o caracteriza como campanha intencional de um dos
genitores para denegrir ou difamar o outro, interferindo sistematica-
mente na relao parental do filho(a) com o outro genitor, e resistncia
ou desobedincia constante das determinaes da justia.9
descrito por Richard Gardner,10 por outro lado, e conhecido por
Sndrome de Alienao Parental (SAP), o comportamento que a criana
desenvolve quando manipulada pelo genitor alienador para se afastar
voluntariamente do genitor-alvo.
Consideradas as nuances entre os campos da Psicologia e do
Direito de Famlia, a Lei n. 12.318/2010, de sua banda, conceitua alie-
nao parental,11 exemplifica formas de se caracteriz-la12 e prev uma
srie de punies em relao ao alienador.13 A mais leve se refere
9
DARNALL, C. Divorce causalities: Understanding parental alienation. Dallas, Texas: Taylor
Publishing, 2008.
10
GARDNER, Richard. Recent trends in divorce and custody litigation. The Academy Forum, n.
29, p. 3-7, 1985.
11
11 De acordo com o art. 2, constitui a interferncia na formao psicolgica da criana ou
do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avs ou pelos que tenham
a criana ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilncia para que repudie genitor
ou que cause prejuzo ao estabelecimento ou manuteno de vnculos com este.
12
De acordo com os incisos do pargrafo nico do mesmo dispositivo acima referido, exempli-
ficam a alienao parental: I - realizar campanha de desqualificao da conduta do genitor no
exerccio da paternidade ou maternidade;II - dificultar o exerccio da autoridade parental;III
- dificultar contato de criana ou adolescente com genitor;IV - dificultar o exerccio do
direito regulamentado de convivncia familiar;V - omitir deliberadamente a genitor informa-
es pessoais relevantes sobre a criana ou adolescente, inclusive escolares, mdicas e alte-
raes de endereo;VI - apresentar falsa denncia contra genitor, contra familiares deste ou
contra avs, para obstar ou dificultar a convivncia deles com a criana ou adolescente;VII -
mudar o domiclio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivncia da
criana ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avs. (Grifos
nossos).
13
Segundo dispe o art. 6 caracterizados atos tpicos de alienao parental ou qualquer con-
duta que dificulte a convivncia de criana ou adolescente com genitor, em ao autnoma ou
incidental, o juiz poder, cumulativamente ou no, sem prejuzo da decorrente responsabili-
dade civil ou criminal e da ampla utilizao de instrumentos processuais aptos a inibir ou
atenuar seus efeitos, segundo a gravidade do caso: [...] VI - determinar a fixao cautelar do
domiclio da criana ou adolescente; (...) Pargrafo nico. Caracterizado mudana abusiva de
endereo, inviabilizao ou obstruo convivncia familiar, o juiz tambm poder inverter a
advertncia e a mais grave suspenso da autoridade parental. Per-
passa, ainda, este rol, com vnculo ao tema tratado nesta ocasio,
pelas possibilidades de fixao cautelar de domiclio da criana ou do
adolescente.
Apesar de compreendida a problemtica que envolve a reconfi-
gurao da dinmica familiar pelas mos de um magistrado, fato que
as normas em Direito de Famlia se apresentam, com frequncia, como
necessria interdio a quem abusa de um determinado poder. O obje-
tivo reside em racionalizar tenses cujo pano de fundo, muitas vezes,
acompanha-se de um plexo de angstias, ressentimentos e desejos de
vingana refletidos na figura da criana e do adolescente.
Aqui se apresentam, portanto, relevantes pontos de contato
entre as temticas. Se iniciada uma disputa de guarda de filhos dentro
do territrio nacional, no se trata, por bvio, de sequestro segundo o
Direito Internacional Privado, nem tambm, a nosso ver, de mera ques-
to processual.
H, ademais, elementos indicativos de possvel alienao paren-
tal ou abusividade de um dos genitores nas alteraes de residncia
injustificadas em momento de disputa de guarda bem como que tal
postura grave e deve ser prontamente combatida.
Vejamos julgados interessantes nesse sentido:
Agravo de instrumento - direito de famlia - ao de modificao de

guarda [...] - alterao de guarda da filha do casal- indeferimento-
revogao- mudana de domiclio sem qualquer comunicao do
novo endereo- ato que dificulta o exerccio do direito regulamen-
tado de convivncia familiar- lei 12.318, de 2010 - recurso a que se
d provimento. Em face dos indcios de prtica de alienao paren-
tal por parte da me da criana, bem como em razo do pai apre-
sentar condies para ser o guardio, deve ser deferido o pedido.
(des. Marcelo Rodrigues) (TJ-MG - AI: 10521130019016001 MG , Rela-
tor: Raimundo Messias Jnior, data de julgamento: 14/01/2014. 2
Cmara Cvel).
Embargos de declarao [...] Ao de modificao de guarda. Ao

proposta onde o detentor da guarda no mais tem domiclio. Envio
dos autos para o juzo competente. Inexistncia de conflito. 1.
obrigao de levar para ou retirar a criana ou adolescente da residncia do genitor, por oca-
sio das alternncias dos perodos de convivncia familiar. Percebe-se pela citao direta
aos fundamentos legais como a noo de lar diz respeito a medidas que buscam evitar a Alie-
nao Parental. Do mesmo modo, por fora da nova lei da guarda compartilhada obrigatria
(Lei n 13.058, de 2014), tambm assim regulamentou-se: Art. 1.634. Compete a ambos os pais,
qualquer que seja a sua situao conjugal, o pleno exerccio do poder familiar, que consiste
em, quanto aos filhos: (...) V - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua
residncia permanente para outro municpio. (Grifos nossos).
Consoante se verifica das informaes prestadas pelos juzos susci-
tados, no h discrepncia de entendimento acerca da competncia
para julgamento da ao de modificao de guarda, no restando
configurada qualquer das hipteses do art. 115 do CPC. 2. No caso,
tendo a detentora da guarda se mudado para outra comarca, a pro-
positura da ao de modificao de guarda, ajuizada pelo pai nesse
mesmo perodo, l deveria ter se dado, consoante entenderam os
juzos suscitados. No se trata de mudana de endereo depois de
proposta a ao e efetivada a citao. Incidncia do art. 147, i, do
estatuto da criana e do adolescente. 3. Os conflitos de compe-
tncia apontados pelo embargante como representativos da juris-
prudncia desta egrgia corte, tratam, na realidade, de hipteses
excepcionais, em que fica clara a existncia de alienao parental
em razo de sucessivas mudanas de endereo da me com o intuito
exclusivo de deslocar artificialmente o feito, o que no ocorre nos
autos. 4. Desta forma, ausente qualquer equvoco manifesto no jul-
gado, tampouco se subsumindo a irresignao em anlise a alguma
das hipteses do art. 535 do CPC, no merece ressonncia a insur-
gncia em questo. 5. Embargos de declarao rejeitados. (STJ Rela-
tor: Ministro Raul Arajo. Data de julgamento: 30/01/2010. Segunda
Seo).
Trata-se, portanto, de vis complementar de enfrentamento da

temtica, pautada na interpretao sistemtica do ordenamento jur-
dico nacional, numa percepo de que o contexto onde a criana ou
adolescente vive, seu meio social, sua ambincia escolar, sua noo de
lar, devem ser, em princpio, preservados, a no ser que outra situa-
o existencial fundamental afaste esta hiptese o que se imagina
excepcional.
Na sequncia, aventam-se, portanto, as possibilidades legtimas
de rupturas mais significativas no cotidiano infantojuvenil, em obser-
vncia ao exerccio, quando responsvel, de autonomia dos indivduos
que visam a construir novos rumos pessoais e aos filhos aps a dissolu-
o de seus vnculos conjugais.
4ALTERAES LEGTIMAS DA RESIDNCIA HABITUAL
Em funo do que dispe a lei sobre a alienao parental no pas,

passada a fase de seu reconhecimento, urge o desenvolvimento de
pesquisas interdisciplinares capazes de diferenciar, de modo seguro,
quando a limitao estabelecida no convvio entre um dos genitores e
os filhos se caracteriza como violncia e quando se caracteriza como
proteo adequada da criana.
Ou seja, por vezes, excepcionalmente, a prpria alterao da
residncia habitual pode se dar num contexto de proteo dos mem-
bros familiares quando, inseridos os mais vulnerveis em relaes dis-
funcionais, tentam se aproximar de outros parentes ou pessoas que
lhes ofeream solidariedade.
Neste sentido, relevante associar compreenso de aliena-
o parental a ausncia de legtima justificativa para a resistncia da
criana em se relacionar com um dos genitores. Se h abusos, como
sexual, fsico, psicolgico ou prticas educativas parentais precrias
por parte de um dos pais, no h alienao parental por definio.
Trata-se de aspecto de relevante destaque, pois no basta enun-
ciar a mera convivncia como suficiente ao cumprimento dos papeis
parentais. Ilustrativamente, pesquisas evidenciam que em 35% dos
casos o motivo da recusa da criana em conviver com o genitor conec-
tou-se inabilidade ou limitao do outro pai, falta de calor, inte-
resse, sensibilidade pelas necessidades da criana ou rejeio por uso
de alcoolismo ou drogadio ou temperamento violento do genitor ou
padastro/madrasta.14
Em hipteses como as exemplificadas acima, evidentemente, a
mudana de domiclio no significa exerccio abusivo da autonomia de
um dos ex-cnjuges. Pelo contrrio, trata-se de alternativa capaz de
salvaguardar a criana de contextos nos quais a convivncia se apre-
senta, em certa medida, corrosiva ao seu melhor interesse.
5CONSIDERAES FINAIS
O cotejo do tema do sequestro internacional, alienao parental

e guarda compartilhada de filhos, portanto, adequado.
Para alm da aplicao das penalidades acima referidas, eviden-
ciam-se relaes de poder marcadas pelas construes socioculturais
sobre o feminino, o masculino e os infantes, possibilitando-se, ainda,
a um dos genitores exceder os limites de responsabilizao pela prole,
inclusive durante o casamento ou a unio estvel, o que contribui com
a indesejada hierarquizao da relevncia da participao de cada um
dos pais (ou outros familiares) no cotidiano da criana.
O presente momento oportuno para se utilizar a Conveno
de Haia como um relevante fundamento epistemolgico para a tem-
tica e se preencher, com qualidade, o direito convivncia familiar e
comunitria, inclusive nesse aspecto de se evitar a mudana abrupta
BALA, N.; HUNT, S.; MCCARNEY, C. Parental alienation: Canadian court cases 19892008.
14
Family Court Review, v. 48, n. 1, p. 164167, January 2010.
e ilegtima de residncia justamente quando do incio da disputa pela
guarda.
Com efeito, as demais alteraes legislativas no tema da guarda
como a Lei n. 13.058 de 2014 , s no impe o compartilhamento
quando h graves bices ao exerccio do poder parental ou quando
um dos pais manifesta que no deseja exercer a guarda. Compreende-
-se que igualmente o mesmo objetivo deve-se atender ao fixar o foro
segundo aquele de residncia habitual dos filhos.
Com isso, o desafio passa a ser a pulverizao dos focos de abuso
de poder afetivo que, se por um lado, costuma se exercer pela me
em contextos de alienao parental, pode, com facilidade, exercer-se
pelo pai em contextos de guarda compartilhada que no refletem um
real comprometimento conjunto na rotina de cuidados dos infantes.
Portanto, o foco deve se centrar na corresponsabilizao e na busca
adequada de informao que um juzo da localidade melhor poder
averiguar.
Assim, no contribui, necessariamente, para a melhor readequa-
o das personagens da famlia no panorama posterior ao divrcio to
somente uma abordagem processual. Ao revs, devem-se promover
mediaes, solues consensuais bem como, se necessria, a atuao
de uma pluralidade de profissionais que podem contribuir no apenas
em futuro processo de identificao da alienao parental, inclusive
quando da mudana da residncia habitual, mesmo que anterior ao in-
cio do processo, como tambm em corrente processo de preveno de
sua incidncia, planejando, em contato com os pais, o adequado perfil
da responsabilidade parental que se espera experimentar aps a disso-
luo do vnculo entre os adultos.
Assim, diante dos tpicos abordados, e para se tratar dos assun-
tos a eles relacionados, h uma aproximao possvel entre a noo
de sequestro interparental este, atinente ao Direito Internacional
e a questo processual acerca da mudana de domiclio dos pais (ou
partes) no curso da lide a influenciar o foro de discusso da guarda,
luz dos relevantes fundamentos valorativos do Direito de Famlia con-
temporneo. Estas matrias, se tratadas com a devida ateno, apro-
ximar-se-o pelo pano de fundo da proteo integral da criana
afastando-se eventuais confuses de teor terico e prtico, uma vez
que, a rigor, no necessariamente esto inter-relacionadas.
6REFERNCIAS
BALA, N.; HUNT, S.; MCCARNEY, C. Parental alienation: Canadian court

cases 19892008. Family Court Review, v. 48, n. 1, p. 164167, January
2010.
DARNALL, C. Divorce causalities: Understanding parental alienation.

Dallas, Texas: Taylor Publishing, 2008.
GARDNER, Richard. Recent trends in divorce and custody litigation.

The Academy Forum, n. 29, p. 3-7, 1985.
MRIDA, Carolina Helena Lucas. Sequestro interparental: o novo direi-

to das crianas. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 9, p.
7-16, fev. 2011.
MRIDA, Carolina Helena. Sequestro interparental: princpio da resi-

dncia habitual. Revista de Direito Internacional. Braslia, v. 8, n. 2, p.
255-272, jul./dez. 2011.
SIFUENTES, Mnica. Sequestro interparental: a experincia brasilei-

ra na aplicao da Conveno da Haia de 1989. Revista da SJRJ, Rio de
Janeiro, n. 25, p. 135-144, 2009.
A FUNO SOCIAL DO PROFISSIONAL DE FAMLIA:
DESAFIOS, RESPONSABILIDADES E NOVAS PERSPECTIVAS
Diana Poppe
Advogada de Famlia.
Sumrio: 1. Introduo. 2. Mudana dos tempos. 3. Hist-

ria. 4. Surgimento do profissional de famlia. 5. A constru-
o do novo profissional de famlia. 6. Pilares que precisam
emergir. 7. Consideraes finais. 8. Referncias.
1INTRODUO
O trabalho realizado pretende um reconhecimento da nossa his-

tria recente, que nos leva s novas possibilidades do contexto atual,
para entendermos qual a funo social do operador do Direito de
Famlia nos dias atuais. Minha primeira experincia como advogada de
Famlia, h quinze anos, deu-me a certeza de que, com raras excees,
no h vencedores em disputas judiciais travadas em Varas de Famlia,
mas a lei poca (ano 2000) permitia e incentivava a busca pelo certo e
pelo errado. Hoje, no mais assim.
A primeira parte do trabalho est destinada a contextualizar his-
toricamente o Direito de Famlia no Brasil e a segunda parte convida
a uma reflexo sobre quem o novo profissional de Famlia e o que se
espera da construo desse novo profissional.
2MUDANA DOS TEMPOS
Para contextualizar esta proposta basta a observao da nossa

prpria histria familiar. As possibilidades ofertadas e vividas por nos-
sos pais so completamente distintas das possibilidades ofertadas e
vividas por nossos avs, que so completamente diferentes das nos-
sas possibilidades de escolhas neste momento da histria do pas e que
ser absolutamente diversa das possibilidades dos nossos filhos.
E em um plano de quatro geraes, portanto, temos um cenrio
muito real e fcil de ser acessado, para termos noo da velocidade da
mudana dos tempos e como ela afeta diretamente nossas vidas, por-
que nossas escolhas dependem de nossas possibilidades.
Nesse turbilho incessante de mudanas, ser um operador do
Direito de Famlia nos dias atuais um ato de coragem.
Tudo muda o tempo todo, como j dizia Nelson Motta. E precisa-
mos estar preparados. Como? Tendo conscincia de qual a nossa fun-
o social agora e de que modo delinearamos essa funo.
3HISTRIA
O casamento, hoje, no guarda qualquer semelhana com sua

origem. Antes era principalmente um negcio que j serviu ao
Estado, Igreja em pocas em que vivamos em uma sociedade patriar-
cal, hierrquica, agrria, machista, escravocrata.
No havia interesse social, nem econmico no divrcio e, por-
tanto, essa soluo foi preterida, combatida, renegada e malvista pela
sociedade.
Dos 515 anos do Brasil, durante 477 anos o divrcio no foi pos-
svel. O divrcio passou a ser possvel no dia 26 de dezembro de 1977,
com a promulgao da Lei n. 6.515, elaborada pelo senador Nelson Car-
neiro, que precisou aguardar 26 anos para conseguir a promulgao da
lei, em plena ditadura militar.
A lei dizia em seu artigo 2, inciso IV, que a sociedade conju-
gal terminaria pelo divrcio e, na seo I, que os juzes deveriam pro-
mover todos os meios para que as partes reconciliem ou transijam,
ouvindo pessoal e separadamente cada uma delas e, a seguir, reu-
nindo-as em sua presena, se assim considerar necessrio.
J, o artigo 5 da mesma lei facultava aos cnjuges imputar ao
outro conduta desonrosa ou qualquer ato que importasse em grave
violao dos deveres do casamento e tornassem insuportvel a vida em
comum.
Essa lei representou poca um enorme avano social, na
medida em que viabilizou, embora com inmeras condies, a liber-
dade que representa o divrcio em si.
Fazendo, porm, uma anlise histrica do que culturalmente
representou a Lei do Divrcio pode-se dizer que ela foi um remdio que
curou, mas que deixou um efeito colateral que sofremos at os dias de
hoje.
Isso porque as vrias condies exigidas pela lei, para que a
decretao do divrcio fosse possvel, num Estado paternalista, cria-
ram um terreno frtil para a atribuio de culpas e responsabilidades
ao outro, no momento em que o estado exigia uma prestao de contas
do casal que se divorciava, para decretar, ou no o pedido de divrcio.
E atribuio de culpa ao outro produzautomaticamenteo dis-
curso da vitimizao. A vitimizao impossibilita uma postura de
autoimplicao, mea culpa, assuno de responsabilidades.
No Brasil, a Lei do Divrcio d fora ao movimento feminista que
atinge seu auge na dcada de 1980. A luta da mulher para ocupar outros
e novos espaos dentro da sociedade comea a provocar um equilbrio
entre homens e mulheres dentro da famlia, fazendo cair por terra a
estrutura patriarcal e hierrquica, que era uma realidade at ento.
A Constituio Federal de 1988 assegurou a igualdade de gne-
ros, na teoria.
Acontece que olhando para trs, agora, fica fcil entender o
movimento, mas preciso ter conscincia de que foi um movimento
de lutas. A mulher teve de brigar por seus espaos, e o homem, conse-
quentemente, moldar-se e reinventar seu papel social. Contudo, tudo
isso num cenrio de conflitos, litigios, disputas de poder.
Os anos 1970 e 1980 foram tambm um momento histrico de
revoluo sexual, que proporcionou novas experimentaes e dese-
jos, surgindo a Psicanlise como forma de dar conforto e vazo a esses
novos acontecimentos, mas tudo em meio a um turbilho de preconcei-
tos, j que a sociedade ainda era essencialmente machista e patriarcal.
Nesse cenrio, como dito, a Lei n. 6.515/77 revelou seus efeitos
colaterais: ao abrir caminho para a liberdade individual, imps desvios
que significaram a atribuio de culpas, pois exigia uma justificativa
ao Estado e sociedade as razes do divrcio. E, consequentemente, a
vitimizao e no a auto implicao, o que representou um desperdcio
evolutivo social enorme.
Valendo-se desta mesma lei, surgiram os profissionais especiali-
zados em Direito de Famlia.
4SURGIMENTO DO PROFISSIONAL DE FAMLIA
Vale aqui uma ressalva rpida sobre o pensamento cartesiano

que deu lugar ao pensamento sistmico atual, antes de entrarmos
no surgimento do profissional de famlia. Voltarei a este tema mais
adiante.
O pensamento sistmico uma abordagem atual que amplia
nossa viso sobre o mundo, na medida em que analisa os acontecimen-
tos, sejam eles em plano micro ou macro, de forma a contextualiz-los
dentro de um tempo, uma cultura, viso de mundo, enfim paradigmas
padres de comportamento.
At bem pouco tempo, justamente no momento dos conflitos em
Varas de Famlias para disputas de espaos e poder, tnhamos o pen-
samento cartesiano como padro, dava-se valor s Cincias Exatas,
Engenharia, Matemtica. Os valores eram moldados de forma taxa-
tiva: O certo e o errado. O bom e o mau.
Os profissionais de Famlia surgiram nesse cenrio e, portanto,
renegados. Era considerado um direito menor, menos importante, de
quem preteria a cincia para se entreter com frivolidades. impor-
tante falar sobre isso porque este senso comum implica diretamente
nossa autoestima. Dessa forma, primeiro o grande advogado pedia
para o estagirio cuidar do caso de um amigo, cunhado ou vizinho,
sem qualquer especializao na rea.
Depois, comearam a surgir as grandes disputas judiciais e a
especializao tornou-se necessria, mas voltada para esse cenrio de
lutas por direitos negados pela sociedade at ento, pois ainda havia,
na famlia, todo um preconceito contra a mulher e um privilgio ao
homem. Falava-se em crime de adultrio, mulheres perdiam o direito
de criarem seus filhos, os homens feridos em sua honra no tinham
noo de como criar os filhos, mas eram bem vistos aos olhos da socie-
dade essencialmente preconceituosa. O bom e o mal eram muito claros
no momento do julgamento.
Ento, inmeras batalhas judiciais foram travadas. E o litgio era
uma mxima nas Varas de Famlia. Aprendia-se nas faculdades: pri-
meiro entra com a ao, depois, se for o caso, pensa-se em um acordo.
E o bom advogado era o que mais batalhas judiciais travava nos fruns.
Esse foi um cenrio cultural, paradigmtico, absolutamente
necessrio nesse momento em que se lutava contra os preconceitos e
privilgios de uma sociedade machista, patriarcal e excludente. O cen-
rio onde se criou a cultura do litgio, um era o culpado, o outro era
a vtima: vamos ver quem ganha essa batalha. Famlias inteiras foram
destrudas na busca do certo e do errado, dentro da cultura do pensa-
mento cartesiano de causa e efeito.
Devemos a essas famlias e a esses advogados a grande revoluo
que experimentamos nos dias de hoje.
H cinco anos, com a entrada em vigor da Emenda Constitu-
cional n. 66/2010, a possibilidade de atribuio de culpa pelo divrcio
acabou. Essa emenda, como se sabe, foi iniciativa do Instituto Brasi-
leiro de Deireito de Famlia (IBDFAM) que, por meio do Deputado Sr-
gio Barradas Carneiro, foi outro Carneiro baiano que revolucionou
nosso Direito de Famlia. De um dia para outro tudo mudou. O advo-
gado, acostumado a promover aes judiciais, no tinha mais argu-
mentos para prop-las. Cada cnjuge que desejasse se divorciar tinha
de se responsabilizar por essa deciso, sem precisar mais se justificar,
nem poder culpar ningum, ou mesmo, vitimizar-se. So cinco anos em
um pas com 515 anos de idade. muito pouco. Profissionais do Direito
de Famlia, a sociedade e as instituies, tanto de ensino quanto do
Poder Judicirio, ainda vivem sob a lgica e dinmica do conflito, mas,
com raras excees, no h mais pelo que brigar.
Vivemos um momento em que aps tantas lutas e graas a elas
no precisamos mais nos enfrentar. Os direitos foram conquistados.
J se sabe o papel da mulher dentro da sociedade e da famlia. J se
sabe o papel do homem dentro da sociedade e da famlia. J se sabe
que a famlia uma entidade que deve promover o livre desenvolvi-
mento da personalidade e da felicidade de todos os seus membros, sem
distines.
Vivemos tempos de total liberdade de escolha no mbito privado.
O Estado deixou de ser paternalista. A famlia deixou de ser patriarcal.
As famlias esto se formando cada uma a sua maneira e ser preconcei-
tuoso, hoje, politicamente incorreto. O jogo mudou. E quem o pro-
fissional de Famlia agora? Quem so os clientes agora? Quem so os
juzes e promotores de Famlia agora? O que faremos a partir de agora?
5A CONSTRUO DO NOVO PROFISSIONAL DE FAMLIA
Voltando ao pensamento sistmico, descreve Tnia Almeida em

seu livro Caixa de Ferramentas:
As mudanas paradigmticas se do a partir do consenso sobre a

insuficincia e a ineficcia do paradigma vigente. Por isso mudamos
ao longo do tempo as leis, os comportamentos, a maneira de vestir
etc. Essas mudanas consistem em processos e, por vezes, se do a
partir de um movimento que inclui experimentao do novo e visi-
tas ao antigo jeito de ser ou proceder. Um ir e vir denominado por
Dora Schnitman estado oscilatrio um movimento pendular entre
o novo e o antigo paradigmas at que o mais recente possa se ins-
talar na cultura.1
Importante frisar esse pensamento porque exatamente o

que os profissionais de Famlia vivenciam na sua atuao prtica. A
ALMEIDA, T. Caixa de ferramentas. So Paulo: Dash, 2014, p. 136.

