Livro - Kazuo Ohno - Treino e (M) Poema
Livro - Kazuo Ohno - Treino e (M) Poema
Livro - Kazuo Ohno - Treino e (M) Poema
apoio
~
JAPA FOUNDATION Kazuo Dhno Dance Studio
anta
co.ltd
n-1 edições
Impresso em São Paulo I Abril, 2016
n ledicoes.org
KAZUOOH
Treino e(m) poema
Ohno, Kazuo
Treino e(m) poema / Kazuo Ohno ; Tradução de Tae
Suzuki. - São Paulo: n-1 edições, 2016
15
Prefácio, por Lígia Verdi
23
Entendi - mas o que você entendeu?
71
Tentem, por favor, por isso nothing
119
9.9.1989
137
O amor existe, imperceptivelmente
195
É através do espírito que o vento sopra
241
Posfácio, por Éden Peretta
Apresentação' 9
1 Uma primeira versão deste texto foi publicada em inglês em Kazuo Ohno World. Trad. de
John Barrett. Connecticut: Wesleyan Univesity Press, 1997. A versão aqui presente, um pouco
menor, sofreu ligeiras adaptações.
10
o estúdio no qual os workshops eram realizados fica num terreno
localizado atrás da casa da farnflia Ohno. Em 1961, os dirigentes da escola
da Missão Batista Soshin, na qual Ohno trabalhava, lhe ofereceram as
tábuas retiradas dos prédios da escola, que na época estavam sendo
demolidos. Com elas, Ohno construiu o teto, o piso e as janelas de seu
estúdio, que desde então vem sendo progressivamente renovado e refor-
mado. Esse recinto de madeira branca, com quase sete metros de largura
por catorze de profundidade, serviu como seu espaço pessoal de ensaio
e como sede para os workshops, realizados duas vezes por semana. Não
se trata de um estúdio de dança típico: trajes e objetos de cena ficam
espalhados pelo chão e pendurados nas paredes, e não há nem barra de
exercícios nem espelhos. Ao entrar no estúdio, é possível que um visi-
tante se sentisse entrando num dos quartos da casa de Ohno.
Ainda que nunca tenhamos feito as contas, não seria exagerado
dizer que um número expressivo de pessoas participou dos workshops
durante os cerca de trinta anos de sua existência. Parte considerável
dos frequentadores não era de estudantes no sentido estrito do termo;
eles vinham de todos os lugares, uma vez que os workshops não eram
elaborados exclusivamente para dançarinos ou performers. Vinham de
perto e de longe - muitos até cruzavam oceanos para estudar com Ohno.
Havia idosos, pessoas de meia-idade e jovens. Alguns compareciam a
uma única sessão; outros frequentavam religiosamente cada workshop.
.Alguns somente assistiam e escutavam; outros participavam de maneira
ativa. Ohno não exigia nenhum tipo de qualificação ou experiência de
palco daqueles que desejavam participar. Na verdade, não lhes pergun-
tava nada. Não havia cronogramas ou exercícios definidos, e rostos novos
eram vistos a cada sessão. Era impossível prever quem ou quantas pes-
soas viriam num determinado dia. Mas quaisquer que fossem as variáveis,
o modo como Ohno conduzia aqueles workshops nunca mudava.
Talvez o que mais confundisse quem comparecia ao seu estúdio é que
Ohno deixava perfeitamente claro que não tinha nada a ensinar. Ainda
assim, enquanto planejava seus workshops, ele colocava inúmeras ques-
tões a si mesmo. Via de regra, Ohno preparava sua fala através de ano-
tação rápidas e de rascunhos de ideias sobre um tema específico; e o
11
fazia na mesma manhã - ou na noite anterior - do dia em que daria sua
aula. Quando chegava a hora de se dirigir aos presentes, no entanto, tudo
o que havia preparado escapava de sua memória - em suas palavras,
"tudo simplesmente desaparecia': Na aflição de transmitir sua mensa-
gem, Ohno acabava falando a respeito de um assunto em tudo diferente
daquele que havia previsto de início; falava, porém, com uma convicção
tão esmagadora que parecia colocar sua própria vida em jogo. Ohno
parecia tentar criar algo novo de fato, desesperadamente, e não apenas
apresentar um discurso preparado de antemão.
