Ocekadi PDF
Ocekadi PDF
Ocekadi PDF
socioambientais e resistência
na bacia do Tapajós
Daniela Fernandes Alarcon, Brent Millikan e
Mauricio Torres [organizadores]
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Vários autores.
Apoio: Charles Stewart Mott Foundation.
Bibliografia.
ISBN 978-85-99214-04-6 (International Rivers)
16-03195 CDD-333.7
Apoio: Parceria:
COMITÊ EDITORIAL
Brent Millikan Helena Palmquist
Claide de Paula Moraes Juan Doblas
Daniela Fernandes Alarcon Juarez Carlos Brito Pezzutti
Deborah Duprat Mauricio Torres
Felício Pontes Júnior Ricardo Scoles
EXPEDIENTE
Organização: Contato:
Daniela Fernandes Alarcon International Rivers - Brasil
Brent Millikan Endereço: CLN 214, bloco D, sala 216,
Mauricio Torres Asa Norte. Brasília-DF, CEP 70873-540
Tel. (61) 3034-3007
Revisão:
Natalia Ribas Guerrero Realização:
Daniela Fernandes Alarcon International Rivers - Brasil
www.internationalrivers.org
Revisão final:
Programa de Antropologia e
Maria Luíza Camargo
Arqueologia da Universidade Federal
Mapas: do Oeste do Pará (PAA/UFOPA)
Ricardo Abad
Apoio/Parceria:
Zachary Hurwitz
Charles Stewart Mott Foundation
Projeto gráfico, diagramação e arte: www.mott.org
Vitor Flynn Paciornik Instituto Centro de Vida (ICV)
Foto da capa: www.icv.org.br
Indígenas do povo Munduruku, Operação Amazônia Nativa (Opan)
na aldeia Missão, Terra Indígena www.amazonianativa.org.br
Munduruku. Por Mauricio Torres, Instituto Socioambiental (ISA)
abr. 2014. www. socioambiental.org
Foto da primeira página: Fundo Socioambiental Casa
Guerreira munduruku, na aldeia www.casa.org.br
Waro Apompu, Terra Indígena
Esta publicação está disponível em
Munduruku. Por Mauricio Torres,
formato digital no endereço:
out. 2014.
www.internationalrivers.org/tapajos
xi Agradecimentos
xiii Prefácio
João Akira Omoto
xv Apresentação
Daniela Fernandes Alarcon, Brent Millikan e Mauricio Torres
A
todos os autores e membros do comitê editorial, que vêm produzin-
do informação crítica e de qualidade sobre os projetos de exploração
hidrelétrica na bacia do Tapajós e em outras regiões da Amazônia, e
que generosamente colaboraram com esta publicação.
Ao Vitor Flynn, pela ilustração e diagramação do livro.
A Ricardo Abad e Zachary Hurwitz, pela elaboração de mapas especial-
mente destinados a esta publicação. A João Andrade, Andreia Fanzeres,
Bruna Cigaran da Rocha e Vinicius Honorato de Oliveira, pela participação
na produção desses mapas.
Ao Instituto Centro de Vida (ICV), à Operação Amazônia Nativa (Opan) e
ao Instituto Socioambiental (ISA), pelo apoio à produção deste livro.
A Daniely Félix-Silva, Efrem Ferreira, Fábio Nascimento, Fernanda Li-
gabue, Flavio Souza, Lilo Clareto, Luan Mourão, Natalia Ribas Guerrero,
Opan e Ubiray Rezende, pela cessão de fotografias.
A Maria Luíza Camargo e Natalia Ribas Guerrero, pela revisão da
publicação.
À Maria Edigete do Nascimento Souza, da International Rivers, pelo
apoio na produção editorial.
À Fundação Mott e ao Fundo Socioambiental CASA, pelo apoio finan-
ceiro à publicação.
prefácio
João Akira Omoto1
A
Amazônia e seus rios são, Nesse sentido, esta publicação 1. Procurador Regional
para a expansão do setor elé- ampliar o debate público, avalian- Público Federal
xiii
mais quando constatado que o pla- bientais, as vê como entraves e não
nejamento oficial demonstra certo como interesses inerentes ao pro-
descaso com os mesmos e com a cesso: ignorando-as ou negando-as,
obrigatória compatibilidade entre perpetra sistemáticas violações de
políticas públicas, nos apresentan- direitos.
do, como resultado, um bolo bas- A falta de diálogo entre os diver-
tante indigesto, cuja cereja parece sos setores do governo tem como
ter sido subtraída antes mesmo de resultado a dissociação entre o pla-
sobre ele ter sido depositada. nejamento da expansão e o projeto
A Constituição Federal de 1988 constitucional socioambiental. Os
desenhou um projeto socioambien- enormes prejuízos são ônus que
tal que exige a abertura de diálogo acabam sendo suportados por toda
com todos os setores da sociedade, a sociedade, revelando a importân-
por meio da ampliação da partici- cia da adoção de instrumentos de
pação pública e, especialmente, da planejamento ambiental estratégi-
consulta livre, prévia e informada co. As reconhecidas falhas no licen-
aos povos indígenas e comunidades ciamento ambiental e a sistemática
tradicionais, nos moldes previstos violação de direitos humanos na
na Convenção 169 da Organização instalação dos projetos deveriam le-
Internacional do Trabalho, no Sis- var ao aperfeiçoamento dos proce-
tema Interamericano de Direitos dimentos, com vistas à garantia de
Humanos e em outros tratados in- direitos, e não à sua flexibilização.
ternacionais dos quais o Brasil é Esta publicação lança luzes sobre
signatário. essas e outras importantes questões
Os défices democráticos no pla- que precisam ser tratadas com se-
nejamento e na tomada de decisão riedade e incorporadas ao planeja-
sobre a expansão da geração hidre- mento do setor elétrico e ambien-
létrica têm levado à proliferação de tal, assim como aos processos de
conflitos socioambientais e à inegá- tomada de decisão. Ainda há tempo
vel perda de bio e de sociodiversi- para correção de rumos. A Amazô-
dade, sem falar nos prejuízos para nia é patrimônio do Brasil e da hu-
o próprio setor, que, mal preparado manidade! A cereja do bolo… conti-
para lidar com questões socioam- nua sendo nossa!
xiv Ocekadi
APRESENTAÇÃO
Daniela Fernandes Alarcon, Brent Millikan
e Mauricio Torres
O
cekadi, termo da língua ses entrelaçaram, historicamen- Imagem 1. Noite
estrelada no
munduruku, pode ser tradu- te, suas vidas. Hoje, esses grupos,
Tapajós, Projeto
zido como “o nosso rio” ou assim como outras populações de de Assentamento
“o rio do nosso lugar”. Refere-se, ocupação mais recente, veem-se Agroextrativista
Montanha e Mangabal.
aqui, ao Tapajós, situado na bacia diante de ameaças, violações de Por Fábio Nascimento,
hidrográfica homônima, que se es- direitos e impactos deletérios im- out. 2014.
tende pelos estados do Pará, Mato postos por uma quantidade sem
Grosso e Amazonas, conectando precedentes de projetos de explo-
dois grandes biomas, o Cerrado e ração energética e outros grandes
a Amazônia. Com o Tapajós e seus empreendimentos cogitados para
tributários – Jamanxim, Juruena e a bacia do Tapajós, impulsionados
Teles Pires, entre outros –, povos por órgãos governamentais e agen-
indígenas, ribeirinhos e campone- tes privados.
xv
Este livro tem o intuito de ofe- de 2014 e janeiro de 2016, o que se
recer subsídios para o aprofunda- reflete em seus respectivos conteú-
mento do debate público acerca do dos, em especial, no marco final das
conjunto de hidrelétricas na bacia sequências de eventos considera-
do Tapajós, planejadas, em constru- dos. Para que os leitores possam ter
ção ou já implementadas. Em parti- em mente esse recorte temporal,
cular, são abordadas questões rela- facilitando-se eventuais esforços de
tivas a conflitos socioambientais e atualização e seguimento dos temas
incompatibilidades entre políticas tratados, indicamos em cada artigo
públicas – decorrentes de um mo- a data de sua finalização. Cabe no-
delo de planejamento e implanta- tar, ainda, que os textos apresentam
ção de grandes empreendimentos, diferentes recortes geográficos no
conduzido pelo setor elétrico do go- interior da bacia do Tapajós . Alguns
verno federal e por empresas priva- deles reúnem também informações
das – e movimentos de resistência sobre empreendimentos hidrelétri-
engendrados por povos indígenas cos em outras bacias, a exemplo do
e outros grupos em defesa de seus complexo hidrelétrico de Belo Mon-
territórios e modos de vida. te, no rio Xingu. Com isso, é possí-
O livro reúne artigos elaborados vel analisar como um determinado
por pesquisadores vinculados a di- modelo de exploração hidrelétrica
ferentes instituições do Brasil e do da Amazônia vai se reproduzindo e
exterior, agentes do poder público, até que ponto lições têm sido apren-
de organizações não governamen- didas pelos setores pró-barragem.
tais e de movimentos sociais, que Dedicamos este livro aos povos
atuam nessa bacia ou em outros indígenas, ribeirinhos, campone-
contextos amazônicos também im- ses e outras populações que vivem
pactados por barramentos. Trata-se na bacia do Tapajós, que têm de-
de uma região pouco pesquisada, o monstrado enorme criatividade
que torna ainda mais relevantes os e capacidade de diálogo na busca
dados produzidos pelos autores. São pelo reconhecimento de seus di-
textos inéditos ou, quando indica- reitos (profundamente desrespeita-
do, adaptados para esta publicação; dos) como cidadãos brasileiros. Que
todos foram submetidos à análise sejam feito taoca (ou da’uk). Essa
de membros de um comitê editorial pequena formiga, diz o professor
composto para esse fim. munduruku Jairo Saw, derrota até
Os artigos foram concluídos em onça. Seu Chico Caititu, ribeirinho,
diferentes momentos entre abril grande conhecedor do Tapajós,
xvi Ocekadi
completa: “É um bando de formigas
que andam juntas na floresta. É coi-
sa muito reimosa. Ninguém garante
ficar na frente”.
Apresentação xvii
Principais siglas e abreviações
xviii Ocekadi
Funai Fundação Nacional do Índio
Gesel/IE/UFRJ Grupo de Estudos do Setor Elétrico do Instituto de Econo-
mia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Ibama Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Natu-
rais Renováveis
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ICMBio Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
ICV Instituto Centro de Vida
Imazon Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia
Incra Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
Inesc Instituto de Estudos Socioeconômicos
Iphan Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
ISA Instituto Socioambiental
LI Licença de instalação
LP Licença prévia
MMA Ministério do Meio Ambiente
MME Ministério de Minas e Energia
MP Medida provisória
MPE/MT Ministério Público do Estado de Mato Grosso
MPF Ministério Público Federal
MPU Ministério Público da União
OIT Organização Internacional do Trabalho
Opan Operação Amazônia Nativa
PAC Programa de Aceleração do Crescimento
PAE Projeto de assentamento agroextrativista
Parna Parque nacional
PBA Plano básico ambiental
PCH Pequena central hidrelétrica
PDE Plano Decenal de Expansão de Energia
PF Polícia Federal
PIB Produto interno bruto
PNRH Política Nacional de Recursos Hídricos
O
presente livro tem o intuito grupos em defesa de seus territórios 1. Ocekadi, termo da
língua munduruku,
de oferecer subsídios para o e modos de vida. pode ser traduzido
aprofundamento do deba- A publicação reúne 25 artigos, como “o nosso rio” ou
“o rio do nosso lugar”.
te público acerca de um conjunto elaborados por pesquisadores vin-
sem precedentes de hidrelétricas culados a diferentes instituições
planejadas, em construção ou já im- do Brasil e do exterior, agentes do
plementadas na bacia do Tapajós, poder público, de organizações não
região de enorme socio e biodiver- governamentais e de movimentos
sidade que se estende pelos estados sociais, que atuam na bacia do Ta-
do Pará, Mato Grosso e Amazonas, pajós ou em outros contextos ama-
conectando dois grandes biomas, o zônicos também impactados por
Cerrado e a Amazônia. Mais especi- barramentos. Trata-se de textos iné-
ficamente, são abordadas questões ditos ou, quando indicado, adapta-
relativas a conflitos socioambien- dos para esta publicação.
tais e incompatibilidades entre po- Sumariamos, a seguir, os prin-
líticas públicas – decorrentes de um cipais argumentos expressos nos
modelo centralizado e autoritário textos, que delineiam, de forma
de planejamento e implantação de abrangente e detalhada, aspectos
grandes empreendimentos, condu- fundamentais do planejamento, li-
zido pelo setor elétrico do governo cenciamento ambiental e implan-
federal e por empresas privadas – e tação de hidrelétricas na bacia do
movimentos de resistência engen- Tapajós, traçando comparações, em
drados por povos indígenas e outros vários momentos, com experiências
xxi
semelhantes, a exemplo do comple- ser removido ante os interesses do
xo hidrelétrico de Belo Monte, na agronegócio, do hidronegócio e da
bacia do rio Xingu. Em particular, mineração”. Havendo vivenciado
são destacadas questões relativas diversos momentos econômicos
ao dimensionamento de impactos e distintos (incluindo a exploração da
riscos socioambientais, ao cumpri- borracha, a extração de peles de fe-
mento do arcabouço legal sobre di- linos, o garimpo de ouro e as ações
reitos humanos e proteção ambien- “desenvolvimentistas” do regime
tal, e à compatibilidade com outras militar), indígenas, ribeirinhos e
políticas públicas, setoriais e terri- camponeses veem-se agora frente
toriais. Ao mesmo tempo, os textos aos projetos de aproveitamento hi-
oferecem previsões empiricamente drelétrico da bacia. Ao menos três
embasadas sobre cenários futuros, terras indígenas (TIs) deixaram de
caso os inúmeros projetos de insta- ser declaradas e uma reserva extra-
lação de usinas hidrelétricas (UHEs) tivista (Resex) deixou de ser criada,
e pequenas centrais hidrelétricas por serem consideradas obstáculos
(PCHs) sigam adiante. à implantação de tais projetos. O
O histórico de ocupação do alto texto discute ainda o alinhamento
rio Tapajós, a diversidade social des- político contemporâneo de indíge-
sa região e os reiterados esforços, nas e ribeirinhos, em luta por re-
por parte de sucessivos governos, conhecimento identitário e territo-
de invisibilização de povos indígenas, rial, em um quadro profundamente
ribeirinhos, camponeses e outras assimétrico, marcado pela ameaça
populações que ali vivem, com o que representam os barramentos
intuito de abrir o território à explo- na bacia do Tapajós.
ração econômica indiscriminada, Ricardo Scoles, em sua “Caracte-
são abordados por Mauricio Torres rização ambiental da bacia do Tapa-
no artigo “Um rio de muita gente: a jós”, oferece informações sintéticas
luta comum de vidas plurais no vale sobre o rio Tapajós e seus afluentes,
do alto Tapajós”. Segundo o autor, como o Jamanxim, o Teles Pires e
“a região é esvaziada pelo discur- o Juruena, especificando impactos,
so, em um esforço para se ‘justifi- inclusive cumulativos, que os bar-
car’ a expropriação territorial e o ramentos previstos podem acarre-
solapamento dos modos de vida tar. Há fortes indícios de que a di-
desses grupos”. Quando negar sua versidade biológica e o endemismo
presença não é possível, são “rele- (ocorrência de espécies com distri-
gados à condição de ‘obstáculo’ a buição restrita a uma ecorregião)
xxii Ocekadi
sejam altíssimos na porção sul da de portos nos municípios de Itai-
bacia – justamente onde se concen- tuba e Santarém (Pará); a pavimen-
tra grande parte dos barramentos tação da rodovia Cuiabá-Santarém
planejados. Como nota o autor, os (BR-163); e as pressões minerárias
conhecimentos sobre a biodiversi- sobre a bacia, onde se situa uma das
dade da bacia, especialmente para a mais ricas províncias auríferas do
parte sul, ainda são escassos. Entre planeta. De acordo com os autores,
os problemas socioambientais his- tais intervenções – que respondem
tóricos relacionados à bacia, Scoles a pressões de determinados setores
destaca a contaminação das águas econômicos, notadamente do agro-
por mercúrio; o avanço da pecuária negócio, dedicado à constituição de
no estado de Mato Grosso; e, na por- um novo eixo logístico para escoa-
ção paraense, o garimpo e a intensa mento de commodities – concorrem
extração ilegal de madeira. Contu- para a “intensificação de atividades
do, salienta, a exploração hidrelé- econômicas frequentemente preda-
trica da bacia – que implica “inter- tórias e ilegais, ameaçando os mo-
ferências de alcance imprevisível dos de vida e a integridade dos ter-
no fluxo e ciclos das águas, respon- ritórios de indígenas, ribeirinhos e
sáveis pela dinâmica ecológica das camponeses, entre outros grupos”.
áreas de inundação florestal, diver- “Perpetuam-se, assim, tendências
sidade biológica, grandes migrações históricas – é fácil encontrar nes-
e ciclos reprodutivos da fauna aquá- sa opção de desenvolvimento, fre-
tica” – é, “sem dúvida, a ameaça quentemente vendida como ‘ino-
ecológica de maior envergadura”. vadora’, diversos pontos de contato
“‘Saída pelo norte’: a articulação com as intervenções levadas a cabo
de projetos de infraestrutura e rotas pela ditadura militar na Amazônia,
logísticas na bacia do Tapajós”, de cujo saldo nefasto subsiste”, con-
Daniela Fernandes Alarcon, Natalia cluem os autores.
Ribas Guerrero e Mauricio Torres, Os efeitos da conjugação de
discute as consequências negati- UHEs, PCHs e da hidrovia Teles
vas da articulação de barramentos Pires-Juruena-Tapajós são examina-
e outros projetos de infraestrutura dos por Philip M. Fearnside no texto
previstos ou em andamento na ba- “Os planos para usinas hidrelétricas
cia do Tapajós. Mais especificamen- e hidrovias na bacia do Tapajós: uma
te, debruça-se sobre os planos de combinação que implica a concreti-
implementação da hidrovia Teles zação dos piores impactos”. Como
Pires-Juruena-Tapajós; a construção indica o pesquisador, “o conjunto
xxiv Ocekadi
eficiência e na expansão da oferta tre as partes iniciais do diagnóstico
de energia eólica e solar. de fragilidades e conflitos socioam-
“Estudos de inventário: caracte- bientais, e os capítulos finais, sobre
rísticas de uma fase inicial e decisiva diretrizes (para o setor elétrico) e
do planejamento de usinas hidrelé- recomendações (para outros seto-
tricas na bacia do Tapajós”, de Brent res).” Têm sido registradas pressões,
Millikan, debruça-se sobre estudos por parte das Centrais Elétricas Bra-
de inventário e avaliação ambiental sileiras S.A. (Eletrobras), para que
integrada (AAI) realizados pelo se- elementos críticos sejam alterados
tor elétrico do governo em conjunto ou suprimidos. É sintomático que
com empresas privadas nas sub-ba- nenhuma AAI da bacia do Tapajós
cias do Tapajós-Jamanxim, Teles Pi- tenha apontado projetos hidrelétri-
res e Juruena. Tais estudos, assinala, cos que devessem ser descartados.
foram marcados por diversas limi- Informado por sua atuação como
tações, como o subdimensionamen- assessor da Fundação Nacional do
to de impactos socioambientais, Índio (Funai) e, posteriormente,
incompatibilidades entre os inven- como consultor da empresa Eco-
tários e outras políticas territoriais, logy Brasil, responsável pelo estu-
e a falta de espaços de participa- do de AAI da sub-bacia do Tapajós-
ção cidadã na tomada de decisões. -Jamanxim, Ricardo Folhes, em
Mais especificamente, os referidos “Ritual burocrático de ocupação do
estudos têm menosprezado a sazo- território pelo setor elétrico: o caso
nalidade dos rios e de ecossistemas da avaliação ambiental integrada
associados, as complexas relações da bacia do Tapajós”, reflete sobre
entre populações e território, e os o licenciamento ambiental, consi-
conhecimentos tradicionais sobre o derando especificamente o estudo
mesmo. Note-se que não se levou a do componente indígena (ECI). Des-
cabo, ainda, um estudo compreen- crevendo os bastidores da consul-
dendo a bacia do Tapajós como um toria ambiental, o autor revela que
todo, permitindo a identificação de a análise de conflito com os povos
impactos cumulativos e sinérgicos, indígenas por ele elaborada no âm-
conforme previsto na legislação bito da AAI foi submetida a cortes e
ambiental; em lugar disso, foram alterações de sentido, e que ele foi
realizados estudos segmentados pressionado a focalizar os “impac-
por sub-bacias e mesmo por trechos tos positivos” do projeto, elaboran-
de rio. “Nas AAIs, observa-se uma do uma análise que o “impulsionas-
precariedade de nexos lógicos en- se”. Trabalhando na Funai, ele já se
xxvi Ocekadi
vação e contratação de emprésti- pajós, demonstrando como ela tem
mos, assim como o monitoramento contribuído para a reverberação
e a fiscalização da execução dos em- das construções discursivas oficiais
preendimentos. De janeiro de 2011 – articuladas em torno de expres-
a julho de 2014 os empréstimos do sões como “crescimento”, “desen-
BNDES para aproveitamentos hidre- volvimento”, “interesse nacional” e
létricos (AHEs) na bacia do Tapajós “técnica” – e para o apagamento do
totalizaram cerca de R$ 4,087 bi- dissenso. Foram considerados, na
lhões. De acordo com Rojas Garzón, análise, um jornal diário de circu-
Millikan e Alarcon, a atuação do lação nacional (O Estado de S. Paulo),
BNDES em relação às barragens do um veículo especializado em jorna-
Tapajós, de certa maneira, repete o lismo econômico (Valor Econômico),
que se passou com Belo Monte. “O um portal de notícias dedicado ao
caso de Belo Monte demonstra cla- setor energético (CanalEnergia) e três
ramente a impotência da Política de jornais de alcance local, baseados
Responsabilidade Socioambiental em Santarém (Gazeta de Santarém,
(PRSA) do BNDES, tanto para avaliar O Estado do Tapajós e O Impacto). Nas
riscos socioambientais, evitando o matérias analisadas, predominam
apoio a determinados empreendi- fontes oficiais, ao passo que as vo-
mentos, como para acompanhar zes críticas aos empreendimentos
eficientemente a gestão de riscos tendem a ser colocadas em suspei-
e impactos socioambientais envol- ta. As barragens são comumente
vidos naqueles que o banco decide apresentadas como incontornáveis
apoiar.” O banco, enfatizam os au- e não são consideradas à luz de
tores, tem sido leniente e omisso exemplos do passado, de UHEs que
diante do descumprimento de con- acarretaram danos socioambientais
dicionantes de licenças ambientais graves e irreversíveis. Na cobertura
e dos direitos humanos, contribuin- jornalística hegemônica, os povos
do para o agravamento de conflitos indígenas são frequentemente ca-
socioambientais. racterizados como “obstáculos” ao
Em “Imprensa e barragens na desenvolvimento, ao tempo que
bacia do Tapajós: apego ao discurso ribeirinhos e outros atingidos cos-
oficial e ocultamento das críticas”, tumam ser invisiblizados. Dessa
Daniela Fernandes Alarcon, Natalia maneira, concluem os autores, tais
Ribas Guerrero e Vinicius de Aguiar veículos oferecem poucas contribui-
Furuie analisam a cobertura jorna- ções para a qualificação e ampliação
lística das barragens na bacia do Ta- do debate público.
xxviii Ocekadi
guar as violações alegadas”. “Agin- haviam sido autorizados. Logo que
do assim, procuram obstaculizar se iniciou o processo, desatou-se a
por completo a garantia do acesso Operação Tapajós, por meio da qual
à justiça.” Fica evidente, dessa ma- se buscou garantir à força a realiza-
neira, o “engajamento do Judiciário ção de levantamentos ambientais
com determinado projeto de políti- em território indígena. Além dis-
ca pública energética”. A SS, salien- so, representantes governamentais
tam os autores, é um instrumento atuaram para fragmentar o povo
inconstitucional, que se choca com Munduruku, desrespeitando sua
o ordenamento jurídico internacio- organização e deslegitimando a es-
nal e garante a preponderância dos colha de suas autoridades políticas.
“interesses estatal e econômico, em Dessa maneira, enfatizam Pontes
detrimento da proteção ambiental e Júnior e Oliveira, o governo federal
dos direitos dos indígenas”. demonstrou que a decisão de cons-
O licenciamento ambiental da truir a UHE São Luiz do Tapajós esta-
UHE São Luiz do Tapajós foi inicia- va tomada, independentemente da
do sem realização de consulta livre, consulta, sendo esta transformada
prévia e informada (CLPI), como de- em “mero ato administrativo para
termina a Convenção 169 da Orga- referendar as decisões estatais”.
nização Internacional do Trabalho A UHE São Luiz do Tapajós é um
(OIT). Apenas em 2013, pressionado caso de “inequívoco esforço para
pela mobilização indígena e por de- internalização dos lucros e socialização
cisões judiciais, o governo federal dos prejuízos”, argumenta Luis de
iniciou o processo de consulta, ana- Camões Lima Boaventura, no arti-
lisado no artigo “Usina hidrelétrica go “Usina hidrelétrica de São Luiz do
de São Luiz do Tapajós e a consulta Tapajós: o alagamento da Terra Indí-
prévia aos povos indígenas e comu- gena Munduruku Daje Kapap E’Ipi
nidades tradicionais”, de Felício e o soterramento da Constituição
Pontes Júnior e Rodrigo Oliveira. Federal de 1988”. Tal barramento,
Como demonstram os autores, a se implementado, inundaria par-
postura do governo federal na eta- te significativa da TI Sawré Muybu
pa inicial do processo impediu que (Daje Kapap E’Ipi), em clara viola-
a consulta fosse livre, prévia, infor- ção à Constituição Federal. Como
mada, culturalmente adequada e de demonstra o autor, no âmbito do
boa fé. Quando as reuniões pré-con- licenciamento ambiental da UHE,
sultivas foram realizadas, os estudos o governo federal tem atuado para
para a implementação da UHE já invisibilizar a existência da TI. O
xxx Ocekadi
Jakubaszko, oferece uma amostra das a atividades predatórias como
da sociodiversidade da bacia do Ju- exploração madeireira e mineração.
ruena, assim como das pressões am- “Nós somos a gente que vive nos
bientais e fundiárias impostas por rios em que vocês querem construir
projetos de aproveitamento hidrelé- barragens”, afirmam indígenas, ri-
trico aos povos indígenas que vivem beirinhos e pescadores em carta
na região, e dos vícios que têm mar- recuperada por Helena Palmquist
cado o licenciamento dos empreen- em “O governo que age como a su-
dimentos. No artigo, é possível co- curi e a resistência dos Munduruku
nhecer a dramática situação dos às barragens no Tapajós”. Tomando
Enawene Nawe, que, desde 2008, como marco inicial uma manifesta-
não conseguem realizar seu princi- ção realizada em 2011 pelos povos
pal ritual, o Yaokwa, caracterizado Kayabi e Munduruku para exigir a
pela pesca coletiva de barragem e paralisação do licenciamento da
por interações com as entidades UHE São Manoel, o artigo se debru-
conhecidas como yakairiti. Em de- ça sobre as estratégias engendradas
corrência do complexo hidrelétrico por povos indígenas e comunidades
do Juruena, composto por dez em- tradicionais, focalizando em espe-
preendimentos, os indígenas já não cial a mobilização munduruku. Do
têm êxito na pescaria, dependendo painel delineado pela autora, emer-
da compra de frango e peixe con- ge o largo emprego, pelo governo
gelado para a realização do ritual. federal, de práticas de repressão.
Cumpre notar que o Yaokwa é reco- Destacam-se o assassinato de Ade-
nhecido como patrimônio cultural nilson Munduruku pela Polícia
do Brasil e como patrimônio da hu- Federal (PF), durante operação na
manidade. Os demais povos indíge- aldeia Teles Pires, em 2012, e a Ope-
nas que vivem na bacia do Juruena ração Tapajós, desatada em 2013, no
(Apiaká, Bakairi, Kayabi, Myky/Iran- âmbito da qual estudos de impacto
txe, Munduruku, Nambikwara, Pa- ambiental foram realizados por pes-
resi e Rikbaktsa) também têm seus quisadores escoltados por militares.
territórios e modos de vidas amea- É evidente, ainda, o sistemático des-
çados pelos barramentos. Para citar cumprimento, pelos órgãos oficiais,
um exemplo, o território manoki, da legislação e de compromissos
sozinho, é afetado por 11 PCHs. estabelecidos com indígenas e ribei-
Como indicam as autoras, as bar- rinhos. Ao mesmo tempo, o artigo
ragens vêm agudizando pressões deixa ver a vitalidade da mobiliza-
anteriormente existentes, associa- ção munduruku, organizada princi-
xxxii Ocekadi
munidades tradicionais que vivem postas pelo MPF. Porém, ainda que
na região. Tal patrimônio, contu- decisões liminares tenham suspen-
do, está ameaçado pelas barragens. dido o licenciamento e as obras em
Nesse quadro, os autores alertam diferentes ocasiões, elas foram der-
para os riscos representados pelas rubadas na justiça e Sete Quedas,
propostas de flexibilização da pro- dinamitada. O caso não é exceção:
teção ao patrimônio arqueológico diversos lugares significativos para
no licenciamento ambiental e para povos indígenas e comunidades tra-
os problemas envolvidos em opera- dicionais têm sido impactados por
ções de “resgate” ou “salvamento” obras de infraestrutura. As escava-
arqueológico. Retirando vestígios ções arqueológicas no âmbito do
de seu contexto e desconsiderando licenciamento de UHEs, frequente-
os conhecimentos das populações mente realizadas sem autorização
que vivem na região, bem como de indígenas e ribeirinhos, também
suas relações simbólicas com o pa- são comentadas no artigo. Quando
trimônio, tais operações ameaça- da conclusão do texto, a retirada de
riam as próprias pesquisas, além de urnas funerárias munduruku e ka-
configurar formas contemporâneas yabi pela empresa Documento, res-
de expropriação de povos indígenas ponsável pelos estudos arqueológi-
e comunidades tradicionais. cos relacionados à UHE Teles Pires,
“Sobre sítios arqueológicos e lu- era investigada pela Procuradoria da
gares significativos: impactos so- República em Santarém. Trata-se de
cioambientais e violações dos direi- um caso que evidencia com clareza
tos culturais dos povos indígenas e as violações cometidas pela prática
tradicionais pelos projetos de usinas da arqueologia “de contrato”.
hidrelétricas na bacia do rio Tapa- “O garimpo hidrelétrico: impac-
jós”, de Francisco Antonio Pugliese tos de Belo Monte na cidade de Al-
Jr. e Raoni Bernardo Maranhão Val- tamira e subsídios para reflexão
le, discute a destruição da cachoeira sobre o complexo hidrelétrico do
de Sete Quedas, no rio Teles Pires, Tapajós”, de Eric Macedo, apresen-
para dar lugar à UHE de mesmo ta um exemplo contundente da
nome. Como indicam os autores, magnitude dos impactos urbanos
trata-se de “lugar sagrado e pai- decorrentes de empreendimentos
sagem de imensurável relevância de infraestrutura na Amazônia.
para os povos Munduruku, Kayabi e Baseando-se em pesquisa etnográ-
Apiaká”. A destruição desse marco fica desenvolvida em Altamira, em
territorial foi objeto de ACPs pro- 2013, o autor elencou algumas das
xxxiv Ocekadi
tartaruga-da-Amazônia, por exem- UHEs, como as de Jatobá e Chaco-
plo, é classificada como criticamen- rão.” Como lembram os autores, a
te ameaçada. pesca é uma atividade crucial na ba-
No artigo “As migrações do jara- cia do Tapajós – servindo tanto para
qui e do tambaqui no rio Tapajós e subsistência como para obtenção de
suas relações com as usinas hidre- renda –, com importante participa-
létricas”, Ronaldo Barthem, Efrem ção de peixes migradores, o que tor-
Ferreira e Michael Goulding discu- na a UHE São Luiz do Tapajós e ou-
tem os impactos potenciais da UHE tros empreendimentos ainda mais
São Luiz do Tapajós sobre as duas preocupantes.
espécies (respectivamente, Sema- “Promessas de governança vs.
prochilodus spp. e Colossoma macropo- realidade: consequências da implan-
mum). De acordo com eles, a deriva tação de megaempreendimentos no
de ovos e o acesso dos reproduto- sudeste amazônico”, de Juan Do-
res às áreas de desova devem ser blas, analisa os impactos socioam-
afetados, podendo inclusive cau- bientais do asfaltamento da BR-163
sar o desaparecimento de espécies (Cuiabá-Santarém) e da construção
migradoras nos trechos do rio que da UHE Belo Monte, considerando
ficarão isolados. “Aparentemente, inclusive os efeitos de tais impactos
o tambaqui apresenta uma forte na eficácia dos próprios empreen-
dependência em relação à conexão dimentos, por meio de processos
entre os trechos de montante e ju- de retroalimentação climática, que
sante da cachoeira de São Luiz, ten- podem torná-los até inoperantes. As
do em vista que a área de alimenta- medidas de previsão e mitigação de
ção dos adultos está a montante da danos socioambientais decorrentes
cachoeira, o berçário está a jusante de empreendimentos de infraestru-
e a área de reprodução, exatamen- tura têm sido ineficazes, observa
te na cachoeira. Por outro lado, os Doblas, estimulando a extração ile-
jaraquis parecem poder manter os gal de recursos da floresta. De 2011 a
ciclos migratórios independentes 2013, o aumento do desmatamento
nos dois trechos. No entanto, não no entorno da BR-163 foi de 250%.
é possível avaliar se a estreita área Em 2012, o entorno de Belo Monte,
de floresta alagada a montante das ocupando 23% do Pará, concentrava
cachoeiras de São Luiz poderia ali- 56% de toda a exploração madeireira
mentar as populações que se man- ilegal do estado. Note-se que a pró-
teriam acima da barragem caso esse pria obra foi grande consumidora
trecho seja entrecortado por outras de madeira. Como o empreendedor
xxxvi Ocekadi
Um rio de muita gente
A luta comum de vidas plurais no vale do alto Tapajós1
Mauricio Torres
À memória de dona Santinha, índia de roupa. Leva também uma boti- 1. Um especial
agradecimento à
Munduruku casada com o beiradeiro na nova – “é para abrir a varação lá
Daniela Fernandes
Quelé e que, há 10 anos, me presenteou com os índios”. Alarcon, que
com uma das seis galinhas que tinha. O Na verdade, Caititu atravessa praticamente
reescreveu este
maior presente que recebi. mais que o rio. Ele descende de se- texto, incorporando
ringueiros que chegaram às flores- fundamentais adições
à forma e ao conteúdo,
Ah, aqui nesse rio já passou muita gente. tas do Tapajós na passagem do sécu- e à Bruna Cigaran da
Muita. Teve tempo ruim, mas nunca foi lo XIX para o XX e, na disputa pelo Rocha, pela essencial e
generosa colaboração
rio reimoso, igual tem muito por aí. Não! território, entraram em confron-
sobre a ocupação pré-
Deus defenda. Aqui, o rio não nega. to com índios Munduruku. Assim colombiana do alto
(Josué Cirino, beiradeiro do rio como os Kayapó – tradicionais ini- Tapajós.
E
gueiros eram pariwat, termo mun-
m outubro de 2014, o ribeirinho duruku que tanto designa “aquele
Chico Caititu atravessa o Tapa- que faz parte de um grupo que é de
jós, saindo do “seu lugar”, em fora”, como “inimigo”. A viagem de
Montanha, na margem esquerda Caititu alegoriza uma importante
do rio, e chega à Terra Indígena (TI) aliança entre beiradeiros e indíge-
Sawré Muybu. Vai se unir aos Mun- nas. A TI que vão demarcar situa-se
duruku nos trabalhos de autode- no exato local que o governo fede-
marcação da TI. Com 65 anos, leva ral pretende alagar com a constru-
na pequena “boroca” uma rede, ção da usina hidrelétrica (UHE) de
um terçado e umas poucas trocas São Luiz do Tapajós. Também mora-
1
Imagem 1. Ao lado
dos Munduruku,
o beiradeiro Chico
Caititu, de Montanha e
Mangabal, abre picadas
na autodemarcação da
Terra Indígena Sawré
Muybu. Por Mauricio
Torres, out. 2014.
2 Torres
Da ocupação pré-colombiana aos 1981/1982: 297), de modo que não se
primeiros seringueiros pode afirmar, com base em relatos
Ao menos desde o século XVIII, a de viajantes, a configuração étnica
ocupação humana do alto Tapajós do alto Tapajós anterior a esse pe-
é documentada. Ainda assim, até ríodo. O bandeirante João de Souza
hoje, não falta quem insista – por Azevedo forneceu ao bispo do Grão-
ignorância ou má-fé – em sua ine- -Pará, João de São José, diversos et-
xistência. Altino Ventura Filho, se- nônimos para o alto Tapajós, regis-
cretário de Planejamento e Desen- trados em seu relato (São José, 1847
volvimento do Ministério de Minas [1763]). Poucos anos depois, mais al-
e Energia (MME), por exemplo, afir- guns etnônimos seriam registrados
mou recentemente, em relação ao pelo vigário-geral da província do
complexo hidrelétrico do Tapajós Rio Negro, José Monteiro Noronha
(CHT), que “será a primeira vez que (2006 [1768]).
se construirá uma hidrelétrica em É interessante notar que ambos
região não habitada” (Nassif, 2013). mencionam os Maués, citados como
Mesmo entre os burocratas envolvi- “Magués” (São José, 1847 [1763]) ou
dos na febre barrageira do governo “Maué” (Noronha, 2006 [1768]). A
federal, Ventura Filho não é o pri- primeira menção aos Maués teve
meiro. Em maio de 2012, Mauricio
Tolmasquim, presidente da Empre-
sa de Pesquisa Energética (EPE),
corporação pública ligada ao MME,
já havia aludido à inexistência de
“ocupação humana” no local, ao
falar dos projetos das barragens de
São Luiz do Tapajós e Jatobá (Abda-
la, 2012; Cunha, 2012).
O vale do Tapajós é ocupado – há
muito. Presume-se que a presença
humana no alto curso de seu rio
principal remonta ao início do Ho-
Imagem 2. Casa de
loceno, cerca de dez mil anos atrás Chico Caititu, no lugar
(Rocha, 2012: 29). A primeira nave- conhecido como Bozó,
na margem esquerda
gação completa do rio de que se tem
do rio Tapajós. Por
registro somente se deu em 1742 Daniela Alarcon, set.
(Fonseca, 1880/1881: 76; Menéndez, 2014.
4 Torres
chinha no alto Tapajós, teve grande alternativa encontrada foi um pro-
dificuldade em interpor-se entre os grama de migração nordestina para
regatões5 e os índios, pois, segundo áreas de seringais, financiado pelas 5. “Regatão” é a
denominação tanto
ele, os primeiros, “tendo outrora casas aviadoras de Belém e Manaus.
para as embarcações
enganado aquela pobre gente tro- Segundo Octávio Ianni, de comerciantes que
cando coisas de pouquíssimo valor transitam pelo rio,
quanto para os donos e
por quintais de borracha elástica, muitos foram os nordestinos leva- gerentes das mesmas.
quereriam ainda hoje continuar dos para os trabalhos da borracha.
tão injusto negócio” (Castrovalvas, Ao lado do caboclo e do índio ama-
2000: 75). E decide: “nenhum rega- zônicos, o nordestino representou um
tão poderia negociar com os índios, contingente muito importante da
a não ser em minha presença e sob mão de obra dedicada à borracha.
a minha fiscalização e vigilância” Muitos eram principalmente cea-
(Ibid.: 112s). Para garantir o cumpri- renses (1979: 46).
mento de seus arbítrios, constrói
uma “casa de punição” e monta No Pará e no Amazonas, em
um pelotão de índios sob o seu co- apenas 28 anos (1872-1900), a popu-
mando. Frei Pelino foi processado lação foi de 329 mil para 695 mil
por comerciantes e políticos locais, habitantes (Furtado, 2000: 137). No
“acusado de ter-se dedicado mais alto Tapajós, o movimento migrató-
aos negócios do que às boas obras” rio parece ainda ter se prolongado
(Coudreau, 1977 [1897]: 36; cf. tam- pelo menos até o final da primeira
bém Brasil, s.d.). Procedente ou não década do século XX. Houve ainda,
a acusação, é fato que o próprio durante a Segunda Guerra Mundial,
frei apresentou dados de uma con- outro momento de intensificação
siderável produção de borracha na migratória para a extração de bor-
missão Bacabal, com uso da mão de racha na Amazônia e, novamente, o
obra indígena (Castrovalvas, 2000: Nordeste foi a principal origem dos
passim). trabalhadores. Mas, mesmo antes do
século XX, a presença de seringuei-
Nos tempos do “carrancismo” ros já era expressiva, como testemu-
Já próximo ao final do século XIX, nhou, em 1895, o francês Henri Cou-
o mercado da borracha explodia, dreau. O naturalista registou que,
enfrentando como fator limitante a na área onde hoje se situa o Parque
escassez de mão de obra e a resis- Nacional (Parna) da Amazônia, “no
tência indígena em defesa de seus Igarapé Mambuaizinho[,] que fica na
territórios e de sua liberdade. A margem esquerda, contam-se não
6 Torres
do alto Tapajós, há que se ressaltar a obra. Nesse ambiente o seringueiro
situação agrária dos seringais. Eram não podia ser um trabalhador livre,
terras comumente não reclamadas, um assalariado. Se fosse, um traba-
7. Uma vasta discussão
terras apropriadas por seringalistas lhador livre, de posse de seu salário, sobre as dinâmicas
(ou “patrões”, como eram comu- logo estaria em condições de seguir de escravização por
endividamento nos
mente chamados) com uso de vio- adiante (1979: 55).
seringais está em
lência e exploradas a partir da coer- Weinstein (1993).
ção do trabalho dos seringueiros, Não era a terra que tinha valor,
sem qualquer registro formal em eram a estrada de seringa e o con-
relação ao título fundiário. A prin- tingente de trabalhadores para
cipal forma de controle dos patrões explorá-las. “A mão de obra tudo
sobre a escassa mão de obra operava vale e a terra, quase nada” (Pimen-
via mecanismos de endividamento, ta Bueno, 1882: 61 apud Weinstein,
que derivavam em escravidão por 1993: 193)8. Com o declínio do tem- 8. Pimenta Bueno, Manuel
Antonio. 1882. A
dívida7. Para garantir a permanên- po áureo da economia da borracha,
borracha. Rio de Janeiro.
cia do trabalhador, havia que se lhe após 1912, os pilares comerciais e do
privar de liberdade, em função do sistema de escravização começaram
endividamento, e para garantir que a ruir.
ele se endividaria, a principal tática
consistia na proibição de fazer ro- Os ‘barões’ da borracha perderam
çados, o que o obrigava a comprar o poder absoluto e as fortunas que
tudo o que consumia. Isso perdurou possuíam. Escândalos internacio-
por tempos e ainda hoje, no “beira- nais atraíram a atenção do mundo
dão” do Tapajós, ainda são muito para a escravização do seringueiro
vivas as lembranças do “tempo do da Amazônia (Wagley, 1977: 107 apud
carrancismo”, como muitos se refe- Ianni, 1979: 60)9. 9. Wagley, Charles. 1977.
Uma comunidade
rem aos tempos da alta da borracha, amazônica. São Paulo,
em que, como forma de coerção, os Paralelamente a esse enfraqueci- Companhia Editora
mento, outras formas começaram a Nacional.
patrões se valiam livremente do ter-
ror e da violência. Ianni comenta: se estruturar, em especial, um seg-
mento camponês específico, nos se-
O seringueiro não passava de um pri- ringais sem patrões:
sioneiro do sistema de aviamento,
do comércio, do crédito, da violência Em muitos lugares, ou ressurgiu, ou
privada do patrão. […] na Amazônia nasceu pela primeira vez, um setor
a terra era farta e livre, ao mesmo camponês. Ao mesmo tempo em
tempo em que escasseava a mão de que ocorriam a crise, a estagnação,
8 Torres
de uma hora para a outra, ao passo látex deu-se, mais que em razão da
que algumas famílias de pequenos quebra do mercado internacional
seringalistas, em face da desarti- da borracha, pelo gradativo desin-
culação do mercado da borracha, teresse pelo produto por parte de
acabaram por se fundir social e comerciantes locais. Entre os anos
economicamente aos seringueiros, de 1960 e 1970, o comércio cessou
aproximando-se de uma estrutura quase que por completo no alto Ta-
calcada em nucleamentos familia- pajós, por falta de compradores de
res e na solidificação das relações seringa. Enquanto a borracha per-
vicinais. dia preço e tinha compradores cada
vez mais raros, a partir do início dos
Da “mariscagem de gato” a Nilson anos de 1950, outro produto se valo-
Pinheiro, “o descobridor do ouro rizava: as peles de felinos. Antigos
no Tapajós” seringueiros tornavam-se, então,
O processo de abandono dos serin- gateiros, caçadores de onças, jagua-
gais do alto Tapajós pelos patrões tiricas e outras espécies cujas peles
culminou por volta dos anos de eram procuradas.
1950. Os seringueiros que ficaram Os gateiros tiveram um período
continuaram com a atividade ex- de atividade relativamente curto,
trativista, associando-a à agricul- pois o comércio de peles de animais
tura. O abandono do comércio do silvestres foi proibido já em 1967,
Imagem 3. Família
ribeirinha que vive no
interior da Floresta
Nacional de Itaituba.