1
dinmica do conflito vem dando lugar, pouco a pouco e cada vez mais,
s formas no adversariais de resoluo desses mesmos conflitos.
Vale aqui destacar a primeira definio do Aurlio sobre conflito:
1.Embate de pessoas que lutam.
H um entendimento geral negativo, pejorativo para a palavra
conflito que, ao final, acaba no entendimento de que para um ganhar o
outro tem de perder.
Instaurado o conflito costumamos agir/reagir e, no, refletir. A
vaidade exaspera-se, porque para a lgica de agredir o outro pressu-
pe a iniciativa de falar bem de si. Inicia-se a batalha pela vitria.
Se falssemos em desacordo, em divergncia de opinio, em dife-
rentes pontos de vista... impasses...
Qualquer uma dessas expresses nos remete curiosidade, no
vitria. E, sem a gana de vencer, mas com vontade de entender, somos
capazes de olhar para o outro, de ouvir o outro, de entender o outro.
O movimento pendular dos novos tempos, portanto, balana
exatamente sobre a noo do que representa o conflito. Algo negativo,
mas necessrio no passado e ainda agora e algo positivo, no futuro
e j agora, uma vez que estamos indo e voltando...
Negativo no passado, porque ele pressupunha os conceitos de
derrota e vitria. Positivo no futuro, porque passa a ressaltar o lado
bom de divergir, que pressupe ouvir, entender, aceitar, adequar, adap-
tar enfim, tantas atitudes que nos tiram de um lugar e, apenas, nos
colocam em outro, mas sempre tomando os interesses do outro em con-
siderao e gerando resolues de benefcio mtuo. Gerenciar conflitos.
nesse momento histrico que podemos estabelecer a funo
social do profissional de Famlia como agente de pacificao social e
no mais agente instaurador dos conflitos em mbito familiar.
Repito que foi importante desempenhar o papel de instau-
rar conflitos para que tenhamos disponveis os direitos que de fato j
temos conquistados na sociedade moderna.
E, voltando pergunta: Quem o profissional de Famlia agora?
Quem so os clientes agora? Quem so os juzes e promotores de Fam-
lia agora? O que faremos a partir de agora?
O pensamento sistmico foge da lgica cartesiana, integra con-
ceitos, disciplinas e fontes de saber e cincia e veio ampliar nossa lgica
adversarial, introduzindo conhecimentos da Psicanlise na nossa pr-
tica. A doutrina e jurisprudncia produzidas recentemente j so cla-
ras, ao introduzirem a necessidade de se focar na subjetividade das
demandas pessoais, muito mais do que na objetividade dessas mesmas
demandas. Entender o que est por trs da fala de um cliente, ou de uma
parte em processo instaurado, um atributo fundamental para a reali-
zao de um bom trabalho em direito de famlia. A lgica das Leis e do
certo e errado, deixou de fazer sentido e o profissional que estava acos-
tumado com ela precisa se reinventar urgentemente, sob pena de per-
der o bonde da histria.
importamente citar, neste momento, um pequeno trecho do
livro Princpios Fundamentais e Norteadores do Direito de Famlia,
escrito por Rodrigo da Cunha Pereira:
Uma das grandes contribuies da psicanlise prtica jurdica

que, ao revelar uma outra realialidade que psquica, desvenda uma
subjetividade e razes inconscientes (se que o inconsciente tem
alguma razo) que faz quebrar a mxima jurdica:o que no est nos
autos no est no mundo. Embora no esteja ali no mundo objetivo
dos autos, as razes subjetivas e o gozo esto presentes, perpas-
sando a cena objetiva do processo e dando ao mundo dos autos um
destino muito diferente daquele que teria se estivesse presentes,
apenas, os aspectos objetivos.2
Nesse momento, vivemos, portanto, uma grande reinveno por-

que advogado, juiz, promotor no so psiclogos, nem terapeutas. Esse
pensamento rpido porque reativo produz resultados adversariais que
j no so em muitos casos necessrios.
Acontece que a postura que se espera do profissional, hoje, no
nem de terapeuta, nem de psiclogo, mas de responsabilidade! Den-
tro do Direito de Famlia, fala-se muito em compartilhamento de res-
ponsabilidades e em dever de cuidado. comum falar-se em uma tica
de responsabilidade, pois essa lgica tambm deve permear a relao
cliente-advogado, parte-Estado.
Da mesma forma que a mudana da lei provocou a autoimpli-
cao da sociedade, provocou a responsabilizao do profissional no
exerccio do seu dever: No tem pacincia? Acha bobagem? Considera
tudo uma grande besteira? Vamos instaurar/seguir com o processo?
Ento essa carreira talvez no seja mais para voc.
O profissional de Famlia no pode mais se eximir de sua res-
ponsabilidade social de aconselhador, com base nas leis, na jurispru-
dncia e na sua experincia. Precisa saber que sua conduta faz toda a
diferena na resoluo de um conflito no mbito familiar.
2
PEREIRA, R. C. Princpios fundamentais norteadores do direito de famlia. 2. ed. So Paulo:
Saraiva, 2012, p. 78.
Por conta do pndulo que vai e volta e por termos vivido tan-
tos anos sob a lgica adversarial, natural que os clientes e partes nos
procurem para repetir o modelo vivido por seus pais, amigos e outros
parentes. At porque, lidamos com um dos momentos mais difceis
da vida das pessoas. O dvrcio devastador. Entramos em cena no
momento em que o mundo desabou, as referncias e projetos deixa-
ram de existir, estamos diante de pessoas fragilizadas, assustadas e
amedrontadas.
O aconselhamento de um advogado de Famlia muito pouco
questionado diante da insegurana do momento de vida das pessoas
que nos procuram. E, se orientamos para a reconstruo, para o ama-
durecimento, para a assuno de responsabilidades, para o enten-
dimento de que no se chegou at ali sozinho, todos erram e todos
acertam e no o momento de culpar ningum, mas momento de
reconstruir dentro das possibilidades limitadas do momento, mas que
tendem a se fortalecer no tempo, dando uma viso de futuro e con-
vidando a uma reflexo mais abrangente da situao, raramente no
conseguimos encontrar um olhar muito mais aliviado e feliz de quem
nos procura.
importante salientar que o profissional de Famlia pode e deve
contar com profissionais de outras reas, sempre que necessrio, para
aplicar seu olhar e entendimento sobre determinadas situaes.
nesse momento que fica claro que ele no precisa ser terapeuta, mas
ter escuta, sensibilidade e interesse, para entender do que se est real-
mente falando e apontar os melhores e possveis caminhos. Essa con-
duta serve para juzes e promotores tambm.
Essa nova prtica, porm, ainda sofrida porque o profissional
consciente de sua responsabilidade encontra no cliente certa expec-
tativa de conflito que ele precisa habilmente desconstruir (com tcni-
cas ferramentas conhecimento terico e prtico), algumas vezes
frustrando, inicicialmente, as expectativas do seu cliente que estava
com sangue nos olhos. preciso ter segurana para no suprir essas
expectativas e apresentar novas abordagens, com opes de caminhos
menos beligerantes e desgastantes!
Alm disso, ultrapassado o estranhamento inicial do cliente que
na grande maioria das vezes facilmente compra a ideia da recons-
truo, o advogado de Famlia, que exerce essa nova prtica e abor-
dagem, ainda encontra no colega, advogado da outra parte, uma nova
barreira, caso ele ainda esteja trabalhando pela simples lgica adversa-
rial. Depois, novamente no cliente, que vai precisar de recursos emo-
cionais para ceder, adequar, repensar, aceitar.
No fcil, no para qualquer um e, como j dito, um ato de
coragem.
Os conflitos so necessrios s vezes, mas cada vez menos e
em pleno momento de mudanas paradigmticas, a prtica anda muito
sofrida para quem j quer fazer diferente.
importante repetir que essa nova prtica no para qualquer
um. Para quem , importante que tenha conhecimento das qualida-
des necessrias inerentes ao novo profissional de famlia e, tambm, das
novas formas no adversariais de resoluo dos conflitos: mediao,
prticas colaborativas, incluso de equipes interdisciplinares etc.
O profissional qualificado, hoje, tem de estar dotado desses
saberes; no que v ser um mediador, o que tambm no para qual-
quer um mas para mapear aquele caso, oferecendo caminhos que
melhor se encaixem para cada caso.
Essa nova forma de atuar traz o protagonismo para o cliente: ele
passa a ser autor do seu destino, ele passa a ter, no s, conscincia de
seus interesses, de suas limitaes, mas tambm dos interesses do outro
e suas limitaes, entendendo a importncia de solues que encon-
trem o benefcio mtuo, reestruturaes que se mostrem duradouras no
tempo e reflitam um exerccio tico da nossa profisso.
Como diz Rodrigo da Cunha Pereira,
Ao trazer para a conscincia do operador do Direito esta outra

cena, tem-se a possibilidade de uma conduta mais tica com o sim-
ples fato de no nos permitirmos ser instrumentos do litgio e no
contribuirmos para o assujeitamento das partes quele gozo.3
6PILARES QUE PRECISAM EMERGIR
Como j mencionado, estamos em pleno movimento de mudana,

uma mudana que no tem previso de findar j que a experimentao
das liberdades individuais nova, recente, e muitas formas de famlia
ainda iro surgir.
O movimento que provocar ao final a mudana de cultura que
se espera no tem de vir s dos advogados.
So trs pilares que precisam emergir conjuntamente: profis-
sionais do Direito de Famlia; sociedade; instituies, sejam de ensino,
seja o Poder Judicirio.
3
PEREIRA, R. C. Princpios fundamentais norteadores do direito de famlia. 2. ed. So Paulo:
Saraiva, 2012, p. 78.
Nesse contexto atual, cabe ao profissional, que vinha trabalhado
exclusivamente sob a tica adversarial se reinventar. Tomar conhe-
cimentos das novas formas possveis de resoluo dos conflitos de
famlia, alm de refletir se se considera apto a encarar a nova conduta
exigida pelos novos tempos, assumindo as responsabilidades inerentes
ao fato de ser um profissional de Famlia, no Brasil, nos dias de hoje.
Cabe s universidades j formarem os novos profissionais sob
essa nova tica, para que eles no tenham de, como ns, se reinventar
ao longo da lida.
At porque, de l sairo os novos advogados, juzes, promotores
e desembargadores. E se eles j sarem preparados, sabero da respon-
sabilidade que tero de enfrentar caso escolham, ou se vejam, dentro
de uma Vara de Famlia. preciso enxergar o novo Direito de Fam-
lia com as singularidades que lhes so inerentes e comear a implan-
tar a ideia de tica da responsabilidade no tratamento de questes to
melindrosas, desde os primeiros passos do aprendizado.
necessrio que o Estado, por meio de seus concursos pbli-
cos, direcione a vocao dos concursados, para que assumam Varas de
Famlia, apenas os que realmente quiserem estar ali, porque repito:
no para qualquer um. claro que esse ponto mais utpico numa
realidade de Brasil, onde, em muitas regies, as Varas so nicas. Con-
tudo, esse um sonho a ser perseguido e, se um dia for feita uma pes-
quisa sobre o impacto de se direcionarem profissionais vocacionados
e bem preparados para seus campos de competncia, otimizando suas
atuaes, certamente ficar evidenciado o ganho econmico deste
tipo de abordagem, sem falar na contribuio para a paz social.
E, por fim, essa conscientizao tem de vir da sociedade. Ns
que atuamos como profissionais do Direito de Famlia somos tambm
mes e pais e tios e avs e maridos e cada um de ns certamente tem
uma experincia pessoal ou prxima para contar.
preciso que haja um amadurecimento da sociedade acerca de
suas responsabilidades e expectativas para que nossa abordagem de
comprometimento deixe de causar choque e passe a ser uma expecta-
tiva natural, a ponto de se um advogado sugerir a briga gratuita o pr-
prio cliente possa procurar por outro.
7CONSIDERAES FINAIS
Vou citar neste momento final uma fala do professor Paulo

Lbo, em seu livro Famlias Contemporneas e as Dimenses da
Responsabilidade:
A famlia, mais do que qualquer outro organismo social, carrega
consigo o compromisso com o futuro, por ser o mais importante
espao dinmico de realizao existencial da pessoa humana e de
integrao das geraes.4
Uma famlia que a gente ajuda a se estruturar, ou se reestruturar,

ter uma experincia vivida por seus descendentes que ir se repetir
num futuro prximo. Da mesma forma que nossos clientes, hoje, ainda
tentam repetir o modelo adversarial enfrentado por seus pais, porque
h uma tendncia a seguir exemplos, sejam eles bons ou maus.
Depois de tantos anos de histria, apesar de estarmos vivendo
momentos de redefinies, quebras de paradigmas e muito trabalho,
a verdade que nunca o cenrio foi to positivo em termos de con-
quistas. As liberdades individuais experimentadas, hoje, transformam
nosso trabalho em um no cessar de novos acontecimentos, em que,
certamente, monotonia no existe.
Temos de estar preparados para desempenharmos bons traba-
lhos, com a certeza de que as consequncias de nossa atuao no uni-
verso micro de cada famlia, que atendemos, tm uma repercusso, a
longo prazo, que representar uma mudana de cultura primordial aos
novos tempos.
O pndulo da mudana vai parar de oscilar quando fincarmos os
dois ps nesse novo mundo que j real, j mudou. Quem no mudar
tambm, vai ficar para trs.
Precisamos fortalecer nossa autoestima e importncia, deixar-
mos de ser vistos pelo senso comum como ameaas de guerra e pas-
sarmos a assumir nosso novo papel de agentes de pacificao social, na
misso de promover a paz, a compreenso e o respeito pelas diferen-
as, conscientes de que no h mais certo errado, justo ou injusto. O
que h na vida so circunstncias e como iremos lidar com elas que
far a diferena.
8REFERNCIAS
ALMEIDA, T. Caixa de ferramentas. So Paulo: Dash, 2014.
FONSECA, E. G. da. Auto-engano. 4. ed. So Paulo: Companhia das

Letras, 2005.
4
LBO, P. L. N. Famlias contemporneas e as dimenses da responsabilidade: teoria e prtica.
Porto Alegre/Belo Horizonte: Magister/IBDFAM, 2012.
LBO, P. L. N. Famlias contemporneas e as dimenses da responsabili-
dade: teoria e prtica. Porto Alegre/Belo Horizonte: Magister/IBDFAM,
2012.
PEREIRA, R. C. Princpios fundamentais norteadores do direito de fam-

lia. 2. ed. So Paulo: Saraiva, 2012.
PEREIRA, R. C. Direito de famlia: uma abordagem psicanaltica. 4. ed.

Rio de Janeiro: Forense, 2012.
REIS, E. F. Varas de famlia: um encontro entre psicologia e direito.

Curitiba: Juru, 2010.
SCHNITMAN, D. Constructivismo, evolucin familiar y proceso tera-

peutico. Sistemas Familiares, 1986.
ALIMENTOS COMPENSATRIOS:
COMPENSAO ECONMICA E EQUILBRIO PATRIMONIAL
Luciano L. Figueiredo
Mestre em Direito Privado pela Universidade Federal da Bahia

(UFBA). Especialista em Direito do Estado pela Universidade Fede-
ral da Bahia (UFBA). Graduado em Direito pela Universidade Salvador
(UNIFACS). Professor de Direito Civil da Faculdade Baiana de Direito
(FBD); Escola dos Magistrados da Bahia (EMAB) e Complexo de Ensino
Renato Saraiva (CERS). Professor Visitante de Especializaes Lato
Sensu de Direito Civil. Palestrante.
Autor de artigos cientficos e livros jurdicos.
Sumrio: 1. Introduo. 2. Alimentos familiares. 3. Ali-

mentos compensatrios. 3.1. Inexistncia de partilha de
bens. 3.2. Desequilbrio econmico na eeao. 3.3. Frui-
o exclusiva de patrimnio comum. 4. Concluses. 5.
Referncias.
Tu te tornas eternamente responsvel por aquilo que cativas.

Antoine de Saint- Exupry
Le Petit Prince (O Pequeno Prncipe)
1INTRODUO
H muito premissa em direito que o ser, para ser humano, h

de gozar de um mnimo existencial; do chamado patrimnio mnimo.
Mister que o sujeito digno tenha acesso ao mnimo de habitao, ves-
turio, educao, lazer, cultura... O homem, sem seus elementos mni-
mos de sobrevivncia, deixa de ser humano; coisificando-se.
Doutrinariamente, Luiz Edson Fachin1 aborda, em monogra-
fia especfica, a necessidade de tutela jurdica do patrimnio mnimo,
o qual de titularidade de todo e qualquer sujeito e contempla bens
materiais e imateriais mnimos necessrios vida digna. Caminhando
1
FACHIN, Luiz Edson. O estatuto jurdico do patrimnio mnimo. Rio de janeiro, Renovar:
2001.
na mesma linha de pensamento e sob a vestimenta de mnimo existen-
cial, Ana Paula Barcelos2 entende ser necessrio, para conferncia de
dignidade, que toda pessoa tenha acesso sade bsica, ensino funda-
mental, justia... O Direito h de proteger este arcabouo de bens.
Em verdade, as luzes de um mnimo existencial foram lanadas
tempos antes, pelo prprio constituinte, ao garantir o salrio mnimo.
Como legado do Presidente Getlio Vargas,3 o art. 7, IV, da Constitui-
o Cidad aborda o tema, instituindo um salrio mnimo fixado em
lei, nacionalmente unificado, devendo ser capaz de atender s neces-
sidades bsicas vitais do sujeito e de sua famlia, como moradia, ali-
mentao, educao, sade, lazer, vesturio, higiene, transporte e
previdncia social.
Ainda em um olhar constitucional, desde 2010 em virtude da
Emenda Constitucional n. 64 a alimentao restou inclusa entre
os direitos sociais, ao lado da moradia, da proteo maternidade,
infncia, ao lazer e assistncia aos desamparados.4
Infere-se, portanto, que como centro de um ordenamento uni-
ficado, a Constituio Cidad clara em sinalizar ser a manuteno
de recursos dignos uma preocupao da ordem do dia. Tal sinalizao
contamina todo o ordenamento jurdico nacional e, inclusive, o tema
alimentos. Alimentos traduzem um direito social, integrante dos direi-
tos e garantias fundamentais e, por conseguinte, da personalidade de
cada indivduo. Trata-se, nesse pensamento, de uma clusula ptrea.
Alimentos devem ser estudados, significados e compreendidos
como um conjunto de recursos e bens capazes de assegurar a inte-
gridade biopsquica dos indivduos. Contudo, estes alimentos apenas
seriam devidos na hiptese de necessidade para manuteno da vida,
segundo um padro social; ou tambm seriam devidos com o escopo
de manuteno de um equilbrio patrimonial aps o desfazimento do
enlace afetivo?
Este , justamente, o tema problema central deste paper. Para
responder a problemtica posta, este artigo perpassar pelos seguin-
tes assuntos: Alimentos familiares; Alimentos compensatrios Inexis-
tncia de Partilha de Bens; Meao desequilibrada e Fruio exclusiva
de patrimnio comum e Concluses.
2
BARCELLOS, Ana Paula. A eficcia dos princpios constitucionais O princpio da digni-
dade da pessoa humana. Rio de janeiro, Renovar: 2002.
3
Atribui-se a Getlio Vargas a instituio do salrio mnimo, por meio da Lei n. 185/1936 e do
Decreto-Lei n. 399/1938. O salrio mnimo, todavia, apenas ganhou vigncia no pas em maio
de 1940, quando o Decreto-Lei n.2.162 fixou os valores.
4
Conferir o art. 6 da CF/88.
2ALIMENTOS FAMILIARES
Alimentos, em uma concepo lata, um instituto da teoria geral

do direito, capaz de transitar pelos diversos braos do Direito Civil.
Fala-se em alimentos nas obrigaes, nos contratos, na responsabili-
dade civil e nas famlias. Relaciona-se ao essencial para a manuteno
da integridade fsico-psquica de cada indivduo, dizendo respeito sua
personalidade e ligando-se aos direitos e garantias fundamentais.
Da significao do aludido conceito, j possvel afastar algu-
mas falsas premissas. Alimentos no traduzem um tema afeto apenas
ao Direito das Famlias, sendo possvel falar-se em alimentos voluntrios
ou, at mesmo, alimentos decorrentes da reparao civil, como ensina
Carlos Roberto Gonalves.5
Atento ao carter amplo dos alimentos, firma a doutrina6 que,
no que tange origem, os alimentos podem advir de relaes familia-
res (alimentos legtimos ou civis); de doao (alimentos convencionais
ou voluntrios) e da prtica de um ato ilcito (alimentos indenizatrios,
compensatrios ou ressarcitrios). Entre estes, em vista do recorte
deste artigo cientfico (im)possibilidade de alimentos compensatrios
por trminos afetivos , avana este artigo na verticalizao dos alimen-
tos familiares, com especial enfoque aos alimentos decorrentes de tr-
minos de casamentos e unies estveis.
Alimentos familiares, legtimos ou civis, como j visto, so aque-
les decorrentes de relao de parentesco, casamento e unio estvel.
Ligam-se obrigao alimentar quando decorrer do parentesco entre
pais e filhos, sendo recprocos ou ao dever assistencial alimentar
quando fruto de casamento, unio estvel ou ligados aos demais paren-
tes, conforme colocam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald.7
Os alimentos familiares, hoje, so enxergados de maneira intuito
personae ou, ainda, necessarium personae8 , pois devidos em razo
de qualidades especficas das pessoas que integram uma relao de
conjugalidade, convivncia ou parentalidade. E no poderia ser dife-
rente, afinal de contas os alimentos se justificam por fora de aspectos
fticos inerentes figura do credor, tais como idade avanada, doena,
5
GONALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. Direito de famlia. 8 ed. So Paulo:
Saraiva, 2011, v. 6, p. 502-503.
6
GONALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. Direito de famlia. 8 ed. So Paulo:
Saraiva, 2011, v. 6, p. 502.
7
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das famlias. Salvador: Juspo-
divm, 2012, p. 784.
8
Malgrado o carter personalssimo, o Cdigo Civil vigente, inovando a legislao pretrita,
firma a possibilidade de transmisso dos alimentos, como bem posto no art. 1.700. Nessa linha
posicionam-se, por exemplo, FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das
famlias. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 680.
falta de emprego, incapacidade etc... Tanto assim que o Cdigo Civil
claro ao prescrever que o casamento, a unio estvel, o concubinato ou
a indignidade do credor, em relao ao devedor, acarretaro na extin-
o do crdito alimentar.9
Os alimentos legtimos podem ser avaliados de acordo com a sua
extenso, dividindo-se em civis ou cngruos e, finalmente, indispens-
veis, naturais ou necessrios.
Nas lies de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald,10
o codificador nacional teve inspirao em direito comparado, afinal, o
Cdigo Civil chileno, no seu art. 323, disciplina os chamados alimen-
tos cngruos, destinados manuteno do credor em todos os seus
aspectos vitais e sociais. Na mesma linha coloca-se o Cdigo Civil
argentino, quando no art. 372 inclui dentro dos alimentos as despe-
sas ordinrias e extraordinrias. No Brasil, os alimentos cngruos
esto previstos como regra, no art. 1.694 do Cdigo Civil. Prestam-se
manuteno do status quo, de modo a assegurar a mantena do padro
de vida (condio social) at ento existente. Justo por isso, verbera
Orlando Gomes11 envolver a prestao alimentar um rol exemplificativo,
varivel em cada situao.
Aqui passa a ser entendida a possibilidade jurdica de amplas not-
cias veiculadas na mdia em torno de penses alimentcias em valores
astronmicos para os padres nacionais. Exemplifica-se com a devida
9
Vide o art. 1.708 do CC/02.
Ressalta-se, porm, que, em regra, pouco importa o casamento, a unio estvel ou o concubi-
nato do devedor, ao passo que no capaz de alterar a obrigao alimentar. Ademais, o credor
poder constituir namoro, no sendo este fato capaz, igualmente, de extinguir o seu crdito
alimentar. Neste sentindo, um precedente do Superior Tribunal de Justia:
DIREITO DE FAMLIA. CIVIL. ALIMENTOS. EX-CNJUGE. EXONERAO. NAMORO APS A
SEPARAO CONSENSUAL. DEVER DE FIDELIDADE. PRECEDENTE. RECURSO PROVIDO. I
No autoriza exonerao da obrigao de prestar alimentos ex-mulher o s fato desta
namorar terceiro aps a separao. II A separao judicial pe termo ao dever de fidelidade
recproca. As relaes sexuais eventualmente mantidas com terceiros aps a dissoluo da
sociedade conjugal, desde que no se comprove desregramento de conduta, no tm o con-
do de ensejar a exonerao da obrigao alimentar, dado que no esto os ex-cnjuges
impedidos de estabelecer novas relaes e buscar, em novos parceiros, afinidades e senti-
mentos capazes de possibilitar-lhes um futuro convvio afetivo e feliz. III Em linha de princ-
pio, a exonerao de prestao alimentar, estipulada quando da separao consensual,
somente se mostra possvel em uma das seguintes situaes: a) convolao de novas npcias
ou estabelecimento de relao concubinria pelo ex-cnjuge pensionado, no se caracteri-
zando como tal o simples envolvimento afetivo, mesmo abrangendo relaes sexuais; b) ado-
o de comportamento indigno; c) alterao das condies econmicas dos ex-cnjuges em
relao s existentes ao tempo da dissoluo da sociedade conjugal (STJ REsp: 111476-MG,
Relator: Ministro Slvio de Figueiredo Teixeira, Data de Julgamento: 25.03.1999, T4 Quarta
Turma).
10
divm, 2012, p. 831.
11
GOMES, Orlando. Direito de famlia. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 427.
por Alexandre Pato Sthefany Brito,12 no valor de cerca de R$ 50.000,00
(cinquenta mil reais) mensais, por determinado perodo; ou por Fer-
nando Collor Roseane Collor, em trinta salrios mnimos mensais;13
ou, ainda, naquela que a mdia adjetiva como a maior penso alimentcia
existente no Brasil: a devida por Flvio Maluf Jaqueline Coutinho Tor-
res Maluf,14 no valor de R$ 217.000,00 (duzentos e dezessete mil reais)
mensais.
J os alimentos ditos necessrios visam apenas a sobrevivncia
do credor, sem nenhuma ateno manuteno de seu padro social.
So excepcionais e esto previstos no 2 do art. 1.694 e no pargrafo
nico do art. 1.704, ambos do Cdigo Civil. Trata-se de modalidade dire-
tamente relacionada situao jurdica da culpa pelo trmino do rela-
cionamento. Explica-se. Na literalidade do Cdigo Civil, o culpado pelo
trmino do relacionamento estar, em regra, alijado de eventual pleito
alimentar. Caso, porm, o culpado venha a necessitar de alimentos, no
tenha aptido para o trabalho e nem parentes em condies de prest-
-los, o inocente pelo trmino do relacionamento ser obrigado adimplir
com esta verba, em valor mnimo necessrio sobrevivncia (alimentos
necessrios).15
Entende-se por culpado pelo trmino do relacionamento aquele
que infringiu gravemente um dos deveres relacionais e tornou impos-
svel continuidade da vida em comum. Reflexo interessante, porm,
gira em torno da suposta abolio do instituto jurdico da culpa, em
decorrncia da Emenda Constitucional n. 66/2010, e de seus efeitos
em relao aos dois supracitados preceitos normativos do Cdigo Civil.
Entendendo-se que o instituto da culpa nas dissolues afetivas, defi-
nitivamente, foi retirado do mundo jurdico pela Emenda do Divrcio, a
consequncia seria o reconhecimento da no recepo superveniente
dos artigos supracitados, de modo a no mais se aceitar a aludida clas-
sificao de alimentos necessrios e sua extirpao do ordenamento
jurdico nacional. Trata-se, aqui, do posicionamento francamente majo-
ritrio, defendido, por exemplo, por Maria Berenice Dias.16
Registra-se que hodiernamente h interessante construo dou-
trinria e jurisprudencial em oposio ao carter temporal indetermi-
nado dos alimentos entre cnjuges e companheiros. H um comprovado
12
Disponvel em: <http://ambito-juridico.jusbrasil.com.br/noticias/2282771/juiza-fixa-
-pensao-sthefany-brito-em-20-dos-ganhos-de-alexandre-pato>. Acesso em: 22 set. 2015.
13
Disponvel em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/11/stj-fixa-pensao-de-r-
20-mil-para-ex-mulher-de-collor-por-mais-3-anos.html>.Acesso em: 22 set. 2015.
14
Disponvel em: <https://areadetrabalho.wordpress.com/2008/01/22/filho-de-paulo-
-maluf-paga-pensao-alimenticia-milionaria/>. Acesso em: 22 set. 2015.
15
Vide art. 1.694 e1.704, ambos do CC/02.
16
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famlias. 10. ed. rev., atual. e ampl. So Paulo:
Revistas dos Tribunais, 2015,p. 575.
receio de que, em determinadas situaes, a estipulao de penso ali-
mentar por prazo indeterminado ocasione ao credor acomodao, sem
nenhum tipo de incentivo na busca de meios prprios subsistncia
e crescimento financeiro. Pior. Alimentos definitivos podem gerar um
enriquecimento sem causa, no momento em que aquele credor passa a
ter novas fontes de renda e, ainda assim, mantm-se recebendo crditos
alimentares.
Nascem, ento, os alimentos transitrios ou resolveis, os
quais tm por escopo evitar o enriquecimento sem causa e o abuso; ou,
ainda, a desproporcionalidade que em certos casos pode advir da fixa-
o alimentar por prazo indeterminado. Servem a viabilizar o retorno
do credor de alimentos, dentro de um determinado espao prefixado
de tempo, ao mercado de trabalho. A verba ser ajustada segundo um
termo ad quem, aps o qual tais alimentos sero automaticamente can-
celados. Evita-se o cio do credor que, em conduta abusiva, poderia
beneficiar-se eternamente da clusula rebus sic stantibus e jamais reti-
rar-se da situao ftica de necessidade. Traduzem a certeza de que os
alimentos no se prestam a uma prvia aposentadoria ou a um suced-
neo previdencirio.
A linha do pagamento dos alimentos transitrios aqui explici-
tada j fora acolhida pelo prprio Superior Tribunal de Justia, quando
no REsp. n.1.025.769/MG firmou serem tais alimentos cabveis quando
o alimentando pessoa com idade, condies e formao profissio-
nal compatveis com uma provvel insero no mercado de traba-
lho, necessitando dos alimentos apenas at que atinja sua autonomia
financeira, momento em que se emancipar da tutela do alimentante
outrora provedor do lar que ser ento liberado da obrigao a
qual se extinguir automaticamente.
Tendo em vista o recorte eleito para este paper, entre os alimen-
tos familiares, queles que ganham maior importncia o entre cnju-
ges e companheiros, decorrentes de um dever assistencial alimentar e
intimamente ligados mtua assistncia.
Em tais alimentos no h grandes discusses quanto ao obrigado.
Obviamente, ser o ex-cnjuge ou ex-companheiro. O seu fato gerador
ser, justamente, um dos importantes deveres pessoais do casamento
e da unio estvel: a mtua assistncia.17 Tal assistncia tanto moral
como material. Assim, devem os cnjuges e companheiros prover-se
reciprocamente, objetivando alicerar a vida a dois. Enquanto existir
unio estvel ou casamento, com a presena de fato da entidade familiar,
possvel afirmar a mtua assistncia e, por via de consequncia, a des-
necessidade do pleito alimentar apartado, porquanto sua subsistncia
Na forma dos arts. 1.566 e 1.723, ambos do Cdigo Civil.