Sua longa fala de abertura durava mais de meia hora; e ela quase
sempre tratava dos mesmos tópicos, repetidos várias e várias vezes,
quase à exaustão. Contudo, ao se repetir, Ohno procurava, obstinada-
mente, induzir os participantes ao confronto com aquilo que conside-
rava a questão mais fundamental para um aspirante a performer: o que
há para se aprender neste workshop? O ponto de partida era o mesmo
para todos - um workshop sobre workshops. Perto do final da fala de
abertura, Ohno selecionava uma música, sugerindo temas ou imagens a
partir das quais os participantes deveriam improvisar. Esse era o padrão
estabelecido há mais de uma década: um Ohno inspirado e inspirador
que encorajava os participantes enquanto observava seus movimentos.
Alguns anos antes, Ohno apenas assistia aos workshops, sem comen-
tar nada; mas de 1977 em diante, ele passou a participar ativamente
deles. Essa sua "abertura" por assim dizer, coincidiu com seu retorno
da aposentadoria, a qual fora acompanhada por uma longa ausência da
cena pública. Esse mesmo ano também presenciou seu renascimento
no palco, com a apresentação, pela primeira vez, de La Argentina Sho.
As falas de Ohno não são de maneira alguma improvisadas. Ainda
que fossem eventualmente expressas de forma um tanto quanto retor-
cida em razão de seu modo idiossincrático de falar, sua mensagem, ape-
sar de tudo, estava longe de ser vaga. O que ele tinha a dizer é de uma
clareza patente, mesmo que algumas vezes não terminasse suas frases,
que frequentemente omitisse os sujeitos de suas orações ou que ocasio-
nalmente misturasse citações de outras fontes com suas próprias pala-
vras. Mesmo sem ser fluente em inglês, Ohno não deixava que isso o
12
impedi sse de tentar passar sua mensagem: era comum que
pincelasse
sua fala com termos do inglês ou de outras línguas acomp anhado
l s de
seus equiva lentes em japonês. Devido à presença de diverso
s estuda n-
tes estranq eiros, havia um intérpre te que traduzi a para o inglês
tudo o
que Ohno dizia. Para além de sua aparente complexidade, suas
falas são
cornpreensfveis, mesmo quando traduzidas, dada a natureza
universal
de sua mensa gem. O modo enigmá tico - e ao final justific
ável - de
Ohno se expressar produz ia um efeito singula r nos ouvintes.
Ele não só
falava com grande expressividade, mas também exalava uma
convicç ão
genuína. Na verdade, a qualida de fascina nte da fala de Kazuo
Ohno não
se devia nem à escolha das palavras nem a recursos retórico
s.
Ohno defendia que quando se tratava de dançai era seu dever
deixar
de lado, tanto quanto possível, tudo aquilo que já havia sido
pensado,
dito ou escrito sobre o tema. A riqor, as palavras que ele empreg
ava nos
worksh ops não estavam relacionadas com seu modo de estrutu
rar sua
forma de dançar. Afinal de contas, a dicção de um dançar ino
não serial
em essência, mais do que uma variação da fala cotidiana. Suas
palavras
não constituiriam, assim, uma dança em si. No entanto, dada a
correlação
entre a forma de expressar suas ideias e o conteú do do que diz,
é possí-
vel perceb er uma conexão natural entre as palavras e a dança
de Kazuo
Ohno. A partir dessa perspe ctiva particular, podem os dizer,
então, que
suas palavras dançam, que seu movim ento fala. Aqui, linguag
em e movi-
mento se fundem, evoluem como uma única sintaxe. No fim das
contas,
ainda que por meios ostens ivamen te diferentes, Ohno está nos
falando
de uma mesma coisa, seja com o movimento, seja com as palavra
s.
Ao compil ar os trechos aqui apresentados, nós, como editore
s, tínha-
mos que levar em conside ração aquilo que a dança de Kazuo
Ohno pro-
curava transm itir em essência. Para o propós ito deste livro,
decidim os
restring ir nosso foco às suas falas em workshops. Ohno tem outras
duas
publica ções de sua autoria : Buto-tu: goten sora o tobu [O palácio
paira
no céu: o butô de Kazuo Ohno], publica do pela Shicho sha em
19891 e
Dessin, pela editora Ryokugeisha 1992. Até hoje, nenhum desses
l traba-
lhos foi traduzi do para outras línguas. Constit uído de uma vasta
coleção
de ensaios e notas de Ohno, ao lado de contrib uições menores
de outros
comentaristas da área, Buto-iu é dedicado principalmente a suas ano- 13
1 Cf. Edmund T. Gilday. "Dancing with Spirit(s): Another View of the Other World in Japan" in
History of Religions, v. 32, nQ 3. Chicago: The University of Chicago Press, 1993, pp. 273-300.
no interior, como nas grandes cidades japonesas, cumprem-se os ritos
de fertilidade, de culto aos antepassados e de afastamento dos maus
espíritos. Ao norte do Japão, há uma região vulcânica chamada Osore-
zan, muito conhecida por abrigar a maior concentração de sacerdotisas
cegas [itako] e, diz a lenda, de fantasmas. No mês de agosto, comemora-
-se a festa dos mortos [obon]. Durante esse período, a casa é preparada
e oferendas de arroz, chá, frutas, flores e incenso são feitas junto aos
oratórios budistas [butsudan] para receber bem os antepassados. Acre-
dita-se que os espíritos dos mortos voltam às casas de suas respectivas
farnflias durante as festividades de obon.
