Vórtices (Giorgio Agamben)
Vórtices (Giorgio Agamben)
Vórtices (Giorgio Agamben)
Giorgio Agamben
O movimento arquetípico da água é a espiral. Se a água
que corre no leito de um rio encontra um obstáculo, seja
um ramo ou o pilar de uma ponte, em conformidade com
esse ponto gera-‐‑se um movimento em espiral que, ao
estabilizar, assume a forma e a consistência de um vórtice.
O mesmo pode acontecer quando se encontram duas
correntes de água com temperaturas ou velocidades
diferentes: também aqui vemos formarem-‐‑se remoinhos,
que parecem ficar imóveis no fluxo das ondas ou das
correntes. Mas até o caracol que se forma na crista da onda
é um vórtice que, por causa da força de gravidade, se
desfaz em espuma.
O vórtice tem a sua própria rítmica, que foi comparada
ao movimento dos planetas em torno do sol. O seu interior
move-‐‑se a uma velocidade maior do que a sua margem
externa, tal como os planetas rodam mais ou menos
depressa dependendo da sua distância do sol. Nesse seu
enrolar-‐‑se em espiral, alonga-‐‑se para baixo para depois
voltar a sair para cima numa espécie de pulsação íntima.
Aliás, se se deixar cair no turbilhão um objeto – por
exemplo, um pedacinho de madeira em forma de ponteiro
– ele manterá, no seu constante rodar, a mesma direção,
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indicando o ponto que é, por assim dizer, o norte do
vórtice. O centro em torno do qual e para o qual o vórtice
não cessa de revolver é, no entanto, um sol negro, no qual
age uma força de arrasto ou de sucção infinita. Segundo os
cientistas, isto exprime-‐‑se dizendo que no ponto do vórtice
em que o raio é igual a zero, a pressão é igual a “menos
infinito”.
Considere-‐‑se o estatuto especial de singularidade que
define o vórtice: ele é uma forma que se separou do fluxo
de água de que fazia e, de algum modo, ainda faz parte,
uma região autónoma e fechada sobre si mesma que
obedece a leis que lhe são próprias; porém, ela está
estreitamente ligada ao todo em que está imersa, feita da
mesma matéria que continuamente troca com a massa
líquida que a circunda. É um ser à parte e, todavia, não há
uma gota que lhe pertença propriamente, a sua identidade
é absolutamente imaterial.
Sabe-‐‑se que Benjamin comparou a origem a um vórtice:
A origem [Ursprung] está no fluxo do devir como um vórtice e
arrasta no seu próprio ritmo o material da proveniência
[Entstehung]. […] O originário quer ser conhecido como
restauração, como recuperação, por um lado; e por outro,
precisamente por isto, como algo de incompleto e de não
concluído. Em todo o fenómeno de origem determina-‐‑se a figura,
pela qual constantemente uma ideia se confronta com o mundo
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histórico, até que ele repouse concluído na totalidade da sua
história. Porque a origem não emerge da esfera dos factos, mas
reporta-‐‑se à sua pré-‐‑ e pós-‐‑história. […] A categoria da origem
não é, então, como sustenta Cohen, uma categoria puramente
lógica, mas histórica.*
Tentemos levar a sério a imagem da origem como
vórtice. Antes de mais, a origem deixa de ser algo que
precede o devir e permanece separado dele na cronologia.
Como o remoinho no curso do rio, a origem é
contemporânea do devir dos fenómenos, dos quais tira a
sua matéria e nos quais, todavia, reside, de algum modo,
autónoma e parada. E dado que ela acompanha o devir
histórico, procurar compreender este último significa, não
remetê-‐‑lo para trás a uma origem separada no tempo, mas
confrontá-‐‑lo e mantê-‐‑lo com algo que, como um vórtice,
está ainda presente nele.
A compreensão de um fenómeno aumenta se não se
separar dele a origem num ponto remoto do tempo. A
arché, a origem voraginosa que a pesquisa arqueológica
procura alcançar, é um a priori histórico que permanece
imanente ao devir e continua a agir nele. E também no
curso da nossa vida, o vórtice da origem permanece
presente até ao fim, acompanha silenciosamente, a cada
instante, a nossa existência. Às vezes torna-‐‑se mais
próximo, outras distancia-‐‑se a tal ponto que já não
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conseguimos vislumbrá-‐‑lo nem aperceber-‐‑nos do seu
sussurrante borbulhar. Mas, nos momentos decisivos,
agarra-‐‑nos e arrasta-‐‑nos para dentro de si e então, de
repente, damo-‐‑nos conta de também não sermos nada
senão um fragmento do início que continua a revolver
naquele turbilhão de onde provém a nossa vida, a rodar
dentro enquanto – a menos que o acaso o faça reaparecer
fora – não atinge o ponto de pressão negativa infinita e
desaparece.
