O Demonio - Luiz Henrique Rodrigues Paiva
O Demonio - Luiz Henrique Rodrigues Paiva
O Demonio - Luiz Henrique Rodrigues Paiva
POSSESSÃO E EXORCISMO:
OS MÚLTIPLOS ASPECTOS DE UM FENÔMENO
RECIFE
2015
LUIZ HENRIQUE RODRIGUES PAIVA
POSSESSÃO E EXORCISMO:
OS MÚLTIPLOS ASPECTOS DE UM FENÔMENO
RECIFE
2015
FICHA CATALOGRÁFICA
LUIZ HENRIQUE RODRIGUES PAIVA
POSSESSÃO E EXORCISMO:
OS MÚLTIPLOS ASPECTOS DE UM FENÔMENO
BANCA EXAMINADORA
_______________________________
Prof. Dr. Gilbraz de Souza Aragão
Orientador
_______________________________
Prof. Dr. Sérgio Sezino Douets Vasconcelos
_______________________________
Profª. Drª. Manuela Sousa Ribeiro
Dedico este trabalho em primeiro lugar a
Deus, por todas as maravilhas que realiza em
minha vida e por ter me permitido dar mais
esse passo em minha caminhada acadêmica. A
minha família, principalmente aos meus avôs:
Gilberto Afonso Ferreira Paiva e Djalma
Rodrigues Barbosa, que sempre me
incentivaram e me apoiaram em vida. Aos
meus amigos queridos que sempre estiveram
presentes em minhas conquistas acadêmicas e
pessoais. Aos professores a professoras
queridos que em todos os momentos estiveram
ao meu lado, me ensinando com maestria e
que me proporcionaram todos os
conhecimentos adquiridos até hoje e ao meu
grande amigo Batista, falecido em 2014.
AGRADECIMENTO
Agradeço em primeiro lugar a Deus por todas as vitórias proporcionadas neste curso
acadêmico, desde a aprovação na seleção para o Mestrado até sua conclusão, pelas grandes
conquistas atingidas nas disciplinas cursadas, onde vários conhecimentos foram incorporados
com afinco. Agradeço aos professores a professoras que sempre acreditaram em mim e em
minha pesquisa, principalmente ao professor Gilbraz de Souza Aragão, que em momento
algum deixou de acreditar nesta temática um tanto polêmica. Aos professores Sérgio Sezino
Douets Vasconcelos, Luiz Alencar Libório, Luiz Carlos Luz Marques, Newton Darwin de
Andrade Cabral, João Luis Correia Júnior, Cláudio Vianney Malzoni e Drance Elias da Silva,
por todos os conhecimentos ensinados com maestria e por sempre nos incentivarem em busca
de nossos ideais. À Universidade Católica de Pernambuco, por sempre nos acolher como
filhos e filhas amados. À minha família, por estar sempre do meu lado, me apoiando nas horas
difíceis e aos queridos amigos e amigas de Mestrado que também me proporcionaram um
crescimento acadêmico incrível.
“O demônio existe, não o confundamos com doenças psicológicas.”
Papa Francisco.
RESUMO
This work aims to present the phenomenon of possession and exorcism in the Judeo-Christian
tradition throughout history; starting from the Jewish antiquity to the present day. Demonic
possession, as well as the practice of exorcism, are studied themes from antiquity to the
present day. It is intended to provide a summary, in historiographical key, these phenomena of
Religious Realm, and a critical analysis supported in studies by scholars like Karl Kertelge,
Antonio Lazarini Neto, José Irenaeus Rabuske and Luigi Schiavo and historians as Jaccques
Le Goff and Jean Delumeau . For this to be done, the work was divided into three chapters:
the first, we analyze the question of the historical overview of the phenomenon; in the second,
portray the developments in the phenomenon suffered by the beliefs of the medieval and
modern world, culminating in the theological analysis of the possession and exorcism
phenomenon in the last chapter.
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11
CAPÍTULO 1 – REFLEXÃO SOBRE AS CULTURAS QUE INFLUENCIARAM
DIRETA OU INDIRETAMENTE NA TRADIÇÃO JUDAICO-CRISTÃ ....................... 18
CAPÍTULO 2 – DESENVOLVIMENTO DA COMPREENSÃO DO EXORCISMO
NA TRADIÇÃO JUDAICO-CRISTÃ .................................................................................. 47
CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DO FENÔMENO DA POSSESSÃO E EXORCISMO NA
TEOLOGIA CRISTÃ ............................................................................................................ 69
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 91
REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 101
11
INTRODUÇÃO
Demônios são seres presentes em inúmeras crenças e lendas que povoam a imaginação
de todos os povos da terra desde tempos imemoriais até os dias atuais. A esses seres se
atribuem forças malévolas assim como também são ditos como causadores de grandes
tragédias que ocorrem com os seres humanos; desde pequenos infortúnios até mesmo
catástrofes naturais como terremotos, enchentes, tempestades, pragas e doenças.
1
RABUSKE, Irineu José. Jesus exorcista: estudos exegéticos e hermenêuticos de Mc. 3:20-30. São Paulo:
Paulinas, 2001, p. 19.
2
JUNG, Carl. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.
12
da doutrina cristã, mas também povoam o universo cultural que se desenvolveu nos dois
últimos milênios de nossa história3. Logo, o diabo chega ao século XXI deitado sobre a fama
arrecadada ao longo do tempo. É verdade que ele não se apresenta mais como nos murais
antigos, com a aparência grotesca de um bode alado, coroado de enormes chifres, com rabo de
dragão, olhos nas asas, na barriga e no traseiro. Além disso, também já não é acusado em toda
parte de estar por trás das doenças, das hecatombes, das tragédias cotidianas. O diabo teve que
ceder aos progressos da ciência, à liberdade de pensamento e ao avanço da razão sobre a
superstição. Mas é inegável que, mesmo reduzido à ideia original que o criou, ele continua
influente em nossos dias, em qualquer que seja a classe social ou o nível cultural das pessoas.
Não é exagero dizer que, de certa forma, a figura de Satã tem sido revalorizada nos últimos
tempos, seja através de filmes, relatos, revistas, dentre outras fontes.
Com o florescer do Iluminismo as crenças nos dogmas foram se modificando, uma vez
que a tentativa de transformar a própria ciência em dogma ou ainda, a religião em ciência,
derrotou o espírito de interação entre as duas5. O escolasticismo, no entanto, já anunciava essa
ruptura. Podemos afirmar que o mundo moderno, dominado pela razão, não consegue
perceber que o mito faz parte do imaginário e, consequentemente, do mundo do crente.
Contudo, esse mesmo mundo dominado pela ciência, não consegue também explicar a Deus,
a divindade, gerando assim uma alternância na história sobre a interpretação das crenças e
também da confiança nas mesmas, como afirma Lara:
3
RABUSKE, Irineu José. Jesus exorcista: estudos exegéticos e hermenêuticos de Mc. 3:20-30. São Paulo:
Paulinas, 2001, p. 21.
4
CUPPIT, Don. Depois de Deus: o futuro da religião. Rio de Janeiro: ROCCO, 1999, p. 23.
5
LARA, Aroldo. Possessão e exorcismo. São Paulo: Biblioteca 24 Horas, 2011.
13
Por volta do século IX o diabo começava a ocupar uma posição central na crença
dos cristãos ocidentais. A teologia ortodoxa do oriente dava pouca atenção às
doutrinas a respeito do maligno. Os padres bizantinos enfatizavam de maneira mais
específica a transcendente unidade de Deus; todas as coisas, independentemente de
parecerem boas ou más, vinham de suas mãos. Tudo procedia de Deus e tudo estava
destinado a retornar a ele7.
6
LARA, Aroldo. Possessão e exorcismo. São Paulo: Biblioteca 24 Horas, 2011, p. 35.
7
O’GRADY, Joan. Satã, o Príncipe das Trevas. São Paulo: Mercuryo, 1991, p. 67.