17
dentro do prprio liame obrigacional. Logo, no h lgica nem motivo
de ser ajuizada ao de alimentos no curso de um casamento ou unio
estvel. Contudo, possvel que haja uma ruptura da vida em comum
seja na unio estvel, seja no casamento percebendo-se uma sepa-
rao de fato, divrcio ou dissoluo da unio estvel. Aqui, a mtua
assistncia relacional projeta-se, sob seu prisma material, colocando-
-se a possibilidade de eventual pleito alimentar. Afinal, como posto por
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald,18 o simples fato de ter
sido dissolvida a relao jurdica matrimonial no pode implicar na
cessao dos efeitos que dela decorrem. So coisas distintas.
Pois bem. Os alimentos entre cnjuges e companheiros, at
ento tratados, so os comezinhos, pagos ms a ms e com o escopo
de manuteno de um padro social (cngruos), alm de adimple-
mento das necessidades bsicas vitais, segundo os balizamentos gerais
j mencionados. Contudo, ser que para alm desses alimentos, seria
possvel enxergar, no ordenamento jurdico nacional, outros que visem
uma espcie de compensao financeira pelo deslinde afetivo?
Sobre isto que se passar a abordar.
3ALIMENTOS COMPENSATRIOS
A primeira notcia sobre o tema a percepo de que, no Bra-

sil, no h norma expressa e sistemtica, dentro do Cdigo Civil, que
regule sobre os alimentos compensatrios entre cnjuges e compa-
nheiros, tendo como fato gerador o desequilbrio econmico-finan-
ceiro advindo do trmino afetivo.
Malgrado este aparente obstculo, o dito no vem sendo motivo
para a ausncia de anlise do tema, o qual tem penetrado o Direito bra-
sileiro por meio da doutrina, do Direito estrangeiro e da jurisprudncia.
Olhando para o Direito aliengena, v-se que o artigo 270 do
Cdigo Civil francs prev a possibilidade de prestao de alimentos
compensatrios, entre os cnjuges, quando a ruptura do casamento
ocasionar desequilbrio econmico e o cnjuge mais abalado financei-
ramente no mais possa ostentar o status social vivenciado ao longo
da vida a dois.19 Ainda segundo a normatizao francesa, um dos con-
sortes pode ser obrigado a dar ao outro prestao destinada a
18
divm, 2012, p. 796.
19
Traduo livre do art. 270 do Cdigo Civil francs: Um dos esposos pode ser obrigado a
prestar ao outro prestao destinada a compensar, dentro da sua possibilidade, a disparidade
que a ruptura do casamento cria nas respectivas condies de vida. Essa prestao possui um
carter forfetrio. A prestao toma forma de capital, cujo montante fixado pelo juiz.
compensar, dentro de suas possibilidades, a disparidade que a ruptura
do casamento ocasionou nas condies de vida. Esta prestao tem um
carter de crdito, tomando forma de capital, cujo valor fixado pelo
juiz, na forma do art. 271do Code de France.20
Em outra importante construo legislativa estrangeira, infere-
-se a redao do artigo 97 do Cdigo Civil espanhol, para o qual o
cnjuge, a quem a separao ou o divrcio produza um desequilbrio
econmico em relao posio do outro, implicando um agravamento
de sua situao em relao ao seu casamento anterior, ter direito a
uma indenizao, a qual poder consistir em uma penso temporria
ou por tempo indeterminado, ou em uma prestao nica, segundo o
que se determine no acordo de regulamentao ou no julgamento.
Tais influncias internacionais, sem dvidas, vm chegando ao
Brasil, por meio de avalizada doutrina, como informa Rolf Madaleno,21
em aluso ao trabalho de Jorge O. Azpiri. Em terras brasilis, o funda-
mento da aludida compensao alimentar a mtua assistncia seja
na unio estvel, seja no casamento , como defende Maria Berenice
Dias.22
O fato gerador da compensao ser a dissoluo do casamento
ou da unio estvel, tendo como fito reestabelecer o equilbrio eco-
nmico entre os consortes, em ateno ao disparate no status econ-
mico e social causado pela dissoluo afetiva. Se o desequilbrio no
foi ocasionado pelo trmino afetivo, no h que se falar em alimen-
tos compensatrios. Logo, no hiptese de compensao alimentar
diminuio de padro social gerada em ambos os cnjuges por conta
da necessidade de se manter com novas despesas dali por diante,
como bem posto por Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald.23
Segundo Maria Berenice Dias,24 alimentos compensatrios no
se confundem com os usualmente decorrentes das relaes familia-
res, os quais devem, em regra, ser fixados com termo certo, assegu-
rando-se ao alimentando tempo hbil para a sua insero, recolocao
ou progresso no mercado de trabalho. Arremata a autora que tais ali-
mentos compensatrios no tm por finalidade suprir as necessidades
de subsistncia do credor, mas corrigir ou atenuar grave desequilbrio
20
Traduo livre do art. 271 do Cdigo Civil francs: A prestao compensatria ser fixada
segundo as necessidades do cnjugea quem se deve pagar e os recursos do outro, levando em
conta a situao no momento do divrcio e a evoluo desta no futuro possvel.
21
MADALENO, Rolf. Curso de direito de famlia. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 728.
22
Revistas dos Tribunais, 2015, p. 595.
23
divm, 2012, p. 814-816.
24
econmico-financeiro ou abrupta alterao do padro de vida do cn-
juge desprovido de bens e de meao.
Para Rolf Madaleno,25 tem os alimentos compensatrios o pro-
psito especfico de evitar o estabelecimento de um desequilbrio
econmico entre os consortes. Arremata o autor: Os alimentos
compensatrios corrigem essa distoro e restabelecem o equilbrio
material.
Como adverte Rodrigo da Cunha Pereira,26 prestam-se os ali-
mentos compensatrios manuteno do padro social ou econ-
mico de algum em situaes nas quais a relao matrimonial longa
e o histrico de cooperao conjugal resta comprovado. Justifica-se
quando um dos cnjuges sofre queda brusca no padro social e econ-
mico que mantinha at ento, de modo a necessitar de penso alimen-
tcia reparatria.
O pensamento doutrinrio vem sendo incorporado pelas casas
judiciais nacionais. H um bom nmero de julgados defendendo a tese
da compensao alimentar no Brasil e sua diferenciao dos alimentos
regulares. Cita-se deciso do Superior Tribunal de Justia:27
PROCESSUAL CIVIL. DIREITO CIVIL. FAMLIA. SEPARAO JUDI-

CIAL. PENSO ALIMENTCIA. BINMIO NECESSIDADE/POSSI-
BILIDADE. ART. 1.694 DO CC/2002. TERMO FINAL. ALIMENTOS
COMPENSATRIOS (PRESTAO COMPENSATRIA). POSSIBILI-
DADE. EQUILBRIO ECONMICO-FINANCEIRO DOS CNJUGES.
JULGAMENTO EXTRA PETITA NO CONFIGURADO. VIOLAO
DO ART. 535 DO CPC NO DEMONSTRADA.
[...]. 4. Em tais circunstncias, a suposta contrariedade ao princpio
da congruncia no se revelou configurada, pois a condenao ao
pagamento de alimentos e da prestao compensatria baseou-se
nos pedidos tambm formulados na ao de separao judicial, nos
limites delineados pelas partes no curso do processo judicial, con-
forme se infere da sentena. 5. Os chamados alimentos compensat-
rios, ou prestao compensatria, no tm por finalidade suprir as
necessidades de subsistncia do credor, tal como ocorre com a pen-
so alimentcia regulada pelo art. 1.694 do CC/2002, seno corrigir
25
MADALENO, Rolf. Responsabilidade civil na conjugalidade e alimentos compensat-
rios.Disponvel em:<www.rolfmadaleno.com.br>. Acesso em: 23 set. 2015.
26
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Divrcio: teoria e prtica. Rio de Janeiro: GZ, 2010, p.134.
27
Registra-se que h julgados de outros Pretrios Nacionais, a exemplo do Distrito Federal:
ALIMENTOS COMPENSATRIOS. MANUTENO DO EQUILBRIO ECONMICO-FINAN-
CEIRO. Alimentos compensatrios so pagos por um cnjuge ao outro, por ocasio da ruptura
do vnculo conjugal. Servem para amenizar o desequilbrio econmico, no padro de vida de
um dos cnjuges, por ocasio do fim do casamento. Agravo no provido. (TJ/DF. 6 Turma
Cvel, Agravo de Instrumento 20090020030046AGI, Rel. Des. Jair Soares, j. 10.06.2009). (Gri-
fos nossos).
ou atenuar grave desequilbrio econmico-financeiro ou abrupta
alterao do padro de vida do cnjuge desprovido de bens e de mea-
o. 6. Os alimentos devidos entre ex-cnjuges devem, em regra, ser
fixados com termo certo, assegurando-se ao alimentando tempo
hbil para sua insero, recolocao ou progresso no mercado de
trabalho, que lhe possibilite manter, pelas prprias foras, o status
social similar ao perodo do relacionamento. 7. O Tribunal estadual,
com fundamento em ampla cognio ftico-probatria, assentou que
a recorrida, nada obstante ser pessoa jovem e com instruo de nvel
superior, no possui plenas condies de imediata insero no mer-
cado de trabalho, alm de o rompimento do vnculo conjugal ter-lhe
ocasionado ntido desequilbrio econmico-financeiro. [...]
(STJ - REsp: 1290313 AL 2011/0236970-2, Relator: Ministro Antonio
Carlos 3, Data de Julgamento: 12.11.2013, T4 - Quarta Turma, Data de
Publicao: DJe 07.11.2014). (Grifos nossos).
O desejo, na aludida compensao alimentar, como advogam Fl-

vio Tartuce e Jos Simo, a vedao onerosidade excessiva ou ao
desequilbrio negocial quando do trmino do casamento ou da unio
estvel. H ntido dilogo do instituto da compensao alimentar com
os princpios da boa-f objetiva e da funo social dos contratos.28
Visando, portanto, compensao e equilbrio financeiro, nada
obsta que a verba dos alimentos compensatrios seja quitada em uma
nica parcela, valendo-se, por analogia, da regra dos alimentos repa-
ratrios esculpida no pargrafo nico do artigo 950 do Cdigo Civil.
Ainda na analogia, haver ao lesado direito potestativo, a este paga-
mento, em uma nica parcela (Enunciado n. 48 do CJF), desde que
haja possibilidade financeira e razoabilidade em relao ao lesante
condenado (Enunciado n. 381 do CJF), em um juzo de ponderao de
interesses.
Destarte, nada impede que os alimentos compensatrios sejam
pagos de forma fracionada no tempo. No poder, porm, ser a verba
fixada por prazo indeterminado. O descompasso financeiro a ser repa-
rado no h de perdurar por toda vida, sob pena de confundir-se
alimentos compensatrios com alimentos para a subsistncia. De ordi-
nria, ento, a penso alimentcia compensatria no ser vitalcia.
Fato, que, tendo em vista o carter nefito da temtica no pas,
persiste certo nvel de desencontro entre doutrina e jurisprudn-
cia nacionais, mormente no que concerne aos fatos geradores da alu-
dida compensao alimentar. Em interessante estudo sobre o assunto,
TARTUCE, Flvio; SIMO, Jos Fernando. Direito civil. Direito de famlia. 8. ed. So Paulo:
28
Mtodo, 2013, v. 5, p. 425.
Marcellus Polastri Lima e Renata Vitria Oliveira S. Trancoso29 per-
cebem trs das principais causas de deferimento de alimentos com-
pensatrios: a) o desequilbrio econmico ocasionado pela ausncia
de partilha ou bens a serem partilhados; b) o desequilbrio econmico
ainda que existente partilha de bens e c) a compensao pela utiliza-
o, por somente um dos cnjuges, do patrimnio comum.
Sobre estas causas e sua (in)admissibilidade no cenrio nacional
que se passar a abordar.
3.1Inexistncia de partilha de bens
A casustica demonstra que, por vezes, seja por conta da escolha

do regime de bens, seja em razo da ausncia de aquisio patrimonial
nos moldes da comunicabilidade do respectivo regime, a dissoluo
afetiva no vem acompanhada de partilha patrimonial. Exemplifica-
-se com casais que optaram pelo regime de separao convencional
de bens ou, ainda, pela comunho parcial sem aquisies onerosas
durante o casamento.
Em contextos tais possvel verificar uma clara desigual-
dade patrimonial quando da ruptura do relacionamento, sendo vivel,
segundo Flvio Tartuce30 que um dos consortes pleiteie ao outro uma
verba extra, a ttulo de alimentos compensatrios, visando a manter
um mnimo de equilbrio na dissoluo da unio.
A base de clculo dos alimentos compensatrios, para casos
como este, poder ser, segundo Rolf Madaleno, uma penso propor-
cional aos bens e s rendas que conformaram o patrimnio particular
e incomunicvel construdo durante a relao afetiva do casal.31 Visar
esta penso, segue o autor, reduzir os efeitos deletrios surgidos da
sbita indigncia social, causada pela ausncia de recursos pessoais,
quando todos os ingressos eram mantidos pelo parceiro, mas que dei-
xaram de aportar com a separao ou com o divrcio.32
Apesar de sedutor, o instituto na casustica em questo tem
importantes obstculos jurdicos sua implementao; afinal: a) a
escolha do regime de bens feita com autonomia, sem vcios de con-
sentimento, devendo ser respeitada; b) caso desejassem, os consortes
29
LIMA, Marcellus Polastri; TRANCOSO, Renata Vitria Oliveira S. Alimentos compensatrios
e as causas de seu deferimento no Brasil. Revista IBDFAM Famlias e Sucesses, Belo Hori-
zonte: IBDFAM, v. 9, p. 84, maio/jun. 2015.
30
TARTUCE, Flvio. Alimentos compensatrios: possibilidade. Disponvel em: <http://www.
cartaforense.com.br/conteudo/artigos/alimentos-compensatorios-possibilidade/10796>.
Acesso em: 22 set. 2015.
31
MADALENO, Rolf. Curso de direito de famlia. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 727.
32
MADALENO, Rolf. Curso de direito de famlia. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 726-728.
poderiam ter alterado o regime de bens no curso do relacionamento,
no havendo priso obrigacional em um determinado modelo de
regime de bens e c) a aquisio patrimonial fora das hipteses de
comunicabilidade, ou em regime restritivo, ato lcito, o qual no deve
ser mitigado pelo direito por via transversa.
A questo, como dito, no das mais simples.
Na jurisprudncia nacional, h decises de diversas casas judi-
ciais abraando a tese e deferindo tais alimentos. Exemplifica-se com
arestos dos Tribunais de Justia do Distrito Federal e So Paulo:
CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. GRATUIDADE DE JUSTIA.

ALIMENTOS. EX-CNJUGES. PRINCPIO DA SOLIDARIEDADE.
QUANTUM. RAZOABILIDADE.NECESSIDADE DE EXAME DE PRO-
VAS. MATUNEO DA DECISO AGRAVADA.
[...] 2. Em observncia ao princpio da solidariedade, que norteia a
obrigao alimentar, possvel que, no caso de desemprego e de ine-
xistncia de bens, o cnjuge varo garanta ao ex-consorte, alimentos
compensatrios, que, em carter transitrio, visam a ajustar o dese-
quilbrio econmico e a reequilibrar suas condies sociais. 3. No
sendo o agravo de instrumento a via prpria para a discusso apro-
fundada de circunstncias fticas que demandam dilao probat-
ria, impe-se a confirmao da deciso que arbitrou os alimentos
compensatrios em patamar aparentemente razovel ante os crit-
rios que devem pautar a sua fixao. 4. Recurso no provido.
(TJ-DF - AGI: 20140020066405 DF 0006678-74.2014.8.07.0000, Rela-
tor: Cruz Macedo, Data de Julgamento: 09.07.2014, 4 Turma Cvel,
Data de Publicao: Publicado no DJe: 08.08.2014. p. 139). (Grifos
nossos).
Agravo de instrumento. Execuo de alimentos. Alimentos com-

pensatrios (art. 4, pargrafo nico, da Lei n 5.478/68) pactuados
como contrapartida pela renncia da agravada a parte de sua mea-
o. Verba ressarcitria que no est dotada de carter provisional.
Peculiaridade que obsta a imposio da pena de priso, providncia
excepcional, somente aplicvel como medida assecuratria da sub-
sistncia do alimentando. Recurso provido.
(TJ-SP, Relator: Rmolo Russo, Data de Julgamento: 04.09.2015, 7
Cmara de Direito Privado).
Malgrado sedutor, em ateno ao pilar da autonomia privada e

exerccio regular de direito, com todas as vnias e pelos argumentos
contrrios delineados, no h de ser acolhida a tese da compensao,
na hiptese.
3.2Desequilbrio econmico na meao
Outra casustica de deferimento dos alimentos compensatrios

dar-se- quando no trmino do casamento ou da unio estvel o casal
tiver patrimnio a ser partilhado; porm, a simples partilha for inca-
paz de gerar equilbrio econmico razovel. Assim, far-se- necessrio
o arbitramento de alimentos compensatrios, em favor do cnjuge ou
companheiro que sofrer queda no padro de vida desfrutado na cons-
tncia da unio.
Equilbrio econmico-financeiro no diz respeito apenas aos
valores de venda dos bens, mas tambm se relaciona aos possveis fru-
tos gerados pelos mesmos. Veja-se que bens com valores prximos
podem ocasionar rendimentos diversos, seja a ttulo de aluguel, seja
por conta de distribuies de lucros empresariais. Ilustram a situao
Marcellus Polastri Lima e Renata Vitria Oliveira S. Trancoso, com a
seguinte casustica:
V-se, portanto, que haver ou no partilha de bens pode ser cri-

trio indiferente para a fixao dos alimentos compensatrios, j
que, por exemplo, pode um dos cnjuges ter em sua propriedade
uma rentvel empresa enquanto que ao outro reste apenas bens que
no tenham retorno financeiro imediato, por exemplo, a casa onde
habita o redor de alimentos compensatrios. 33
O fato de existir a meao no bice objetivo ao indeferimento

dos alimentos compensatrios, pois mesmo diante de uma partilha,
como no exemplo posto, v-se desequilbrio socioeconmico entre os
ex-cnjuges ou conviventes merecedor de reparo, sendo devida penso
compensatria. Aqui a noo de igualdade substancial impe o acolhi-
mento da tese de alimentos compensatrios.
3.3Fruio exclusiva de patrimnio comum
Outra hiptese de deferimento dos alimentos compensatrios

ocorre quando um dos cnjuges utiliza, de maneira exclusiva, bens
comuns do casal capazes de gerar rendimentos exclusivos. Neste caso,
ensina de Maria Berenice Dias,34 ser devida compensao financeira
ao alijado pelos rendimentos, na razo de cinquenta por cento.
33
LIMA, Marcellus Polastri; TRANCOSO, Renata Vitria Oliveira S. Alimentos compensatrios
e as causas de seu deferimento no Brasil. Revista IBDFAM Famlias e Sucesses, Belo Hori-
zonte: IBDFAM, v. 9, p. 86, maio/jun. 2015.
34
Diferentemente das duas outras hipteses trabalhadas, a ora
analisada tem embasamento legal no pargrafo nico do artigo 4 da
Lei de Alimentos, segundo o qual:
Art. 4 - Se se tratar de alimentos provisrios pedidos pelo cnjuge,

casado pelo regime da comunho universal de bens, o juiz determi-
nar igualmente que seja entregue ao credor, mensalmente, parte
da renda lquida dos bens comuns, administrados pelo devedor.
Data venia, h na hiptese compensao financeira por fora
da copropriedade e vedao ao enriquecimento sem causa, indepen-
dentemente do matrimnio ou da unio estvel, bem como do regime
de bens. Cita-se precedente oriundo do Tribunal de Justia de Santa
Catarina:
APELAO CVEL E ADESIVO. FAMLIA E PROCESSUAL CIVIL.

AO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUO DE UNIO EST-
VEL, PARTILHA E ALIMENTOS. - PROCEDNCIA PARCIAL NA ORI-
GEM. RECURSO DO RU. [...] (3) ALIMENTOS COMPENSATRIOS.
PATRIMNIO COMUM. DESVIRTUAMENTO DOS FINS DA VERBA
ALIMENTAR. VERBA INDEVIDA. SENTENA EXTRA PETITA. PRES-
SUPOSTOS PERCEPO DA VERBA ALIMENTAR AUSENTES.
- Parcela da doutrina e da jurisprudncia sustentam a existncia
dos chamados alimentos compensatrios, que cumpririam funes
diversas: (1) reequilbrio econmico financeiro dos companheiros,
amparando o mais desprovido, ou (2) indenizar o outro pela frui-
o exclusiva de bem comum. - No que diz com a primeira funo
(melhor seria cham-los de alimentos sociais), no se presta o ins-
tituto a, como se possvel fosse, manter o padro social ostentado
poca da unio estvel; devem ser arbitrados, isso sim, vista da
nova condio que ostentam (normalmente de maiores dificuldades).
Tocante segunda finalidade, dizer que, aqui, de alimentos no se
trata, porquanto no serve a verba a fixar contraprestao pelo uso
exclusivo de patrimnio comum pelo companheiro adverso, para o
que deve valer-se o interessado dos meios ordinrios a evitar o enri-
quecimento ilcito de condmino. - Na hiptese, o pedido de alimen-
tos teve espeque na alegada incapacidade da autora de prover o
prprio sustento, o que no se verifica (alimentanda jovem, saud-
vel e em exerccio de atividade laborativa). Destarte, extra-petita
a sentena que defere os alimentos na modalidade compensat-
ria haja vista que o pedido de alimentos no tinha esse carter. [...]
SENTENA ALTERADA. RECURSO DO RU CONHECIDO EM PARTE
E PARCIALMENTE PROVIDO. RECURSO DA AUTORA CONHECIDO
E PARCIALMENTE PROVIDO. (TJSC, Apelao Cvel n. 2015.001024-
1, de Ararangu, rel. Des. Henry Petry Junior, j. 19.02.2015). (Grifos
nossos).
Outros julgados, porm, advogam a possibilidade de pleito desta
verba na seara familiarista, sob a rubrica dos alimentos, fundados no
enriquecimento sem causa e fruio indevida do bem comum. Vejam-
-se precedentes oriundos do Tribunal de Justia do Rio Grande do
Sul:35
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECLARATRIA DE UNIO EST-
VEL. PEDIDO DE FIXAO DE ALUGUEL PELO USO EXCLUSIVO
DE PATRIMNIO COMUM. ALIMENTOS COMPENSATRIOS.
CABIMENTO.
Cabvel a fixao de alimentos compensatrios a ser repassados
pelo companheiro que, depois de rompida a relao, permanece
na administrao do patrimnio ou usufruindo dos bens comuns,
de forma exclusiva, como forma de compor eventual desequilbrio
patrimonial, o que se verifica na hiptese dos autos. DERAM PRO-
VIMENTO. (Agravo de Instrumento N 70064477797, Oitava Cmara
Cvel, Tribunal de Justia do RS, Relator: Jos Pedro de Oliveira
Eckert, Julgado em 16.07.2015).
(TJ-RS - AI: 70064477797 RS , Relator: Jos Pedro de Oliveira Eckert,
Data de Julgamento: 16.07.2015, Oitava Cmara Cvel, Data de Publi-
cao: Dirio da Justia do dia 20.07.2015). (Grifos nossos).
Na mesma toada, h julgados do Tribunal de Justia de Minas