Por Daniela Alarcon,
set. 2014.
10 Torres
motores que opera o garimpo. Mo- Durante parte da década de 1960,
tores pequenos, com mangueiras registra-se um período de transição
de quatro polegadas, são comumen- no Tapajós, em que teriam coexisti-
te empreendimentos de famílias do as três principais atividades eco-
ribeirinhas. nômicas: borracha, peles de gato e
As dragas escariantes, por sua ouro. Os trabalhadores apresenta-
vez, perfuram o leito dos rios e vam, contudo, uma clara tendência
dragam o material mais profundo. de se envolverem crescentemente
Após o barramento do rio Madeira, com a última. Essa migração de ati-
muitas dragas migraram para o alto vidade teria implicado uma corres-
Tapajós. Mais recentemente, as es- pondente transposição do sistema
cavadeiras hidráulicas, conhecidas de aviamento que predominava em
na região como PCs, têm substituí- especial na borracha, para supri-
do o jato d’água no desmonte do mento de alimentos, instrumentos
barranco. Note-se que essa técnica de trabalho e utensílios domésti-
tem grande poder de degradação e cos por parte das firmas aviadoras,
que o preço das máquinas, comu- como se pode ilustrar com o depoi-
mente, supera um milhão de reais. mento de Tibiriçá Santa Brígida, ex-
Paralelamente a essas formas de -prefeito de Itaituba, nomeado pelo
exploração, o garimpo manual, téc- ditador Castelo Branco, em 1964:
nica milenar, ainda hoje é reprodu-
zido no vale do Tapajós. Na tabela 1, Quando descobriam os garimpos,
pode-se observar a predominância os primeiros garimpeiros foram se-
das técnicas por período. ringueiros, eles foram abandonando
De 1978 a 1985 Ênfase na extração de leito ativo, por meio de balsas de mergulho.
De 1985 a 1992 Predominam a unidade produtiva conhecida como chupadeira (ou chupão)
e, muito secundariamente, dragas escariantes e escarilanças.
De 2008 até hoje Abrupto aumento no preço do ouro. Predominância de operação de dragas
escariantes e escarilanças, e desmonte de barrancos com escavadeiras
mecânicas conhecidas como PCs.
Imagem 5. Balsa de
mergulho. Por Simone
Albarado Rabelo, nov.
2011.
Imagem 6. Desmonte
hidráulico. Por Natalia
Guerrero, nov. 2011.
12 Torres
Imagem 7. Draga
escariante. Por Mauricio
Torres, dez. 2014.
14 Torres
gente do vale do Tapajós, no início jós, porém, nada comparado ao que
dos anos de 1970, quando o regime ocorreu, por exemplo, no trecho
militar decidiu que a Amazônia Altamira-Itaituba da BR-230.
seria “ocupada” como saída para Uma das causas para isso pode
a grave crise social das regiões Sul ser atribuída ao fato de, nas pro-
e Nordeste, criando o embrião dos ximidades do alto Tapajós, não ter
atuais projetos hidrelétricos, Emílio sido programado nenhum Proje-
Garrastazu Médici teria proclama- to de Colonização Integrado (PIC),
do: “terra sem povo para um povo como aconteceu na porção da BR-
sem terra” (Torres, 2005; Cunha, 163 entre Trairão e Santarém e no
2009). Ao que parece, o ditador e referido trecho da Transamazônica,
os tecnocratas de hoje, convenien- entre Altamira e Itaituba. Pese-se,
temente, não consideram como ainda, o fato de as duas estradas
gente os indígenas, quilombolas, terem ficado interrompidas, com
ribeirinhos, varzeiros e citadinos da tráfego impossível, justamente nas
região. Como no período colonial, porções que cortavam a bacia do
a região é esvaziada pelo discurso, Tapajós na sua parte mais alta, du-
em um esforço para se “justificar” rante cerca de dez anos, entre as
a expropriação territorial e o sola- décadas de 1980 e 1990, o que cer-
pamento dos modos de vida desses tamente minimizou seu impacto no
grupos. alto Tapajós.
Nesse contexto, e ao timbre dos Porém, não se pense que os efei-
clarins da ditadura, vieram os fa- tos foram pequenos para as flores-
raônicos projetos da BR-230 (a ro- tas, povos indígenas e ribeirinhos
dovia Transamazônica, ou simples- do alto Tapajós. Um dos mais per-
mente “Transa”, como é chamada ceptíveis foi o aquecimento do
na região do Tapajós) e da BR-163 mercado de terras e, consequente-
(Cuiabá-Santarém). A primeira, em mente, da grilagem. Não foram pe-
seu trecho de Itaituba a Jacareacan- quenas as lutas pela terra travadas
ga, cortava a porção oeste da bacia por ribeirinhos, que, muitas vezes,
do Tapajós, enquanto a segunda, acabavam expropriados. A resistên-
ao aproveitar o divisor de águas do cia daquela gente, porém, conduziu
interflúvio Xingu-Tapajós, riscava o a vitórias sobre apropriações ilegais
limite leste da bacia. A abertura das de terras públicas que se estendiam
estradas e os projetos estatais de co- por centenas de milhares de hecta-
lonização que lhe vieram a reboque res ou, mesmo, que passavam da
impactaram a região do alto Tapa- casa do milhão de hectares, como a
16 Torres
Tabela 2.
Unidades de conservação decretadas no vale do Tapajós em 2006.
Unidade de conservação Área (hectares) Categoria
18 Torres
ta na unidade de conservação caso Os beiradeiros de Montanha e
ela seja criada. Mangabal acabaram por ser aten-
A bacia do rio Tapajós está em fase didos, em setembro de 2013, pela
final dos estudos. Os resultados es- criação do Projeto de Assentamento
tão indicando a existência de 3 alter- Agroextrativista (PAE) Montanha e
nativas de barramento que poderão Mangabal, modalidade diferenciada
apresentar cerca de 10.000 MW de de assentamento de reforma agrá-
potência instalada. A Resex Monta- ria, que lhes garantiu o direito à ter-
nha-Mangabal causará interferência ra (Guerrero & Torres, 2013). Porém,
em qualquer uma das alternativas as aldeias munduruku instaladas
estudadas, visto que as alternativas em áreas não declaradas como TI
estão inseridas na área proposta não contaram com a mesma sorte.
para a unidade de conservação. Os indígenas que habitam as
Desta forma, conclui-se que a unidade margens do Tapajós nas proximida-
de conservação não deve ser criada (Bra- des dos projetos de barramento de
sil, Ministério de Minas e Energia, São Luís do Tapajós e de Jatobá lu-
Secretaria de Planejamento e De- tam há tempos pelo reconhecimen-
senvolvimento Energético, Departa- to oficial de suas terras e, sem qual-
mento de Planejamento Energético, quer explicação, o governo mantém
2007, grifos meus). o processo congelado. O caso da TI
Imagem 8. Meninas
munduruku, na aldeia
Waro Apompu, Terra
Indígena Munduruku.
Por Mauricio Torres, set.
2014.
20 Torres
uma manobra para licenciar a usi- ciamento das UHEs em seu territó-
na de São Luiz do Tapajós, que pode rio e sofreram violentos ataques por
alagar terra Munduruku. Depois de parte do governo federal, conforme
analisar o caso e se comprometer detalha Valle (2013) – de rasantes de
com os indígenas a publicar o rela- helicóptero que arrancavam a co-
tório que delimita a terra, Assirati bertura de palha das casas ao terror
diz que foi obrigada a voltar atrás. psicológico imposto pela operação
“Nós tivemos que descumprir esse de guerra comandada pelo gover-
compromisso em razão da priorida- no. E não foram só os indígenas de
de que o governo deu ao empreendi- Sawré Muybu. Na TI Munduruku,
mento. Isso é grave” (Aranha, 2015). no alto Tapajós, a reação do grupo
às iniciativas da construção das bar-
Sawré Muybu, na foz do rio Ja- ragens foi muito incisiva. Para am-
manxim, é uma TI diretamente afe- plificarem sua voz, 140 Munduruku
tada pelos projetos de barramento ocuparam o canteiro de obras da
e, sem tal publicação, para fins do UHE Belo Monte por duas vezes, em
licenciamento dos empreendimen- maio e junho de 2013, paralisando
tos, apesar da sabida existência de as obras por 17 dias no total.
indígenas no local, a área não é Pouco depois de retornarem a
sequer considerada TI, de acordo sua terra, após quase dois meses
com o que regulamenta a portaria de mobilização em Belo Monte e
interministerial nº419/2011, que em Brasília, os indígenas detiveram
estabelece: três pesquisadores que trabalhavam
para a empresa Concremat, encar-
X - Terra indígena: as áreas ocupadas regada da elaboração dos estudos
por povos indígenas, cujo relatório para o licenciamento de uma das
circunstanciado de identificação e delimi- barragens. Os pesquisadores foram
tação tenha sido aprovado por portaria mantidos presos por três dias, até
da FUNAI, publicada no Diário Oficial da que, em 23 de junho do mesmo ano,
União, ou áreas que tenham sido ob- uma equipe enviada pela Secretaria-
jeto de portaria de interdição expe- -Geral da Presidência da República
dida pela FUNAI em razão da locali- (SG/PR) negociou a libertação. Os ín-
zação de índios isolados (grifo meu). dios exigiram, em troca da soltura
dos pesquisadores, a imediata sus-
Os guerreiros de Sawré Muybu pensão dos estudos de impacto am-
resistiram à realização dos estudos biental (EIA) para a implantação de
ambientais relacionados ao licen- UHEs no rio Tapajós até que fosse
22 Torres
disputa pelo território – constroem
um vínculo na floresta, ao longo do
rio Tapajós, como ocorre em tantos
outros na Amazônia. Descobrem,
assim, a possibilidade de coalizão
entre gente que vive sob as mes-
mas intimidações: beiradeiros, qui-
lombolas, seringueiros, varjeiros,
camponeses, castanheiros, ribeiri-
nhos, quebradeiras de coco e mais
um mundo de grupos que se veem
frente ao mesmo conflito, frente à continuam sendo ribeirinhos, ín- Imagem 10. Mulher
munduruku, na aldeia
mesma ameaça. dios continuam sendo índios. Sem
Waro Apompu, Terra
A ameaça é plural em nome e em prejuízo de suas respectivas perten- Indígena Munduruku.
forma, mas una em seu objetivo: ças, entretanto, tornam-se iguais ao Por Daniela Alarcon, set.
2014.
visa um território livre de seus ocu- olhar do estranho que chega com os
pantes e aberto à exploração eco- projetos que os excluem de seus ter-
nômica indiscriminada. Às vezes, ritórios. A aliança não dissimula as
apresenta-se como agronegócio; ou- diferenças entre os diversos grupos.
tras, como mineradora; ou, então, Mostra apenas que a forma como se
como fazendeiro, grileiro, madei- veem uns aos outros transforma-se
reiro, pecuarista, setor produtivo, frente à chegada do expropriador
desenvolvimento sustentável… No comum. Descobrem e constroem
alto Tapajós, chega com o nome de seus modos diferentes de se alinhar
usina hidrelétrica. em uma luta de proporção flagran-
“Nunca fomos tão próximos dos temente desigual.
nossos vizinhos Munduruku.” O iní- As gentes do alto Tapajós, apenas
cio da carta de apoio dos ribeirinhos em um passado recente, enfrenta-
de Montanha e Mangabal aos Mun- ram o escravagismo, a decadência
duruku – escrita quando estes últi- da economia da borracha e da caça
mos ocupavam o canteiro de obras de peles, os garimpos, o mercúrio,
de Belo Monte, em protesto contra os madeireiros, os grileiros, a ma-
os projetos de barramento do Ta- lária, o desmatamento, o perigo
pajós – sintetiza bem as cicatrizes constante das cachoeiras. E agora
que essa aliança encobre. Sintetiza enfrentam sua maior ameaça: a
bem quão grave é o pacto firmado atual política de desenvolvimento do
ante o inimigo comum. Ribeirinhos governo federal.
24 Torres
Brasil. Ministério Público Federal. e do polígono desapropriado de
Procuradoria Geral da República. Altamira, no Pará”. In: Agrária,
2008. Ofício PGR/GAB/nº314. Bra- nº10/11. São Paulo, Laboratório
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1763”. In: Revista do Instituto Histó- em seu interior, particularmente
28 Torres
Caracterização ambiental da bacia do Tapajós
Ricardo Scoles
L
Geomorfologia da bacia do Tapajós quilômetros; considerando-se uni-
ocalizada na parte central da camente o trecho após a união dos
bacia da Amazônia (sentido rios tributários, a extensão é de 650
oeste-leste), a bacia do Tapajós quilômetros, quase todos navegá-
percorre extensos ecossistemas veis, à exceção do trecho à montan-
aquático-florestais, desde os altos te da cachoeira do Chacorão (Goul-
relevos do cerrado mato-grossense ding et al., 2003; Latrubesse et al.,
até as baixas latitudes e altitudes 2005; Hales & Petry, 2013).
das terras alagáveis (várzeas) da re- A bacia do rio Tapajós percorre
gião de Santarém (ver mapa-encarte). três estados brasileiros (Mato Gros-
Seus principais rios são o Tapajós e so, Pará e Amazonas), conectando
seus tributários ou afluentes, tais dois grandes biomas, o cerrado e
como os rios Jamanxim, Teles Pires a floresta amazônica. Na sua parte
e Juruena – o Tapajós recebe esse montante, atravessa serras do Escu-
nome após a união destes dois úl- do Central Brasileiro, de formação
timos. Considerando-se todo o sis- geológica muito antiga (3,5 bilhões
tema amazônico, trata-se da quin- de anos) – daí o baixo teor de sedi-
ta bacia hidrográfica em extensão mentos escoados na drenagem da
(490 mil quilômetros quadrados), região, o que responde pelas águas
responsável por 6% da descarga de translúcidas do Tapajós e seus
água doce no rio Amazonas (Latru- afluentes. Apresentando elevado
besse et al., 2005). Sua extensão, desnível altimétrico, os rios Jurue-
incluindo o Teles Pires, é de 1.992 na e Teles Pires passam por platôs
29
relevos dissecados, colinas com ra-
vinas e vales encaixados (Espírito-
-Santo et al., 2005; Buckup & Santos,
2010). Os barramentos pretendidos
para a bacia, se levados a cabo, pro-
vocariam uma substantiva alteração
nos perfis dos rios, como podemos
notar nas imagens de 1 a 3.
30 Scoles
ridional, o período seco é mais pro- uma visibilidade que pode alcan- Imagem 3. Projeção
dos perfis dos rios
longado, registrando-se mais de 60 çar cinco metros de profundidade. Tapajós e Jamanxim
dias sem chuva (Brasil, Ministério do Isso se deve à baixa concentração com os barramentos
Planejamento, Orçamento e Gestão, de materiais dissolvidos e em sus- pretendidos. Fonte:
Camargo Corrêa et al.
Instituto Brasileiro de Geografia e Es- pensão. Por esse motivo, a con- (2008: 284).
tatística, 2012). Na região do Tapajós, dutividade das águas nesse rio é a
a precipitação média anual apresen- mais baixa (2,5-7,5 microssegundos
ta grande variação inter-regional, – Wantzen, 2003) entre os rios de
de 2.100 milímetros, na região de águas claras da Amazônia (20-30
Santarém, a 1.500, na Chapada dos microssegundos), e muito inferior
Parecis, e 2.900 milímetros, na serra às altas condutividades das águas
do Cachimbo (Hales & Petry, 2013). barrentas (60-100 microssegundos)
(Junk et al., 2007). Como se comen-
As águas claras da bacia do Tapajós tou, a baixa presença de sedimentos
As águas do rio Tapajós são as mais nas águas dos rios de águas claras
claras da região do Amazonas, com explica-se por fatores geofísicos, já
que são cursos fluviais que drenam por quilômetros, como se houvesse
substratos e terrenos muito antigos uma barreira física entre os dois ti-
geologicamente (Maciço Central do pos de águas. A explicação científica
Brasil), que já liberaram boa parte é simples: as enormes diferenças de
de suas partículas potencialmente densidade entre as águas do rio Ta-
dissolvíveis em água. pajós e do rio Amazonas impedem
A baixa carga de sedimentos e sua mistura. De fato, a diferença de
a transparência do rio contrastam cargas de sedimentos entre águas
com as águas do rio Amazonas, ca- claras e brancas é grande: na foz do
racterizadas por alta concentração rio Tapajós, a descarga anual média
de material em suspensão, baixíssi- de sedimentos varia entre 10 e 20
ma visibilidade e aspecto barrento. milhões de toneladas, bem menor
Tais diferenças justificam a espeta- que a descarga do rio Madeira (248-
cular visão do “encontro das águas” 600 milhões de toneladas), afluente
em frente à cidade de Santarém, um meridional do rio Amazonas de ori-
fenômeno físico em que as águas gem andina e de águas barrentas, ou
claras do Tapajós (tonalidade azul ou que a do próprio rio Amazonas na
esverdeada) não se misturam com as sua grande foz (600 milhões-1,3 bi-
águas do rio principal (brancas ou lhão de toneladas) (Latrubesse et al.,
barrentas, de cor amarela-marrom) 2005; Park & Latrubesse, 2014).
32 Scoles
Na bacia do Tapajós, a acidez das Ecossistemas terrestres
águas é variável (pH entre 4 e 7), A floresta tropical úmida ou floresta
dependendo do substrato e trecho ombrófila domina a paisagem ecos-
(Sioli, 1984; Junk et al., 2007; Cunha, sistêmica terrestre da região do Ta-
2008). Em geral, nos afluentes se- pajós, assim como ocorre em todo
tentrionais do rio, as águas são áci- o bioma da Amazônia. Dependendo
das ou levemente ácidas (pH entre 5 das condições geoclimáticas e estru-
e 6,8) (Godoi, 2008). Já nas proximi- turação florestal, a floresta ombró-
dades da foz, as águas são neutras fila (“amiga das chuvas”) é subdi-
ou levemente alcalinas (Miranda et vidida em floresta ombrófila densa
al., 2009). (FOD) e floresta ombrófila aberta
Como ocorre com outros grandes (FOA), sendo a primeira maior em
afluentes do rio Amazonas, o Tapajós termos de extensão territorial
tem uma dinâmica fluvial marcante, (Brasil, Ministério do Planejamen-
com uma época de enchente e outra to, Orçamento e Gestão, Instituto
de vazante, dependentes do regime Brasileiro de Geografia e Estatísti-
de precipitação estacional (perío- ca, 2012). A FOD caracteriza-se por
do chuvoso e seco). Na parte mais possuir vegetação exuberante, com
a montante, o rio começa a subir complexa estratificação florestal,
em setembro ou início de outubro, alta biodiversidade, presença maci-
alcançando os máximos níveis em ça de lianas e epífitas e alta capaci-
março ou abril (imagem 4). Na parte dade de regulação climática local.
do rio mais próxima a sua foz (Santa- Dependendo da faixa altimétrica,
rém), o período de vazante inicia-se ela pode ser distinguida em várias
mais tarde e se prolonga até o mês formações: aluvial (0-5 metros de
de novembro; os níveis máximos do altitude), terras baixas (5-100 me-
rio ocorrem nos meses de maio e/ou tros de altitude), submontana (100-
junho, recebendo mais a influência 600 metros de altitude) e montana
do rio Amazonas. A flutuação do ní- (600-2.000 metros de altitude). Nas
vel dos rios da bacia pode chegar a florestas tropicais com mais de 60
quatro ou cinco metros. Nos últimos dias secos por ano, a FOD é substi-
100 quilômetros de seu trajeto, o rio tuída por FOA, sempre que as con-
Tapajós é muito largo (entre 6,4 e dições topográficas e biogeográficas
14,5 quilômetros) e profundo, com permitam a manutenção da umida-
margens arenosas que descobrem de ambiental mesmo nos períodos
grandes praias durante o período de úmidos mais desfavoráveis (estação
vazante (Hales & Petry, 2013). seca). A FOA é um tipo de formação
34 Scoles
(ICMBio), a Flona do Tapajós, UC de catalogadas na região do rio Tapa-
uso sustentável localizada na parte jós era 494 (Buckup & Santos, 2010).
mais baixa do rio Tapajós é a UC Não obstante, a diversidade da ic-
onde, atualmente, estão se desen- tiofauna ainda é insuficientemente
volvendo mais pesquisas no Brasil, conhecida na região, existindo inú-
tendo sido identificada alta diversi- meros trechos inexplorados ou pou-
dade de árvores e palmeiras (Espíri- co conhecidos, podendo-se afirmar
to-Santo et al., 2005). que o número de espécies provavel-
Por outro lado, a região sujeita mente é ainda maior. Reforçando
a empreendimentos hidrelétricos esse suposto, uma rápida pesquisa
(a montante de Itaituba) é bastante bibliográfica em revistas científicas
desconhecida em termos biológicos. que divulgam trabalhos taxonômi-
A maioria das pesquisas e levanta- cos de peixes tropicais americanos
mentos da diversidade de grupo de verificou várias “descobertas”, nos
organismos está sendo realizada, últimos anos, de novas espécies de
atualmente, no âmbito dos estudos peixes de água doce e endêmicas da
de viabilidade técnica e econômica região do Tapajós, especialmente na
(EVTE), para produção do estudo de parte mais meridional da bacia (rio
impacto ambiental (EIA)2. Entretan- Teles Pires, Juruena e Arinos) (tabela 2. Tais estudos estão
sendo elaborados
to, há indícios de que a diversidade 1). No levantamento de ictiofauna por um consórcio
biológica e as espécies endêmicas realizado pelo ICMBio em 2011, em de empresas
(espécies com distribuição restrita 27 pontos de coleta nos trechos do autodenominado Grupo
de Estudos Tapajós. O
a uma ecorregião determinada) são rio Tapajós que seriam afetados pela grupo é composto por
altíssimas na região mais meridio- construção dos empreendimentos Electricité de France
S.A., Copel Geração e
nal da bacia, por se tratar de uma hidrelétricos previstos, foram obti- Transmissão, Endesa
área de transição entre biomas e das amostras de peixes pertencen- Brasil S.A., Construções
e Comércio Camargo
por apresentar gradientes de alti- tes a nove ordens, 40 famílias e 205
Corrêa S.A., Cemig
tude e latitude. Tais indícios podem espécies, sendo 20 não descritas Geração e Transmissão
ser comprovados estudando-se o (Britzke & Senhorini, 2011). S.A., GDF Suez Energy
Latin Participações
grupo dos peixes de água doce. Ltda., Neonergia
Os conhecimentos taxonômicos Ameaças ambientais à bacia do rio Investimentos S.A.
e Centrais Elétricas
e ecológicos das comunidades de Tapajós
Brasileiras S.A.
peixes da bacia do rio Tapajós es- Uma grande preocupação ambien- (Eletrobras), sendo que
tão mais consolidados que em rela- tal e sanitária na bacia do rio Ta- esta última lidera o
consórcio.
ção a outros grupos de organismos pajós é a contaminação de suas
aquáticos. Em 2010, o número de águas (superficiais e freáticas) por
espécies de peixes identificadas e mercúrio. Durante as duas últimas
Nota: Esta lista exemplifica novas espécies catalogadas recentemente na região meridional da bacia
do Tapajós (não pretende ser completa).
36 Scoles
biodegradável, com bioacumulação ta ripária ou mata ciliar3, fato que 3. Amanda Mortati, com.
pess.
eficiente, de fácil penetração nas gera impactos negativos na produ-
membranas biológicas, lentíssima ção primária dos igarapés e riachos
eliminação nos tecidos contamina- (altamente dependentes da matéria
dos, alta volatilidade, e toxicidade orgânica alóctone importada da ve-
neurológica e citogênica a altas do- getação circundante), colonização
ses (Berzas Nevado et al., 2010). de peixes no folhiço submerso e
A situação agrava-se em razão conservação do solo (Mortati, 2004).
dos hábitos alimentares regionais Na porção paraense da bacia, são
das populações ribeirinhas, com alarmantes o desmatamento na área
alto consumo de peixes (salutar, de influência direta da BR-163 (que,
por outra parte), especialmente de aliás, superou as mais pessimistas
espécies carnívoras, que acumulam projeções), o aumento recente do
maiores concentrações de mercúrio garimpo por conta da valorização
nos seus tecidos (Passos et al., 2007; do ouro e o descontrole da extração
Berzas Nevado et al., 2010). Indícios ilegal de madeira, vitimando prin-
de risco à saúde humana já foram cipalmente UCs e terras indígenas
detectados em monitoramentos da (TIs), as florestas onde ainda restam
concentração de mercúrio em po- madeiras comercialmente valoriza-
pulações humanas nas áreas rurais das. Enfim, um quadro em que se
da região, constatando-se altas con- evidencia a ausência quase total de
centrações de mercúrio nos cabelos governança ambiental.
da população ribeirinha do rio Tapa- Ainda assim, sem dúvida, a amea-
jós, bem acima dos níveis recomen- ça ecológica de maior envergadura
dados pela Organização Mundial da para a bacia hidrográfica do rio Ta-
Saúde (OMS), de dez microgramas pajós é a previsão de construção
por grama de fio de cabelo (Passos de diversas centrais hidrelétricas a
& Mergler, 2008; Berzas Nevado et montante da cidade de Itaituba. Tais
al., 2010). empreendimentos provocariam in-
Outra problemática ambiental terferências de alcance imprevisível
atual, de influência humana, rela- no fluxo e ciclos das águas, respon-
cionada com a bacia hidrográfica sáveis pela dinâmica ecológica das
do rio Tapajós é o avanço da pecuá- águas de inundação florestal, diver-
ria no estado de Mato Grosso e seu sidade biológica, grandes migrações
impacto negativo nas cabeceiras e ciclos reprodutivos da fauna aquá-
dos rios mais meridionais da bacia, tica (Ferreira et al., 2013).
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38 Scoles
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42 Scoles
“Saída pelo norte”
A articulação de projetos de infraestrutura
e rotas logísticas na bacia do Tapajós
Daniela Fernandes Alarcon, Natalia Ribas Guerrero
e Mauricio Torres
O
que o projeto de exploração des econômicas frequentemente
energética da bacia hidrográ- predatórias e ilegais, ameaçando
fica do Tapajós revela sobre os modos de vida e a integridade 1. A expressão
“desmatamento
os paradigmas de “desenvolvimen- dos territórios de indígenas, ribei-
especulativo”,
to” que têm regido os planos do rinhos e camponeses, entre outros formulação do Instituto
governo federal e, mais especifica- grupos. do Homem e Meio
Ambiente da Amazônia
mente, sobre suas expressões con- Para citar um exemplo, em se- (Imazon), remete
cretas na Amazônia? As denúncias tembro de 2013, o Valor Econômico ao desmatamento
coligado com a
sobre a gravidade das violações e noticiava que o governo do Pará
grilagem de terras.
dos efeitos negativos das barragens acabara de adotar medidas para Nesse caso, o grileiro
já implementadas, em construção frear o desmatamento especulativo, desmata movido
não pela intenção
ou previstas para a bacia são nume- “resultado das obras de infraestru- de implementar
rosas. Mas, para além dos impactos tura e logística estaduais e federais qualquer atividade
produtiva na área, mas
mais diretamente conectados aos no âmbito do PAC [Plano de Ace- para tentar, por meio
projetos de aproveitamento hidre- leração do Crescimento]” (Barros, do desmatamento,
2013d)1. “Além das hidrelétricas do consolidar a detenção
létrico, há que se registrar um con-
de terras públicas,
junto de consequências negativas rio Tapajós”, prossegue a matéria, apropriar-se delas e
que advém da articulação entre os “a especulação também está sendo aferir ganhos na venda
das mesmas, após
barramentos e outros projetos de motivada pela concessão de nove terem sido ilegalmente
infraestrutura previstos ou em an- terminais fluviais em Itaituba, a desmatadas. Ver mais
em Torres & Alarcon, no
damento, como hidrovias, portos e nova promessa de escoamento dos
prelo.
rodovias. Tal conjugação concorre grãos do Centro-Oeste para exporta-
para a intensificação de ativida- ção” (Idem).
43
Essas intervenções na bacia do necta com intervenções territoriais
Tapajós e, mais amplamente, na de outra ordem, como a retirada ile-
região amazônica, quase nunca gal de madeira, o aquecimento do
são discutidas em conjunto. Docu- mercado de terras e o consequente
mentos oficiais, declarações de re- incremento da grilagem. Finalmen-
presentantes do governo federal e te, há que se destacar os interesses
do setor privado, assim como aná- minerários relacionados à geração
lises apresentadas por jornalistas e de energia na bacia do Tapajós, uma
pesquisadores engajados na defesa das mais ricas províncias auríferas
desse projeto de desenvolvimento, do planeta, onde se encontram tam-
comumente referem-se aos barra- bém jazidas de alumínio, bauxita,
mentos sem mencionar, por exem- cobre, diamante e fosfato.
plo, as altas expectativas que sobre Se tomarmos em conjunto os
eles nutrem os setores do agronegó- governos de Fernando Henrique
cio interessados na construção da Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva
hidrovia Teles Pires-Juruena-Tapajós e Dilma Rousseff, veremos que os
(que ligaria as áreas produtoras de paradigmas de desenvolvimento
soja e outros grãos no norte de Mato impulsados nessas gestões (expres-
Grosso aos terminais graneleiros de sos nos programas Brasil em Ação e
transbordo, em Itaituba e Santarém, Avança Brasil, e no PAC) pautam-se,
no Pará), para escoamento mais ágil grosso modo, pela valorização da
da soja produzida em Mato Grosso e ampliação da infraestrutura, com
de outras commodities. incentivos à exportação de commodi-
Tais expectativas, acalentadas ties agrícolas e minerais. Nesse qua-
também por empresas da constru- dro, as prioridades territoriais são
ção civil e ramos conexos, não se ditadas pelo tráfego das mercado-
limitam à hidrovia, abarcando ain- rias, e não pela garantia de direitos
da o conjunto de portos previstos socioambientais. Perpetuam-se, as-
para o efetivo deslocamento do eixo sim, tendências históricas – é fácil
logístico, hoje majoritariamente encontrar nessa opção de desenvol-
orientado aos portos de Santos (São vimento, frequentemente vendida
Paulo) e Paranaguá (Paraná). Tam- como “inovadora”, diversos pontos
pouco devemos esquecer a pavimen- de contato com as intervenções le-
tação da rodovia Cuiabá-Santarém vadas a cabo pela ditadura militar
(BR-163) até Santarém, variante de na Amazônia, cujo saldo nefasto
peso para a alteração da rota de es- subsiste. Por trás de projetos de in-
coamento de commodities, que se co- fraestrutura e logística, apresenta-
portância para a formulação de po- BR-163. “Com base nos nove eixos
líticas de desenvolvimento de cada de integração priorizados, é possí-
estado e da Amazônia Legal” (Con- vel montar uma nova forma de ver a
federação Nacional da Indústria et Amazônia Legal” (Idem, grifo nosso).
al., 2011b). É de se perguntar: nova forma?
Partindo de um diagnóstico da Falar em eixos de integração como
infraestrutura de transporte exis- novidade é descartar a evidência
tente na região (rodovias, ferrovias, histórica. Considere-se que, em
hidrovias, portos e aeroportos) e 1972, como parte das comemora-
considerando as cadeias produtivas ções dos 150 anos da independência
de itens do agronegócio (cana-de- do Brasil, o Banco Central emitiu
-açúcar, milho, soja), da pecuária uma cédula de 500 cruzeiros em
bovina, minérios (aço, alumínio, cujo verso se apresentava uma se-
cobre, ferro e manganês), madeira, quência de cinco cartas geográficas
fertilizantes, petróleo e derivados, do território brasileiro, com os títu-
entre outros, o projeto traçava um los “descobrimento”, “comércio”,
conjunto de “eixos potenciais de “colonização”, “independência” e
integração nacional” (Confederação “integração”. Esta última carta, en-
Nacional da Indústria et al., 2011a). cerrando o que soa como uma linha
Entre eles, figuravam como priori- evolutiva, representava a extensa
dade (por trazer “maior competiti- malha viária a ser construída no
vidade à Amazônia Legal”) a hidro- âmbito do Programa de Integração
via Teles Pires-Juruena-Tapajós e a Nacional (PIN), instituído pelo De-
Imagem 2. Orla de
Santarém, com o porto
da Cargill ao fundo. Por
Mauricio Torres, ago.
2014.
H
1. As pesquisas do
á planos para construção caças sobre cachoeiras nos rios. Os autor são financiadas
exclusivamente por
de 43 “grandes” barragens planos para hidrovias, assim, impli-
fontes acadêmicas:
(com potência superior a 30 cam completar a cadeia de barra- Conselho Nacional
megawatts) na bacia do Tapajós, gens, que inclui a usina hidrelétrica de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico
sendo dez consideradas prioritárias (UHE) de Chacorão, que inundaria (CNPq) (processos
pelo Ministério de Minas e Energia 18.700 hectares da TI Munduruku. nº305880/2007-1,
nº304020/2010-9,
(MME), com conclusão prevista para Nesse quadro, as proteções con- nº573810/2008-7,
até 2022 (Brasil, Ministério de Mi- tidas na Constituição Federal, na nº575853/2008-5),
nas e Energia, Empresa de Pesquisa legislação brasileira e em conven- Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado
Energética, 2013). Entre outros im- ções internacionais são facilmente do Amazonas (Fapeam)
pactos, várias represas inundariam neutralizadas com a aplicação de (processo nº708565) e
Instituto Nacional de
terras indígenas (TIs) e unidades suspensões de segurança (SS), como Pesquisas da Amazônia
de conservação (UCs). Além disso, já demonstrado em uma série de ca- (Inpa) (PRJ13.03).
Parte deste texto é
o rio Tapajós, no estado do Pará, e sos no licenciamento das barragens
traduzido e adaptado
seus afluentes no estado de Mato hoje em construção na bacia do Ta- de Fearnside (2014a, no
Grosso, os rios Teles Pires e Jurue- pajós. Os múltiplos impactos das prelo). Zachary Hurwitz,
da International Rivers,
na, também são foco de planos do barragens previstas para a bacia do forneceu arquivos shape
Ministério dos Transportes (MTr) Tapajós serão o foco deste capítulo. usados na elaboração
de imagens, preparadas
para convertê-los em hidrovias para
por M.A. dos Santos
transporte de soja de Mato Grosso As barragens Jr., que subsidiaram
até portos no rio Amazonas. Note- A bacia amazônica, que tem cerca a análise. Agradeço
a P.M.L.A. Graça, D.F.
-se que a construção de represas é de dois terços no Brasil, é o foco de Alarcon e I.F. Brown
necessária para a passagem de bar- uma onda maciça de construção pelos comentários.
79
Imagem 1 Locais
mencionados no texto.
Barragens: 1 - São Luiz
do Tapajós, 2 - Jatobá,
3 - Chacorão, 4 - Teles
Pires, 5 - Salto Augusto
Baixo, 6 - São Simão
Alto, 7 - Colíder, 8 - São
Manoel, 9 - Sinop, 10 -
Magessi, 11 - Cachoeira
do Caí, 12 - Cachoeira
dos Patos, 13 - Jardim
de Ouro, 14 - Jirau, 15 -
Santo Antônio, 16 - Belo
Monte. Cidades: 17 -
Santarém, 18 - Cuiabá,
19 - Juína, 20 - Sinop,
21 - Sorriso, 22 - Itaituba,
23 - Miritituba, 24 -
Barcarena, 25 - Brasília,
26 - Vilhena. Rodovias:
27 - MT-319, 28 - BR-230,
29 - BR-319, 30 - BR-364.
Rios: 31 - Amazonas, 32 -
Tapajós, 33 - Teles Pires,
34 - Juruena, 35 - Arinos,
36 - Jamanxim, 37 -
Madeira, 38 - Xingu, 39
- Solimões. Elaboração:
M.A. dos Santos Jr., 2014.
80 Fearnside
para animais, incluindo os seres hu- Polícia Federal, em novembro de
manos) (e.g. Fearnside, 1999; Leino 2012 é um emblema para os povos
& Lodenius, 1995) e o deslocamento indígenas impactados por UHEs na
forçado de população (Cernea, 1988, bacia do rio Tapajós (e.g. Aranha &
2000; McCully, 2001; Oliver-Smith, Mota, 2014).
2009, 2010; Scudder, 2006; World Os planos para construção de
Commission on Dams, 2000). barragens na bacia do Tapajós são
Além disso, projetos de constru- enormes, totalizando, como se indi-
ção de barragens nos trópicos como cou, entre planejados e em constru-
um todo têm seguido um padrão ção, 43 “grandes” aproveitamentos
sistemático de violação de direitos hidrelétricos, definidos como aque-
humanos – têm ocorrido, inclusive, les com mais de 30 megawatts de
assassinatos, vitimando especial- capacidade instalada2 (ver mapa-en- 2. Aproveitamentos
com potência de até
mente indígenas. Exemplos recen- carte). Quase todas essas barragens
30 megawatts são
tes de assassinatos de lideranças in- planejadas têm capacidade muito caracterizados como
dígenas que se opõem às barragens superior a 30 megawatts. Três delas pequenas centrais
hidrelétricas (PCHs), de
incluem Miguel Pabón, em 2012, no ficariam no rio Tapajós propriamen- acordo com a Resolução
contexto da barragem de Hidroso- te dito e quatro, no rio Jamanxim Normativa nº343/2008
da Agência Nacional de
gamoso, na Colômbia, e Onésimo (afluente do rio Tapajós no estado
Energia Elétrica (Aneel).
Rodriguez, em 2013, no contexto da do Pará). Para os afluentes no estado
barragem de Barro Blanco, no Pana- de Mato Grosso, há seis barragens
má (Ross, 2012; Yan, 2013). Em 2014, planejadas na bacia do rio Teles Pi-
no contexto da barragem de Santa res e 30 na bacia do rio Juruena (ver
Rita, na Guatemala, duas crianças mapa-encarte). Também há planos
indígenas (David e Ageo Chen) fo- para numerosas pequenas centrais
ram assassinadas; os pistoleiros não hidrelétricas (PCHs), ou seja, barra-
conseguiram localizar o líder que gens com capacidade instalada de
eles haviam sido contratados para até 30 megawatts, que são isentas
matar. O caso tornou-se emblemáti- do estudo de impacto ambiental e
co (e.g. Illescas, 2014). Ironicamente, de relatório de impacto ambiental
todas essas barragens têm projetos (EIA/Rima).
de crédito de carbono aprovados O segundo Programa de Acele-
pelo Mecanismo do Desenvolvi- ração do Crescimento (PAC 2), para
mento Limpo e, supostamente, re- 2011-2015, inclui seis barragens nos 3. Ver: <http://www.
presentam o “desenvolvimento sus- rios Tapajós e Jamanxim, e cinco pac.gov.br/energia/
geracao-de-energia-
tentável”. No Brasil, o assassinato barragens no rio Teles Pires3. As eletrica> (acesso: 25 jul.
de Adenilson Krixi Mundurku pela prioridades e os cronogramas das 2014).
82 Fearnside
15.600 hectares do Parna da Ama- e Barcarena, assim dando acesso ao
zônia, 18.515 hectares do Parna do rio Amazonas e ao oceano Atlântico
Jamanxim, 7.352 hectares da Flores- (Millikan, 2011).
ta Nacional (Flona) Itaituba I, 21.094 Uma barragem adicional, que
hectares da Flona Itaituba II, 15.819 não é mencionada no “eixo ener-
hectares da Área de Proteção Am- gia” do plano, seria necessária para
biental (APA) do Tapajós, ou um to- concluir a hidrovia: a de Chacorão,
tal de 78.380 hectares de UCs. no rio Tapajós (Idem). Essa obra
No caso da bacia do Tapajós, o também não aparece entre as bar-
conjunto de impactos das muitas ragens listadas nos PDEs 2011-2020,
barragens e da hidrovia do Tapa- 2012-2021 e 2013-2022 (Brasil, Minis-
jós, incluindo seus ramais, é muito tério de Minas e Energia, Empresa
maior que os danos que geralmente de Pesquisa Energética, 2011, 2012,
entram em discussão quando se de- 2013). Por outro lado, a UHE Chaco-
bate qualquer obra específica, como rão figura no estudo de viabilidade
a primeira barragem planejada, São (Consórcio Nacional dos Engenhei-
Luiz do Tapajós. A hidrovia tem ros Consultores, 2014) e na avalia-
papel-chave para garantir a cons- ção ambiental integrada (AAI) das
trução de todas as barragens neces- barragens do Tapajós (Grupo de Tra-
sárias para tornar a rota navegável, balho Tapajós & Ecology and Envi-
incluindo a barragem mais danosa: ronment do Brasil, 2014: 60). Além
a UHE Chacorão, como veremos a disso, as eclusas dessa barragem são
seguir. indicadas como “prioritárias” no
Plano Nacional Hidroviário (PNH)
A hidrovia do Tapajós (Ibid.: 22). A UHE Chacorão permi-
Barragens inundam cachoeiras que tiria que barcaças atravessassem a
dificultam a navegação, e as eclusas cachoeira de Sete Quedas.
associadas às barragens permitem Chacorão inundaria 18.700 hec-
a passagem de barcaças para trans- tares da TI Munduruku (Millikan,
porte de commodities, principalmen- 2011); no caso das UHEs de São Luiz
te a soja. O Brasil possui extensos do Tapajós e, sobretudo, Jatobá, os
planos para a navegação (ver, por reservatórios alagariam terras do
exemplo, Fearnside, 2001) e essas povo Munduruku que não foram
barragens permitiriam a abertura ainda oficialmente declaradas como
da hidrovia do Tapajós, planeja- TI (Lourenço, 2014; Ortiz, 2013).
da para levar soja de Mato Grosso Note-se que o reconhecimento de
para portos em Santarém, Santana TIs no Brasil encontra-se essencial-
84 Fearnside
via depende da construção de uma Juruena requer seis barragens até
série de barragens, cada uma com os dois portos propostos e três dos
eclusas para permitir a passagem reservatórios tocam TIs: as UHEs de
das barcaças. Escondido e Erikpatsá, nas TIs de
Em Mato Grosso, a hidrovia do mesmos nomes, e a UHE Tucumã,
Tapajós bifurcará em ramais subin- na TI Japuíra (Consórcio Nacional
do os rios Juruena e Teles Pires. O dos Engenheiros Consultores, 2014,
primeiro ramal da hidrovia a ser ilustração 3.5/1). Nos afluentes for-
construído tornaria o rio Teles Pires madores do rio Juruena, acima da
navegável até Sinop e, posterior- parte a ser tornada navegável, são
mente, até Sorriso. O ramal do Te- planejadas mais 16 UHEs (Brasil,
les Pires requer uma série de cinco Agência Nacional de Energia Elé-
barragens, três das quais já estão trica, 2011). Das 16 “grandes” bar-
em construção (Colíder, São Manoel ragens nos formadores do Juruena,
e Sinop). A barragem de São Manoel quatro atingem a TI Nambikwara
está a menos de um quilômetro da (Pocilga, Jacaré, Foz do Formiga Bai-
TI Kayabi e já tem provocado confli- xo e Nambiquara), e duas atingem
tos com o povo indígena (Instituto a TI Tirecatinga (Salto Utiariti e Foz
Socioambiental, 2013). Já a barra- do Sacre) (Consórcio Nacional dos
gem Foz do Apiacás está localizada Engenheiros Consultores, 2014).
a apenas cinco quilômetros da mes- Dentre as diversas PCHs planeja-
ma TI. Note-se que a portaria inter- das, várias atingiriam áreas indíge-
ministerial nº419/2011 considera nas (Idem, ilustração 3.5/1; Almeida,
que há interferência em qualquer 2010; Fanzeres, 2013).
TI situada a até 40 quilômetros de
uma UHE. O impedimento à proteção
No segundo ramal, que sobe o O tratamento jurídico do licencia-
rio Juruena, a soja chegaria até os mento de barragens e, sobretudo,
portos via estradas vindas do sul, in- dos impactos sobre povos indíge-
cluindo uma nova estrada (MT-319), nas ilustra com clareza as barreiras
que conecta Juína, em Mato Grosso, impedindo a aplicação das prote-
com Vilhena, em Rondônia orien- ções existentes na Constituição Fe-
tal, cortando duas áreas indígenas, deral, na legislação brasileira e em
a TI Enawenê Nawê e o Parque In- convenções internacionais, como a
dígena do Aripuanã (Macrologística Convenção 169 da Organização In-
& Federação das Indústrias da Ama- ternacional de Trabalho (OIT), que
zônia Legal, 2011). O ramal do rio garante o direito à consulta aos
86 Fearnside
sobre a alimentação, pelo dano às irregularidades no licenciamento
atividades pesqueiras. E também há da obra (Monteiro, 2013a, 2013b).
perda de locais sagrados associados Várias tentativas de impedir a obra
às cachoeiras a serem inundadas. judicialmente foram derrubadas.