14
Católica, o diabo é um ser verdadeiro e que nos tenta a cada momento de nossas vidas.
Ainda nos dias atuais é espantoso o número de pessoas que acreditam, mesmo vivendo
em contato com toda a cientificidade da modernidade, em seres como duendes, fadas,
gnomos, assim também como a objetos como talismãs, búzios, cartas, dentre outros fatores
que incluem também a existência de anjos e lógico, demônios. Isso apresenta uma grande
recorrência em nossos dias e reflete um campo muito vasto aos cientistas da religião.
Este trabalho tem como uma das finalidades demonstrar um pouco dessa história tão
antiga da luta contra o “mal” e como essa cruzada contra as chamadas “forças demoníacas”
foram vistas e interpretadas tanto na tradição judaico-cristã como pelas religiões que
influenciaram na tradição judaica, como o zoroastrismo, por exemplo, e como são
reinterpretadas aos olhos de uma nova visão do mundo espiritual.
8
LEHMANN, Karl; KASPER, Walter; KERTELGE, Karl; MISCO, Johannes. Diabo, demônios e possessão.
São Paulo: Loyola, 1992, p. 35
9
LAZARINI NETO, Antonio. Messias exorcista: combate aos espíritos imundos e a estrutura do Evangelho de
Marcos. (Exegese de Mc 1.21-28). Universidade Metodista de São Paulo. 2006.
10
SCHIAVO, Luigi. 2000 demônios na Decápole: exegese, história, conflitos e interpretações de Mc 5.1-20..
São Bernardo do Campo-SP: UMESP, 1999.
_______. A apocalíptica judaica e o surgimento da cristologia de exaltação na narrativa da tentação de Jesus
(Q 4.1-13). In.: Revista Orácula. n. 1, p.1-56, 2005.
_______. As três redes de satanás. In.: Fragmentos de Cultura, Goiânia - GO, v. 11, n.5, p. 849-858, 2001.
_______. Com Satanás ao redor da terra. As tentações de Jesus (Lc 4,1-13) como relato de experiência
visionária de viagem. In.: Estudos de Religião, São Bernardo do Campo - SP, v. 19, p. 105-132, 2000.
_______. Jesus Taumaturgo: elementos interpretativos. In.: Revista de interpretação Latino-Americana
(RIBLA), Quito - Equador, v. 47, n.1, p. 74-85, 2004.
_______. O mal e suas representações simbólicas: o universo mítico e social das figuras de satanás na bíblia.
In.: Estudos de Religião. v. 19, p. 65-83, 2000.
_______. O simbólico e o diabólico: a vida ameaçada. In.: Phoinix (UFRJ), Rio de Janeiro, n.8, p. 230-243,
2002.
11
RABUSKE, Irineu. Jesus exorcista: estudo exegético e hermenêutico de MC 3, 20-30. São Paulo: Instituto
Ecumênico de Pós Graduação, 1999.
15
historiadores como Fernandes 12 e arqueólogos como Mega, Silva, Matos 13 , todos com
trabalhos divulgados sobre a temática. Esta pesquisa foi essencialmente bibliográfica.
Schiavo16 considera que se a crença no mal fazia parte sempre da teologia de Israel,
sobretudo da religiosidade popular, ela se expandiu no judaísmo tardio. Ressalta ainda que a
figura do demônio como “figura independente do mal” é difícil de ser identificado no Antigo
Testamento, por ser fruto de uma grande mistura cultural, com influências da magia, da
religiosidade popular, do ritualismo apotropáico17 oficial e do simbolismo poético.
Rabuske18, afirma em seus estudos que não há lugar para dualismo na fé do Antigo
Testamento. Assim, professava-se a unicidade de Iahweh, do qual tudo procede, tanto o bem
como o mal. O bem pode ser interpretado como um sinal ou dom gratuito por parte de Deus.
Já o mal pode ser visto como castigo pela infidelidade do povo. O mesmo ainda teoriza que
se pode observar a citação de uma série de demônios na tradição judaico-cristã e isso poderia
levar ao erro de pensar que toda a crença em demônios e exorcismo tem base na Bíblia
hebraica. No entanto, essas figuras vistas mais de perto nos revelam que se tratam de
ocorrências episódicas, como Lilit, em Isaías (Is. 34:14), que devem ser vistas como
12
FERNANDES, José Lucas Cordeiro. As marionetes do diabo: as representações de Satã no corpo na Idade
Moderna. XIII Encontro Estadual de História do Ceará, 2012, Sobral. Anais do XIII Encontro Estadual de
História do Ceará, 2012. v. 1.
13
MEGA, Orestes Jayme; SILVA, Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Machado; MATOS, Lennon Oliveira. As
metamorfoses de satã: as ressignificações do mal. IX Fórum de Debates em História Antiga. Rio de
Janeiro, 2010.
14
LAZARINI NETO, Antonio. Messias exorcista: combate aos espíritos imundos e a estrutura do Evangelho
de Marcos. (Exegese de Mc 1.21-28). Universidade Metodista de São Paulo. 2006, p. 04.
15
Idem, ibidem, p. 6
16
SCHIAVO, Luigi. Com Satanás ao redor da terra. As tentações de Jesus (Lc 4,1-13) como relato de
experiência visionária de viagem. In.: Estudos de Religião, São Bernardo do Campo-SP, v. 19, 2000, p. 133.
17
Apotropáico vem do grego apotrepein (afastar-se), que tem poder de afastar (influência maléfica, desgraça,
etc.), que os antigos invocavam para avastar malefícios e desgraças.
18
RABUSKE, Irineu. Jesus exorcista: estudo exegético e hermenêutico de MC 3, 20-30. São Paulo: Instituto
Ecumênico de Pós Graduação, 1999, p. 9-10
16
Fernandes19 afirma que a principal função do diabo é nos levar à tentação, fazer com
que nós inflijamos à ordem, ceder aos pecados, entregar as nossas almas para o “inferno”, nos
afastar de Deus e para isso ele toma o corpo como sua ferramenta de corrupção. Para
Fernandes o corpo é a principal fonte para a suposta manifestação do mal, pois, através dele,
vemos diariamente nos meios religiosos espetáculos de expulsão, espetáculos de cura com a
saída do “encosto” diabólico.
Para Mega, Silva, Matos 20 , o diabo pode ser considerado um símbolo universal
presente no espírito humano e que ora foi interpretado de maneira benéfica e ora de maneira
maléfica. Para eles, dramas existenciais e fenômenos sócio-historicos, além de psicológicos,
no caso dos exorcismos, passam pela figura alegórica de satã, tanto de indivíduos isolados
como de sociedades inteiras.
No primeiro capitulo temos como objetivo, a procura de um início para essas crenças,
assim, verificamos que em todas as culturas existe um princípio comum, ou seja, além do
Judaísmo e do Cristianismo também existem fontes e referências para identificar o que são
“demônios”. Este capítulo abordará justamente esses relatos ao longo da história, nas mais
variadas religiões e civilizações da antiguidade, podendo desta forma atingir o ponto onde a
crença evoluirá para a formulação e compreensão das contravenções atuais.
19
FERNANDES, José Lucas Cordeiro. As marionetes do diabo: as representações de satã no corpo na Idade
Moderna. XIII Encontro Estadual de História do Ceará, 2012, Sobral. Anais do XIII Encontro Estadual de
História do Ceará, 2012. v. 1. p. 1-12
20
MEGA, Orestes Jayme; SILVA, Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Machado; MATOS, Lennon Oliveira.
As metamorfoses de satã: as ressignificações do mal. IX Fórum de Debates em História Antiga. Rio de
Janeiro, 2010.
17
poderia se tornar um demônio de acordo com as devidas ocasiões e é justamente esse conceito
que dará forma à crença da possessão de um indivíduo pelos parentes ou por pessoas
próximas na mitologia grega. Ainda falando na Grécia Antiga, que iremos aprofundar mais
adiante, o sábio grego Heráclito acreditava que o espírito é o caráter que habita em um
homem e não uma entidade separada como muitos antigos afirmavam.