Ohno nasceu durante o período Meiji, que se estende entre 1868
e 1912. Sua educação, embora declaradamente cristã, foi influenciada
pelas particularidades do Japão tradicional, caracterizado pela farnflia
corporativa como fonte de identidade de cada indivíduo. Nessas famí-
lias, os antepassados estão presentes na rotina dos membros vivos, que
conversam com seus mortos abrigados nos butsudan. O correr da vida é
permeado de gratidão e devoção àqueles que já se foram.
Treino e(m) poema traz a receita de uma forma de dançar, influenciada,
talvez, pela própria origem da língua japonesa e suas repercussões no
trabalho criativo e na mente de Ohno. Se nos remetermos à noção de
ideograma, ganharemos pistas para compreender o universo de Kazuo
Ohno, pois sua dança e sua fala são, afinal, uma composição de imagens,
de pensamentos e de sensações. Mas o que é o ideograma? Sabemos
que o japonês e o chinês são línguas que fazem uso de um sistema de
escrita ideogramático, cujo símbolo (ou imagem) tem um significado.
A origem do ideograma é o pictograma, que serviu, inicialmente, para
representar objetos e coisas concretas. Com o passar do tempo, surgiu
a necessidade de expressar ideias abstratas ou sentimentos. Recorreu-
-se, então, à combinação dos pictogramas já existentes para se chegar
a um novo conceito. Assim, por exemplo, para representar a noção de
claridade combina-se o ideograma de sol e de lua. Isso nos leva à noção
de montagem e, consequentemente, de cinema, arte que se constitui de
imagens e, sobretudo, da combinação delas. A dança de Kazuo Ohno nos
impacta pela composição inusitada e em movimento desses pictogramas
de coisas humanas e inumanas; de seres da natureza e de sensações e
sentimentos que se comunicam diretamente com o nosso inconsciente.
Assim como nas escritas ideogramáticas, nas quais um conceito
pode ser construído por meio de composição de imagens, o repertório
físico e gestual de Ohno realiza e extrapola esta fórmula na medida em
que as imagens e sensações geradas por seus movimentos não apon-
tam para um sentido determinado. O que acontece é uma invasão poé-
tica impactante de significantes sobre a plateia. O público é silenciado
pela colisão e mistura que essa experiência provoca. O espaço que
sobra é preenchido, com frequência, pelo inconsciente dos espectado-
res. A dança de Ohno é, assim, "dançada" por ele e pela plateia, que a
completa com o seu fluxo interno.
Por meio da leitura de seus workshops, o leitor também será introdu-
zido ao conceito implícito de ma - o qual permeia a cultura, a estética
e a linguagem japonesas, até mesmo os relacionamentos humanos, e
que é perceptível no trabalho de Ohno. Muitos perceberão o ma como o
vazio, o silêncio, o minimalismo. Kazuo Ohno diz para não termos receio
do Nada, da pausa, do silêncio, pois o espaço vazio é um espaço cheio
e é nele que precisamos submergir. Essa provocação de Ohno reflete
a sua mente encompassadora. Podemos relacioná-Ia, assim como
outras falas suas, aos koan (um diálogo, uma questão, uma afirmativa)
utilizados pelos mestres zen budistas com seus discípulos durante a
meditação. A partir deles, o praticante procura fazer um trabalho men-
tal que extrapola o pensamento racional para se aprofundar no ensina-
mento [dharma] e, eventualmente, atingir uma "experiência iluminadora"
[kenshô]. O koan "mu" é um dos mais utilizados - significa literalmente
"o nada'; mas também pode ser entendido como "o tudo'; remetendo ao
paradoxo "tudo-nada':
A noção de ma (ou de espaço negativo, como alguns a denominam)
pode ser observada, por exemplo, na estrutura rítmica e narrativa do
teatro nô, na câmera parada dos filmes de Vasujiro Ozu e na arquite-
tura minimalista japonesa influenciada pelo zen. Richard Pilgrim explica
que a palavra ma é formada pela soma de pelo menos dois elementos,
o ideograma que indica portão ou porta [mon] com o ideograma que
20 designa sol [hJ1 ou lua [tsuk/]. A combinação deles sugere uma abertura
preenchida com luz. Para Pilgrim, o "ma não é um mero vazio ou uma
simples abertura; através deles e dentro deles [vazio/abertura] brilha
uma luz, e a função deste ma torna-se precisamente deixar a luz brilhar
através desse vazio/abertura:"
O que isso tem a ver com a dança de Kazuo Ohno? Isso é uma estrada
a seguir para compreender a cena-butô, uma vez que introduz: o tempo
do intervalo, onde sua dança se situa; o estar presente no aqui-agora e,
paradoxalmente, a apropriação do devir - espaços-tempo por onde sua
dança transita; e o mundo invisível, com o qual sua dança dialoga.