Gerais:36
AGRAVO DE INSTRUMENTO - AO DE RECONHECIMENTO E

DISSOLUO DE UNIO ESTVEL C/C ALIMENTOS E REGU-
LAMENTAO DE GUARDA - ALIMENTOS COMPENSATRIOS
- DESEQUILBRIO PATRIMONINAL - POSSE EXCLUSIVA SOBRE
PATRIMNIO COMUM - VALOR - MINORAO - DECISO PAR-
CIALMENTE REFORMADA Diversamente dos alimentos fundados
no dever de mtua assistncia (artigo 1566, III, do CC/2002), a verba
alimentar de cunho compensatrio visa recompor eventual dese-
quilbrio patrimonial verificado em situaes em que, por exemplo,
um dos cnjuges exera com exclusividade a posse do patrimnio
comum.
35
No mesmo sentido, conferir, ainda: TJ-RS - AI: 70065462921 RS, Relator: Srgio Fernando de
Vasconcellos Chaves, Data de Julgamento: 26.08.2015, Stima Cmara Cvel, Data de Publica-
o: Dirio da Justia do dia 04.09.2015. TJ-RS - AI: 70066259540 RS, Relator: Liselena Schi-
fino Robles Ribeiro, Data de Julgamento: 25.08.2015, Stima Cmara Cvel, Data de Publicao:
Dirio da Justia do dia 28.08.2015. TJ-RS - AI: 70059631028 RS, Relator: Rui Portanova, Data
de Julgamento: 17.07.2014, Oitava Cmara Cvel, Data de Publicao: Dirio da Justia do dia
18.07.2014.
36
No mesmo sentido, conferir, ainda: TJ-MG - AC: 10480130046711002 MG, Relator: Afrnio
Vilela, Data de Julgamento: 06.05.2014, Cmaras Cveis / 2 Cmara Cvel, Data de Publicao:
19.05.2014.
(TJ-MG - AI: 10382140004526001 MG , Relator: Afrnio Vilela, Data
de Julgamento: 03.06.2014, Cmaras Cveis / 2 Cmara Cvel, Data
de Publicao: 11.06.2014). (Grifos nossos).
No diverso o posicionamento do Superior Tribunal de Justia,

acolhido no Agravo de Recurso Especial n. 649.050-MG, relatado pelo
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Este julgamento manteve deciso
oriunda do Tribunal de Justia mineiro, acolhendo os alimentos com-
pensatrios por fruio exclusiva de patrimnio comum.
Trata-se a presente hiptese da mais tranquila, seja diante do
embasamento legal da Lei de Alimentos, seja por conta do regramento
pertinente ao tema condomnio, seja em razo da vasta jurisprudncia
favorvel derredor do assunto.
4CONCLUSES
O Direito fortalece-se, progressivamente, como instrumento de

tutela do ser humano digno. Tal dignidade perpassa, sabidamente, pela
necessidade de verificao de um patrimnio mnimo. Institutos como
alimentos vm sendo revisitados, ressignificados e ampliados, com o
escopo de garantia de um mnimo existencial.
Tanto em uma anlise de direito comparado, como em um vis de
doutrina e jurisprudncia nacionais, amplia-se a noo dos alimentos.
Fala-se em alimentos voluntrios, ressarcitrios e legtimos (familia-
res). Estes, familiaristas, igualmente vm ganhando espao. Defende-
-se a possibilidade de pleito, ao lado dos alimentos regulares, daqueles
intitulados como compensatrios, com vistas busca de equilbrio
econmico-financeiro pelo trmino do relacionamento.
No crvel que em trminos afetivos um dos consortes sofra
os impactos da indulgncia social, com grande baixa patrimonial, aps
anos de investimento pessoal e sem nenhum tipo de compensao
financeira. T es responsvel por aquilo que cativas. Afeto exige res-
ponsabilidade. Responsabilidade leva a reparaes.
Esta noo, porm, no h de ser defendida s cegas. Assim, veri-
ficando-se os fatos geradores da compensao alimentar no Brasil,
conclui-se que:
a) No que tange compensao alimentar por ausncia de bens

partilhar seja em funo da escolha do regime de bens, seja em razo
da inexistncia de bens passveis de comunicao no comunga-
mos da possibilidade. Primus, por ter sido a escolha do regime de bens
realizada segundo padres jurdicos permitidos, em livre manifestao
de vontade e sem nenhum tipo de vcio de consentimento. Secundus,
por ser permitido aos consortes alterao de regime de bens durante o
relacionamento. Logo, no haveria priso obrigacional no regime pri-
mitivo, conferindo o ordenamento jurdico faculdade de mudana. Se
mudana no houve, foi porque desejo comum no existiu. Tertius, por
no haver nenhuma ilicitude apta a reparao, ao passo que o regime
de bens fora eleito em regular exerccio da autonomia e a ausncia de
aquisies patrimoniais conduta lcita.
b) Em relao partilha que gere desequilbrio patrimonial,
concorda-se com a possibilidade de alimentos compensatrios, mor-
mente quando os bens, malgrado com valores similares, gerem frutos
diversos. O equilbrio patrimonial aqui premissa de partilha igualit-
ria, devendo os bens serem analisados no apenas segundo o seu valor
venal, mas tambm consoante seus parmetros de rendimentos.
c) No que tange a alimentos compensatrios em virtude de frui-

o exclusiva de patrimnio comum, enxerga-se, de fato, a necessidade
de reparao, com fulcro no regramento condominial. Se duas pessoas
so coproprietrias de um bem, o qual exclusivamente usufrudo por
apenas umas delas, clarividente a incidncia normatizao buscando
o equilbrio financeiro. Nada impede que o tema seja, inclusive, anali-
sado em Vara de Famlia e sob a rubrica de alimentos, diante de econo-
micidade, celeridade e conexo do assunto em relao competncia.
5REFERNCIAS
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bilidade de aplicao e o campo de incidncia da autonomia privada
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-compensatorios-possibilidade/10796>. Acesso em: 22 set. 2015.
DIREITO E ARTE A MULHER NA OBRA DE CHICO BUARQUE
Ana Louzada
Juza do Distrito Federal. Presidente da Comisso de

Direito de Famlia e arte do IBDFAM Nacional
Professora de Direito de Famlia da Escola Superior da
Magistratura do Distrito Federal- ESMA
O Direito de Famlia deve ser lido, compreendido e at mesmo

desconstrudo por meio da vida cotidiana. A arte de cada poca
expressa, com plenitude, os anseios e o modo de vida de cada socie-
dade. por meio da vida que o direito se constri e a arte mais uma
ferramenta a seu servio. imprescindvel que o operador do Direito
esteja atento s mudanas sociais, que muitas vezes vm expressas na
arte antes mesmo de se traduzir em lei ou jurisprudncia.
Para moldar o decisum base ftica, o operador do Direito vai
tratar cada dispositivo legal como um significante submetido teleo-
logia do sistema. A exemplo da noo de arte contempornea, em que
a obra tratada como um signo que vai proporcionar um espao de
interao com o intrprete, dando margem a uma criao de sentido
calcada na prpria bagagem cultural deste, o Direito precisa tambm
explorar suas fontes como sendo peas integrantes de uma linguagem
capaz de se adaptar s necessidades que irrompem na sociedade.1
Francesco Carnelutti, o principal inspirador do Cdigo de Pro-
cesso Civil italiano, escreveu um livro intitulado A Arte do Direito,2
publicado nos idos de 1949, em que faz meno de que a arte imita a
lei. Segundo ele, todos os autores, tanto das artes quanto do Direito, s
conseguem produzir boas obras quando as faz com amor. Nesse livro,
ele menciona que o legislador quando faz uma lei o faz de forma racio-
nal, j o artista sente com a alma. E se questiona: o que o Direito?
Adverte que Direito e Arte so apenas modos diferentes de enfrentar o
mesmo problema. Eu diria que o Direito nasce da vida e a Arte imita a
vida. Talvez esteja a o ponto em comum entre essas duas cincias.
1
PORCHER JNIOR, Roberto Ernani. Direito e arte: Intersubjetividade e emancipao pela
linguagem. Disponvel em: <http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/gradua-
cao/tcc/tcc2/trabalhos2006_2/roberto_ernani.pdf>. Acesso em: 6 abr. 2016.
2
CARNELUTTI, Francesco. A arte do direito. So Paulo: Pilares, 2013, p. 15. (iBooks).
Camille Paglia, em sua obra Imagens Cintilantes,3 afirma que a
civilizao definida pelo Direito e pela Arte. Para Kandinsky todas as
artesemergem de uma raiz nica, diferenciando-se apenas pelo meio
de expresso. Enfatizava o parentesco entre a pintura e a msica, afir-
mando que leis enigmticas e precisas de composio sempre des-
troem as diferenas, vez que se apresentam sempre como mesmas em
todas as artes. Assim dizia observando as correspondncias fixadas
por Scriabin poder-se ouvir a cor e ver o som.4 acessvel Entendemos
que devemos poder beber de outras fontes que no somente o Direito
para que possamos melhor entender o que se passa no universo fami-
liar. Freud, ao concluir seus estudos sobre feminilidade, afirmou que
quem quiser saber mais sobre a mulher, que consulte os poetas. Lacan
afirmava que a mulher no existe,5 fazendo referncia de que ela o
que no o homem. Assim, o sexo feminino definido negativamente
em relao ao sexo masculino.Simone de Beavoir nos dizia que no
se nasce mulher: torna-se! dizer, as mulheres tornam-se o segundo
sexo na medida em que elas s se definem a partir dos homens. Ou
seja, a prpria histria criou uma imagem invertida da mulher, como se
fosse um reflexo no espelho, em que aparecemos sem poder, sucesso,
fora, determinao e coragem.
Em 1804, Napoleo Bonaparte decretou o Cdigo Civil francs,
em que as mulheres casadas tiveram seus direitos subtrados. Preci-
savam de autorizao do marido para quase tudo. Napoleo limitou o
divrcio somente quando houvesse faltas graves. O marido poderia se
divorciar da esposa por adultrio. J ela, s se ele tivesse tido relaes
com a outra em seu leito conjugal. Ele, quando adltero, pagava uma
multa. J a mulher adltera ia para a cadeia. Este Cdigo no permitia
que a mulher matasse o cnjuge adltero, mas o marido trado quando
a matasse, os juzes, sempre homens, faziam no enxergar.
No Brasil, o direito das mulheres em escolher seus representan-
tes foi garantido em 1932, por meio do Decreto n. 21.076, do Cdigo
Eleitoral Provisrio, aps intensa campanha nacional. Relembro que
at o ano de 1962 a mulher era considerada relativamente incapaz, pas-
sando a ter plena capacidade a partir do Estatuto da Mulher Casada
(Lei n. 4.121/62). Destaco tambm que a mulher desquitada (antes da
Lei n. 6.515/77), possua a pecha de mulher fcil, de mulher sem boa
ndole, ainda que tivesse sido trada no casamento e que por esse
motivo ele tenha resultado na separao do casal.
3
PAGLIA, Camile. Imagens cintilantes. Rio de Janeiro: Apicuri, 2014, p. XI.
4
REINHARDT, Lilian. Disponvel em: <http://www.recantodasletras.com.br/
ensaios/1130018>. Acesso em: 2 fev.2016.
5
LACAN, J. O Seminrio Livro 20.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 24.
Ainda, hoje, a mulher recebe salrio inferior aos homens, em
muitas situaes. Agora no se fala mais em ptrio poder, mas em
poder familiar, atenuando um pouco a equivocada nomenclatura que
ressalvava a supremacia do pai na famlia. Desde agosto de 2006,
contamos com a Lei Maria da Penha, que visa proteger a mulher no
ambiente domstico. E neste panorama que pretendemos inserir as
mulheres de Chico, sejam elas nominadas ou no.
Lamentavelmente, preciso dizer que a cada dez minutos uma
mulher estuprada. De acordo com o Sistema de Informaes de
Agravo de Notificao do Ministrio da Sade (SINAN), h estimativa
de que, no Brasil, pelo menos 527 mil pessoas so estupradas por ano,
e que apenas 10% desses casos chegam ao conhecimento da polcia.
Dessas, 89% das vtimas so mulheres e 70% dos estupros so cometi-
dos por parentes, namorados ou amigos conhecidos da vtima.
O feminino algo que fascina desde sempre grandes poetas e
artistas, assim como os apreciadores de suas obras. A mulher, com seus
enigmas, tema corrente de inspirao das mais variadas formas de
expresso artstica. Desde o mito grego relacionado a Tirsias em
que Zeus e Hera tentam comparar o gozo feminino ao masculino at
a arte contempornea de onde podemos extrair, como exemplo, pre-
sente em nosso cotidiano, as msicas de Chico Buarque o feminino
encanta pelo seu trao de enigma. As msicas escritas por Chico Buar-
que falam do feminino, e falam na voz de uma mulher ainda que can-
tadas por um homem e encantam tantas outras.6
Como o universo feminino bastante complexo, s o direito no
capaz de absorver, compreender e abranger esse todo que se chama
mulher. E hoje enfrentamos mais este desafio que trazer a figura da
mulher no direito, para as msicas deste grande poeta chamado Chico
Buarque. Direito ,,DireitoTendo em vista a vasta obra musical de Chico,
por bvio que no pretendemos esgotar o tema, at porque tivemos
que escolher apenas algumas msicas suas que tratam da questo do
feminino. Destacamos o fato de que quando Chico as nomina, elas pas-
sam a ser objeto de desejo daquele que canta, sendo, pois, uma pessoa
determinada. Ao contrrio, quando quem fala a msica uma mulher,
inominada, como Olhos nos Olhos, Atrs da Porta, Pedao de Mim, ela
quem lamenta a perda do seu amado.
dessa mulher cotidiana, dessa mulher pertencente a alguma
famlia, dessa mulher guerreira, submissa, sozinha, prostituta, homos-
sexual, invisvel, que trataremos hoje, porque as mulheres de Chico so
demasiadamente humanas! Importante lembrar a meno de Adlia
6
ALBUQUERQUE, Raquel Coelho Briggs de. Alm do falo: uma mulher e o gozo feminino. Dis-
ponvel em: <http://www.psicanaliseebarroco.pro.br/revista/revistas/17/
P&Brev17Albuquerque.pdf>. Acesso em: 1 fev. 2016.
Bezerra de Meneses,7 de que no contexto de uma relao afetiva que
se flagra o fundamental do feminino.
Comeamos pela msica em que Chico relata sentimento de
vazio, de falta. a msica Pedao de Mim.8 Ele revela, com perfeio, as
mazelas femininas quando do fim de um relacionamento. A falta se faz
to presente como se o que falta em ns o que realmente importa,
similitude do que dizia Freud a respeito do Complexo de Castrao.
Oh, pedao de mim

Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade o pior tormento
pior do que o esquecimento
pior do que se entrevar [...]
Alm disso, menciona nessa cano sobre a dor da perda de um

filho quando lamenta
[...] Oh, pedao de mim

Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade o revs de um parto
A saudade arrumar o quarto
Do filho que j morreu [...]
Tambm se reporta sobre a perda do filho na msica Anglica,9

dedicada especialmente Zuzu Angel e a morte de seu filho na dita-
dura militar:
Quem essa mulher

Que canta sempre esse estribilho?
S queria embalar meu filho
Que mora na escurido do mar
Quem essa mulher

Que canta sempre esse lamento?
7
MENESES, Adlia Bezerra de. Figuras do feminino na cano de Chico Buarque. 2. ed. Cotia-
-So Paulo: Ateli Editorial, 2001, p. 21.
8
WERNECK, Humberto. Chico Buarque Tantas palavras. Escrita por Chico Buarque em
1977/1978. So Paulo: Companhia das Letras, p. 270.
9
WERNECK, Humberto. Chico Buarque Tantas palavras. Escrita por Chico Buarque e Milti-
nho em 1977. So Paulo: Companhia das Letras, p. 270.
S queria lembrar o tormento
Que fez meu filho suspirar [...]
Ela no se conforma com a morte prematura do filho e no se cala

contra a ditadura. Contudo, diz-se que no ano de 1976 ela foi emudecida
por um atentado sofrido. Contudo, o poeta no permitiu que sua histria
deixasse de ser contada.
Outra msica que trata da relao me/filho O Meu Guri, em 10
que demonstra que as mes s mudam de endereo: so todas iguais.

Essa cano nos conta a vida de um filho que faz trambiques e a me
no consegue enxergar sequer a sua morte. Para ela, ele continua sendo
um guri trabalhador e dedicado. Como bem ressalta Igor Fagundes, 11
ainda que o assunto gire em torno do filho, ser do ponto de vista dela
que a letra ganha corpo.
Quando, seu moo, nasceu meu rebento

No era o momento dele rebentar
J foi nascendo com cara de fome
E eu no tinha nem nome pra lhe dar
[...]
Chega suado e veloz do batente
Traz sempre um presente pra me encabular
Tanta corrente de ouro, seu moo
Que haja pescoo pra enfiar [...]
E nesse universo no poderia deixar de se referir aos casos em

que o homem sai de casa, faz a vida dele l fora, diverte-se, e no final
da noite volta pra casa e a mulher o recebe com os braos abertos.
Infelizmente, ainda h muitos casos de submisso no universo femi-
nino, em que o horizonte so apenas as quatro paredes da casa, no
tendo condies de usufruir da amplido da vida. So mulheres que
no esto prontas para o mercado de trabalho, que dependem econ-
mica e psicologicamente de seu companheiro.
COM AUCAR E COM AFETO12
Com acar, com afeto
10
WERNECK, Humberto. Chico Buarque Tantas palavras. Escrita por Chico Buarque em
1981. So Paulo: Companhia das Letras, p. 318.
11
FAGUNDES, Igor. O meu guri. In: FERNANDES, Rinaldo de (Org.). Chico Buarque, o poeta das
mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos. So Paulo: Leya, 2013, p. 151.
12
WERNECK, Humberto. Chico Buarque, Tantas palavras. Escrita por Chico Buarque em 1966.
So Paulo: Companhia das Letras, p. 148.
Fiz seu doce predileto
Pra voc parar em casa
Qual o qu!
[...]
E ao lhe ver assim cansado

Maltrapilho e maltratado
Ainda quis me aborrecer?
Qual o qu!
Logo vou esquentar seu prato
Dou um beijo em seu retrato
E abro os meus braos pra voc
Da mesma forma, a mulher sofredora se mostra e se diz em Atrs

da Porta,13 numa demonstrao de fragilidade e medo ao ser deixada
por seu amado. Aqui, percebe-se o antagonismo de se arrastar e arra-
nhar, demonstrando um inequvoco jogo de contrastes.
Quando olhaste bem nos olhos meus

E o teu olhar era de adeus, juro que no acreditei
Eu te estranhei, me debrucei
Sobre o teu corpo, e duvidei
E me arrastei, e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
No teu peito, teu pijama
Nos teus ps, ao p da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrs da porta
Reclamei baixinho
Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preo
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que inda sou tua
At provar que inda sou tua
Em Trocando em Midos,14 Chico aborda o fim do amor, to

comumente encontrado nas Varas de Famlia, e o faz mesclando sobras
e sombras, isto , o nvel material e o propriamente espiritual, efeti-
vando-se a partilha de todo o patrimnio afetivo-cultural que ambos
13
WERNECK, Humberto. Chico Buarque, Tantas palavras. Escrita por Chico Buarque e Francis
Hime em 1972. So Paulo: Companhia das Letras, p. 196.
14
WERNECK, Humberto. Chico Buarque, Tantas palavras. Escrita por Chico Buarque e Francis
Hime em 1978. So Paulo: Companhia das Letras, p. 282.
dividiam: a fitinha do Bonfim (que traria sorte), o disco do Pixinguinha,
o livro do Neruda, a aliana e a esperana.15
Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim

No me valeu
Mas fico com disco do Pixinguinha, sim!
O resto seu
Trocando em midos, pode guardar

As sobras de tudo que chamam lar
As sombras de tudo que fomos ns
As marcas de amor nos nossos lenis
As nossas melhores lembranas
Aquela esperana de tudo se ajeitar

Pode esquecer
Aquela aliana, voc pode empenhar
Ou derreter
Mas devo dizer que no vou lhe dar

O enorme prazer de me ver chorar
Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago
Meu peito to dilacerado
Alis
Aceite uma ajuda do seu futuro amor
Pro aluguel
Devolva o Neruda que voc me tomou
E nunca leu
Eu bato o porto sem fazer alarde

Eu levo a carteira de identidade
Uma saideira, muita saudade
E a leve impresso de que j vou tarde.
Com a msica Tatuagem16 tambm descreveu o sentimento de

uma mulher pelo seu amado, que se doa por inteiro, apesar de no
receber este amor na mesma medida.
[...] E tambm pra me perpetuar

Em tua escrava
15
MENESES, Adlia Bezerra de. Figuras do feminino na cano de Chico Buarque. 2. ed. Cotia-
-So Paulo: Ateli Editorial, 2001, p. 33.
16
WERNECK, Humberto. Chico Buarque, Tantas palavras. Escrita por Chico Buarque e Ruy
Guerra em 1972/1973. So Paulo: Companhia das Letras, p. 209.
Que voc pega, esfrega
Nega, mas no lava [...]
E quando ela chega ao limite do suportvel, qualquer situao

contrria pode ser a Gota dgua 17
[...] Deixe em paz meu corao

Que ele um pote at aqui de mgoa
E qualquer desateno, faa no
Pode ser a gota dgua [...]
H momentos em que o amado diz pra ser feliz e passar bem

(Olhos nos Olhos), ocasio em que ela segue em frente, carregando cor-
18
rentes, mas no se entregando ao destino infeliz. Recompe-se e d a

volta por cima.
[...] quantos homens me amaram bem mais e melhor que voc!

Olhos nos olhos, quero ver o que voc diz
Quero ver como suporta me ver to feliz [...]
Outra cano que retrata a vida da mulher guerreira, que tem

vrios filhos com diversos homens, e que no se afasta de seus sonhos
A Violeira: 19
Desde menina
Caprichosa e nordestina
Que eu sabia, a minha sina
Era no Rio vir morar
Em Araripe
Topei como chofer dum jipe
Que descia pra Sergipe
Pro Servio Militar
[...]
Tem cabimento
Depois de tanto tormento
Me casar com algum sargento
E todo sonho desmanchar
17
18
19
WERNECK, Humberto. Chico Buarque, Tantas palavras. Escrita por Chico Buarque e Tom
Jobim em 1983. So Paulo: Companhia das Letras, p. 350.
No tem carranca
Nem trator, nem alavanca
Quero ver que que arranca
Ns aqui desse lugar
Por outro lado, h que mencionar tambm Beatriz, a mulher inal- 20
canvel. Algum j lembrou que sem sonhar no se vive. A cano

Beatriz pode provocar a reflexo sobre em que medida esse sonhar
uma promessa de felicidade vivida na dimenso da vida diria, valo-
rizada enquanto processo, construda na conscincia, mas tambm na
fruio do precrio, um precrio enternecido, entretecido, acalentado;
bom viver, apesar da dor. 21
Olha
Ser que uma estrela
Ser que mentira
Ser que comdia
Ser que divina
A vida da atriz
Se ela um dia despencar do cu
E se os pagantes exigirem bis
E se o arcanjo passar o chapu
E se eu pudesse entrar na sua vida [...]
Em Nina, ele expressa a mulher da atualidade, que conhece ape-

22
nas pela internet
[...]
Nina anseia por me conhecer em breve
Me levar para a noite de moscou
Sempre que esta valsa toca
Fecho os olhos, bebo alguma vodca
E vou...
20
WERNECK, Humberto. Chico Buarque, Tantas palavras. Escrita por Chico Buarque e Edu
Lobo em 1982. So Paulo: Companhia das Letras, p. 326.
21
MOUSINHO, Luiz Antonio. Palcos de um planeta: Beatriz. In: FERNANDES, Rinaldo de (Org.).
Chico Buarque, o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos. So Paulo: Leya,
2013, p. 246.
22
Escrita por Chico Buarque em 2010. Disponvel em: <http://www.chicobuarque.com.br/
letras/nina_2011.htm>.Acesso em: 5 set. 2015.
Tambm falou de sentimentos entre mulheres na msica Brba-
ra. Nessa cano, a outra mulher da relao que procura por Brbara
23
e faz referncia ao amor das duas.
[...] Vamos ceder enfim tentao

Das nossas bocas cruas
E mergulhar no poo escuro de ns duas
Vamos viver agonizando uma paixo vadia
Maravilhosa e transbordante, como uma hemorragia [...]
Em Mar e Lua, o amor entre mulheres tambm se mostra pre-

24
sente, mas decantado por uma terceira pessoa que relata a temtica
da homoafetividade, primeiro com a polarizao de mar e lua, e com o
decorrer da msica, elas se fundem e se confundem.
Amaram o amor urgente

As bocas salgadas pela maresia
As costas lanhadas pela tempestade
Naquela cidade
Distante do mar
Amaram o amor serenado
Das noturnas praias
Levantavam as saias
E se enluaravam de felicidade
Naquela cidade
Que no tem luar
Amavam o amor proibido
Pois hoje sabido
Todo mundo conta
Que uma andava tonta
Grvida de lua
E outra andava nua
vida de mar
E foram ficando marcadas

Ouvindo risadas, sentindo arrepios
Olhando pro rio to cheio de lua
E que continua
Correndo pro mar
E foram correnteza abaixo
Rolando no leito
23
24
Engolindo gua
Boiando com as algas
Arrastando folhas
Carregando flores
E a se desmanchar
E foram virando peixes
Virando conchas
Virando seixos
Virando areia
Prateada areia
Com lua cheia
E beira-mar
E tambm fez referncia mulher prostituta em Ana de Amster-

dam. Aqui, a mulher a protagonista e conta sem pudores como sobre-
25
vive, seus sonhos e sua realidade.
Sou Ana de vinte minutos

Sou Ana da brasa dos brutos na coxa
Que apaga charutos
Sou Ana dos dentes rangendo
E dos olhos enxutos
At amanh, sou Ana
Das marcas, das macas, da vacas, das pratas
Sou Ana de Amsterdam [...]
Em Folhetim, tambm fala da mulher que vende o corpo. Con-

26
tudo, aqui ela se mostra dona da situao, ela quem detm o poder e
que manipula quem lhe paga para ter prazer.
[...] Mas na manh seguinte

No conta at vinte
Te afasta de mim
Pois j no vales nada
s pgina virada
Descartada do meu folhetim
25
26
WERNECK, Humberto. Chico Buarque, Tantas palavras. Escrita por Chico Buarque em
1977/1978. So Paulo: Companhia das Letras, p. 259.
Em A Rita, descreve a mulher que terminou com o relaciona-
27
mento, destacando-a como mulher prtica e resolvida, em oposio ao

homem romntico que foi deixado.
A Rita levou meu sorriso

No sorriso dela
Meu assunto
Levou junto com ela
O que me de direito
E arrancou-me do peito
E tem mais
Levou seu retrato, seu trapo, seu prato
Que papel!
Uma imagem de So Francisco
E um bom disco de Noel
A Rita matou nosso amor de vingana

Nem herana deixou
No levou um tosto
Porque no tinha no
Mas causou perdas e danos
Levou os meus planos
Meus pobres enganos
Os meus vinte anos
O meu corao
E alm de tudo
Me deixou mudo
Um violo
E para encerrar trago a cano feminista, que de forma irnica,

nos mostra s avessas, Mulheres de Atenas. Nesta msica h uma 28
enorme crtica famlia patriarcal, machista, denunciando a explorao

da mulher que ainda se perpetua. Aqui, a vontade da mulher inexiste e
mesmo assim, ela sada o homem a quem acredita que deva servido.
[...] Elas no tm gosto ou vontade

Nem defeito, nem qualidade
Tm medo apenas
No tem sonhos, s tem pressgios
O seu homem, mares, naufrgios
Lindas sirenas, morenas [...]
27
28
WERNECK, Humberto. Chico Buarque, Tantas palavras. Escrita por Chico Buarque e
Augusto Boal em 1976. So Paulo: Companhia das Letras, p. 233.
Destarte, por meio deste ensaio tentamos demonstrar a impor-
tncia da Arte na vida e no Direito da mulher brasileira. Ouvindo aten-
tamente as canes de Chico Buarque, talvez o operador do Direito
fique mais prximo do mundo feminino do que se debruando somente
nos tratados de direito sobre o tema. A Arte nos instiga ao imaginrio,
nos lanando ao mundo real. A Arte nos aproxima da vida e por meio
dela talvez consigamos enxergar o outro com mais clareza, exercitando
nossa alteridade. Direito e Arte devem andar de mos dadas, a fim de
que o ser humano possa ser aceito na sua completude, compreendido
e respeitado.
REFERNCIAS
ALBUQUERQUE, Raquel Coelho Briggs de. Alm do falo: uma mulher e

o gozo feminino. Disponvel em: <http://www.psicanaliseebarroco.
pro.br/revista/revistas/17/P&Brev17Albuquerque.pdf>. Acesso em:
1 fev.2016.
CARNELUTTI, Francesco. A arte do direito. So Paulo: Pilares, 2013

(iBooks).
FAGUNDES, Igor. O meu guri. In: FERNANDES, Rinaldo de (Org.). Chico

Buarque, o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos. So
Paulo: Leya, 2013.
FERNANDES, Rinaldo de (Org.). Chico Buarque do Brasil. Rio de Janeiro:

Garamond, 2004.
HOMEM, Wagner. Histrias de canes Chico Buarque. So Paulo: Leya,

2009.
LACAN, J. O Seminrio Livro 20. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
MENESES, Adlia Bezerra de. Figuras do feminino na cano de Chico

Buarque. 2. ed. Cotia-So Paulo: Ateli Editorial, 2001.
MOUSINHO, Luiz Antonio. Palcos de um planeta: Beatriz. In: FERNAN-

DES, Rinaldo de (Org.). Chico Buarque, o poeta das mulheres, dos desvali-
dos e dos perseguidos. So Paulo: Leya, 2013.
PAGLIA, Camile. Imagens cintilantes. Rio de Janeiro: Apicuri, 2014.
PORCHER JNIOR, Roberto Ernani. Direito e arte: Intersubjetividade
e emancipao pela linguagem. Disponvel em: <http://www3.pucrs.
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lhos2006_2/roberto_ernani.pdf>. Acesso em: 6 abr. 2016.
REINHARDT, Lilian. Disponvel em: <http://www.recantodasletras.

com.br/ensaios/1130018>. Acesso em: 2 fev.2016.
SILVA, Fernando de Barros e. Chico Buarque. Folha Explica, So Paulo:

Publifolha, 2004.
WERNECK, Humberto. Chico Buarque Tantas palavras. So Paulo:

Companhia das Letras.
WERNECK, Humberto. Chico Buarque tantas palavras. So Paulo:

Companhia das Letras, 2006.
ZAPPA, Regina. Para seguir minha jornada Chico Buarque. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
A IDEOLOGIA POR DETRS DA MEDIAO
guida Arruda Barbosa
Doutora e Mestra pela USP. Advogada especialista em Direito

de Famlia. Mediadora familiar. Professora de Direito Civil e Mediao.
Membro da Comisso de Direito de Famlia do Instituto dos Advoga-
dos de So Paulo (IASP). Membro do Conselho Cientfico da Revista
Nacional de Direito de Famlia e Sucesses (LEX/IASP). Ex-Presidente
da Comisso de Mediao do IBDFAM 2001 a 2012. Antigo membro
da Fdration Internationale des Femmes des Carrires Juridiques
(FIFCJ).
A vontade tudo. um to grande princpio vital como o Sol.

