Esposito, R. Comunidade, Imunidade, Biopolitica
Esposito, R. Comunidade, Imunidade, Biopolitica
Esposito, R. Comunidade, Imunidade, Biopolitica
1. Comunidade, imunidade, biopoltica. Que relao existe entre estes trs termos, em
torno dos quais tem-se articulado o meu trabalho nos ltimos anos? possvel
conect-los numa relao que v alm de uma simples sucesso de conceitos ou de
lxicos diferentes? Acho que no somente possvel, mas tambm necessrio. Mais
propriamente, que s na relao com os outros dois que cada termo encontra o seu
sentido mais pleno. Mas comecemos a partir de um dado histrico, recordando
brevemente a passagem mediante a qual as duas semnticas, primeiro da comunidade
e depois da biopoltica, sucederam-se no debate filosfico contemporneo. Foi ao final
dos anos oitenta que, na Frana e na Itlia, desenvolveu-se um discurso sobre a
categoria de comunidade que desconstrua radicalmente as modalidades com que o
termo-conceito tinha sido utilizado na filosofia do sculo vinte, primeiro pela
sociologia organicista alem da Gemeinschaft, depois pelas vrias ticas da
comunicao e finalmente pelo neocomunitarismo americano. O que, apesar das
conspcuas diferenas, unia estas trs concepes de comunidade era uma tendncia,
que poderamos chamar de metafsica, a pensar nela num sentido substancialista e
subjetivista. A comunidade era essa substncia que conectava determinados sujeitos
entre si, na partilha de uma identidade comum. Deste modo, a comunidade aparecia
ligada conceitualmente figura do prprio: quer se tratasse de apropriar-se do que
comum ou de comunicar o que prprio, a comunidade era definida por uma
pertena recproca. Seus membros revelavam ter em comum o seu prprio, ser
proprietrios do seu comum.
Foi contra esse curto-circuito intelectual pelo qual o comum transformava-se
no que, a nvel lgico, o seu contrrio quer dizer, no prprio, que surgiu uma srie
de textos em rpida sucesso, como La communaut dsuvre de Jean-Luc Nancy, La
communaut inavouable de Maurice Blanchot, La comunit che viene de Giorgio
Agamben e o meu Communitas. Origine e destino della comunit. O que os acomunava
numa mesma tonalidade era uma espcie de alterao da semntica precedente, no
sentido, tambm literal, de que a comunidade, em vez de referir-se a uma propriedade
ou a uma pertena de seus membros, remetia a uma alteridade constitutiva que a
diferenciava de si mesma e a exclua de qualquer conotao identitria. Mais que por
uma substncia, ou uma res, os sujeitos da comunidade, tal como era definida nesses
trabalhos, revelavam-se unidos por uma falha que os atravessava e os contaminava
reciprocamente. Em particular no livro de Nancy, que tinha aberto essa perspectiva ao
longo de um percurso fortemente marcado pelo Mitsein de Heidegger e o tre avec de
Bataille, a comunidade no era concebida como algo que gera um relacionamento
entre determinados sujeitos, mas como o prprio ser da relao. Dizer, como tem
afirmado Nancy, que a comunidade no um ser comum, mas o ser em comum de
uma existncia coincidente com a exposio alteridade significa acabar com todas as
declinaes substancialistas, de carter particular e universal, subjetivo e objetivo.