Sua dança é arte, mas é também filosofia, metafísica, física quântica
e uma combinação sincrética de elementos do taoísmo, cristianismo,
budismo e xintoísmo. Ele é um pensador e, embora nos carregue para
tantas esferas do pensamento (quando fala para nós antes de nos cha-
mar para dançar), sua lição para o momento da dança é, coerentemente
com o zen, de que deixemos tudo para trás, que nos livremos de tudo,
para conquistarmos a nossa crazy dance. Para dançar esta dança, ou
melhor, ser dançado por ela, é preciso esvaziar-se, abandonar-se, man-
tendo-se disponível e atento à escuta do que vem de dentro e de fora.
O leitor será igualmente introduzido e surpreendido com as referên-
cias à palavra flor, associada à noção de essência. Como Ohno era um
grande apreciador do teatro nô, cabe um esclarecimento sobre o signi-
ficado da flor (essência) nesse contexto. Para Zeami - o grande orga-
nizador e teórico dessa forma tradicional de teatro japonesa - a flor é o
néctar do ofício que precisa ser cultivado por toda vida pelo ator. E isso
se faz através da conjugação de espírito e técnica para que se torne
interessante e se reflita nos olhos do público. Segundo Sakae M. Giroux,
essa interação constituirá o "verso e reverso de uma mesma flor, que
sutilmente se misturam'?
2 Richard B. Pilgrim. "Intervals (Ma) in Space and Time: Foundations for a Religious-Aes-
thetic Paradigm in Japan" in Charles Wei-Hsun Fu e Steven Heine (Org .),Japan in Traditional
and Postmodern Perspectives. Nova York: State University of New York Press, 1995, p. 58.
3 Sakae M. Giroux. Zeami: cena e pensamento nô. São Paulo: PerspectivaiAliança Cultural
Brasil-Japão, 1991, p. 107.
Este livro é a peça essencial que faltava para aqueles que desejam se 21
LíGIA VERDI foi aluna de Kazuo Ohno de 1987 a 1990. É atriz, performer,
pesquisadora e Mestre em Artes Cênicas pela ECA-USP. O título de sua
dissertação de Mestrado é O butô de Kazuo Ohno. A partir das transcri-
ções dos treinos, Verdi sintetiza as principais' características da filosofia
do butô de Kazuo Ohno. Atualmente, mora em Brasília e trabalha no
Ministério das Relações Exteriores.
24 Cai uma chuva fria.
Evocar a imagem da chuva que cai. Uma
chuva forte, uma chuva fina. Na hora
do treino, é bom observar o movimento
dos insetos - e treinar usando esses
movimentos. Poucas pessoas pensam
assim. Talvez todos achem óbvio demais.
Começou a chover, começou a ventar; são
fenômenos da natureza. De nada adiantam
as pantomimas perfeitas. De nada adianta
pensar. Então, para que treinamos?
.~
o
c,
80 Uma flor se abre. Nada se transmite enquanto
ficarem apenas copiando seu aspecto exterior.
Para o interior, se houver o sentimento de
beautiful em relação à flor, se houver o cuidado
por ela, então dá. Com a mente vazia, elas
estão floridas. Não importa se é melhor ou
pior estar assim, florida. Ela se abre inteira,
até onde puder. Assim, com toda a alma.
E não falem demais. Difícil, não é? Depois de
desabrochar por completo, não há o que fazer,
é o fim. Mas a flor não se acaba, ela permanece
linda para sempre. Há um desabrochar assim,
mas, sobretudo, não falem demais. Existem
flores ao infinito. Observe a flor de frente,
de trás, de todos os ângulos - o que fazer
para expressá-la? Que tal fazer algo que se
despedace, com todo o empenho, até que o
coração fique em frangalhos? Agora podem
até falar, mas, em todo caso, com firmeza,
unindo com determinação todos os espaços
ao espírito, façam, por favor, em free style.