Houve uma série de irregularidades Uma suspensão do leilão foi reverti-
no licenciamento (Millikan, 2012) da em 13 de dezembro de 2013 (Fun-
e sucessivas tentativas judiciais de dação Oswaldo Cruz & Federação
parar a obra foram revertidas, geral- dos Órgãos para Assistência Social
mente, em apenas dois ou três dias. e Educacional, [2013]). A história
A rapidez na reversão de decisões se repetiu em 28 de abril de 2014,
fundamentadas em extensa docu- quando um juiz em Cuiabá suspen-
mentação de impactos e de viola- deu a obra com base na legislação,
ções de leis provavelmente se deve garantindo os direitos dos povos
ao fato de que a aplicação de SS não indígenas (Brasil, Poder Judiciário,
leva em conta os argumentos sobre Tribunal Regional Federal da Pri-
os impactos e a legalidade da obra, meira Região, 2014). Em 21 de julho
dependendo apenas da demonstra- de 2014, a ação civil pública estava
ção de sua importância econômi- conclusa para sentença.
ca. A UHE Teles Pires foi suspensa As barragens de Sinop, Colíder e
em 14 de dezembro de 2010 (Brasil, Magessi tiveram a construção blo-
Poder Judiciário, Justiça Federal de queada em 2 de dezembro de 2011,
Primeira Instância, Seção Judiciária quando um juiz em Sinop emitiu
do Pará, 2010), em 27 de março de uma liminar, com base no descum-
2012 (Lessa, 2012; Brasil, Ministério primento de legislação sobre licen-
Público Federal no Pará, 2012), em ciamento ambiental (Brasil, Poder
9 de abril de 2012 (Brasil, Poder Ju- Judiciário, Justiça Federal de Mato
diciário, Tribunal Regional Fede- Grosso, Subseção Judiciária de Si-
ral da Primeira Região, 2012a), em nop, 2011). Entre outras irregulari-
1 de agosto de 2012 (ver Fundação dades, o licenciamento estava sendo
Oswaldo Cruz & Federação dos Ór- feito apenas pela Secretaria de Meio
gãos para Assistência Social e Edu- Ambiente de Mato Grosso (Sema/
cacional, [2013]) e em 9 de outubro MT), quando barragens como essas
de 2013 (Brasil, Poder Judiciário, Tri- precisam de licenciamento em ní-
bunal Regional Federal da Primeira vel federal, pelo Instituto Brasileiro
Região, [2013]). do Meio Ambiente e dos Recursos
Já no caso da UHE São Manoel, Naturais Renováveis (Ibama) (Brasil,
há uma cronologia espetacular de Ministério Público Federal no Pará,
88 Fearnside
Tapajós. O sistema de licenciamen- pdf&nome=Juliana%20de%20
to ambiental tem sido incapaz de Almeida_Alta%20Tens%E3o%20
evitar a aprovação de projetos com na%20Floresta%20Os%20Enawe-
grandes impactos e o sistema jurídi- ne%20Nawe%20e%20o%20Com-
co tem sido incapaz de fazer valer plexo%20Hidrel%E9trico%20Ju-
as proteções legais, devido à exis- ruena.pdf> (acesso: 25 jul. 2014).
tência de leis autorizando a SS para Aranha, Ana; Mota, Jessica. 2014.
permitir a continuação de qualquer “A batalha pela fronteira Mun-
obra com importância econômica. duruku”. In: A Pública – Agência de
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-alagar-parque-nacional-na-
-amaz%c3%b4nia/> (acesso: 25
jul. 2014).
A
bacia do Tapajós é, no que diz A ocupação humana na bacia
respeito a paisagens, ecossis- tem duas vertentes: os índios, de et-
temas e ocupação, uma re- nias diversas, com predominância
gião singular. Sobre embasamento dos Munduruku, ao longo de toda
cristalino, que confere transparên- a calha do rio; e os portugueses,
cia às águas, a bacia é uma das mais os quais, desde meados do século
conservadas da região amazônica, XVII, estabeleceram ali suas posses,
ainda que sofra pressões antrópicas tendo adentrado pela foz do Tapa-
de sul a norte, em boa parte orien- jós, no rio Amazonas. No entanto, a
tadas para exploração de madeira e densidade da floresta e a dinâmica
extração mineral. A ocorrência de do rio – que dificulta a navegação
ambientes transicionais, bem como para embarcações maiores – foram
o próprio curso e dinâmica do rio, fatores que contribuíram para uma
estabelecem uma extensa varieda- baixa ocupação na bacia, situação
de de hábitats, os quais suscitam, que perdurou até a descoberta de
promovem e amparam uma grande ouro em maiores concentrações e
diversidade biológica. A escolha de de outros minerais de interesse, já
áreas extensas na bacia para fins de no início do século XX. A explora-
conservação da biodiversidade, seja ção mineral marcou a região do bai-
em unidades de proteção integral, xo Tapajós e, sobreposta a um pas-
seja em áreas para modelos explo- sado de exploração da borracha e às
ratórios sustentáveis, é, portanto, pressões mais recentes da explora-
fartamente justificada. ção de madeira e agropecuária, dão
99
conformação à atual organização infraestrutura. Em outras palavras,
sociopolítica regional. um determinado empreendimento
Nesse contexto, caracterizado – como uma UHE – não é ambien-
ainda por uma baixa capacidade talmente sustentável se a justifica-
regulatória do Estado, projeta-se a tiva para sua implantação não se
implantação de um complexo hi- ampara em uma base crível de sus-
drelétrico de grandes proporções, tentabilidade. No caso brasileiro,
composto de um arranjo de cin- embora em termos médios nosso
co usinas hidrelétricas (UHEs) de consumo de eletricidade per capita
médio e grande porte, o comple- seja baixo, quando comparado a ou-
xo hidrelétrico do Tapajós (CHT). tros países mais desenvolvidos, ain-
Anunciado como uma solução am- da há grande ineficiência no uso da
bientalmente sustentável, anco- energia. Nesse sentido, cabe ques-
rada em um conceito abstrato de tionar: quanto poderíamos avançar
“usinas-plataforma”, o projeto pode na eficiência energética? Quanto o
suscitar – e consolidar – um deter- aumento da eficiência refletiria no
minado modelo de exploração da provimento da demanda, de forma a
região, que incorpora outras frentes permitir uma amortização do inves-
de infraestrutura (estradas, hidro- timento em novas fontes? E mais:
via, portos, mineração) e está longe assumindo alcançarmos um pata-
da sustentabilidade. mar razoável de eficiência energé-
Este texto discute a atual neces- tica e havendo ainda demanda por
sidade de projetos de geração hidre- novas fontes, quais outras fontes
létrica na Amazônia, em especial poderiam ser consideradas? Quais
aqueles associados à bacia do Tapa- estariam envolvidas em um contex-
jós, e apresenta elementos de análi- to de maior sustentabilidade?
se do CHT e seu contexto, com vis- De maneira geral, é lícito estabe-
tas a subsidiar uma ampliação das lecer que o crescimento econômi-
discussões em torno do projeto e da co de um país provoque também o
política energética nacional. crescimento da demanda por ener-
gia, como ocorre no Brasil. Diante
Demanda de energia: a âncora da dessa assertiva, a projeção da de-
sustentabilidade manda energética anual é baseada
Um modelo de exploração que se in- no crescimento do Produto Interno
titula “sustentável” não pode desco- Bruto (PIB) nacional. Essa relação
nhecer a origem das demandas por tem sido utilizada para direcionar
novas fontes de energia e frentes de as políticas públicas de instalação
Área afetada
Classificação da Área afetada
Área (quilômetros
área (% da UC ou TI)
quadrados)
Total 6.807,17
A
s decisões políticas sobre questões de transparência e parti-
quais barragens serão cons- cipação da sociedade civil, compa-
truídas no Brasil – tanto usi- tibilidade com a legislação sobre o
nas hidrelétricas (UHEs) de maior meio ambiente e direitos humanos,
porte como pequenas centrais hi- e articulação com outras políticas
drelétricas (PCHs) – têm se basea- territoriais.
do, em grande medida, em estudos
de inventário de bacia hidrográfica Estudos de inventário: arcabouço
realizados pelo setor elétrico do legal e normativo
governo federal em conjunto com Os fundamentos legais para a rea-
empresas privadas. Assim, com- lização de estudos de inventário de
preender como esses estudos são bacia hidrográfica têm como base,
realizados e aprovados é fundamen- atualmente, a Lei nº9.074, de 7 de
tal para entender como tem ocorri- julho de 1995, que estabelece “nor-
do o planejamento de barragens na mas para outorga e prorrogações
bacia do Tapajós. das concessões e permissões de
Este artigo analisa algumas ca- serviços públicos e dá outras provi-
racterísticas-chave da realização de dências”. O parágrafo 2º do artigo 5º
estudos de inventário e avaliação dessa lei determina que “nenhum
ambiental integrada (AAI) na bacia aproveitamento hidrelétrico pode-
hidrográfica do Tapajós, com en- rá ser licitado sem a definição do
foque na identificação de critérios ‘aproveitamento ótimo’ pelo poder
adotados para a tomada de decisões, concedente”, ao passo que o pará-
111
grafo 3º considera “aproveitamen- Ao longo das últimas décadas, a
1. Segundo a Eletrobras, to ótimo” como “todo potencial maioria dos estudos de inventário
o manual de 1997 foi
o resultado de uma
definido em sua concepção global de bacia hidrográfica foi elaborada
“criteriosa revisão pelo melhor eixo do barramento, pela Eletrobras e suas filiadas, em
apoiada no Manual de arranjo físico geral, níveis d’água conjunto com grandes empreiteiras,
Inventário Hidrelétrico
de Bacias Hidrográficas, operativos, reservatório e potência, a exemplo da Camargo Corrêa S.A.,
de 1984[,] e no Plano integrante da alternativa escolhida e empresas de consultoria, como
Diretor de Meio
Ambiente do Setor
para divisão de quedas de uma ba- a CNEC2. A Resolução nº393/1998,
Elétrico Brasileiro, cia hidrográfica”. em seu artigo 3º, determinou que
de 1991”. Ver <http://
Em novembro de 1997, as Cen- “os estudos de inventário hidrelé-
www.eletrobras.
com/elb/data/Pages/ trais Elétricas do Brasil S.A. (Ele- trico serão realizados diretamente
LUMIS4AB3DA57PTBRIE. trobras) publicaram o Manual de pela Aneel, ou por terceiros, após
htm> (acesso: 5 jun.
2015).
inventário hidroelétrico de bacias hi- o necessário registro, segundo os
drográficas, com orientações téc- procedimentos estabelecidos nes-
2. Criada em 1959 nicas para a realização de estudos ta Resolução”3. A partir da criação
por professores da
voltados para o “aproveitamento da Empresa de Pesquisa Energética
Escola Politécnica
da Universidade de ótimo” dos rios, ou seja, para ma- (EPE), em 2004, vinculada ao Mi-
São Paulo (USP), a ximizar o potencial de geração de nistério de Minas e Energia (MME),
empresa de consultoria
denominada energia elétrica1. No ano seguinte, essa também passou a participar da
Consórcio Nacional a recém-criada Agência Nacional elaboração de estudos de inventário
de Engenheiros
Consultores (CNEC) foi
de Energia Elétrica (Aneel) aprovou hidrelétrico4.
incorporada, dez anos a Resolução nº393, de 4 de dezem- Apesar dos avanços significati-
depois, pelo grupo bro de 1998, que estabeleceu “pro- vos na legislação ambiental ocor-
Camargo Corrêa. Em
2010, foi adquirida cedimentos gerais para registro e ridos durante as décadas de 1980 e
pelo grupo australiano aprovação dos estudos de inventá- 1990 – como a Lei nº6.938/1981 (Po-
WorleyParsons;
atualmente, chama-se
rio hidrelétrico de bacias hidrográ- lítica Nacional de Meio Ambiente),
CNEC WorleyParsons ficas”. No artigo 1º dessa resolução, a Resolução nº01/1986 do Conselho
Engenharia S.A.
a Aneel conceituou como inventá- Nacional do Meio Ambiente (Co-
3. A Resolução rio hidrelétrico “a etapa de estudos nama), os artigos 23, 24 e 225 da
nº393/1998 determinou
de engenharia em que se define o Constituição Federal de 1988, e a
ainda que, “caso os
aproveitamentos potencial hidrelétrico de uma ba- Lei nº9.433/1997 (Política Nacional
identificados nesses cia hidrográfica, mediante o estudo de Recursos Hídricos) –, isso parece
estudos vierem a
integrar programa de de divisão de quedas e a definição ter repercutido pouco nas políticas
licitações de concessões, prévia do aproveitamento ótimo de do setor elétrico. Uma exceção foi a
será assegurado ao
que tratam os parágrafos 2º e 3º do Resolução nº393/1998 da Aneel, que
autor dos estudos o
ressarcimento dos art. 5º da Lei nº9.074, de 7 de julho determinou, em seu artigo 13, que
respectivos de 1995”.
112 Millikan
os titulares de registro de estudos governo federal e a proposta não custos incorridos e
reconhecidos pela
de inventário deverão formalizar avançou. No caso da política energé-
Aneel, pelo vencedor da
consulta aos órgãos ambientais para tica, o MME optou por desenvolver licitação, nas condições
definição dos estudos relativos aos unilateralmente um instrumento estabelecidas no edital”
(artigo 3º § 1º). Além
aspectos ambientais e aos órgãos de planejamento vinculado aos es- disso, a resolução
responsáveis pela gestão dos recur- tudos de inventário hidrelétrico de definiu condições de
preferência para os
sos hídricos, nos níveis Estadual e bacia hidrográfica. Com assessoria
responsáveis pela
Federal, com vistas à melhor defini- técnica do Banco Mundial, por meio elaboração dos estudos
ção do aproveitamento ótimo e da do Projeto Energy Sector Technical As- de inventário em
eventuais licitações de
garantia do uso múltiplo dos recur- sistance Loan (Estal), o MME elaborou concessões.
sos hídricos. o instrumento que viria a ser a AAI5.
4. A Lei nº10.847, de 15
Em dezembro de 2007, o MME de março de 2004, que
Em 2004, o MME iniciou um pro- lançou uma nova edição do Manual autorizou a criação da
EPE, definiu entre suas
cesso de revisão do Manual de inven- de inventário hidroelétrico de bacias hi-
atribuições “prestar
tário hidroelétrico de bacias hidrográfi- drográficas, destacando como ino- serviços na área de
cas. Nessa época, que corresponde vações a AAI e a incorporação de estudos e pesquisas
destinadas a subsidiar
ao início do primeiro mandato do “considerações sobre o uso múltiplo o planejamento do
governo Lula, havia um debate in- da água, fazendo referência à Polí- setor energético, tais
como energia elétrica,
tenso sobre a necessidade de se in- tica Nacional de Recursos Hídricos
petróleo e gás natural
corporar dimensões de sustentabi- (PNRH)”. No novo formato do ma- e seus derivados,
lidade socioambiental nas políticas nual, a AAI corresponde à última de carvão mineral, fontes
energéticas renováveis
“desenvolvimentistas” do governo, quatro etapas dos estudos de inven- e eficiência energética,
a exemplo de grandes obras de in- tário hidrelétrico de bacias hidrográ- dentre outras” (artigo
4º). Dispôs ainda que
fraestrutura e do planejamento do ficas, quais sejam: i) planejamento “os estudos e pesquisas
setor elétrico, inclusive sob a ótica do estudo; ii) estudos preliminares; desenvolvidos pela
de compatibilização com a legis- iii) estudos finais; e iv) avaliação EPE subsidiarão
a formulação e a
lação ambiental. Nesse contexto, ambiental integrada da alternativa implementação de
discutia-se o desenvolvimento do selecionada. No documento, afirma- ações do MME, no
âmbito da política
instrumento da avaliação ambien- se que a AAI deve permitir “avaliar energética nacional”
tal estratégica (AAE), a partir de ex- os efeitos cumulativos e sinérgicos (artigo 2º).
periências internacionais adaptadas (de empreendimentos hidrelétricos 5. Para mais
à realidade brasileira, como ferra- propostos) sobre os recursos natu- informações sobre
o Estal, ver <http://
menta de planejamento estratégi- rais e sobre as populações huma-
www.worldbank.org/
co, a ser aplicada nas políticas seto- nas”; “identificar áreas de fragili- projects/P076977/
riais e no planejamento territorial. dade ambiental”; “indicar conflitos energy-sector-
technical-assistance-
Entretanto, houve resistência frente aos diferentes usos do solo project?lang=en>
de pastas “desenvolvimentistas” do e dos recursos hídricos da bacia” e (acesso: 11 jun. 2015).
114 Millikan
das, e com a finalidade de coletar ram realizados os estudos de inven-
subsídios e informações para o de- tário na bacia hidrográfica do Tapa-
senvolvimento dos estudos, deve- jós? Para responder a essa pergunta,
rão ser realizados seminários para cabe salientar, inicialmente, que os
a apresentação, discussão e aporte estudos na bacia do Tapajós foram
de contribuições aos resultados par- realizados de forma fragmentada,
ciais e finais da AAI. Os locais dos tanto no tempo como no espaço. De
eventos serão distribuídos espacial- fato, não se realizou nessa bacia um
mente na bacia, intercalando loca- estudo único de inventário com sua
lidades nas unidades da federação respectiva AAI, mas sim estudos se-
abrangidas pela bacia (Ibid.: 599). parados em três sub-bacias: Tapajós-
Jamanxim, Teles Pires e Juruena6. 6. De acordo com
A nova edição do manual foi Além disso, os estudos de inven- a regulamentação
adotada pela Aneel na
aprovada formalmente por meio tário das sub-bacias foram levados subdivisão de bacias
da Portaria MME nº356, de 28 de a cabo em épocas diferentes, por do território nacional, a
bacia do rio Amazonas
setembro de 2009 (posteriormen- instituições e empresas diferentes. é dividida em dez sub-
te substituída pela Portaria nº372, De forma semelhante, as AAIs das bacias, numeradas
de 1 de outubro de 2009), ou seja, sub-bacias do Teles Pires, Juruena e de 10 a 19. A bacia do
rio Tapajós, formada
quase dois anos após a sua publica- Tapajós-Jamanxim foram realizadas pelos rios Teles Pires e
ção. Cabe observar que a portaria em distintos momentos, de acordo Juruena, é identificada
como sub-bacia 17.
(em ambas as edições) afirma que com o período de produção de seus
“a escolha da melhor alternativa de respectivos estudos de inventário. A
divisão de quedas para o aproveita- seguir, são apresentadas considera-
mento do Potencial Hidráulico é de- ções sobre características específi-
terminada a partir de critérios técni- cas dos estudos de inventários e res-
cos, econômicos e socioambientais, pectivas AAIs nessas três sub-bacias
levando-se em conta um cenário de do Tapajós.
utilização múltipla da água”. Não
foram definidas na portaria normas Estudo de inventário da sub-bacia
sobre o processo de discussão públi- dos rios Tapajós e Jamanxim
ca dos inventários/AAIs. Os primeiros estudos para definir o
potencial hidrelétrico do eixo prin-
Breve perfil dos estudos de cipal do rio Tapajós foram realiza-
inventário realizados na bacia do dos pelas Centrais Elétricas do Nor-
Tapajós te do Brasil S.A. (Eletronorte) e pela
Considerando o arcabouço legal e empreiteira Camargo Corrêa entre
normativo descrito acima, como fo- 1986 e 1991, coincidindo com a con-
116 Millikan
Imagem 1. Tuíra,
indígena Kayapó, e José
Lopes Muniz, então
diretor das Centrais
Elétricas do Norte do
Brasil S.A. (Eletronorte),
no I Encontro dos Povos
Indígenas do Xingu,
em Altamira (Pará). Por
Paulo Jares, 1989.
118 Millikan
Tabela 1. Áreas previstas para inundação em unidades de conservação
(UCs) e terras indígenas (TIs) por sete usinas hidrelétricas (UHEs)
identificadas como de “aproveitamento ótimo” no estudo de inventário
do Tapajós-Jamanxim.
Fonte: Camargo Corrêa; Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A.; CNEC (2008).
120 Millikan
embora ela fosse considerada parte rêa, Cemig Geração e Transmissão
integrante dos estudos de inventá- S.A., Copel Geração e Transmissão,
rio desde dezembro de 2007, segun- Electricité de France (EDF), Endesa
do o Manual de inventário hidroelétrico Brasil S.A., GDF Suez Energy Latin
de bacias hidrográficas da Eletrobras. America (atualmente Engie) e Neoe-
Em julho de 2008 – um mês após nergia S.A. Houve um único even-
a entrega dos estudos de inventário to público para discutir o sumário
na Aneel –, Eletronorte e Camar- executivo da AAI, convocado apres-
go Corrêa assinaram um termo de sadamente em Itaituba (Pará), em
compromisso para a elaboração de maio de 2014. O estudo completo
AAI da região do Tapajós-Jamanxim. da AAI foi divulgado pela internet
Entretanto, a elaboração da AAI só somente em setembro de 2014, sem
avançou efetivamente a partir de debate público. Não há informações
decisão do juiz federal José Airton sobre um eventual processo de re-
de Aguiar Portela, em novembro de visão e aprovação formal da AAI do
2012, em resposta a uma ação civil Tapajós-Jamanxim.
pública (ACP) movida pelo Minis- Cabe ressaltar que a AAI do Ta-
tério Público Federal (MPF), que in- pajós-Jamanxim não recomendou
cluiu Aneel, Eletrobras, Eletronorte alterações nos empreendimentos
e Ibama como réus. A decisão deter- priorizados pelo estudo de inven-
minou que a licença prévia (LP) para tário, mesmo em locais como São
a UHE São Luiz do Tapajós não fosse Luiz do Tapajós e Chacorão, com
concedida pelo Ibama antes da rea- conflitos relacionados à inundação
lização de avaliação dos impactos de TIs, o que é inconstitucional. En-
cumulativos das UHEs previstas no quanto isso, a elaboração dos estu-
CHT na região do Tapajós-Jaman- dos de impacto ambiental (EIAs) das
xim, assim como oitivas junto aos UHEs São Luiz do Tapajós e Jatobá,
povos indígenas afetados. assim como a sua tramitação no Iba-
Em abril de 2014, foi divulgado ma, têm avançado rapidamente, de
um sumário executivo da AAI da ba- forma absolutamente desarticulada
cia do Tapajós (sub-bacia do Tapajós- em relação ao processo de elabora-
Jamanxim). O estudo foi elaborado ção da AAI.
pela empresa de consultoria Ecolo- Em 6 dezembro de 2012 – ou
gy Brasil, por meio de contrato com seja, menos de um mês após a
o Grupo de Estudos Tapajós, coorde- decisão judicial sobre a obrigato-
nado pela Eletrobras/Eletronorte e riedade da avaliação de impactos
tendo como parceiros Camargo Cor- cumulativos de AHEs previstos na
122 Millikan
Estudos de inventário
da sub-bacia hidrográfica do Tapajós-Jamanxim
Mapa 1. Hidrelétricas selecionadas nos estudos de inventário
123
Sistema de referência geográfica: Sirgas 2000. Fontes: limites municipais: IBGE,
2010; PCHs e UHEs: Sigel, 2015; áreas protegidas: MMA, 2015; terras indígenas: Funai,
2015; hidrografia: ANA, 2015. Elaboração: Ricardo Abad, 2016.
“Estudos de Inventário Hidrelétrico cho a montante do quilômetro 65.
Simplificado do rio Apiacás” no tre- O maior barramento aprovado, Sal-
cho a montante do quilômetro 65, to Apiacás, posteriormente teve sua
contemplando cinco PCHs (Cabeça capacidade aumentada de 28,92 me-
de Boi, Salto Apiacás, Da Fazenda, gawatts para 45 megawatts (deixan-
Salto Paraíso e Ingarana), com po- do, assim, de ser considerado uma
tência total de 83,9 megawatts. PCH). O processo de licenciamento
A AAI da sub-bacia do rio Teles ambiental desse empreendimento
Pires foi coordenada pela EPE, que está sendo realizado pelo governo
contratou as empresas Leme En- estadual de Mato Grosso e ele cons-
genharia e Concremat Engenharia ta no Plano decenal de expansão de ener-
para realizá-la. Ela foi levada a cabo gia (PDE) 2024 como UHE a entrar
após a aprovação dos estudos de em operação no ano de 2016 (Brasil,
inventário, sendo que o relatório Ministério de Minas e Energia, Em-
final foi entregue à EPE somente presa de Pesquisa Energética, 2015).
em dezembro de 2009, já na época Nos processos de licenciamen-
de execução dos EVTEs dos AHEs Si- to ambiental de empreendimentos
nop, Colíder e Teles Pires. A AAI não desse complexo, têm sido propostas
apresentou sugestões de alteração diversas ACPs, pelo MPF, motivadas
na escolha dos cinco barramentos pela falta de avaliação de impactos
identificados como “aproveitamen- cumulativos na bacia e pela ausên-
to ótimo” no estudo de inventário. cia de CLPI junto aos povos indíge-
Tampouco foi realizado um proces- nas locais. Na quase totalidade dos
so de consulta livre, prévia e infor- casos, as ações do MPF receberam
mada (CLPI) junto aos povos indíge- decisões liminares favoráveis em
9. Ver tabela do MPF no nas Kayabi, Apiaká e Munduruku primeira instância, porém foram
Pará sobre processos
que vivem logo rio abaixo, na TI inviabilizadas pelo uso autoritário
judiciais relativos
às UHEs da bacia do Kayabi, cujo limite se situa a poucos do instrumento de suspensão de se-
Tapajós (rios Juruena, metros da última barragem propos- gurança (SS), pelo presidente do Tri-
Apiacás, Jamanxim,
Teles Pires e Tapajós). ta no complexo hidrelétrico do Teles bunal Regional Federal da Primeira
Disponível em: <http:// Pires (CoHTP), a UHE São Manoel. Região (TRF-1)9.
www.prpa.mpf.mp.br/
A AAI da sub-bacia do Teles Pi-
news/2014/arquivos/
Tabela%20de%20 res não considerou os impactos Estudos de inventário na sub-bacia
Acompanhamento%20 cumulativos dos cinco empreendi- do Rio Juruena
Out%202014.pdf/at_
download/file> (acesso: mentos aprovados pela Aneel nos Nos anos de 2001 e 2002, foram rea-
5 jun. 2015). estudos de inventário hidrelétrico lizados dois “estudos de inventário
simplificado do rio Apiacás no tre- simplificado” no alto rio Juruena,
124 Millikan
bacia hidrográfica do Teles Pires
Estudos de inventário
Mapa 2. Hidrelétricas selecionadas nos estudos de inventário da sub-
125
Sistema de referência geográfica: Sirgas 2000. Fontes: limites municipais: IBGE,
2010; PCHs e UHEs: Sigel, 2015; áreas protegidas: MMA, 2015; terras indígenas: Funai,
2015; hidrografia: ANA, 2015. Elaboração: Ricardo Abad, 2016.
por iniciativa do Grupo André Ma- Rondon (13 megawatts), Cachoeirão
ggi, em uma região de expansão da (64 megawatts), Parecis (15,4 me-
soja mecanizada em larga escala, gawatts), Travessão (6,5 megawatts),
dominada pelo mesmo grupo. O Ilha Comprida (18,6 megawatts),
primeiro estudo foi executado em Segredo (21 megawatts), Sapezal (16
2001 pela empresa Maggi Energia megawatts), Jesuíta (22,2 megawat-
S.A., vinculada à Agropecuária Ma- ts), Cidezal (17 megawatts), Juruena
ggi Ltda., em um trecho de 102,91 (46 megawatts) e Cristalina (sete
10. A área total dos quilômetros do rio Juruena, entre o megawatts)10.
reservatórios dos 12
empreendimentos foi
limite da TI Parecis (montante) e a Os dois estudos realizados pelo
estimada em 3.065,6 ponte da rodovia MT-235 (jusante). Grupo Maggi seguiram as diretrizes
hectares.
Esse estudo resultou na identifica- para estudos de inventários hidre-
ção de um AHE com potencial de létricos simplificados da Aneel vi-
7,6 megawatts (denominado Santa gentes à época. A justificativa dada
Lúcia II), acoplado à PCH Santa Lú- para a realização de um inventário
cia I, já instalada pelo Grupo Maggi, simplificado, em lugar de um in-
com potência de cinco megawatts. ventário pleno, foram “as caracte-
O estudo foi aprovado pela Aneel, rísticas geomorfológicas locais que
por meio do Despacho nº513, de 31 determinaram aos aproveitamentos
de julho de 2001. características semelhantes a de
O segundo estudo foi realizado PCH tais como: barragem de peque-
pelo Grupo André Maggi (Agrope- na altura, reservatório de reduzida
cuária Maggi Ltda.) e Linear Parti- dimensão (inferior a 3,0 km2) e a fio
cipações e Incorporações, em um d’água” (Grupo André Maggi et al.,
trecho de 130 quilômetros entre a 2002: 8).
ponte da rodovia MT-235 (montan- Em uma análise sobre a ade-
te) e a foz do rio Juína (jusante), quação dos estudos de inventários
abrangendo uma área de drenagem hidrelétricos simplificados à reali-
de 60.998,45 quilômetros quadra- dade do alto rio Juruena, chama a
dos. Esse estudo identificou 12 lo- atenção, inicialmente, o fato de a
cais de barramento, com potencial matriz de avaliação dos impactos
total de 276,7 megawatts. Por meio ambientais dos estudos sequer ter
do Despacho nº621, de 3 de outubro mencionado as consequências e
de 2002, a Aneel aprovou o estudo, riscos para os povos indígenas da
dando sinal verde para a implanta- região em que seria implantada
ção dos 12 empreendimentos identi- uma cascata de barragens, em que
ficados: Telegráfica (30 megawatts), o reservatório de um AHE pratica-
126 Millikan
mente se encostaria ao do próximo, e PCHs previstas (algumas em fase
rio acima (Ibid.: 244-245). Trata-se de de implantação) entre as cabecei-
uma omissão grave, considerando- ras do rio e sua confluência com o
se que no alto rio Juruena situam-se rio Juína, em uma extensão total
onze TIs (Enawene Nawe, Erikbakt- de 287,05 quilômetros. Em maio de
sa, Japuíra, Juininha, Menku, Nam- 2006, o MPF cobrou a realização de
bikwara, Paresi, Pirineus de Souza, um estudo integrado de impactos
Tirecatinga, Uirapuru e Utiariti) cumulativos das doze barragens do
ocupadas por cinco etnias (Enawe- CHJ como condição para a continui-
ne Nawe, Myky, Nambikwara, Pa- dade do licenciamento de empreen-
resi e Rikbaktsa), distribuídas em dimentos individuais.
mais de 80 aldeias, que, por sua vez, Com o aval da Sema/MT, a em-
dependem diretamente dos recur- presa JGP Consultoria entregou, em
sos e serviços ambientais oferecidos janeiro de 2007, sob encomenda dos
naturalmente pelo rio para sua so- empreendedores, um documento
brevivência física e cultural (Institu- intitulado Avaliação ambiental inte-
to Socioambiental, 2008). grada - AAI. A Sema/MT considerou
Apesar das evidências de graves os estudos insuficientes e solicitou
riscos associados à implantação de complementações. Porém, renovou
uma cascata de barragens no alto as LIs antes de avaliar as comple-
rio Juruena, especialmente para os mentações requisitadas e sem ouvir
povos indígenas e seus territórios, a área técnica da Funai sobre o com-
a Secretaria de Estado de Meio Am- ponente antropológico dos estudos
biente de Mato Grosso (Sema/MT) complementares, referentes à iden-
emitiu, entre agosto e dezembro de tificação, prevenção e mitigação de
2002, LP e licença de instalação (LI) impactos resultantes da construção
para oito empreendimentos do cha- das obras do CHJ sobre grupos indí-
mado complexo hidrelétrico do Ju- genas. Em março de 2007, a Sema/
ruena (CHJ), sem exigir a avaliação MT aprovou a chamada AAI do alto
dos impactos cumulativos e sequer Juruena, que, entre seis alternati-
a realização de EIA (Idem). vas consideradas, recomendou a
Em 2006, o MPF instaurou pro- construção de dez AHEs (8 PCHs e
cedimento administrativo (proces- 2 UHEs) com capacidade instalada
so nº1.20.000.000336/2006-28) para total de 263 megawatts (JGP Gestão
verificar as circunstâncias do licen- Ambiental, 2007).
ciamento ambiental do CHJ, consi- Em um contexto caracterizado
derando toda a sequência de UHEs por sucessivos atropelos no proces-
128 Millikan
de CLPI junto aos povos indígenas, o risco ambiental advindo da imple-
considerando as fortes influências mentação de todos os empreendi-
do rio sobre TIs já demarcadas, o mentos supracitados no Rio Juruena
ministro opinou que “as pequenas não foi devidamente mensurado na
centrais hidrelétricas não serão ins- Avaliação Ambiental Integrada aqui
taladas em áreas indígenas, mas em avaliada. Isto tanto em relação aos
suas adjacências”. Evidentemente, a impactos na biota quanto, e tam-
decisão favoreceu principalmente o bém consequentemente, no modo
grupo empresarial da família do go- de vida tradicional das comunidades
vernador à época, Blairo Maggi. indígenas da bacia do Rio Juruena,
Em seguida, em agosto de 2008, assim como nas condições necessá-
o Instituto Socioambiental (ISA) rias para a sua sobrevivência, repro-
ajuizou junto ao STF uma petição dução física e cultural, garantidas
na condição de amicus curiae (“amigo na Constituição Federal no seu Art.
da corte”, instituto que permite que 231/88. Já foi relatado informalmen-
terceiros passem a integrar uma te à FUNAI por indígenas da etnia
demanda judicial) para que fosse Enawenê-Nawê, inclusive, que após
juntada ao processo que tenta im- o início da instalação de cinco PCHs
pedir a continuidade das obras do no Rio Juruena, a qualidade de água
CHJ. Um dos argumentos do ISA foi degradou, assim como a quantida-
justamente a necessidade de CLPI de de peixes diminuiu. Segue que
aos povos indígenas afetados, em é minha forte recomendação que
conformidade com o artigo 231 da seja suspensa a outorga do direito
Constituição Federal e com a Con- de uso dos recursos hídricos para
venção 169 da OIT. fins de aproveitamento do potencial
Na época, um parecer técnico da hidrelétrico dos empreendimentos
Funai sobre a AAI do Alto Juruena supracitados, e que sejam efetuados
constatou que o estudo apresentava estudos de impacto ambiental deta-
erros graves de metodologia e con- lhados para determinar a viabilida-
clusões contraditórias (Brasil, Minis- de ambiental dos mesmos.
tério da Justiça, Fundação Nacional
do Índio, Diretoria de Assistência, Nas considerações finais, o pa-
Coordenação-Geral de Patrimônio recer técnico da Funai remeteu ao
Indígena e Meio Ambiente, Coorde- princípio nº15 da Declaração do Rio
nação de Meio Ambiente, 2008). Em de Janeiro, firmado durante a Con-
suas conclusões, o parecer afirma ferência das Nações Unidas sobre o
que: Meio Ambiente e Desenvolvimento,
130 Millikan
ticos da Aneel aprovou os referidos uma potência inventariada de cerca
estudos de inventário, mesmo sem de 8.830 megawatts, distribuídos
a conclusão da AAI e sem a realiza- entre 22 AHEs, incluindo as UHEs
ção de processo de CLPI junto aos previamente selecionadas e as PCHs
povos indígenas atingidos pelos incorporadas ao resultado final.
empreendimentos. Com a aprovação desses estudos,
Em setembro de 2010, a CNEC os AHEs contemplados passaram a
concluiu os estudos da AAI, sem integrar a carteira daqueles disponí-
apresentar propostas de modifica- veis para a elaboração dos EVTEs e
ção na escolha dos barramentos projetos básicos.
identificados no inventário. Em
dezembro de 2010, a AAI foi discu- Análise preliminar dos estudos de
tida em duas reuniões públicas no inventário realizados na bacia do
estado de Mato Grosso, realizadas Tapajós
nas cidades de Cuiabá e Juína. No Segundo o MME, os estudos de in-
evento realizado em Juína, houve ventário hidrelétrico, incluindo
protestos de representantes de po- AAIs como parte integrante de sua
vos indígenas em razão dos confli- metodologia de elaboração, permi-
tos envolvendo a exploração de re- tem a tomada de decisões sobre a es-
cursos naturais em seus territórios. colha de empreendimentos a serem
Uma versão final da AAI foi apre- construídos em uma bacia hidro-
sentada pela CNEC em 7 de janeiro gráfica, utilizando como critérios
de 2011, sem qualquer mudança na básicos: i) maximização do aprovei-
escolha de empreendimentos ou tamento do potencial hidrelétrico;
outra alteração substancial de con- ii) menor custo econômico para a
teúdo, como resultado dos eventos geração de energia; e iii) minimi-
realizados no mês anterior, e ainda zação de impactos socioambientais
sem um processo de CLPI junto aos negativos. Além disso, o MME tem
povos indígenas afetados. A Supe- ressaltado a importância da “parti-
rintendência de Gestão e Estudos cipação pública” na elaboração dos
Hidroenergéticos (SGH) da Aneel estudos de inventário, especialmen-
aprovou, por meio do Despacho te na fase de AAIs.
nº3.208, de 10 de agosto de 2011, a Certamente, os estudos realiza-
“revisão” dos estudos de inventário dos no âmbito de AAIs das sub-ba-
da bacia do rio Juruena, tendo em cias do Tapajós trazem informações
vista a conclusão da AAI. Os resul- úteis para que se possa conhecer
tados finais dos estudos totalizam melhor as características ambien-
132
da sub-bacia hidrográfica do Juruena
Millikan
Mapa 3. Hidrelétricas selecionadas nos estudos de inventário
tais da bacia hidrográfica do Tapa- hidrelétrico priorizado nos estudos
jós, sobretudo em termos de com- de inventário tenha sido descartado
pilação de fontes bibliográficas e marca, de forma contundente, uma
sistematização de dados secundá- diferença fundamental entre AAI e
rios. Entretanto, esta análise pre- AAE.
liminar dos estudos de inventário Na bacia do Tapajós, a compreen-
hidrelétrico realizados na bacia hi- são sobre os potenciais impactos
drográfica do Tapajós – incluindo as cumulativos e sinérgicos de em-
sub-bacias Tapajós-Jamanxim, Teles preendimentos hidrelétricos, um
Pires e Juruena – permite concluir dos objetivos de uma AAI, foi pre-
que a tomada de decisões técnicas judicada pela existência de vários
e políticas sobre o “aproveitamen- estudos de AAI, elaborados de for-
to ótimo” de bacias hidrográficas ma segmentada por sub-bacia (Teles
a partir de estudos de inventário Pires, Juruena, Tapajós-Jamanxim)
tem se baseado quase exclusiva- e até em trechos diferentes de um
mente no critério de maximização mesmo rio. Além disso, os estudos
do aproveitamento do potencial de AAI foram realizados em mo-
hidráulico e que as consequências mentos diferentes, por instituições
socioambientais negativas de em- diferentes, utilizando metodologias
preendimentos, inclusive violações diferentes, sem os devidos esforços
de direitos humanos e descumpri- de articulação entre si. Ficou preju-
mento da legislação ambiental, têm dicada, portanto, a abordagem de
sido sistematicamente menospreza- questões essenciais relacionadas à
das e até ignoradas. conectividade entre as sub-bacias,
Uma evidência dessa problemá- como os impactos cumulativos de
tica é que, tipicamente, a definição cascatas de barragens sobre peixes
de um conjunto de barramentos migratórios de altíssima importân-
como “aproveitamento ótimo” de cia para a biodiversidade, meios de
um rio, no âmbito de estudos de vida e economias locais. Ademais,
inventário, bem como a sua aprova- não houve análise de impactos
13. Isso tem ocorrido
ção pela Aneel, têm ocorrido antes sinérgicos e cumulativos entre as mesmo em casos
da conclusão dos estudos de AAI, cascatas de barragens e outros gran- recentes, em que os
inventários foram
que, por sua vez, em nada mudam des empreendimentos previstos e
finalizados após a
tais decisões, em função de crité- em curso na região (por exemplo, publicação da nova
rios como impactos cumulativos e hidrovias, rodovias, mineração). versão do Manual de
inventário hidrelétrico
sinérgicos13. O fato de que, em ne- Assim, as AAIs elaboradas para sub de bacias hidrográficas
nhuma das AAIs, qualquer projeto -bacias do Tapajós não têm atendi- (dezembro de 2007).
134 Millikan
estudos de inventário aprovados A intenção manifestada pelo
pela Aneel – e até respaldados MME no Manual de inventário hidroe-
pelo CNPE, no caso da sub-bacia létrico de bacias hidrográficas (versão
Tapajós-Jamanxim; de dezembro de 2007) de que a AAI
ii) De forma semelhante, a prioriza- pudesse “prover informações aos
ção de empreendimentos que im- órgãos ambientais para o futuro
plicam a desafetação de UCs, sem licenciamento dos projetos” tem
considerar as consequências para sido prejudicada, entre outras ra-
os atributos ambientais e meios de zões, pelo fato de não se constituir
vida de populações locais que justi- formalmente como instrumento de
ficaram a sua criação; e licenciamento ambiental no âmbito
iii) O descumprimento de legislação do Sistema Nacional do Meio Am-
sobre a obrigatoriedade de CLPI biente (Sisnama). Vale salientar que
junto a povos indígenas e outras as AAIs têm sido elaboradas, em
comunidades tradicionais, antes muitos casos, de forma concomitan-
da tomada de decisões políticas te ou mesmo posterior à elaboração
pela Aneel e CNPE. de EIAs para empreendimentos in-
dividuais, comprometendo a sua
No tocante à intenção do MME de utilidade.
incorporar nas AAIs “considerações Nas AAIs, observa-se uma pre-
sobre o uso múltiplo da água, fazen- cariedade de nexos lógicos entre
do referência à PNRH”, destaca-se, as partes iniciais do diagnóstico de
inicialmente, o déficit de implemen- fragilidades e conflitos socioam-
tação da Lei nº9.433/1997 na bacia do bientais, e os capítulos finais, sobre
Tapajós (assim como em outras ba- diretrizes (para o setor elétrico) e
cias da Amazônia), inclusive na ela- recomendações (para outros seto-
boração de planos de gestão de re- res). Em grande medida, isso reflete
cursos hídricos (PGRH). A concessão, a falta de utilização de AAIs como
pela ANA, de declarações de disponi- instrumento de triagem para ex-
bilidade de recursos hídricos (DDRH) cluir empreendimentos com graves
e sua conversão em outorgas em be- problemas socioambientais, inclu-
neficio de empreendimentos hidre- sive em termos legais (por exem-
létricos tem sido questionada pelo plo, as UHEs São Luiz do Tapajós e
MPF, em ACPs movidas em diversas Chacorão, que alagariam extensos
bacias da Amazônia (Brasil, Ministé- territórios do povo Munduruku). Na
rio Público Federal, Procuradoria da concepção da AAI, suas diretrizes e
República no Pará, 2014, 2015). recomendações são caracterizadas
136 Millikan
cadeado uma série de outros atrope- nos, inclusive o direito à CLPI; iii)
los e conflitos em fases subsequen- a plena articulação com outras po-
tes de licenciamento e implantação líticas setoriais e territoriais. Essas
de empreendimentos. constatações sugerem a importân-
Nesse sentido, é evidente a ne- cia da retomada de discussões sobre
cessidade de um debate público instrumentos alternativos, como a
aprofundado sobre a situação atual AAE, e sua incorporação entre as
e sobre as necessidades de aprimo- ferramentas do Sisnama.
ramento de estudos de inventário
hidrelétrico de bacia hidrográfica, [artigo concluído em janeiro de 2016]
inclusive no que diz respeito às
AAIs, especialmente em termos de Referências bibliográficas
sua compatibilização com outras Almeida, Juliana de. 2010. Alta ten-
políticas públicas e com o marco le- são na floresta: os Enawene e o
gal sobre direitos humanos e meio Complexo Hidrelétrico Juruena.
ambiente. No curto prazo, merece Trabalho de conclusão curso (Es-
atenção especial o fato de as deci- pecialização lato sensu em indi-
sões políticas sobre a construção de genismo). Cuiabá, Universidade
UHEs serem tomadas pelo setor elé- Positivo/Operação Amazônia Na-
trico de forma isolada, sem envolvi- tiva. Disponível em: <http://ama-
mento de outros órgãos públicos e zonianativa.org.br/download.
sem participação da sociedade. php?name=arqs/biblioteca/13_a.
Assim, fica evidente a necessi- pdf&nome=Juliana%20de%20
dade de viabilizar instrumentos de Almeida_Alta%20Tens%E3o%20
política pública, não restritos ao na%20Floresta%20Os%20Enawe-
setor elétrico, capazes de superar ne%20Nawe%20e%20o%20Com-
os entraves identificados, de modo plexo%20Hidrel%E9trico%20Ju-
a possibilitar, dentre outros quesi- ruena.pdf> (acesso: 8 jun. 2015).
tos: i) o atendimento à Resolução Brasil. Centrais Elétricas Brasilei-
Conama nº1/1986, sobre a neces- ras S.A. Departamento Nacional
sidade de avaliação de impactos de Águas e Energia Elétrica. 1997.
cumulativos e sinérgicos dos diver- Manual de inventário hidroelétrico
sos empreendimentos (barragens, de bacias hidrográficas. Brasília.
portos, hidrovias etc.) em nível de Brasil. Ministério da Infraestru-
bacia hidrográfica; ii) a participação tura. Secretaria Nacional de
ativa de populações locais, com o Energia. Centrais Elétricas Bra-
pleno respeito aos direitos huma- sileiras. 1990. Plano Diretor de
138 Millikan
___. 1998. Resolução nº393, de 4 de Brasil. Ministério de Minas e
dezembro. Brasília. Disponível Energia. Secretaria de Plane-
em: <http://www.aneel.gov.br/ jamento e Desenvolvimento
cedoc/res1998393.pdf> (acesso: Energético. 2007. Manual de in-
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Brasil. Ministério de Minas e Ener- drográficas. Rio de Janeiro, Cepel.
gia. Agência Nacional de Energia Disponível em: <http://www.