Mesmo assim, apesar da fecundidade terica desta passagem, um problema
continuava em aberto. Subtraindo a comunidade do horizonte da subjetividade, Nancy
tornava problemtica a sua articulao com a poltica ainda que seja somente pela
evidente dificuldade de imaginar uma poltica totalmente externa a uma dimenso
2. Mas e aqui insere-se a segunda questo aqui enunciada a poltica da qual neste
caso se fala s pode ser uma forma de biopoltica. Uma vez que o fenmeno da
domnio da outra. Deste modo, ou a vida parece presa, como se aprisionada, por um
poder destinado a reduzi-la a mera matria biolgica, ou a poltica que corre o risco
de ser dissolvida no ritmo de uma vida capaz de reproduzir-se sem interrupes, alm
das contradies histricas que a assolam. No primeiro caso, o regime biopoltico
tende a no afastar-se do regime soberano, do qual parece constituir uma marca
interna; no segundo caso, emancipa-se dele a ponto de perder qualquer contato com a
prpria genealogia profunda. Como j dizia, nem mesmo o prprio Foucault jamais
chegou a uma firme opo entre essas duas possibilidades extremas, oscilando entre
uma e outra sem chegar jamais a uma resoluo definitiva. Tanto a relao entre
regime soberano e regime biopoltico quanto aquela entre modernidade e
totalitarismo ficam, no seu aparato categrico, ofuscadas por essa indeciso
fundamental sobre o seu prprio significado e ainda mais sobre os resultados do que
ele mesmo definiu como biopoltica, ou, sem atribuir particular significado a tal
diferena lxica, biopoder. Como j tive ocasio de observar, a minha impresso
que falta algo no seu formidvel dispositivo conceitual um anel intermedirio ou um
segmento de juno capaz de conectar essas diferentes configuraes do conceito e,
ainda antes, as duas polaridades fundamentais da vida e da poltica numa forma mais
orgnica e complexa que aquela, ainda hesitante, que ele utilizou nos seus trabalhos
pioneiros.
justamente este nexo constitutivo que tentei isolar no paradigma da
imunizao. Na sua dupla declinao biolgica e jurdica, este constitui exatamente o
ponto de tangncia entre a esfera da vida e a da poltica. Da a possibilidade de se
preencher a distncia de princpio entre as duas interpretaes extremas da biopoltica
entre a sua verso mortfera e a sua verso eufrica. Mais que dois modos opostos e
maiores riscos para as nossas sociedades hoje em dia consiste justamente num
excessivo pedido de proteo, que, em alguns casos, tende a produzir uma impresso
de perigo, real ou imaginrio, com o nico fim de ativar meios de defesa preventiva
cada vez mais potentes contra ele. Esta articulao, por assim dizer lgica e histrica,
entre os paradigmas de biopoder e de imunizao nos permite, por um lado,
esclarecer o prprio significado do conceito de biopoltica e, por outro, estabelecer
uma distino interna entre a sua modalidade negativa e uma outra, ao contrrio,
potencialmente afirmativa. O fato de a primeira ter claramente prevalecido sobre a
segunda ao longo do ltimo sculo no impede que esta possa ressurgir.
Mas vamos por ordem. Muitas vezes nos temos perguntado qual , e se existe,
uma real especificidade da categoria de biopoltica, dado que desde sempre a poltica
tem a ver, de alguma maneira, com a vida, no seu sentido estritamente biolgico. No
era uma forma de biopoltica a poltica agrria da Roma antiga ou o uso dos corpos dos
escravos nos antigos imprios? E ento, o que que os distingue, na essncia, do que
se tem sido definido com essa expresso? E mais, a biopoltica nasceu com a
modernidade, como Foucault tendia a crer, ou tem uma genealogia mais longa e
profunda? A essas perguntas se poderia responder que, considerada a partir do ponto
de vista da sua matria vivente, qualquer poltica tem sido e ser uma forma de
biopoltica. Mas a caracterizao imunitria que determina, primeiro a intensificao
moderna e, mais tarde, na fase totalitria, a deriva tanatopoltica. Como bem soube
ver Nietzche, o que chamamos modernidade no seno a metalinguagem que tem
permitido responder em termos imunitrios a uma srie de pedidos de proteo
preventiva brotadas do fundo mesmo da vida no momento em que falhavam as
promessas de salvao transcendente. Se o paradigma da imunizao nos ajuda a
3. Como j ficou claro, o fim do nazismo e depois, a uma distncia de meio sculo, do
comunismo sovitico no marcou o fim da biopoltica, hoje instalada estavelmente
na sociedade contempornea de uma forma que pode parecer substituir as velhas
ideologias. No difcil reconhecer a sua presena crescente em todos os mbitos da
poltica interna e internacional, ao longo de uma linha que cada vez menos distingue o
pblico do privado. Desde a esfera da sade at a das biotecnologias, desde a questo
tnica at a ambiental, a nica fonte de legitimao poltica parece ser hoje a da
conservao e da implementao da vida. justamente neste contexto que volta a
apresentar-se com renovada urgncia a necessidade de uma biopoltica afirmativa.
