Os Modos Na Música Nordestina
Os Modos Na Música Nordestina
Os Modos Na Música Nordestina
Contextualizações
As evidências nos mostram que apesar do fenômeno sonoro ser constante em
(quase?!) todas as sociedades do planeta, podemos dizer que cada cultura trabalha
– ou já trabalhou – com algum (ns) parâmetro (s) do som de modo diferente
priorizando, muitas vezes, um ou mais parâmetros, em detrimento de outros.
Perspectiva histórica
Tudo nos leva a crer que a nossa cultura musical é resultante da miscigenação
de três etnias diferentes: o índio (nativo), o branco (europeu) e o negro (africano). O
processo de colonização do território brasileiro favoreceu a chegada dos europeus e
africanos, e a confluência das três culturas pode ser percebida, de modo geral, em
muitos aspectos da vida cotidiana e também em algumas manifestações sonoras-
musicais como, por exemplo, nas melodias modais, nas brincadeiras e canções
infantis, nas festas e danças populares, na performance de alguns instrumentos
musicais e na organologia.
Se, por um lado, Alvarenga (1982:13) afirma que nos tempos do Brasil Colônia
cada um dos elementos étnicos que concorreram em maior parte para a constituição
do povo brasileiro possivelmente fazia sua própria música, por outro podemos dizer
que as técnicas e procedimentos que os colonizadores utilizaram na “educação
musical” dos nossos primeiros habitantes variaram muito, abrangendo desde o
ensino dos instrumentos, melodias gregorianas, formação de corais até a encenação
dos dramas religiosos. Ora, os europeus prevalecendo-se de toda a supremacia dos
recursos físicos e materiais e carregados de toda a filosofia estética e moral tanto da
Idade Média quanto do Renascimento, impuseram os seus princípios e, segundo
Tinhorão (1972:11), com o aprendizado desses instrumentos a estrutura natural da
música dos indígenas, baseada em escalas diferentes da européia e, portanto,
geradora de um esquema harmônico totalmente diverso, perdia sua razão de ser,
reduzindo-se o som original da música da terra à marcação de um ou outro
instrumento de percussão, ainda permitido no acompanhamento de uma poucas
danças julgadas inofensivas pela severa censura dos jesuítas.
A concepção que mostra a absorção dos valores musicais europeus por parte
da sociedade ameríndia brasileira é questionada por Veiga Jr. (1982:12) ao afirmar
que assim como a religião, através da amalgamação com crenças dos nativos ou
trazidos da África, a música européia também se tornou abrasileirada. A
amalgamação musical inclui a transferência de instrumentos entre grupos
lingüisticamente distintos. A harpa tornou-se nbaracaguaçu, o mestre de capela
tornou-se mboraheii, o músico bem treinado tornou-se mborahei rehe ecatubae. O
canto gregoriano tomou o nome de Tupa upë porahei taba, o coro musical o nome
de mborahei apita e o mestre cantor o de nheengaraiba. O assobiador tornou-se
tomunhengoére.
O ethos modal
Um outro aspecto importante a ser observado no cancioneiro folclórico
nordestino diz respeito a questão do ethos da música modal. Esta palavra tem sido
utilizada desde a antigüidade clássica e seu significado foi aplicado à poesia e à
música. Contudo, independente das divergências de opinião entre filósofos, o
vocábulo sempre esteve associado as conotações extra musicais, expressando uma
realidade simbólica. Os gregos atribuíram poderes míticos e místicos à música e, por
conta disto, mantinham-na sob um rigoroso controle porque a formação do cidadão
e o equilíbrio do Estado estavam diretamente vinculados à música produzida, pois o
caráter de cada modo, a sua essência ética e o seu poder educativo seriam capazes
de despertar e representar sentimentos distintos e, conseqüentemente, alterar uma
realidade individual ou coletiva.
Considerações finais
É certo que as respostas a respeito da nossa identidade musical não serão
encontradas no momento, pois extrapolam os limites deste trabalho – restrito
exclusivamente ao aspecto literário, desconsiderando, portanto, a vivência, análise e
coleta de campo, procedimentos essenciais quando o objeto em estudo envolve a
música produzida coletivamente, cujos traços marcantes são os improvisos, as
transformações e variações a cada execução.
Notas
1 Regente, pesquisador, professor da UFPI e mestrando em Execução Musical pela UFBA
com área de concentração em regência coral.
2 Constância musical é um elemento que aparece com regularidade na música popular
de uma nação e que reflete um dos aspectos do pensar musical dessa mesma região
(Lacerda, 1966:67).
3 Apud Veiga Jr. (1983:13). 4 Apud Tacuchian (1994-95:10). 5 Lamas (1987) e Cascudo
(1993) mostram que esta forma poético-musical é descendente da Idade Média onde os
trouvères e troubadours desenvolveram tipos semelhantes com o nome de disputa,
tenson e jeux-partis, com características idênticas àquelas encontradas na nossa região,
isto é, diálogos cantados numa métrica quase livre e prosódica, ao som de alaúdes ou
violas. Grout e Palisca (1994:87), complementam e indicam que o tratamento melódico
das canções era geralmente silábico, com algumas figuras melismáticas, ornamentos e
modificações de estrofe para estrofe, acentuando o caráter de improvisação marcado
pelo uso do 1º e do 7º modos e seus respectivos plagais. 6 É com esta fundamentação
histórica que ele associa a origem dos dois modos brasileiros (o primeiro com o 4º grau
elevado e o segundo com 7º grau rebaixado), identificando o terceiro modo como o
resultado da junção do dois primeiros. 7 Apud Paz (1994:21). 8 Zabumba é uma banda
constituída por duas flautas de bambu, bombo e tarol. Esta denominação, segundo o
pesquisador, é bastante usual nos estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba,
Pernambuco e Alagoas.
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