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2000. Diretrizes para estudos de conselhos/conselho-nacional-de-
inventário hidrelétricos. Brasília. -politica-energetica/manual-de-
Brasil. Ministério de Minas e Ener- -inventario-hidroeletrico-de-ba-
gia. Conselho Nacional de Polí- cias-hidrograficas/at_download/
tica Energética. 2011. Resolução file> (acesso: 10 abr. 2015).
nº3, de 3 de maio. Brasília. Dispo- Brasil. Ministério do Meio Ambien-
nível em: <http://www.mme.gov. te. Conselho Nacional do Meio
br/documents/10584/1139159/ Ambiente. 1986. Resolução nº1,
Resoluxo_3_CNPE_Complexo_ de 23 de janeiro. Brasília. Dispo-
Tapajxs_07_06_11.pdf/b05aaa9c- nível em: <http://www.mma.gov.
99ef-4e30-9206-8413149174a4> br/port/conama/legiabre.cfm?co-
(acesso: 10 jun. 2015). dlegi=23> (acesso: 10 jun. 2015).
Brasil. Ministério de Minas e Ener- Brasil. Ministério Público Federal.
gia. Empresa de Pesquisa Energé- Procuradoria da República no
tica. 2015. Plano decenal de expan- Pará. 2015. “Justiça de Manaus
são de energia 2024. 2 v. Brasília. proíbe outorgas para empreendi-
Brasil. Ministério de Minas e Ener- mentos na bacia do Amazonas”.
gia. Empresa de Pesquisa Energé- Sítio da Procuradoria da Repúbli-
tica; Consórcio Leme Concre- ca no Pará. Belém, 13 mar. Dispo-
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integrada da bacia hidrográfica mp.br/news/2015/justica-de-ma-
do rio Teles Pires. Relatório final. naus-proibe-outorgas-para-em-
Brasília. preendimentos-na-bacia-do-ama-
Brasil. Ministério de Minas e Ener- zonas> (acesso: 10 jun. 2015).
gia. Empresa de Pesquisa Energé- ___. 2012. “MPF pede suspensão do
tica; CNEC. 2010. Bacia hidrográ- licenciamento da usina São Luiz
fica do rio Juruena: estudos de do Tapajós”. Sítio da Procuradoria
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140 Millikan
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na. Relatório final. Avaliação am- nê-nawê”. In: Millikan, Brent;
biental integrada da alternativa Fearnside, Philip; Bermann,
selecionada, v. 27, apêndice E. Célio; Moreira, Paula Franco
Fanzeres, Andreia. 2008. “Parem (org.). O setor elétrico brasileiro e a
as máquinas”. In: O Eco. 25 abr. sustentabilidade no século 21: opor-
Disponível em: <http://www. tunidades e desafios. Brasília, In-
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co_27193/> (acesso: 2 abr. 2015). 61-64. Disponível em: <http://
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cesso no48500.002970/00-72. ___. 2008. “STF pode aprovar Com-
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Avaliação ambiental integrada na sem consulta aos povos in-
da bacia do Tapajós (sub-bacia Ta- dígenas afetados”. In: Notícias
pajós-Jamanxim). Disponível em: Socioambientais. São Paulo, 25
<http://www.grupodeestudosta- ago. Disponível em: <http://site-
pajos.com.br/grupo-de-estudos -antigo.socioambiental.org/nsa/
-publica-avaliacao-ambiental-in- detalhe?id=2733> (acesso: 11 jun.
tegrada-da-bacia-do-tapajos/> 2015).
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___. 2014b. “Sumário da avaliação ma-MT aprova a avaliação am-
ambiental integrada é apresenta- biental integrada de 10 aprovei-
do em Itaituba”. Sítio do Grupo tamentos hidroelétricos no alto
de Estudos Tapajós. Disponível Juruena”. Disponível em: <http://
142 Millikan
Ritual burocrático de ocupação
do território pelo setor elétrico:
o caso da avaliação ambiental integrada da bacia do Tapajós1
Rodrigo Folhes
O
convite para participar deste que fazem parte de certa tradição 1. Gostaria de agradecer
livro se deu quando eu estava antropológica brasileira (cf. Tei- o desafio lançado por
Brent Millikan com o
começando a refletir sobre xeira & Souza Lima, 2010), minha convite para que eu
minhas experiências no universo pesquisa de doutoramento, junto escrevesse este artigo,
bem como a leitura
dos estudos de impacto ambiental ao Programa de Pós-Graduação em atenta e meticulosa
(EIA), particularmente do compo- Ciências Sociais da Universidade Fe- de Mauricio Torres e
Daniela Alarcon. Apesar
nente indígena (ECI). Nessa área de deral do Maranhão (UFMA), volta-se
dos esforços conjuntos,
atuação profissional, relacionei-me à análise de instituições e grupos de devo ressaltar que
com povos indígenas, empresas de poder, vista ainda com muito estra- qualquer insuficiência
deve ser atribuída às
consultoria ambiental, com o Es- nhamento por nossos pares. minhas limitações.
tado e, em menor grau, com mo- Encaro esse desafio tendo em
vimentos sociais. A complexidade vista dois objetivos: 1. Participar
dessas relações traz, em seu conjun- dos esforços para a amplificação
to, grandes dificuldades para uma do debate sobre o uso dos recursos
pesquisa que pretenda abordar os naturais e as formas de conquista
exercícios de poderes de Estado sub- empregadas pelo Estado, em alguns
jacentes aos processos administra- casos, violando o ordenamento ju-
tivos de licenciamento ambiental rídico brasileiro e internacional –
sobre o “componente indígena”, po- percebo que o descumprimento dos
tencializando certos desconfortos, direitos coletivos e difusos previs-
aqui em parte enunciados. Situan- tos na Constituição Federal de 1988
do-se no marco dos estudos sobre a configura-se como um continuum
vida política e as políticas públicas, de práticas que visam expropriar
143
2. O Consórcio Tapajós territorialmente povos indígenas A história das relações entre po-
é composto pelas
empresas Centrais
e tradicionais, assim como a popu- vos indígenas e Estado nacional está
Elétricas Brasileiras S.A. lação amazônida, de modo geral; invariavelmente imbricada nas es-
(Eletrobras), Centrais
2. Inserir-me nas discussões acerca truturas administrativas desenvol-
Elétricas do Norte do
Brasil S.A. (Eletronorte), das reflexões etnográficas entre bu- vidas pelo conquistador para impor
Endesa Brasil S.A, GDF rocratas, elites e corporações (Casti- aos povos conquistados suas políti-
Suez S.A., Copel Geração
e Transmissão, Cemig
lho et al., 2014), enfrentando todo o cas de colonização, integração e de-
Geração e Transmissão mal-estar provocado pela realização senvolvimento. As técnicas de gover-
S.A., Neoenergia S.A.,
de uma pesquisa antropológica a no sobre os índios no processo de
EDF e Construção e
Comércio Camargo partir de uma prática profissional integração de tais populações a uma
Corrêa S.A. (Bronz, 2014). comunidade política imaginada ne-
O que pretendo apresentar nes- cessitaram, principalmente a partir
3. Para maiores
detalhes, ver a ação te texto é uma situação etnográfica de um ideal positivista, transformar
civil pública (ACP) relacionada a minha participação a violência aberta em violência sim-
nº1.23.002.000087/2009-
91, proposta pela no estudo de avaliação ambiental bólica. O exercício do poder tutelar,
Procuradoria da integrada (AAI) da bacia do Tapa- como informa Souza Lima (1995),
República no município
de Santarém. Disponível
jós, junto à empresa de consultoria serviu para que o Estado, de pou-
em: <http://www.prpa. ambiental Ecology do Brasil e seus co em pouco, expandisse os seus
mpf.mp.br/news/2012/
clientes, a saber, o Consórcio Tapa- limites e conquistasse o território
arquivos/ACP%20
Consulta%20Previa.pdf>. jós, refletindo mais especificamen- considerado nacional. O exercício da
te sobre as condições de produção tutela, iniciado institucionalmente
desse estudo e seus embates epis- com o Serviço de Proteção ao Índio
temológicos e políticos na análise e Localização dos Trabalhadores Na-
de conflitos socioambientais in- cionais (SPILTN) – órgão criado em
dígenas2. Entendo que a AAI é um 19104 e sucedido pela Fundação Na-
exemplo bastante elucidativo das cional do Índio (Funai), estabelecida
4. Deve-se ressaltar tentativas de conquista dos povos in- em 1967 – e, teoricamente, extinto
que o poder jurídico dígenas por meio de determinados com a promulgação da Constituição
da tutela só passou
a ser exercido após procedimentos administrativos le- de 1988, pode ser lido ainda na gra-
a aprovação da lei vados a efeito pelo Estado. Note-se mática do conflito instaurado por
nº5484/1928 (cf. Souza
que, nesse caso, a AAI, apesar de ter novos procedimentos administrati-
Lima, 1995, 2009, 2012).
sido criada pelo setor elétrico para vos. Nesse quadro, o discurso sobre
atender demandas relacionadas ao a vocação energético-econômica do
“meio ambiente”, só foi elaborada país, aliado à noção de desenvolvi-
em razão de ordem judicial decor- mento sustentável, legitima a gestão
rente de ação proposta pelo Minis- de territórios e suas coletividades
tério Público Federal (MPF)3. por um corpo de especialistas, for-
144 Folhes
talecendo-se a presença do Estado, relaciona-se ao modelo de gestão da
com programas ambientais finan- questão indígena?
ciados em grande parte pelo capital A consideração detalhada dessas
privado. indagações não faz parte do escopo
Podemos dizer que, assim como deste texto, mas são importantes
a política de colonização do SPILTN questões de fundo na análise sobre
teve como um de seus objetivos li- o caso da AAI e sobre sua maneira
berar terras por meio de procedi- particular de exercer o poder de ocu-
mentos de atração e pacificação, a par e gestar o território nacional. Por
política econômica atual, por meio ora, procurarei pensar no enquadra-
de procedimentos de licenciamento mento conferido pelo setor elétrico
ambiental, procura liberar terras ao meu trabalho como consultor, de
para o crescimento econômico, cal- modo a tornar o documento final da
cado em parcerias entre os setores AAI cientificamente validado pelo
público e privado? Podemos enten- empreendedor, pelas empresas con-
der que a noção de desenvolvimento sultoras e pela administração pú-
sustentável faz a intermediação sim- blica. Entendo que o resultado final
bólica entre as distintas formas de da AAI, no que concerne à análise
execução das políticas públicas? Os de conflito com os povos indígenas,
programas ambientais poderiam se não atingiu os objetivos propostos
relacionar às estratégias dos exer- no documento por mim elaborado
cícios de poder do Estado para dar e tampouco aqueles constantes no
marcha ao “grande cerco de paz”5? contrato firmado com a empresa 5. Para fazer alusão
ao título do livro de
Estariam esses programas – mesmo consultora, que previa uma análise
Souza Lima (1995), que
em face do fortalecimento dos mo- crítica dos conflitos do setor elétri- analisa novas formas
vimentos e associações indígenas, co com os povos indígenas. Foram de controle geopolítico
do território nacional,
nos dias de hoje, para exercer as várias as interferências, cortes e assumindo um viés
suas governanças territoriais – en- alterações de significado do texto interpretativo no qual
o poder tutelar é uma
quadrados no processo pedagógico original. Não pretendo sugerir que forma reelaborada
de civilização (Souza Lima, 2002) as minhas análises sobre os con- de uma guerra, com
de matriz evolucionista? Até onde flitos com os povos indígenas não repetições modificadas
de conquista.
a promoção do multiculturalismo fossem passíveis de crítica – longe
como estratégia de implantação de disso. Creio, porém, que o debate
políticas neoliberais por parte dos travado em torno de meu trabalho
Estados nacionais e bancos multi- proporciona um caminho de refle-
laterais de desenvolvimento (Barro- xão acerca das teorias e conceitos
so Hoffmann, 2005; Barroso, 2014) que constituem o reservatório onde
146 Folhes
E o que sobra do “desencantamen- Hoffman, 2002), e abordagens que ver Beato F. (1998).
Para uma recusa à
to do mundo” é o recrudescimento se aproximam da ecologia política
dissociação entre
do valor de verdade – uma verdade (Little, 2006; Barbosa de Oliveira, método e prática
que coloque os empreendimentos 2012) –, me apoiarei no capítulo do sociológica, ver
Bourdieu et al. (2004).
como factíveis e a custos socioam- livro Multiculturalismo, de Semprini
bientais também possivelmente (1999), chamado “O nó górdio epis- 8. “O conceito de ‘desen-
cantamento do mundo’
manejáveis8. temológico”. O autor, ao apresentar
[de Max Weber] repre-
Refletindo sobre as redes e rela- a questão multicultural a partir das sentou a busca de um
cionamentos pessoais que estrutu- diferenças que marcaram a socieda- conhecimento objetivo,
liberto de sabedorias ou
ram o campo do desenvolvimento, de norte-americana, sobretudo após ideologias reveladas e/
Ribeiro caracteriza o “desenvolvi- os anos de 1960, com o movimento ou aceitas. Nas ciências
sociais ele traduziu-se
mento como a expansão econômica pelos direitos civis, faz uma interes-
na exigência de que não
adorando a si mesma” (2012: 197). sante análise sobre as tradições in- rescrevêssemos a histó-
Nesse sentido, quais são as carac- telectuais que alicerçam o que con- ria em nome das estru-
turas de poder vigentes.
terísticas do campo de poder que sidera serem uma epistemologia Tal exigência constituiu
sustenta o sistema de crença de multicultural e uma epistemologia um passo fundamental
no sentido de libertar a
uma parcela específica do campo monocultural10. No embate entre atividade intelectual de
do desenvolvimento, qual seja o ambas as tradições de pensamento, manietadoras pressões
setor elétrico? Qual a perspectiva Semprini destaca: externas e da mitologia,
e continua a manter-se
epistemológica que se faz hegemô- válida” (Wallerstein et
nica nesse campo? Tendo em vista a posição multicultural apoia-se so- al., 1996: 110).
essas inquietações mais abrangen- bre uma mudança de paradigma, 9. As teorias que acom-
panharam o tema do
tes9, tomo como principais pergun- ela invoca a estabilidade, a mistura,
desenvolvimento, dire-
tas deste texto as seguintes: 1. Que a relatividade como fundamentos de cionadas a sua descons-
ciência está a legitimar o processo seu pensamento. A análise monocul- trução (Ferguson, 1990;
Escobar, 1995), junto às
administrativo de territorialização, tural aparece assim como infinita- correntes do “pós” (pós-
limitando o enquadramento analí- mente mais simples e tranquilizado- -estruturalismo, pós-
-moderno, pós-colonial
tico dos conflitos com os povos in- ra. Ela garante que a verdade existe,
e pós-desenvolvimento)
dígenas a “espaços” controláveis? 2. que é possível conhecê-la, que existe e aos estudos subal-
Quais os saberes/fazeres que se espe- uma solução para cada problema e ternos, representados,
principalmente, pelos
ra de um “especialista em índios”? que é a ciência quem dará tal solu- trabalhos de Sachs
Partindo, assim, para essas ques- ção (1999: 89). (2000 [1992]), Mignolo
(2003 [2000]), Quijano
tões – que perpassam trabalhos
(2000), Rist (2008), Spi-
reconhecidos sobre processos de Ao colocar a dualidade nesses vak (2010 [1988]) e San-
territorialização no Brasil (como Oli- termos, o autor argumenta que a tos (2010), entre outros,
serão essencialmente
veira, 1998) e sobre novas políticas opinião pública, apoiada em uma importantes para um
indigenistas (Souza Lima & Barroso desconfiança anti-intelectual, tende debate futuro.
148 Folhes
atuação e controle dessa agência dos órgãos setoriais de Estado para a 11. Isso ocorria princi-
palmente nas bacias
relativos aos estudos de inventário, obtenção da licença ambiental sem
hidrográficas situadas
para melhor responder às pressões a devida identificação e avaliação no estado de Mato
e demandas que nos chegavam no dos impactos sobre terras e povos Grosso, onde inúmeras
empresas (com a parti-
âmbito dos procedimentos de li- indígenas na fase de licenciamento, cipação de representan-
cenciamento ambiental. Tratava-se e das postergações das mesmas, por tes do agronegócio) se
lançaram no potencial
de compreender os procedimentos meio de um dos termos utilizados
mercado energético,
adotados por cada instituição, com na gramática do licenciamento: as com a expectativa de
vistas a projetar um procedimento condicionantes15. Antecipar as avalia- construção de centenas
de pequenas centrais
comum e anterior à fase de licencia- ções de impacto e a participação hidrelétricas (PCHs).
mento ambiental. Foram dessas re- das populações indígenas nos pro- Quando da aprovação
de despacho do estudo
uniões promovidas pela Funai com jetos e estudos, em minha cabeça,
de inventário do rio
a Aneel que surgiu meu incômodo ainda tomada pelo ordenamento Tapajós (em que foram
em relação à noção autoevidente e de políticas públicas, era essencial. identificados sete AHEs
com potência de 14.245
nada natural12 de “vocação energéti- Observava, também, a arena públi- megawatts de capaci-
ca”, bem como a constatação de que ca em torno dos empreendimentos dade instalada), publi-
cado no Diário Oficial
se aplicavam critérios meramente e a apropriação de algumas ideias e da União (DOU) no dia
receituários de avaliação dos impac- diretrizes, identificáveis nas formas 25 de maio de 2009,
a agência reguladora
tos ambientais13. de ação coletiva e nos argumentos
informou que de 1999
Vislumbrei assim no trabalho de empregados, buscando interferir a 2009 tinha aprovado
consultoria a possibilidade de in- no processo decisório que estabe- 430 estudos de inven-
tário hidrelétrico no
serir na AAI outros pontos de vista lece normas e regras de utilização país, entre UHEs e PCHs,
sobre o ambiente, que fossem defi- de recursos naturais, no sentido de com potencial de 62,8
mil megawatts (ver:
nidos pela análise das relações so- ampliá-lo.
<http://www.aneel.
ciais e territoriais indígenas, e que Ingenuidade, diriam alguns; pre- gov.br/aplicacoes/noti-
considerassem os indígenas como tensão, diriam outros; “pesquisador cias_boletim/?
fuseaction=boletim.de
dotados de agências próprias14. Por inimigo”, afirmariam outros tantos, talharNoticia&idNoti
esse caminho, possivelmente, me mais engajados. O fato é que a mi- cia=343>). Desse mon-
tante de estudos, uma
distanciaria de nexos passivos de nha participação nesse estudo – que
quantidade bastante
vocações econômico-energéticas. não significa aceitação do mesmo, expressiva foi realizada
Nesses termos, imaginava apontar como veremos mais à frente – possi- próximo a TIs, ou dentro
delas.
– em um documento que, em tese, bilitou-me um pouco mais de inser-
deveria anteceder os EIAs – impac- ção no campo empresarial que atua 12. O paradoxo é pro-
posital. Quando afirmo
tos e diretrizes que pudessem ser na burocracia do desenvolvimento
que a noção é autoe-
levados em consideração pelos ges- (Barroso, 2014). Pude acompanhar vidente, relaciono-a à
tores competentes. Era conhecedor um pouco das rotinas e exercícios perspectiva do setor
elétrico, a partir de um
das pressões e exercícios de poder de poder que se situam na relação
150 Folhes
dos empreendimentos com os po- ambientais se fazem necessárias20. dessa relação, consulto-
res desenvolvem tabelas
vos indígenas. Minha observação, porém, não foi
comparativas, com
A incorporação da AAI aos es- aceita, uma vez que a CTMA consi- distintos vetores asso-
tudos de inventário é um exemplo derou-a “subjetiva”. ciados ao que seria, ou
quais seriam, o custo e
bastante emblemático do que Lei- Também foram inseridas no ma- o beneficio. A repartição
te Lopes chamou de processo de nual de 2007 orientações sobre os de queda que apresen-
tar melhor relação entre
ambientalização18. A obrigatoriedade usos múltiplos da água, em conso-
ambos será escolhida
dessa avaliação decorreu de um “es- nância com a Política Nacional de como a melhor e, pos-
forço” de revisão do conteúdo rela- Recursos Hídricos (PNRH), e sobre sivelmente, será apro-
vada pela Aneel como
tivo ao Manual de inventário hidroe- novos sujeitos de direito, a saber, aproveitamento ótimo.
létrico de bacias hidrográficas (1997), populações tradicionais. Para o primei- Como se vê, o fato de
a questão ambiental
iniciado pelo Ministério de Minas e ro caso, em observação ao manual,
ser analisada exclusi-
Energia (MME) em 2004, para aten- escrevi no documento intitulado vamente com base em
der às “mudanças ocorridas, nestes “Conflitos com povos indígenas - dados secundários pode
levar a conclusões par-
últimos dez anos [1997-2007], no parte II”21 um item na perspectiva ciais, que subestimem
setor elétrico brasileiro, particular- de ser incorporado na AAI, intitula- os potenciais impactos.
A partir do aceite de
mente nas áreas da legislação, do do “Vocação, usos múltiplos e ‘etc’: um dos estudos, são
meio ambiente, dos recursos hídri- conflitos socioculturais e cosmoló- estabelecidos prazos
cos e dos aspectos institucionais” gicos”22, que foi categoricamente para que todos que
solicitaram o registro
(Brasil, Ministério de Minas e Ener- desconsiderado no resultado final do trecho inventariado
gia, Secretaria de Planejamento e do estudo. Abaixo, reproduzo um também os entreguem.
A fixação desses crité-
Desenvolvimento Energético, 2007: pequeno trecho desse item: rios está estabelecida
3). Elaborado pelo MME e pelo Cen- nas resoluções nor-
mativas nº393/1998 e
tro de Pesquisas de Energia Elétrica Para o setor elétrico, a bacia tem
nº412/2010.
(Cepel), no âmbito do projeto Energy uma vocação. E essa vocação é a ge-
Sector Technical Assistance Loan (Proje- ração de energia, que precisa ser ve- 14. Note-se que o tra-
balho de consultoria
to de Assistência Técnica ao Setor rificada, estimada em seu potencial
apoia-se, em grande
Elétrico - Estal)19, do Banco Mundial, hidrelétrico. O estudo de inventário medida, em relações
o manual estabelece em seu capítu- é responsável por determinar esse pessoais com inte-
grantes das redes do
lo 6 as instruções para a elaboração potencial, estabelecendo a melhor licenciamento ambien-
da AAI. Em linhas gerais, como ob- divisão de queda por meio da rela- tal. Para um debate
sobre as “amizades
servei no produto entregue à Ecology ção custo x benefício, ou seja, má-
instrumentais”, ver
intitulado “Conflitos com os povos ximo de energia ao menor “custo” Wolf (2001). Já para
uma reflexão acerca
indígenas”, procurou-se adequar as e “com mínimo de impacto ao meio
do capital específico do
políticas e linhas de financiamento ambiente”. O inventário hidrelétrico campo ambiental, ver
à rubrica de desenvolvimento sustentá- dos rios Tapajós e Jamanxim é bem Zhouri (2012).
152 Folhes
AHEs – em sua maioria, em estágios de, necessita de assinatura técnica. 17. Almejo, em um exer-
cício posterior, a partir
avançados do licenciamento am- Além disso, como consta no termo
dos trabalhos de Bar-
biental – estavam sendo orientadas de referência elaborado pela Eletro- roso Hoffmann (2005,
por “juízos de valor” e, portanto, bras, “quaisquer alterações meto- 2011) e Barroso (2014),
discorrer empiricamen-
não corresponderiam à “verdade” dológicas que sejam necessárias no te sobre como as mobi-
dos fatos. Chamou-me atenção o es- desenvolvimento do estudo deverão lizações dessa elite são
feitas, levando-se em
forço considerável para que não fos- ser previamente acordadas e auto- conta a especificidade
sem retomadas críticas a AHEs em rizadas pela Coordenação Técnica desses grupos domi-
nantes.
andamento. de Meio Ambiente”, sem necessa-
Por meio de um breve exercício riamente envolver a participação
comparativo acerca das interferên- do antropólogo responsável. Isso 18. O termo ambientali-
zação é um neologismo
cias das equipes técnicas do setor quer dizer que, no caso da AAI, exis-
desenvolvido por homo-
elétrico em estudos de seu inte- te um controle social muito mais logia a outros usados
resse, creio ser importante desta- explícito, com vistas a atender as nas ciências sociais, tais
como industrialização e
car também as diferenças entre as orientações do cliente, que no caso proletarização. Designa
alterações realizadas pela EPE no do ECI. São duas situações distintas o processo de consti-
tuição de uma questão
ECI do AHE São Manoel e aquelas de interferência no resultado dos
coletiva e pública, a
empreendidas pela Ecology e pelo estudos, mas com objetivos teórico- “questão ambiental”,
CTMA no meu trabalho. No primei- -metodológicos e políticos muito que emerge como fonte
de legitimação e argu-
ro caso, trata-se de um estudo vol- próximos. mentação nos conflitos
tado à avaliação de impactos junto Os limites deste artigo não me sociais, bem como de
uma interiorização
aos povos indígenas, observando permitem realizar uma “etnografia de comportamentos e
as diretrizes da Funai, cuja norma mais densa” (para usar uma das ale- práticas por meio da
administrativa legal estabelece que gações da CTMA contra o meu traba- promoção da educação
ambiental (Leite Lopes,
o mesmo seja coordenado por um lho) sobre as condições de produção 2006).
antropólogo e que a equipe técnica do documento, de forma a detalhar
deve assinar o estudo. Temos, para o campo no qual me inseri. Entre- 19. Esse mesmo projeto
financiou a contrata-
esse caso, uma desconsideração tanto, a partir do percurso do docu- ção de 84 estudos, que
tripla da norma, pois o estudo não mento original escrito por mim e serviram de base téc-
nica para a elaboração
foi coordenado pelo antropólogo, a dos embates travados na defesa dos
do Plano Nacional de
equipe técnica não assinou o estu- meus argumentos junto ao CTMA e Mineração 2030 (PNM
do e a EPE suprimiu trechos impor- à Ecology, é possível observar um 2030), pela Secretaria
de Geologia, Minera-
tantes das análises do antropólogo pouco dos bastidores do “mercado ção e Transformação
sem a sua permissão. No meu caso, de projetos” e a consequente gestão Mineral (SGM/MME).
Ver: <http://www.mme.
trata-se de um estudo do setor elé- de territórios e populações promo-
gov.br/sgm/menu/
trico que não é avaliado pela Funai vida pelos procedimentos de licen- relatorios_plano_nacio-
e tampouco, para minha infelicida- ciamento ambiental. nal_mineral.html>.
154 Folhes
consorciadas e seus acionistas – e dência, por sua vez, possui conta- não necessariamente
implica a garantia de
chegando aos órgãos de controle to direto com os chefes, diretores cumprimento dos direi-
do Estado e aos consultores externos e presidentes das empresas para tos constituídos (Folhes,
2013).
contratados. No caso em questão, as quais a empresa de consultoria
o cliente era o Consórcio Tapajós, oferta seu trabalho. Não raro, esses 21. Esse documento foi
escrito a partir de uma
cujas empresas possuem interesses gerentes acompanham de forma di-
base previamente ela-
diretos nos AHEs da bacia – muitas reta as reuniões entre ambos – mes- borada por cientistas
delas haviam investido somas con- mo quando não as acompanham, sociais, funcionários da
Ecology.
sideráveis de recursos para a reali- são articuladores diretos das nego-
zação de estudos de licenciamento ciações realizadas. Enquanto respon- 22. Na ocasião, observei
que, na “maioria dos
ambiental já em andamento no rio sáveis técnicos pelo estudo, receberão
casos onde se apre-
Tapajós26. Desse consórcio, que ar- críticas de seus clientes em torno das senta ou se discute
ticula diferentes grupos de poder, condições ideais em que pretendem diretrizes sobre usos
múltiplos da água,
criou-se a CTMA27. A princípio, os que o produto seja entregue à publi- observa-se que as ativi-
gerentes, junto com os coordenado- cidade. Em uma comparação com a dades que devem estar
contempladas recaem
res de núcleos (como vegetação, fauna dinâmica na academia, o gerente de
sobre feições socioeco-
e socioeconomia), bem como alguns projetos seria como um orientador, nômicas, ambientais e
consultores externos, estabelecem a opinar sobre o trabalho do consul- estratégicas, relativas à
pesca, abastecimento
contato direto com os técnicos da tor e, eventualmente, sugerindo al- urbano, saneamento
CTMA, discutindo os resultados de terações. No entanto, embora assu- básico, irrigação, aqui-
cultura, transporte,
cada produto. Em suma, era a partir ma uma posição técnica, insere-se uso industrial, turismo,
desse debate técnico que, a princí- no campo de atuação empresarial. lazer e etc. É justamen-
pio, se aprovava ou não os produtos Uma série de outros “orientado- te sobre essa expressão
de origem latina, que
de cada desembolso. res”, ligados ao cliente, dirão para significa “e os res-
Dito isso, temos a seguinte es- ele como e por onde deverá seguir tantes” ou “e outras
coisas mais”, que nos
trutura: eu, antropólogo, contrata- para o sucesso da redação final do deteremos na análise
do como consultor externo, na figura estudo, mesmo que os gerentes não deste tópico, de modo
a evidenciar outras
de uma pessoa jurídica, apresento considerem as escolhas pertinen-
concorrências ao uso de
o meu trabalho, que consiste na tes. Os gerentes, algumas vezes, re- um rio, do curso d’água,
produção de conhecimento sobre correm a estratégias opostas às dos da água, da morada”.
156 Folhes
ministrativos de licenciamento am- oportuna por parte do governo, em 27. Como informa Bronz,
em relação aos proce-
biental de UHEs na própria bacia do todos os âmbitos, e por parte de em- dimentos administra-
Tapajós e para os conflitos já exis- presas públicas e privadas, em rela- tivos de licenciamento
ambiental, os empreen-
tentes e potenciais, devidos à im- ção a planos de gestão e programas
dedores “contam com
posição de outro uso de um recur- ambientais. Como na maioria das equipes selecionadas de
so natural extremamente valioso, TIs não foram construídos, com a consultores, assessores,
advogados e funcioná-
em múltiplos sentidos e contextos, participação das populações locais, rios administrativos de
para as populações indígenas. Bus- planos de gestão adequados – justa- variadas funções, que
ademais de trabalha-
quei, ainda, atentar para as pressões mente o que se espera com a execu-
rem para cumprir com
existentes nos procedimentos de ção da Política Nacional de Gestão os requisitos formais
demarcação de TIs na bacia. Note-se Territorial e Ambiental de Terras do procedimento admi-
nistrativo, formulam e
que os procedimentos administrati- Indígenas (PNGATI) –, prevalecem adotam as estratégias
vos de demarcação de diversas TIs os programas ambientais. Isso, em propriamente empre-
sariais para a obtenção
situadas na bacia estão inconclusos, muitos casos, alimenta e/ou repro-
das licenças” (2011: 50).
sem que haja perspectivas de finali- duz um modelo de política compen-
zação no horizonte temporal mais satória criado antes da introdução 28. Vale destacar que
grande parte desse tex-
imediato. dos procedimentos administrativos to, intitulado original-
Os “novos” conflitos produzidos de licenciamento ambiental. Segun- mente “Conflitos com
pelo setor elétrico possuem diferen- do Zhouri, “os conflitos expressam povos indígenas - parte
II”, foi utilizada no item
tes conformações, mas têm suas raí- processos em que a luta ocorre não “Diagnóstico socioam-
zes na mesma perspectiva de con- somente pela conformação ótima biental” e uma pequena
parte, no item “Conflitos
quista territorial pelo Estado. Como de uma ‘aritmética das trocas e das com povos indígenas”,
desdobramento, tenta-se inserir os reparações’, mas, sobretudo, pela ambos integrantes do
documento final da AAI.
índios no mercado do desenvolvi- legitimidade de outras formas de
Cabe notar, em relação
mento, por meio dos procedimen- visão e divisão do ambiente e do a esse documento final,
tos de licenciamento ambiental, espaço social” (2012: 115). Por esse que o item “Análise de
conflitos” foi elaborado
particularmente a partir de medi- caminho, as disputas em torno da com a participação de
das de mitigação e compensação. definição do que seja uma gestão outro consultor externo
da área das ciências
Esse jogo duplo de ações de cunho territorial indígena passam pelos
sociais, para atender às
desenvolvimentista e de ação indi- novos instrumentos de licencia- questões relacionadas
genista já foi observado por outros mento ambiental. às populações tradicio-
nais.
autores, para outros momentos Nas primeiras avaliações sobre
históricos da política indigenista30. meu produto, não foram realizadas 29. O trecho dessa cita-
ção foi originalmente
Outrossim, com o incremento e a críticas mais substanciais e nenhu-
escrito na introdução
sistematização dos procedimentos ma grande mudança foi solicita- do documento que
de licenciamento ambiental em da. Com a consolidação maior do apresentei à Ecology,
intitulado “Análise de
TIs, percebo que há uma confusão documento e a necessidade de a
158 Folhes
[…] dada a característica de mão técnicas – que, para nós, consulto- 32. Reuniões técnicas
são reuniões internas
dupla da consorciação, os discursos res internos e externos da Ecology, das equipes da consul-
sobre desenvolvimento regional ou deveriam ser observadas como uma toria e/ou das equipes
nacional podem ser um argumento coisa só, ao passo que se questiona- das consultorias com o
empreendedor.
que os parceiros mais fortes, isto é, va a politização do documento por
aqueles representando concentra- questões técnicas. Há muito se dis- 33. Seguindo os passos
de Bourdieu, tendo a
ções maiores de capital ou poder, cute que os efeitos de obras de AHEs entender esse enqua-
usem para legitimar a necessidade de grande porte não são simples- dramento da seguinte
do projeto. A eloquência do argu- mente ou principalmente “ambien- maneira: “a função
de todas as fronteiras
mento desenvolvimentista é eviden- tais” ou “socioeconômicos”: são es- mágicas […] consiste
te quando a cooptação de unidades sencialmente políticos (Viveiros de em impedir os que se
encontram dentro, do
menores é necessária (2012: 210s). Castro & Andrade, 1988: 10). A des- lado bom da linha, de
politização da questão ambiental é saírem, de saírem da
Antes de as ameaças se tornarem linha, de se desclassifi-
encarada, na grande maioria dos ca-
carem. Segundo Pareto,
mais críticas, participei de uma re- sos, como um dogma, não podendo as elites estão fadadas
união técnica, na qual estavam pre- sequer ser questionada. a ‘extinção’ quando
deixam de acreditar
sentes diretores e funcionários da Diziam, por exemplo: “para que em si mesmas, quando
Leme Engenharia, GDF Suez, Ele- mencionar que a Funai não partici- perdem seu moral e
sua moral, dispondo-
trobras, Eletronorte, Endesa Brasil pa da AAI?”. Ou ainda, no que diz
-se a cruzar a linha no
e Ecology32. Entre as muitas críticas respeito a outros licenciamentos, mau sentido” (1996:
realizadas, destaco aquelas que fo- como o de Belo Monte: “não existe 102). Em linhas gerais, o
consórcio deixou claras
ram direcionadas ao meu trabalho. nenhuma condicionante não aten- as posições do jogo: as
De modo geral, afirmaram que “o dida”. Em relação aos AHEs São Ma- críticas devem ser feitas
por quem está do outro
documento questiona[va] a validade noel e Teles Pires, afirmaram que
lado da linha (movi-
do próprio documento”33. Além dis- todas as solicitações da Funai esta- mentos sociais, índios
so, sustentaram que “o documento vam sendo acatadas pela EPE e pela ou quem quer que seja),
não por quem está no
está [estava] desequilibrado, a ques- Companhia Hidrelétrica Teles Pires “lado bom da linha”, por
tão indígena entrou num nível de (CHTP) e que, portanto, não havia quem, ao fim e ao cabo,
dita as normas do jogo.
detalhamento muito maior do que por que tratar desses empreendi- Vale lembrar uma frase
os outros pontos”34. Observou-se mentos na AAI sobre o Tapajós. que escutei muitas ve-
que “não se trata de tese acadêmica, Seguiram-se, então, questões como zes em Brasília, durante
os anos como assessor
mas sim de um projeto hidrelétrico a seguinte: “a Ecology está dizendo da Funai: “não podemos
com foco para [sic] impulsionar esse que o licenciamento ambiental está dar tiro no nosso pró-
prio pé”.
projeto”35. Para tanto, “tem que sair desacreditado?”. De maneira mais
do conforto intelectual. É preciso enfática, observaram: “não sei por 34. Os “outros pontos”
referem-se ao espaço
deixar de lado esse misticismo”36. que os comentários feitos até agora que cabia às questões
As falas políticas se seguiam de falas não foram mudados pela Ecology”. sociais.
160 Folhes
tífica, chancelando determinados parte do esforço de organização de da antropologia que
conhecimentos como “certos”, em uma nova ordem social, apoiada em coloca em plena luz,
em seu princípio, suas
oposição a conhecimentos consi- uma ciência exata e positiva. A do-
vinculações ideológicas”
derados “não científicos”? Esses minação epistemológica da ciência (2000: 205).
questionamentos mereceriam uma tem raízes profundas, na busca pela
discussão mais ampliada. Por ora, legitimação de ações e projetos de
proponho que, nesse caldeirão, Estado, bem como por prestígio so-
manter a distinção entre as ciências cial no mundo do conhecimento.
naturais e sociais é um fundamento Em suma, quando se analisa os
primordial desses estudos. Pois, se caminhos técnicos e políticos adota-
ambas as “ciências” considerassem dos na AAI do Tapajós, assim como
que desenvolvimentos futuros re- nas demais realizadas até o pre-
sultam de processos temporalmen- sente momento, depreende-se que
te irreversíveis, como então levar se trata de lançar as bases de mais
adiante projetos de desenvolvimento? uma ingerência na vida coletiva das
É preciso confundir a inteligibilida- populações indígena, ribeirinha e
de do mundo para orientar o futuro amazônida, de modo geral.
que se quer gestar. Afinal, não é pos-
sível discutir alternativas de futuro [artigo concluído em setembro de 2015]
em torno de empreendimentos que
são considerados como dados. Referências bibliográficas
Está em vigência uma política Barbosa de Oliveira, Frederico C.
que demanda a utilização de de- 2012. Quando resistir é habitar: lu-
terminados recursos naturais, ba- tas pela afirmação territorial dos
seada na necessidade, ainda vital, Kaiabi no Baixo Teles Pires. Brasí-
do Estado pós-moderno de produ- lia, Paralelo 15.
zir resultados práticos, traduzidos Barroso, Maria M. 2014. “Moedas
em utilidade imediata. A AAI pode de troca, sinceridade metodoló-
aceitar aqui ou acolá algumas reco- gica e produção etnográfica no
mendações e diretrizes, desde que trabalho com elites”. In: Casti-
visões “subjetivas” não distorçam lho, Sergio Ricardo R.; Souza
fatos “objetivos”. A rejeição da “es- Lima, Antonio Carlos de; Teixei-
peculação” e da “dedução” – carac- ra, Carla C. (org.). Antropologia
terizadas como práticas desprovi- das práticas de poder: reflexões et-
das de qualquer justificação teórica nográficas entre burocratas, eli-
ou empírica – pode ser observada tes e corporações. Rio de Janeiro,
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University of California Press,
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H
á mais de três décadas, o li- cursos naturais, sejam agentes eco-
cenciamento ambiental de nômicos ou não. E não poderia ser
grandes projetos de infraes- diferente, haja vista que a LP é que
trutura é objeto de diversas críticas, declara a viabilidade ambiental de
provenientes de distintos setores da um determinado empreendimen-
sociedade, especialmente quando to, de acordo com as Resoluções
está associado ao suporte técnico- nº01/1986 e nº237/1997 do Conselho
-científico da avaliação de impacto Nacional do Meio Ambiente (Cona-
ambiental. O que muitos retratam ma). Ela está atrelada a uma deter-
como momentos históricos de “cri- minada localização, a uma concep-
se do licenciamento ambiental bra- ção técnica de projeto, a requisitos
sileiro” pode ser interpretado como básicos e a condicionantes ambien-
o resultado legítimo do funciona- tais, que deverão ser executadas nas
mento da arena de disputas que fases de implantação e de operação
se instituiu no centro desse instru- do projeto, com a finalidade de ga-
mento, onde o que está em jogo é rantir a própria viabilidade ambien-
quem fará valer o seu direito de uso tal do empreendimento.
dos recursos naturais. No caso de empreendimentos
Dentre as fases do licenciamento ou atividades efetiva ou potencial-
ambiental, aquela anterior à licença mente causadores de significativa
prévia (LP) é normalmente quando degradação ambiental, são o estudo
ocorrem as mais intensas disputas de impacto ambiental e seu respec-
entre os diversos usuários dos re- tivo relatório de impacto ambiental
167
(EIA/Rima) que têm o papel de ava- vez, lastreiam a própria viabilidade
liar os cenários futuros de impactos ambiental do projeto.
ambientais esperados com a ocor- Nesse contexto, os problemas
rência do projeto e apresentar as referentes ao conjunto de condicio-
medidas preventivas, mitigadoras nantes das LPs têm chamado cada
e compensatórias que serão neces- vez mais a atenção dos diversos
sárias para que a viabilidade am- setores da sociedade relacionados
biental seja garantida durante todo ao licenciamento ambiental, es-
o ciclo de vida do projeto (Sánchez, pecialmente no que diz respeito a
2006). Porém, é bastante comum grandes empreendimentos de in-
que muitos desses compromissos fraestrutura, como as usinas hidre-
sejam alterados após a emissão da létricas (UHEs), que constituem ca-
LP e, inclusive, não implantados de- sos bastante atuais e didáticos para
vidamente, o que representa uma reflexões acerca do problema.
ameaça à própria viabilidade am- Como exemplo, tem-se o caso das
biental do projeto. UHEs Jirau e Santo Antônio, no rio
Em 2004, o Ministério Público Madeira, cuja viabilidade ambiental
da União (MPU) analisou 70 EIA de depende de cada uma das 32 condi-
diversas tipologias de empreendi- cionantes definidas pela LP, instituí-
mentos e atividades licenciadas no da em 2007. A mesma dependência
Brasil e alertou para recorrentes ocorre no caso da UHE Teles Pires,
deficiências encontradas na fase cuja LP, de 2010, traz 28 condicio-
prévia do licenciamento ambiental, nantes como sustentação da viabi-
destacando-se aquelas relacionadas lidade ambiental do projeto. Ou,
aos estudos de alternativas tecno- ainda, no caso da UHE Belo Monte,
lógicas e locacionais, à mitigação que tem sua viabilidade ambiental
e compensação de impactos e aos sustentada por nada menos que
programas de acompanhamento 40 condicionantes, estabelecidas
e monitoramento ambiental (Bra- na respectiva LP, também de 2010.
sil, Ministério Público da União & Todos esses casos têm em comum
Brasil, Ministério Público Federal, o fato de estarem alocados em rios
4ª Câmara de Coordenação e Revi- da Amazônia brasileira, revelando a
são, 2004). Assim, grande parte das importância que essa região tem ad-
deficiências apontadas pelo estudo quirido no planejamento hidrelétri-
refere-se a medidas mitigadoras e co brasileiro – cerca de 150 UHEs de
compensatórias que irão compor as diversas dimensões estão previstas
condicionantes da LP, que, por sua para serem instaladas na região.
Imagem 1. Estrutura
do processo de 8. Decisão do órgão ambiental competente
licenciamento 7. Análise
ambiental brasileiro, inconclusiva pela
apoiado em avaliação necessidade de Proposta viável Proposta inviável
de impacto ambiental complementação ambientalmente e ambientalmente e
completa, até a decisão dos estudos e/ou emissão da licença negativa da licença
sobre a licença prévia. oitivas prévia prévia
Elaboração dos autores.
Qualidade ambiental
Imagem 3. Situação
do licenciamento Licença de
Licença prévia
ambiental das usinas Empreendi- Órgão instalação Licença de
Localização
hidrelétricas da sub- mento licenciador operação
EIA/ PBA/
-bacia do rio Teles Pires. TR AP AF AF
Rima PCA
Elaboração dos autores,
jul. 2014. Instituto MT e PA X X X X
Brasileiro do
Meio Ambiente
UHE São
e dos Recursos
Manoel
Naturais
Renováveis
(Ibama)
Legenda
UHE - Usina hidrelétrica Ibama MT e PA X X X X X X
TR - Termo de referência UHE Teles
aprovado Pires
EIA/Rima - Estudo de
impacto ambiental e Secretaria de MT X X X X X
relatório de impacto Estado de Meio
ambiental UHE Sinop Ambiente de
AP - Audiência pública Mato Grosso
AF - Análise final (Sema/MT)
PBA - Projeto básico Sema/MT MT X X X X X X
ambiental UHE
PCA - Plano de controle Colíder
ambiental
Imagem 4. Atuação do
Ministério Público no - Usinas hidrelétricas (UHEs) de Sinop, Colíder e Magessi. Licenciamento estadual
irregular. Liminar concedida e suspensa. Decisão de mérito pela improcedência.
licenciamento ambien-
tal de usinas hidrelétri- Sinop - UHE Sinop. Descumprimento das condicionantes da licença prévia (LP). Sus-
pensão da licença de instalação (LI). (Liminar concedida e mantida pelo relator do
cas na sub-bacia do rio Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF-1) em sede de agravo de instru-
Teles Pires. Elaboração mento. Aguardando julgamento da segunda turma do TRF-1.
dos autores.
