U1 - Texto 4 - Beethoven - Do Classicismo Ao Romantismo

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HISTRIA DA MSICA - GRCIA ANTIGA AO BARROCO - 1S 2015

Profa. Dra. Jlia Tyge4


AULA 3

BEETHOVEN: DO CLASSICISMO AO ROMANTISMO

Em 1792, a monarquia francesa estava com seus poderes


restringidos pela Revoluo Francesa; Viena era uma cidade de
atmosfera artstica, ainda no dominada pelas foras de Napoleo;
Haydn estava no auge de sua fama; e Mozart falecera precocemente
havia pouco, aos 35 anos. Nesse ano, o jovem Beethoven (1770-1827),
ento com 21 anos, arriscou-se em uma longa viagem de Bonn, sua
cidade natal, para Viena, onde iria tentar a sorte na carreira de
compositor. Seus registros mostram que ele teve contato com Haydn
pouco tempo depois de sua chegada, e ele logo se estabeleceu com o
apoio financeiro de contatos da aristocracia.
Se comparada com a de Haydn e Mozart, a obra de Beethoven
pequena: por exemplo, Beethoven comps 9 sinfonias, enquanto
Haydn comps mais de 100, e Mozart mais de 50. Seus rascunhos
Beethoven retratado em aprox.
mostram um processo criativo sempre muito trabalhoso, com vrios 1804 por seu amigo Willibold
trechos rabiscados e refeitos. E, diferentemente da viso mais Joseph Mhler, segurando uma lira
pragmtica que tinham os compositores clssicos sobre o fazer em analogia ao deus grego Orfeu.
artstico, como mostram suas cartas, desde a juventude Beethoven j
se alinhava ao ideal romntico (e ainda popular) de que a inspirao -
intangvel e independente da vontade do atista - seria algo imprescindvel criao musical.
Podemos dividir a obra de Beethoven em trs fases, cujos estilos so bem diferentes: na
primeira, Beethoven estava assimilando a linguagem musical de seu tempo e buscando sua prpria
voz composicional; na segunda, ele atingiu sua maturidade composicional e identificou-se com
ideais do Romantismo que se delienavam na literatura, em especial a obra de Goethe; na terceira sua
msica tornou-se mais introspectiva e reflexiva.

O primeiro perodo - Transio do Classicismo para o Romantismo


Logo que chegou a Viena, o jovem Beethoven recebeu apoio de diversos patronos da
aristocracia, para quem compunha e executava suas obras ao piano e com orquestra, alm de dar
aulas - vivendo assim uma fase prspera e confortvel. Como Mozart, ele se estabeleceu
financeiramente de forma independente, sem ser subordinado a um nico patro. Nesse contexto,

como Mozart, o sucesso de Beethoven como pianista dependia em parte que ele
escrevesse peas que no apenas demonstrassem suas habilidades, mas tambm
atingissem o mercado de amadores. Assim, o maior conjunto de composies escritas
durante a sua primeira dcada em Viena foi de sonatas, variaes, e obras mais curtas
para piano. Beethoven dedicou suas trs primeiras sonatas a Haydn; nelas, ele revela seu
dbito ao estilo do compositor mais velho [...] (Hanning, 2010:378).

1
A oitava sonata de Beethoven, Op. 8 n. 13 (1799), possui trs movimentos, na
tonalidade de D menor, ento associada a um carter passional e tempestuoso: trata-
se da famosa Pattica (o termo se refere palavra grega pathos, que alude a emoes). O
primeiro movimento se inicia com uma introduo Grave, algo uncomum para uma sonata (embora
j comum nas sinfonias), e logo adensa a textura, agregando pea maior dramaticidade e levando-a
a uma grandeza sinfnica. Os compassos iniciais so ento repetidos, marcando as sees da forma-
sonata utilizada: o incio do desenvolvimento, e depois a recapitulao (reapresentao dos temas) -
os locais inesperados na forma onde esses eventos ocorrem acentuam o carter dramtico da obra. O
segundo movimento um sereno e lrico Adagio em Lb maior1, mas o movimento final, em forma
de sonata-rond (variao da forma-sonata), retoma a seriedade inicial (ao contrrio do que se
esperaria em um movimento em sonata-rond de Haydn ou Mozart, que associariam essa forma a um
carter mais leve). O movimento final tambm relaciona-se com os dois anteriores - como seria
comum nas obras maduras do compositor: seu tema traz semelhanas com o segundo tema do
primeiro movimento; e h uma seo que remete tonalidade Lb maior do segundo movimento.
Em relao aos quartetos e sinfonias, Beethoven s se arriscaria nos gneros consagrados por
Haydn depois de j estar profissionalmente estabelecido em Viena:

Beethoven esperou estar bem estabelecido em Viena, e mais confiante no seu trabalho,
antes de compor seus primeiros quartetos de cordas e sinfonias. Ele sabia que esses eram
gneros nos quais Haydn, ento tido como o maior compositor vivo, era famoso, ento
escrever peas de mesmo tipo seria um convite comparao dele com seu prprio
professor. Por esta razo, tambm, esas peas representavam uma chande de Beethoven
provar seu valor como compositor. (Hanning, 2010:379).

Seus primeiros quartetos foram publicados em 1800 como Op. 18, e devem
muito msica de Haydn e Mozart, muito embora sejam mais dramticos pelos
contornos frsicos mais irregulares, modulaes no convencionais, e mudanas sutis nas formas
ento padro. Um timo exemplo dessa dramaticidade est no segundo movimento do quarteto Op.
18 n. 1, que o compositor disse ter sido inspirado na cena da tumba de Romeu e Julieta (a parte mais
dramtica da histria, quando Romeu, pensando que Julieta est morta, comite suicdio - e ela, que
estava apenas desacordada sob efeito de uma droga, para passar por morta e ficar livre para viver o
seu amor, acorda e encontra o corpo de seu amado). O n. 6, diferentemente, possui um scherzo (III
movimento) divertido no qual o compositor brinca com a sensao mtrica do ouvinte, ao marcar
sempre os acentos nos tempos fracos, e o rond (IV movimento) desse mesmo quarteto possui uma
surpreendente introduo lenta chamada La malinconia (A melancolia), que recapitulada adiante
no movimento - esses so apenas alguns exemplos nos quais Beethovens fez alteraes sutis na
forma e esttica dos quartetos de cordas de sua poca, assim ao mesmo tempo demonstrando
conhecimento desese gnero composicional e demarcando seu prprio estilo como compositor.
No ano de 1800, Beethoven tambm estreou sua primeira sinfonia - Sinfonia n. 1 em D
maior, Op. 21, durante um concerto que, como era tpico naquela poca, inclua uma miscelnea de
obras sem muita relao entre si, entre elas obras de Haydn e Mozart e uma improvisao ao piano
feita pelo prprio Beethoven. Com seus quatro movimentos, a sinfonia demonstra que Beethoven,
neste gnero, seguiu o caminho de Haydn e Mozart, muito embora tenha algumas caractersticas
diferentes de seus predecessores: uma maior importncia aos sopros, maior acuidade na escrita das
dinmicas, e codas longas e marcantes nos primeiro, segundo e quarto movimentos.

1 A ttulo de curiosidade, a pianista Hiromi concebeu um arranjo para o segundo movimento, adaptando-o linguagem do
jazz.

2
Uma carta do compositor de 1801 j narra grande desconforto com sua audio, que evoluiria
para surdez praticamente total em cerca de 1820.
De uma forma geral, nessa fase Beethoven explorou os gneros e as influncias composicionais
de seus antecessores e, por mais que j tenha dado a elas sua marca individual, podemos
classificar a maioria delas ainda como pertencentes ao perodo Clssico (muito
embora j sejam transicionais para o Romantismo).