.~
88 Dancei até o limite do disparate. É um átimo,
um átimo. Tudo não é tudo. Pode ser um único.
Não é tudo. Pode ser um segundo, um átimo,
entenderam? Apreender um curto espaço de
tempo - é preciso fazer frutificar tudo nesse
curto espaço de tempo. Da dança, sabe? Eu
também, ao fazer no palco, com todo o afinco,
um passo, dois passos, três passos, não dá, no
terceiro, primeiro, quinto passo, quando se
está fazendo assim, de leve, um átimo, sabe,
a eternidade num átimo. Tudo não é tudo.
A eternidade num átimo, você escolhe esse
átimo, sabe? E lá está o sol, a lua ... Quando sou
colocado frente a frente com a lua, me emociono,
sem nenhuma dúvida. A hora da eternidade num
átimo. É preciso ter o tempo da eternidade.
o que é reality
Costelas, assim, não é mesmo? O peito, uma borboleta subindo a
escada, vem escalando. Ainda havia sobrado um pulmão. Ccf cof,
tosse. Perdi seu enterro. Estive lá no dia seguinte. Tinha me mudado
para Tóquio, tinha prometido visitá-lo no feriado do Ano-Novo mas
128 não pude ir, acabou não dando tempo de vê-lo em seu leito de morte.
Nesse dia, sua esposa me contou um monte de coisas, conversei muito
com ela. Ela me disse que os dois se casaram e ele foi para a guerra,
que não tiveram muito tempo de casados antes disso. Qjiando ele
voltou, não puderam ter um filho. Mas, ao ler um poema de Naoe, a
ideia de que uma criança tinha nascido, crescido, ido à guerra e mor-
rido nela se impregnou em mim. Por isso, como sempre que os visi-
tava eles falavam de filhos, eu também, mesmo sem querer, falava de
filhos. E na hora de ir embora, "ah, o meu filho" ... está certo que eu
falava dele porque me perguntavam, mas eu pensava na tristeza do
casal, por terem perdido o filho na guerra, convivi cerca de dez anos
com eles, preocupando-me com isso. Sem dúvida, perderam o filho
na guerra. E no dia seguinte ao enterro, ouvi de sua esposa que a vida
de casados, a asma, ele cair doente no dia do casamento, foi essa a
vida de casados deles. Deve ter sido difícil para ela. Eu achei que ela
tinha tido um filho, mas não tiveram muito tempo de casados, não
tinham como ter filhos. E eu, por mais de dez anos, visitava-os e evi-
tava falar de filhos, procurava não falar de filhos. Depois de ter lido
o poema, durante mais de dez anos, evitando falar... mas toda vez
que me despedia e a porta se fechava atrás de mim, "ai, hoje também
acabei falando", isso prosseguiu por dez anos.
Isso também, fuso horário, fuso espacial de que lhes falei hoje, é
um mundo diferente. Existe a palavra reality, existe o realism: nunca
tiveram um filho, mas convivi com eles por mais de dez anos crendo
que tinham um filho, para mim isso é reality. Reality porque viveu
em mim longos anos, reality porque a vida entendeu que era assim,
e assim ficou, não é? Reality é a própria vida, algo que brota dentro
da alma, mas mesmo sobre essa reality ... é preciso refletir o que é
reality. Só fazer a expressão assim, a borboleta que sobe as costelas
assim, é uma escada então vou assim, a borboleta, assim e assim, isso
não é reality. Chegar a apreender as condições em que o poema foi
escrito e seu sentimento, compreender o poema, o sentimento dele
ao ter tocado na morte. Envolto nesse sentimento, vai ficando assim,
pinta a ideia "ah, temos que cuidar bem da vida" e, dentro disso, a 129
borboleta subindo a escada. Sabe, um dia gostaria de apresentar isso
no Mar Morto. Por isso, hoje é "o que é reality?". Mesmo quando se
tenta ir reto mas não se consegue e fica assim, isso para mim é reality.
Esquecer que tem uma escada. Subir um degrau, subir outro degrau,
não é nada dessa sequência. É a borboleta subindo a escada. Respi-
rando forte. Eu ouvi de minha mãe a história de Lafcádio Hearn,
aos oitenta anos me vem à memória, mamãe, foi gostoso, tive medo
mas foi bom, quero que viva mais, ainda estou ligado à minha mãe,
sabiam? Apareceu sob a forma de taturana em meu sonho. "Mamãe!",
eu grito. Antes de morrer, ela disse "enguias nadam dentro de mim".