O
financiamento da usina hi- indicando tendências que parecem 1. O presente artigo é
uma versão traduzida
drelétrica (UHE) de Belo Mon- se repetir com os projetos de barra-
e adaptada de Rojas
te, no rio Xingu, por meio de gens na bacia do Tapajós. & Millikan (2014). Ver
Procuramos, neste texto, apontar também Millikan &
um conjunto de empréstimos que
Rojas (2015).
somam R$ 25,4 bilhões, é a maior questões-chave que possam subsi-
operação já aprovada para um úni- diar discussões sobre a atuação do
co empreendimento na história do BNDES como instituição financeira
Banco Nacional de Desenvolvimen- pública, especialmente no que diz
to Econômico e Social (BNDES). respeito a suas limitações e às mu-
Este artigo tem por objetivo ana- danças necessárias em suas políticas
lisar o envolvimento do BNDES de transparência e responsabilidade
com empreendimentos voltados socioambiental. O debate é premen-
ao aproveitamento hidrelétrico da te, já que novos e vultosos investi-
Amazônia brasileira, recuperando mentos do BNDES no setor hidrelé-
informações sobre o caso Belo Mon- trico estão no horizonte. Conforme
te – em especial, em torno das re- recentemente divulgado pelo ban-
lações entre o banco, organizações co, sua perspectiva de investimento
da sociedade civil e outros sujeitos no setor elétrico brasileiro para o
envolvidos no processo, por ocasião período de 2015 a 2018 é de R$ 192,2
da análise, aprovação e contratação bilhões, considerando-se projetos a
de empréstimos, assim como do serem finalizados até 2022 (Brasil,
monitoramento e fiscalização da Banco Nacional de Desenvolvimen-
execução do empreendimento – e to Econômico e Social, 2014: 97).
183
Essa estimativa tem por base os lei- [BNDES Participações S.A.]. Dentro
lões de geração e transmissão de do governo, há gestões também
energia já realizados, bem como as para que o InfraBrasil, fundo que
indicações do planejamento realiza- reúne recursos do próprio BNDES
do pela Empresa de Pesquisa Ener- e de fundações, como Previ [Caixa
gética (EPE) da expansão da geração de Previdência dos Funcionários do
e da transmissão de energia elétri- Banco do Brasil] e Funcef [Fundação
ca para o horizonte decenal. […] dos Economiários Federais], partici-
O destaque é a geração de energia pe dos grupos vencedores dos leilões
elétrica, cujos investimentos foram (Governo, 2011).
estimados em R$ 118,8 bilhões, en-
tre os quais R$ 56,3 bilhões referentes Os primeiros contratos entre o
a empreendimentos hidrelétricos, sendo BNDES e empreendedores ligados
mais da metade já contratada por aos barramentos na bacia do Tapa-
leilões públicos (Idem, grifo nosso). jós viriam entre o fim de agosto e
o começo de setembro do mesmo
Nesse quadro, destacam-se as ano, totalizando R$ 84,4 milhões,
barragens na bacia do Tapajós. Em destinados à implantação de cin-
meados de 2011, a participação des- co pequenas centrais hidrelétricas
2. As informações
sobre esses e os demais tacada do BNDES nos empreendi- (PCHs) na bacia do rio Juruena (ver
contratos relacionados mentos hidrelétricos planejados tabela 1)2. Ainda em dezembro de
à bacia do Tapajós
apresentadas aqui para a bacia do Tapajós já estava em 2011, a Companhia Hidrelétrica Te-
foram obtidas através pauta. À época, baseando-se em um les Pires (CHTP), a cargo da implan-
do sistema de consulta
às operações do BNDES.
“relatório reservado” e referindo-se tação da UHE Teles Pires, no rio de
Disponível em: <http:// à bacia do Tapajós, o Grupo de Es- mesmo nome, receberia do banco
www.bndes.gov.br/ tudos do Setor Elétrico do Instituto um “empréstimo-ponte” no valor
SiteBNDES/bndes/
bndes_pt/Institucional/ de Economia da Universidade Fede- de R$ 450 milhões, antecedendo
BNDES_Transparente/ ral do Rio de Janeiro (Gesel/IE/UFRJ) os contratos principais, que seriam
Consulta_as_
operacoes_do_BNDES/
observou: celebrados em setembro do ano
planilhas_operacoes_ seguinte, totalizando aproximada-
diretas_e_indiretas_
Com relação ao BNDES, o banco de- mente mais R$ 2,4 bilhões.
nao_automaticas.
html> (acesso: 18 dez. verá entrar na operação com dupla Já em abril de 2013, a Inxu Gera-
2014). Note-se que missão. De um lado, financiará até dora e Comercializadora de Energia
não constam, ali,
informações sobre
60% dos investimentos previstos Elétrica S.A. firmaria contrato com
projetos em análise. para a construção das usinas; do ou- o BNDES no valor de aproximada-
tro, participará como acionista dos mente R$ 99,5 milhões, destinados
consórcios por meio da BNDESPar à PCH Inxu, também na sub-bacia
Indireta não
Telegráfica Energia S.A. PCH Telegráfica 13.000.000,00 01/09/2011
automática
Indireta não
Sapezal Energia S.A. PCH Sapezal 7.350.000,00 01/09/2011
automática
Indireta não
Parecis Energia S.A. PCH Parecis 6.500.000,00 01/09/2011
automática
Indireta não
Rondon Energia S.A. PCH Rondon 6.000.000,00 01/09/2011
automática
Companhia Hidrelétrica
UHE Teles Pires 450.000,00 14/12/2011 Direta
Teles Pires
Companhia Hidrelétrica
UHE Teles Pires 1.212.000,00 27/09/2012 Direta
Teles Pires
Inxu Geradora e
Comercializadora de PCH Inxu 99.560.220,00 05/04/2013 Direta
Energia Elétrica S.A.
Copel Geração e
UHE Colíder 1.041.155.000,00 04/12/2013 Direta
Transmissão S.A.
Elaboração dos autores, 2014. Fonte: Sistema de consulta às operações do BNDES. Disponível em:
<http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes_pt/Institucional/BNDES_Transparente/
Consulta_as_operacoes_do_BNDES/planilhas_operacoes_diretas_e_indiretas_nao_automaticas.
html> (acesso: 18 dez. 2014). Note-se que o sistema não apresenta informações sobre projetos
em análise. Sabe-se que o BNDES aprovou empréstimo para a UHE Sinop, no rio Teles Pires, mas
informações a esse respeito não constam no sistema de consulta.
“O
debate sobre Belo Monte Não está no escopo deste artigo
parece uma discussão so- analisar o texto de Moreira Leite –
bre meio ambiente. Não aliás, pródigo em motivos discur-
é. A questão envolve nosso desen- sivos conhecidos, como a paranoia
volvimento e o bem-estar da popu- da ameaça à soberania nacional. O
lação, em especial a mais humilde”, que se pretende é indicar como par-
escreveu o jornalista Paulo Morei- te significativa da cobertura jorna-
ra Leite, em sua coluna no sítio da lística acerca dos aproveitamentos
revista IstoÉ (Moreira Leite, 2013). hidrelétricos (AHEs) na Amazônia,
“Faça um teste de sinceridade: an- mais especificamente, aqueles si-
tes de seguir a leitura deste texto, tuados na bacia hidrográfica do Ta-
desligue o computador por um mi- pajós, contribui para a reverberação
nuto e, no escuro, tente adivinhar das construções discursivas oficiais
qual o tema em discussão”, provoca. e para o apagamento do dissenso.
Sustenta, com isso, que a não cons- Tais construções articulam-se em
trução da usina hidrelétrica (UHE) torno de expressões como “cresci-
acarretaria “apagão”, encarecimen- mento”, “desenvolvimento”, “inte-
to da tarifa de energia (“Neste exer- resse nacional”, “técnica”, que com-
cício interativo, é só multiplicar portam sentidos diversos, mas cuja
sua conta de luz por seis para se ter definição não é efetivamente expli-
uma ideia do que estamos falando”) citada – nem oficialmente, nem nos
e, no limite, “a regressão forçada à espaços da imprensa que as fazem
vela e à lamparina”. circular mais amplamente, como
211
veremos. Desse modo, a aura de analisados, para debater a reverbe-
positividade que essas expressões ração do discurso hegemônico a res-
carregam, e que foi historicamente peito das barragens e a caracteriza-
construída, torna a argumentação ção efetuada por tais veículos acerca
crítica a aspectos da construção de do campo crítico aos empreendi-
barragens na Amazônia uma difícil mentos. Nas três seguintes, debru-
tarefa, pois não somente implica de- çamo-nos, em cada uma delas, sobre
fender argumentos, como demanda um tipo de periódico (tratando, res-
deslindar os pressupostos do campo pectivamente, do Valor, CanalEnergia,
a que se contrapõe. O Estado de S. Paulo e os três jornais
Para compor o universo de aná- locais tomados em conjunto).
lise, selecionamos um jornal diário
de circulação nacional (O Estado de S. Tudo pelo “interesse nacional” –
1. As expressões de
busca utilizadas
Paulo), um veículo também diário e menos o debate, a pluralidade ou
para a realização de abrangência nacional mas espe- a história
da pesquisa nesses
cializado em jornalismo econômico No Plano Decenal de Expansão de
veículos consistiram
na articulação (Valor Econômico), um portal de no- Energia (PDE) para o período de 2011
de termos mais tícias dedicado exclusivamente ao a 2020, elaborado pelo Ministério de
abrangentes, como
barragem, hidrelétrica, setor energético (CanalEnergia) e três Minas e Energia (MME) e pela Empre-
UHE e usina, com a jornais de alcance local, baseados sa de Pesquisa Energética (EPE), lê-se
designação de projetos
em Santarém (Pará) (Gazeta de Santa- que a justificativa para a construção
previstos ou em curso
na região, nomeados rém, O Estado do Tapajós e O Impacto). de um conjunto de projetos hidrelé-
a partir de rios ou Como se almejava uma análise emi- tricos e linhas de transmissão, para
lugares. Compuseram
as expressões buscadas nentemente qualitativa, o recorte a expansão da produção de petróleo
os seguintes nomes: temporal foi definido em função e gás natural, assim como da ma-
Cachoeira do Caí,
das possibilidades técnicas de busca lha de gasodutos, e para o aumento
Cachoeira dos Patos,
Chacorão, Colíder, Foz junto a cada veículo. Os jornais lo- da produção de biocombustíveis é
de Apiacás, Jamanxim, cais mostraram-se particularmente “atender ao crescimento da deman-
Jardim do Ouro, Jatobá,
Juruena, Santo Augusto limitados nesse sentido, oferecendo da e à necessidade de infraestrutura
Baixo, São Luiz do acesso apenas ao último ou aos dois para o desenvolvimento” (Brasil, Mi-
Tapajós, São Manoel,
São Simão Alto, Sinop,
últimos anos de cobertura indexa- nistério de Minas e Energia, Empre-
Tapajós e Teles Pires. da. Considerando-se todos os veícu- sa de Pesquisa Energética, 2011: 319,
Foram analisados 62
los, foram pesquisadas edições que grifo nosso). Note-se que “desenvol-
textos de O Estado de S.
Paulo, 177 do Valor, 179 circularam entre o final de 2009 e o vimento” – sem adjetivos, intransiti-
do CanalEnergia, 39 da começo de 20141. Nas duas primei- vo – é representado no discurso do
Gazeta de Santarém, 46
de O Estado do Tapajós
ras seções do artigo, apresentamos órgão de governo como uma meta
e 40 de O Impacto. exemplos dos diferentes veículos que prescinde de justificativas. O
Imagem 2. Menino
munduruku. Por Fábio
Nascimento, set. 2014.
O
Poder Judiciário tem se cons- do de impacto ambiental (EIA); não
tituído como importante elaboração ou irregularidade do es-
campo de disputa em torno tudo de componente indígena (ECI);
da legalidade dos megaprojetos na ausência de consulta prévia, livre
1. Há discussão em
Amazônia brasileira. Apesar de con- e informada aos povos indígenas e nível teórico e nos
tarmos com um sistema jurídico comunidades tradicionais possivel- tribunais sobre a
natureza jurídica da
que, em tese, atende às necessidades mente impactados; e nulidade das
suspensão de liminar,
de prestação jurisdicional pela ga- licenças concedidas. se é um recurso
rantia de direitos, ele tem sido alvo Ocorre que a discussão da lega- jurídico, assim derivado
do direito ao duplo
de investidas de distintos atores in- lidade desses projetos no âmbito grau de jurisdição,
teressados no modelo de desenvolvi- do Judiciário – ou seja, o debate de ou se é um incidente
processual com efeitos
mento econômico imposto pelo Es- mérito – vem sendo prejudicada pelo
de contracautela, que
tado e por grandes grupos privados. uso da suspensão de liminar, instru- se diferencia do recurso
No caso das grandes usinas hi- mento judicial que permite suspen- pela peculiaridade de
não discutir o mérito
drelétricas (UHEs) planejadas para der decisões e sentenças contrárias da ação, tendo apenas
a bacia do rio Tapajós (Teles Pires, ao poder público quando estejam efeito de sustação da
liminar concedida
São Manoel e São Luiz do Tapajós, presentes os motivos políticos ense-
quando identificados
por exemplo), somente o Ministério jadores, quais sejam evitar “lesão à os critérios dispostos
Público Federal (MPF) apresentou, ordem pública” e “lesão à economia pela lei. Tal discussão
não é objeto deste
até novembro de 2014, 14 ações judi- pública”, sem que o assunto de fun- artigo, de forma que
ciais questionando aspectos cruciais do seja debatido1. nos reservamos a
tratar a suspensão de
do licenciamento ambiental, em Tomando como universo essas 14 liminar como instituto
especial: vícios e carências do estu- ações propostas, este artigo tem por processual.
247
2. A suspensão de fim o estudo das decisões judiciais empresas de capital privado – como
liminar e a suspensão
em suspensão de liminar. Em um a mineradora Vale S.A., no caso da
de segurança (SS)
se equivalem em primeiro momento, analisaremos duplicação da Estrada de Ferro Ca-
procedimento e como os juízes definem os termos rajás – fizessem uso do recurso, sob
finalidade. No entanto,
a segunda se aplica “lesão à ordem pública” e “lesão à o argumento de que prestariam ser-
especificamente às economia pública”, identificando-se viços de “interesse público” (Brasil,
decisões em mandado
um padrão nas definições. Em se- Justiça Federal, Tribunal Regional
de segurança, conforme
previsto no artigo 15 guida, tais definições serão proble- Federal da Primeira Região, 2013b)4.
da Lei nº12.016/2009. matizadas, considerando sua reper- Enquanto decisões comuns perma-
| N.E. Ver ainda, neste
volume, “A suspensão cussão para a garantia de direitos necem válidas até que sobrevenha
de segurança: peixe e da legalidade do licenciamento nova decisão (provisória ou definiti-
fora d’água diante
ambiental de grandes barragens no va), a decisão em SLAT perdura até
da Constituição
democrática”, de Flávia Brasil. que o processo principal tenha uma
Baracho Trindade et al. sentença de caráter irrecorrível (Lei
Suspensão de liminar e nº8.437/1992, artigo 4º, § 9º).
antecipação de tutela Essas características tornam
A suspensão de liminar e antecipa- a SLAT um fator de desequilíbrio
ção de tutela (SLAT)2 é um instru- processual em favor do Estado. Ve-
mento judicial que permite ao pre- jamos sua aplicação nos processos
3. “Art. 4º Compete sidente de um tribunal suspender a referentes às UHEs previstas para
ao presidente do
execução de sentenças e liminares a bacia do Tapajós. Do total de 14
tribunal, ao qual
couber o conhecimento assinadas por juízes de instância ações propostas, 12 tiveram decisões
do respectivo inferior para evitar “grave lesão à liminares, das quais nove foram fa-
recurso, suspender,
em despacho ordem, à saúde, à segurança e à eco- voráveis ao MPF5. Isso significa que
fundamentado, a nomia públicas” (Lei nº8.437/1992, em 75% das ações decididas, o Poder
execução da liminar
artigo 4º)3. Judiciário reconheceu que o licen-
nas ações movidas
contra o Poder Público Diferentemente dos instrumen- ciamento desrespeitou as leis brasi-
ou seus agentes, a tos processuais comuns, que podem leiras. Essas decisões determinaram
requerimento do
Ministério Público ser manejados por qualquer parte a suspensão do licenciamento – ou
ou da pessoa jurídica do processo, a SLAT só pode ser uti- da obra, conforme o caso – até que
de direito público
interessada, em caso
lizada por pessoa jurídica de direito a ilegalidade fosse corrigida. No en-
de manifesto interesse público (União, estados, municípios, tanto, nenhuma delas chegou a ser
público ou de flagrante autarquias e fundações públicas) aplicada, pois foram suspensas via
ilegitimidade, e para
evitar grave lesão e pelo Ministério Público. Embora SLAT, sem qualquer alteração quan-
à ordem, à saúde, à a lei só preveja esses dois casos de to à ilegalidade.
segurança e à economia
públicas.”
legitimidade ativa, os tribunais brasi- Outro importante indicador prá-
leiros admitiram recentemente que tico de desequilíbrio processual é a
E
m um contexto nacional pauta- Não há dúvidas de que a constru-
do por incentivos econômicos e ção de obras desse porte no bioma
políticos para a construção de amazônico traz reflexos ambien-
grandes obras, no marco do Progra- tais altamente preocupantes, que
ma de Aceleração do Crescimento deveriam ter sido minuciosamente
(PAC), do Plano Nacional de Ener- analisados e levados em conside-
gia (PNE) e do Plano Decenal de Ex- ração antes mesmo de se cogitar a
pansão de Energia (PDE), surgem elaboração dos planos e programas
inúmeras preocupações acerca dos mencionados. Não obstante, não
impactos e potenciais danos que está no escopo deste artigo aden-
tais empreendimentos podem oca- trar as questões ambientais e anali-
sionar, tanto no plano ambiental sar a viabilidade de fontes alterna-
quanto em relação aos princípios tivas. O que se pretende é analisar
básicos da dignidade humana. o comprometimento político do Ju-
Dentre os empreendimentos diciário no planejamento e licencia-
planejados e os que já estão sendo mento dessas obras, focando, espe-
1. N.E. Ver ainda, neste
construídos, destaca-se uma série de cialmente, a falta de celeridade e a volume, “Suspensão
grandes obras na bacia hidrográfica utilização do instituto da suspensão de liminar e usinas
hidrelétricas: a
do Tapajós, tais como as usinas hi- de segurança (SS)1.
flexibilização do
drelétricas (UHEs) de São Luiz do Ta- De forma bastante simplificada, licenciamento
pajós, Jatobá, Chacorão, Jamanxim, é importante esclarecer que a rea- ambiental por via
judicial”, de Rodrigo
Cachoeira do Caí, Colíder, Teles Pi- lização de tais obras não prescinde Oliveira e Flávia do
res, São Manoel e São Simão Alto. da concessão de licenças ambien- Amaral Vieira.
257
tais por parte do poder público. A ráveis às ações propostas pelo Mi-
concessão de tais licenças está – nistério Público, a Advocacia-Geral
ou deveria estar – subordinada ao da União (AGU) e as instituições de
preenchimento de requisitos, den- direito público vêm se utilizando,
tre eles o respeito à legislação bra- de forma política, do instituto da
sileira referente ao meio ambiente. SS, visando esvaziar a eficácia das
Ao mesmo tempo, deveria se pau- decisões que determinaram a sus-
tar por pareceres e recomendações pensão das obras, de forma a dar
imparciais elaborados por órgãos continuidade a elas até o término
como o Instituto Brasileiro do Meio do processo que busca averiguar as
Ambiente e dos Recursos Naturais violações alegadas. Agindo assim,
Renováveis (Ibama), o Instituto do procuram obstaculizar por comple-
Patrimônio Histórico e Artístico to a garantia do acesso à justiça.
Nacional (Iphan) e a Fundação Na- É justamente nesse ponto que se
cional do Índio (Funai). Entretanto, tem observado a falta de compro-
em inúmeros casos, isso não vem metimento do Poder Judiciário (ao
sendo observado. Como relatado menos das instâncias superiores)
nas ações judiciais que questionam com a questão, uma vez que, não
tais empreendimentos, várias licen- obstante saltarem aos olhos as ile-
ças ambientais têm sido aprovadas galidades que permeiam as obras,
sob pressão política, em flagran- a SS vem sendo concedida pelos
te descumprimento à legislação membros dos tribunais superiores,
brasileira. priorizando-se a continuidade das
Nesse panorama, o Ministério obras e aspectos econômicos em de-
Público vem propondo inúmeras trimento das questões ambientais e
ações com o intuito de frear as vio- dos direitos humanos.
lações à legislação ambiental. Pro- Os casos das UHEs Teles Pires e
postas as ações, cabe ao Poder Judi- São Manoel, que serão melhor abor-
ciário exercer corretamente as suas dados oportunamente, são típicos
funções, averiguando de forma céle- exemplos dessa situação, na medida
re a existência ou não de violações em que, em ambos, é patente a vio-
no caso concreto e, em caso positi- lação da legislação ambiental. Tanto
vo, determinando a cessação da ile- é assim, que foram ordenadas a pa-
galidade constatada. Alguns juízes ralisação das obras de Teles Pires e a
proferiram decisões determinando suspensão do leilão de São Manoel.
a suspensão de diversas obras. Ocor- Mas, não obstante, a utilização polí-
re que, diante de tais decisões favo- tica e indevida da SS proporcionou
§ 5º As liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas em uma única
decisão, podendo o presidente do tribunal estender os efeitos da suspensão a
liminares supervenientes, mediante simples aditamento do pedido original.
(habeas data)
nº9.507/1997
§ 8º As liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas em uma única
decisão, podendo o Presidente do Tribunal estender os efeitos da suspensão a
liminares supervenientes, mediante simples aditamento do pedido original. (Incluído
pela Medida Provisória nº2.180-35, de 2001)
Art. 25. Salvo quando a causa tiver por fundamento matéria constitucional, compete
ao Presidente do Superior Tribunal de Justiça, a requerimento do Procurador-Geral
Supremo Tribunal Federal – STF e Superior
quando este não for o requerente, em igual prazo. (Redação dada pela Emenda
Regimental nº1, de 1991)
§ 2º Da decisão a que se refere este artigo caberá agravo regimental, no prazo de cinco
dias, para a Corte Especial. (Redação dada pela Emenda Regimental nº12, de 2010)
Art. 12. Poderá o juiz conceder mandado liminar, com ou sem justificação prévia, em
decisão sujeita a agravo.
julgado da decisão favorável ao autor, mas será devida desde o dia em que se houver
configurado o descumprimento.
ao Município.
Provido
Liminar/
execução Agravo
(§ 3º, art. 14) SS para o
Imagem 1. Estrutura Improvido tribunal superior
processual referente (§ 2º, art. 15) (§ 1º, art. 15)
à utilização do
mandado de segurança. Provido SS para o tri-
bunal superior
Elaboração dos autores. (§ 1º, art. 15)
Concessória Deferida Agravo
Suspensão de (art. 15)
segurança - SS Improvido
Sentença
(art. 15)
Indeferida
Denegatória (§ 1º, art. 15) SS para o tribu-
Petição inicial nal superior
deferida Apelação (§ 1º, art. 15)
Se houver limi-
Mandado de nar, cabe agravo
segurança de instrumento
(§ 1º, art. 7º)
Apelação
Petição inicial
indeferida Cabe apelação
ao agravo
(§ 1º, art. 10)
B
rasil, Amazônia, estado do Este artigo tratará do projeto de
Pará. O governo federal dá construção da usina hidrelétrica
início aos trabalhos para cons- (UHE) de São Luiz do Tapajós. Ao
truir um complexo hidrelétrico de que tudo indica, o processo repete
grande porte em um dos maiores os vícios que se fizeram presentes
afluentes do rio Amazonas. Movi- em Belo Monte, sobretudo a ausên-
mentos sociais, sociedade local, cia de consulta aos povos interes-
organizações não governamentais, sados. No entanto, após constantes
comunidade acadêmica e Ministé- mobilizações dos povos indígenas,
rio Público alertam para debilida- em especial dos Munduruku, e de
des nos estudos técnicos e para os parciais vitórias junto ao Poder Judi-
graves impactos socioambientais ciário, o governo federal deu início
que o projeto acarretaria. Povos in- ao processo de consulta prévia, livre
dígenas serão os principais impac- e informada em março de 2013.
tados pelo empreendimento, que Buscaremos discutir se essa con-
ameaça suas atividades tradicio- sulta reúne as condições mínimas
nais, como pesca, caça e transporte para que seja considerada prévia,
fluvial. A despeito disso, o licen- livre, informada e de boa-fé, como
ciamento tem início sem consulta determinam os padrões interna-
prévia, livre e informada, como cionais. O objetivo é concluir se o
manda a Convenção 169 da Orga- caso representa um divisor de águas
nização Internacional do Trabalho na relação entre Estado e povos in-
(OIT). dígenas no cenário da construção
277
1. Processo nº3883- de grandes projetos ou se apenas Várias fases do planejamento e do
98.2012.4.01.3902. reproduz erros do passado, sem licenciamento ambiental da usina
2. “[…] Art. 1º - possibilitar a real participação dos foram ultrapassadas sem que os po-
Indicar os seguintes indígenas. vos interessados fossem consulta-
Aproveitamentos
Hidrelétricos [AHE] dos. Os estudos de inventário foram
como projetos de Antecedentes do processo realizados entre os anos de 2006 e
geração de energia
de consulta: a mobilização 2008, sem sequer indicar as terras
elétrica estratégicos,
de interesse público, Munduruku e a atuação judicial indígenas (TIs) afetadas. Em maio de
estruturantes e com do Ministério Público Federal 2011, o Conselho Nacional de Políti-
prioridade de licitação e
implantação: O Ministério Público Federal (MPF) ca Energética (CNPE) editou a Reso-
I - AHE São Luiz do ingressou em 2012 com uma ação ci- lução nº3, que determina a adoção
Tapajós, localizado no
vil pública (ACP) contra o Instituto de providências para a implantação
Rio Tapajós, Estado do
Pará; Brasileiro do Meio Ambiente e dos da UHE São Luiz do Tapajós2.
II - AHE Jatobá, Recursos Naturais Renováveis (Iba- Os estudos iniciais apontaram as
localizado no Rio
Tapajós, Estado do Pará; ma), Agência Nacional de Energia unidades de conservação (UCs) que
III - AHE Jardim do Elétrica (Aneel), Centrais Elétricas seriam afetadas pelos reservatórios
Ouro, localizado no Rio
Jamanxim, Estado do
Brasileiras S.A. (Eletrobras) e Cen- das usinas planejadas para a bacia
Pará; e trais Elétricas do Norte do Brasil do Tapajós. Nesse quadro, a solução
IV - AHE Chacorão,
S.A. (Eletronorte), com o intuito de encontrada pelo governo federal
localizado no Rio
Tapajós, Estados do suspender o licenciamento da UHE foi reduzir os limites das UCs – al-
Amazonas e Pará. São Luiz do Tapajós1, primeira hi- gumas contíguas a TIs – através da
Art. 2º - Determinar
que sejam adotadas
drelétrica a ser construída no rio Medida Provisória (MP) nº558/20123,
todas as providências, Tapajós, tendo potência nominal ato contestado pelo MPF no Supre-
no âmbito do Poder
estimada oficialmente em 8.040 mo Tribunal Federal (STF)4.
Executivo Federal, a fim
de concluir os estudos megawatts e área de inundação de Diante das notícias em veículos
necessários para a 722 quilômetros quadrados. A ação de imprensa relatando as preten-
licitação e implantação
dos mencionados questiona, dentre outras ilegalida- sões do governo federal de iniciar
Aproveitamentos des, a falta de consulta prévia, livre os estudos para a construção da
Hidrelétricos.
e informada aos povos indígenas e UHE São Luiz do Tapajós, os povos
Art. 3º - Fica assegurado
que os custos populações tradicionais indígenas na região, especificamen-
relativos à eventual te os Munduruku, divulgaram carta
construção de obras
de navegabilidade, localizados na área de influência do pública, em 24 de fevereiro de 2012,
bem como os custos de empreendimento São Luiz do Tapa- solicitando reunião com o Ministé-
operação e manutenção
jós e afetados pelas medidas admi- rio de Minas e Energia (MME):
das instalações
associadas não serão nistrativas e legislativas já execu-
imputados ao vencedor tadas no âmbito do licenciamento Nós indígenas Munduruku não en-
da licitação
ambiental. tendemos o que é hidrelétrica, quais
E
ste artigo tem por intuito de- pulacional que habita os centros
monstrar que a construção da urbanos sem condições dignas de
usina hidrelétrica (UHE) de São moradia, saúde e educação, dentre
Luiz do Tapajós causará, a um só outros serviços públicos. Isso, se
tempo, a inundação significativa de sobreviverem. Algo é induvidoso:
território tradicionalmente ocupa- tanto indígenas quanto ribeirinhos
do e utilizado pelo povo indígena enfrentarão sérias dificuldades de
Munduruku e a violação da Consti- manutenção de seus costumes, há-
tuição Federal de 1988, na medida bitos próprios, organizações sociais
em que seu artigo 231, § 5º, estabe- e modos de subsistência. Perderão,
lece ser vedada a remoção forçada em larga medida, suas autonomias
de povos indígenas de suas terras. e integrarão o já inchado quadro
A propósito, não apenas os de brasileiros que dependem, úni-
Munduruku serão expulsos de seu ca e exclusivamente, de programas
território. Inúmeras outras comu- assistencialistas.
nidades tradicionais amazônicas A UHE São Luiz do Tapajós está
(vulgarmente denominadas de ri- projetada para ser construída no rio
beirinhas), que possuem relação Tapajós, a cerca de 330 quilômetros
de todo intrínseca com a natureza da sua foz, no rio Amazonas. Abran-
circundante, serão diretamente gerá áreas pertencentes aos municí-
impactadas pelo aludido empreen- pios de Itaituba e Trairão, no oeste
dimento e passarão a engrossar, do Pará; o eixo do barramento situa-
forçosamente, o contingente po- -se próximo à vila Pimental, na mar-
293
1. Vale destacar que tais gem direita do Tapajós. O aludido tado com a utilização por parte de
dados são extraídos
aproveitamento hidrelétrico inte- indústrias que já se movimentam
do estudo de impacto
ambiental e do gra o Plano Decenal de Expansão de para se instalar na região próxima
relatório de impacto Energia (PDE) 2021 e compõe, junta- ao empreendimento, o que reforça
ambiental (EIA/Rima)
da UHE. A história mente com outras seis UHEs plane- as suspeitas de que estamos diante
recente – em especial, jadas (Jatobá, Jamanxim, Cachoeira de um inequívoco esforço para in-
o caso do rio Madeira –
do Caí e Cachoeira dos Patos, todas ternalização dos lucros e socialização dos
mostra-nos que quase
sempre esses dados em estudos; Chacorão e Jardim do prejuízos. Em troca, a UHE ocupará
são subestimados. Ouro, inventariadas), o complexo uma área fluvial de 729 quilôme-
Vejamos a cheia que
assolou Rondônia no hidrelétrico do Tapajós (CHT). Sua tros quadrados, dos quais 376 serão
primeiro semestre estrutura física compreenderá bar- de área efetivamente inundada1. O
de 2014. Inúmeros
estudos apontam
ragem, reservatório, casa de força, reservatório se estenderá por 123
que as construções vertedouros e linhas de transmis- quilômetros do rio Tapajós e outros
das UHEs de Jirau e são, além de diversas outras obras, 76 do rio Jamanxim. Segundo espe-
Santo Antônio foram
fatores determinantes provisórias ou definitivas, de in- cialistas, se levado em consideração
para a cheia, que fraestrutura de apoio e de conexão todo o CHT, a área a ser inundada
ganhou repercussão
internacional.
ao sistema interligado nacional equipara-se à dimensão da maior
2. Tais informações (SIN), tais como canteiros de obras, metrópole brasileira, a cidade de
podem ser encontradas acampamentos, acessos ao local do São Paulo, e equivale a duas vezes e
no sítio Barragens na
Amazônia. Disponível empreendimento, acessos internos meia a inundação causada pela UHE
em: <http://dams-info. e outros. Belo Monte, em construção no rio
org/pt> (acesso: 20
Os estudos entregues aos órgãos Xingu, também no Pará2.
fev. 2015). Esse sítio
reúne as principais licenciadores estimam a geração de Pois bem, no caminho da mas-
informações, a partir apenas 4.012 megawatts de ener- sa d’água que restará acumulada
de dados oficiais,
sobre as inúmeras gia firme, isto é, a máxima energia com a construção da UHE São Luiz
UHEs previstas, que pode ser produzida de forma do Tapajós está uma terra indíge-
em planejamento,
continuada, mesmo nos períodos na (TI) de ocupação tradicional da
em construção e
em operação na mais secos do rio. Isso representa- etnia Munduruku: a TI Daje Kapap
Amazônia. Caso haja rá o atendimento de pouco mais E’Ipi (denominada pelos pariwat3 de
curiosidade, basta
que seja selecionada de 5% da suposta demanda ener- Sawré Muybu). Tal afirmação se ex-
a bacia hidrográfica gética nacional, que, segundo es- trai do próprio estudo de impacto
correspondente. No
caso, estamos a tratar
timativas, gira em torno de 70 mil ambiental (EIA) da UHE. A propó-
da bacia hidrográfica megawatts. Detalhe: a expressão sito, a Fundação Nacional do Índio
do Tapajós.
correta é mesmo “suposta”, tendo (Funai), em três pareceres técnicos
3. Pariwat é o termo em vista que há fortes indicativos que avaliam os estudos de viabili-
utilizado pelo povo
Munduruku para se
de que o potencial energético a dade, conclui, enfaticamente, que o
referir ao não índio. ser produzido pela UHE será esgo- empreendimento é inconstitucional,
294 Boaventura
recomendando a suspensão imediata b) Envio de ofício ao Ibama [Instituto 4. Importa destacar
que a imagem aqui
do licenciamento. Vejamos o que ob- Brasileiro do Meio Ambiente e dos
inserida (imagem 1)
serva a Funai: Recursos Naturais Renováveis] infor- não é a mesma que
consta do documento
mando a inviabilidade de análise do
citado. Isso se deve
d) O produto confirma a incidência processo[,] tendo em vista a incons- apenas à necessidade
do empreendimento em terra indí- titucionalidade do projeto face a [à] de maior clareza,
uma vez que o mapa
gena em processo de regularização necessidade de remoção de aldeia[,] utilizado pela autarquia
fundiária e indica a necessidade de conforme já citado (Brasil, Ministé- indigenista apresenta
certas dificuldades de
remoção de aldeia. rio da Justiça, Fundação Nacional do
visualização, muito
Na matriz de impactos do produto Índio, 2014). embora tenha sido
consta: “Necessidade de remaneja- ele o único parâmetro
utilizado.
mento da população indígena da Há de se salientar, de antemão,
aldeia Boa-Fé (Sawré Muybu, Dace que aqui não se está tratando de 5. No documento citado
há pouco, a Funai
Watpu e Karu Bamaybú)” (pp. 235); eventual remoção forçada indireta,
elenca um rol de catorze
Em outro trecho, o estudo afirma em decorrência dos possíveis im- impactos negativos às
que: Diante da possibilidade de im- pactos negativos e irreversíveis no populações indígenas
existentes na área
plementação do empreendimento modo de vida dos indígenas, que de influência do
AHE [aproveitamento hidrelétrico] poderiam ensejar, uma hora ou ou- empreendimento,
sendo seis deles
SLT [São Luiz do Tapajós] os Mundu- tra, o êxodo de seu espaço tradicio-
irreversíveis, mesmo
kuru estão conscientes que a mar- nal5. Cuida a hipótese de remoção que implementadas as
forçada direta, com a inundação mais eficazes medidas
gem direita do rio terá o reservató-
compensatórias ou
rio alcançando as terras deixando significativa do território indígena, mitigatórias. Seriam
inviável a permanência das famílias submergindo-se aldeias, cemitérios, eles: i) geração de
expectativas quanto ao
no local (p. 243); áreas de roça e caça, sítios arqueoló- futuro da população
Os mapas que compõem o produto gicos e lugares sagrados. Basta uma indígena e da região;
ii) aumento do fluxo
(localização de áreas de influência simples leitura da Carta Magna para
migratório para a
do ECI [estudo do componente in- que facilmente se perceba que a re- cidade, interferindo
dígena] – biótico e mapa de des- moção de povos indígenas de suas nas TIs Praia do
Mangue, Praia do
matamento e uso do solo no mé- terras é expressamente vedada: Índio, Sawré Apompu
dio Tapajós) indicam claramente (Km 43) e Sawré Juybu
(São Luiz do Tapajós);
aldeias dentro do reservatório do Art. 231. São reconhecidos aos índios
iii) necessidade de
empreendimento4. sua organização social, costumes, remanejamento da
3. Diante do exposto, sugerimos: línguas, crenças e tradições, e os di- TI Daje Kapap E’Ipi;
iv) aumento das
a) Suspensão do processo de li- reitos originários sobre as terras que transformações em
cenciamento ambiental[,] uma tradicionalmente ocupam, compe- diferentes esferas
da vida: social,
vez que o mesmo apresenta óbice tindo à União demarcá-las, proteger
política, econômica e
constitucional. e fazer respeitar todos os seus bens. cosmológica; v)
296 Boaventura
Imagem 1. Aldeias
indígenas no
reservatório da usina
hidrelétrica de São Luiz
do Tapajós. Adaptada
de Brasil, Ministério
da Justiça, Fundação
Nacional do Índio, 2014.
298 Boaventura
cheio duas etnias, os Parakanã e os eventual argumento de que basta-
Akrãtikatêjê, que ainda hoje encon- ria uma simples transferência das
tram sérias dificuldades de recupe- aldeias para porção territorial mais
ração. Estaríamos, então, aceitando recuada em relação ao curso d’água,
regressar a esse passado sombrio, dentro da mesma TI.
que tão nefastas marcas deixou no Segundo o parecer técnico
país, visíveis ainda hoje? nº04/2014 da lavra do analista peri-
A UHE São Luiz do Tapajós, defi- cial em antropologia do Ministério
nitivamente, não encarna a “sobera- Público da União (MPU) Raphael
nia nacional”. Muito pelo contrário: Frederico Acioli Moreira da Silva,
trata-se de uma obra caríssima, com baseado em dados disponíveis no sí-
resultados pífios em termos de ge- tio eletrônico do Ministério da Saú-
ração de energia, sobretudo quando de (MS),
existem no Brasil meios mais efica-
zes e viáveis de produção energé- os Munduruku possuem uma popu-
tica. A simples repotenciação das lação de 13.243 pessoas, dentre as
turbinas e linhas de transmissão já quais 8.721 estão contabilizadas nas
existentes geraria uma quantia sig- terras indígenas referenciadas pelo
nificativamente maior de energia. Distrito Sanitário Especial Indígena
E o que falar do investimento em (DSEI) Rio Tapajós: TI Munduruku e
fontes alternativas que utilizam re- TI Sai-Cinza (alto Tapajós), TI Sawré
cursos naturais inesgotáveis, como Muybu, TI Sawré Juybu, TI Sawré
o sol e o vento? Apompu, TI Praia do Índio, TI Praia
Vale repisar: no que diz respei- do Mangue e família residente na
to a São Luiz do Tapajós, estamos localidade Tucunaré (médio Tapajós)
a tratar de remoção forçada direta de (Brasil, Ministério Público Federal,
população indígena. Em outras pa- Procuradoria da República no Muni-
lavras, haverá alagamento significa- cípio de Santarém, 2014b).
tivo de território tradicionalmente
ocupado pelos índios, com a expul- A presença histórica do povo
são direta (e não consequente no Munduruku na bacia hidrográfica
decurso do tempo). Somado a isso, do rio Tapajós é tão significativa
conforme visto acima, haverá alte- que Aires de Casal, na primeira me-
ração substancial do ecossistema, tade do século XIX, referia-se à re-
tornando inviável a manutenção do gião como Mundurucânia (Rocha,
povo Munduruku na região, razão 2014). É bem verdade que a TI Daje
pela qual não se sustenta qualquer Kapap E’ipi (Sawré Muybu), até a
300 Boaventura
tóricos, sociológicos, jurídicos, car- costumes e tradições, estando aten-
tográficos, ambientais e fundiários didos, portanto, os critérios estabe-
realizados pela Funai e que carac- lecidos pelo texto constitucional,
terizam e fundamentam a declara- no artigo 231. Entretanto, em cla-
ção da terra como tradicionalmente ra afronta à Constituição, a Funai,
ocupada pelos índios, conforme os confessadamente pressionada por
preceitos constitucionais, apresen- outros setores do governo federal
tando elementos visando à concre- e empreendedores vinculados ao
tização das fases subsequentes à setor elétrico e da construção civil,
regularização total da terra. É com omite-se de seu dever legal e se re-
base nesses estudos, que são apro- cusa a publicar o aludido RCID. Tal
vados pelo/a presidente/a da autar- assertiva acima não decorre de me-
quia indigenista, que a área será de- ras ilações deste autor. Depreende-
clarada (não constituída, repise-se) -se, diretamente, de declarações
de ocupação tradicional pelo grupo prestadas pela ex-presidenta da
indígena a que se refere, por ato do Funai, Maria Augusta Assirati8, e de 8. Vide Brum (2014) e
Aranha (2015).
ministro da Justiça – portaria de- documentos oficiais, como a me-
claratória a ser publicada no Diário mória de uma reunião realizada na
Oficial da União (DOU) –, reconhe- sede da autarquia indigenista em
cendo-se, assim, formal e objetiva- Brasília em 17 de setembro de 2014,
mente, o direito originário indígena que informa que o RCID da TI Daje
sobre uma determinada extensão Kapap E’Ipi (Sawré Muybu) já estava
do território brasileiro. devidamente produzido, mas não
No caso do RCID da TI Daje Ka- fora ainda publicado em virtude tão
pap E’Ipi (Sawré Muybu), importa somente da coincidência geográfica
destacar que o mesmo foi devida- com a área que será eventualmente
mente estruturado nos moldes es- inundada com a construção da UHE
tabelecidos pela Funai por meio da São Luiz do Tapajós.
portaria nº14/1996, e aponta que a Nesse quadro lastimável de vio-
área reivindicada, equivalente a lação de direitos e em virtude da
178.173 hectares e com perímetro insegurança jurídica cujos ônus
aproximado de 232 quilômetros, estavam sendo suportados exclu-
é de ocupação tradicional da etnia sivamente pelos índios (haja vista
Munduruku e reúne as condições toda sorte de vilipêndios à higidez
necessárias e indispensáveis à repro- de seu território), o Ministério Pú-
dução física e cultural desse grupo blico Federal (MPF) viu-se obrigado
indígena, de acordo com seus usos, a apresentar, em maio de 2014, pe-
302 Boaventura
inversão de valores no Estado bra- nutenção da vida do grupo. A esse 10. Na decisão
sileiro. Afinal, não cabe à autarquia propósito, vários laudos antropoló- que determinou
a suspensão, o
indigenista o dever legal de delimi- gicos dão conta da vital importân- desembargador
tar territórios indígenas? Por que cia do território compreendido pela federal trouxe,
como fundamento
razão suplantar as leis, em especial TI Daje Kapap E’Ipi (Sawré Muybu) primacial, limitação de
a Constituição Federal de 1988, e para todo o povo Munduruku que cunho orçamentário.
Entendeu que a decisão
condicionar um direito absoluto a habita a calha do rio Tapajós. A
do juízo federal de
interesses e atores estranhos ao pro- título de exemplo, destaque-se o primeira instância
cedimento normatizado? Só mesmo parecer técnico nº01/2014 elabora- teria determinado
extrusão de terceiros
em um país onde as leis são descar- do pelo analista pericial em antro- e indenização de
táveis um direito constitucional- pologia do MPF Raphael Frederico eventuais posseiros
de boa-fé. Não se
mente assegurado é simplesmente Acioli:
apercebeu o relator
negligenciado face à ingerência de de que a decisão
interesses políticos e econômicos. Para os Munduruku, a existência suspendida apenas
determinava que
Esse quadro causa espanto e estar- humana se faz possível graças ao a Funai cumprisse
recimento àqueles que confiam nas funcionamento de uma delicada o prazo legal e
concluísse a primeira
leis e na justa e necessária luta pelo teia de interdependências entre hu-
fase do processo de
reconhecimento de direitos. manidade e natureza, mediada por demarcação, qual
Cansado de esperar o cumpri- espíritos protetores de espécies ve- seja a delimitação,
que, por óbvio, não
mento do dever legal do Estado, o getais e animais, conhecidos como enseja qualquer
povo Munduruku se lançou em uma Mães, da Caça, da Pesca, e outras. As gasto público. Ao
contrário, desperdício
empreitada inédita e que certamen- antigas expedições guerreiras pelas
de recursos públicos
te será lembrada na história indi- quais se tornaram conhecidos no ocorre na medida em
genista e fundiária do país: estão passado, em que capturavam e mu- que um documento
produzido por técnicos
fazendo a autodemarcação de seu mificavam as cabeças dos inimigos, da autarquia, que
território, seguindo como parâme- tinham como objetivo justamente necessariamente
receberam diárias
tro justamente o RCID que aguarda agradar esses espíritos, por meio
para se deslocarem
apenas o ato formal de publicação. do qual garantiam a abundância à área, permanece
indevidamente
Com esse expediente, querem eli- alimentar (fl. 103 dos autos do ICP
“engavetado”.
minar qualquer dúvida de que o ter- nº1.23.002.000546/2013-13). Mesmo
ritório reivindicado é de ocupação com o fim das guerras tribais, esse
tradicional munduruku e garantir princípio de interdependência per-
a proteção territorial que caberia manece vivo na cultura Munduru-
à Funai realizar. Simultaneamente, ku, e o risco da escassez de recursos
afirmam: não abrimos mão de nos- naturais devido às pressões sofridas
sas terras! Mais: ratificam que o ter- em seu território pode significar da-
ritório é meio indispensável à ma- nos incalculáveis para as condições
304 Boaventura
com as comunidades tradicionais há de se perguntar: os pareceres da
que serão diretamente impactadas Funai mencionados neste artigo
pelo empreendimento? Estaria o seriam simplesmente desconsidera-
MME utilizando bola de cristal e an- dos? Seria o “acordo” mencionado
tevendo o resultado das avaliações por Carvalho hierarquicamente su-
técnicas dos órgãos competentes? perior à lei suprema do país? Onde
Estaria o MME pressupondo que fica a hierarquia no ordenamento
haveria mero e fácil consentimen- jurídico brasileiro? Seria o caso de
to das comunidades tradicionais revermos todas as bases hermenêu-
impactadas? ticas de compreensão normativa?