Sobre a origem da palavra grega daímon, sabemos que a mesma é de origem erudita,
onde temos daímon – onos como sendo interpretada por divindade, gênio, espírito, espírito
supra humano ou ainda infra divino. Posteriormente, no que se refere aos conceitos
eclesiásticos, teremos interpretações como espírito mau, gênio, desfavorável.
Podemos constatar como era realizado um exorcismo em Israel antigo através de duas
passagens que relatam tais feitos, uma delas está contida em 1 Samuel e outra no livro
apócrifo de Tobias.
Por final, analisaremos como o imaginário popular foi um grande aliado das forças
demoníacas, tanto para sua propagação como para sua consolidação. Como afirma Irineu
Rabuske, apesar de os textos chamados sinóticos afirmarem a vitória de Jesus sobre Satanás;
essa ideia não teria conseguido atingir as crenças populares na qual o demônio continuava
atuante no dia-a-dia das pessoas, tentando fazer com que as mesmas fossem seduzidas e
desviadas do caminho de Deus por legiões de demônios.
18
Sabemos que para os Estóicos a alma dos mortos, ou o espírito dos mortos, poderia se
tornar um demônio de acordo com as devidas ocasiões e é justamente esse conceito que dará
forma à crença da possessão de um indivíduo pelos parentes ou por pessoas próximas na
mitologia grega. Ainda falando na Grécia Antiga, que iremos aprofundar mais adiante, o sábio
grego Heráclito acreditava que o espírito é o caráter que habita em um homem e não uma
entidade separada24 como muitos antigos afirmavam.
Sobre a origem da palavra grega daímon, sabemos que a mesma é de origem erudita,
onde temos daímon – onos como sendo interpretada por divindade, gênio, espírito, espírito
supra humano ou ainda infra divino. Posteriormente, no que se refere aos conceitos
21
GALLARDO, Carlos B. Jesus, homem em conflito. O relato de Marcos na América Latina. São Paulo:
Paulinas, 1997 (Enciclopédia Mirador Internacional), p. 3204.
22
VAILATTI, Carlos Augusto. Manual de demonologia. São Paulo: Fonte Editorial, 2011, p. 54.
23
CHAMPLIN, R. Dicionário de teologia, filosofia e história. São Paulo: Agnos, 2000, p. 47.
24
Idem, ibidem, p. 49.
19
A figura de Lúcifer, também chamado por vários outros nomes como, Belzebu ou
simplesmente de a Besta, tem tomado muitas formas estranhas e diferentes, além de assumir
atuações diferenciadas ao longo da história.
Sabemos que a ideia do chamado inimigo de Deus está viva e tem circulado o mundo
há milhares de anos, porém perguntas fundamentais são sempre feitas em relação a esta
mesma personagem, como, por exemplo, como teve início sua história? De onde veio? E
principalmente, como se tornou o chamado “príncipe das trevas”.
Como nos explica Afonso Maria Ligorio Soares, os mitos são como manifestações
primordiais da vivência e proporciona, por sua vez, a junção do ser humano, com o abstrato,
com o divino absoluto, além de colocá-lo perante símbolos e ritos que representam esse
mistério. Para Jung, o mito é proporcionado pelo inconsciente coletivo, ou seja, é proveniente
das camadas mais internas da alma e representa uma espécie de manifestação psíquica que
25
CHAMPLIN, R. Dicionário de teologia, filosofia e história. São Paulo: Agnos, 2000, p. 47.
26
HUXLEY, Aldous. Os demônios de Loudun. São Paulo: Círculo do Livro, 1952, p. 179.
20
descreve o ser em sua essência. Seguindo esta linha, J. Campbell afirmava que o mito não
constitui somente a busca ou a procura por um sentido em nossa existência. Para Campbell, os
mitos são como ressonâncias, no interior do ser humano o que o leva a se integrar com a
natureza e a sociedade que o cerca, superando assim o informe, o indeterminado, o caos.
Essas perguntas originalmente são trazidas a luz pelas experiências religiosas, que com
o passar dos tempos se transformam em imagens, palavras e finalmente símbolos, gerando
assim o mito. Com a criação do mito, é o ritual que irá proporcionar sua representação
continuamente. Através da oração, entramos no estágio de “expressar” como sendo, segundo
Soares, uma visão do mundo que se deseja desde a essência do espírito 27. Apesar das culturas
existentes serem as mais variadas e diversificadas possíveis, os mitos acabaram se
reencontrando em uma espécie de junção ou movimentos cíclicos, onde é possível encontrar
inúmeras identificações e similaridades entre, por exemplo, de mitos de culturas americanas
com mitos indo-europeus, e até mesmo semitas.
explicação da origem antropológica do mal, isto é, sendo o pecado causado pelo primeiro
casal. Inicia-se assim, uma corrente de sofrimentos e angustias da qual fazemos parte e dela
não podemos nos afastar. No entanto, dentro desta narrativa encontramos elementos que
demonstram simbologias que apontam para um mal pré-humano ou responsável pela falha
humana.
No mito do primeiro pecado temos uma situação onde ao mesmo tempo em que se
demonstra o mal desencadeado sobre Adão e Eva, percebemos que existe um desejo de deixar
ou abandonar a própria situação original ou estado original. Para Croatto30, quando o mito
indica que existe uma proibição de uma certa árvore do Jardim do Edem, em Gn 2, 16-17,
demonstra que deve haver um destaque para a ação de Deus, como sendo uma ação do bem.
Através da obediência o povo poderá reverter os erros cometidos por Adão. Porém, o mito é
posteriormente explicado por Paulo da seguinte forma, em “segundo Adão”, encontrado em
Rm 5, 12-21, o termo refere-se a “contra Adão”, o que coloca o homem em situação de
causador do pecado original e não um mal pré existente.
A luta inicial entre a ordem e o caos não é apenas uma exclusividade do Enûma Elish;
diversos outros povos possuem relatos ensinando que no princípio de tudo possuíamos o caos,
o abismo sem fim, além de muita violência desferida entre deuses. Geralmente nessas
narrativas encontramos uma divindade guerreira ou rebelde que luta contra o caos, no caso da
Enûma Elish, encontramos Marduk, que derrota sua mãe, a deusa Tiamat 32 . Em outras
narrativas do mundo antigo observamos Crono reestabelecendo a ordem do universo contra
seu pai Urano, para depois ser subjugado por Zeus. A ideia é que a ordem sempre prevaleça
30
SOARES, Afonso Maria Ligório. De volta ao mistério da iniquidade: palavra, ação e silêncio diante do
sofrimento e da maldade. Paulinas: São Paulo, 2012, p. 59.
31
Idem, ibidem, p. 65.
32
Idem, ibidem, p. 66.
22
sobre o caos, porem nem sempre isso é possível e novamente o caos, ou o mal, emerge de
onde fora confinado.
Essa ideologia é algo que está longe de ser uma exclusividade do Oriente Próximo, por
exemplo, observamos esse modelo teogônico também em terras sulamericanas, para ser mais
exato em território Mapuche33, no mito de Kai Kai e Treng Treng34. Logo, percebemos que
seja no mito de Kai Kai mapuche, ou na Tiamat babilônica, que tem como correspondente
cananeu Yam, a origem do mal é coextensiva das coisas. Outra característica que pula aos
nossos olhos é que, segundo Ricouer, no momento da criação do mundo o deus que atua na
realização deste feito age como sendo seu libertador e salvador; reservando, de forma
definitiva, o caos como papel de mal, ou aquilo que não tem forma.
Para esse modelo de mal absoluto é então a não existência do ser humano, o que faz do
nosso existir a salvação do vazio. Percebe-se, então, que neste primeiro modelo de criação
mítica, existe um significado para o sofrimento humano, assim também existe uma condição
de falta de culpa neste mesmo ser humano, uma vez que este não possui controle sobre as
desgraças e injustiças da vida. Na tradição judaica, percebe-se, no entanto uma diferenciação
que é muito inovadora se comparado com outros mitos teogônicos, o simples fato de que na
versão judaica não existe combates violentos entre forças antagônicas, embora o que mais se
aproxime disto seja o fato de que Deus, que cria apenas pelas palavras, apresenta a
necessidade de dobrar em seu favor elementos, que são pré-existentes ou não, a sua vontade
transformadora.