Contra ela as fatalidades, as febres, o ideal, quebram-se como bolas de
sabo.
(Ea de Queirs)
Sumrio: 1. Introduo. 2. A ideologia por detrs da

mediao. 3. Mediao como modo de regulao social. 4.
Observatrio da mediao. 5. Referncias.
1INTRODUO
A crise do Judicirio tem sido o mote para depositar, na media-

o, a esperana de reduzir o acesso Justia, exclusivamente pela
via da jurisdio do Estado. Espera-se que a mediao seja uma fer-
ramenta capaz de promover uma mudana estrutural do tecido social,
valorizando alternativas, ao cidado, para alimentar o ideal de justia
do seu tempo, buscando a prestao jurisdicional em circuitos de pro-
teo dignidade da pessoa.
Muito se fala de mediao como meio de desafogar o Judici-
rio, como instrumento clere de acesso Justia, menos custoso aos
cofres pblicos e ao jurisdicionado.
No entanto, pouco se fala de mediao como instrumento de
humanizao do acesso Justia, visando formao de um sentimento
de cidadania absoluta, como corolrio ao princpio constitucional da
dignidade da pessoa humana.
Tericos da mediao tendem a classificar este conhecimento
em vrios seguimentos, porm, h um movimento em prol do agru-
pamento destas tendncias em dois grandes grupos: modelo latino e
modelo anglo-saxo.
Dentro de cada um desses modelos, h uma grande variedade de
submodelos, refletindo o multiculturalismo, o que responde indaga-
o: ser que a mediao na Frana a mesma que se pratica nos Esta-
dos Unidos?
claro que cada pas mencionado tem as suas caractersticas
culturais prprias, que norteiam o ideal de justia, como se observa da
prpria organizao do Direito e do sistema jurdico de cada povo, de
acordo com suas razes histricas.
Encontra-se, neste exemplo comparativo, o modelo anglo-saxo,
identificado nos Estados Unidos e o modelo latino Frana.
Contudo, persiste a indagao acerca de qual seria o modelo
mais perfeito de mediao para uma dada realidade social, cuja res-
posta o que se pretende desenvolver neste estudo.
possvel adiantar que este agrupamento da mediao em
modelo latino e anglo-saxo no o suficiente, pois as variveis decor-
rentes do tempo, do lugar e da funo desta prtica em cada cultura
so infinitas, impossibilitando qualquer tentativa de enquadramento,
visto que se trate de um conhecimento universal e ilimitado num
espao de criao. Mediao arte.
2A IDEOLOGIA POR DETRS DA MEDIAO
O desenvolvimento da mediao, no ocidente, tem seu marco

inicial bem definido, qual seja, a dcada de 1960, coincidindo com o
marco histrico da ps-modernidade, inspirada no ps-guerra.
A ps-modernidade uma expresso sociofilosfica que repre-
senta uma doutrina. Jean Carbonnier assim a define:
[...] a irrupo desta doutrina deu-se no Sculo XX, nas dcadas de

70 e 80, porm, o incio desse profundo movimento de reao, no
menos que de progresso, a Declarao dos Direitos do Homem em
1789, marco de ruptura libertria que permitiu o florescimento da
ps-modernidade dois sculos mais tarde.1
Dessa referncia temporal depreende-se que a ps-moderni-

dade uma resposta revolucionria aos valores que deram causa s
duas grandes guerras mundiais, na primeira metade do sculo XX, e
tiveram a expresso mxima de intolerncia no nazismo.
Lus Roberto Barroso2 corrobora a ideia de ruptura com o sis-
tema construdo na modernidade, ao afirmar que entre luz e sombra,
descortina-se a ps-modernidade; o rtulo genrico abriga a mis-
tura de estilos, a descrena no poder absoluto da razo, o desprest-
gio do Estado; [...] uma poca ps-tudo: ps-marxista, ps-kelseniana,
ps-freudiana.
Encontra-se em Erik Jayme3 a sntese das caractersticas essen-
ciais da doutrina ps-moderna, assim sistematizadas:4
a) pluralismo, que pressupe a perspectiva da pluralidade de

estilos de vida e a negao de uma pretenso universal de uma maneira
de ser, visto que o paradigma das verdades absolutas est completa-
mente superado nesta doutrina; o Direito ps-moderno reconhece o
pluralismo de legislaes, de sujeitos de direito, de filosofias, de mode-
los de famlia, enfim, admite todas as alternativas possveis, presti-
giando as diferenas para implantar a igualdade, afinal, o que importa
a a pessoa;
b) comunicao, associado valorizao extrema do tempo,
do direito como instrumento de comunicao, de informao, como
valorizao de passar o tempo nas relaes humanas, valorizao do
eterno e do transitrio; a comunicao o mtodo de legitimao,
visto que a tica e a filosofia so discursivas, e o consentimento legi-
timador somente aquele informado e esclarecido; enfim, trata-se de
uma comunicao de alta complexidade;
c) narrativa, que decorre do impulso de comunicao, de infor-
mao, assim, a mudana paradigmtica contm, em sua essncia,
a busca da alegria de viver, uma experincia humana que quer ser
1
CARBONNIER, Jean. Sociologie juridique. Vendme, Frana: PUF, 1994, p. 145-146.
2
BARROSO, Lus Roberto. A nova interpretao constitucional: ponderao, direitos fun-
damentais e relaes privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 4.
3
JAYME, Erik. Vises para uma teoria ps-moderna do direito comparado. Revista dos Tribu-
nais, So Paulo, n. 759, p. 24 , 1999.
4
JAYME, Erik apud MARQUES, Cludia Lima; CHAPACUZ, Maria Cludia; VITRIA, Ana Paula
da Silva. Igualdade entre os filhos no direito brasileiro atual: direito ps-moderno? Revista dos
Tribunais, So Paulo, n. 764, p. 14, 1999.
contada, narrada, afastando a descrio de condutas, estas prprias
para comportamentos universais, verdades absolutas, que orientaram
os paradigmas da modernidade;
d) retour des sentiments, ou, como afirma Jayme, um revival dos
direitos humanos, revalorizados nesta transio de doutrina moderna
para ps-moderna, com a mudana de paradigma decorrente da des-
construo, da fragmentao do direito, para permitir a valorizao do
sentimento, lembrando que, na modernidade, o valor fundamental era
o pensamento, a razo que podia admitir a verdade absoluta.
Diante deste contexto doutrinrio da ps-modernidade, pre-

ciso identificar a ideologia que est por detrs da mediao, que tem o
seu renascimento justamente na dcada de 1960, simultaneamente nos
Estados Unidos e na Inglaterra, embora os movimentos tenham ori-
gens em ideologias autnomas, completamente diferentes entre si.
O termo ideologia tem diferentes significados, porm, para este
estudo, vale exaltar que se trata de um conjunto de ideias conscientes
e inconscientes, numa viso abrangente. So sistemas de pensamentos
abstratos e comportam uma diviso em dois grandes grupos: neutro e
crtico.
Sob o ponto de vista neutro, ideologia o sinnimo de iderio,
um conjunto de ideias, de pensamentos, de doutrinas ou de vises
do mundo de um indivduo ou um grupo, orientado para suas aes
sociais e polticas.
A concepo crtica de ideologia a entende como instrumento de
dominao que age por meio de convencimento de forma prescritiva,
alienando conscincia humana, pois visa mascarar a realidade.
Em sntese, sempre que se fala em ideologia, preciso situ-la
como concepo neutra, ou iderio, ou, criticamente, conjunto de fer-
ramentas simblicas voltadas criao e/ou manuteno de relaes
de dominao, seja uma frase, um texto, uma notcia, um filme, um dis-
curso etc.
Qual , enfim, a ideologia que est por detrs da mediao, nos
pases anglo-saxes e latinos? Por que a mediao tem sido to valori-
zada e reconhecida pelos sistemas jurdicos e pelas leis?
Para o mediador francs Jean-Pierre Bonafe-Schmitt,5 o fen-
meno da mediao contempornea tem como mbolo uma ideologia,
seja pela interveno do Estado nas relaes privadas, a exemplo do
5
BONAFE-SCHMITT, Jean-Pierre. Disponvel em: <www.observateurdesmediations.
com>Acesso em: 10 mar. 2016.
modelo desenvolvido nos Estados Unidos, ou o chamado modelo anglo-
-saxo, ou o modelo desenvolvido na Frana, ou o chamado modelo
latino, que visa humanizao da prestao jurisdicional.
Como j dito, esta dicotomia no suficiente para a compreen-
so das ideologias que animam os modelos de mediao, porm, tra-
zem os elementos indispensveis para fixar as diferenas de objetivos
de cada uma.
Ambos os modelos decorrem do esgotamento das polticas
pblicas tradicionais para regular os conflitos por meio do Estado,
concluindo que o aumento do nmero de juzes, tribunais, polcia etc.
no resolvem a desorganizao social.
Nos Estados Unidos, foram desenvolvidas polticas pblicas que
visavam ao desenvolvimento das ADR Alternative Dispute Resolu-
tion , que chamaram de mediao. No entanto, crticas severas logo
classificaram este meio de acesso Justia como justia de segunda
classe. A falta de rigor terico no atribuiu atividade um conceito
que pudesse dar sustentao inovao. A experincia teve o obje-
tivo de desafogar o Judicirio, criando dificuldades ao acesso Justia,
oferecendo pseudovantagens por meio de uma justia dita clere e de
baixo custo.
Assim nasce o modelo anglo-saxo de mediao, adotado por
pases de lngua inglesa, a exemplo do Canad, Austrlia, Nova Zeln-
dia, dando nfase aos sistemas jurdicos da common law, ou do direito
consuetudinrio. Vale ressalvar, como j afirmado, que a mediao na
Inglaterra tem uma histria prpria e mais se assemelha ao modelo
latino.
Na Frana,6 h um movimento anterior adoo da mediao nos
Estados Unidos, tendo em vista a existncia desta prtica numa lei de
1671, que atribua assembleia de nobres e ao clrigo a tarefa de paci-
ficar as discrdias. Na dcada de 1980, encontra na mediao um meio
de afastar a interveno do Estado das relaes privadas, em busca da
liberdade individual, valorando, sobremodo, a cidadania plena.
Em lugar de buscar meios de desafogar o Judicirio, como nos
Estados Unidos, os tericos da mediao foram causa e no s conse-
quncias, buscando instrumentos que atendam dignidade da pessoa
humana.
A prtica da mediao desenvolveu-se fora do ambiente do Judi-
cirio, em circuitos menores e especializados, que no tinham como
objetivo a realizao de acordos, mas visavam transformao do
6
BARBOSA, guida Arruda. Mediao familiar interdisciplinar. So Paulo: Atlas, 2015,p. 14-16 e
20-26.
conflito, em atividade regida pela lgica da mediao e no pela lgica
do conflito.
O modelo latino, desenvolvido na Frana, pode ser chamado
de uma forma de equidade, promovendo a oralidade numa sociedade
em que predomina a escrita, o que resulta em um modo de regulao
social.
3MEDIAO: UM MODO DE REGULAO SOCIAL
Uma sociedade desenvolve-se pela criao de modos de regula-

o social, promovendo os devidos ajustes para enfrentar as peculiari-
dades daquela cultura.
Para uma melhor compreenso de como se do os modos de
regulao social, vale trazer um exemplo na historiografia do Direito
de Famlia brasileiro.
Trata-se da Roda dos Expostos,7 fundada no perodo colonial,
em 1738 no Rio de Janeiro, por Romo de Mattos Duarte. Ele doou a
quantia de 32 mil cruzados, logo acrescida de outras doaes daqueles
que aprovaram a iniciativa, para a criao de um estabelecimento apa-
relhado para receber e abrigar crianas rejeitadas, mais usualmente
denominadas de expostos e enjeitados.
A instalao da Roda dos Expostos foi feita na Santa Casa de
Misericrdia do Rio de Janeiro. Junto a uma parede lateral do prdio
foi instalado um aparelho de madeira, com formato cilndrico, tendo
um lado vazado, assentado num eixo que produzia um movimento
rotativo. Este mecanismo permitia que a pessoa que abandonasse uma
criana no fosse reconhecida pela religiosa que, pelo lado de den-
tro, recolhia o petiz.
A Roda dos Expostos8 reflete a moral que norteava os usos e cos-
tumes da poca, correspondendo ao modelo de famlia que imperava
na formao do povo brasileiro. A Roda exercia uma funo reguladora
7
A regrageral eram asnoitesde profunda calada,na escura constncia das quaes, se podia
enxergar,a custo,vultos se esgueirando. Quem se aproximasse delesreconhecia mulhe-
res,parteiras, e curiosas,sob cuja mantilhase abrigavamcriancinhaspequeninas.Iam depo-
sit-las no Roda,receososde seremcastigadas. (ALMEIDA, Angela Mendes de et al.Pensando
a familia no Brasil: da coloniacolnia a modernidade. Rio de Janeiro: Espacoo e Tempo/Edi-
tora da UFRRJ, 1987, p. 37).
8
A fonte principal para a presente reflexoso as tesesda Faculdade de Medicina sobre a
Roda dos Expostos,produzidasentre 1845 e 1860. [...] Das teses dar-se- destaque, aqui, s
partes que buscavamjustificar a existncia de estabelecimento como a Roda [...] Atravs das
justificativas mdicas para a manuteno da Roda,procuramos subtrairelementosque aju-
dem a construira concepo mdico-higienista da mulher que abandonava o filho.(ALMEIDA,
Angela Mendes de et al.Pensando a familia no Brasil: da coloniacolnia a modernidade. Rio de
Janeiro: Espacoo e Tempo/Editora da UFRRJ, 1987, p. 42).
dos desvios familiares. Separava os filhos legtimos daqueles nascidos
de relaes rejeitadas pela sociedade e pela Igreja, pois, para a moral
crist, as prticas reprodutivas eram restritas ao casamento.
preciso ressaltar que o critrio de escolha para o casamento,
naquele tempo, era feita por razes de ordem econmica, sob o
comando patriarcal, e sem consulta aos nubentes, com o objetivo
de estabelecer alianas que pudessem garantir a perpetuao e o
crescimento do patrimnio econmico e social da famlia. E a Roda
situou-se justamente como medida eugnica de preservao da famlia
legtima, evitando o escndalo dos amores proibidos, mantendo a dig-
nidade dos costumes. Este mecanismo social destinava-se, exclusiva-
mente, aos filhos de mulheres brancas e ricas, pois, para as mulheres
negras e/ou pobres a moral era outra.
Esse histrico modo de regulao social deu origem s leis que
discriminaram os filhos at o advento da Constituio Federal de 1988.
A abertura para acolher a mediao, no Sculo XXI, nada mais
seno a busca de um modo contemporneo de regulao social, visto
que o modo eleito outrora, pela jurisdio do Estado, j se encontra
esgotado, pois no se coaduna mais com os conflitos humanos desta
poca, pois os sujeitos de direito rejeitam, cada vez mais, a interveno
estatal na vida privada.
A mediao que se busca a consagrao de uma forma de hege-
monia paradoxal em matria de regulao social e no simplesmente a
soluo de conflitos, a exemplo das ADR (Alternative Dispute Resolu-
tion), no modelo anglo-saxo.
A mediao adequada para o 3. Milnio no pode se apequenar
numa concepo restrita de seu campo, pois h uma exigncia de sua
ampliao como um novo modo de regulao social, portanto no se
trata de tcnica de resoluo de conflitos, ou gesto de conflitos.
O movimento em prol da construo do conceito de mediao
deve se nortear pela cultura de cada pas, respeitando a historiografia
dos modos de regulao social adotados ao longo do desenvolvimento
do estado democrtico de direito. preciso analisar o impacto social
da mediao numa cultura.
A dimenso sociopoltica constitui a primeira varivel a ser con-
siderada, pois ela representa uma nova forma de ao, um novo modo
de regulao social. Esta conscincia implica uma recomposio das
relaes entre Estado e sociedade civil. Neste novo modo de regulao
social h o empoderamento do cidado, que tem sua autonomia presti-
giada, e, consequentemente, o Estado no encontra espao para a sua
interveno
Enfim, ambos os modelos de mediao latino e anglo-saxo
devem ser analisados de acordo com a coerncia histrica do desen-
volvimento de modos de regulao social, para que correspondam
necessidade de mudanas clamadas por uma sociedade. No h como
implantar um modelo de mediao tido como ideal para uma dada
sociedade.
Eis, portanto, a ideologia por detrs da mediao. Se ela servir
de instrumento de poltica pblica para desafogar o Judicirio, ape-
quenando-se em se prestar a um mtodo de soluo de conflitos, o
resultado ser a manuteno de um sistema viciado, sem implementar
mudanas.
No entanto, se a mediao for implantada como um novo modo
de regulao social, correspondendo historiografia da construo
desses modos ao longo do desenvolvimento de uma cultura, a mediao
no ser um simples meio de resoluo ou gesto de conflitos, criando
um sistema capaz de humanizar o modo de transformar os conflitos.
4OBSERVATRIO DE MEDIAO
O mediador francs Jean-Pierre Bonafe-Schmitt implantou um

projeto de criao de um observatrio das mediaes, em parceria com
universidades europeias, que tem por objeto a pesquisa comparada
sobre mediao.
Assim, sem considerar qual o melhor modelo de mediao,
todas as experincias so levadas ao observatrio e aproveitadas para
alimentar o banco de dados.
No se trata de um inventrio das mediaes existentes, pois o
que importa a anlise do fenmeno, por intermdio de instrumentos
de avaliao, consistentes em:
a) ficha de atividade para avaliar as estruturas da mediao apli-

cada por um mediador;
b) questionrio para medir o grau de satisfao dos mediandos
acerca da experincia de mediao;
c) questionrio para identificar o resultado da mediao com
relao aos mediandos e a conscincia da transformao do conflito.
Tendo em vista a dimenso continental do Brasil, com destacada

diversidade regional, com evidente multiculturalismo, a experincia
do observatrio mencionado poder servir de espelho para a adoo
de um ousado projeto de pesquisa a partir de uma estrutura desta
natureza.
Somente a partir da comparao dos modelos de mediao, com
a anlise dos critrios empregados, pelos efeitos alcanados e pelos
reflexos sociais da experincia que se poder garantir, efetivamente,
um novo modo de regulao social.
A ideologia por detrs da mediao precisa de uma anlise siste-
mtica, para enfrentar a comparao dos sistemas sociais em face das
diversidades e das complexidades.
A anlise do fenmeno da mediao deve corresponder coe-
rncia social e da continuidade histrica de cada cultura.
5REFERNCIAS
ALMEIDA, Angela Mendes de et al.Pensando a familia no Brasil: da colnia

a modernidade. Rio de Janeiro: Espao e Tempo/Editora da UFRRJ, 1987.
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SON, Lisa. Mediao familiar. Belo Horizonte: Del Rey, 2016.
ALMEIDA, Angela Mendes de et al. Pensando a familia no Brasil: da
colonia a modernidade. Rio de Janeiro: Espaco e Tempo/Editora da
UFRRJ, 1987.
RESPONSABILIDADE CIVIL PELO FIM DA CONJUGALIDADE1
Marcelo Truzzi Otero
Mestre e Doutor pela PUC-SP. Diretor do Instituto Brasileiro de

Direito de Famlia - IBDFAM. Advogado. Professor da Escola Paulista
de Direito-EPD, das Faculdades Integradas Padre Albino FIPA e da
Atame-Cndido Mendes. Autor.
Sumrio: 1. Introduo. 2. Responsabilidade civil pela rup-

tura imotivada da conjugalidade. 3. Responsabilidade civil
por violao aos deveres conjugais. 4. Reparao civil nas
relaes paterno-filiais em razo da dissoluo da famlia.
5. Concluso.
1INTRODUO
O panorama jurdico das relaes privadas foi alterado substan-