Em entrevista concedida em no- Além de ter em mente o óbice
vembro de 2014, o então ministro- constitucional acima estudado –
-chefe da SGP/PR, Gilberto Carva- que, destaque-se, é intransponível
lho, declarou que o governo federal –, faz-se necessário e urgente que
não abriria mão de construir as hi- as instituições (Poder Executivo Fe-
drelétricas no Tapajós (Fellet, 2014). deral, Poder Judiciário e Ministério
Já em 2015, em entrevista ao jornal Público) e a sociedade brasileira
O Estado de S. Paulo, o presidente das como um todo reflitam sobre a UHE
Centrais Elétricas Brasileiras S.A. São Luiz do Tapajós, considerando
(Eletrobras), José da Costa Carvalho, quatro vertentes: ambiental, social,
afirmou que estava sendo “costura- econômica e de geração de energia,
do” um “acordo” interinstitucional propriamente dita. Seria ambien-
entre a estatal, a Funai e o Ibama, talmente viável uma obra que cer-
para que a UHE São Luiz do Tapa- tamente colocaria em extremado
jós recebesse as licenças ambien- risco um ecossistema de altíssima
tais o mais rápido possível e que o relevância mundial e indispensável
leilão fosse realizado ainda no pri- à manutenção da espécie humana,
meiro semestre de 2015 (Acordo, a Amazônia? Seria socialmente viá-
2015). Isso nos leva a um prognós- vel uma obra que impactaria nega-
tico: mais uma vez a Constituição tivamente e de forma significativa,
Federal de 1988 será considerada definitiva e irreversível, inúmeras
letra morta em virtude da sanha de populações tradicionais amazôni-
concretizar um empreendimento cas, alterando drasticamente seus
“desenvolvimentista”. Para os em- modos de vida, inclusive de uma
preendedores, não importa se ele numerosa etnia indígena, o povo
é viável ou constitucional; importa Munduruku, que corre o risco de so-
que ele tem que sair. Diante disso, frer um verdadeiro etnocídio? Seria
306 Boaventura
2014. Ação civil pública nº1258- ponível em: <http://www.cimi.
05.2014.4.01.3908. Santarém, 21 org.br/site/pt-br/index.php?syste
maio. m=news&action=read&id=7970>
___. 2014a. Parecer nº01/2014/ (acesso: 20 fev. 2015).
Pericial. Ref. Inquérito ci- Fellet, João. 2014. “Dilma deixou a
vil nº1.23.002.000546/2013- desejar no diálogo com a socie-
13 e inquérito civil dade, diz ministro”. In: BBC Brasil.
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rém, 9 maio. <http://www.bbc.com/portugue-
___. 2014b. Parecer nº004/2014/ se/noticias/2014/11/141108_entre-
Pericial. Ref. Ação civil públi- vista_gilberto_jf_fd> (acesso: 20
ca nº0003883-98.2012.4.01.3902. jan. 2015).
Santarém, 5 dez. Novos esquemas na mira. 2014. Sí-
Brasil. Poder Judiciário. Supremo tio da Associação Nacional dos
Tribunal Federal. 2013. Decisão. Delegados de Polícia Federal.
Mandado de segurança nº32.262/ Brasília, 8 dez. Disponível em:
DF. Brasília, 20 ago. <http://www.adpf.org.br/adpf/
___. 2009. Decisão. Petição nº3.399/ admin/painelcontrole/materia/
RR. Brasília, 19 mar. materia_portal.wsp?tmp.edt.ma-
Brum, Eliane. 2014. “Como rasgar a teria_codigo=7187&tit=Novos-es-
Constituição e massacrar índios, quemas-na-mira#.VIrp-Ybzk1Y>
segundo o governo Dilma Rous- (acesso: 10 jan. 2015).
seff”. In: Desacontecimentos. São Rocha, Bruna C. 2014. Arqueologia
Paulo, 27 nov. Disponível em: regional no Alto rio Tapajós. Relató-
<http://desacontecimentos.com/ rio enviado ao Ministério Público
desacontecimentos/como-rasgar- Federal em Santarém.
-a-constituicao-e-massacrar-in- Sarmento, Daniel. 2007. “A garan-
dios-segundo-o-governo-dilma- tia do direito à posse dos rema-
-rousseff/> (acesso: 10 dez. 2014). nescentes de quilombos antes
Bulos, Uadi Lammêgo. 2007. Curso da desapropriação”. In: Revista de
de direito constitucional. São Paulo, Direito do Estado, v.2, nº7. Rio de
Saraiva. Janeiro, Instituto de Direito do
Fasolo, Carolina. 2015. “‘A terra pra Estado e Ações Sociais/Editora
nós significa a garantia da nossa Renovar, pp. 345–360.
existência’, dizem Munduruku
ao ministro Miguel Rossetto”. In:
Cimi Notícias. Brasília, 30 jan. Dis-
A
ntes de a Organização das Na- Davis, 1978; Ribeiro, 1979)1. A partir 1. A Convenção 169 foi
levada ao Congresso
ções Unidas (ONU) proclamar, de então, o Estado deveria consul-
Nacional em 1991, mas
em 2007, a primeira Declara- tar povos indígenas e comunidades só foi ratificada em 20
ção sobre os Direitos dos Povos In- tradicionais antes de tomar deci- de junho de 2002, pelo
Decreto Legislativo
dígenas, outra agência internacio- sões que os afetassem. E mais: tal nº143, entrando em
nal, a Organização Internacional do consulta deveria ser livre, prévia e vigor em 2003.
Trabalho (OIT) – que, desde a década informada, de modo que teria como
de 1920, preocupava-se com os po- pressuposto o domínio dos povos
vos e comunidades tradicionais –, consultados sobre as ações preten-
adotou a Convenção 169 sobre Po- didas e seus impactos. Em outras
vos Indígenas e Tribais em Países palavras, a consulta livre, prévia e
Independentes (Convenção 169), informada (CLPI) só se faz quando
em 1989 (Figueiroa, 2009). Ao ratifi- seu propósito resta compreendido
car o documento, em 2002, o Brasil pelo grupo consultado, o que torna
parecia avançar no reconhecimento imperativo que esteja situada em
dos direitos indígenas conquistados termos de língua e linguagem (Du-
com a Constituição Federal de 1988 prat, 2014).
e dar mais um passo importante na Contudo, o Brasil pouco ou
inversão da política indigenista ofi- quase nada caminhou no que diz
cial, historicamente marcada por respeito à aplicação da CLPI. Os di-
integração forçada, expropriações, versos povos indígenas afetados,
extermínios, esterilizações compul- por exemplo, pelo megaprojeto da
sórias, entre outras violações (e.g. usina hidrelétrica (UHE) de Belo
309
Monte, no rio Xingu, apesar do um vocabulário reduzido para de-
substantivo impacto que sofrem, ti- signar números foi observado des-
veram solapados seus direitos e em de os primeiros contatos com os
momento algum foram consultados Tupinambá. Isso despertou o inte-
– muito menos, nos termos da CLPI resse de filósofos como Locke (1961
(Beltrão et al., 2014). No caso das [1690]), que argumentou que o con-
pretensões de barramento do rio ceito básico de número pode ser re-
Tapajós, a resistência do povo Mun- duzido à ideia de “um” (a ideia mais
duruku, expressa em diversos atos universal que temos) e sua repeti-
de enfrentamento, teve como uma ção, estando disponível para nós
das principais pautas a exigência de mesmo sem a ajuda da cultura, em-
serem consultados (Torres, 2014). A bora esta possa ser útil em algumas
pressão social decorrente da mobili- circunstâncias (como apontado por
2. Ver também zação munduruku contribuiu para Butterworth, 2005)2. A tensão entre
comentários de Wallace
que, em 2012, o Ministério Públi- o que é universal e o que depende
(1864), segundo o
qual a emergência co Federal (MPF) obtivesse, junto à para o seu desenvolvimento de uma
de números, bem justiça federal, decisão que proibiu determinada cultura tem sido o cer-
como a existência de
sociedades com poucos a concessão da licença prévia (LP) ne de muitos debates desde então.
números, levantam para a UHE São Luiz do Tapajós Esta breve nota salienta a importân-
sérias questões
enquanto não fossem realizadas cia dos conhecimentos atuais a esse
sobre a evolução tal
como proposta por as CLPI aos índios e demais comu- respeito, tendo em conta a distinção
Darwin (também nidades tradicionais afetadas pelo entre competência e desempenho
citado em Chomsky,
2010). Os numerais empreendimento. Entretanto, se o (Dehaene et al., 2007), para a efetiva-
munduruku são pûg povo Munduruku tem hoje assegu- ção da etapa informativa acerca das
(um), frequentemente
associado com o
rada a realização da CLPI, o mesmo pretensões de barramento do rio Ta-
marcador de foco ma não se pode dizer de sua efetividade pajós – etapa imprescindível à CLPI,
(como em pûg ma, para além de um brilhante verniz. conforme prescrito pela Convenção
“único”); xep xep (dois);
ebapûg (três); ebadipdip As complexas peculiaridades da or- 169.
(quatro); e pûg pôg bi ganização mental e social dos Mun- Curiosamente, essas lacunas lexi-
(literalmente “uma
mão”, i.e. cinco). Para
duruku fazem com que a tarefa de cais (para adotar a terminologia de
análise, ver Pica & informar acerca do megaempreendi- Hale em seu seminal artigo de 1971)
Lecomte (2008).
mento não seja algo direto e ime- foram um tanto esquecidas ou sim-
diato. É disso que trata este texto. plesmente aceitas como naturais,
até o artigo de Pica et al. (2002), que
Um sistema cognitivo distinto levantou evidências de que as mes-
O fato de que as populações indíge- mas não seriam um acidente, mas
nas que habitam o Brasil possuem deveriam ser vinculadas ao fato de
O
Das aproximadamente 300 et-
s corpos d’água da bacia do nias indígenas encontradas no Bra-
rio Juruena, um dos princi- sil, em torno de 47 estão presentes
pais formadores do rio Ta- no estado de Mato Grosso, expres-
pajós, drenam uma área de cerca sas em mais de 30 diferentes lín-
de 191 mil km2, quase em sua tota- guas, faladas por 42.538 indígenas
lidade no estado de Mato Grosso. (Brasil, Instituto Brasileiro de Geo-
Situada na Amazônia meridional, grafia e Estatística, 2010). Assim,
essa bacia corresponde a uma área Mato Grosso é, simultaneamente, o
de transição entre cerrado/savana e terceiro estado do Brasil em socio-
Amazônia/floresta, abrigando ime- diversidade étnica e polo econômi-
morialmente os povos Myky/Irant- co de referência na produção agro-
xe (língua isolada), Enawene Nawe pecuária. Os contextos de pressão
(Aruak), Nambikwara (outra língua ambiental e fundiária que esse de-
isolada), Bakairi e Rikbaktsa (tron- sordenado e acelerado processo de
co linguístico Macro-Jê), Kayabi, ocupação produz, por meio de seus
Apiaká e Munduruku (todos Tupi) e, modelos de exploração econômica,
323
têm afetado diretamente as condi- na região, totalizam-se mais de 80
ções de vida das populações indíge- intervenções na bacia do Juruena,
nas que habitam ancestralmente o um dos principais formadores do
território. Tapajós. A região, caracterizada por
O potencial de geração de ener- diversas nascentes, tem por isso
gia na bacia do Juruena, consideran- mesmo recebido o maior número
do-se todos os estudos de inventário de pequenas centrais hidrelétricas
1. De acordo com a disponíveis, está estimado em apro- (PCHs)1. Essas, aos olhos dos ór-
resolução nº652/2003
ximadamente 10,95 mil megawatts, gãos licenciadores – notadamente
da Agência Nacional
de Energia Elétrica segundo a avaliação ambiental inte- a Secretaria de Estado de Meio Am-
(Aneel), enquadra-se grada (AAI) da bacia do rio Juruena, biente de Mato Grosso (Sema/MT)
na condição de PCH
o aproveitamento
elaborada pela Empresa de Pesquisa –, acarretam impactos pontuais e
hidrelétrico com Energética (EPE) em 2010 (Brasil, Mi- pouco significativos. Percebemos,
potência superior a
nistério de Minas e Energia, Empre- no entanto, que as várias usinas
1 megawatt e igual
ou inferior a 30 sa de Pesquisa Energética, 2010). A formam verdadeiros conjuntos de
megawatts. região do Juruena-Tapajós é divisa empreendimentos, com localização
entre duas importantes sub-regiões próxima e sequencial, que geram
zoogeográficas ou centros de ende- efeitos cumulativos e sinérgicos em
mismo e sua degradação acarreta sua área de incidência. Esses im-
o isolamento das populações que pactos são sentidos pelas diversas
caracterizam esses centros, inter- populações que vivem nas proximi-
ferindo diretamente em processos dades dessas usinas, notadamente
geradores e mantenedores de diver- os indígenas, e também são regis-
sidade biológica. Nesse contexto, as trados pelo próprio governo. Entre
regiões de cabeceiras são apontadas os empreendimentos, destacamos:
como particularmente importantes
para a manutenção de tais proces- i) Sacre/Papagaio – quatro PCHs, si-
sos, pois os fluxos no sentido norte- tuadas parcialmente na TI Utiariti,
-sul garantiriam a conservação de posto que o rio Sacre constitui um
todo o complexo gradiente cerrado- dos limites da mesma;
-Amazônia, onde comunidades bio- ii) Sangue – sete aproveitamentos hi-
lógicas bastante diferenciadas en- drelétricos (AHEs), sendo quatro
tram em contato. acima de 30 megawatts. Dois dos
Levando em consideração todos AHEs apresentam-se a montante e
os empreendimentos em opera- a jusante do limite da TI Manoki,
ção, em instalação e previstos nos dado que o próprio rio do Sangue
diversos inventários já realizados constitui um dos limites da mes-
A
gicos da resistência de povos indíge-
pesar de haver registros des- nas e comunidades tradicionais aos
de a década de 1980 de confli- numerosos aproveitamentos hidre-
tos com as Centrais Elétricas létricos (AHEs) previstos e em cons-
do Norte do Brasil S.A. (Eletronorte) trução na bacia do Tapajós, com
– que prometeram, na época, deba- ênfase na mobilização munduruku.
339
Ele recupera, ainda, informações sa gaiola. Muito embora levássemos
sobre a participação dos Munduru- a sério as ameaças, procurávamos
ku na resistência à usina hidrelétri- nos convencer de que a situação não
ca (UHE) de Belo Monte. chegaria às últimas consequências.
Os funcionários da EPE e da Funai No final do dia, a notícia de que te-
estavam na região fazendo estudos ria havido uma reunião no Palácio
para o complexo Tapajós-Teles Pi- do Planalto: uma comissão chefiada
res, que previa dez UHEs, quatro pelo Secretário Geral da Presidên-
das quais (Teles Pires, São Manoel, cia da República seria enviada. Essa
Jatobá e São Luiz do Tapajós) afeta- perspectiva não impediu que nas
riam diretamente os territórios dos reuniões noturnas os discursos fi-
Munduruku, Kayabi e Apiaká. Foi cassem ainda mais inflamados. Pela
um momento muito tenso e até as- primeira vez, foi aventada a possibi-
sessores de Raoni Metuktire, conhe- lidade de cortarem nossos pescoços
cida liderança kayapó, foram para a (Silva, 2011).
aldeia reforçar o movimento. O an-
tropólogo César Maurício Batista da Naquele momento, o governo já
Silva, um dos reféns, registrou: tinha avançado muito no empreen-
dimento de Belo Monte, no Xingu.
Na quinta-feira o dia raiou sob a O leilão havia sido realizado em
expectativa da chegada do cacique abril de 2010 e, em junho de 2011,
Raoni. À tarde, chegaram quatro foi concedida a licença de instala-
kaiapós, assessores dele, que insti- ção (LI), que permitiu o financia-
garam ainda mais os ânimos. Nós, mento da UHE pelo Banco Nacional
que já estávamos proibidos de usar de Desenvolvimento Econômico e
o telefone, fomos impedidos tam- Social (BNDES) e o início das obras
bém de circular. Passaríamos os dias no Xingu. Em um dos formadores
e noites dentro do posto da Funai. do Tapajós, o Teles Pires, a situação
Adolescentes que vigiavam as duas também era grave. Já estavam em
entradas do cativeiro eram nomea- obras as UHEs Sinop, Colíder e Teles
dos guerreiros, o que soa estranho a Pires, e avançavam apressadamente
olhos brancos, moldados à constru- os estudos para o licenciamento da
ção social da juventude como hiato UHE São Manoel. Além da imensa
entre a infância e a idade adulta. Ain- barragem do Xingu e das cinco do
da sem respostas do governo, vimos Teles Pires, o governo brasileiro já
a tensão aumentar no dia seguinte havia anunciado outras cinco para
quando começaram a construir nos- o Tapajós (São Luiz do Tapajós, Ja-
340 Palmquist
tobá, Jamanxim, Cachoeira do Caí Decenal de Expansão de Energia
e Cachoeira dos Patos). A preocu- (PDE) 2020, 85% da expansão hidrelé-
pação crescia entre os povos da ba- trica planejada pelo governo federal
cia – índios, mas também beiradei- entre 2016 e 2020 ocorrerá na Ama-
ros e pequenos garimpeiros –, não zônia. Essa expansão poderá trazer
só em relação à movimentação de sérios riscos às Áreas Protegidas, já
pesquisadores na região, mas tam- que a maioria das UHEs planejadas
bém com as notícias de que cinco para a Amazônia está próxima ou
unidades de conservação (UCs) que dentro dessas áreas (Instituto do
“atrapalhariam” as UHEs haviam Homem e Meio Ambiente da Ama-
sido reduzidas pela presidência da zônia, 2012).
República, por meio de medida pro-
visória (MP). Na negociação para a libertação
dos reféns, em outubro de 2011, fi-
Nos próximos oito anos, o governo cou muito claro o intento do mo-
brasileiro planeja investir R$ 96 bi- vimento dos Kayabi e Munduruku:
lhões para construir 22 hidrelétricas eles reivindicavam a demarcação
na região amazônica e a maioria dos territórios tradicionais e a para-
desses empreendimentos está próxi- lisação do processo de licenciamen-
ma ou dentro de áreas protegidas já to de São Manoel, com a suspensão
estabelecidas. Um total de 1.500 km² das audiências públicas previstas
de florestas já perderam proteção para pouco depois, organizadas
legal em janeiro deste ano, quando sem qualquer respeito à Convenção
a Presidente da República aprovou 169 da Organização Internacional
uma medida provisória (MP nº558) do Trabalho (OIT) ou à Constituição
para facilitar a construção de quatro brasileira, textos que as lideranças
hidrelétricas. O Instituto do Homem conhecem bem. O governo acenou
e Meio Ambiente da Amazônia (Ima- com uma reunião na cidade mais
zon) analisou os riscos jurídicos e próxima, Alta Floresta (Mato Gros-
socioambientais associados às redu- so), mas os índios não aceitaram.
ções com foco na Bacia do Tapajós, Exigiam a presença das autorida-
no Pará, que concentrou 70% (1.050 des na aldeia. Queriam ser ouvidos.
km²) da área reduzida. Foram cinco O governo enviou representantes
Unidades de Conservação diminuí- à aldeia Kururuzinho, vários com-
das sem a realização de estudos de promissos foram apalavrados e os
impactos sociais e ambientais e sem reféns foram libertados. Depois, al-
consulta pública. Segundo o Plano gumas lideranças foram levadas a
342 Palmquist
no acesso à saúde e educação. Os ver a enormidade do canteiro de
Munduruku fazem alguns protestos obras de Belo Monte com o movi-
em Jacareacanga, falando das UHEs mento incessante das máquinas; ou-
e dos problemas no licenciamento, viam-se as sirenes que anunciavam
sem receber muita atenção, seja da os estrondos e as detonações que ex-
mídia paraense, da nacional ou da plodem terra e pedras; e sentia-se o
internacional. Em junho, chefes de seu tremor.
Estado do mundo todo se reúnem
na Rio+20. Um grupo de ativistas, A cerca de 300 metros da comu-
pescadores, agricultores e índios nidade, duas ensecadeiras barraram
afetados por Belo Monte promove o Xingu, mudando sua cor para
um acampamento em Santo Antô- marrom estagnado. As matas que
nio, uma das comunidades que vai protegiam as margens do rio foram
desaparecer com a construção da arrancadas, sobrando apenas uma
UHE. Batizam o evento de Xingu grande área nua de terra revolvida.
+23, em alusão ao histórico encon- Após o encontro, como resulta-
tro de 1989 em Altamira, quando do de um acesso coletivo de fúria,
Tuíra, indígena Kayapó, passou o os escritórios da Norte Energia S.A.
facão no rosto do hoje diretor das (Nesa) nos canteiros de obra foram
Centrais Elétricas Brasileiras S.A. destruídos. Conforme registra a
(Eletrobras), Antonio Muniz Lopes, Agência Brasil, veículo de mídia da
então presidente da Eletronorte. Os Empresa Brasileira de Comunicação
Munduruku participam do evento. (EBC),
Na carta final do Xingu +23, o re-
lato do que todos, inclusive os Mun- De acordo com o Consórcio Constru-
duruku, presenciaram: tor Belo Monte (CCBM), durante a
ocupação, pelo menos 50 computa-
Na vila de Santo Antônio, pratica- dores foram quebrados, notebooks,
mente deserta após as desapropria- celulares e radiocomunicadores fo-
ções compulsórias de seus morado- ram furtados, dezenas de aparelhos
res, sobraram ruínas e madeirames de ar-condicionado foram danifica-
empilhados das antigas casas de dos e móveis, documentos e proje-
seus moradores. Sobrou também o tos foram queimados. A estimativa,
pequeno cemitério, com suas tum- segundo o consórcio, é que o prejuí-
bas tomadas pelo mato após o em- zo ultrapasse R$ 500 mil.
bargo da Norte Energia. Para justificar o pedido de prisão
Da vila de Santo Antonio podia se dos ativistas[,] que, segundo a polí-
344 Palmquist
de 2011 e 2012 fez o Planalto Central do a realização de consulta prévia,
tirar da gaveta algumas das piores livre e informada (CLPI), conforme
práticas repressoras contra povos determina a Convenção 169 da OIT,
indígenas, que tinham caído em de- e de avaliação ambiental integrada
suso após o fim da ditadura militar. (AAI) de todas as UHEs do Tapajós
Ou pode ser mera coincidência, no (Brasil, Ministério Público Federal,
que é difícil acreditar. Mas o fato é 2012). Mas em 2013, em resposta, o
que, em 6 novembro de 2012, uma governo refina estratégias e recru-
operação da Polícia Federal (PF) é desce a repressão contra os índios,
iniciada para desativar garimpos e inaugurando o licenciamento am-
explodir balsas de garimpeiros den- biental manu militari.
tro da TI Munduruku, no rio Teles Durante uma das primeiras mo-
Pires. A operação é feita dentro da bilizações que fizeram em 2013, em
legalidade, com ordem judicial e fevereiro, índios Kayabi e Mundu-
conduzida por um delegado tido ruku viajaram mais uma vez a Bra-
como expert em assuntos indígenas. sília, para entregar suas reivindica-
E termina em tragédia. ções referentes às UHEs no Tapajós
A aldeia Teles Pires é invadida e no Teles Pires. Mais uma vez, ten-
pelos homens da PF, que atiram in- taram ser recebidos todos juntos e
discriminadamente, após um inci- o impasse se estabeleceu, porque
dente com um cacique. Adenilson o governo só aceita receber comis-
Munduruku é morto com quatro sões de representantes. Os ânimos
tiros: três nas pernas, que o imobi- ficaram mais tensos e o ministro
lizaram, e o quarto, fatal, na parte Gilberto Carvalho, secretário-geral
de trás da cabeça. O assassinato tem da Presidência, resolveu falar com
todos os sinais de execução e foi re- os índios. O diálogo foi registrado
centemente denunciado pelo MPF à por jornalistas de O Globo:
justiça. A PF sequer abriu inquérito
para apurar o crime. Ao contrário: — Vocês tem [têm] duas opções:
abriu inquérito para investigar os uma delas é inteligente: é dizer ok,
índios (ver Brasil, Ministério Públi- nós vamos acompanhar, vamos exi-
co Federal, 2014d). gir direitos nossos, vamos exigir pre-
Após o assassinato de Adenilson, servação disso e disso e benefícios
ainda em novembro de 2012, uma para nós. A outra é dizer não. Isso
notícia dá alento. A justiça federal vai virar, infelizmente, uma coisa
de Santarém responde positivamen- muito triste, e vai prejudicar muito
te a ação judicial do MPF, ordenan- a todos, ao governo, mas também a
346 Palmquist
Passou quase despercebido mas, há tir pela força) o trabalho de 80 téc-
algumas semanas, a Presidência da nicos contratados pela Eletronorte
República publicou no Diário Oficial para os levantamentos de campo ne-
o decreto nº7.957/2013, que, dentre cessários à elaboração do Estudo de
outros, alterou o decreto de criação Impacto Ambiental dos projetos de
da Força Nacional de Segurança Pú- barramento do rio Tapajós, para fins
blica. A partir daí, o Executivo pas- de aproveitamento hídrico (constru-
sou a contar com sua própria força ção de hidrelétricas, pelo menos 7
policial, a ser enviada e “aplicada” delas) (Diniz, 2013).
em qualquer região do país ao sabor
de sua vontade. Enquanto a tensão cresce na re-
Numa primeira análise, chamou a gião, com a chegada das tropas for-
atenção de alguns jornalistas e pro- temente armadas, o MPF vai à justi-
fissionais da causa ambiental a cria- ça, acusando o governo de ignorar
ção da “Companhia de Operações a ordem judicial em favor da reali-
Ambientais da Força Nacional de zação da consulta prévia. A justiça
Segurança Pública”. Essa nova divi- ordena a suspensão da Operação Ta-
são operacional dentro da Força Na- pajós. Em resposta, o governo lan-
cional terá por atribuições: apoiar ça mão então de outro instrumen-
ações de fiscalização ambiental, to autoritário, desta vez jurídico,
atuar na prevenção a crimes ambien- já testado com sucesso no caso de
tais, executar tarefas de defesa civil, Belo Monte: pede ao Superior Tribu-
auxiliar na investigação de crimes nal de Justiça (STJ) a suspensão de
ambientais, e, finalmente, “prestar segurança (SS).
auxílio à realização de levantamen- A SS é um instituto do ordena-
tos e laudos técnicos sobre impactos mento jurídico da ditadura que so-
ambientais negativos”. brevive no país. Prevê que ordens
Não é preciso lembrar que uma das judiciais em processos regulares po-
notícias mais importantes da se- dem ser suspensas pelo presidente
mana passada foi o envio de tropas de um tribunal superior, sem exa-
militares da Força Nacional de Segu- me do mérito – ou seja, sem que
rança Pública para os municípios de qualquer argumento ou direito seja
Itaituba e Jacareacanga, no sudoes- manejado – por razões de ordem,
te paraense. O objetivo da incursão segurança ou economia. Com esse
militar, solicitada pelo ministro das método de atuação jurídica, o go-
Minas e Energia, Edison Lobão, é verno brasileiro avança no licen-
exatamente “apoiar” (leia-se: garan- ciamento e construção das UHEs
348 Palmquist
as comunidades envolvidas se ma- os pesquisadores da EPE) e, a pedra
nifestem e componham o processo de toque do discurso governista, de
participativo com suas considera- apoiar o garimpo ilegal na bacia do
ções a respeito de empreendimento Tapajós. A nota oficial da Secretaria-
que poderá afetá-las diretamente. -Geral da Presidência da República
Em outras palavras, não poderá o (SG/PR) não deixa dúvidas: o Planal-
Poder Público finalizar o processo to declara os Munduruku subleva-
de licenciamento ambiental sem dos em Belo Monte como inimigos
cumprir os requisitos previstos na públicos do progresso da nação.
Convenção nº169 da OIT, em espe-
cial a realização de consultas pré- Em sua relação com o governo fe-
vias às comunidades indígenas e deral essas pretensas lideranças
tribais eventualmente afetadas pelo Munduruku têm feito propostas
empreendimento (Brasil, Justiça Fe- contraditórias e se conduzido sem
deral, Superior Tribunal de Justiça, a honestidade necessária a qual-
2013). quer negociação. Em outubro de
2012, junto com indígenas Kayabi e
Ainda sob o impacto do trauma Apiacá, sequestraram e ameaçaram
da morte de Adenilson e da mili- de morte nove funcionários do go-
tarização da região onde vivem, verno que realizavam um processo
os Munduruku adotam uma nova de diálogo na aldeia Teles Pires. Em
estratégia para reivindicar seus di- fevereiro de 2013, vieram a Brasília
reitos frente aos empreendimentos. e recusaram-se a fazer uma reunião
Em maio de 2013, eles se dirigem aos com o ministro Gilberto Carvalho,
canteiros de Belo Monte, para ocu- afirmando que o governo iria usar
par, pela primeira vez, a maior obra esse encontro para dizer ter feito
de engenharia civil das Américas. A uma consulta prévia. No dia 25/04,
ocupação de Belo Monte pelos Mun- essas mesmas pretensas lideranças
duruku provoca reações imediatas deixaram de comparecer a uma re-
do governo federal e da Nesa. O dis- união que tinham marcado com a
curso dominante é que eles não são Secretaria-Geral em Jacareacanga e
índios do Xingu, portanto não têm publicaram nos sites de seus aliados
por que ocupar os canteiros de Belo uma versão mentirosa e distorcida
Monte. São acusados de intrusos, sobre esse fato. Agora invadem Belo
de pretensos líderes, de oportunis- Monte e dizem que querem consulta
tas, de sequestradores (em alusão prévia e suspensão dos estudos. Isso
ao episódio de outubro de 2011 com é impossível. A consulta prévia exi-
350 Palmquist
causa de medidas de reintegração A empresa manda desligar o for-
de posse obtidas pela Nesa junto à necimento de água e luz para os
justiça federal em Altamira. Os ín- canteiros, deixando todos em situa-
dios ficam acampados na cidade, ção complicada – as mobilizações
aguardando negociações com o go- dos Munduruku sempre incluem
verno federal e o empreendedor. mulheres, crianças, velhos e até ca-
Sem resposta, ainda em maio, no chorros – e forçando o MPF a pedir
dia 27, eles retomam a ocupação do à justiça a garantia de fornecimento
principal canteiro de obras de Belo de água e alimentos, por questões
Monte. Narra o sítio do Movimento humanitárias. Novamente, a empre-
Xingu Vivo Para Sempre (MXVPS): sa obtém uma ordem de reintegra-
ção de posse. Os índios anunciam
Entraram no canteiro por volta das que vão resistir a qualquer tentativa
4 horas da manhã – e ao contrário da de desocupação. Diz a carta nº8 da
outra ocupação, todos os acessos do ocupação:
sítio, dessa vez, ficaram sob o con-
trole dos indígenas. Isso impediu Nós exigimos a suspensão da reinte-
toda a operação do canteiro. Desde o gração de posse. Até dia 30 de maio
início do dia, a comunidade enfren- de 2013, quinta-feira de manhã, o
tou o assédio e a pressão de um con- governo precisa vir aqui e nos ou-
tingente de ao menos 50 policiais da vir. Vocês já sabem da nossa pauta.
Força Nacional (FNSP), Polícia Rodo- Nós exigimos a suspensão das obras
viária Federal, Tropa de Choque da e dos estudos de barragens em cima
Polícia Militar, Rotam [Ronda Os- das nossas terras. E tirem a Força
tensiva Tática Motorizada], Polícia Nacional delas. As terras são nossas.
Civil e seguranças privados de ao Já perdemos terra o bastante. Vocês
menos duas empresas diferentes li- querem nos ver amansados e quie-
gadas ao Consórcio Construtor Belo tos, obedecendo a sua civilização
Monte. A polícia tem pressionado os sem fazer barulho. Mas nesse caso,
piquetes a permitirem a entrada de nós sabemos que vocês preferem
mais policiais no empreendimento, nos ver mortos porque nós estamos
mas os ocupantes não permitiram. fazendo barulho.
“Agindo assim, vocês estão declaran-
do guerra contra a Força Nacional”, Por fim, em 4 de junho de 2013,
ouviram os manifestantes (Sposati, após um total de 17 dias de ocupação
2013a). de Belo Monte, o governo federal
cede e envia um avião da Força Aé-
352 Palmquist
A resistência munduruku, que os indígenas definissem pelo de-
não havia se dobrado diante das tro- senvolvimento do município, o
pas da FNSP, nem diante do assassi- que seria bom para todos. E disse
nato de Adenilson Munduruku, tem que todos eram bem vindos, menos
dificuldades até hoje para se recupe- aqueles que vieram com intenção
rar de uma reunião em Jacareacan- de tumultuar, num recado velado
ga, que deveria ser um encontro dos às ONGs [organizações não governa-
caciques e lideranças para tratar do mentais] que observavam o evento
futuro e acabou se tornando o cená- (Monteiro, 2013).
rio de um golpe, dirigido pelo pre-
feito Raulien Queiroz. Após a che- Lideranças que haviam leva-
gada dos índios à cidade, lideranças do faixas expressando indignação
vindas de todas as 118 aldeias da TI contra as UHEs foram ameaçadas
Munduruku, em uma mobilização pelo secretário de assuntos indí-
em parte financiada pela Funai, em genas (vou repetir: de assuntos
parte por apoiadores da sociedade indígenas) da prefeitura, Ivânio
civil, o clima começa a ficar tenso. Alencar. “Quem não se adequar às
Apoiadores e até pesquisadores condições, que assuma as despesas
que estavam com câmeras foram do evento”, bradou, intimidando
obrigados a deixar o recinto, sob os caciques com a possibilidade de
ameaças, intimidados por policiais não terem combustível para retor-
militares e capangas sem identifica- nar às aldeias nem alimento para os
ção, acusados de baderneiros, obri- que tinham ido à cidade. A reunião
gados a apagar quaisquer registros prosseguiu quase toda em língua
em vídeo da reunião. Claudemir portuguesa, de difícil entendimen-
Monteiro, do Cimi, é uma das tes- to para a maioria dos Munduruku.
temunhas do que se passou em Ja- E o objetivo foi alcançado: a desti-
careacanga naquele 3 de agosto. Ele tuição de toda a diretoria da asso-
narra os acontecimentos em texto ciação indígena Pusuru, substituída
publicado no sítio da entidade. por nomes que agradavam aos go-
vernos federal e municipal, e que
Na fala do prefeito já [se] mostrava poderiam dar apoio à instalação das
quem era o patrocinador do evento. UHEs (Santana, 2013).
A reunião tinha apoio da Prefeitura, Ato contínuo, os EIA foram reto-
porque ele acreditava na unidade mados, apenas dez dias depois da
entre não índios e os Munduruku. troca de direção da Pusuru. O pes-
Disse que esperava que na reunião quisador Mauricio Torres registrou:
354 Palmquist
ros, enquanto os garimpeiros arru- jornalista Renato Santana, do Cimi,
mavam as mochilas e se preparavam denuncia o ataque:
para abandonar a área (Saud, 2014a).
Cerca de 500 garimpeiros, comer-
A reação é imediata e sintomá- ciantes e membros do Poder Públi-
tica: continuam sendo acusados de co de Jacareacanga (PA) atacaram 20
baderneiros e vândalos infiltrados munduruku na manhã desta terça,
(qualquer semelhança com a re- 13, durante ação contra a presença
pressão aos movimentos urbanos dos indígenas no município. Dois
de contestação às obras da Copa munduruku acabaram feridos nas
não é mera coincidência). A prefei- pernas depois de atingidos por ro-
tura de Jacareacanga não desiste do jões lançados pelos manifestantes
intento de dividir para conquistar e, anti-indígenas. Os munduruku te-
logo depois da expulsão dos garim- mem por novos ataques nas pró-
peiros, em ato de clara retaliação, ximas horas e a Polícia Federal foi
demite 70 professores indígenas, acionada.
praticamente inviabilizando o fun- “Não podemos nem levar os dois fe-
cionamento das escolas munduru- ridos ao hospital porque tem ódio
ku. O argumento é que eles não são contra a gente por todos os lados.
graduados e, portanto, não podem Manifestantes diziam que índios
continuar ministrando aulas, o que não têm direitos aqui em Jacarea-
contraria todas as normas sobre a canga”, afirmou uma indígena mun-
educação escolar indígena em vigor duruku, presente durante o ataque,
no país. Os índios da resistência são que aqui não é identificada por mo-
obrigados a voltar a Jacareacanga tivos de segurança. Os feridos são:
para protestar, mesmo sob o risco Rosalvo Kaba Munduruku e Franci-
– logo confirmado – de serem acu- neide Koru Munduruku. A Polícia
sados novamente de vandalismo e Militar estava durante o ataque, po-
atacados com violência, o que, desta rém ficou na retaguarda dos mani-
feita, de fato ocorreu (Saud, 2014b). festantes que atacavam os indígenas
É o próprio secretário de assun- e nada fez.
tos indígenas, Ivânio Alencar, quem O ataque contra os indígenas não é
comanda uma turba de comercian- aleatório, mas orquestrado e progra-
tes e garimpeiros contra os Mundu- mado. No final da tarde desta segun-
ruku da resistência, atacados com da, 12, cerca de 200 indígenas mun-
palavras e rojões no dia 14 de maio duruku desocuparam a prefeitura
de 2014, nas ruas de Jacareacanga. O de Jacareacanga […]. Conseguiram
356 Palmquist
de caixa. No início de setembro de uma reunião com o governo federal,
2014, em plena campanha eleitoral representado por pessoas da Advo-
para a presidência da República, o cacia Geral da União, Ministério do
governo brasileiro enviou convite Planejamento, Secretaria Geral da
aos Munduruku para que participas- Presidência da República, FUNAI,
sem de uma reunião para tratar da Ministério da Justiça e Ministério de
CLPI a que está obrigado por força Minas e Energia. A reunião foi con-
de decisão judicial. Na reunião, os vocada pelo governo para discutir a
Munduruku conseguiram arrancar Consulta Prévia, Livre, Informada e
do governo o compromisso de que Consentida prevista na Convenção
teriam tempo e condições para se 169 da OIT, depois que a Justiça Fe-
preparar para a consulta. O gover- deral obrigou o governo a cumprir a
no tentou impor um cronograma, e Convenção.
razões econômicas de Estado foram Os Munduruku explicaram ao go-
levantadas. Mas os índios argumen- verno que estavam preparando uma
taram que precisavam fazer a roça formação sobre a Convenção 169,
em outubro e não poderiam parar porque o assunto é muito comple-
tudo para discutir a UHE (Brasil, Mi- xo, e que só depois disso vão decidir
nistério Público Federal, 2014a). quando e como será feita a consulta.
Logo depois da reunião, para sur- Este é o direito que temos, garanti-
presa de todos os presentes – índios, do pela Convenção 169, e o governo
apoiadores, MPF –, o Ministério de se comprometeu de fazer o dialogo
Minas e Energia (MME) publica no com nós de acordo com OIT e respei-
Diário Oficial da União (DOU) a data tar a nossa decisão no processo de
para o leilão do empreendimento diálogo.
São Luiz do Tapajós: 15 de dezembro Na sexta-feira dia 12 de setembro, fi-
de 2014 (Fariello, 2014). A resposta camos sabendo que o governo publi-
dos Munduruku é imediata. Enviam cou no Diário Oficial da União que
carta ao governo federal, divulgada fará o leilão da usina de São Luiz do
na imprensa. Tapajós no dia 15 de dezembro deste
ano.
Nós Munduruku estamos indigna- Ficamos muito bravos com o fato de
dos com o governo. Nos dias 2 e 3 a presidente Dilma, o Gilberto Car-
de setembro, guerreiros e guerrei- valho, o Paulo Maldos, o Nilton Tu-
ras Munduruku e outras populações bino, o Tiago Garcia, representantes
ameaçadas pelo projeto de constru- de ministérios e outras autoridades
ção de usinas no rio Tapajós, tiveram dizer que iam respeitar o direito
A reação surtiu efeito, talvez por Mas quando a gente conseguiu con-
ocorrer em plena campanha eleito- cluir o relatório, existia um conjun-
ral para a presidência da República. to de questões que estavam sendo
Em comunicado seco à imprensa, o decididas na região que fizeram com
governo brasileiro desiste de fazer que a gente precisasse discutir o re-
o leilão em 2014, sem menção ex- latório não só no âmbito da Funai e
pressa à indignação dos Munduru- vocês, povo Munduruku, mas outros
ku, mas aludindo à “necessidade de órgãos do governo passaram a tam-
adequações aos estudos associados bém discutir essa proposta de relató-
ao tema do componente indígena”. rio, discutir a situação fundiária da
Porém, mesmo com a suspensão região. Por quê? Porque vocês sabem
do leilão, a pressão sobre os Mun- que ali tem uma proposta de se reali-
duruku pelo governo brasileiro não zar um empreendimento hidrelétri-
dá sinais de esmorecer. Ao mesmo co, né, uma hidrelétrica ali naquela
tempo em que o MME e o Ministé- região, que vai contar com uma
rio do Planejamento, Orçamento barragem pra geração de energia[,]
e Gestão (MPOG) procuram correr e essa barragem tá muito próxima
com o licenciamento da UHE, citan- da terra de vocês. E quando a gente
do planilhas e organogramas feitos concluiu o relatório surgiram dúvi-
em Brasília, outros órgãos de gover- das se essa área da barragem, se esse
no criam mais ameaças ao território lago que essa barragem da hidrelé-
Munduruku. trica vai formar, vai ter uma inter-
A própria presidente da Funai, ferência na terra indígena de vocês.
Maria Augusta Assirati, em reunião Na área de vocês, na vida de vocês,
com lideranças em Brasília, admite né? Então começou-se a estudar
que o Relatório Circunstanciado de isso. A reunir elementos para que
Identificação e Delimitação (RCID) se tivesse uma definição realmente
da TI Sawré Muybu não havia sido concreta de que essa barragem, esse
publicado até então, pela dificul- lago não vai causar um prejuízo pra
358 Palmquist
vida do povo que tá vivendo ali, pra gente aguarda esses elementos téc-
essa terra indígena. nicos, para poder realizar essa com-
(corte) patibilização: permitir que o setor
O empreendimento tem uma im- elétrico faça seu empreendimento,
portância, porque vai gerar energia a barragem, e com isso beneficie um
para um conjunto grande de pessoas número grande de pessoas no país,
no país, né, enfim, e também, so- e permitir que a terra de vocês seja
bretudo do ponto de vista da nossa reconhecida, e que vocês tenham o
atuação da Funai, né, que é o nosso direito de vocês assegurado, e que a
papel, do órgão indigenista, né, a gente cumpra o nosso dever, como
gente acha fundamental que o terri- Estado brasileiro e como Fundação
tório de vocês também esteja garan- Nacional do Índio, que pertence ao
tido, né? Principalmente, né, por- governo, que pertence a um órgão
que, como vocês colocaram, aquela de Estado, é um órgão público de
região já tá tendo pressão madei- Estado. Por isso a gente ainda não
reira, garimpeira, de uma série de conseguiu publicar. Essa notícia[,]
outros elementos que tão em volta ela é ruim ainda. Ela é uma notícia
da [de] onde vocês moram, que o que não é ainda positiva, não é a que
empreendimento não pode ser mais a gente gostaria de dar (Brum, 2014).
um fator de dificuldade para a vida
de vocês. Então a gente tem que ga- A recusa em publicar o relatório
rantir o território, a gente tem que levou o MPF à justiça, onde obteve
garantir que vocês tenham proteção liminar para obrigar o andamento
suficiente para viver tranquilos, né? do processo de demarcação. A Funai
Pra desenvolver o modo de vida tra- recorreu da decisão ao Tribunal Re-
dicional de vocês naquela região, gional Federal da 1a Região (TRF-1)
né, que é uma região [em] que histo- e conseguiu um efeito suspensivo
ricamente, né, vocês vivem. O povo – diferente da SS, porque será obri-
Munduruku[,] ele é originalmente gatoriamente derrubado pela pró-
daquela região, né. Isso a gente sabe, xima decisão judicial no processo,
isso nosso estudo, ele comprova, en- seja de primeira ou segunda instân-
tão trata-se de uma ocupação tradi- cia (Brasil, Ministério Público Fede-
cional. Então, e a gente tem busca- ral, 2014b). Com isso, a Funai ganha
do defender essa posição, de que é tempo para prosseguir com o esfor-
possível ter essa compatibilização. E ço de “compatibilização” de que As-
por isso que a gente não conseguiu sirati falava aos Munduruku? Pode
até hoje publicar. Por quê? Porque a ser, mas a notícia da derrota, ainda
360 Palmquist
Florestal Brasileiro (SFB), em 2014, aos interesses das pretensas con-
já havia leiloado uma Floresta Na- correntes, na medida em que pode
cional (Flona), a do Crepori, muito haver resistência das comunidades
próxima das terras munduruku, indígenas e pedido judicial de anu-
sem qualquer espécie de consulta lação do certame”.
ou menção à existência de indíge- A recomendação lembra também
nas nas proximidades, o que é irre- que, de acordo com a legislação bra-
gular, de acordo com a Lei de Con- sileira, antes de qualquer concessão,
cessão de Florestas Públicas (Brasil, as florestas públicas ocupadas ou
Ministério Público Federal, 2014e). utilizadas por comunidades deverão
Em meio à tensão crescente com os ser destinadas aos próprios morado-
problemas na demarcação e com o res por meio da criação de reservas
avanço do licenciamento da UHE, o ou por concessão de uso.