Pensando bem, quem dança, aguenta, aguenta, segura, segura, segura
e quando vai dançar - pá!, com toda a força, dança com todo o
ímpeto como se a terra se erguesse. Não é fazer os movimentos só
porque entendeu. Com isso também, ainda hoje, mantenho uma
relação; tudo está ligado. Bem, uma hora e dez minutos, já falei o
bastante. Isso, eu queria que vocês soubessem de qualquer jeito. Para
treinarem aqui, quero que compreendam bem isso. É por aí, joguem
fora o que estão pensando com a cabeça, e assim, docemente no
mundo, façam o que quiserem, qualquer coisa, vamos treinar isso.
Uma hora e dez minutos.
Em Israel
Fui a uma montanha em Israel, uma montanha não muito alta mas
de onde se avistava o mar Morto. Toda marrom, sem nenhuma
planta. Árvores floridas, aqui, ali, acolá. Quando eu disse que num
lugar como esse não devia haver nenhum ser vivo, algo se moveu.
Chegou a mim, de repente. Perto, a uns duzentos, trezentos metros.
Mexeu! A impressão de que algo se moveu tyoro-tyoro. Quando veio
um tyoro-tyoro, seguido de outro tyoro-tyoro, tyoro-tyoro, tyoro-tyoro,
ah, mexeu!, tyoro-tyoro, tyoro-tyoro e parou. Isso tem a ver comigo,
pensei. Então ficou assim, tyoro-tyoro, tyoro-tyoro. Me dei conta. Em
todo o caso, um ser vivo. Parece ter um rabo comprido. Ah, lá está,
130 vivo, cavando um buraco. Mas não é só um. Ao prestar mais atenção,
aqui, ali, por toda a montanha, aos gritos. Sei lá por quê,já sinto uma
afinidade, uma simpatia. Vive cavando buracos, provavelmente vive
cavando buracos. Nessa hora já não havia mais nada tapando o sol, e,
olhando assim, não se via nada em torno, só o sol, uah!, diretamente.
Não dá para ficar fora, portanto, dentro de um buraco. Normalmente,
só saem de noite. Era dia, mas saíram do buraco. Não por nada, mas
dava para sentir que nutriam algum interesse. Tyoro-tyoro, tyoro-tyoro.
Saíram porque eu estava lá. Vivem cavando buracos. Intuitivamente,
sinto simpatia, uma afinidade. Dentro do ventre materno, vivem
cavando buracos. Não tinham bigodes, os olhos, redondos. O mundo
se torna diferente. Não há nem insetos. Tyoro-tyoro-tyoro, por toda a
montanha. Mesmo assim se criaram no ventre materno. Deve ser a
mesma coisa, sinto simpatia. Parece diferente do mundo de até então.
Até então era uma montanha morta, o mar Morto, sem nenhum ser
vivo. Mas havia um ser vivo; e esse ser tinha a ver comigo. Por eu
estar ali, tyoro-tyoro, tyoro-tyoro, pah! Um esquilo faz assim de vez em
quando, dando-lhe as boas vindas. Um jeito de esquilo. O mundo
era totalmente outro. O que disse há pouco, era um mundo dife-
rente. Num mundo de fantasmas. Quando eu achei que, num lugar
como esse, não podia haver seres vivos, tyoro-tyoro. Num lugar como
esse, como esse, um ser vivo pode viver. Tyoro-tyoro. Ah!, pensei. O
mundo é diferente. Era outro o mundo.
Há esse tipo de diferença. Então, na hora de dançar, vamos dan-
çar agora; bem, falei de muitas coisas, o mundo está mudando?
Mudou ou não? Assim, assim, perguntando-se como fazer, na mes-
mice de sempre. Ou então, se começou ou não num mundo em que
tudo de repente mudou. Não, no começo não precisa ser diferente.
No começo, quando se pensa "imagine, num lugar como esse!", aqui,
não, não pode ser, ao fazer assim, de repente, a partir disso. Dancei
isso. Num lugar como esse, não havia necessidade de jogar o fogo,
num lugar como esse, havia um mundo assim. De repente, num lugar
como esse, ah!, desprendendo-se de si. Há muitas coisas.
A graça dos mortos 31
Uma outra coisa, assim está escrito: "Perto do lago, o sol se põe. De
óculos, olhei repentinamente a luz do crepúsculo. Aí, achei que
estava vendo sozinho, mas um outro alguém olhava por meus óculos.