cialmente pela Constituio Federal de 1988. At ento, a tutela da per-
sonalidade estava restrita, em viso canhestra, tutela do patrimnio,
e no precisamente proteo da pessoa humana.
Fruto de equivocada compreenso dos conceitos de igualdade
e de liberdade das grandes codificaes edificadas sobre a gide do
Estado liberal, marcadas por leis gerais e abstratas que enalteciam a
propriedade e a manifestao da vontade livre, sem a preocupao dos
indivduos como pessoa2 , a legislao anterior ao texto constitucio-
nal preocupava-se claramente mais com a tutela de institutos jurdicos
em abstrato a propriamente com as pessoas envolvidas no fenmeno
jurdico.
A propriedade, o contrato e a famlia, institutos clssicos do
direito privado na codificao de 1916, eram mais importantes que os
contratantes, os proprietrios e os partcipes da relao familiar.
A positivao de princpios no texto constitucional de 1988, a
exemplo da dignidade, da solidariedade, da afetividade, da igualdade
e da liberdade, valorizou a pessoa humana, pautado exclusivamente
1
O presente trabalho integra obra coletiva, Responsabilidade Civil no Direito de Famlia,
MADALENO, Rolf, BARBOSA, Eduardo (coord.), So Paulo: Atlas, 2015.
2
Ana Luisa Maia Nevares, A funo promocional do testamento, Rio de Janeiro: Renovar, 2009,
p. 41.
em uma perspectiva existencialista, bem ressaltada por Luiz Edson
Fachin3 .
Merecedor da tutela jurdica o sujeito, considerado objeti-
vamente em todas as suas particularidades, e no mais os institutos
em si.4 Norma de qualquer natureza que descure da tutela da pessoa
humana estar em franca rota de coliso com a diretriz constitucional,
no havendo que aplic-la, sob pena de verdadeira subverso da hie-
rarquia normativa, prestigiando leis ordinrias em detrimento das nor-
mas constitucionais.5
A partir desta tica personificada e existencialista imposta pela
Constituio vigente, todos os institutos jurdicos marcantemente pri-
vados passaram por indispensvel releitura de modo a conform-los
ordem constitucional; e a famlia, obviamente, com toda a sua reali-
dade sociolgica sensvel as transformaes sociais, no se manteve
imune a essa verdadeira revoluo.
Aquela famlia de antanho, reconhecidamente excludente, desi-
gual, discriminatria, hierarquizada e patrimonialista, protegida como
ente abstrato6, cedeu passo a uma famlia igualitria, democrtica, plu-
ral, consciente de seu verdadeiro papel como instrumento executor de
valores fundamentais destinado a promover o desenvolvimento da per-
sonalidade de seus componentes.7
3
Estatuto Jurdico do Patrimnio Mnimo, 2 ed. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 48: A
pessoa, e no o patrimnio, o centro do sistema jurdico, de modo que se possibilite a mais
ampla tutela da pessoa, em uma perspectiva solidarista que se afasta do individualismo que
condena os homens a abstrao. Nesta esteira, ho h, pois, direito subjetivo arbitrrio, mas
sempre limitado pela dimenso coexistencial do ser humano. O patrimnio, conforme se
depreende do exposto por Sessarego, no s deixa de ser o centro do Direito, mas tambm a
propriedade sobre os bens funcionalizada ao homem, em sua dimenso coexistencial.
4
Cristiano Chaves de Farias. Direito das Famlias. 4 ed. rev., ampl. e atual., Salvador: Jus
Podivm, 2012, p. 47: No h mais proteo famlia pela famlia, seno em razo o ser humano.
Enfim, a valorizao definitiva e inescondvel da pessoa humana! (...) simples, assim, afir-
mar a evoluo da ideia de famlia-instituio, com proteo justificada em si mesmo, impor-
tando no raro violao dos interesses das pessoas nela compreendidas, para o conceito de
famlia-instrumentodo desenvolvimento dos seus membros, tutelada na medida em que pro-
mova a dignidade das pessoas de seus membros, com igualdade substancial e solidariedade
entre eles (arts. 1 e 3 da CF).
5
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 18.
6
A indissolubilidade do vnculo, as restries ao divrcio livre, direto e imediato; o trato dis-
criminatrio dispensado aos filhos havidos fora das justas npcias, unio estvel e a pr-
pria unio entre pessoas de mesmo sexo bem demonstram que os sujeitos das relaes fami-
liares ocupavam posio secundria em relao prpria famlia, ente despersonalizado.
7
FARIAS, Christiano Chaves de; ROSELVALD, Nelson. Curso de direito civil: direito de famlia.
6. ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2012. p. 48: A famlia cumpre modernamente um papel
funcionalizado, devendo, efetivamente, servir como ambiente propcio para a promoo da
dignidade e a realizao da personalidade de seus membros, integrando sentimentos, espe-
ranas e valores, servindo como alicerce fundamental para o alcance da felicidade. grifos do
autor.
Foi reconhecido, enfim, que a famlia constitui o locus existencial
por excelncia de seus componentes, sendo tamanha a sua importn-
cia para o desenvolvimento da personalidade e das potencialidades das
pessoas, que a Declarao Universal dos Direitos do Homem, no artigo
XVI, 1, assegura, como fundamental, o direito de qualquer pessoa fun-
dar uma famlia.
Longe de ter a disciplina das relaes sexuais, a procriao ou a
prestao de mtua assistncia como finalidades precpuas8 , a fam-
lia, e no apenas o casamento como sugerea geografia do artigo 1511 do
Cdigo Civil, visa, essencial e primordialmente,a realizao de projetos
existenciais conscientemente adotados a partir do afeto, do amor.9
O afeto, portanto, o esteio de qualquer ncleo familiar que,
associado liberdade e vontade, assegura o direito individual de
executar esses projetos existenciais, sejam eles atrelados a conjuga-
lidade10 ou a parentalidade11 , que promovam a realizao pessoal dos
envolvidos, traduo singela de tutela da dignidade, no cabendo ao
Estado qualquer ingerncia, salvo quando conflitarem com a prpria
personalidade do titular12 ou com o interesse social maior da prpria
sociedade13 .
Por conseguinte, na execuo de seus projetos existenciais vin-
culados conjugalidade h um enorme poder de autodeterminao
para casar ou no casar; casar ou viver em unio estvel, e, eviden-
temente, se casadas ou vivendo em unio estvel, por termo ao casa-
mento ou a ento estvel, sendo suficiente o fenecimento do afeto,
sem que nada possa fazer o outro cnjuge/companheiro, tampouco
o Estado, afinal, como bem observa Pietro Pierlingieri, necessrio
8
Silvio Rodrigues, Direito Civil: Direito de Famlia, 28 ed., rev. e atual., So Paulo: Saraiva,
2004, p. 22.
9
Joo Baptista Vilela vaticinou j h longa data: J notaram os senhores o quo pouco se falar
de amor em sede de direito de famlia, como se este no fosse seu ingrediente fundamental?
O amor est para o direito de famlia assim como o acordo de vontades est para o direito dos
contratos, Repensando o Direito de Famlia, in: Anais do I Congresso Brasileiro de Direito de
Famlia IBDFAM, Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 20.
10
Casar, viver em unio estvel, manter entidade familiar com pessoa do mesmo gnero,
observando que j se discute se o concubinato e as unies paralelas constituem modelos de
famlia.
11
Ter ou no ter filhos; t-los pela via natural ou mediante tcnicas medicamente assistidas;
optar pela adoo, ser me ou pai independentemente de um projeto conjugal, tudo isso foi
assegurado pela CF/88, em especial, pelo artigo 226, 7 da Constituio Federal.
12
Adoo de tcnicas medicamente assistidas de procriao quando h claro risco sade da
gestante ou da prole.
13
Em dias atuais, o Superior Tribunal de Justia tem repelido o reconhecimento de efeitos
jurdicos a unies paralelas entendendo que, alm de afrontarem a monogamia, tida como
princpio para a maioria dos julgados daquela Corte, elas contrariam interesse da sociedade
na famlia monogmica: RExt.n.397.762-8/BA, STF, Rel. Min. Marco Aurlio Mello, j. 03.08.2008
e RESp.n. 1.157.273/RN, , STJ, 3 T., Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 18.10.2010.
mais do que outra coisa, aceitar a ideia de que, quando falta o afeto e a
comunho espiritual, a famlia no existe.14
Paulo Neto Lbo bem focaliza essa questo observando que o
princpio da liberdade diz respeito no apenas criao, manuteno
ou extino dos arranjos familiares, mas sua permanente constitui-
o e reinveno. Tendo a famlia se desligado de suas funes tradi-
cionais, no faz sentido que ao Estado interesse regular deveres que
restrinjam profundamente a liberdade, a intimidade e a vida privada
das pessoas quando no repercutem no interesse geral15 .
No cabe, portanto, ao Estado, ao parceiro ou a quem quer que
seja obstaculizar, restringir ou dificultar a deciso refletiva e cons-
ciente de descasar que, mesmo aparentemente imotivada, encontra
motivao suficiente no simples desejo de no mais permanecer vin-
culado quele projeto existencial de conjugalidade.
A questo que tem se apresentado aos tribunais se este exer-
ccio unilateral de liberdade individual, e que se traduz na execuo da
prpria personalidade do titular, ou se a sua conduta durante relacio-
namento, ensejar algum tipo de indenizao ao outro que, continu-
ando a amar ou sendo preterido em seus sentimentos e expectativas,
experimentar uma dor, um sofrimento, um menoscabo16 .
Entendemos que a responsabilidade civil pela dissoluo fami-
liar deve ser enfrentada sob trs enfoques distintos. O primeiro deles
deve analisar o problema da responsabilidade civil na ruptura do pro-
jeto existencial a partir do exerccio de uma liberdade individual. O
segundo deles, deve analisar o problema da responsabilidade civil a
partir da conduta adotada pelo cnjuge ou pelo cnjuge ou compa-
nheiro durante a vida a dois. O terceiro deles, deve analisar a questo
sob o prisma dos filhos.
De certa forma, todos esses enfoques se entrelaam ao concluir-
mos que a responsabilidade civil pela dissoluo da vida familiar segue
as mesmas vigas mestras da responsabilidade civil em geral.
14
Perfis do Direito Civil. 2 ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 263-264.
15
Nova principiologia do Direito de Famlia e suas repercusses, in: Direito de Famlia e das
Sucesses, Coord. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Flvio Tartuce, Jos Simo. Rio
de Janeiro: Forense; So Paulo: Mtodo, 2009, p. 11-12.
16
A perda do amor igual perda da morte. S que di mais. Quando morre algum que vc.
ama, voc se di inteiro mas a morte inevitvel, portanto, normal. Quando voc perde
algum que voc ama, e esse amor essa pessoa continua vivo, h ento uma morte anor-
mal. O nunca mais de no ter quem se ama torna-se to irremedivel quanto no ter nunca
mais quem morreu. E di mais fundo porque se poderia ter, j que est vivo. Mas no se tem,
nem se ter, quando o fim do amor : never, Caio Fernando Abreu, Extremos da Paixo, in:
Pequenas Epifanias.
2RESPONSABILIDADE CIVIL PELA RUPTURA IMOTIVADA DA CONJU-
GALIDADE
de Maria Berenice Dias a seguinte colocao: Todas as rela-

es que tm origem em vnculos de afetividade propem-se eternas,
estveis, duradouras e com perspectiva infinita de vida em comum at
que a morte os separe. Todos os pares carregam a expectativa de um
complementar o outro na satisfao de suas necessidades de afeto,
amor, relacionamento social etc. A separao representa o rompimento
deste projeto. Um dos mais sofridos e traumticos ritos de passagem
o da separao conjugal17ao que, conclumos, causa dor, sofrimento,
angstia, em especial quando o rompimento motivado por alguma
conduta mais ferina aos sentimentos.
No incomum associar o dano moral a dor, ao sofrimento, a
angstia injustamente impostos a outrem, como constatamos na lio
de Wilson de Melo da Silva, clebre monografista da matria, quando
afirma que o dano moral a dor, tomado o vocbulo em sua lata
expresso.18
No nos afigura correto, entretanto, este atrelamento do dano
moral ao subjetivismo dos sentimentos que, embora aferveis por cri-
trios medianos, mantm certa dose de egotismo, incorrendo no grave
risco de relegar a configurao do dano moral ao sabor das emoes
da vtima que exteriorizar ao seu modo e conforme a sua sensibili-
dade o sofrimento de que padece e que, por vezes no padece, afinal,
como bem observado acidamente pelo saudoso J. J. Calmon de Passos:
Nada mais suscetvel de subjetivar-se que a dor, nem nada mais

fcil de ser objeto de mistificao. Assim como j existiram carpi-
deiras que choravam a dor dos que eram incapazes de chor-la por-
que no a experimentavam, tambm nos tornamos extremamente
hbeis em nos fazermos carpideiras de ns mesmos, chorando, para
o espetculo diante dos outros, a dor que em verdade no expe-
rimentamos. A possibilidade, inclusive, de retirarmos proveitos
financeiros dessa nossa dor oculta, fez-nos atores excepcionais e
meliantes hbeis (...). Para se ressarcir esses danos, deveramos ter
ao menos a decncia ou a cautela de exigir a prova da efetiva dor
do beneficirio, desocultando-a.19 (Informativo Incijur n. 46, maio
2003)
Manual de Direito das Famlias, 5 ed., rev., atual. e ampl., So Paulo: Revista dos Tribunais,
17
2009, p. 116.
18
O dano moral e sua reparao, 3 ed. ver. e ampl., Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, 1999, p. 334.
19
O imoral do dano moral, in: Informativo Incijur, n 43, maio/2003.
Dano moral, em verdade, toda leso injusta a um atributo da
personalidade humana20 e no est necessariamente vinculado a
alguma reao psquica da vtima. Pode haver ofensa dignidade da
pessoa humana sem dor, vexame, sofrimento, assim como pode haver
dor, vexame e sofrimento sem violao da dignidade. Dor, vexame,
sofrimento e humilhao podem ser consequncias, e no causas.21
Transportando estas consideraes para a ruptura imotivada
dos relacionamentos amorosos, decerto o rompimento da relao pro-
vocar dor, causar sofrimento, implicar em angstia ao cnjuge/
companheiro que, por vezes colhido de surpresa, v-se aturdido com a
notcia do fim, mas tal no significa que existir ou remanescer dever
de indenizar por parte do desertor.
Casamento e unio estvel so projetos existenciais e, portanto,
esto intimamente ligados ao exerccio da personalidade, afinal, nin-
gum casa ou vive em unio estvel, tampouco mantm-se casado ou
convivendo estavelmente pelo simples fato de fazer o outro feliz. Casa-
-se ou vive-se em unio estvel porque busca-se nestes projetos exis-
tenciais a execuo da prpria personalidade, busca-se a felicidade e a
realizao pessoal, traduo singela da dignidade tutelada pelo texto
constitucional. Qualquer outro sentido que se d ao casamento ou a
unio estvel que no o de um projeto existencial acabar aniquilando
completamente o prprio sentido da famlia como locus existencial por
excelncia, afinal, nada mais dramtico e angustiante do que viver com
quem no se quer conviver.Amor imposto desamor, como j consig-
nado por nio Santarelli Zuliani.22
um evidente paradoxo equacionar a dor, o sofrimento, a angs-
tia do cnjuge/companheiro abandonado, impondo ao outro parceiro
manter-se vinculado ao projeto conjugal originalmente estabelecido
que no mais deseja. Esta desastrosa soluo, encontrada na legisla-
o revogada23 , atenta contra o prprio sentido da dignidade da pessoa
humana que tem substrato na preservao da igualdade, da liberdade,
da integridade fsica e moral de cada pessoa.24
Os atos de autonomia existencial tm caractersticas marcantes
que o diferem dos atos de natureza puramente patrimonial. Enquanto
20
Maria Celina Bodan de Moraes, Na medida da pessoa humana: estudos e direito civil-consti-
tucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 433; Anderson Schereiber, Direitos da Personali-
dade, 3 ed., rev. e atual., So Paulo: Atlas, 2014, p. 16.
21
Srgio Cavalieri Filho, Programa de Responsabilidade Civil, 8 ed., rev. e atual., So Paulo:
Atlas, 2008, p. 80.
22
nio Santarelli Zuliani, Apelao Cvel n. 300.787-4/2, 4 Cm. Dir. Privado, j.15.02.2007.
23
Art. 6 da Lei 6515/77, malsinada clausula de dureza.
24
Maria Celina Bodin de Moraes, Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil cons-
titucional, p. 187.
os atos puramente patrimoniais tem como notas marcantes a exign-
cia de declarao simples de vontade, a onerosidade, a correspectivi-
dade e a confiana, resultando da todo um arcabouo jurdico que
fundamenta a execuo especfica das obrigaes; os atos de autono-
mia existencial so caracterizados essencialmente por uma declarao
qualificada de vontade, pela gratuidade e espontaneidade, pela ausn-
cia de correspectividade, ressaltando que,justamente por traduzirem
atos que executam e promovem a dignidade do titular, neles no pre-
valecer a lgica da correspectividade e a tutela da confiana, como
ocorre nos atos de autonomia patrimonial, razo pela qual descabe
falar em execuo forada dos atos de autonomia existencial, ainda
que manifestados a partir de uma vontade qualificada.
Rose Melo Vencelau Meireles, dissertando sobre os atos existen-
ciais, anota que o que move o titular de uma situao existencial dispor
sobre ela a busca do desenvolvimento da sua prpria personalidade
ou fins altrusticos, se o ato visa a beneficiar a outrem, inexistindo um
mote econmico na prtica de atos de autonomia existencial, para, na
sequncia, ressaltar a preocupao em no se mercantilizar situaes
existenciais que, em ltima instncia, atingem a prpria personalidade
do homem25 .
Prossegue, a doutrinadora, lecionando que tambm a lgica
da correspectividade totalmente estranha aos negcios existenciais
bilaterais, pois nestes o disponente se vincula prtica de um ato para
a realizao da personalidade e no devido existncia de um nexo
de causalidade com uma contraprestao26 para, na sequncia, fina-
lizar explicitando que a declarao qualificada de vontade aquela,
alm de espontnea, esclarecida, e, sobretudo, atual, no sentido de que
deve ser manifestada no momento da execuo do ato27observando que
nestes atos existenciais assegurada, at o momento da execuo do
ato existencial28 , a possibilidade de retratao, sem que se possa falar
em cumprimento forado da obrigao, justamente porque ordinaria-
mente no prevalece, para os atos existenciais, a tutela da confiana29.
25
Autonomia Privada e Dignidade Humana, Rio de Janeiro: Renovar, p. 205-206.
26
Ob. cit., p. 211.
27
Nas relaes jurdicas existenciais de trato contnuo, como ocorre no casamento e na unio
estvel, assegurado ao sujeito, em exerccio da sua personalidade, manifestar a sua vontade
em casar ou no casar at o momento da celebrao, e, se j participante de um projeto
parentar, a ele assegurado manisfestar, a qualquer instante, a vontade a respeito da perma-
nncia ou no a no permanncia naquele projeto existencial.
28
At o momento do casamento, portanto, os noivos podem se retratar, como, alis, lhes asse-
gura a prpria lei (CC, art. 1538).
29
Ob. cit., p. 215-216: revogabilidade, incoercibilidade e tutela da confiana nos atos
existenciais.
Todas essas caractersticas dos atos existenciais emprestam
relevantes subsdios para fundamentar a inexistncia de dever de inde-
nizar pela simples ruptura da convivncia amorosa, em quaisquer de
suas fases: namoro, noivado, casamento ou unio estvel.
De fato, namorados, noivos, cnjuges ou companheiros mergu-
lham nestes projetos existenciais pautados exclusivamente no afeto
antevendo naquele relacionamento o caminho para a felicidade e para
a realizao pessoal, desenvolvendo assim, de forma mais que sadia,
suas personalidades. Ningum inicia um namoro, compromete-se em
noivado ou entrega-se em casamento ou em unio estvel pautado em
interesses puramente patrimoniais ou a uma contraprestao qual-
quer, pois alm de absolutamente imoral, , no panorama jurdico atual,
ilegal dado que o afeto o esteio dos relacionamentos familiares e sem
ele no se atinge a plenitude da comunho de vidas, e menos ainda a
felicidade, ou seja, no atinge prprio fim destes modelos familiares.
Como oportunamente observado por Flvio Tartuce e Jos
Simo30, quando as pessoas se casam no buscam esse intuito patri-
monial, mas afetivo, para uma comunho de vida. Tanto assim ver-
dade que o Judicirio decretou a anulao de casamento celebrado
com propsitos exclusivamente patrimoniais e desprovido de afeto31 .
bvio, tambm, que no se pode obrigar qualquer pessoa a ini-
ciar um relacionamento amoroso ou manter-se a ele vinculado contra a
sua vontade. Seria o completo desprestigio vontade individual qualifi-
cada, to cara aos atos existenciais e prpria tutela da personalidade.
Como bem explicita Maria Celina Maria Bodin de Moraes, na
legalidade constitucional a noo de autonomia privada sofre uma pro-
funda e marcante transformao conforme a sua incidncia ocorra
no mbito de uma relao patrimonial ou de uma relao pessoal, no
patrimonial. Assim justamente porque o legislador democrtico,
tambm no Brasil, tem perfeita noo de que a vida, para ser digna (CF,
art. 1, II), precisa, intrinsicamente, da mais ampla liberdade possvel
no que toca s relaes no patrimoniais. No que tange s situaes
pessoais, como aqueles que se refere vida privada do sujeito (...)
considera-se haver uma proteo constitucional reforada, porque,
sob o prisma da Constituio, estes direitos so indispensveis para a
vida humana com dignidade. Significa dizer que as aes humanas que
30
Direito civil: direito de famlia, 7 ed. rev., atual. e ampl., Rio de Janeiro: Forense; So Paulo:
Mtodo, 2012, p. 38.
31
Ap. Cvel 2009.001.21641, TJRJ, 19 Cm. Cvel, Rel. Des. Claudio Brando, j. 4/8/2009, publi-
cado 4/11/2009: Direito Civil. Famlia. Anulao de casamento. Funcionalizao do Direito:
proteo dos institutos jurdicos condicionada respectiva funo social. Casamento cele-
brado sem finalidade de constituio de famlia. Erro essencial sobre a pessoa do outro cn-
juge: interesses unicamente materiais. Art. 1557, I, do CC.
envolvem escolhas de carter existencial so protegidas de modo mais
intenso pela ordem constitucional32 .
Ora, se nos contratos em que a prestao de uma das partes
for uma situao existencial, esta poder resilir unilateralmente o con-
trato quando a sua continuidade no mais interessar especialmente,
se importar em violao a sua prpria dignidade33 , com maior razo o
sujeito poder se desdizer, arrepender-se, denunciar o fim do relacio-
namento amoroso, j que so atos existenciais puros de execuo da
personalidade em que a dignidade do declarante no pode ser restrin-
gida para garantir a dignidade do outro.
Atento a esta ordem de ideias, Andr Borges de Carvalho Bar-
ros pondera que a famlia marcada por uma vontade qualificada: o
afeto. Logo, quando desaparece o afeto, dentro da famlia matrimonial
(casamento), no h porque se insistir na sua manuteno e dificultar
sua dissoluo (sem afeto no h famlia). O casamento que no bom
para um no bom para todos, sobretudo para os filhos do casal, con-
cluindo, na sequncia, que se o relacionamento no deu certo, facili-
tar a sua dissoluo no significa a destruio da famlia, mas sim a sua
prpria regenerao.34
O direito ao rompimento das relaes amorosas, em quais-
quer de suas formas, tambm traduz ato de execuo da personali-
dade, amparado pela liberdade e pela autodeterminao, constituindo,
pois, um direito potestativo do seu titular, que no pode ser negado ou
restringido e, mesmo que o ato de rompimento provoque dor, sofri-
mento, mgoa ou sensao de abandono, dele no emergir qualquer
dever de indenizar35 , salvo quando exercido de forma manifestamente
abusiva36, caso em que o dever de indenizar no emergir do ato de
32
Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional, Rio de Janeiro: Reno-
var, 2010, p. 190.
33
Rose Melo Vencelau Meireles, Autonomia privada e dignidade humana, Rio de Janeiro:
Renovar, p. 296.
34
A mitigao da culpa na separao judicial e suas consequncias, in: Direito de Famlia e das
Sucesses, coord. Giselda Maria Fernanda Novaes Hironaka, Flvio Tartuce, Jos Fernando
Simo. Rio de Janeiro: Forense; So Paulo: Mtodo, 2009, p. 115.
35
Apelao Cvel n. 70012349718, TJRS, 7 Cm., Rel. Des. Srgio de Vasconcellos Chaves, j.
7.12.2005; Apelao Cvel n. 264.659-4/8-00, TJSP, 8 Cm. Dir. Privado, Rel. Des. Ribeiro da
Silva, j. 26.10.2005; Apelao Cvel n. 0004892-71.2002.8.26.0554, TJSP, 2 Cm. Dir. Privado,
Rel. Des. Alvaro Passos, j. 4.11.2014; Apelao n. 0279770-49.2009.8.26.000, TJSP, 5 Cm. Dir.
Privado, Rel. Des. Moreira Viegas, j. 01.08.2012 e Apelao Cvel 0000723-34.2013.8.26.0464,
TJSP, 4 Cm. Dir. Privado, Rel. Des. Carlos Teixeira Leite, j. 24.07.2014, assim ementado: Rom-
pimento de noivado. O desfecho unilateral de relacionamento antes da data que seria a do
casamento, por desamor, no constitui ato ilcito ou de ofensa ao princpio da dignidade
humana. Ocorrncia usual na sociedade, criando expectativas, frustraes, alegrias e triste-
zas que so tpicas da dinmica da vida sentimental. Indenizao por danos morais impossvel
de ser concedida. Recurso Improvido.
36
Apelao Cvel n. 0022515-83.2007.8.26.030, TJSP, 5 Cm. Dir. Privado, Rel. Des. Erickson
rompimento em si, mas da forma desproporcional e desarrazoado
como foi exercido este direito, aplicando-se, nesta hiptese excepcio-
nal, a clusula geral da responsabilidade civil prevista no artigo 187 do
Cdigo Civil.37
Em remate: nada h de ilegal no rompimento do namoro ou
do noivado, ainda que de longa data, como tambm nada h de ilegal
no rompimento do casamento imotivado ou da unio. Os interessa-
dos podem se desdizer do pedido de namoro, o noivo pode se arre-
pender da promessa de casamento at o momento da celebrao do
casamento, o cnjuge ou do companheiro pode denunciar a relao
casamentria ou relacionamento sem que isso represente qualquer ili-
citude, mesmo que provoque dor, sofrimento, angstia, afinal, ningum
pode ser responsabilizado por deixar de amar.
3RESPONSABILIDADE CIVIL POR VIOLAO DOS DEVERES CONJUGAIS
A legislao portuguesa anterior a edio da Lei n. 61, de 31 de

outubro de 2008, previa a possibilidade de indenizao pela dissolu-
o do casamento sempre que um dos cnjuges fosse culpado pela dis-
soluo do casamento, dispondo que o cnjuge declarado nico ou
principal culpado, e bem assim o cnjuge que pediu o divrcio com
fundamento na alnea c) do art. 1781, devem reparar os danos no patri-
moniais causados ao outro cnjuge pela dissoluo do casamento,
Gavazza Marques, j. 05/07/2013; Apelao Cvel n. 300.787-4/2, TJSP, 4 Cm. Dir. Privado., Rel.
Des. Enio Santarelli Zuliani, de onde extrai-se o seguinte trecho: Evidente que o arrependi-
mento, em se tratando de projeto de casamento, permitido antes das bodas, at por razes
sentimentais [o desamor]; porm, quando o arrependimento retarda a deciso de romper o
noivado, fazendo-o nas vsperas das bodas ou at no dia marcado para a festa nupcial, fica
evidenciada a conduta reprovvel ou no admitida no direito, desde que sem uma base con-
creta. O desamor, que justifica a separao em qualquer fase da vida comum, dever ser
comunicado de forma solidria, para no surpreender aqueles que, confiantes na firmeza do
compromisso, apostam no enlace e investem numerrio para concretizar fatos essenciais (...).
O Direito no admite a desumanidade, embora aceite o arrependimento do noivo ou da noiva,
at porque o imposto desamor. O princpio constitucional da dignidade [art. 1, III] estabe-
lece diretrizes sociais bem claras em termos de tratamento e respeito mtuos, de forma que
as agresses desnecessrias e violentas para o contexto da moral padronizada, como despe-
didas que humilham e inferiorizam o ego dos ex-amantes, so vistas e tratadas como
ilcitos....
37
Luciano Chaves de Farias, Teoria do Risco Desautorizando a indenizao por danos morais
nos casos de ruptura de noivado, in: Revista Brasileira de Direito das Famlias e Sucesses.
Porto Alegre: Magister; Belo Horizonte: IBDFAM, 2007, v. 1, dez/janeiro 2008, p. 21: A dor
moral resultante da ruptura, por fazer parte da existncia pessoal, no constitui suporte
ftico autorizador da incidncia de normas que disponham sobre a reparao pecuniria. (...)
Somente admitida a possibilidade de indenizao se restasse caracterizado um ato ilcito de
extrema gravidade, violando os direitos fundamentais, cuja indenizabilidade seria cabvel
independentemente do contexto da relao afetiva entretida pelas partes.
devendo a pretenso indenizatria ser deduzida na prpria aco de
divrcio.38
O Cdigo Civil Francs, em seu artigo 266, na redao conferida
pela Lei n. 2004-439, de 26 de maio de 2004, prev a possibilidade de
indenizao pela dissoluo do casamento quando o divrcio for pro-
nunciado por culpa exclusiva de um dos cnjuges.39
Embora a legislao brasileira no preveja expressamente a pos-
sibilidade de indenizao pela dissoluo da vida familiar a partir do
reconhecimento da culpa de um dos cnjuges, respeitvel corrente
doutrinria e jurisprudencial a admite, ao fundamento de que a viola-
o aos deveres matrimoniais previstos no artigo 231 do Cdigo Civil de
1916, e no artigo 1566 do Cdigo Civil vigente, tipifica ilcito indenizvel.
Nesta linha, Regina Beatriz Tavares de Silva advoga que somente
diante da existncia de ato ilcito descumprimento de dever conjugal,
com a ocorrncia de danos, morais ou materiais que surge a possibi-
lidade de aplicao do princpio reparatrio na ruptura do casamento.
Portanto, a aplicao do princpio reparatrio no sistema adotado
pela Lei do Divrcio e pelo novo Cdigo Civil depende da apurao
da violao a dever conjugal, o que tem sede somente na separao
culposa (art. 1572, caput), a realizar-se por meio de pedido de indeni-
zao cumulado ao pedido de separao judicial (Cdigo de Processo
Civil, art. 292; v. Agravo de Instrumento n 136.366-4/1, 6 Cmara de
Direito Privado do Tribunal de Justia de So Paulo, j. em 15/6/2000,
Relator Desembargador Mohamed Amaro), ou em ao conexa (Cdigo
de Processo Civil, art. 103), ou aps o trnsito em julgado da sentena de
separao judicial.40
Esta ideia de perquirio de um culpado pelo fim dos relacio-
namentos amorosos tem sido abandonada pela doutrina familia-
rista majoritria que, reinterpretado os relacionamentos na tica da
38
O artigo 1792 do Cdigo Civil Portugus, ora em referncia, foi alterado pela Lei n. 61, de 31
de outubro de 2008, manteve o direito a indenizao pela dissoluo do casamento, porm,
no mais atrela este direito a culpa de um dos cnjuges, mas sim aos termos da responsabili-
dade civil em geral: Art. 1792. Reparao de danos. 1 O cnjuge lesado tem direito de pedir
a reparao dos danos causados pelo outro cnjuge, nos termos gerais da responsabilidade
civil e nos tribunais comuns
39
Cdigo Civil Francs, Art. 266. Sans prjudice de lapplication de larticle 270, des domma-
ges et intrts peuvent tre accords un poux en rparation des consquences dune par-
ticulire gravit quil subit du fait de la dissolution de mariage soit lorsquil tait dfendeur
un divorce prononc pour altration dfinitive du lien conjugal et quil navait lui-mme
form aucune demande en divorce, soit lorsque le divorce est pronounc aux torts exclusifs
de son conjoint. Cette demande ne peut tre forme qu loccasion de laction em divorce.
40
Novo Cdigo Civil: tutela da dignidade da pessoa humana no casamento, in: Revista do
Advogado [AASP]. So Paulo: AASP, n. 68, 2002, p. 125. Na mesma linha, posiciona-se Belmiro
Pedro Welter, Dano moral na separao, divrcio e unio estvel. In. Revista dos Tribunais,
ano 89, maio 2000, vol. 775, p. 128-136. Vide, ainda, REsp 742.137/RJ, STJ, 3 T., Rel. Des. Min.
Nancy Andrighi, j. 21.08.2007, DJ 29.10.2007.
legalidade constitucional, nela antev um elemento de potencializao
e eternizao de litgios, sem efeito prtico algum, como bem obtem-
pera Paulo Neto Lbo:
Quando o poder Judicirio, mobilizado pelo cnjuge que se apre-