O segundo perodo - Romantismo


As obras dessa segunda fase, em maioria, j podem ser consideradas pertencentes ao
Romantismo, e expressam a maturidade composicional de Beethoven.
Aps doze anos de estadia em Viena, Beethoven j era conhecido em toda a Europa como o
principal pianista e compositor para piano de sua poca, alm de ser considerado um sinfonista
altura de Haydn e Mozart. Mesmo que suas inovaes fossem frequentemente consideradas
excntricas, elas tinham em grande medida reconhecimento do pblico. Beethoven continuava
gozando de amizade e apoio das famlias mais poderosas de Viena, que eram seus patronos de forma
generosa e entusiasta. Beethoven soube ainda lucrar com a publicao de suas obras, tanto
provocando certa competitividade e barganhando os melhores valores entre as editoras de Viena,
quanto publicando obras em diversos pases (seguindo o exemplo de Haydn) para preservar seus
direitos autorais e maximizar seus lucros. No entanto, muito embora compusesse frequentemente por
encomenda, Beethoven se esquivava do estabelecimento de prazos finais, uma vez que afirmava que
precisava de tempo para refletir sobre a obra e poli-la antes de consider-la final - como de fato
demonstram seus rascunhos.
Sua audio nesse perodo j estava comeando a se deteriorar ao ponto de ele carregar
consigo um caderno de notas para o auxiliar na comunicao com as pessoas por escrito2. Dando-se
conta de que sua surdez seria progressiva e no reversvel, Beethoven submergiu em uma profunda
crise pessoal na qual chegou a pensar at em suicdio, como narrou em uma carta em 1802. No
entanto, conseguiu sair da crise com o desejo urgente de continuar compondo - e muitas pessoas
associam suas obras subsequentes como espcies de narrativas de seus dramas e lutas pessoais,
associando o tema inicial ao prprio compositor, que se desenvolve por muitos caminhos durante as
peas. o caso da Sinfonia n. 3, em Mib maior, Op. 55 (1803-1804), conhecida como
Sinfonia Eroica (Herica)3 - obra grandiosa que alude grandeza de um heri, sendo mais
complexa e longa que suas sinfonias anteriores. O heri aludido era Napoleo, que ento

2A provvel causa da surdez de Beethoven teria sido uma doena auto-imune. Existe uma interessante linha de pesquisa
em msica que busca ligar as maneiras compor, tocar e mesmo apreciar a msica a partir do estudo de deficincias
corporais, que pode interessar aos professores que venham a trabalhar com crianas especiais. Um livro recente sobre
esses estudos chama-se Extraordinary Measures: Disability in Music, de Joseph Straus, professor na City University of
New York.
3Aqui em interpretao comentada pela orquestra West-Eastern Divan Orchestra de Daniel Barenboim no talvez mais
importante evento de msica erudita do mundo, o BBC Proms. Essa orquestra muito interessante, porque tem um
projeto pacifista ou humanitrio como pano de fundo: idealizada pelo pianista e regente Barenboim, ela inclui integrantes
de diversos pases do Oriente Mdio, especialmente israelenses e palestinos, que ali suspendem os conflitos de seus
governos para juntos produzirem boa msica.

3
representava os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da Revoluo Francesa4. Podemos
interpretar que o primeiro movimento, em forma-sonata, alude histria do heri com seus desafios,
batalhas e vitria final, sendo o tema principal o prprio personagem. Na abertura do movimento,
aps dois acordes iniciais (min 6:56 do exemplo em vdeo), emerge o tema principal tridico em D
maior (min 7:14), com um carter herico de fanfarra - no exemplo a abaixo, de Hanning
(2010:382). Logo depois, um surprendente D# alude talvez ao primeiro conflito enfrentado pelo
heri, que no entanto logo se ergue novamente, com a repetio do tema em dinmica mais forte. Ao
longo do movimento, esse processo se sucede inmeras vezes: o tema sofre diversos tratamentos
musicais que causam, possivelmente, a sensao de que o heri enfrenta situaes difceis - que
culminam nos acordes em tempos fracos na seo de desenvolvimento, mostrados no exemplo b
(Hanning, 2010:382) - mas o tema-heri sempre triunfa. O segundo movimento, ao invs de ser,
como era costume, um movimento lento, uma marcha fnebre (no exemplo, min 22:56) trgica e
grandiosa, que faz referncia tanto a Napoleo quanto prpria experincia republicana aps a
Revoluo Francesa.