Para finalizarmos esta análise sobre o mito teogônico, alguns autores afirmam que o
mito judaico apresenta, nas palavras de J. A. Estrada, “ uma contradição irresolúvel quanto a
apresentação do mal”35, ou seja, apesar de Deus ser bom e ter criado tudo de forma boa, existe
a figura ou presença do mal, simbolizando a presença do caos, que não sabemos como surgiu
ou de onde vem, por não ser considerado divino ou feito por uma obra criadora.
No mito adâmico, que possui como maior referência, embora não a única, a narrativa
do capítulo 3 de Gêneses observamos o fator da queda. Logo, percebemos que no mito
judaico sua principal função é demonstrar uma experiência religiosa que sugere uma
meditação sobre a realidade do pecado e a simples necessidade de expulsa-lo. Assim, mesmo
33
SOARES, Afonso Maria Ligório. De volta ao mistério da iniquidade: palavra, ação e silêncio diante do
sofrimento e da maldade. Paulinas: São Paulo, 2012, p. 66.
34
Idem, ibidem, p. 66.
35
Idem, ibidem, p. 69.
23
não se tratando de uma história o fato real, tenta-se tirar uma lição de experiências concretas
do povo israelita36.
Desta forma para o mito adâmico, somos socorridos em nossas falhas pelos
ensinamentos e mandamentos divinos, que saltam aos nossos olhos como orientação na
concretização do conhecimento do bem e do mal. Com relação ao mito trágico podemos
afirmar que o terceiro modelo criado por Paul Ricoeur aponta uma condição intermediária em
relação aos dois primeiros. No mito trágico o conceito de mal está ligado ao destino do
próprio ser humano. Nele a figura do deus ou deuses cercam e tentam os humanos a cada
momento, embora não cometam, aos seus olhos, pecados ou faltas para com os humanos. Pelo
contrário, são os próprios humanos que são culpados de alguma forma.
36
SOARES, Afonso Maria Ligório. De volta ao mistério da iniquidade: palavra, ação e silêncio diante do
sofrimento e da maldade. Paulinas: São Paulo, 2012. p. 70.
37
Idem, ibidem, p. 75.
24
religião de mistério, que apresenta o conceito que todos os seres humanos são deuses por
herança divina e que um dia conseguiremos obter a plenitude novamente.
Neste mito, o mal se faz presente no próprio corpo humano, onde a alma torna-se
prisioneira. Desta forma o mal não depende da vontade humana, pois é um fruto de uma
degradação da alma para regiões mais densas do nosso interior. Nesses mitos fica claro, então,
como a alma tornou-se humana e assim esqueceu-se de sua essência divina, permitindo que o
corpo se tornasse um lugar de tentação. Logo, o mal não está na origem de tudo, está presente
na queda da alma para a matéria dela decorrente.
De acordo com Wright, Satanás não possui poderes próprios. Ele só faz tudo aquilo
que Deus o pede para fazer, assim como também em sua origem ele não é uma figura de
aparência terrível, com chifres e cauda.
Para Helen Bond39, a figura do diabo em sua originalidade não está oposta a Deus e
afirma: “Não há nenhum príncipe das trevas que se opõe a Deus. Durante todo o texto não
existe nenhum conceito de uma força maléfica específica”.
Como podemos perceber nas escrituras, uma das primeiras aparições de Satanás, em
uma das histórias mais conhecidas da Bíblia, é na forma de anjo no livro de Jó. Nesta
passagem a figura de Satanás afirma que Jó, um dos servos mais íntegros e fieis a Deus, só lhe
tem essa fidelidade porque Deus lhe confere uma existência repleta de bênçãos e proteção. Na
história bíblica, Deus permite então que Satanás teste a Jó, atirando contra o mesmo vários
38
WRIGHT Documentário. History of the Devil. 2007. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v
=1X-tMUaNpYA&index=21&list=FLZYXda330Fe9Mo-FVfTGbqw>. Acesso em: 14 ago. 2013
39
BOND, Helen. Documentário. History of the Devil. 2007. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v =1X-tMUaNpYA&index=21&list=FLZYXda330Fe9Mo-FVfTGbqw>. Acesso em: 14 ago. 2013
25
tipos de doenças e calamidades. No final, mesmo com todos esses sofrimentos terríveis, Jó
continua a adorar Deus e Satanás perde todo o argumento. Porém, podemos afirmar com tudo
isso que a figura de Satanás, que fez da vida de Jó uma desgraça, não é um demônio, nem
mesmo pode ser chamado de um anjo perverso. Além disso, as passagens deixam claro que o
mesmo não habitava em inferno algum, como novamente nos afirma Helen Bond.
Não existia nenhum conceito de inferno como nós temos atualmente, um lugar de
fogo, tormento e tortura. Na verdade para os antigos israelitas, o que acontecia
quando alguém morria, era na verdade muito pouco, a pessoa iria para um local
chamado “Xeol” que é um tipo de lugar escuro e sombrio, um tipo de submundo
onde todos aqueles que já morreram estão, não importa se foram bons ou ruins 40.
Podemos então, com essas informações, nos perguntar, onde está o Satanás que
conhecemos e tememos? Onde começaram as práticas para expulsá-lo, em suas várias
formas? Onde está o monstro em eterna guerra contra as forças de Deus? O monstro que
governa sobre o fogo do inferno e pune os pecadores? Se o demônio tradicional não vem do
AT judeu, de onde ele vem?
Segundo Irineu Rabuske 41, a religião no Egito Antigo, desde seus primórdios, sempre
conteve o chamado dualismo entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses, assim os seus
deuses, sendo tanto bons como maus, transitavam pela nossa terra com total interferência do
sagrado em nossas vidas. Podemos então dividir as chamadas entidades demoníacas egípcias
em duas categorias distintas. Como ponto inicial, segundo o autor, temos uma série de figuras
e personagens que são consideradas atemporais no contexto egípcio, e em contra parte temos
outra categoria que representa uma verdadeira evolução histórica na referida civilização.
40
BOND, Helen. Documentário. History of the Devil. 2007. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=1X-tMUaNpYA&index=21&list=FLZYXda330Fe9Mo-FVfTGbqw>. Acesso em: 14 ago. 2013.
41
RABUSKE, Irineu José. Possessão e exorcismo: da prática do Jesus histórico à atualidade. In.: Revista
Cultura e Fé. v. 129, ano 33, 2010, p. 191
26
De acordo com Rabuske43, também é da civilização egípcia que temos a mais antiga
notícia de um ritual de exorcismo. O caso é conhecido como o caso Ben-Tresch. Segundo
Rabuske44: “Esta narrativa deve remontar aos anos 500 a 300 A. C. O exorcismo basicamente
consistiu em enviar a estátua do deus de Karnak para o lugar onde se encontrava a pessoa
dominada por um suposto demônio.”
Na antiga Mesopotâmia, atuais territórios de Iraque, Síria e Ásia Menor, vimos que a
crença em demônios era bastante difundida e é justamente nessas civilizações que
encontraremos personagens universais como as figuras de Dimne e Pazuzu. Dimne ou também
chamada Lamastu era um demônio feminino que geralmente atacava crianças recém nascidas
além das próprias mães gestantes, e segundo a crença também matava homens e mulheres
devorando-as.
O famoso Pazuzu ou Pà-zu-zu, era uma entidade conhecida como príncipe dos
demônios do vento. O importante sobre esta “entidade” é que era invocada ou mencionada
como espírito protetor, demonstrando um dualismo contra outros demônios e deuses
malignos, através de rituais mágicos e outras formas de orações.