Existem seres que desejam apenas deixar-‐‑se sugar pelo
vórtice da origem. Outros, pelo contrário, mantém com ela
uma relação reticente e cautelosa, empenhando-‐‑se, na
medida do possível, em não se deixar engolir pelo
maelstrom. Outros, por fim, mais cobardes ou
inconscientes, nunca ousaram sequer lançar um olhar para
dentro dele.
Os dois estados extremos dos líquidos – do ser – são a
gota e o vórtice. A gota é o ponto em que o líquido se
separa de si, entra em êxtase (a água caindo ou salpicando
separa-‐‑se na extremidade em gotas). O vórtice é o ponto
em que o líquido se concentra em si, gira e vai ao fundo de
si mesmo. Existem seres-‐‑gota e seres-‐‑vórtice, criaturas que
com todas as suas forças procuram separar-‐‑se num fora e
outras que obstinadamente se envolvem em si, remetendo-‐‑
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se cada vez mais para dentro. Mas é curioso que até a gota,
voltando a cair na água, produza ainda um vórtice, se torne
turbilhão e voluta.
É necessário conceber o sujeito não como uma
substância, mas como um vórtice no fluxo do ser. Ele não
tem outra substância senão a do único ser, mas em relação
a este tem uma figura, uma maneira e um movimento que
lhe pertencem propriamente. E é neste sentido que é
preciso conceber a relação entre substância e os seus
modos. Os modos são os remoinhos no campo infindável
da substância que, afundando-‐‑se e revolvendo em si
mesma, se subjetiviza, toma consciência de si, sofre e
rejubila.
Os nomes – e cada nome é um nome próprio ou um
nome divino – são vórtices no devir histórico das línguas,
remoinhos nos quais a tensão semântica e comunicativa da
linguagem se bloqueia a si mesma até se tornar igual a
zero. No nome, já não dizemos – ou não dizemos ainda –
nada, chamamos somente.
É talvez por isto que, na representação ingénua da
origem da linguagem, imaginamos que primeiro vêm os
nomes, discretos e separados como num dicionário, e que
depois os combinamos para formar o discurso. Mais uma
vez, esta imaginação pueril torna-‐‑se clara, se
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compreendermos que o nome é, na verdade, um vórtice
que fura e interrompe o fluxo semântico da linguagem,
mas não simplesmente para aboli-‐‑lo. No vórtice da
nomeação, o signo linguístico, girando e afundando-‐‑se em
si mesmo, intensifica-‐‑se e exacerba-‐‑se ao extremo, para
depois se deixar sugar no ponto de pressão infinita em que
desaparece como signo, para reaparecer noutro lado como
puro nome. E o poeta é aquele que mergulha neste vórtice,
em que tudo volta a ser para ele nome. Ele deve retomar
uma a uma as palavras significantes do fluxo do discurso
e lançá-‐‑las no turbilhão, para reencontrá-‐‑las no vulgar
ilustre do poema enquanto nomes. Estes são algo que
alcançamos – se é que os alcançamos – somente no final da
descida no vórtice da linguagem.
* «A origem insere-‐‑se no fluxo do devir como um redemoinho que arrasta no seu
movimento o material produzido no processo de génese. […] O seu ritmo só se revela a
um ponto de vista duplo, que o reconhece, por um lado como restauração e
reconstituição, e por outro como algo de incompleto e inacabado. Em todo o fenómeno
originário tem lugar a determinação da figura através da qual uma ideia
permanentemente se confronta com o mundo histórico, até atingir a completude na
totalidade da sua história. A origem, portanto, não se destaca dos dados factuais, mas
tem a ver com a sua pré-‐‑ e pós-‐‑história. […] A categoria da origem não é, assim, como
quer Cohen, puramente lógica, mas histórica.» (Walter Benjamin, «Prólogo
Epistemológico-‐‑Crítico», Origem do Drama Trágico Alemão, trad. João Barrento, Assírio &
Alvim, Lisboa, 2004, p. 32.)
Giorgio Agamben, «Vortici», Il fuoco e il racconto, Nottetempo, Roma, 2014, pp. 61-‐‑66.
Tradução de trabalho de André Dias (com consulta de excertos traduzidos por Davi
Pessoa).
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