Tema inicial e clmax


da Sinfonia Eroica de
Beethoven.

Logo aps terminar a Sinfonia Eroica, Beethoven comeou a trabalhar na sua nica pera,
Fidelio, que tambm alude Revoluo Francesa: a personagem principal, Leonore, possui atributos
valorizados pelos ideais revolucionrios, como coragem e auto-negao. A obra foi estreada em
1805, pouco depois que as tropas francesas haviam avanado sobre Viena - mas o compositor
trabalhou em duas revises at a verso final em 1814. A pera, contudo, no integra hoje o conjunto
das suas obras mais significativas.
Em 1806, Beethoven comps novos quartetos de cordas dedicados ao embaixador russo em
Viena, que era tambm violinista amador - a homenagem foi feita com a incluso de uma melodia
russa como tema principal no movimento final do primeiro quarteto, e outra no terceiro movimento
do segundo quarteto. Os quartetos, Op. 59, receberam o nome do homenageado: Quartetos
Rasumovsky. O estilo desses quartetos era revolucionrio para a poca, e teve difcil aceitao at
para os msicos: possui frequentes mudanas de textura, vrias notas pedal, imitaes de trompas,

4 Os desdobramentos da trajetria de Napoleo, contudo, mostraram sua face ambiciosa e tirana - e Beethoven diminuiu
gradativamente as expresses de louvor ao lder: Sinfonia grande intitolata Bonaparte e depois Gesschrieben auf
Bonaparte (Escrita sobre Bonaparte) em seus rascunhos, depois somente a indicao do ttulo Bonaparte em carta a
seu editor, e finalmente o ttulo final da publicao, dois anos depois, como Sinfonia Herica [...] escrita para celebrar a
memria de um grande homem. Ao que tudo indica, Napoleo esteve em uma apresentao da obra em Viena em 1809,
regida pelo prprio compositor.

4
passagens estranhas que exploram os registros limtrofes dos instrumentos, passagens em unssono
e fugas aparentemente mal colocadas.
Os anos de 1806-1808 foram extremamente produtivos: Beethoven comps as Sinfonias n. 3, 4
e 5 - as duas ltimas ao mesmo tempo, o que um pouco curioso, uma vez que tm carteres
contrrios: a Sinfonia n. 4, Op. 60, em Sib maior, remete a uma jovialidade e humor, enquanto a
famosssima Sinfonia n. 5, Op. 67, em D menor, ilustra, em seu carter, o
enfrentamento do compositor com seu difcil destino. Nessa abordagem, o tema se transforma do D
menor inicial para D maior em um finale triunfal, com a entrada de toda a orquestra, inclusive
tmpano e trombones, alm de piccolo e contrabaixos - exceto o tmpano, esses instrumentos ainda
no eram usuais na orquestra.
Ainda em 1808 Beethoven comps sua Sinfonia n. 6, Op. 68, em F maior, chamada
Pastoral, estreando-a no mesmo concerto que a Sinfonia n. 5. Essa sinfonia alude a sonoridades de
uma paisagem campestre, sendo uma obra programtica (que alude a uma temtica extra-musical):
os movimentos receberam ttulos e aluses descritivas do prprio compositor no programa, como
Tempestade (IV movimento), Canto dos pastores. Sentimento de contentamento e
reconhecimento aps a tempestade (em um V movimento adicionado), etc. No II movimento,
Andante, chamado Cena margem do riacho, o compositor imita sons de animais (rouxinol,
codorna, cuco) com a flauta, obo e o clarinete, como mostra o exemplo abaixo (Hanning,
2010:387).

Evocao de pssaros na
Sinfonia Pastoral de
Beethoven. A flauta imita
um rouxinol (nightingale), o
obo uma codorna (quail) e
o clarinete um cuco
(cuckoo).
!