A mesopotâmia também é o lar de outra figura menos famosa. Existem vários grupos
de demônios e entidades que podem ser reunidas em relação à origem das mesmas, como por
exemplo espíritos de ancestrais, deuses, etc. Porém, é curioso notar que para os povos da
mesopotâmia apenas pessoas consideradas comuns eram transformadas ou se tornavam em
demônios45 . Os nobres não se tornavam seres malignos, o que demonstra a influência de
classe social nas crenças espirituais.
Segundo Rabuske46, para povos como Assírios, Caldeus, Babilônicos, muitos desses
espíritos eram os causadores de diversas doenças, tanto que os demônios mesopotâmicos eram
42
RABUSKE, Irineu José. Possessão e exorcismo: da prática do Jesus histórico à atualidade. In.: Revista
Cultura e Fé. v. 129, ano 33, 2010, p. 191.
43
Idem, ibidem, p. 191
44
Idem, ibidem, p. 191.
45
Idem, ibidem, p. 191.
46
Idem, ibidem, p. 191.
27
classificados como sendo causadores de tipos específicos de doença, como por exemplo, o
demônio que causava peste ou o espírito que trazia pragas.
Na cultura helenística, temos no que diz respeito à cultura popular, um grande número
de figuras que representa demônios, não necessariamente sendo estes maus. Porém os mesmo
estão também presentes na filosofia grega, no pensamento de grandes filósofos como Platão,
que imaginava os demônios como fazendo o papel de intermediação ente humanos e deuses.
Xenócrates, que foi posterior a Platão, seguiu os passos de seu mestre e elaborou uma teoria
bastante detalhada sobre essas entidades.48
Diferentes destes pensadores, o estoicismo tardio admite que almas de pessoas mortas
possam se tornar demônios, realizando assim tarefas iguais àquelas realizadas por entidades
espirituais de origem sobrenatural. É importante notar que as ideias aqui demonstradas,
segundo Rabuske49, não ficam só no campo dos debates e discussões filosóficas, mas sim
tiveram grande divulgação no contexto popular e encontraram um vasto campo para se
expandir através do fenômeno do helenismo, alcançando assim várias partes do mundo
conhecido.
Mas nem tudo era concordância sobre os demônios: Luciano de Samósata, em sua
conhecida obra, Amigo da Mentira, chega a zombar de tais figuras, assim como a zombar dos
47
OPPENHEIM, A. L. The eyes of the lord. Journ Am Or Soc. v. 88, p. 173-180, 1968.
48
RABUSKE, Irineu José. Possessão e exorcismo: da prática do Jesus histórico à atualidade. In.: Revista
Cultura e Fé. v. 129, ano 33, 2010, p. 193
49
Idem, ibidem, p. 192.
50
VAILATTI, Carlos Augusto. Manual de demonologia. São Paulo: Fonte Editorial, 2011, p. 61.
28
Há três mil e quinhentos anos atrás, na antiga Pérsia, onde hoje encontramos os atuais
Iraque, Síria e Irã, havia muitos deuses, sendo os mesmos bons e maus. Um religioso
chamado Zoroastro ou Zaratustra reduziu o complicado grupo de personagens ou o amplo
panteão dos deuses Mesopotâmicos em apenas dois.
Para Zoroastro, o universo deveria ser visto como um imenso campo de batalha. Algo
como um grande jogo de xadrez, no qual cada pessoa na terra deveria escolher um lado como
foi mencionado acima, Richard Holloway nos explica com clareza esse processo: “Esse é um
daqueles atraentes tipos de dualismo. O de que essa vida é uma luta entre o bem e o mau”53.
Assim temos uma clara demarcação do que chamamos de ideias judias, e podemos
encontrar as ideias de Zoroastro no Velho Testamento; elas estão lá. Noções do céu
e do inferno. O início do que podemos ver como o diabo personificado como o
terrível inimigo de Deus54.
Em relação à cultura grega, assim que o Império Persa foi derrotado por Alexandre o
Grande, a mesma foi introduzida em Israel. Com essa introdução, um enorme número de
51
VAILATTI, Carlos Augusto. Manual de demonologia. São Paulo: Fonte Editorial, 2011, p. 62.
52
BRIAN, Nicholas Baker. Documentário. History of the Devil, 2007. Disponível em: <https://www.youtube.
com/watch?v=1X-tMUaNpYA&index=21&list=FLZYXda330Fe9Mo-FVfTGbqw>. Acesso em: 14 ago.
2013
53
HOLLOWAY, Richard. Documentário. History of the Devil, 2007. Disponível em: <https://www.youtube.
com/watch?v=1X-tMUaNpYA&index=21&list=FLZYXda330Fe9Mo-FVfTGbqw>. Acesso em: 14 ago.
2013
54
BRIAN, op. cit.
29
deuses e deusas, incluindo aquele que moldaria a nossa imagem de Satanás. O deus grego
Hades era conhecido por ter a face negra com uma barba negra. O mesmo também se sentava
em um trono de ébano e usava como arma um tridente; porém não para espetar os pecadores,
mas para destruir coisas aos pedaços. Logo, para os Gregos Clássicos (GC) o submundo era
governado por Hades, o deus dos mortos.
Assim como a figura do deus Hades, os gregos ainda deram ao mundo antigo outro
conhecimento interessante na construção da história do diabo. Em um de seus mitos mais
famosos, o deus Zeus, o maior dos deuses, derrotara a grande serpente do vento chamada
Tifon e a jogou no Tártaro, a região mais baixa do submundo.
Com o passar dos séculos o mito foi ganhando força e crescendo por toda a região e se
transformou na história de como o anjo Satanás se rebelou contra Deus e foi jogado no
inferno com todos os seus seguidores. Assim, tem início a versão de como os aliados de
Satanás, os chamados anjos caídos, se transformam em sua legião demoníaca.
E Helen Bond complementa da seguinte forma: “E por causa do mau cheiro do lugar, e
por que estava tão cheio de lixo, periodicamente era ateado fogo e o fogo ficava queimando
por vários dias, quando não semanas”56.
Percebemos então que Geena era o local onde as autoridades da cidade de Jerusalém
queimavam o lixo da cidade, assim como os corpos dos criminosos executados pelos mais
diversos crimes. Logo, com o passar dos anos, o lugar ficou conhecido como um território
sobrenatural.
55
WRIGHT. Documentário. History of the Devil. 2007. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v
=1X-tMUaNpYA&index=21&list=FLZYXda330Fe9Mo-FVfTGbqw>. Acesso em: 14 ago. 2013
56
BOND, Helen. Documentário. History of the Devil. 2007. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=1X-tMUaNpYA&index=21&list=FLZYXda330Fe9Mo-FVfTGbqw>. Acesso em: 14 ago. 2013
30
Fonte: http://www.ufjf.br/secom/2011/03/31/releitura-de-auto-da-barca-do-inferno-de-1517-encerra-curso-de-
teatro/
Geena foi a inspiração que faltava para completar os terrores do inferno, na época no
qual os evangelhos cristãos foram escritos, por volta do século I D.C. Assim sendo, a
personagem de Satanás se tornou uma figura poderosa, valendo também para aumentar essa
fama o fato de que as terras judias eram neste período governadas pelo poderoso Império
Romano. Os romanos eram neste período bastante odiados pelos povos que governavam. Para
muitos judeus e principalmente cristãos perseguidos, Satanás era a grande força maligna que
movia o Império Romano, estando ele próprio controlando o trono dos cesares.
O autor do apocalipse disse que a besta possuía um número humano que é 666. E
isso tem tradicionalmente sido visto como uma referência ao impedador Nero, e
isso por que se você pegar “Nero Caesar” em Aramáico e contar os valores
57
O inferno, lugar de fogo e sofrimento, obra do pensamento dos antigos israelitas ao observarem o velho
deposito de lixo de Jerusalém quando a este se ateavam fogo. A figura representa justamente este pensamento
no período medieval.