SFB anuncia o leilão de novas áreas O edital viola ainda a Convenção
em duas outras Flonas, Itaituba I e 169 da Organização Internacional
II, que incidem diretamente sobre o do Trabalho, que assegura a consul-
território não demarcado de Sawré ta prévia, livre e informada aos po-
Muybu. O MPF reage. vos interessados, sempre que sejam
previstas medidas legislativas ou ad-
O MPF considera que o edital de ministrativas suscetíveis de afetá-los
licitação é irregular por afirmar a diretamente. O Instituto do Patrimô-
inexistência de população indígena nio Histórico e Artístico Nacional
ou ribeirinha na região, quando está (Iphan) também não foi ouvido pelo
em trâmite na Fundação Nacional do SFB, o que deveria ter ocorrido pela
Índio (Funai) a demarcação do terri- existência de vários sítios arqueoló-
tório tradicional dos índios Mundu- gicos no perímetro das duas flores-
ruku na mesma região e o próprio tas em licitação (Brasil, Ministério
plano de manejo das duas florestas Público Federal, 2014f).
reconhece a existência de comuni-
dades ribeirinhas e extrativistas. A reportagem de Ana Aranha e
Para o MPF, o edital “ofende a boa- Jéssica Mota sobre a autodemarca-
-fé objetiva, constituindo violação ção traz a público, pela primeira
ao dever de informação com as em- vez, a íntegra do relatório que o go-
presas concorrentes que não estão verno tenta manter escondido des-
sendo esclarecidas adequadamente de 2013, para não dar andamento à
quanto à existência de povos indí- demarcação. O relatório deixa bem
genas representando iminente lesão claro que a ocupação pelos Mundu-
362 Palmquist
tricos, e que por causa do interes- está chorando, pelas árvores que en-
se de outros órgãos do governo o contramos deixados por madeirei-
relatório não foi publicado. Após ros nos ramais para serem vendidos
duas semanas da reunião de Brasília de forma ilegal nas serrarias e isso o
recebemos notícias de que o Minis- IBAMA não atua em sua fiscalização.
tério Público Federal entrou com Só em um ramal foi derrubado o
ação obrigando a FUNAI a publicar equivalente a 30 caminhões com to-
o relatório, o que a mesma não fez, ras de madeiras, árvores centenárias
e semana passada ficamos sabendo como Ipê, áreas imensas de açaizais
que o desembargador do TRF-1 ca- são derrubadas para tirar palmitos.
çou a referida liminar. Mas isso não Nosso coração está triste.
foi novidade para nós Munduruku. Nesses 30 dias da autodemarcação
Nunca abaixaremos a cabeça e abri- já caminhamos cerca de 7 km e fize-
remos a nossa mão, a luta continua! mos 2 km e meio de picadas. Encon-
Somos verdadeiros donos da Terra, tramos 11 madeireiros, 3 caminhões,
já existimos antes da chegada dos 4 motos, 1 trator e inúmeras toras de
portugueses invasores. madeiras de lei as margens dos ra-
Hoje também fez um mês que ini- mais em nossas terras, e na manhã
ciamos a autodemarcação da nossa do dia 15 fomos surpreendidos em
Terra IPI`WUYXI`IBUYXIM`IKUKAM nosso acampamento por um grupo
DAJE KAPAP EYPI, por não confiar de 4 madeireiros, grileiros liderado
nas palavras enganosas do governo pelo Vilmar que se diz dono de 6
e de seus órgãos. lotes de terra dentro do nosso terri-
Garantir o nosso território sempre tório, disse ainda que não irá permi-
vivo é o que nos dá força e coragem. tir perder suas terras para nós e na
Sem a terra não sabemos sobreviver. segunda próxima estaria levando o
Ela é a nossa mãe, que respeitamos. caso para a justiça.
Sabemos que contra nós vem o go- Agora decretamos que não vamos
verno com seus grandes projetos esperar mais pelo governo. Agora
para matar o nosso Rio, floresta, decidimos fazer a autodemarcação,
vida. nós queremos que o governo respei-
Esse território atende às populações te o nosso trabalho, respeite nossos
do Médio e Alto Tapajós. antepassados, respeite nossa cultu-
Esperamos pelo governo há décadas ra, respeite nossa vida. Só paramos
para demarcar nossa Terra e ele nun- quando concluir o nosso trabalho.
ca o fez. Por causa disso que a nossa SAWE, SAWE, SAWE.
terra está morrendo, nossa floresta
364 Palmquist
território, mas, se a Funai não fizer lho-tem-dialogo-tenso-com-in-
o que tem que ser feito, ou seja, pu- dios-contrarios-usina-de-teles-
blicar o nosso relatório e demarcar -pires-7642233#ixzz3EAU4i82q>
nossa terra, a mesma, com sua omis- (acesso: 5 dez. 2014).
são, estará provocando um conflito Amazônia em chamas. 2013.
com proporções inimagináveis en- “2ª reunião do Movimen-
tre Munduruku e invasores, que já to Ipereg Ayu: mais um pas-
é anunciado há muito tempo, com so na resistência Munduruku.
todas as denúncias de ameaças que Sawe!”. 13 nov. Disponível em:
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policia-civil-conclui-inquerito-so- ___. 2014. “Munduruku são ataca-
bre-depredacao-da-usina-hidrele- dos com rojões por garimpeiros,
trica-de-belo-monte> (acesso: 5 comerciantes e prefeitura de Ja-
dez. 2014). careacanga (PA)”. Sítio do Con-
Rodrigues, Alex. 2013. “Mundu- selho Indigenista Missionário.
rukus libertam biólogos após Brasília, 13 maio. Disponível em:
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estudos sobre Rio Tapajós”. In: pt-br/?system=news&conteudo_
Agência Brasil. Brasília, 24 jun. id=7525&action=read> (acesso: 5
Disponível em: <http://memo- dez. 2014).
ria.ebc.com.br/agenciabrasil/ Santana, Renato; Sposati, Ruy.
noticia/2013-06-24/mundurukus- 2013. “Indígenas em defesa de di-
-libertam-biologos-apos-governo- reitos buscam diálogo com gover-
-anunciar-suspensao-de-estudos- no: encontram silêncio e fome”.
-sobre-rio-tapajos> (acesso: 5 dez. Sítio do Conselho Indigenista
2014). Missionário. Brasília, 11 jun. Dis-
Rojas, Biviany; Valle, Raul T. 2013. ponível em: <http://www.cimi.
“Porque a Justiça não consegue org.br/site/pt-br/index.php?syste
decidir sobre o caso de Belo m=news&action=read&id=6970>
370 Palmquist
Redução na medida
A Medida Provisória nº558/2012 e a arbitrariedade da
desafetação de unidades de conservação na Amazônia
Maria Luíza Camargo e Mauricio Torres
O
Parque Nacional (Parna) da populações originais, bem como na
Amazônia, localizado no oes- exploração predatória dos recursos
te do Pará, é uma das primei- naturais (Oliveira, 1997, 2005).
ras unidades de conservação (UC) da O parque estava encravado em
Amazônia brasileira. Sua criação foi uma área de seis milhões de hec-
iniciada pelo Grupo de Operações tares, desapropriada pelo Incra em
da Amazônia (GOA), organização 1971 e denominada Polígono de Alta-
governamental de consultoria com mira. O objetivo da desapropriação
interesse na Amazônia, que incluía era estimular a ocupação de terras
vários órgãos, dentre eles o Instituto sob a influência da rodovia Transa-
Nacional de Colonização e Reforma mazônica e estabelecer programas
Agrária (Incra), a Superintendência agropecuários. O GOA recomendou,
do Desenvolvimento da Amazônia então, que um milhão de hectares
(Sudam) e o Ministério da Agricultu- do Polígono fossem destinados à
ra (Brasil, Ministério da Agricultura, preservação ambiental, especifica-
Instituto Brasileiro de Desenvolvi- mente na categoria de Parna. Em
mento Florestal, 1979). A gênese do 1974, por meio do Decreto nº73.683,
parque veio atada aos projetos do o Parna da Amazônia foi criado.
governo militar de colonização e re- Nos anos que se seguiram, as co-
forma agrária – projetos marcados munidades de seringueiros que ocu-
pelas alianças do Estado com o gran- pavam a margem esquerda do rio
de capital nacional e estrangeiro, e Tapajós, na porção afetada pelo Par-
que resultaram na expropriação das na, sofreram uma violência que, até
371
hoje, ecoa na memória da região. de Mangueira, às margens do rio
Ao timbre dos clarins e do autori- Tapajós, ainda hoje tem a máqui-
tarismo da ditadura militar, com as na de costura que, com uma cama
primeiras providências para a im- de casal, consumiu todo o valor da
plementação do parque, deflagrou- indenização. O aposentado do IBDF
-se a barbárie que se prolongaria até explica: “Pagar indenização para
meados da década de 1980 e da qual quem? Só se for para deus. Eles
foram vítimas as famílias que, ha- não tinham benfeitoria nenhuma,
via gerações, habitavam a área e, no e viviam de tirar seringa que deus
período, foram violenta e arbitraria- plantava. Às vezes, a gente até aju-
mente expulsas. Formalmente, es- dava, dizendo que eles tinham des-
ses moradores deveriam ser indeni- matado uma área maior, para eles
zados e relocados após a criação da pegarem alguma coisa”. Ainda que
UC, em 1974; na prática, as medidas com uma indenização razoável, o
foram apenas cosméticas. desrespeito seria muito grande. Seu
“Contra a força, não há resistên- Porcidônio Pereira, ao ser informa-
cia: eu nunca fui homem de receber do, em fevereiro de 2005, sobre o
ordem duas vezes quando era para direito que um dia tivera à indeni-
tirar essa gente daqui”, lembrava, zação pela expropriação que sofrera
com indisfarçável orgulho, um fun- havia 25 anos, quando vivia na loca-
cionário aposentado do Instituto lidade chamada Os Fechos, correu
Brasileiro de Desenvolvimento Flo- interessado a perguntar não sobre o
restal (IBDF), referindo-se ao traba- dinheiro, mas se, de algum modo,
lho na expulsão dos moradores do ainda poderia voltar para sua casa,
parque. Já estes últimos não se re- às margens do rio Tapajós. Outros,
feriam com o mesmo sentimento como Jorge, Samuel e Lausminda,
ao episódio: a experiência de sujei- depois de empurrados para a zona
ção à intimidação e a violência são urbana, acabaram por voltar, o mais
motivos comuns nos discursos dos que puderam, para perto de seus lo-
ex-moradores sobre a imposição so- cais de origem e hoje ocupam, res-
frida para que abandonassem não pectivamente, a ilha da Montanha,
só a terra, mas todo um modo de a ilha de Lorena e o São Vicente, no
vida. Comunidades inteiras foram entorno imediato do parque.
1. Todos os trabalhos de
campo referidos neste removidas e poucas famílias foram Em entrevistas1 com antigas
texto foram realizados indenizadas. Além disso, a maioria famílias do parque, hoje residen-
em expedições
ocorridas entre abril de
das indenizações era de valor irri- tes no perímetro urbano de Itai-
2004 e abril de 2005. sório. Dona Suzana, ex-moradora tuba ou na comunidade Pimental,
Parque Nacional da
1.114.496 -18.700 -25.060 1.070.736
Amazônia
Floresta Nacional do
740.661 -856 - 739.805
Crepori
Floresta Naciona de
220.034 -7.705 - 212.329
Itaituba I
Floresta Naciona de
440.500 -28.453 - 412.047
Itaituba II
Área de Preservação
2.059.496 -19.916 - 2.039.580
Ambiental do Tapajós
Das 313 UCs federais – grupo cuja No caso específico do alto Ta-
área representa 50% do total das pajós, como visto, já se pagou um
UCs e em que a atribuição de fisca- preço altíssimo para ter UCs como o
lizar a atuação dos órgãos públicos Parna da Amazônia, com a violenta
e promover medidas que garantam expulsão das comunidades tradicio-
o respeito ao meio ambiente são do nais que ali viviam. Pense-se, agora,
MPF –, 173 não têm plano de mane- na situação das famílias expropria-
jo, 60 não têm conselho formado e das que se relocaram em Montanha
297 não concluíram a consolidação e Mangabal ou na comunidade Pi-
1. Agradecemos
aos beiradeiros de
Montanha e Mangabal
e aos Munduruku de
Sawre Muybu pela
hospitalidade, ajuda
A
e ensinamentos.
Agradecemos a
arqueologia é, por natureza, ao longo do trecho encachoeirado Francisco Noelli,
Fernando Almeida e
um dos campos de investiga- do rio Tapajós e seus tributários,
Francisco Pugliese pelas
ção mais profícuos para estu- como os rios Rato e Jamanxim, e cuidadosas leituras,
darmos o passado, particularmente seus formadores, os rios Juruena sugestões e críticas.
Erros são de nossa
de sociedades ágrafas; no Brasil, ela e Teles Pires, a partir dos registros responsabilidade.
também nos fornece indícios para existentes2. Além da arqueologia, Agradecemos à
Coordenação de
contemplar interações de diversos fontes históricas e a memória oral
Aperfeiçoamento
tipos entre sociedades ameríndias nos informam sobre o passado – fre- de Pessoal de Nível
e as maneiras como esses povos al- quentemente turbulento – da bacia Superior (Capes) por
apoiar a pesquisa
teraram a paisagem, imbuindo-a de do Tapajós após a conquista portu- doutoral de Bruna
significados e tornando o ambiente guesa (Menéndez, 1981/1982, 2006 Cigaran da Rocha.
395
3. Ver, por exemplo, drelétrico do Tapajós (CHT) – e con- povoamento ameríndio das áreas
Abdala (2012), em que
trastando com a ideia promovida de interflúvio na bacia. Antigas ocu-
Maurício Tolmasquin,
presidente da Empresa pelo discurso oficial, de que a área pações ceramistas foram identifica-
de Pesquisa Energética em questão é vazia e sem história3 –, das em Parauá, uma área de terra
(EPE), defende o
conceito de usinas-
apresentamos aqui evidências que firme localizada a oeste da margem
plataforma para o apontam para a riqueza e a singula- esquerda do baixo curso do rio (Go-
Tapajós como uma
ridade do patrimônio arqueológico mes, 2008). Isso chama a atenção
alternativa verde para a
área, “onde não há ali existente. Longe de se situarem ao fato de que, além dos vestígios
ocupação humana. em uma floresta virgem, o Tapajós de ocupações ao longo da calha
‘Praticamente
não tem impacto e seus afluentes banham uma área dos rios, existem centenas de sítios
ambiental porque vai antropizada há milhares de anos. arqueológicos nas áreas de terra
se reflorestar tudo
As pesquisas arqueológicas no firme, algo que também tem sido
em volta e vai ficar a
hidrelétrica no meio da rio Tapajós têm se concentrado no comprovado a leste do rio Tapajós
floresta. A ideia é não baixo curso do rio (e.g. Gomes, 2001; (Martins, 2012; Stenborg et al. 2012;
ter cidades em volta.
Temos que criar essas Guapindaia, 1993; Kroeber, 1942; Perota, 1979, 1982).
inovações para usar MacDonald, 1972; Palmatary, 1960;
nossos recursos’, disse”
(grifo nosso).
Roosevelt et al., 1991); artefatos cerâ- Primeiros habitantes
micos típicos da área hoje se encon- Os primeiros grupos humanos na
tram espalhados em museus do Bra- região viveram em um ambiente
4. O etnólogo, linguista sil e exterior4. Em parte, isso se deve mais semelhante às matas de cerra-
e arqueólogo Curt
à maior facilidade de acesso ao baixo do atuais que à floresta amazônica
Nimuendajú (1953,
2004) foi o primeiro Tapajós, que é facilmente navegável. (Rossetti et al., 2004). Esses grupos
a compreender a Todavia, lembramos a observação de nômades, de tamanho reduzido,
magnitude dos
sítios arqueológicos Almeida, segundo o qual, iniciaram processos de modificação
depositados no do ambiente com o uso do fogo e
local e adjacências,
As cachoeiras são áreas-chave para geraram “ilhas de recursos”, fei-
e relacioná-los com
os Tapajó, que então a compreensão do período pré-co- ções fitogeográficas resultantes de
dominavam boa parte lonial da Amazônia. Tratam-se de restos vegetais e de sementes con-
da região.
lugares que durante milênios foram centradas em seus acampamentos e
ocupados de maneira persistente trilhas, a exemplo do que foi veri-
por grupos indígenas, que transfor- ficado entre os caçadores-coletores
maram tais lugares (entre outros) Nukak, na Amazônia colombiana
em entroncamentos de redes de (Politis, 1996).
contato (2013: 354). É possível que tenham sido es-
ses primeiros habitantes que nos
Nesse sentido, há ainda dados legaram a arte rupestre encontra-
que apontam para a antiguidade do da no Tapajós, em seus afluentes e
Fontes históricas
Devido ao embargo à navegação do
rio Tapajós pela Coroa portuguesa
até meados do século XVIII – sendo
que, pelo Tratado de Tordesilhas,
boa parte do curso do rio ainda per-
Imagens 3 e 4. Amazônia no período pós-conquista tencia à Espanha –, possuímos pou-
Aquarelas do pintor
francês Hércules
(Posey, 1987). As enfermidades fo- cos registros escritos para a região15
Florence retratando ram facilmente propagadas através anteriores ao Tratado de Madri, assi-
índios Munduruku
das antigas rotas comerciais ame- nado em 1750, que deslocou as fron-
em 1828. Fonte: Centro
Cultural Banco do Brasil ríndias (Myers, 1988). teiras luso-castelhanas para o oeste.
(2010). Situados próximo à margem di- Isso resultou em um desconheci-
reita do rio Amazonas, entre os rios mento quase total acerca dos povos
15. Uma das exceções Tapajós e Madeira, os Tupinambá – ameríndios que até então viviam
notáveis é a “Relação”
que até então se encontravam em na região. Com a instalação do Di-
de Jacinto de Carvalho,
de 1719 (apud Porro, pleno processo de expansão – dei- retório Pombalino, as fontes escri-
2012). xaram de ser referidos como etnia tas passaram a ser produzidas pri-
já em 1690 (Menéndez, 1981/1982). meiramente por administradores
Os Tapajó encontrariam destino ou militares (Porro, 2006); mesmo
H
colonizadores americanos pleisto-
á mais de 500 anos, inaugu- cênicos e seus descendentes holo-
rou-se nas Américas um con- cênicos (isto é, dos últimos 20 mil
flito de longa duração, que anos, pelo menos), incluídas aí as
perdura até os dias atuais. Tratou- populações amazônicas “históricas”
-se de uma invasão, de um processo e tradicionais.
de conquista, que principiou com o Em um dos mais recentes epi-
contato entre nativos americanos sódios desse conflito, a construção
417
de grandes empreendimentos de enquanto “recurso natural” a ser
infraestrutura – como as usinas explorado única e exclusivamente
hidrelétricas (UHEs) no marco do dentro dos parâmetros capitalis-
Programa de Aceleração do Cres- tas. Trata-se de um tema complexo
cimento (PAC) e da Iniciativa para e, neste artigo, focaremos especifi-
a Integração da Infraestrutura Re- camente a destruição da cachoeira
gional Sul-Americana (IIRSA) – tem de Sete Quedas, no baixo curso do
atuado como mais uma engrena- rio Teles Pires. Trata-se de um lugar
gem da engenharia do holocausto sagrado e paisagem de imensurável
ameríndio de longa duração. Deri- relevância para os povos Munduru-
vação direta de lógica de subordina- ku, Kayabi e Apiaká, que dará lugar
ção e esbulho muito semelhante à a uma das maiores e mais polêmi-
dos conquistadores dos séculos XV cas UHEs de barragem já vistas,
e XVI, as UHEs são as mitocôndrias cuja construção vem sendo levada a
do neo-Eldorado. cabo à revelia do direito dos povos e
Este capítulo objetiva discutir as comunidades tradicionais da bacia
manifestações de territorialidade, o do Tapajós de serem devidamente
1. N.E. Para outra patrimônio cultural e os conflitos consultados no processo1.
apreciação acerca entre leituras culturais antagônicas Nesse contexto, a grande mídia
do patrimônio
arqueológico da bacia que envolvem ações e papéis de di- – controlada e financiada por orga-
do Tapajós, ver, neste versos atores: os povos indígenas, nizações simbióticas de políticos e
volume, “Floresta
os setores do Estado vinculados às grupos privados de empreendedo-
virgem? O longo
passado humano da políticas desenvolvimentistas, os res – vem utilizando suas expertises
bacia do Tapajós”, de grupos privados de empreendedo- para, na defesa da construção da
Vinicius Honorato
de Oliveira e Bruna res, os pesquisadores da arqueolo- UHE a qualquer preço, desempe-
Cigaran da Rocha. gia e os órgãos governamentais vol- nhar uma função análoga à de uma
tados à proteção e gestão dos bens barragem. Retendo o fluxo de infor-
culturais e à defesa dos direitos dos mações sobre os problemas que le-
povos e comunidades tradicionais. vam à inviabilidade de muitos pro-
Destacaremos que a dimensão de jetos, manipula e converte tudo em
territorialidade dos povos amerín- “energia” para o “progresso”. Con-
dios – etnograficamente estrutura- tudo, como recentemente visto no
da em uma “natureza-paisagem”, alto rio Madeira, quando o volume
construída e simbolizada milenar- de problemas – subdimensionados
mente – vem sendo sacrificada pela e omitidos técnica e politicamente
destruição dos lugares sagrados em – ultrapassa os limites do controle
prol da apropriação da paisagem político-midiático, observa-se a en-
U
das instalações de
ma palavra mostrou-se recor- rio e Vitória do Xingu, vizinhos a um grande sítio de
mineração de ouro a
rente em minhas conversas Altamira. No entanto, a última é a céu aberto, o maior
sobre Altamira, em 2013, com cidade com maior infraestrutura da do país. O processo
encontra-se paralisado
moradores da cidade1. Por um mo- região e funciona como base urbana após decisão da justiça
tivo ou outro, sem que eu fizesse do empreendimento. No segundo federal, de junho de
2014, que condicionou
menção à imagem, ela surgia. “Al- semestre de 2013, a obra chegou a
o licenciamento à
tamira virou um garimpo”, eles di- ser tocada por 25 mil trabalhadores realização de estudos
ziam. Um garimpo. Como se sabe, (clímax atingido em outubro). Des- que avaliem o impacto
do projeto sobre os
o momento atual dessa cidade pa- ses, 30% são originários de Altamira. povos indígenas da
raense à beira do rio Xingu e da ro- Os outros, cerca de 17,5 mil pessoas, região.
dovia Transamazônica não envolve são migrantes vindos para trabalhar 3. Esses dados foram
fornecidos pelas
a extração de minério (ainda que na obra3. Do total, 87% são homens. empresas construtoras
essa atividade esteja planejada para Uma parte dos recém-chegados à Folha de S.Paulo,
que publicou extensa
um futuro próximo2), e sim a cons- trouxe familiares. Somando-os aos
reportagem sobre Belo
trução da usina hidrelétrica (UHE) que vieram em busca de oportuni- Monte no fim de 2013
de Belo Monte. Há algo, contudo, se dades de trabalho fora da barragem, (Leite et al., 2013).
passando em Altamira que inspira estima-se que a população da cidade 4. Uma cifra que é, na
em alguns de seus moradores a im- tenha aumentado de 100 mil habi- melhor das hipóteses,
uma estimativa
pressão de estarem habitando uma tantes (segundo o Censo 2010) para
grosseira. Conversando
vila garimpeira. cerca de 150 mil4. Todo esse novo com um funcionário do
Os canteiros de obra da barra- contingente populacional usa os escritório do Instituto
Brasileiro de Geografia
gem de Belo Monte situam-se nos serviços disponíveis em Altamira, e Estatística (IBGE) em
municípios de Senador José Porfí- do atendimento de saúde às casas Altamira, uma frase
437
me chama atenção: lotéricas, dos bancos aos bares e tendo seu sentido ampliado para
“É impossível saber
quantas pessoas estão
bordéis. dar conta de novas configurações
na cidade agora. Nem O objetivo deste artigo é traçar sociais, econômicas e políticas em
se houvesse catracas
um panorama dos impactos ur- uma região específica. Nesse traje-
nas entradas da cidade
conseguiríamos ter banos da construção da UHE Belo to, revelam-se determinadas cone-
noção desse número”. Monte em Altamira, tendo como xões entre a realidade local e con-
guia a metáfora garimpo, usada para textos político-econômicos mais
caracterizar a cidade por alguns de amplos que refletem diferentes mo-
seus moradores. Para isso, busca- mentos do processo de colonização
remos compreender algumas das em curso na Amazônia. Também se
características que gravitam em torna possível oferecer subsídios, a
torno do termo que fazem com que partir do exemplo de Belo Monte,
ele seja aplicável à situação atual para refletir sobre impactos urba-
de Altamira. A estratégia é seme- nos de outros projetos hidrelétri-
lhante à empregada por Gluck e cos planejados na região, entre os
Tsing (2009: 11), quando falam em quais o complexo hidrelétrico do
“palavras em movimento”. Trata-se, Tapajós (CHT), já em processo de
neste caso, de seguir uma palavra licenciamento.
enquanto ela viaja temporalmente,
438 Macedo
O garimpo hidrelétrico 439
Altamira indígenas que vinham subindo o
O rio Xingu tem seus cursos médio rio ou emigravam pressionados por
e baixo separados por uma imensa conflitos. Mas foi com o estabele-
curva, apinhada de ilhas e cachoei- cimento dos seringais que a paisa-
ras, que dificultam o acesso à região gem humana mudou mais drástica
a montante, impedindo a navega- e rapidamente: a invasão propicia-
ção contínua a partir do Amazo- da pela estrada intensificou a mor-
nas. Na segunda metade do século talidade de nativos, acelerada por
XIX, com o início da demanda por doenças ou violência, que trans-
borracha, a forma encontrada para formaram em cacos as sociedades
explorar os seringais do médio cur- indígenas habitantes das margens
so do rio foi construir uma estrada e ilhas do médio Xingu; algumas
para contornar o obstáculo ofereci- foram extintas por completo antes
do pela chamada Volta Grande do que aparecessem os primeiros rela-
Xingu. Um porto foi instalado do tos de viajantes que passaram pela
lado norte, onde hoje está a cidade região no século XIX (Adalberto da
de Vitória do Xingu. Mercadorias Prússia, 1977 [1847]; Coudreau, 1977
e pessoas eram transportadas ini- [1897]; Snethlage, 1913; Nimuenda-
cialmente por uma picada e depois jú, 1948).
por uma estrada entre o porto e o Se a estrada entre Altamira e Vi-
entreposto comercial que escoava a tória do Xingu propiciou o início da
borracha e que se tornaria a cidade colonização da região, a aceleração
de Altamira. desse processo viria a acontecer
Até o início do comércio da bor- com a abertura de outra estrada,
racha, a Volta Grande e o médio desta vez capaz de criar uma liga-
Xingu eram habitados por diversos ção muito mais intensa entre essa
povos indígenas em contato inter- parte da Amazônia e o mundo exte-
mitente com os brancos que, aos rior. A Transamazônica, inaugura-
poucos, já se assentavam no baixo da em 1972, chegou com a intenção
curso do rio. Algumas missões je- do governo militar de colonização
suítas tentaram se instalar na re- planejada da floresta. Desde então,
gião desde o século XVII, sem mui- novos fluxos migratórios têm se
to sucesso. É muito provável que dirigido à região, ainda vindos em
os arranjos humanos na região já peso do Nordeste, mas também de
estivessem mudando rapidamente todo o Brasil, inicialmente devido à
desde o início da colonização, com oferta de terras para agricultura. A
grandes deslocamentos dos povos cidade de Altamira inchou, tornan-
440 Macedo
do-se o principal centro de comér- O garimpo, aqui e alhures
cio e serviços de toda a região do Na década de 1980, seu Francisco,
Xingu. A população do município hoje pedreiro, passou dois anos tra-
saltou de menos de 15 mil pessoas, balhando em um garimpo em Cas-
em 1970, para 45 mil, dez anos telo de Sonhos. A sorte foi pouca na
depois (Umbuzeiro & Umbuzeiro, busca por ouro e ele não conseguiu
2012: 283). juntar dinheiro com o trabalho.
A partir de 2011, a região de Al- Mas o dono do garimpo enricou: a
tamira vive um momento de trans- certa altura, tinha uma frota de 12
formações tão grandes quanto as aviões. Os trabalhadores precisa-
provocadas pela abertura da Transa- vam ser levados ao local, no meio
mazônica. Após cerca de 30 anos do da mata, por via aérea. Eram cerca
projeto inicial, formulado também de 150 homens trabalhando em gru-
no período da ditadura militar e en- pos de no mínimo quatro pessoas.
frentando enorme resistência5, em A área era repartida, uma para cada 5. Lembre-se o célebre
I Encontro dos Povos
2011, iniciou-se a construção da UHE grupo. De todo o ouro que se encon- Indígenas do Xingu,
Belo Monte. O rio Xingu está sendo trasse aí, metade ficava com o dono realizado em 1989, com
a intervenção decisiva
barrado e será transposto, passan- do garimpo e a outra metade era dos povos indígenas,
do por um canal que corta a Volta dividida igualmente entre seus des- especialmente Kayapó,
Grande, levando a maior parte água na paralisação dos
cobridores. Todo o equipamento,
planos de construção da
para as turbinas localizadas em sua além de alimentação, era fornecido barragem, que seriam
outra ponta. O trecho do rio entre pelo dono. retomados mais de
uma década depois
a barragem e a casa de força princi- Quando o ouro em Castelo de So- (Sevá Filho, 2005; Santos
pal ficará com uma vazão reduzida, nhos rareou, os aviões foram vendi- & Andrade, 1988).
e pouco se sabe sobre o impacto do dos, com exceção de um, usado na
barramento na navegação e na pes- pesquisa de novas áreas de explora-
ca. A população local lida com in- ção. Da última vez que Francisco ou-
certezas agudas: o descompasso en- viu falar do garimpeiro, estava bem
tre o ritmo das obras na barragem ao norte, no Oiapoque, em busca de
– já alcançando, no fim de 2013, 40% novas riquezas.
em seu andamento – e as ações de Mais tarde, Francisco se interes-
infraestrutura urbana e todo tipo sou por outro garimpo, mais pró-
de compensações prometidas para ximo, na região da Volta Grande.
a região, ainda muito incipientes, Ali funcionava, até havia poucos
desagrada até mesmo àqueles que meses, uma pequena área de ex-
apoiavam desde o início o projeto ploração de ouro, mas o minério se
da UHE. encontrava a profundidades consi-
442 Macedo
no forró… Confusão, briga, bebedei- gem: a “confusão” a que alude Albe-
ra, tiro – e o pessoal se divertindo, rico no trecho acima sobre Minaçu,
e a mulherzada que vinha também filas, muito movimento, preços al-
pra homaiada, aquela confusão, tos, violência. Seu Leonardo7, pes- 7. Os nomes de
algumas das pessoas
aquela festa. E gente que bambur- cador juruna habitante da cidade,
mencionadas foram
rava atirando pra cima, uns assus- contava-me que, dias antes de nossa trocados.
tavam, depois acostumava. Tudo conversa, desistira de comprar pão
muito animado, e confuso também! do outro lado da rua depois de 15
(Guedes, 2011: 75). minutos observando o trânsito in-
tenso de ônibus e caminhões sem
Até onde sei, em Altamira não conseguir atravessar. Elza Xipaia,
se costuma usar o termo febre. Fa- liderança entre indígenas da zona
la-se em fofoca para dar conta do urbana, põe em palavras o descon-
movimento em uma determinada forto com o crescimento repentino
área, motivado por alguma ativida- de Altamira; de seu ponto de vista,
de. “Está rolando uma fofoca para é como se houvesse uma diluição
aqueles lados”, diz-se. Um dos pólos dos moradores antigos da cidade na
de atração era o distrito de Castelo nova leva de recém-chegados. Com
de Sonhos, ao sul da sede de Altami- eles, vieram a insegurança e a pre-
ra, próximo à fronteira com o Mato cariedade nos serviços de saúde.
Grosso (ver mapa 2). A fofoca de ga-
rimpo mais próxima da cidade si- Antes Altamira como era, do que o
tuava-se na Volta Grande do Xingu. que ela é hoje. As famílias indíge-
Nas últimas duas décadas, contudo, nas, principalmente, viviam muito
ela entrou em decadência; hoje, os concentradas, perto uma da outra,
garimpos desapareceram, engolidos tudo junto. Fim de semana se reu-
pela Belo Sun, a empresa canadense nia ali na beira do rio, ou então ia
que está à beira de instalar na área ali para a praia. Tinha uma vida de
o maior sítio de extração de ouro a família mesmo, perto uma da outra.
céu aberto do país. Depois que Altamira cresceu, você
Para além do lado da “paixão” hoje não pode mais ficar sentada na
suscitada pela febre, que Guedes sua porta conversando com o vizi-
descreve, o que os moradores de Al- nho porque passa um mau elemen-
tamira retêm do “garimpo”, quan- to, já vem o ladrão, já vêm os outros
do utilizam o termo para se referir marginais. Você não tem mais paz.
à cidade atualmente, são principal- Para a gente ver um amigo, antiga-
mente aspectos negativos da ima- mente você saía na rua, eu te en-
446 Macedo
Capixaba, Souza chegou há 28 mês, quando os salários são pagos,
anos. Veio ficar próximo do pai, o movimento é grande. São grupos
que tinha um lote na região, onde de homens sentados em ambientes
cultivava principalmente uma roça com música em alto volume, consu-
e pimenta-do-reino. Até então fun- mindo litros de cerveja. No fim da
cionário de banco no Paraná, Souza tarde, alguns corpos embriagados
abriu o mercado oito anos depois estendem-se pelas calçadas e há lixo
da mudança para o Norte. Começou por toda parte. “Me sinto até traído.
com um comércio pequeno, que Prometeu-se muito e não estou ven-
foi crescendo ao longo do tempo. do muita coisa”, diz Souza.
Teve três filhos, todos criados em
Altamira. Dois deles, já formados, Violência
trabalham no supermercado do pai. Segundo dados da Polícia Civil, hou-
Este ano, contudo, Souza tem tido ve um aumento significativo em
dúvidas sobre a viabilidade de seu algumas ocorrências em Altamira
negócio. depois que se iniciaram as obras
Os ovos não eram de ouro e a de Belo Monte. Tráfico de drogas,
galinha tem causado um caos na ci- furtos e roubos, exploração sexual.
dade. Os tão esperados ganhos não A substância ilícita preferida na ci-
aumentaram o suficiente para com- dade, que representa cerca de 90%
pensar os problemas. No caso do do que é apreendido, é o crack. Mas
supermercado, são principalmente desde o segundo semestre de 2012,
dois fatores: as constantes quedas com o maior poder aquisitivo dos
de energia e as dificuldades com recém-chegados, começou-se a en-
mão de obra. Com a abundância de contrar alguma cocaína. Além dis-
empregos, tem sido difícil manter so, cinco bordéis foram fechados
novos contratados. A empresa gas- em 2013, quatro em Altamira e um
ta com o processo de admissão, e o em Vitória do Xingu. O último caso
novo funcionário se demite no mês ganhou atenção da mídia por envol-
ou na semana seguinte. ver uma menor de idade e por todas
O supermercado de Souza en- as mulheres terem vindo do Paraná,
contra-se próximo a um cruzamen- vivendo em péssimas condições em
to onde estão localizados quatro um estabelecimento da área rural,
bares bastante frequentados pelos próximo a um dos canteiros de obra
trabalhadores da obra no fim de se- da barragem. A chegada da cocaína
mana. A partir das 9 horas da ma- tem contribuído para mudar o cená-
nhã, principalmente no início de rio da criminalidade local. Há mais
448 Macedo
após o início da construção das ins- comuns as histórias de brigas dentro
talações da Ford no rio Tapajós – dos bregas. Elas acontecem entre os
onde se planejava cultivar as serin- trabalhadores ou entre as prostitu-
gueiras que supririam de borracha tas – há uma crescente tensão entre
a montadora de automóveis ameri- as brasileiras e a leva de bolivianas.
cana – toda uma gama de serviços Muitas terminam em facadas, algu-
se estabeleceu em vilarejos pró- mas em morte. [...]
ximos à plantação. Greg Grandin Em época de pagamento na usina,
(2010) conta como a entrada repen- Jaci Paraná ferve com o dinheiro dos
tina de dinheiro fez despontarem trabalhadores.
pequenos cafés, restaurantes, lojas Começa pelos bordéis. Além das
de frutas, casas de jogo e bordéis, prostitutas locais, mulheres vêm de
comandados por comerciantes lo- outros estados para fazer programa
cais e empregando principalmente só na semana do pagamento. Se-
mulheres nordestinas. Um envia- gundo Michele, algumas vivem na
do de Henry Ford para averiguar o ponte aérea com Belo Monte, usina
progresso de Fordlândia – nome da hidrelétrica em construção no Pará.
cidade seringueira a ser erguida em Elas se deslocam de acordo com o
meio à selva – observou que o local dia do pagamento em cada usina. [...]
havia se transformado em “uma A parca estrutura de segurança pú-
Meca para todos os indesejados, até blica fica impotente diante da força
mesmo criminosos, de todo o vale do dinheiro que circula na vila. Duas
do Amazonas” (Ibid.: 166). semanas antes da entrevista, Shirley
Uma reportagem da agência A teve sua casa assaltada, e o marido
Pública, de 2012, descreve a situação levado como refém. O prejuízo foi
da vila de Jaci Paraná, em Rondônia, de mais de R$ 20 mil em dinheiro
durante a construção das barragens e equipamentos eletrônicos, mas
do rio Madeira. Farras, prostituição, ela não vai fazer a denúncia, pois to-
dinheiro, violência: dos sabem quem são os assaltantes
e o que fazem. Apesar disso, nada
A vila de pescadores virou um lugar acontece.
de passagem. As pessoas estão em A polícia não dá conta da força que
busca de dinheiro, não de vínculos. ganhou o crime local. Os comercian-
Há uma tensão constante no ar. A tes pagam uma empresa particular,
sexualidade pulsa das roupas curtas, que tem carros e motos bem iden-
que às vezes expõem as partes ínti- tificados, para circular pelas três
mas das mulheres à luz do dia. São principais ruas da vila. Em setembro
450 Macedo
condensa justo aquilo que uma ci- Uma máquina semelhante ten-
dade não deveria ser. Se, no traba- de a se formar em grandes obras.
lho de Guedes, a febre aparece como No caso de UHEs, a semelhança não
uma temporalidade acelerada que se dá só em termos desses arranjos
desperta paixões e movimento, sen- sociais específicos que reverberam
do alvo de nostalgia para aqueles a situação de garimpo. Ela se dá
que a viveram (em uma cidade que pela própria qualidade da máqui-
se arrisca a desaparecer), no caso de na, que também tem como intui-
Altamira, o garimpo traduz o lado to capturar um elemento natural,
negativo da movimentação. Isso capitalizando-o – a força do rio
se dá, sobretudo, para aqueles que é transformada em energia a ser
não estão diretamente relacionados vendida. A grande diferença aqui é
com a barragem, não estão tendo que essa máquina é parte de uma
ganho financeiro significativo com política de governo que envolve
ela, mas enfrentam os diversos pro- as principais corporações privadas
blemas gerados pela sua chegada. brasileiras. Há uma verticalização
Um garimpo é ainda uma máqui- muito mais acentuada, que liga
na de transformação de elementos em uma cadeia, com relativamente
naturais em capital. Essa máquina poucos mediadores, o peão da obra
tem uma organização própria, que ao grande empresariado nacional
mobiliza constelações específicas: e à presidência da República. Não
trabalhadores e patrões; maquiná- à toa, muitas dessas pessoas com
rio, ferramentas, balsas; dinheiro, quem conversei em um momento
mercadorias, álcool, outras drogas e ou outro faziam referência indis-
prostitutas. O álcool, as drogas e a criminadamente ao governo ou
aglomeração fazem aumentar a sen- às empresas construtoras de Belo
sação de insegurança. Com o incha- Monte. Já os garimpos – tal como
ço e o dinheiro, os preços sobem. eles se estruturaram na região
Ela se sustenta enquanto há ouro e amazônica, particularmente – se
enquanto o ouro tem preços atrati- organizam a partir de fluxos econô-
vos. Carrega consigo o aspecto cícli- micos locais e dispersos, em que o
co e móvel das atividades econômi- “dono” do garimpo, capaz de reali-
cas na região amazônica, ao mesmo zar investimentos (em maquinário,
tempo em que expressa o aspecto transportes etc.) de modo a concen-
da “confusão”, das farras, da violên- trar a maior parte dos ganhos, em
cia constituintes do que se poderia geral exerce, no máximo, alguma
chamar de uma forma-garimpo. influência política regional.
452 Macedo
na região de Altamira tem uma rela- reportagem e jornalismo investiga-
ção íntima com o Estado (de forma tivo. São Paulo, 7 dez. Disponí-
bastante diversa), uma vez que toma vel em: <http://www.apublica.
força a partir da abertura da Transa- org/2012/12/vidas-em-transito/>
mazônica pelo governo militar9. (acesso: 2 abr. 2014). 9. Nota-se ainda que
havia uma cadeia
O aspecto de previsibilidade Bateson, Gregory. 2000 [1972]. Steps hierárquica no caso da
dado por tal padrão é urgente em to an ecology of mind. Chicago/Lon- mineração de ouro, mas
já também na extração
um momento em que proliferam dres, The University of Chicago
da seringa, capaz de
projetos de grandes UHEs por toda Press. ligar as atividades
a Amazônia. O caso das UHEs pre- Coudreau, Henri. 1977 [1897]. Via- locais aos compradores
localizados em grandes
vistas para o rio Tapajós é emble- gem ao Xingu. Belo Horizonte/São centros e ao comércio
mático nesse sentido. Itaituba, ci- Paulo, Itatiaia/Edusp. internacional. Miller
(1985) observa que o
dade próxima ao local onde podem Gluck, Carol; Tsing, Anna. 2009.
garimpo em Itaituba
se instalar os canteiros de obra, já Words in motion. Durham/Lon- é similar em muitos
foi uma das áreas garimpeiras mais dres, Duke University Press. aspectos ao sistema
de patronagem
movimentadas do país. Miller (1985) Grandin, Greg. 2010. Fordlândia: as- característico da
conta que, em 1977, um coletor de censão e queda da cidade esque- extração de seringa e
de madeira em outras
impostos estimou haver 186 garim- cida de Henry Ford na selva. Rio
áreas da Amazônia.
pos na área, com aproximadamente de Janeiro, Rocco. Ainda assim, são
20 mil trabalhadores. Já na década Guedes, André Dumans. 2011. O configurações bastante
diferentes do que
de 1980, estimava-se que esse núme- trecho, as mães e os papéis. Tese de ocorre em grandes
ro subira para 100 mil. Ao que tudo doutorado (Antropologia social). obras, como UHEs, nas
quais a hierarquia
indica, caso os planos de construção Rio de Janeiro, Universidade Fe- encontra-se altamente
dessas barragens se concretizem, os deral do Rio de Janeiro. centralizada nas
tempos do garimpo devem retornar ___. 2014. “Fever, movement, pas- empresas construtoras.
Uma análise mais
à região, assumindo nova roupa- sion and dead cities in Northern fina destas relações,
gem: a de um garimpo hidrelétrico. Goiás”. In: Virtual Brazilian An- não obstante sua
alta relevância para a
thropology (Vibrant), Dossiê Etno- economia de minha
[artigo concluído em julho de 2014] grafias da Economia, v.11, nº1. argumentação, exigiria
um espaço bem maior
Brasília, Associação Brasileira
que o disponível aqui.
Referências bibliográficas de Antropologia, jan.-jun., pp.
Adalberto da Prússia, Príncipe. 56-95.
1977 [1847]. Brasil: Amazonas-Xin- Lacerda, Paula M. 2012. O “caso dos
gu. Belo Horizonte/São Paulo, meninos emasculados de Altamira”.
Itatiaia/Edusp. Tese de doutorado (Antropologia
Aranha, Ana. 2012. “Vidas em trân- social). Rio de Janeiro, Universi-
sito”. In: A Pública – Agência de dade Federal do Rio de Janeiro.