As Sinfonias n. 7 em L maior, Op. 92 e n. 8 em F maior, Op. 93, foram ambas terminadas em


1812 e, como a 4 e a 5, apresentam carteres contrastantes: a n. 7 grandiosa, e a n. 8 mais
condensada, sendo apresentadas com grande sucesso de pblico.
Beethoven tambm comps aberturas orquestrais, geralmente na forma de primeiros
movimentos de sinfonias. Alm da abertura de sua pera Fidelio, ele comps aberturas para as
peras Coriolan (1807) e Egmont (1810).
Ainda na mesma poca, entre 1800 e 1805, Beethoven comps dez sonatas para piano: entre
elas esto a Op. 26 em Lb, que possui outra marcha fnebre; as Op. 27 n. 1 e 2 - a n. 1 sendo
chamada de Quasi una fantasia (Quase uma fantasia - o termo fantasia alude a uma forma livre)
e a n. 2 sendo a famosa Sonata ao Luar que, surpreendentemente para uma sonata da poca,
comea com um movimento lento. So tambm desse perodo outras sonatas clebres: a Op. 53 em
D maior (1804), chamada Waldstein (nome do patrono a quem foi dedicada), e Op. 57 em F menor
(1805), chamada Apassionata. Em suas sonatas para piano, Beethoven variou o gnero e a forma-
sonata, herdadas do Classicismo, de praticamente todas as maneiras possveis, usando as ideias de
contrastes e retrica contidas nesse gnero e nessa forma para explorar grande dramaticidade, alm
da sensao de conflito e resoluo.
Tambm na sua primeira dcada em Viena, Beethoven comps trs concertos para piano, para
serem tocados por ele mesmo, como fizera antes Mozart. Mas, diferentemente de seu antecessor, e de

5
forma anloga s suas sinfonias, Beethoven transps o gnero do concerto a uma nova escala, mais
grandiosa. Ilustram essa afirmao o Concerto para Piano n. 5, Op. 5, chamado Emperor
(Imperador, 1809), e o Concerto para Violino em R maor Op. 61 (1806), nos quais o solista
colocado quase como um heri em contraposio orquestra. No primeiro movimento do concerto
Emperor, por exemplo, o solista comea com uma cadncia (escrita, no improvisada) antes da
prpria exposio do tema pela orquestra - uma variao da forma dos concertos, de forma anloga
s variaes da sonata. A partir dos concertos de Beethoven, o gnero dos concertos passou a
demonstrar mais constraste que cooperao entre o solista e a orquestra.

O Terceiro perodo
Os anos a partir de 1815 foram de forma geral pacficos e prsperos para Beethoven: sua
msica era tocada regularmente em Viena, ele tinha reconhecimento tanto ali quanto
internacionalmente, e seus patronos e editores encomendavam msicas regularmente, de forma que
as finanas iam bem. No entanto, sua surdez havia progredido muito, ele enfrentou problemas
familiares e comeou a temer (infundadamente) a pobreza - o que o fez se afastar das pessoas e
assumir traos de personalidade mais rudes mesmo com seus amigos - que a imagem no senso
comum que se tem do compositor at hoje. No bastatesse, 1815 foi tambm o ano da derrota de
Napoleo na Rssia, seguida por uma depresso econmica que dificultou a composio de obras
grandiosas. No novo governo instaurado, as ideias associadas Revoluo Francesa eram tidas como
subversivas, e Beethoven chegou a ser investigado e espionado por conta de suas convices. Nesses
anos, ele no comps nenhuma obra com associaes polticas. Entre 1815 e o incio dos anos 1820,
seu foco principal foram novas sonatas para piano (cinco entre 1816-1821), as Variaes Diabelli
para piano 5(1815-1822) - considerada a maior obra do gnero desde as Variaes Goldberg de J.
S. Bach, influenciando outras obras importantes nesse gnero depois - e seus ltimos cinco quartetos
de cordas (1824-1826): todos gneros voltados execuo caseira. Em 1816, j quase totalmente
surdo, Beethoven tinha que compor tendo como base apenas os sons internos de sua mente. Sua boa
comunicao com seus patronos e o pblico em geral foi dando lugar a uma postura mais
instrospectiva, que se expressa na msica desse perodo. Cada vez mais, sua msica passou a se
basear mais em conceitos musicais abstratos que na concretude dos sons, voltando-se assim mais a
um pblico especializado que ao leigo. Isso perceptvel em um aumento do uso de tcnicas de
variao do tema nas sees de desenvolvimento das formas-sonata (como na prpria Nona Sinfonia,
e na Sonata para piano n. 29 em Sib maior, Op. 106); em uma maior conexo de ideias e
continuidade entre os diversos movimentos das suas obras (requerindo inclusive que alguns
movimentos fossem tocados sem interrupo); e em uma maior explorao de contraponto em
sesses em fugato (como por exemplo nos finales das Sonatas para Piano Op. 106 e 110 - essa ltima
uma de suas maiores obras-primas no gnero; no primeiro movimento do Quarteto de Cordas em
D# menor, Op. 131, na Grande Fuga para quarteto de cordas, Op. 133). De forma quase
inexplicvel, nessa poca tambm o compositor passou a requerir novas sonoridades, como por
exemplo o uso simultneo em todos os instrumentos de um quarteto de cordas de pizzicato e sul
ponticello (tocar com a ponta do arco, produzindo um som aerado) - um desafio para os
instrumentistas, uma vez que o volume de ambos os recursos limitado para que seja apresentado