31
O mesmo livro afirma que o diabo fora jogado por Deus no Abismo, onde ficaria
trancado por volta de mil anos. Quando a figura de Satanás saísse, o fim do mundo estaria
anunciado. O livro do Apocalipse ainda conta que neste período ocorreria uma grande batalha
entre o bem e o mal até o fim. Ainda referente à figura do diabo em sua evolução histórica
podemos nos indagar: Com o que se parecia o diabo no início da era cristã?
Vemos através de várias imagens e fontes antigas, como estampas do século XII e
XIII, que na maioria das vezes ele possuía pele a cabelos negros, assim como no Hades da
mitologia grega. Suas asas vieram da estória de que um dia foi um anjo, embora elas se
parecessem mais com as asas de um dragão e é neste ponto que encontramos mais um
elemento.
Fonte: http://cleofas.com.br/o-demonio-sim-ou-nao-eb-parte-1/
Por vários anos, a figura mitológica do dragão foi interpretada como o símbolo do uma
força maligna ou demoníaca, e foi de um dragão que Satanás herdou seus pés. Da mesma
58
BOND, Helen. Documentário. History of the Devil. 2007. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=1X-tMUaNpYA&index=21&list=FLZYXda330Fe9Mo-FVfTGbqw>. Acesso em: 14 ago. 2013.
59
A imagem de satanás que conhecemos atualmente foi forjada ainda no mundo antigo, em detrimento a
elementos incorporados de várias culturas
32
forma que o dragão era um símbolo do mal, temos também a famosa serpente, criatura essa
que ousou tentar Eva no Jardim do Éden, associado à divindade cananéia da prostituição
sagrada, recriminada pelo judaísmo.
A figura de Satanás, embora seja sempre associada ao mal, também irá servir aos
próprios cristãos como justificativa de poder. Quatro séculos mais tarde o imperador
Constantino o Grande irá se converter ao cristianismo, fazendo com que a religião que outrora
fora perseguida se tornasse o credo oficial do mais poderoso império da Terra. As autoridades
cristãs logo passaram a possuir grande poder e agora eram aparadas pelo Estado. Os mesmos
usariam a figura de Satanás para ajudá-los a manter essa posição, gerando o medo pelo
pecado e pelo acúmulo de bens materiais.
Fonte: http://setimodia.wordpress.com/2010/03/24/os-falsos-deuses-da-biblia/
Para Ronaldo Salles Senna61, quando os seres humanos criaram os deuses, em seus
60
Deuses antigos se tornaram figuras demonizadas no processo de evolução teológica do povo hebreu. Na
figura temos a representação do deus amonita Moloque.
61
SENNA, Ronaldo Salles. Deuses antigos, demônios atuais. In.: Revista Sitientibus, Feira de Santana, 1986,
p. 13.
33
mundos, criaram a própria imagem do mundo que nos cerca e neles depositaram seus desejos
mais subjetivos. Porém, dentro desse contexto muitas vezes os valores se invertem e deuses se
tornam demônios, assim como demônios se tornam deuses. Flávio de Carvalho esclarece esse
pensamento:
62
CARVALHO, Flávio. A origem animal de Deus. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1973, p. 19.
63
PIERRE, Mariel. Quando um deus se torna diabo. In.: Revista Planeta. São Paulo: Três, 1985, p. 22.
64
Na bíblia de Jerusalém encontramos o fragmento “e não nos submetas a tentação, mas livra-nos do maligno”.
34
Antigo Testamento, por pelo menos três motivos, como nos afirma Carlos Augusto Vailatti65.
Em primeiro lugar a terminologia, em segundo lugar os próprios desenvolvimentos históricos
e, em terceiro lugar, questões teóricas sobre o referido assunto.
65
VAILATTI, Carlos Augusto. Manual de demonologia. São Paulo: Fonte Editorial, 2011, p. 53.
66
Idem, ibidem, p. 54.
67
GARMUS, Ludovico. Diabo, demônios e poderes satânicos. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 25-27 (Série
Estudos Bíblicos).
68
O vocábulo significa “pesta, praga”.
35
Além das influências já vistas, existem também outras que atrapalham na interpretação
da tradução em geral. Podemos citar aqui outros fatores como evidências filológicas,
tendências teológicas e divisões antecipadas com respeito a conhecimentos do termo
“demônio”, além disso, temos as próprias maneiras de interpretação de cada texto em
particular. Conhecimentos sobre demônios no AT são, em muitos casos, fortemente levados
pelo contexto em que se situam, porém temos uma amplitude de contextos que podem se
remeter com mais frequência e por eles os demônios podem ser analisados.
69
UNGER, Merril F. Biblial demonology: a study of the spiritual forcs belsinot the presente world unrest.
Wheaton, IL: Scripture Press, 1973, p. 59.
70
BAUER, Johannes B. Dicionário de teologia bíblica. São Paulo: Loyola, 1988, p. 92
36
significando assim “anjo protetor”71. A palavra Shed (singular), tem ligação com o vocábulo
babilônico Shedû, que também significa demônio, porém, neste sentido temos a utilização
tanto para o bem como para o mal72.
O termo S’eirim que encontramos em Lv 17,7; Dt 32,2; 2Rs 23,8; 2Cr 11,15; Is 13,21;
Is 34,14 é um termo interpretado como o termo anterior e que também possui uma forma
plural. S’eirim deriva do hebraico S’air, significando “bode” 73 . Podemos então tem uma
compreensão aproximada do que seria “demônio cabeludo”74, onde também de acordo com
Unger 75 , as referidas personagens eram vistas como sendo elementos de culto. A LXX 76
traduz este vocábulo também como aparece em Is 34,21 e 34,14, o que para muitos estudiosos
prova que para os antigos hebreus de Alexandria o termo era utilizado para identificar
realmente uma figura maligna77.
71
BAUER, Johannes. Dicionário bíblico teológico. São Paulo: Loyola, 2000, p. 92.
72
HARRIS, R. Loird. Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 1998,
p. 1527
73
HOLLADAY, William L. A concise hebrew and aramaic lexion of the old testament. Mich.: William B.
Eerdmans Publishing Company, 1988, p. 353.
74
UNGER, Merril F. Biblial demonology: a study of the spiritual forcs belsinot the presente world unrest.
Wheaton, IL: Scripture Press, 1973, p. 60.
75
Idem, ibidem, p. 59
76
LXX – Septuaginta é o nome da versão da bíblia hebraica para o grego Koiné, traduzida em etapas entre o
terceiro e o primeiro século a. C. em Alexandria.
77
UNGER, op. cit., p. 60.
78
VAILATTI, Carlos Augusto. Manual de demonologia. São Paulo: Fonte Editorial, 2011, p. 61.
79
GARMUS, Ludovico. Diabo, demônios e poderes satânicos. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 25 (Série Estudos
Bíblicos).
37
Para finalizarmos essa parte dos fenômenos naturais temos mais dois termos utilizados
como sendo ação dos demônios. O primeiro é o termo Reshep que ocorre em Dt 32,24; Jo 5.7;
Sl 76.4; Sl 78.48 e Hab 3.5 e pode ser interpretado como “chama, relâmpago, faísca”. Essa
influência se deve mais aos povos pagãos que circundavam o povo hebreu, povoando a
natureza de espíritos das mais variadas formas. Ainda acredita-se que o termo possa ter
relação com a palavra Reshep, antiga divindade ligada à febre e à propagação de epidemias,
sendo desta forma demonizado84.
80
VAILATTI, Carlos Augusto. Manual de demonologia. São Paulo: Fonte Editorial, 2011, p. 70
81
Idem, ibidem, p. 72.
82
Idem, ibidem, p. 62.
83
PFEIFFER, Charles F.; HARRISON, Ereerett F. The Wycliffe bible commentary. Chicago: Moody Press,
1987, p. 529.
84
HARRIS, R. Loird. Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 1998,
p. 1460.