senta como abandonado e ofendido pelo outro, investiga a ocor-
rncia ou no da culpa alegada e da culpa do indigitado ofensor,
ingressa na intimidade e vida privada da sociedade conjugal e da
entidade familiar. A Constituio Federal (art. 5, X) estabelece que
so inviolveis a intimidade, a vida privada, a honra e imagem das
pessoas, sem qualquer exceo ou restrio. Ora, nada mais
ntimo e privado que as relaes entretecidas na convivncia fami-
liar. Sob esse importante ngulo, no pode a lei ordinria excepcio-
nar, de modo to amplo, a garantia constitucional da inviolabilidade,
justamente no espao privado e existencial onde ela mais se realiza.
O fim do afeto conjugal , normalmente, o eplogo de desgastes pro-
gressivos, o que torna tarefa praticamente impossvel a sindica-
o da causa, que apenas serve para atribuir a culpa exclusiva a um
dos dois cnjuges, utilizando-se o Poder Judicirio como arena de
potencializao do conflito. (...) o que relevante no afetado pela
natureza litigiosa ou consensual da separao: a guarda dos filhos
no pode mais ser utilizada como condenvel triunfo, como ocor-
ria no passado, pois, independentemente de quem seja o culpado,
atribuda ao pai ou me que realize o melhor interesse da criana;
a partilha dos bens independe da culpa de qualquer dos cnjuges e
os alimentos so assegurados at mesmo ao cnjuge que for julgado
culpado da separao, quando indispensveis subsistncia.41
A Emenda Constitucional n. 66, de 13 de julho de 2013, que

emprestou nova redao ao artigo 226, 6 da Constituio Federal,
sedimentou a ilegalidade da perquirio da culpa para fins de dissolu-
o da sociedade conjugal, como se constata na exposio de motivos
da prpria emenda constitucional42 .
O divrcio passou a ser um direito potestativo, objetivamente
considerado, afigurando-se, para a sua proclamao, suficiente a
41
Famlias, 2 ed., So Paulo: Saraiva, 2009, p. 140. No mesmo sentido, Andre Borges de Carvalho
Barros, ob. cit., p. 117; Maria Berenice Dias, Manual de Direito das Famlias, p. 289-290; Rolf
Madaleno, Curso de Direito de Famlia, 5 ed., rev. e atual., Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 252;
Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona, Curso de Direito Civil As famlias em perspectiva
constitucional, 2 ed. rev. e atual. e ampl., So Paulo: Saraiva, 2012, p. 585-586.
42
Trecho da exposio de motivos da EC/66: essa providncia salutar, de acordo com valores
da sociedade brasileira atual, evitar que a intimidade e a vida privada dos cnjuges e de suas
famlias sejam revelados e trazidos ao espao pblico dos tribunais, como todo o caudal de
constrangimentos que provocam, contribuindo para o agravamento de suas crises e dificul-
tando o entendimento necessrio para a melhor soluo dos problemas decorrentes da
separao.
manifestao de vontade qualificada, por meio idneo43 , independen-
temente da anlise de condutas, e com a maior presteza e agilidade
possvel, em prestgio a prpria personalidade e dignidade de todos
esses interlocutores da famlia desfeita, mesmo porque adiar o decreto
do divrcio, em ltima anlise, afronta o comando do artigo 226, 3
da Constituio Federal, na medida em que os cnjuges, atados unica-
mente por uma discusso processual intil e inconstitucional envol-
vendo a anlise das respectivas condutas, estaro impedidos para o
novo casamento, passando, no mais das vezes, a viver em unio estvel
sem possibilidade de convert-la em casamento, enquanto no deci-
dido definitivamente o divrcio.
Em um sistema que se preocupa primordialmente com a tutela
da dignidade e com a garantia das liberdades individuais e que funda-
menta a famlia na afetividade entre seus membros, soa contrassenso
a imposio de deveres matrimoniais acerca de questes de contedo
nitidamente existencial, como se verifica com aqueles deveres estabe-
lecidos nos artigos 1566 e 1725 do Cdigo Civil, j que exigir rigorosa
observncia ou o cumprimento deles afrontaria a prpria perspec-
tiva existencial do titular, afinal, como obrigar o cnjuge a coabitar
com o outro, a com ele manter relaes sexuais, a no vagar, mesmo
virtualmente,por atos contrrios a f conjugal?
A oscilao dos sentimentos da natureza humana. Apaixonar
e desapaixonar, interessar e desinteressar, da essncia do homem,
felizmente, e, ningum obrigado a manter-se apaixonado ou interes-
sado por algum a vida toda, notadamente porque a relao entre cn-
juges e companheiros parte de um plano de igualdade em que ningum
obrigado a sacrificar a prpria felicidade em detrimento da felicidade
do outro. Aprisionar o ser humano em seus sentimentos, fazendo-o
observar deveres matrimoniais sob a ameaa de responder civilmente
pelo simples descumprimento de um dever matrimonial tirar do ser
humano o que ele tem de mais humano44 . Amar, por si s, j extrema-
mente perigoso!
43
No sistema vigente, o divrcio unilateral somente por ser objetivo por via judicial.
44
Pela felicidade da colocao, as palavras de Srgio Gisckow Pereira: Transportar esta viso
para o mundo ertico-afetivo, terminar com a paixo, liquidar com o amor, aprisionar a
libido, abafar a fora do sexo, implantar manuais vitorianos para regerem a conduta sexual
e amorosa, impor um puritanismo retrgrado, querer um direito para santos e anjos e no
para seres humanos, calar os poetas, concretizar a pior, mais cruel e mais profunda das
censuras, medir sentimentos com parmetros lgico-formais e legalistas!A relao ertico-
-afetiva, em qualquer modalidade (encontro rpido, namoro, amantes, companheiros, concu-
binos, conviventes, casados, etc, etc) sujeita a bvios, previsveis, naturais e inevitveis dis-
sabores, que lhe do vida, lhe do tempero, lhe do vibrao, lhe fornecem emoo, lhe confe-
rem sentimento, a afastam da rotina. O amor e o dio esto sempre relacionados; tanto que o
contrrio do amor no o dio, mas sim a indiferena. (O dano moral e o direito de famlias: o
perigo de monetizar as relaes familiares. In: www.gontijo-familia.adv.br/2008/artigos.pdf/
Serio_Giskow_Pereira/Dano.pdf).
O desrespeito a um dos deveres conjugais, no mais das vezes,
apenas faz transparecer um relacionamento que j est combalido,
desgastado, resultado de aes e omisses recprocas, no sendo ade-
quado concluir, de forma simplista, que o relacionamento acabou pela
culpa de um dos parceiros. Como lucidamente observado por Rodrigo
da Cunha Pereira, muito fcil e cmodo atribuir ao outro a culpa
pelo fracasso da conjugalidade, pois, assim, o sujeito no se responsa-
biliza pelos seus atos. O inferno sempre o outro. Se a vida era a dois,
ambos so responsveis pela manuteno ou fim do relacionamento.45
Da porque entendemos, a partir deste arcabouo jurdico pr-
prio das relaes ertico-afetivas, que a violao a deveres matri-
moniais conduz, ordinariamente,apenas dissoluo da sociedade
conjugal, sem que dela emerja direito a indenizao, como oportuna-
mente apresentado por Maria Celina Bodin de Morais:
o desrespeito dos deveres conjugais, quais sejam, fidelidade, a coa-

bitao, a assistncia e o respeito mtuos, previstos no art. 1566
do Cdigo Civil, na ponderao dos interesses contrapostos entre
solidariedade familiar e autonomia individual, ou seja, entre a
sociedade conjugal e as escolhas individuais de cada cnjuge, pre-
valecem, segundo a doutrina mais atenta, os direitos do indivduo
e as suas prprias opes de vida, no se admitindo que o seu des-
cumprimento de causa, com xito, a ao de responsabilidade civil.
A liberdade, se e quando exercida, deixa de ter consequncias jur-
dicas, pois, com fundamento no descumprimento dos deveres con-
jugais, determina o legislador a obteno da separao judicial.46
45
Divrcio: teoria e prtica. Rio de Janeiro: EZ Editora, 2010, p. 49.
46
Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional,Rio de Janeiro: Renovar,
2010, p. 442-443, de onde tambm consta a seguinte passagem: Nestes casos, a ponderao
dos interesses contrapostos, mais uma vez, no garante o direito sua prestao, com a con-
sequente indenizao pelo seu inadimplemento. O ato subjacente daqueles que requerem a
mais ampla liberdade de escolha, tanto fsica, sobre o prprio corpo, quanto psquica.
Somente uma tica que ignora a funcionalizao dos institutos jurdicos, preocupando-se
unicamente com esquemas estruturais ultrapassados, poderia entrever dano moral na recusa
em manter relaes sexuais. A toda evidncia, este raciocnio violaria a integridade psicof-
sica e a liberdade pessoa do cnjuge, em nome de um profundo equvoco: pe-se erronea-
mente em funcionamento o mecanismo, j criticado, segundo o qual, sendo o dbito conjugal
um dever decorrente do casamento, seu descumprimento gera sofrimento, que deve, assim,
ser reparado. No mesmo sentido, confira tambm Gustavo Tepedino, O papel da culpa na
separao e no divrcio, in: Repensando o Direito de Famlia: Anais do I Congresso Brasileiro
de Direito de Famlia, IBDFAM, Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 200-201; Maria Berenice Dias,
Manual de Direito das Famlias, 5 ed., So Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 118; Ana Caro-
lina Brochado Teixeira, Ofensa Civil e Dignidade Humana, in: Revista Brasileira de Direito de
Famlia, Porto Alegre: Sntese: IBDFAM, v. 7, n. 32, out/nov. 2005, p. 138-158. Em sentido con-
trrio, com respeitveis argumentos, entendendo que os deveres matrimoniais so exigveis
juridicamente, Jesualdo Eduardo de Almeida Jnior, Danos Morais pelo Descumprimento dos
Deveres Pessoais do Casamento, in: Revista IOB de Direito de Famlia, So Paulo: IOB, Ano XII,
V. 59, abr-maio/2010, p. 119-144.
Isso no significa dizer, contudo, que a pretenso indenizatria
est definitivamente afastada do cenrio dos rompimentos amorosos,
mas que ela no decorre, pura e simplesmente, da violao dos deve-
res matrimoniais estabelecidos nos artigos 1566 e 1725 do Cdigo Civil.
A disciplina da responsabilidade civil nas relaes ertico-afeti-
vas segue exatamente as mesmas diretrizes e fundamentos da respon-
sabilidade civil em geral. O artigo 5, inciso X, da Constituio Federal
assegura a tutela da personalidade e a sua reparao em caso de desa-
gravo. Tal se dar em toda e qualquer situao da vida, inclusive nas
relaes ertico-afetivas, com a ressalva de que nestes tratos ertico-
-afetivos, todo rompimento causa dor, sofrimento, angstia que, per si,
no so indenizveis, mesmo porque, como sustentado, no a dor, o
sofrimento e a angstia que caracterizam o dano moral, mas a afronta
personalidade, ainda que improvada a dor ou o sofrimento.
Se a conduta adotada pelo cnjuge ou companheiro afronta a um
dos deveres previstos nos artigos 1566 e 1725 do Cdigo Civil, o cami-
nho, ordinariamente, a dissoluo pura e simples do casamento ou da
unio estvel, se assim decidir o suposto ofendido. Todavia, se dessa
conduta resultar agravo personalidade do ofendido, a sim emergir
o direito a indenizao, no por conta da violao pura e simples do
dever matrimonial, mas em razo da afronta a personalidade, a par-
tir do artigo 5, X, da Constituio Federal e dos artigos 186 e 187 do
Cdigo Civil.
Neste sentido, a sempre lcida lio do Professor Rolf Madaleno:
com a supresso da culpa, da separao judicial causal, consta-

tao, remdio e do divrcio direto, alm da separao extrajudi-
cial, no Direito brasileiro estabeleceu-se uma completa dissociao
entre o casamento e o agravo moral como causa de divrcio ou de
separao. Com a promulgao da Emenda Constitucional 66/2010,
o divrcio deve ser requerido sem nenhuma necessidade e sem a
menor possibilidade de ser alegada qualquer culpa ou causa deter-
minante do divrcio dos cnjuges, e, portanto, no h mais como
associar ou vincular a dissoluo objetiva do casamento a qualquer
descumprimento dos deveres conjugais que resultam em apenas
deveres morais dos consortes e que no produzem nenhum efeito
jurdico cujo descumprimento atua exclusivamente na conscincia
dos cnjuges assim como no sistema jurdico brasileiro j ocorria
no instituto da unio estvel, mas que no afastam o agravo moral,
que passa a ser fruto exclusivo de tutela de valores superiores com
chancela eminentemente constitucional de ofensa honra, a inte-
gridade fsica ou psquica, a sade, deixando de ser remdios do
direito de famlia, de tal modo que, um cnjuge vtima, por exem-
plo, de um descumprimento de um dever conjugal moral, com a
ocorrncia de adultrio, pode optar em simplesmente terminar seu
casamento com o divrcio direto e objetivo, ou pode requerer inde-
nizao por violao de seu direito fundamental, cujo pleito judicial
no inibe e nem condiciona ao decreto do divrcio.47
Assim, a violao da f conjugal, decerto a mais grave ameaa aos

laos conjugais, no conduz por si s indenizao por dano moral48 ,
mas a imputao falsa de uma paternidade sabidamente inexistente49,
a transmisso de doenas sexualmente transmissveis50,a exposio
pblica do cnjuge enganado51 ou as circunstncias fticas que se d a
infidelidade52 , conquanto suplantados os limites da razoabilidade e da
proporcionalidade,podem atingir a personalidade e ensejar a indeni-
zao por dano moral, cabendo ao Magistrado, diante da casustica do
caso concreto, concluir se a conduta, mais que violar os deveres con-
jugais e autorizar a dissoluo do casamento, tambm afronta a perso-
nalidade e impe um dever de indenizar.
Violncias fsicas, morais e psquicas durante o casamente igual-
mente podem ensejara reparao por dano moral, no por violao
ao dever do casamento, mas pela ilicitude do ato em si, com as gra-
ves e indelveis repercusses decorrentes, lembrando que a Lei Maria
47
Curso de Direito de Famlia, 5 ed., rev., ampl. e atual., Rio de Janeiro: Forense, 2013,
p.346-347.
48
REsp ; Apelao n. 990.10.032811-5, TJSP, Rel. Des. Enio Santarelli Zuliani, j. 28.10.2010; Ape-
lao n. 2000.001.19674, TJRJ, 2 Cmara Cvel, Rel. Des. Gustavo Kuhl Leite, j. 10.04.2001, Ape-
lao n. 2004.001.15985, TJSJ, 4 Cmara Cvel, Rel. Des. Reinaldo P. Alberto Filho, j. 17.08.2004;
Apelao n. 990.10.435780-2, TJSP, Rel. Des. Carlos Teixeira Leite, j. 11.11.2010; Apelao n.
424.070-4/5, TJSP, Rel. Des. Maia da Cunha, j. 15.12.2005; Apelao n. 229.390.4/9, TJSP, 1
Cm. Dir. Privado, Rel. Des. Marcelo Benacchio, j. 19.7.2006, RT 752/344. Em sentido contrrio,
entendendo que o simples fato da infidelidade faz emergir o dever de indenizar: Apelao n.
2204.012615-8, TJSC, 2 Cmara Cvel, Rel. Des. Luiz Carlos Freyesleben, j. 05.05.2005; Apela-
o n. 56957-0/188, TJGO, 1 Cmara Cvel, Rel. Des. Vitor Barboza Lenza, j. 23.05.2011.
49
REsp n. 922462/SP, STJ, 3 T., Rel. Min. Villas Bas Cueva, j. 04.04.2012; REsp. n. 742.137/RJ,
STJ, 3 T. Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 21.08.2007. Em todos estes casos no foi analisada a viola-
o ao dever matrimonial de fidelidade, mas a violao a honra subjetiva do cnjuge.
50
Apelao n. 0004160-33.2006.8.26.0269, TJSP, 9 Cm. Dir. Privado, Rel. Des. Alexandre
Lazzarini, j. 04.11.2014.
51
Apelao Cvel no Juizado Especial n. 2006051-008663-8, 1 Turma Recursal dos Juizados
Especiais Cveis e Criminais do Distrito Federal, Rel. Juiz Sandoval Oliveira, j. 11.12.2007,
entendendo que o adultrio em si no d ensejo ao dano moral, porm, o flagrante da mulher
nua, no prprio leito conjugal, em atitude reconhecida por terceiros afeta a personalidade e
torna o ato indenizvel.
52
Apelao Cvel no Juizado Especial n. 2008.01.1139238-8, 2 Turma Recursal dos Juizados
Especiais Cveis e Criminais do Distrito Federal, Rel. Juiz Asiel Henrique de Souza, enten-
dendo que o adultrio e o abandono do lar pelo marido, em momento de grave enfermidade
da esposa, constitui afronta a personalidade suscetvel de indenizao. Em outro caso, o Tri-
bunal de Justia de Gois entendeu indenizvel a atitude do cnjuge que manteve trato amo-
roso com a concunhada, em relacionamento pblico, permitindo que o assunto tornasse
comentrio corriqueiro em pequena cidade do interior (Apelao n. 133775-5/188, Rel. Juiz
Substituto em Segundo Grau Francisco Valente, j. 11.10.2010).
da Penha contempla hipteses legais expressas de violncia contra a
mulher.53
Assim, o cnjuge ou o companheiro, independentemente do
sexo, que espalha intimidades depreciativas a respeito do outro, que
desmoraliza publicamente o parceiro, que ofende reiterada e pesada-
mente a honra, que enxovalha o nome da famlia mantendo atitudes de
franco deboche, da ensejo a dissoluo da vida em comum e tambm,
por fundamentos distintos, a uma reparao de danos. Para a disso-
luo do casamento ou da unio ser suficiente a vontade qualificada
de apartar-se do projeto afetivo, afigurando-se impertinentes quais-
quer declaraes de causas. Para a indenizao por danos morais, ser
indispensvel a demonstrao do agravo personalidade, fruto exclu-
sivo de tutela de valores superiores, com chancela eminentemente
constitucional de ofensa honra, integridade fsica ou psquica,
sade, como bem pontuado por Rolf Madaleno.54
4REPARAO CIVIL NAS RELAES PATERNO-FILIAIS EM RAZO DA

DISSOLUO DA FAMLIA55
A dissoluo familiar poderia ensejar reparao civil aos filhos?

Ordinariamente, no! Contudo, esta questo demanda uma an-
lise sobtriplo enfoque: i) o dever de indenizar pelo simples rompimento
do casamento ou unio estvel; ii) o dever de indenizar pelo descum-
primento de funes parentais; iii) dever de indenizar pela conduta
mantida pelo casal durante o casamento ou a unio estvel.
Sob a perspectiva do rompimento imotivado do casamento ou da
unio estvel, somos taxativos quanto a ausncia de dever de indenizar
por eventuais danos experimentados pelos filhos.
Como demonstrando neste trabalho, ningum obrigado a
permanecer vinculado a um projeto conjugal contra a vontade, nem
mesmo a pretexto de que o rompimento da relao implicar em gra-
ves consequncias aos filhos, sendo desnecessrio esforo maior para
antever qual ser a qualidade do ambiente domstico e das relaes
interpessoais onde a convivncia familiar imposta aos componentes.
Por maior e mais ampla que se apresente a tutela dos interes-
ses de crianas e adolescentes, na ponderao a ser feita os interesses
53
Artigos 5 e 7, da Lei Federal n. 11.340, de 7 de agosto de 2006.
54
Curso de Direito de Famlia, 5 ed., rev., ampl. e atual., Rio de Janeiro: Forense, 2013,
p. 346-347
55
Embora no seja tpico especfico do presente estudo, impe-se algumas breves considera-
es sobre a responsabilidade civil pela dissoluo da famlia sob a perspectiva dos filhos
havidos da relao desfeita.
destes vulnerveis e a liberdade dos cnjuges/companheiros, preva-
lecer a vontade dos cnjuges/companheiros quanto ao rompimento
do relacionamento, mesmo porque dela resultara, ainda que por via
oblqua e indireta, a tutela dos prprios interesses dos filhos, protegi-
dos de um ambiente familiar desestruturado, onde no mais prevalece
afeto entre os genitores.
Ainda que os filhos experimentem inegvel sofrimento com a
separao dos pais, no emergir direito a indenizao pela dor da
separao dos pais ou mesmo pela mudana natural de hbitos, do
cotidiano, da rotina da decorrentes56 .
O fim da conjugalidade, entretanto, no poder implicar em pre-
juzos parentalidade, alm daqueles naturalmente decorrentes do fim
do casamento ou unio dos pais:
o fato que a separao conjugal ou a dissoluo de uma socie-

dade ftica envolve profundas e estressantes alteraes nos rela-
cionamentos familiares. Algumas poucas afetam a rotina dos filhos
menores, outras talvez, nem influenciam no curso normal de seu
desenvolvimento, entretanto, a condio emocional da maioria
dos menores e a sua aptido social so normalmente os mais atin-
gidos pela experincia da separao. Os mais correntes estresso-
res detectados so o conflito conjugal, tanto no momento anterior,
como posterior separao, bem como a problemtica que se trans-
forma o relacionamento com um ou ambos os pais e principalmente
a perda de contato com um dos genitores57
Sob a perspectiva relacionada ao exerccio das funes paren-

tais, diferentemente do que se verifica na conjugalidade, pautada na
absoluta igualdade de direitos individuais e ampla na liberdade de
escolhas, a relao paterno-filial caracteriza-se por um desnivela-
mento nos interesses em jogo, de um lado, o genitor/capaz, de outro,
uma criana/adolescente/ vulnervel, sendo que, no conflito entre
estes interesses, evidentemente, a ponderao deve pender favoravel-
mente ao vulnervel.
56
Adauto Almeida Tomaszewski, Separao, Violncia e Danos Morais: a tutela da personali-
dade dos filhos, So Paulo: Paulistanajur, 2004, p.126: A separao dos pais para os filhos
uma passagem de vida da maior importncia, pois muita coisa muda. A reorganizao por
demais extensa: h a perda do convvio com o pai e a me na mesma casa; h a possibilidade
da perda do convvio cotidiano com os irmos, ou parte deles, na hiptese de alguns ficarem
com o pai e outros com a me; h a modificao de hbitos e de rotinas; alterao no padro
de vida; h uma nova realidade que se no for cuidadosamente preparada, pode gerar enor-
mes malefcios ao bom desenvolvimento emocional de uma pessoa ainda em formao.
57
Adauto Almeida Tomaszewski, Separao, Violncia e Danos Morais: a tutela da personali-
dade dos filhos, So Paulo: Paulistanajur, 2004, p.120.
A preponderncia da tutela dos interesses dos filhos nas relaes
parentais constitui consequncia lgica das diretrizes constitucionais
que, nada obstante ter assegurado direitos individuais a todos indistin-
tamente, estabeleceu um sistema de proteo integral para os incapa-
zes, decorrente no s das disposies que tutelam a dignidade das
pessoas em geral (ex. vi, art. 1, III, art. 3, I e todos os direitos assegura-
dos pelo art. 5 da CF), mas especialmente de disposies especficas,
como ocorre com o artigo 227 do texto constitucional, que assegura
s crianas e adolescentes, com absoluta prioridade, direito vida,
sade, alimentao, educao, ao lazer, profissionalizao, cul-
tura, dignidade, ao respeito, liberdade e convivncia familiar e
comunitria, alm de coloc-la a salvo de toda forma de negligncia,
discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso e com os
artigos do Estatuto da Criana e do Adolescente e do Cdigo Civil que
obrigam a todos, inclusive e notadamente aos pais, a zelar pelos inte-
resses de quem, reconhecidamente, necessita de cuidados especiais
para executarem suas dignidades e personalidades.
Da interpretao sistemtica dos princpios da dignidade, soli-
dariedade, afetividade e do melhor interesse da criana exsurge um
dever jurdico de cuidado que obriga os pais a zelarem pelos interesses
dos filhos para alm de aspectos materiais, abrangendo aspectos ps-
quicos e morais, sob pena de responsabilidade:
buscando a ponderao dos interesses contrapostos, ter-se-ia ao

lado dos genitores o princpio da liberdade e da parte dos filhos o
princpio da solidariedade familiar. Levando-se em conta a peculiar
condio dos filhos e a responsabilidade dos pais na sua criao,
educao e sustento, seria incabvel valorizar a sua liberdade em
detrimento da solidariedade familiar e da sua prpria integridade
psquica. Ponderados, pois, os interesses contrapostos, a solidarie-
dade familiar e a integridade psquica so princpios que se super-
pem, com a fora que lhes d a tutela constitucional, autonomia
dos genitores, que, neste caso, dela no so titulares. Nesta hip-
tese, a realizao do princpio da dignidade humana d-se a partir
da integralizao do princpio da solidariedade familiar, que con-
tm, em si, como caracterstica essencial e definidora, a assistn-
cia moral dos pais em relao aos filhos menores. A Constituio e
a lei obrigam os genitores a cuidar dos filhos menores. Na ausncia
deste cuidado, com prejuzos necessrios integridade das pessoas
a quem o legislador atribuir prioridade absoluta, pode haver dano
moral a ser reparado.58
Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional,Rio de Janeiro: Renovar,