Eu, sozinho, só eu, um outro morto, comigo, por meus óculos, meus
olhos."Trata-se de um poema de Yasuo Irisawa. Um morto a olhar
junto, em outras palavras, num longo espaço de tempo, de milhões
de anos, o homem viveu, passou sua experiência para a próxima gera-
ção e a próxima e a próxima, em milhões, bilhões de anos, e aqui
estou eu, deste jeito. E como estaria o pensamento de milhões de
anos passados? Sumiu e desapareceu, sumiu, sumiu, sumiu e o que
restou sou só eu - seria isso a imaginação? Não, imaginação não
é isso. Isso não é imaginação. Durante muito tempo, armazenando,
armazenando, armazenando. Por isso, quando estica um canto assim,
vai puxando, puxando, puxando sem parar, até chegar ao começo da
criação do mundo. Daqui para o passado, o passado, viu? Porque é
dentro disso que vivemos. Imaginação. Sonhamos, não é mesmo?
Sonhamos de verdade. Sonhos... só do intervalo em que nascemos,
crescemos e morremos? Sonhamos mesmo quando somos criança.
Não se sonha só com o que se vive depois de nascer, e sim também
com o que aconteceu durante um tempo muito longo, anterior ao
nosso. Num certo sentido, enquanto tivermos imaginação, aqui tem,
aos montes, para nós, a graça de muitos mortos - isso é imaginação.
No limite, os mortos respiram vivamente, aqui dentro. A imaginação,
não sei se podemos usá-la, se podemos gastá-la a torto e a direito. A
imaginação cresce cada vez mais quando se cuida bem da vida; se
nos enchemos de vida, é graças à imaginação. A graça dos mortos.
Cuidar carinhosamente dos mortos. Gastar e jogar fora porque não
precisa mais, esquecendo-se completamente da imaginação, esquecer
que está recebendo as graças - fazer tudo sozinho é muito triste.
Por isso vivemos junto com os mortos. Por isso, olhar assim é olhar
junto com os mortos. Uma pessoa, por exemplo, contempla a luz do
crepúsculo do lago e eu, mesmo que não faça assim, talvez o morto o
132 faça, o mundo vai se expandindo, sem que se faça nada para que isso
aconteça. Crescemos, crescemos pela graça dos mortos. Pergunto se
não podemos afirmar que os mortos também não morrem de todo,
são mortos, crescem. Imaginação, receber cada vez mais favores, eu
tenho uma ideia, assim. Até o mundo se torna diferente. Eu sou dife-
rente, faço assim, não sei como fazer, ao receber a graça dos mor-
tos, dentro dessa concepção, talvez toque no morto, como estou aqui,
tocando, nesta posição, como minha mão toca em mim mesmo.
A sensação de tocar no ombro do morto, a sensação de tocar no
pai e na mãe, será que é possível, ou não? Gostaria que, na hora do
treino, chegassem até aí. Não usem a desculpa de mother e father
não estarem aí; quando você faz assim, de leve, como se mother e
father também fizessem assim, zelando... Zelar pelo pai e pela mãe,
como acabo de lhes falar, não é zelar porque partiram para longe e
não estão mais aqui; eles estão aqui e, "papai!" - assim. Pelo menos
na dança, eu gostaria que desenvolvessem um mundo assim. Aí,
assim, é um outro mundo; recebendo a graça dos mortos. Eu, todos
eles, quero que sejam bem tratados. Os homens respiram vida por-
que recebem a graça dos mortos. Não é porque somos importantes.
Vamos, nessa ideia, é o mundo que temos em comum, em comum
com os mortos, ter que fazer assim num mundo como este, do qual
acabo de lhes falar, a dança de fantasmas, o mundo em que os fusos
horário e espacial são diferentes, em que o mundo é diferente. Num
mundo assim, eu gostaria de realizar uma dança assim. Não tenho
nada a fazer além disso. Nessa ideia, por favor, treinem de novo.
o pensamento na realidade
Pensar... pensar dentro do coração, sabe, acho que há várias maneiras
de pensar. Pensamento é realidade. Aí, pensa na esposa. Tem von-
tade de fazer isso e aquilo para ela. Pensa em várias coisas. Isso é a
própria realidade. Se achar que pensamento não é realidade, que é
realidade só porque foi feito de verdade, então ficamos incompletos.
O que nos resta se nos tirarem o pensamento? Para mim, pensar é
realidade, a realidade é pensar. Agora há pouco, outro dia, também 133
contei para vocês, Ginsberg, um famoso poeta americano, me pedi-
ram para apresentar um número em sua festa. Não conhecia Gins-
berg, "ah! então vamos te mandar um livro dele", e logo a editora
Shinchosha me mandou um livro sobre ele. Nesse livro, a esposa
(a mãe do poema "Kaddish") morreu. Partiu, deixou seu corpete e
esqueceu os óculos que sempre usou. Foi para algum lugar. Isso sig-
nifica que tinha morrido. Morreu, minha esposa morreu, a ponto de
me endoidecer. Ao ler o poema, lembrei-me um pouco de mamãe.