38
“saraiva”. A saraiva era demonizada devia ao claro prejuízo que trazia principalmente às
lavouras e plantações. Atingia muitas vezes também a criação de gado, prejudicando os
animais. O mundo hebraico antigo viu surgir termos demonizados para animais, onde em
alguns casos eram considerados como seres ou espécies do submundo, saídos do plano
inferior. Poderemos nos aprofundar em alguns exemplos como o termo Alûqah, que
representa nada mais nada menos que “sanguessuga” essa espécime de animal muitas vezes
segundo Vailatti85, era visto como sendo uma espécie de vampiro86, algo que iria muito além
do que o simples parasita que na verdade é.
O termo também famoso Liwyatan, em Jo 3.8; Jó 41.1, Is 27.1, pode ser traduzido
como serpente ou ainda monstro do mar, acredita-se que na verdade seja uma demonização de
crocodilianos. Mas segundo Vailatti88, as lendas antigas também podem representar o leviatã
como sendo símbolo da figura de Samael, príncipe do mal e que seria destruído no futuro89.
Findando esta lista temos Aza’zel em Lv 16.8; 10; 26, que dentre muitas traduções pode
também ser traduzido como “bode” ou como compreenderam os tradutores da LXX e da
85
VAILATTI, Carlos Augusto. Manual de demonologia. São Paulo: Fonte Editorial, 2011, p. 65
86
Idem, ibidem, p. 65.
87
BAUER, Johannes. Dicionário bíblico teológico. São Paulo: Loyola, 2000, p. 92.
88
VAILATTI, op. cit., p. 67.
89
UNTERMAN; Alan. Dicionário judaico de lendas e tradições. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p. 152.
39
Vulgata, “o bode que se vai”90 . A literatura judaica ainda descreve tal personagem como
sendo o chefe dos demônios, que habitaria na terra, e que teria sido banido para o deserto.
Sobre seres que habitariam no submundo temos o termo Mawet, em 18.13; 28.22;
38.17; Is 28.15;18; Jr 9.20; Os 13.14; Hab 2.5, com o sentido de “morte”, além de
“moribundo”. Observamos que, neste sentido, a própria condição de mortal nos forneceu uma
imagem negativa da morte, o que fez com que ela fosse demonizada em algumas culturas. Em
relação a Debar Beliya’al, em Sl 41.9, o sentido também é de peste maligna91.
Melek Lallahôt, Jo 18.14, temos uma tradução como “rei dos terrores”, onde o termo
ocorre em um contexto que procura descrever o final dos homens perversos, onde percebemos
claramente que diante das maldades cometidas em vida os ímpios terminariam nas “garras” do
rei dos terrores. Também é comum imaginar que esta personagem possa se tratar da própria
morte ou algum outro tipo de demônio, sendo este responsável por castigar as pessoas
perversas no mundo dos mortos92.
Repaim, citado em, Jo 26.5; Sl 88.11; Pr 2.18; 9.18; Is 14.9; 26.14,19, seria algo como
“sombras da morte” porém é sabido que nem todos demonizavam este termo. Quando
analisamos o contexto histórico no qual esse termo surge, percebemos que aqui temos uma
aproximação com os espíritos dos antepassados mortos. Bauer explica que apenas quando o
culto aos antepassados passa a ser rejeitado, esses espíritos começam a ser considerados
figuras ruins93.
O termo Ittim, que ocorre em IS 19.3; é um termo muitas vezes referido a algum tipo
90
HARRIS, R. Loird. Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 1998,
p. 1099.
91
VAILATTI, Carlos Augusto. Manual de demonologia. São Paulo: Fonte Editorial, 2011, p. 73.
92
PFEIFFER, Charles F.; HARRISON, Ereerett F. The Wycliffe bible commentary. Chicago: Moody Press,
1987, p. 475.
93
BAUER, Johannes. Dicionário bíblico teológico. São Paulo: Loyola, 2000, p. 93.
94
VAILATTI, op. cit., p. 73.
40
de prática oculta ou mágica. Pode ser traduzido por encantadores ou mágicos, ainda que por
vezes posamos encontrar o termo adivinhadores. Outro termo interessante é Ôbôt, em Is 8.19,
que assim como Repaim, significa espírito dos mortos ou espírito dos familiares. Sabemos
que em várias culturas do Oriente Próximo esses espíritos eram bastante consultados por
adivinhos ou mágicos e até mesmo em Israel muitas pessoas recorriam a tal prática quando se
encontravam em estado de desespero espiritual; era considerada uma prática demoníaca por ir
contra a fé em Yahw95.
Enfim, como último dos termos demonizados pelos hebreus no AT, temos o termo
Yidde’oni, encontrado em 1 Sm 28.9; IS 19.3. Representaria também uma pessoa ligada ao
misticismo, porém com contexto mais pejorativo. O sentido aqui encontrado é o de agoureiro,
alguns também atribuíam o termo a supostos “espíritos imundos” que trariam maus presságios
aos seres humanos96.
No mundo antigo os demônios têm preferência por certos âmbitos e esferas da vida e
das pessoas. Preferências por certos tipos de lugares como terra, o ar, casas e
campos, lugares desertos e ruínas, lugares impuros como cemitérios, lugares com
95
PFEIFFER, Charles F.; HARRISON, Ereerett F. The Wycliffe bible commentary. Chicago: Moody Press,
1987, p. 19
96
VAILATTI, Carlos Augusto. Manual de demonologia. São Paulo: Fonte Editorial, 2011, p. 73.
41
Mais uma vez Rabuske99 afirma que: “Assim sendo, na tradição judaica, praticamente
todos os âmbitos da vida também podem ser instrumentos dos demônios. Podem, mas não
precisam ser necessariamente, pois tudo é ambivalente”.
Para acabar com todas essas influências malignas no dia a dia foram desenvolvidas,
com o passar dos tempos, mecanismos que garantiriam a segurança das pessoas, expulsando
os demônios. Assim foram criadas medidas apotropaicas como o uso de “magias”, cânticos,
preces, e por fim exorcismos para o caso daqueles que eram ditos como possuídos.
Para o povo do antigo Israel só havia uma forma segura de se conseguir proteção
contra essas entidades: através de proteção de Deus e de seus anjos. Porém existiam formas de
se evitar as tentações, como o cumprimento de Lei, por meios de amuletos, a realização de
certas regras de prevenção, além dos esconjuros realizados por pessoas especializadas.
Rabuske100 nos explica que a prática exorcista poderia ser realizada de forma simples.
Para realizá-la dever-se-ia colocar as mãos sobre o possesso e através de sua imposição recitar
palavras consideradas poderosas contra os demônios. Essas palavras poderiam ser gritos,
palavras mágicas, palavras em línguas estranhas também eram bastante utilizadas.
Outros elementos como no exorcismo egípcio também eram utilizados como fogo, luz
e fumaça, líquidos como água, sangue. Em culturas como a helenística era utilizado o vinho,
óleo, saliva. O próprio ar também era utilizado através de sopros e elementos sólidos como
terra, barro, areia, cinzas e farelo.
Temos também conhecimento sobre certos fatores que colaboravam com a não
possessão por parte de um espírito ruim. Renúncia com relação a certos tipos de vestimentas,
97
RABUSKE, Irineu José. Possessão e exorcismo: da prática do Jesus histórico à atualidade. In.: Revista
Cultura e Fé. v. 129, ano 33, 2010, p. 194.
98
Idem, ibidem, p. 194.
99
Idem, ibidem, p. 195.
100
Idem, ibidem, p. 195.
42
Continuando com nossa narrativa pelo mundo antigo devemos também citar como os
demônios são vistos e entendidos na tradução da LXX. Escrita aproximadamente entre os
séculos III e II A.C. a LXX contribuiu de forma decisiva para os escritores do NT, pois
quando o NT cita o AT a forma de fazê-lo muitas vezes segue a maneira da LXX102.
101
RABUSKE, Irineu José. Possessão e exorcismo: da prática do Jesus histórico à atualidade. In.: Revista
Cultura e Fé. v. 129, ano 33, 2010, p. 195
102
GRAYLILL, John B. Septuagent. In.: TENNEY, Merril C. Zondervan's Pictorial Bible Dictionary.