58
2010, p. 449.
No raro, pais ressentidos com a separao confundem conju-
galidade e parentalidade e deixam de manter contato com os filhos,
assim agindo unicamente para atingir a figura do cnjuge, olvidando
que esto de fato penalizando os filhos. Da mesma maneira, guardi-
es que no se desvincularam do relacionamento desfeito criam obs-
tculos convivncia dos filhos com o genitor que desertou do projeto
conjugal. No incomum, infelizmente, encontrarmos situaes de
genitores que reconstruram suas vidas afetivas e simplesmente se
esqueceram dos filhos do primeiro casamento, relegando-os ao mais
completo ostracismo e abandono. Assim agindo, descumprem com os
deveres paternos, podendo, em inmeros casos, causar graves danos
prole esquecida.
Adauto de Almeida Tomaszewski, apoiado em Hesse e Cmara,
afirma que a perda do vnculo, especialmente com o pai, consubstan-
cia-se no aspecto fundamental de um desajuste, em que as consequn-
cias emocionais mais comumente verificadas so a depresso, a raiva
e a ansiedade, que conduzem, no raro, a um severo quadro de iso-
lamento e delinquncia59,situaes que podem caracterizar ofensa a
personalidade do filho que, se comprovadas, podem ensejar a suspen-
so/destituio do poder familiar e a imposio de alimentos, como
tambm a reparao do dano material e moral decorrentes do descum-
primento do dever de cuidado inerente a funo parental60, devendo,
todavia, agir o julgador com prudncia redobrada nos pleitos indeniza-
trios, evitando o desvirtuamento e a vulgarizao das relaes paren-
tais, o que, inegavelmente, apenas reforar o afastamento entre pai e
filho.
Ningum obrigado a amar, mas relativamente aos filhos, h
indeclinvel dever de cuidar.61
59
Adauto de Almeida Tomaszewski, ob. cit., p. 139.
60
Adverte-se, contudo, que nem todo descumprimento a funo parental conduz a reparao
civil, afinal, se algum faz as vezes de pai (ou de me), desempenhando as suas funes, no
haver dano a ser indenizado, no obstante o comportamento moralmente condenvel do
genitor biolgico. No se admite qualquer carter punitivo indenizao do dano moral. No
se trata de condenar o pai que abandonou o filho (eventual dano causado), mas de ressarcir o
dano sofrido pelo filho quando, abandonado pelo genitor biolgico, no pde contar nem com
seu pai biolgico, nem com qualquer figura substituta, configurando-se, s a, o que se cha-
mou de ausncia de pai (isto , ausncia de uma figura paterna), conforme adverte, com
razo Maria Celina Bodin de Moraes, ob. cit., p. 450. Igualmente, no haver indenizao,
quando a situao ftica revelar que a criana no experimentou qualquer afronta a persona-
lidade em razo do descumprimento das funes parentais por parte de quaisquer dos geni-
tores, o que pode ser apurado com o auxlio de percia.
61
Ana Carolina Brochado Teixeira: no momento em que ocorre a concepo seja ela dese-
jada ou no inmeras responsabilidades envolvem este ato, inclusive o exerccio da autori-
dade parental, nos moldes constitucionais estabelecidos, ou seja, preciso que os pais ajam
com responsabilidade na estruturao biopsquica da criana. Por isso, amor no imposto,
mas responsabilidade sim. Justifica-se, desta forma o instituto da autoridade parental, princi-
palmente no que tange sua integridade psquica, ao deixar uma lacuna em sua vida,
Portanto, o genitor pode exercer livremente a autonomia exis-
tencial e romper o projeto conjugal, mas no pode, posto irrenuncivel,
descumprir do dever parental relativamente prole.
Por fim, sob a perspectiva da conduta adotada pelos genitores
durante a constncia do casamento e da unio estvel, temos a possi-
bilidade jurdica de indenizaes quando dela resultar dano persona-
lidade do filho.
Um ambiente domstico permeado por agresses fsicas, ps-
quicas, morais pode trazer consequncias serssimas para os filhos,
mesmo quando apenas o cnjuge ou o companheiro a vtima direta
das agresses.
Pesquisa realizada por Dalka Chaves de Almeida Ferrari, psic-
loga pela PUC/SP e violncia domstica pela IPUSP, citada por Adauto
de Almeida Tomaszewsky, concluiu que violncia domstica traz, em
curto prazo, as seguintes consequncias: transtornos fsicos, transtor-
nos no desenvolvimento de apego e do afeto; transtornos no desenvol-
vimento cognitivo, linguagem e rendimento escolar; sequelas fsicas,
maior risco de que estas crianas tornem-se no futuro pais igualmente
abusadores; conduta delinquencial e comportamento suicida na ado-
lescncia, maior possibilidade de crianas com posturas delinquenciais
no futuro.62
Evidentemente que condutas semelhantes levadas a efeito pelo
genitor contra o outro ou contra os filhos durante o casamento ou
unio estvel potencialmente lesiva personalidade dos filhos que,
resultando em danos, far emergir o dever de reparao, com funda-
mento na clusula geral de indenizar do artigo 5, X, da Constituio
Federal e artigos 186 e 187 do Cdigo Civil brasileiro, mesmo porque h
um direito da criana a um ambiente domstico saudvel e um dever
dos genitores em respeit-lo que, evidncia, descumprido pelo
agressor.
5CONCLUSO
Tanto as relaes conjugais, quanto as relaes parentais exte-

riorizam atos de autonomia existencial, executando a personalidade
de seu titular. Todavia, nas relaes conjugais partem de um plano
de igualdade absoluta entre os cnjuges e companheiros, a lhes con-
ferir plena liberdade e poder de autodeterminao para iniciarem e
Responsabilidade Civil e Ofensa Dignidade Humana, in: Revista Brasileira de Direito de

Famlia, Porto Alegre: Sntese: IBDFAM, v. 7, n. 32, out/nov. 2005, p. 151. No mesmo sentido,
REsp 1.159.242/SP, STJ, 3 T., Rel. Min. Nancy Andrighi, j 24.4.2012.
62
Adauto de Almeida Tomaszevski, ob. cit., p. 158-159.
romperem o projeto conjugal imotivadamente63 , sem que deste rom-
pimento, por si s, resulte qualquer dever de indenizar. O rompimento
da relao amorosa constitui direito postestativo, a ser exercido unila-
teralmente, bastando a manifestao de uma vontade qualificada neste
sentido, sendo que a indenizao pelo fim da conjugalidade excep-
cional e somente ser admitida com fundamento no direito comum, a
partir da clusula geral de tutela da personalidade, quando presentes
ofensa indevida a dignidade e dano injusto do outro parceiro, e no
objetivamente,a partir do exerccio do ato de descasar ou do mero des-
cumprimento de deveres do casamento.
J a relao de parentalidade entre pais e filhos pautada pelo
desnivelamento dos interesses. A tutela integral e absoluta da criana
e do adolescente, vulnerveis, prepondera sobre a liberdade e ampla
autonomia privada do genitor, impondo observncia rigorosa a deveres
de solidariedade e de cuidado inderrogveis que, se descumpridos cul-
posa ou dolosamente pelo genitor, podem ensejar o dever de indenizar,
desde que comprovada que a conduta adotada pelo genitor, durante ou
aps a dissoluo do casamento ou da unio estvel, afronta indevida-
mente a personalidade da criana e do adolescente, causando-lhe dano
injusto.
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DIREITO DAS FAMLIAS E RELIGIES:
LIBERDADE, F E A PRIMAZIA DO AFETO
Andra Pach
As famlias nossas de cada dia, tema escolhido para o X Con-

gresso Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de famlia (IBDFAM),
evoca uma orao crist, o Pai-Nosso, na qual se roga a Deus que o po
nosso de cada dia nos seja dado hoje.
No sem razo que em um Congresso Cientfico de Direito das
Famlias discutamos a sua interface com as religies, quer pela origem
das regras jurdicas, quer pelas atuais discusses que envolvem a pre-
valncia das normas legais, quando confrontadas com a liberdade de
credo e a f religiosa, quer pelo fundamentalismo religioso que tem
multiplicado a intolerncia e resistido s transformaes experimenta-
das pelas famlias contemporneas.
As divergncias e os abismos que afastam e muitas vezes con-
frontam o direito das famlias das religies, no so maiores do que as
convergncias que os unem, tica e humanamente.
inegvel a origem religiosa na formao dos Estados. o
amor, o eixo principal de todas as crenas e religies ocidentais, e o
humanismo, um movimento transformador tanto para a f quanto para
o afeto e para as liberdades.
No mundo dicotmico e preguiosamente burro em que vivemos
na contemporaneidade, no qual se pretende o confronto permanente
entre dualidades muitas vezes inventadas, penso que no devamos
limitar esse debate ao simplismo que nos levaria a defender o Estado
laico em contrapartida com a religiosidade, mesmo porque, no so
conceitos antagnicos em grande parte das vezes.
Sem a religio no se elabora a cultura do mundo, como diz com
propriedade Leandro Karnal.
Na origem histrica do Direito, no se diferenciava a moral, da
religio e da famlia. A preocupao com a individualizao desses
saberes remonta-se ao sculo XIX.
Durante muito tempo, os fatores sociais, inclusive os religiosos,
dominaram e se confundiram com o ordenamento jurdico. Na Roma
Antiga, a famlia patriarcal prevalecia no Direito; na Idade Mdia, a
Igreja fabricava e executava as normas.
A religio, como fonte valorativa de princpios sempre limitou
as condutas para que o objetivo final, o bem maior, fosse alcanado.
E mesmo a ruptura com a viso teocntrica, mesmo depois do antro-
pocentrismo e da edio da Teoria Pura do Direito, de Kelsen, o fen-
meno religioso continuou e continua impregnando a cultura e a rede
normativa.
Direito, religio e famlia sempre considerando aqui, a civili-
zao ocidental com maior ou menor grau de interferncia e inter-
seo, continuam existindo como mecanismos de controle social,
impondo condutas e valores e, em tese, objetivando o bem supremo.
A religio, um dos fenmenos sociais mais antigos da humani-
dade, esclarece pela f os contedos existenciais do ser humano: de
onde viemos? o que estamos fazendo aqui? Para aonde vamos depois
da morte? Qual o sentido da nossa vida? Encontraremos o paraso ou
arderemos no inferno? Seremos premiados pelo bem que fizemos ou
punidos pelo mal que provocamos?
O sentimento religioso um dos mais complexos sentimentos
que fundamentam a essncia do ser humano e porque natural e inde-
pende da razo e da inteligncia, ele adquire diversas formas.
Karnal, mais uma vez nos ensina que h um momento que a
razo no alcana. H ausncias que a razo no explica. Como manter
a convico materialista diante da dor das perdas? Como experimentar
a morte de um filho, explicando o fenmeno como clulas e molcu-
las que nunca mais se recomporo? Nesse contexto, aqueles que tm o
privilgio da f, encontram o sentido para tudo na religio.
Encontrar na f, o conforto e o consolo para a nossa precria
e provisria condio humana um sentimento que alivia e cria uma
rede de proteo ao nosso desamparo.
A experincia da f pura nos transcende e nos enleva.
Santa Teresa de vila vivenciou o xtase de uma f que nada
espera e nada limita, traduzindo esse sentimento com um estupendo
soneto:
No me move, Senhor, para querer-te,

O cu que me hs um dia prometido;
Nem me move o inferno to temido,
Para deixar por isso de ofender-Te.
Move-me tu, Senhor, move-me o ver-Te

Cravado nessa cruz e escarnecido.
Move-me no teu corpo to ferido.
Move-me Tua dor e Tua morte.
Move-me ao teu amor de tal maneira,
Que no havendo cu eu Te amara
No havendo inferno, eu Te temera.
Nada tens a me dar porque te queira.

Pois se o que ouso esperar no esperara,
O mesmo que Te quero, Te quisera.
Ao se apropriar da f genuna, no entanto, as religies se organi-

zaram ao longo da histria como organismos institucionalizadores das
crenas e responsveis pelo processo de socializao e conteno dos
indivduos.
O Direito na Antiga Roma era determinado pela famlia e impreg-
nado pela religio, por meio de cultos aos antepassados, em que o pai
(pater famlias) era o sacerdote.
Na Idade Media, em que os poderes espirituais centralizados
pela Igreja eram disputados com o Estado, os monarcas, a pretexto de
exercer a espiritualidade, exploravam os servos. Aqui, acima dos papas,
apenas Deus. Perodo triste no qual o Direito Cannico, por meio da
inquisio, matava na fogueira aqueles que no se submetiam s ideo-
logias e s normas penais que se impunham pelo medo entre os scu-
los XVI e XVII.
A Reforma Protestante, desencadeada por Lutero, no incio
do sculo XVI, produziu um pequeno afastamento entre a Igreja e
o Estado. As denncias de que o valor fundamental da f havia sido
transformado em mercadoria, fortaleceu a essncia transcendental da
religio.
No sculo XIX, desloca-se a f religiosa para a cincia e a crena
de que a cincia solucionaria todos os nossos problemas naufraga com
as duas grandes guerras do sculo XX.
Fulmina-se, assim, tambm a cincia. No h credibilidade que
resista ao Holocausto e Hiroshima. Paul Valry sintetiza a nossa con-
dio nesse cenrio de horror: Ns sabemos agora que somos mortais.
Como catalisadoras da f, mas tambm como instituies regu-
ladoras da vida em grupo, as igrejas impem o poder pelo medo: pelo
medo do inferno, pelo medo da morte, pelo medo do padecimento e do
sofrimento que os mandamentos religiosos so construdos.
O Direito, como expresso da vontade de um grupo social e
atuando como limitador dos desejos e impulsos individuais, repete o
modelo religioso, substituindo o fogo do inferno, pelo inferno das celas
e presdios.
Vrias normas legais so fundamentadas nos preceitos bblicos:
no matars, no prestars falso testemunho, no roubars, so ape-
nas alguns exemplos.
Temos herdado das religies mecanismos importantes para a
vida em grupo, mas tambm somos herdeiros das arbitrariedades e
violncias cometidas em nome das religies.
E no falo dos grandes conflitos ideolgicos que assombram o
Oriente Mdio, a Europa e transformam a f em instrumento de funda-
mentalismo e de terror. Refiro-me ao amor e liberdade, sentimentos
to constitutivos da nossa humanidade, quanto f e que, em nome de
algumas crenas, tm sido vilipendiados.
Permitam-me, antes de chegar aos reflexos que o uso indevido
da f e do afeto tem provocado na contemporaneidade, traar um para-
lelo entre a experincia transcendental da f e o fenmeno amoroso.
Tambm o amor, na nossa cultura ps-romntica, almeja a
eternidade.
Depois que os casamentos deixaram de se realizar apenas por
interesses patrimoniais e depois que o Direito das Famlias assimilou
a cultura do amor romntico, a expectativa do encontro afetivo, da
comunho de almas e da eternidade passaram condio de exerccio
permanente de f.
O xtase do encontro, to bem desenhado por Roland Bar-
thes, em Fragmentos de um discurso amoroso, a crena de que o amor
suplantar todas as dificuldades e no ceder aos cansaos do coti-
diano, renovando-se dia aps dia, apesar das diferenas, apesar da
falta de grana, apesar da rotina, enfim, todos os sentimentos e expec-
tativas que envolvem as unies afetivas s se sustentam por um exerc-
cio permanente de f e de esperana.
Contrariando todas as evidncias e toda a lgica, amantes inves-
tem nas relaes como se fossem eternas e experimentam, ainda que
temporariamente, a sensao da eternidade, pelo tempo que dura o
amor.
A experincia do amor renova, de alguma maneira, a nossa rela-
o com o sagrado. Ela induz sacralizao do outro, transcendncia
do amado que, contudo, continua inteiramente circunscrito na esfera
da imanncia humanidade. Um dos sentimentos mais imediatos e
mais ntimos dos seres humanos (Luc Ferry).
E se, atualmente, a f tem sido explorada indevidamente, o que
falar do amor, nesses tempos em que mataram Deus e as ideologias?
O movimento religioso pendular e costuma se fortalecer em
tempos catastrficos. O futuro parece sombrio, as transformaes
permanentes da sociedade so orientadas, de um lado, pela busca leg-
tima pela felicidade e por outro lado, pelos comandos insistentes de
uma sociedade de consumo que no admite qualquer contrariedade e
eleva a satisfao e o desejo condio de direito.
Jurandir Freire Costa indica que nesse cenrio assombroso de
decadncia de valores ticos, em que o mercado parece ter ocupado o
lugar do sagrado em todos os altares, em que incensado pelo mundo
Ocidental, fundamental que recuperemos a nossa matriz judaico-
crist, na forma laica ou espiritual, para que possamos nos apropriar
com maior veemncia e conscincia de seus dois elementos bsicos: a
justia e o amor.
Diz Jurandir Freire Costa:
Existe, hoje, em boa parte do discurso filosfico e das cincias

humanas inclusive o da psicanlise uma tendncia a no ape-
nas diagnosticar o que acontece, mas tambm a fazer previses
catastrficas. Essa inclinao tem como base a transformao bru-
tal do mundo institucional, baseado na famlia, nos ideais polticos
e na elaborao dos sentidos de vida por parte dos indivduos. Um
dos suportes do equilbrio mental o sentimento de que a vida vale
a pena. Mais do que a nossa vida individual, o que deixamos no
mundo que tem valor e acrescenta algo s futuras geraes.
Em O ponto de vista do outro, argumento que nosso iderio tico
fundamental, baseado nos valores judaico-cristos, no foi perdido.
Em nossa constituio como sujeitos esto implcitos os ideais de
justia e de amor que se impem s mais diversas concepes que
temos da realidade e da subjetividade. O ideal de justia estabelece
a equidade no tratamento dado a todos, e o de amor, o respeito e a
aceitao da singularidade de cada um.
No possvel que, a pretexto de afirmar discursos religiosos,

aprofundemos a intolerncia e utilizemos os espaos pblicos para
oprimir e para excluir direitos j conquistados, reabilitando a culpa e,
de alguma forma reinserindo-a nos processos civis de guarda e divr-
cio que deveriam e devem obedecer aos avanos republicanos decor-
rentes do estado laico.
Da mesma forma que no pretendemos adaptar os dogmas reli-
giosos s transformaes terrenas, no podemos admitir que tais nor-
mas nos pautem em uma repblica.
O Estatuto da Famlia, aprovado na Comisso da Cmara, um
triste exemplo daquilo que no pode ser tolerado, em nome da f.
Um Estado laico no aquele que se contrape s religies,
mas aquele que discute e debate com a sociedade sobre os temas que
dizem respeito cidadania e ao direito, apesar dos credos de cada um
individualmente.
No possvel que, em nome da f, se desconsidere o afeto como
direito constitutivo das relaes familiares.
No razovel que, a pretexto de fortalecer as crenas religio-
sas, se impea a sociedade de discutir as novas famlias, a democra-
tizao dos afetos, a igualdade dos gneros, a multiparentalidade e o
aborto. Aes dessa natureza, como a que lamentavelmente assistimos,
com a aprovao do PL 5.069, dificultando o acesso das mulheres
plula do dia seguinte e desqualificando-as quando vtimas de estupro,
reduzem-nos em dignidade.
Tambm no bom esquecer que at 1977, por fora do poder
da Igreja Catlica, fomos impedidos de incluir o divrcio na ordem
jurdica.
Cada qual livre para escolher a prpria religio, sem, contudo,
impor ao Estado um padro normativo que no seja o escolhido pelo
grupo social, sob pena de transformar a profisso de f em uma impo-
sio fundamentalista.
A liberdade religiosa um comando constitucional. A f um
sentimento transcendental da nossa humanidade que nos reconecta
com o divino. O amor e as transformaes provocadas em benefcio
da sociedade, com o reconhecimento de direitos, devem ser afirmados
cotidianamente.
Em nome da f e em nome da liberdade, temos assistido a toda
sorte de ignomnias. Contudo, tambm temos, felizmente, encontrado
resistncias importantes aos retrocessos. Precisamos cuidar da recon-
ciliao das palavras com os seus significados.
Quando o prprio Papa Francisco afirma que a verdade no
absoluta ou imutvel. Mesmo ateus reconhecem o divino. Atravs de
atos de amor e caridade ateu reconhece Deus, bem como redime sua
alma, tornando-se um participante ativo na redeno da humani-
dade, ele sinaliza para o restabelecimento leigo ou espiritual do valor
da tica judaico-crist. No ao aparato religioso comprometido com o
poder temporal, mas recuperao dos princpios da justia e do amor.
A democracia moderna herdeira dos ideais judaico-cristos.
So eles, como aponta Jurandir Freire Costa, que nos fazem repelir a
corrupo, a violncia, o uso mercantil do outro, a crueldade, o precon-
ceito e, diante do conflito entre os princpios legais e os princpios reli-
giosos, a Justia chamada a decidir cada caso concreto, sopesando os
valores constitucionais que cada processo encerra. E assim tem feito
nos casos de transfuso de sangue, de divrcio, de reconhecimento de
parentalidade socioafetiva.
Prossegue Jurandir: Derida criou o conceito da justia por vir
e democracia por vir, um tipo ideal tico que embora jamais se rea-
lize plenamente, aponta e orienta para a tica da responsabilidade e do
cuidado para com o outro.
O problema no vaticinar o apocalipse, com o individualismo
exacerbado, o consumo desenfreado e os impulsos ilimitados.
Nossa misso, seres da experimentao, que desejamos fortale-
cer a transcendncia e os valores de humanidade que nos identificam
a valorizao do outro.
A justia por vir uma condio da possibilidade de convvio
humano. No mundo dessa justia, o poder econmico, poltico, cient-
fico, religioso ou artstico encontram os limites no respeito igualdade
de todos e s diferenas de cada um.
Reconhecer que sempre haver ausncias, buracos, solides e
escurides, prprios da condio humana e compreender que, com f
ou sem f, o sofrimento parte constitutiva da vida, assim como so as
alegrias, um comando que a escolha pela liberdade impe.
Somos seres do esprito, da f e das religies, mas tambm somos
seres errantes do amor, do desejo e das fantasias. pela liberdade que
conseguiremos construir pontes e afirmar, tanto na f, quanto no
afeto o nosso compromisso de construir um mundo mais humano para
todos.
Conto para vocs uma histria, que integra meu livro A Vida no
Justa e que ilustra, concretamente, o respeito a esses valores:
SAGRADO UM SAMBA DE AMOR
Roslia e Nelson se conheceram numa roda de samba. Uma morena,

dos olhos de jabuticaba que tocava pandeiro e no saa do boteco
antes da quarta ou quinta saideira, era a cabrocha dos sonhos de
qualquer um daqueles homens que varavam a madrugada sem
pressa e sem sono, ao som do cavaquinho.
A primeira vez que Nelson a viu, evitou o encontro do olhar, afinal,

quem trouxe a morena pra roda foi seu compadre e no era certo
um amigo desejar a mulher do outro.
N no, doutora?
Eu ouvia to atenta a histria que aquele senhor grisalho de sorriso
largo me contava que cheguei a esquecer que estava presidindo uma
audincia de divrcio e que aquele casal, sentado na minha frente,
era a morena do pandeiro e o mestre do tamborim de outrora.
Ela pediu o divrcio e disse que estava separada de Nelson h

mais de dois anos. Era o que bastava, na poca, para o pedido ser
reconhecido: dois anos de separao de fato, sem qualquer escla-
recimento quanto aos motivos ou culpas que levaram ao fim do
casamento.
A lei presumia que, passado tanto tempo, todos os conflitos esta-

riam solucionados e a ferida cicatrizada.
Para que discutir a relao quela altura do campeonato? Cada um

para o seu lado, s restaria ao Estado regularizar a situao, libe-
rando cada qual para seguir a sua estrada.
A velocidade da vida imps mudana na lei. Atualmente, no mais

preciso esperar dois anos. Com cicatriz ou sem cicatriz, com refle-
xo ou sem reflexo, o divrcio pode ser decretado em minutos.
Se, por um lado, isto significou celeridade e desburocratizao, por

outro, no dia a dia, o que se percebe que a rapidez e a superficia-
lidade com que as pessoas se unem e se separam indicam o quanto
a contemporaneidade tem impedido a criao de vnculos consis-
tentes e o comprometimento afetivo, inclusive para a experincia
do luto daquele que ainda ama e precisa do tempo para digerir o fim
do amor.
Enfim, Darwin j alertou que, na vida, no sobrevive o mais forte ou

o mais inteligente, mas aquele que tem maior capacidade de adapta-
o. E assim seguimos, nos adaptando aos novos tempos e s novas
velocidades.
Tudo isso se passou pela minha mente antes de perguntar Ros-

lia se ela tinha como demonstrar que estava separada de Nelson h
mais de dois anos.
Eu no tenho prova no, doutora. Mas eu sou evanglica e no

minto. A gente mora na mesma casa, mas cada um no seu quarto
h mais de trs anos.
O fato de morar na mesma casa no era impedimento pra se reco-
nhecer que o casal no divida o mesmo leito, mas, ainda assim, a
comprovao era necessria.
Vocs tm algum familiar, algum empregado, vizinho, qualquer

pessoa que saiba que esto separados de fato?
Eu posso pedir pro meu pastor testemunhar. Ele sabe da minha
vida toda e eu preciso desse divrcio por causa da igreja.
Nelson, nessa hora, interrompeu:
Ela no tem vontade prpria no, dona juza. Ela gosta de mim,
mas tem medo do pastor.
Prossegui, ento:
A senhora quer mesmo o divrcio? No gosta mais dele?
Gostar at gosto. Trinta anos a vida toda, mas ele no muda,

doutora. Eu j disse que se ele largasse o samba, a cerveja, a gente
nem precisava separar.
Largar o samba como? interrompeu Nelson Vamos viver do

qu?
E aqui ele comeou a contar a vida do casal. O primeiro encontro.

Os bailes e as rodas nos bares. Roslia era uma pandeirista de pri-
meira, parceira insubstituvel. Trabalhavam juntos todos os finais
de semana. A casa foi comprada com dinheiro das apresentaes.
O samba propiciou uma vida confortvel, digna e cheia de alegria.
Foi um orgulho para Nelson provar famlia de Roslia que era, sim,
possvel, viver de amor e samba.
A converso de Roslia veio com a morte da me. Inconsolvel, foi

acolhida por um pastor que a orientou espiritualmente e arrefeceu
a dor dilacerante.
A partir de ento, ela enxergou a luz e era impossvel conciliar a

nova vida com bebidas, bares, samba e baguna.
Definitivamente aquilo no era o desejo de Deus.
Nos primeiros meses, Nelson sentiu-se no inferno, tamanha era a

insistncia para a sua converso. Depois, foi aprendendo a retomar
seu trabalho sem a companheira inseparvel e, por fim, sempre de
bom humor, resignou-se solido tanto no samba quanto na cama.
No tive dvidas. Suspendi a audincia e marquei nova data, com a
presena do pastor.
No primeiro momento, o casal aguardou do lado de fora.
Antes de comear, eu gostaria de agradecer a sua disponibilidade,

pastor, porque estamos diante de um problema que, tenho certeza,
com a sua ajuda, poderemos resolver.
Solcito e com a autoestima reforada, ele assentiu.
Cada um tem a sua f e eu respeito profundamente todas.

Tenho certeza que o senhor tambm.
Claro meritssima.
Sei que nenhum deus de nenhuma religio pode ser contra o amor,
concorda?
Claro, meritssima.
Esse casal que aguarda no corredor s veio se divorciar porque o

senhor teria orientado a mulher nesse sentido e, como eu tenho
certeza de que o senhor jamais faria isso, pedi que viesse aqui para
explicar a ela que o marido pode continuar trabalhando no samba.
Ele me olhou desconsertado e fingiu que no entendeu.
Dei, ento, o argumento final:
Pastor, esse casal vive da msica. Se ele parar de tocar, ela no

ter dinheiro nem sequer para contribuir com as obras da igreja
que ela tanto preza. Se no for incmodo, vou faz-los entrar e o
senhor esclarece que qualquer trabalho honesto divino e que, se
ela preferir, no precisa ir, mas no obrigada a se separar por esse
motivo. Pode ser?
Ele concordou. Esclarecidos os fatos, Nelson voltou para o samba e

Roslia, sem pandeiro, voltou para a cama.
Pecado uma vida sem samba, sem f e sem amor.
Para encerrar, proponho que entoemos uma orao, impregnada

da espiritualidade do Pai-Nosso, mas dirigida aos nossos iguais, como
imagino que deva ser a tica da alteridade:
Irmos e irms parceiros em humanidade

Liberdade seja o nosso nome
Compartilhemos o nosso tempo
Conjugando e respeitando as nossas vontades
Usufruindo da natureza, das terras e dos cus.
As famlias nossas de cada dia, sejam reconhecidas hoje
Resistamos intolerncia
E aprendamos a perdoar
Aos que tem sido intolerantes conosco.
Apesar do desamparo, no nos deixeis desanimar. Amm.

Anais IBDFAM 2015

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