Nessas horas, quando a gente pensa "coitado!", já está pensando na
mãe. Nesse poema, não é a mãe, é a esposa. E quando pensou, "coi-
tado!",já está embalado nas costas." Coitado, quero fazer algo por ele
- se for dar uma forma a isso, se houver um osso, esse osso se trans-
forma em carroça, de repente surge uma carroça. Com toldo e tudo.
A cabeça se põe a funcionar, e havia um cocheiro, negro. A mãe de
Ginsberg também estava lá. Minha mãe também. Além deles, havia
mais algumas pessoas. Foi bom tê-los feito subir na carroça? O pen-
samento, sabe, tem que ser um pensamento sem fim, não desses que
seja bom só porque fez assim. Subiram, e a comida? Como fica a
comida dos mortos? Preparar também a comida, eu acho que isso, o
pensamento, meu pensamento, o pensamento do homem é isso. Não
basta só fazê-los subir na carroça, só pensar, mas ter um peso além da
realidade, um weight.
No espaço de mais ou menos um tatame, depois da festa, coloquei
uma música, e dez minutos, num espaço reduzido. Improvisação de
dez minutos, saxofone. Bem, dez minutos apenas, de um jeito ou
de outro, o pensamento é realidade, é além da realidade, por isso
é realidade. Espírito e espírito ligados, nesse estado, num espaço
pequeno, assim. Eu acho que pensamento é realidade. Se não for
assim, o que é a realidade, então? O que você compreende e dá, o que
você atribui à realidade é a realidade? Na nossa vida humana, o pen-
samento é realidade. É o que venho falando aos brados. Pensamento
é realidade, um mundo que não comporta isso não merece ser vivido.
134 Vejam, o pensamento é realidade, até a carroça, tem roda, direitinho,
leva os mortos, tem até cocheiro e cavalo, e quando me perguntam
do que se trata afinal, sabe, é do pensamento do homem. É o meu
pensamento. A experiência de que eu sou o cocheiro e conduzo o
cavalo, que sou eu, tem até toldo, comida, então "vamos!", a mãe de
Ginsberg está aí. Foi aí que me dei conta, pensamento é realidade.
Ginsberg estava contente. Os sentimentos se comunicavam, definiti-
vamente se comunicavam. Pensamento é realidade, é isso que quero
dizer. Se pensamento não for realidade, então o que é a dança? Só se
mexer, mexer-se realmente, isso é realidade? Pensamento é realidade,
realidade é pensamento, há duas vias, e o movimento é a realidade
além da realidade. É o que acabo de dizer. Falei da realidade além
da realidade. Ao pensar em algo nessas condições, pode ser que não
se sintam bem, mas não se preocupem. Mas esse tal de pensamento,
supondo que se queira fazer algo por alguém, profundamente, até
machucar o peito, se for só um pensamento, sem essa dor, quando se
reflete, "vou fazer assim, assim e assado", nada de importante aflora.
Por exemplo, basta fazê-los subir na carruagem, fazer subir a graça
dos mortos, quando se faz assim. Até o fim, entenderam? Comida,
será que comida basta? O amor, até o fim, doloroso; buscar até o fim,
o sentimento de querer cuidar bem dele até o fim, eu digo que deve
ser um amor que chega a machucar. Não tem essa de ficar bem por-
que fez isso ou aquilo pela pessoa, isso é um zero à esquerda, se for
desse jeito, nem vale a pena fazer. O fato de pensarmos em tudo, de
zero a cem, assim, de dar um jeito, porque está vivo, como o amor de
uma mãe pelo filho, de querer dar-lhe a alma, esse sentimento de até
querer dar sua vida por ele. Eu tenho que mergulhar nessa ideia de
que o pensamento é realidade. Bem, olha a hora, só uma última coi-
sinha, pôr na cabeça que pensamento é realidade,free style,free style.
Os últimos cinco minutos.
138 Se não vemos o rosto, então não é I lave
you? Eu não acho. Ao contrário, não ver
que é I lave you, concordam? Assim, a alma
concentra toda a atenção em ouvir. Ah, veio
de lá. Veio de cá. Se cruzam. Basta fazer o
que quiser, porque não tem relação nenhuma
- uma coisa tão fácil assim, não presta.
Mexer-se. Com a alma, ela própria. Com
todo o empenho e tensão, movimentos assim
se transmitem. Não pode fazer sem nada,
absolutamente nada. Movimentos assim.
Vamos tentar?
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Notas 23