5 Essas variaes so uma aula sobre desenvolvimento motvico. Beethoven considerado um dos compositores mais
brilhantes nas tcnicas de variao motvica: podemos notar que os temas de suas obras so normalmente muito simples,
formadas basicamente por trades, arpejos e escalas (ao contrrio, por exemplo, dos temas inspiradssimos de Mozart).
Mas as formas de variao desses temas so absolutamente brilhantes - e as Variaes Diabelli, sendo justamente uma
forma de tema e variaes, demonstram isso com grande clareza.

6
em salas maiores. Isso rendeu crticas ao compositor na poca, associando esses requerimentos aos
seus problemas autiditos - hoje tidas como infundadas. Muitas obras desse perodo tambm
apresentam um nmero maior de movimentos que o que era costume, como cinco, seis e at sete
movimentos, frequentemente dando unidade obra por relaes temticas entre os movimentos -
como o caso do Quarteto de Cordas em D#m, Op. 131.
As nicas duas obras maiores desse perodo foram terminadas aps 1820, quanto a economia j
tinha comeado a melhorar: a Missa solemnis (1819-1823), Op.123, uma obra grandiosa que
demonstra uma devoo profunda do compositor e que, como a Missa em Sibm de J. S. Bach, no foi
de fato usada nas liturgias por ser longa e complexa demais (nesse perodo Beethoven estava
estudando a msica de Haendel, e se relaciona os oratrios desse compositor); e a Nona
Sinfonia (1822-1824), estreada em um concerto regido pelo compositor, mesmo surdo (no
tendo ouvido assim os aplausos do pblico antes do final da sinfonia, que foi um sucesso, e
demorando para entender que deveria se virar para agradecer). A maior inovao dessa obra o uso
de vozes solo e coro no finale, no clmax de uma longa sesso apenas instrumental. O texto possui
carter religioso e humanstico, aludindo a uma irmandade universal alegre, unida pelo amor divino
(a Ode Alegria). Assim,

Tendo frequentemente celebrado o herosmo na sua msica, Beethoven tornou-se, ele prprio,
um heri cultural, cuja reputao cresceu e se espalhou ao longo do sculo XIX. Sua histria de
vida ajudou a definir a viso romntica do artista criativo como um excludo social que sofre
corajosamente para trazer humanidade um sopro do Divino atravs da arte. (Hanning,
2010:396).

Referncias bibliogrficas:
GROUT, Donald J. & PALISCA, Claude V. Histria da Msica Ocidental. Lisboa: Gradiva,
1988.
HANNING, Barbara. Concise History of Western Music Fourth Edition: based on J.
Peter Burkholder, Donald J. Grout, and Claude V. Palisca A History of Western Music, Eight
Edition. New York: W. W. Norton & Company, 2010 (1st ed. 1998).

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