454 Macedo
Impactos da construção de USINAS hidrelétricas
sobre quelônios aquáticos amazônicos
Um olhar sobre o complexo hidrelétrico do Tapajós
Juarez Carlos Brito Pezzuti, Marcelo Derzi Vidal
e Daniely Félix-Silva
O
s recursos hídricos e a biodi- desmatamento, a mineração, a uti-
versidade aquática vêm sen- lização de agrotóxicos e a poluição
do degradados por atividades ocorrem ou ocorreram nos trechos
humanas praticadas de forma insen- superiores, barragens a jusante am-
sata, descontrolada e em desacordo plificam o problema da contamina-
com um planejamento visando a ção e do assoreamento (McAllister et
sustentabilidade em longo prazo. O al., 2001; Moll & Moll, 2004).
desmatamento, a poluição, a cana- As consequências do barramen-
lização, o assoreamento, a minera- to de rios são extremamente com-
ção, as barragens para diversos fins, plexas, cumulativas e com diversos
a exploração insustentável da água efeitos que se tornam sinérgicos e
e da biodiversidade aquática, e as agravam os impactos negativos. De
mudanças climáticas estão entre as acordo com McAllister et al. (2001),
principais atividades que ameaçam barragens e seus reservatórios asso-
os ecossistemas aquáticos (Goul- ciados impactam a biodiversidade
ding, 1990; Junk & Nunes de Mello, e os ecossistemas aquáticos das se-
1990; Goulding et al., 1996, 2003; guintes maneiras:
McAllister et al., 2001; Moll & Moll,
2004). Essas atividades frequente- i) bloqueio do movimento de espé-
mente ocorrem de forma simultâ- cies migratórias para montante e
nea dentro de uma mesma bacia, ge- jusante, causando extinção local
rando efeitos sinérgicos ainda mais de espécies e/ou de estoques gene-
graves. Por exemplo, em rios onde o ticamente distintos;
455
versidade íctica e, consequente-
mente, a pesca;
viii) mudanças no regime sazonal de
descargas, que pode afetar o supri-
mento de nutrientes, impactando
as cadeias alimentares e a pesca
continental e estuarina;
ix) modificação da qualidade da água
e padrões de descarga a jusante; e
x) efeitos cumulativos, no caso de
barragens em série, com os impac-
tos de uma se sobrepondo aos das
situadas a jusante.
Imagem 1. Tracajá ii) alteração dos níveis de turbulência
(Podocnemis unifilis)
e sedimentação aos quais as espé- No que diz respeito à pesca, para
fêmea. Por Daniely
Félix-Silva. cies e os ecossistemas estão adap- Bernacsek (2001), barragens impac-
tados – a retenção de sedimentos tam a biodiversidade íctica, os es-
priva deltas fluviais e estuarinos de toques e a atividade pesqueira, mo-
materiais e nutrientes para sua ma- dificando ou degradando hábitats
nutenção e produtividade; tanto a jusante quanto a montante
iii) filtragem de detritos vegetais que do empreendimento. Esse autor
sustentam a cadeia trófica; afirma, além de vários dos impactos
iv) mudanças nas condições físicas e acima mencionados:
químicas do sistema, especifica-
mente na descarga, temperatura e i) estratificação da reserva e modifi-
níveis de oxigênio, tornando o am- cação do fluxo de água para as pla-
biente inadequado para espécies nícies de inundação rio abaixo;
tipicamente fluviais; ii) retenção de sedimentos e nu-
v) possibilidade de introdução de no- trientes no reservatório, podendo
vas espécies, capazes de afetar a causar explosões demográficas de
biodiversidade local (por exemplo, organismos oportunistas, provo-
infestação por plantas aquáticas); cando eutrofização;
vi) possibilidade de colonização da iii) infestação do reservatório por
área por vetores de doenças para plantas aquáticas; e
animais e humanos; iv) contaminação por pesticidas oriun-
vii) alterações nas dinâmicas de pulso dos das áreas agrícolas ao redor do
de inundação, impactando biodi- empreendimento.
A
região entre Aveiro e Jacarea- tambaqui (Colossoma macropomum),
canga, no rio Tapajós, apre- e sobre as consequências do barra-
senta pesca tradicional, com mento do rio, com a construção da
características de subsistência, e usina hidrelétrica (UHE) de São Luiz
pesca profissional; ambas abaste- do Tapajós.
cem os núcleos urbanos. As prin- Os peixes migradores represen-
cipais cidades e sedes de distritos tam mais da metade do pescado
contam com infraestrutura bem desembarcado pela pesca comercial
estabelecida de apoio à atividade na bacia amazônica e chegam a ul-
pesqueira, como mercados e fábri- trapassar 90% do total desembarca-
cas de gelo, mas o volume do de- do em alguns dos principais centros
sembarque é pequeno, bem inferior urbanos da região (Ruffino, 2004;
ao dos centros urbanos que mar- Barthem & Goulding, 2007). As es-
geiam o rio Amazonas-Solimões. Os pécies migradoras capturadas pela
pescadores que ali atuam possuem pesca comercial e de subsistência
conhecimentos sobre a biologia dos apresentam comportamentos mi-
peixes que podem ser usados para gratórios distintos por extensa área
inferir sobre abundância e compor- da bacia amazônica. As migrações
tamento migratórios dos mesmos. podem ocorrer ao longo do canal
Esses conhecimentos foram utili- principal do rio Solimões-Amazo-
zados neste trabalho para inferir nas, como é o caso dos bagres que
sobre os modelos de migração do realizam migrações entre o estuário
jaraqui (Semaprochilodus spp.) e do e os Andes (Barthem & Goulding,
479
início da fase de enchente do rio,
de modo que o pulso anual de ala-
gação auxilia na rápida dispersão
das larvas nas áreas recém-inunda-
das a jusante, que funcionam como
berçários (Araújo-Lima & Oliveira,
1998; Araújo-Lima & Ruffino, 2004).
A distância percorrida por ovos e
larvas à deriva no rio Amazonas,
Imagem 1. Tambaqui 1997; Barthem et al., 2003); entre o até o momento em que necessitam
(Colossoma
macropomum) pescado
canal principal e seus tributários, se alimentar, pode variar de 500
no Tapajós. Por Efrem caso do tambaqui, jaraqui e matrin- a 1.300 quilômetros (Araújo-Lima
Ferreira, fev. 2009.
chã (Goulding, 1980; Goulding & & Oliveira, 1998), o que garante o
Carvalho, 1982; Ribeiro, 1983; Bor- povoamento de extensas áreas a
ges, 1986; Ribeiro & Petrere, 1990; jusante.
Araújo-Lima & Goulding, 1997); ou, As UHEs exercem um papel ne-
por último, podem ser restritas a gativo na manutenção dos estoques
somente um tributário, como ocor- migradores, tendo em vista que elas
re com o mapará no rio Tocantins alteram o ambiente e o ciclo de en-
(Carvalho & Merona, 1986). chentes do rio, e interrompem a
Os pescadores são profundos conectividade dos trechos a mon-
conhecedores dos hábitos migrató- tante e a jusante, afetando a deriva
rios das espécies comerciais, e seu de ovos e o acesso dos reprodutores
conhecimento tem sido usado para às áreas de desova (Godinho & Godi-
inferir sobre abundância e migra- nho, 1994; Araújo-Lima, 1984; Leite
ção dos peixes (Silvano et al., 2006; et al., 2006; Oliveira & Araújo-Lima,
Silvano & Begossi, 2010; Hallwass et 1998). No entanto, o barramento
al., 2013). Na Amazônia central, os dos rios nem sempre inviabiliza as
pescadores possuem redes próprias populações de peixes, pois essas po-
para capturar os peixes quando dem se manter mesmo com o iso-
esses estão migrando, em especial lamento dos trechos de montante e
aqueles da ordem Characiformes jusante, caso eles apresentem carac-
que migram entre o canal principal terísticas favoráveis para a repro-
e seus tributários (Barthem & Goul- dução e crescimento da população
ding, 2007). Esses peixes procuram (Pompeu et al., 2012).
desovar no encontro das águas dos A Amazônia possui um grande
tributários com o rio principal, no potencial para geração hidrelétrica,
A
implantação de grandes pro- “bem maior” ignora o fato de que,
jetos de infraestrutura no através de processos de retroali-
oeste do Pará (bacias do Xin- mentação climática, as mudanças
gu e do Tapajós) provocou e provo- ambientais não mitigadas provoca-
ca impactos que agora começamos das direta ou indiretamente pelos
a poder medir de forma objetiva, megaempreendimentos vão impac-
em termos de prejuízos ambientais, tar, no médio prazo, os próprios em-
sociais e econômicos para a região e preendimentos, tornando-os menos
os seus habitantes. A argumentação eficazes ou até inoperantes. Assim,
que sustenta politicamente a rea- enormes somas de recursos do Esta-
lização de tais empreendimentos do são destinadas a obras que, além
passa obrigatoriamente pela exalta- de provocar impactos irreversíveis
ção dos benefícios que o desenvolvi- sobre os ecossistemas florestais e
mento da bacia amazônica pode tra- os seus habitantes, podem se tornar
zer para o conjunto da nação e pelo deficitárias em poucos anos.
planejamento de ações de previsão Os programas plurianuais Bra-
e mitigação de danos ambientais, sil em Ação (1996), Avança Brasil
que, até a data, têm sido ineficazes. (2000), Programa de Aceleração do
Além de ser questionável na sua Crescimento - PAC (2007) e PAC 2
lógica interna (o desenvolvimento (2010) agrupam uma série de obras
do país não passa obrigatoriamente de portes médio, grande e muito
pelo aumento do seu Produto In- grande, sendo o objetivo fundamen-
terno Bruto - PIB), o argumento do tal, mas não exclusivo, alavancar a
495
economia por meio da construção (LI) estão atrasadas, não foram ini-
de estradas, portos e usinas de ge- ciadas, ou foram simplesmente ig-
ração de energia (Fearnside, 2013). noradas (Instituto Socioambiental,
Na região amazônica, os principais 2014).
empreendimentos em desenvolvi- As consequências ambientais
mento inseridos no PAC são a usina da heterodoxia e omissão dos em-
hidrelétrica (UHE) de Belo Monte, preendedores e órgãos de fiscaliza-
em Altamira (Pará); o asfaltamen- ção no processo de licenciamento
to da estrada BR-163 (Cuiabá-San- são sempre desastrosas. A percep-
tarém) no seu trecho paraense; e a ção das fraquezas do processo por
construção das UHEs de São Luiz do parte dos sujeitos locais interessa-
Tapajós e Jatobá (Brasil, Ministério dos na extração ilegal de recursos
do Planejamento, Orçamento e Ges- da floresta ou na sua remoção se faz
tão, Comitê Gestor do Programa de de forma célere e direta, estimulan-
Aceleração do Crescimento, 2014). do a realização de crimes ambien-
O processo de licenciamento tais na certeza da impunidade e do
desses empreendimentos é, de pra- valioso retorno econômico associa-
xe, falho. Citando um caso ampla- do ao crime (Bowman et al., 2012).
mente documentado, o processo de As consequências desse cená-
licenciamento da UHE Belo Monte rio de omissão governamental são
tem avançado sempre no limite da particularmente graves em uma
legalidade, sendo objeto de 13 ações região onde reina um absoluto
por parte do Ministério Público Fe- caos na questão fundiária (Torres,
deral (MPF) (Bermann, 2013). A con- 2005; 2012). Os piores cenários de
tinuidade da obra só foi assegurada governança imaginados nos anos
por decisões e sentenças de juízes anteriores ao licenciamento do as-
federais que ignoram os argumen- faltamento da BR-163 são hoje rea-
tos técnicos e protelam os proces- lidade: o Plano BR-163 Sustentável
sos, fazendo uso do dispositivo legal não saiu do papel; os assentamen-
denominado suspensão de seguran- tos da reforma agrária foram aban-
ça (SS), criado no período da ditadu- donados ou utilizados para abaste-
ra militar. No primeiro semestre de cer o lobby madeireiro (Greenpeace,
2014, a poucos meses do pedido da 2007; Torres, 2012); iniciativas como
licença de operação (LO) e, portan- o Programa Terra Legal incentivam
to, do começo da geração de energia a ocupação ilegal de terras públicas
pela UHE, diversas condicionantes em glebas federais (Cunha, 2009); as
associadas à licença de instalação iniciativas do Estado para retomada
496 Doblas
de terras públicas griladas foram O EIA/Rima foi alvo de diversas críti-
abortadas (Idem; Torres, 2012) e a cas, sobretudo nos aspetos relativos
agricultura familiar é preterida nas à avaliação dos impactos indiretos
políticas públicas, em prol do agro- advindos do asfaltamento da rodo-
negócio e de seu fortíssimo lobby. via (Fearnside, 2005).
Neste texto serão analisados os Em relação a esses impactos in-
impactos dos maiores empreendi- diretos, diversas modelagens de
mentos em vias de implantação no mudanças no uso do solo espacial-
oeste do Pará e serão discutidas as mente explícitas foram realizadas
consequências desses impactos para para demonstrar as possíveis conse-
a população. Será realizada igual- quências do asfaltamento da BR-163
mente uma avaliação dos efeitos em diversos cenários de governança
desses impactos na própria eficácia (Fearnside et al., 2012). Os cenários
dos empreendimentos planejados e apontavam consequências catastró-
em execução. ficas para a região caso não fossem
realizadas anteriormente ao asfal-
Desmatamento associado ao tamento ações enérgicas destinadas
asfaltamento da BR-163 a aumentar a governança (Idem).
Como parte do programa Avan- Correspondendo às inquietudes da
ça Brasil, o governo anunciou, em comunidade científica e às manifes-
2002, o asfaltamento dos 1.005 tações de diversos setores da socie-
quilômetros da parte paraense da dade civil (ver Carta de Santarém,
estrada BR-163 (Cuiabá-Santarém), 2004) – e pressionado pelo clamor
com um valor inicial estimado de internacional que se seguiu ao assas-
pouco menos de R$ 1 bilhão, reava- sinato da irmã Dorothy Stang, em
liado em R$ 2,25 bilhões em 2013 Anapu, no começo de 2005 –, o go-
(Brasil, Ministério do Planejamento, verno federal ampliou substancial-
Orçamento e Gestão, Comitê Gestor mente o número de áreas protegidas
do Programa de Aceleração do Cres- na região e, no ano de 2006, lançou o
cimento, 2014). Em relação ao pro- Plano BR-163 Sustentável, que previa
cesso de licenciamento ambiental, a criação e manejo do Distrito Flo-
o Instituto Brasileiro do Meio Am- restal Sustentável da BR-163, apoio
biente e dos Recursos Naturais Re- a “iniciativas de produção sustentá-
nováveis (Ibama) aprovou em 2005 vel” e o “fortalecimento da socieda-
o estudo de impacto ambiental e de civil e dos movimentos sociais”.
o relatório de impacto ambiental Devido a inúmeros problemas
(EIA/Rima) apresentado anos antes. envolvendo corrupção, abandono
498 Doblas
Imagem 1. Situação,
no estado do Pará,
da região estudada
na primeira parte do
artigo (em branco).
Elaboração: Juan Doblas,
2014.
Imagem 3.
Desmatamento anual
detectado pelo sistema
Prodes/Inpe e previsão
realizada a partir de
simulação (Soares-Filho
et al., 2006) na região
de estudo. Elaboração
do autor, 2014.
500 Doblas
i) Os efeitos do empreendimento em muito superior ao aumento na ba- Imagem 4. Taxas
de variação de
termos de degradação ambiental cia amazônica (estimado pelo Ins-
desmatamento anual
no seu entorno não começam com tituto Nacional de Pesquisas Espa- correspondente aos
a obra, começam com o anúncio da ciais - Inpe em 28%); gráficos anteriores.
Elaboração do autor,
obra; iv) Uma projeção baseada na tendên- 2014.
ii) A execução das medidas planejadas cia observada e em trabalhos de
pelo governo federal destinadas a pesquisa atualmente desenvolvi-
aumentar a governança na região dos na região permite prever o
só se mostrou efetiva a partir de aumento da taxa anual para o ano
2010, sendo os seus efeitos efême- agrícola de 2014.
ros, devido à natureza reativa, e
não estruturante, da maioria das Desmatamento e degradação
ações realizadas; florestal em Belo Monte
iii) No último ano, a iminência da Da mesma forma que no caso da BR-
conclusão do asfaltamento e o es- 163, o processo de licenciamento da
vaziamento das políticas públicas UHE Belo Monte ignorou, em um
na região potencializaram o efeito primeiro momento, o desmatamen-
da flexibilização em nível nacional to indireto derivado da implantação
da legislação ambiental, e provoca- da obra. Já o parecer nº06/2010 do
ram uma variação de 90% na taxa Ibama, de 26 de janeiro de 2010,
de desmatamento de 2012 a 2013, obrigou o empreendedor a apresen-
502 Doblas
em 2010, teve um efeito imediato cado situado majoritariamente na
na integridade das terras: o maior ilegalidade3. 3. O leitor interessado
poderá obter mais
foco de desmatamento da região Para além das suposições, é pos-
informações sobre
amazônica no ano agrícola de 2011 sível, mediante técnicas de análise a (não) destinação
(agosto 2010-julho 2011) situou-se espacial utilizando imagens de sa- da madeira de
Belo Monte nos
no entorno imediato da futura obra télite, comprovar esses impactos. relatórios semestrais
(imagem 5). Com efeito, e conforme análise es- elaborados pelo órgão
fiscalizador, o Ibama.
Após esse “surto” de desmata- pacial realizada pelo autor a partir
Tais relatórios podem
mento, os índices caíram, refletin- de dados do Sistema de Monitora- ser descarregados no
do um momento de consolidação mento da Exploração Madeireira seguinte endereço
eletrônico: <http://
de ocupações. Nesse segundo mo- do Instituto do Homem e Meio Am- licenciamento.ibama.
mento, a implantação da obra e a biente da Amazônia - Simex (Mon- gov.br/Hidreletricas/
Belo%20Monte/
chegada de um enorme contingen- teiro et al., 2013), constata-se um
Relatorios%20
te de trabalhadores muda completa- aumento expressivo da superfície Semestrais/>.
mente a região, atraindo migrantes sob exploração ilegal de madeira no
e iniciando um ciclo de especulação entorno ampliado da usina. A noção
imobiliária e superaquecimento da de entorno ampliado foi definida
economia local (Oliveira, 2011). empiricamente com um buffer de
A partir desse momento e até o 300 quilômetros ao redor do cantei-
presente, o principal impacto am- ro principal de obras da UHE. Essa
biental da UHE é o aumento da área representa 23% da superfície
degradação florestal por extração do estado e entende-se que consti-
ilegal de madeira. A própria obra tui uma estimativa conservadora do
da UHE constitui-se em uma for- território sob a influência efetiva do 4. O aumento regional
tíssima consumidora de madeira, empreendimento4. na demanda por
produtos madeireiros
o que é paradoxal, levando-se em A quantidade relativa de área de-
para abastecer a
conta a enorme quantidade de ma- gradada na região assim delimitada “bolha” imobiliária e
deira retirada para instalar os can- oscila, desde 2007, em torno de 30% industrial de Altamira
manifesta-se em
teiros da UHE e os reservatórios. A do total do estado, consistente com a municípios distantes
falta de planejamento levou o con- relação regional entre os diferentes até 500 quilômetros
dali, como Trairão,
sórcio construtor a armazenar de polos madeireiros. Porém, a partir
e é extremamente
forma precária milhares de metros de 2011 essa relação começa a se al- significativo em todo
cúbicos de toras de alta e média terar, para, em 2012, ter uma rever- o âmbito municipal de
Uruará, Anapu e Pacajá,
qualidade, sem lhes dar qualquer são completa: a região do entorno da cujas sedes distam,
destinação, descumprindo, assim, UHE, ocupando 23% do estado, con- respectivamente, 191,
177 e 216 quilômetros
os compromissos assumidos junto centra 56% de toda a exploração ma- da sede municipal de
ao Ibama e incentivando um mer- deireira ilegal paraense (imagem 6). Altamira.
504 Doblas
Consequências do desmatamento
na dinâmica climática regional
O pesquisador Jose Marengo, do
Inpe, batizou como “rios voadores”
as correntes oceânicas que forne-
cem água para o sul do continente
sul-americano após serem “carre-
gadas” na floresta amazônica e de-
fletidas nos Andes. Antônio Nobre,
também do Inpe, desenvolveu o
tema exaustivamente, tendo sido
um importante protagonista na di-
vulgação da noção e importância
dos “rios voadores” (imagem 7).
O estudo dos “rios voadores” de-
termina a alteração do regime de
chuvas na região centro-oeste do
Brasil como consequência da perda
de superfície de florestas na Ama-
zônia. Vale notar que a citada alte-
ração também foi constatada por tações nas regiões tropicais. Imagem 7. Exemplo
de trajetória de “rio
populações tradicionais, que utili- Recentemente, uma equipe
voador”: uma trajetória
zam referências astronômicas para multidisciplinar de pesquisadores atmosférica entre o
determinar com precisão datas ade- realizou uma pesquisa inovadora oceano Atlântico, a
floresta amazônica
quadas para realizar diversos tipos tentando quantificar os efeitos do (ponto de recarga em
de manejo na floresta (Schwartz- desmatamento na região amazôni- umidade) e o Pantanal.
Fonte: <http://
man et al., 2013). ca sobre a vazão nos rios da bacia e,
riosvoadores.com.br/
Os avanços sem precedentes nas subsequentemente, sobre a produ- mapas-meteorologicos/
tividade dos projetos hidrelétricos rios-voadores/>.
técnicas de modelagem climática,
associados ao desenvolvimento dos projetados, em construção e/ou já
modelos do Painel Intergoverna- operativos (Stickler et al., 2013).
mental sobre Mudança do Clima A principal conclusão do estudo é
(IPCC), permitem que se obtenha que o desmatamento no nível da ba-
atualmente uma ideia quantitativa cia influencia negativamente o fluxo
bastante aproximada dos mecanis- d’água na bacia do rio Xingu e, por
mos de interação biosfera-atmosfe- extensão, de todos os afluentes com
ra que regulam os ciclos de precipi- forte componente sazonal no seu
506 Doblas
similares ao caso do Xingu: espe- Bermann, Célio. 2013. “A resistên- may be affected by the
paving of the BR-163
culação imobiliária no meio rural, cia às obras hidrelétricas na highway that runs
que ocasiona um surto de desmata- Amazônia e a fragilização do along it”.
mento; degradação florestal; e, fi- Ministério Público Federal”. In:
nalmente, desmatamento massivo Novos Cadernos NAEA, v.16, nº2.
nos municípios afetados pela cons- Belém, Universidade Federal do
trução das UHEs. Esse desmatamen- Pará, pp. 97-120.
to provoca a diminuição, em nível Bowman, Maria S.; Soares-Filho,
regional, das precipitações que Britaldo S.; Merrye, Frank D.;
alimentam rios, UHEs e lavouras. Nepstad, Daniel C.; Rodrigues,
Assim, a falta de uma visão estra- Hermann; Almeida, Oriana T.
tégica de longo prazo para a bacia 2012. “Persistence of cattle ran-
amazônica, que integre os efeitos ching in the Brazilian Amazon: A
do desmatamento e das mudanças spatial analysis of the rationale
climáticas no ambiente, provocará for beef production”. In: Land Use
uma perda irreversível da cobertu- Policy, v.29. Elsevier, pp. 558–568.
ra florestal e, paradoxalmente, a Brasil. Ministério do Planejamen-
perda da lucratividade dos próprios to, Orçamento e Gestão. Comitê
megaempreendimentos responsá- Gestor do Programa de Acelera-
veis pela degradação. Só um giro ção do Crescimento. 2014. Nono
copernicano na política energética balanço do PAC 2: 2011-2014.
do país poderá evitar uma catástro- Disponível em: <http://www.
fe anunciada pela ciência ocidental planejamento.gov.br/secretarias/
e pelo conhecimento tradicional upload/Arquivos/PAC2/9_balan-
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510 Doblas
Crédito de carbono para usinas hidrelétricas
como fonte de emissões de gases de efeito estufa
O exemplo da usina hidrelétrica de Teles Pires1
Philip M. Fearnside
C
1. As pesquisas do
autor são financiadas
réditos de carbono são conce- te de “ar quente”, isto é, reduções exclusivamente por
didos para usinas hidrelétricas certificadas de emissões (CERs) que fontes acadêmicas:
Conselho Nacional
(UHE), no âmbito do Meca- permitem que os países compra- de Desenvolvimento
nismo de Desenvolvimento Limpo dores emitam gases de efeito estu- Científico e Tecnológico
(MDL) do Protocolo de Quioto, sob fa sem que o projeto de mitigação (CNPq) (processos
nº305880/2007-1,
as premissas de que: i) as barragens resulte em qualquer benefício real nº304020/2010-9,
não seriam construídas sem finan- para o clima. nº573810/2008-7 e
nº575853/2008-5) e
ciamento do MDL; e ii) as barragens Até 1 de julho de 2014, o conse- Instituto Nacional de
apresentariam emissões mínimas lho executivo do MDL havia apro- Pesquisas da Amazônia
(Inpa) (PRJ13.03). Este
ao longo da duração dos projetos, vado (registrado) 2.041 projetos de
artigo é uma tradução
de sete a dez anos, em compara- crédito para UHEs em todo o mun- atualizada de Fearnside,
ção com a eletricidade gerada por do, totalizando 262,7 milhões de to- 2013a. Agradeço ao
P.M.L.A. Graça pelos
combustíveis fósseis. Ambas as su- neladas de dióxido de carbono equi- comentários.
posições são falsas, especialmente valente (CO2-eq) ou 71,7 milhões de
2. Cf. dados de julho de
no caso das barragens tropicais, toneladas de carbono2. Os projetos 2014 do Programa das
como as previstas na Amazônia. A estendem-se por sete anos (com pos- Nações Unidas para o
Meio Ambiente (United
barragem de Teles Pires, atualmen- sibilidade de renovação) ou por um Nations Environment
te em construção no Pará, fornece período único de dez anos (como no Programme. CDM/
JI Pipeline Analysis
um exemplo concreto, indicando caso da proposta da barragem de
and Database.
a necessidade de reforma da regu- Teles Pires). O pipeline, isto é, os pro- Disponível em: <http://
lamentação do MDL, eliminando-se jetos registrados ou buscando regis- cdmpipeline.org/>
<http://cdmpipeline.
créditos para UHEs. Tais créditos tro junto ao MDL, é muito maior org/> – acesso: 30 jul.
representam uma importante fon- (tabela 1). O total de 365,8 milhões 2014).
511
de toneladas de dióxido de carbono MDL depois que os investimentos
- CO2 (90,3 milhões de toneladas de para a construção do projeto já es-
carbono) no pipeline global em 2012 tão assegurados, quando a represa
quase equivale à emissão atual de está em construção (como no caso
combustíveis fósseis pelo Brasil, de da UHE Teles Pires) ou, às vezes,
pouco mais de 100 milhões de tone- mesmo após a barragem estar cons-
ladas de carbono por ano. truída. O Plano Decenal de Expan-
As barragens ocasionam uma são de Energia (PDE) 2022, do Mi-
larga gama de impactos ambientais nistério de Minas e Energia (MME),
e sociais (World Commission on indica, além de Jirau (enchida em
Dams, 2000). Há também fortes indí- 2013), 18 barragens com capacidade
cios de que praticamente nenhuma instalada superior a 30 megawatts
das supostas reduções de emissões a serem concluídas até 2022 na
seja adicional (ou seja, as barragens Amazônia Legal brasileira (Brasil,
seriam construídas de qualquer ma- Ministério de Minas e Energia, Em-
neira, sem financiamento do MDL). presa de Pesquisa Energética, 2013).
Praticamente todos os projetos de Desde 2006, o Brasil define barra-
barragens só solicitam o crédito do gens “grandes” como superiores a
512 Fearnside
30 megawatts (a maioria é muito Grosso. A licitação para escolher
maior que isso), enquanto o MDL o consórcio de empresas que vão
define barragens “grandes” como construir a barragem e vender a
superiores a 15 megawatts, ao passo energia elétrica foi realizada em 17
que a Comissão Internacional das de dezembro de 2010 – desde 2006,
Grandes Barragens (Icold) define-as barragens do Brasil são oferecidos
como superiores a 15 metros de al- através de licitação sobre o preço a
tura acima do leito do rio. Caso os ser cobrado pela eletricidade, sendo
regulamentos atuais do MDL conti- vencedora a empresa que oferecer
nuem inalterados, a magnitude dos o menor preço. Os contratos foram
planos brasileiros de construção assinados em 7 de junho de 2011 e
de barragens proporcionará uma a construção começou oficialmente
grande oportunidade para reivin- em 30 de outubro do mesmo ano
dicar mais crédito de mitigação. O (Brasil, Ministério do Planejamento,
Plano Nacional sobre Mudança do Orçamento e Gestão, Comitê Ges-
Clima implica que essa é, de fato, a tor do Programa de Aceleração do
expectativa do governo brasileiro, Crescimento, 2011: 82). O objetivo
embora isso não signifique que tais do presente trabalho é examinar a
barragens não seriam construídas proposta de crédito da UHE Teles
sem crédito do MDL (Brasil, Comitê Pires como um exemplo dos proble-
Interministerial sobre Mudança do mas generalizados que afetam bar-
Clima, 2008). ragens no MDL.
A primeira grande barragem a
solicitar crédito do MDL na região O projeto de carbono da UHE Teles
amazônica brasileira foi a UHE Dar- Pires
danelos, no estado de Mato Grosso, O documento de concepção do pro-
seguida pelas UHEs Teles Pires, Ji- jeto (PDD) da UHE Teles Pires é re-
rau e Santo Antônio, as duas últi- velador, tanto das falhas do atual
mas no rio Madeira, em Rondônia sistema do MDL, como das contradi-
(Fearnside, 2013b). A UHE Teles Pi- ções entre a preocupação declarada
res, de 1.820 megawatts, encontra- do governo brasileiro em relação às
-se em construção no rio Teles Pires, mudanças climáticas e o seu envol-
afluente do rio Tapajós, que, por vimento na exploração máxima de
sua vez, é afluente do Amazonas. lacunas na regulamentação do MDL
O reservatório, de 135 quilômetros (Companhia Hidrelétrica Teles Pires
quadrados, situa-se na fronteira & Ecopart Assessoria em Negócios
entre os estados do Pará e Mato Empresariais Ltda., 2011). O docu-
514 Fearnside
kan, 2012). Óxido nitroso também é da corrente, maior a emissão que
emitido por reservatórios tropicais, resultará da água que passa pelas
como demonstrado na Guiana Fran- turbinas e vertedouros. As turbinas
cesa (Guérin et al., 2008). e vertedouros são, de fato, a prin-
A proposta aproveita um regula- cipal fonte de emissão de CH4 na
mento do MDL que permite que se maioria das represas amazônicas
reivindique a emissão zero se a den- (e.g. Fearnside, 2002b, 2005a, 2005b,
sidade energética for superior a dez 2009; Abril et al., 2005). A água que
watts por metro quadrado: passa pelas turbinas e vertedouros
provém, normalmente, de uma pro-
emissões do reservatório de água são fundidade inferior ao termoclino
definidas como zero se a densidade que separa as camadas de água no
energética do projeto for maior que reservatório. A camada superficial
10 W/m2 [watts por metro quadrado]. (hipolímnion) é praticamente des-
A densidade energética do projeto é provida de oxigênio e a decomposi-
de 19,18 W/m², assim, por definição, ção da matéria orgânica, por conse-
as emissões do reservatório de água guinte, gera CH4, em vez de CO2.
são zero (Companhia Hidrelétrica Cada tonelada de CH4 tem o im-
Teles Pires & Ecopart Assessoria em pacto sobre o aquecimento global
Negócios Empresariais Ltda., 2011: de 34 toneladas de CO2 ao longo de
27, tradução livre do autor). um período de 100 anos, de acordo
com o quinto relatório do Painel
Infelizmente, ter uma elevada Intergovernamental sobre Mudan-
densidade energética não resulta, ças Climáticas (IPCC), que incluiu
de fato, em emissões zero. A eleva- retroalimentações entre o carbo-
da densidade energética significa no e o clima, que não haviam sido
que a área do reservatório é peque- consideradas nos valores anteriores
na em relação à capacidade instala- (Myhre et al., 2013: 714). Além desse
da. A pequena área significa que as valor para o horizonte de 100 anos,
emissões através da superfície do o quinto relatório incluiu cálculos
reservatório (a partir de ebulição para um horizonte de tempo de 20
e difusão) serão menores que em anos, indicando um valor de 86 para
um reservatório grande, mas não o impacto de cada tonelada de CH4
serão zero. A capacidade instalada, comparada com uma tonelada de
no entanto, reflete a quantidade de CO2. Um horizonte de 20 anos refle-
água disponível no rio, e isso tem o te melhor o curto prazo que temos
efeito oposto: quanto maior o fluxo para controlar o aquecimento glo-
516 Fearnside
mite que o leito do rio não seja de toneladas de carbono. Esse “ar
considerado, parece basear-se na quente” contribuirá para uma mu-
suposição de que o rio natural esta- dança climática maior, permitindo
ria emitindo a mesma quantidade que os países que comprarem cré-
de CH4. No entanto, as emissões de dito de carbono emitam mais gases.
CH4 a partir de um rio de fluxo livre O dinheiro pago por esses créditos
são muito mais baixas que as de re- também enfraquece os esforços glo-
servatórios. Rios normalmente não bais para conter a mudança climá-
se estratificam, especialmente nos tica, por tirar fundos dos recursos
trechos de correnteza rápida, que sempre insuficientes disponíveis
são apropriados para a construção para a mitigação. O Brasil, como
de UHEs. um dos países previstos para sofrer
O PDD calcula um benefício total mais com as mudanças climáticas
de 24.973.637 toneladas de CO2-eq projetadas, perderá com tal arran-
ao longo de dez anos, com base na jo. As quantidades de carbono en-
brecha de um valor de zero ser per- volvidas são significativas. Como
mitido para as emissões de reserva- uma indicação da escala, cálculos
tório, caso a densidade energética apontam que o conhecido progra-
seja superior a dez watts por metro ma brasileiro para a substituição de
quadrado (Companhia Hidrelétrica gasolina por etanol em automóveis
Teles Pires & Ecopart Assessoria em de passageiros na década de 1990
Negócios Empresariais Ltda., 2011: teria deslocado 9,45 milhões de to-
34, tabela 13). Os proponentes afir- neladas de carbono por ano (Reid &
mam que, “portanto, uma vez que Goldemberg, 1998).
a densidade energética do projeto é Sem citar quaisquer estudos de
acima de dez watts por metro qua- apoio, o PDD afirma que “regras
drado, não é necessário calcular as ambientais e políticas do processo
emissões do projeto” (Idem, tradu- de licenciamento são muito rígi-
ção livre do autor). Embora tal cál- das e seguem as melhores práticas
culo possa não ser “necessário”, os internacionais” (Ibid.: 41, tradução
defensores do projeto poderiam ter livre do autor). A afirmação impli-
optado por fazê-lo com base na me- ca que os projetos de barragens
lhor evidência disponível. no Brasil teriam impactos ambien-
As quase 25 milhões de tonela- tais e sociais mínimos, de modo a
das de CO2-eq que, alegadamente, atrair os países que comprariam os
seriam substituídas ao longo de créditos do MDL. No entanto, exis-
dez anos representam 6,8 milhões te uma literatura substancial sobre
518 Fearnside
trizes revistas de 1996 incluíram a trais Elétricas Brasileiras S.A. (Ele-
liberação de estoques de carbono trobras), enfraqueceu a metodolo-
por florestas convertidas em “áreas gia proposta, em comparação com
úmidas” (incluindo reservatórios), as “Diretrizes de boas práticas” de
com base na diferença no estoque 2003, removendo dados que indica-
de carbono entre os dois ecossiste- vam maiores emissões e reduzindo
mas, presumindo, porém, que toda as informações exigidas. No nível
a liberação ocorre na forma de CO2, 1 deveriam ser incluídas apenas as
em vez de CH4 (Intergovernmental emissões relativamente modestas
Panel on Climate Change, 1997). As que ocorrem por meios de difusão a
diretrizes do IPCC de 2003 sobre partir da superfície do reservatório,
“boas práticas” incluíram um apên- embora os países pudessem volun-
dice ao capítulo sobre zonas úmi- tariamente relatar as emissões de
das, como uma “base para o desen- ebulição das superfícies dos reser-
volvimento metodológico futuro” vatórios no nível 2, ao passo que as
(Intergovernmental Panel on Cli- principais emissões de CH4, a partir
mate Change, 2003, apêndice 3a.3). das turbinas, poderiam ser incluí-
Sugeriam que se incluísse no nível 1 das apenas no nível 3, raramente
(obrigatório) apenas a contabilidade utilizado (Intergovernmental Panel
das emissões da superfície do reser- on Climate Change, 2006). Na reu-
vatório que ocorrem por meio de nião plenária do IPCC que aprovou
difusão e ebulição (bolhas) de CO2, as diretrizes de 2006, realizada nas
sendo a contabilidade das emissões Ilhas Maurício, os diplomatas bra-
de vertedouros e turbinas alocada sileiros tentaram, sem sucesso, re-
no nível 2 (voluntário). mover por completo as emissões de
A revisão das orientações para reservatórios da seção sobre “terra
os inventários nacionais realizada inundada” (Barnsley et al., 2006;
em 2006 manteve limitações quan- McCully, 2006: 19).
to às informações exigidas para as A influência brasileira tem sido
emissões de CO2, mas incluiu um fundamental na criação e amplia-
apêndice, também como “base para ção das brechas no regulamento do
o desenvolvimento metodológico MDL sobre crédito de carbono para
futuro”, considerando o CH4 gerado UHEs. O painel de metodologias do
por UHEs na categoria “terra inun- MDL propôs considerar como nulas
dada que permanece inundada”. as emissões para os projetos com
A equipe de autores, de que fazia densidades energéticas acima de
parte um representante das Cen- dez watts por metro quadrado, com
520 Fearnside
bono em CH4. Uma contabilidade Referências bibliográficas
completa das emissões, incluindo Abril, Gwenaël; Guérin, Frédéric;
o CH4, é necessária para ter compa- Richard, Sandrine; Delmas,
rações válidas sobre o impacto das Robert; Galy-Lacaux, Corin-
diferentes fontes de energia. ne; Gosse, Philippe; Tremblay,
Alain; Varfalvy, Louis; Santos,
Considerações finais Marco Aurelio dos; Matvienko,
O crédito de carbono para a UHE Te- Bohdan. 2005. “Carbon dioxide
les Pires não é adicional, porque a and methane emissions and the
barragem já havia sido contratada e carbon budget of a 10-years old
a construção, iniciada, independen- tropical reservoir (Petit-Saut,
temente do financiamento do MDL. French Guiana)”. In: Global Biogeo-
A presunção de que a barragem não chemical Cycles, v.19, nº4. Wash-
emitiria gases de efeito estufa é fal- ington, D.C., American Geophys-
sa: vários estudos indicam que as ical Union.
emissões de gases de efeito estufa Barnsley, Ingrid; Conrad, Alexis;
de represas amazônicas são subs- Gutiérrez, María; Johnson, Sa-
tanciais ao longo dos seus primeiros rah S. 2006. Summary of the 25th
dez anos (o tempo de duração do session of the Intergovernmental Pa-
projeto). As normas do MDL neces- nel on Climate Change: 26-28 April
sitam de revisão urgente, para que 2006. In: Earth Negotiations Bul-
se elimine a criação de “ar quente” letin, v.12, nº295. Nova York, In-
(reduções certificadas de emissões ternational Institute for Sustai-
que não são adicionais) através de nable Development. Disponível
créditos para barragens. Uma conta- em: <http://www.iisd.ca/down-
bilidade completa das emissões de load/pdf/enb12295e.pdf> (acesso:
UHEs – incluindo o CH4 liberado da 28 jul. 2014).
água, que passa pelas turbinas e ver- Brasil. Comitê Interministerial
tedouros – precisa ser exigida em di- sobre Mudança do Clima. 2008.
retrizes para inventários nacionais Plano Nacional sobre Mudança
e em comparações elaboradas pelo do Clima. Brasília. Disponível
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531
Universidade de Brasília (FD/UnB). nais junto ao Centro de Ciências
Subprocuradora-geral da República. Jurídicas da Universidade Federal de
Edilene Fernandes Graduada em Di- Santa Catarina (CCJ/UFSC). Membro
reito pela Faculdade de Direito da do Observatório de Justiça Ecológica.
Universidade Federal de Mato Gros- Francisco Antonio Pugliese Jr. Dou-
so (FD/UFMT). Analista de direito torando em Arqueologia junto ao
ambiental do Instituto Centro de Museu de Arqueologia e Etnologia
Vida (ICV). da Universidade de São Paulo (MAE/
Efrem Ferreira Doutor em Biologia USP).
de Água Doce e Pesca Interior pelo Gustavo Godoi Ferreira Graduado
Instituto Nacional de Pesquisas da em Direito pela Pontifícia Uni-
Amazônia (Inpa). Pesquisador-titu- versidade Católica de Campinas
lar do Inpa. (PUC-Campinas).
Eric Macedo Doutorando em Antro- Heidi Amstalden Albertin Gradua-
pologia Social junto ao Museu Na- da em Direito pela Pontifícia Uni-
cional da Universidade Federal do versidade Católica de Campinas
Rio de Janeiro (MN/UFRJ). (PUC-Campinas).
Evandro Mateus Moretto Doutor em Helena Palmquist Graduada em Co-
Ecologia e Recursos Naturais pelo municação Social (Jornalismo) pela
Centro de Ciências Biológicas e da Faculdade de Comunicação da Uni-
Saúde da Universidade Federal de versidade Federal do Pará (Facom/
São Carlos (CCBS/UFSCar). Professor UFPA). Assessora do Ministério Pú-
doutor da Escola de Artes, Ciências blico Federal (MPF).
e Humanidades da Universidade de Jairo Saw Membro do Movimento
São Paulo (Each/USP). Munduruku Ipereg Ayu. Vive na al-
Felício Pontes Júnior Mestre em Teo- deia Sai-Cinza, na terra indígena de
ria do Estado e Direito Constitu- mesmo nome.
cional pela Pontifícia Universidade João Andrade Mestre em Desenvol-
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). vimento Econômico, Espaço e Meio
Procurador da República no estado Ambiente pelo Instituto de Econo-
do Pará. mia da Universidade Estadual de
Flávia Baracho Trindade Gradua- Campinas (IE/Unicamp). Coordena-
da em Direito pela Pontifícia Uni- dor da Iniciativa de Defesa Socioam-
versidade Católica de Campinas biental do Instituto Centro de Vida
(PUC-Campinas). (ICV).
Flávia do Amaral Vieira Mestranda Juan Doblas Mestre em Geofísica
em Direito e Relações Internacio- pela École Nationale Supérieure du Pé-
532 Ocekadi
trole et des Moteurs. Especialista em quisas da Amazônia (Inpa). Analista
geoprocessamento do Instituto So- ambiental do Instituto Chico Men-
cioambiental (ISA). des de Conservação da Biodiversida-
Juarez Carlos Brito Pezzuti Doutor de (ICMBio).
em Ecologia pelo Instituto de Bio- Maria Carolina Gervásio Angelini
logia da Universidade Estadual de Graduada em Direito pela Pontifícia
Campinas (IB/Unicamp). Professor- Universidade Católica de Campinas
-adjunto do Núcleo de Altos Estudos (PUC-Campinas).
Amazônicos da Universidade Fede- Maria Luíza Camargo Mestre em
ral do Pará (Naea/UFPA). Geografia Humana pela Faculdade
Luis de Camões Lima Boaventura Gra- de Filosofia, Letras e Ciências Hu-
duado em Direito pela Universidade manas da Universidade de São Pau-
de Fortaleza (Unifor), especialista lo (FFLCH/USP).
em Direito Público pela Escola Supe- Mauricio Torres Doutor em Geogra-
rior do Ministério Público da União fia Humana pela Faculdade de Filo-
(ESMPU). Procurador da República sofia, Letras e Ciências Humanas da
no município de Santarém (Pará). Universidade de São Paulo (FFLCH/
Luís Renato Vedovato Doutor em Di- USP). Professor-colaborador do Pro-
reito Internacional pela Faculdade grama de Pós-Graduação em Recur-
de Direito da Universidade de São sos Naturais da Amazônia da Uni-
Paulo (FD/USP). Professor-doutor versidade Federal do Oeste do Pará
do Instituto de Economia da Uni- (PPGRNA/Ufopa).
versidade Estadual de Campinas Michael Goulding Doutor em Bio-
(IE/Unicamp), atuando também na geografia pela University of California,
Faculdade de Ciências Aplicadas Los Angeles. Especialista em recursos
(FCA/Unicamp). Professor-doutor do aquáticos amazônicos da Wildlife
Programa de Mestrado em Direito Conservation Society.
da Universidade Nove de Julho e Natalia Ribas Guerrero Doutoranda
professor-doutor da Pontifícia Uni- em Antropologia Social junto à Fa-
versidade Católica de Campinas culdade de Filosofia, Letras e Ciên-
(PUC-Campinas). cias Humanas da Universidade de
Marcelo Brandão Ceccarelli Gradua- São Paulo (FFLCH/USP).
do em Direito pela Pontifícia Uni- Philip M. Fearnside Doutor em
versidade Católica de Campinas Ciências Biológicas pela University
(PUC-Campinas). of Michigan. Pesquisador-titular do
Marcelo Derzi Vidal Mestre em Eco- Instituto Nacional de Pesquisas da
logia pelo Instituto Nacional de Pes- Amazônia (Inpa).
534 Ocekadi
ISBN 978-85-992-1404-6
9 788599 214046