Trataria-se de algo assim como um horizonte de significado no interior do qual a vida
j no seria um objeto, mas, de certo modo, um sujeito da poltica. E ento como
delinear os seus contornos? Onde identificar os seus sintomas? Com que objetivos?
Trata-se de uma questo, ou melhor, de um conjunto de questes, nada fcil. Ter tido
uma experincia dramtica, e s vezes trgica, de uma biopoltica negativa, ou at de
que segura o pblico e o privado e que ameaa esmagar o comum ao tentar, pelo
contrrio, ampliar o seu espao. O conflito que foi aberto contra o projeto de
privatizao da gua, o relativo s fontes energticas ou aquele destinado a questionar
as patentes exclusivas das indstrias farmacuticas, que impedem a difuso de
medicamentos a baixo custo nas zonas mais pobres do planeta, vo todos nessa
direo. Trata-se, naturalmente, de uma batalha difcil tambm porque no devemos
cometer o erro estratgico de abandonar o espao pblico em favor do espao
comum, arriscando favorecer, no entanto, o processo de privatizao. Mas no
devemos confundir o bem comum com aquele pertencente soberania do Estado ou
das administraes regionais, de qualquer forma regulado pela preliminar subdiviso
jurdica entre o pblico e o privado. O problema que no existem no momento
estatutos e cdigos voltados para a proteo do comum em relao ao privado, ao
prprio e ao imune. Em realidade, ainda antes de ter leis adequadas, no momento
nem existe um lxico para falar de algo o comum, que, de fato, primeiro o processo
de modernizao e depois o de globalizao excluem. O comum no nem o pblico
ao qual se contrape dialeticamente o privado nem o global, ao qual corresponde, ao
contrrio, o local. algo amplamente desconhecido e at refratrio s nossas
categorias conceituais, j h tempo organizadas pelo dispositivo imunitrio geral. E,
contudo, a aposta na biopoltica afirmativa, da vida e j no sobre a vida, feita
precisamente com base nesta possibilidade. Na capacidade de pensar, antes de agir,
no interior deste horizonte. De pensar sobre, ou melhor, desde o interior, do comum.
nessa direo que, tambm atravs da categoria de impessoal, tenho tentado
orientar a minha pesquisa nestes ltimos anos.
Roberto Esposito is Vice Director of the Istituto Italiano di Scienze Umane, Full Professor of Theoretical
Philosophy, and the coordinator of the doctoral programme in Philosophy of the same Institute. He was
one of the founders of the European Political Lexicon Research Centre and of the International Centre
for a European Legal and Political Lexicon. He is co-editor of Filosofia Politica published by il Mulino, the
series 'Per la Storia della Filosofia Politica' published by Franco Angeli, the series 'Storia e teoria politica'
published by Bibliopolis, and the series 'Comunit e Libert' published by Laterza. He is editor of the
'Teoria e Oggetti' series published by Liguori and also acts as a philosophy consultant for publishers
Einaudi. His last monograph, "Pensiero vivente. Origine e attualit della filosofia italiana"(forthcoming
for Stanford UP), is dedicated to Italian philosophical thought, and aims at creating a historical and
theoretical background for the definition of the notion of "Italian Theory".
ESPOSITO, R. Comunidade, imunidade, biopoltica. In: E-Misfrica, Bio-Zoo, Vol.10, Nm.1, 2013, s/p.
Disponvel em: http://hemisphericinstitute.org/hemi/pt/e-misferica-101/esposito