Michigan: Zondervan Corporation, 1964, p. 771.
103
KEEL, Othmar. La icanografia del Antigo Oriente y el Antigo Testamento. Madrid: Trotta, 2007, p. 75.
43
Na passagem de Is 34,14, aparece o termo Sair como daimónia, ou seja, temos aqui
presente o termo plural de S’eirim105. No livro do profeta Isaías podemos encontrar as duas
penúltimas referências a demônios na LXX, sendo a primeira delas vista na passagem de Is
65,3, passagem esta que pode ser um tanto quanto difícil de interpretar, afirmando “povo que
de contínuo me irrita abertamente, sacrificando em jardins e queimando incenso sobre altares
de tijolos” a LXX, faz um pequeno acréscimo à expressão, onde depois de tijolos teremos,
“aos demônios que não são”. Ao analisarmos este acréscimo podemos ver claramente que
existe aqui uma forma de ridicularização às entidades consideradas malignas, uma vez que a
própria LXX passa a visão de que eles não existem.
Em Is 65.11, a LXX realiza a tradução da palavra hebraica Gad para daimónia. Como
sabemos, Gad significa sorte e ao que tudo indica nesta passagem é que Gad é interpretada
como sendo uma espécie de deus ou divindade da sorte, certamente alusão à deusa grega
Tique, antiga divindade da sorte. Ainda sobre essa divindade a LXX demonstra um ritual
onde podemos perceber claramente que se trata do Lectisterium, um antigo ritual onde
bastante comida era espalhada diante da referida divindade, para que assim conferisse sorte106.
Finalizando, podemos afirmar que a LXX apresenta uma tradução que é bastante
tendenciosa em relação à crença em demônios e espíritos malignos, o que contribuiu de forma
bastante eficaz para criar uma base intertestamentária para a fértil crença demonológica que
irá aparecer no NT.
O primeiro século da era cristã é bastante relevante no que se trata de demônios, pois
será justamente neste contexto que irão surgir os fatos narrados em Mc 5,1-20, além de ser
104
Neste trecho do Septusquinta o hebraico significa “os lobos ali dançam”.
105
UNGER, Merril F. Biblial demonology: a study of the spiritual forcs belsinot the presente world unrest.
Wheaton, IL: Scripture Press, 1973, p. 60.
106
HAMILTON, Vitor P. In.: HARRIS, R. Lairol. Dicionário internacional de teologia do Antigo
Testamento. São Paulo: Loyola, 1998, p. 246.
44
Por isso iremos aqui estudar duas personagens históricas e seus pensamentos sobre
demônios: Filo de Alexandria e Flávio Josefo.
Para Filo de Alexandria, Deus podia ser interpretado como sendo um espírito puro,
comandando uma grande quantidade de entidades que seriam tanto anjos como demônios.
Para ele, essas entidades estariam todas a serviço de suas ordens 107. A demonologia de Filo
consiste em determinar todo o cosmos como sendo possuidor de espíritos.
Para Filo o ar, por exemplo, era a morada dos daimónios, sendo essas entidades tanto
anjos como demônios, utilizados por Deus como espécies de mensageiros. Se mantendo na
tradição helenística, Filon nos mostra um conceito diferente do encontrado na Bíblia, onde
anjos e demônios são totalmente diferentes108.
107
PIKE, Edgar Rayston. Dicionário de religiones. México: Fondo de Cultura Económica, 2001, p. 190.
108
KITTEL, Gerhard. Theological Dictionary of the New Testament. [S.l]: Eerdmans Publishing Company,
1999, v. 2, p. 9.
109
VAILATTI, Carlos Augusto. Manual de demonologia. São Paulo: Fonte Editorial, 2011, p. 85
110
CHAMPLIN, Russe Norman. Enciclopédia de bíblia, teologia e filosofia. São Paulo: Hagnos, 2001, v. 2, p.
766.
45
Ainda no caso do rei Saul, Josefo menciona demônios como sendo a causa de sua
depressão em Antiguidades Judaicas VI, 166, 168, 211. Para finalizar temos o exemplo de
Salomão, no que se refere à utilização de poderes considerados mágicos para aprisionar
demônios. Segundo Josefo, Salomão conseguiria expulsar deminos que habitariam nos
próprios homens, fazendo utilização das práticas mágicas. Provavelmente cânticos e orações
eram realizadas neste processo, descrito em Antiguidades Judaicas VIII, 45 – 48.
Essa informação nos mostra que 84% da utilização do termo daimonion no NT está
restrito aos evangelhos, onde podemos observar uma verdadeira obsessão demonológica, com
possessões, exorcismos e curas de muitas doenças vistas como ação do demônio, e que se
transforma em algo comum no dia a dia das pessoas do Israel do século I D.C. Porém, apesar
desta “obsessão crescente” de demonologia, as entidades aqui mostradas parecem estar
“controladas”.
Sinônimos para o termo daimonion também podem ser vistos no que se refere ao NT,
dentre as quais podemos destacar palavras como espírito, espírito impuro e ainda anjo do
diabo, esta última expressão, ocorrendo com menor frequência117. Logo, a figura do demônio
vista no NT é totalmente diferente do que vimos em boa parte da antiguidade, e assim também
mudaram as práticas de expulsão. A figura agora apresentada é bem mais distinta, onde o
111
VAILATTI, Carlos Augusto. Manual de demonologia. São Paulo: Fonte Editorial, 2011, p. 86.
112
SMITH, Carlos R. The New Testament Datrime of Demons. v. 10, n. 2, 1969, p. 26.
113
BIETENHND, H. In.: BROWN, Coln. New International Dictionary of New Testament Theology. Grand
Rapids: Zondervan, 1986, v. 1, p. 452.
114
BALZ, Host; SCHNEIDER, Gerhnd. Dicionário exezético del Nuevo Testamento. [s.l.]: Salamanio, 2005,
v. 1, p. 815.
115
SAYÉS, José Antônio. El demônio, reslislool o mito? Madrid: San Pablo, 1997, p. 48.
116
Idem, ibidem, p. 168.
117
BALZ; SCHNEISHER, op. cit., p. 816.
46
Para Van Der Loos: “Gradualmente o abismo entre divindade e demônio foi-se
alargando. O judaísmo, o Cristianismo e o Islã só veem no demônio uma força maligna e
inimiga de Deus e dos homens”. Assim criou-se a separação definitiva entre o bem e o mal,
pois da mesma forma que a figura dos anjos pertenceria a Deus e ao seu reino de luz e amor,
os demônios, ou os anjos caídos, como são colocados no mito de Henoc 118, pertenceriam ao
mal e ao reino da escuridão119.
118
Mito de Enoc – mito diluviano, descreve o dilúvio como um acontecimento gerado pela corrupção de seres
angelicais, seres humanos e dos descendentes homo-angelicais conhecidos como Nephilins.
GUIMARÃES, Filipe de Oliveira. Livro de Enoque: uma chave hermenêutica para a compreensão de crenças
cosmogônicas do cristianismo primitivo. In.: Anais do IV Encontro Nacional do GT História das Religiões e
das Religiosidades – ANPUH: Memória e Narrativas nas Religiões e nas Religiosidades. Revista Brasileira
de História das Religiões, Maringá-PR, v. 5, n. 15, jan/2013, p. 01.
119
LOOS, H. Vonsler. The mirocles of Jesus. Leiden: Brill, 1965, p. 341.
47
Ainda neste capítulo descreveremos fatores importantes para a análise que será
construída no terceiro capítulo, como a evolução da crença, as principais características da
possessão demoníaca, as formas de possessão, as formas de manifestações e que tipos de
endemoniados podemos encontrar.
Podemos constatar como era realizado um exorcismo em Israel antigo através de duas
passagens que relatam tais feitos, uma delas está contida em 1 Samuel e outra no livro
120
VAILATTI, Carlos Augusto. Manual de demonologia. São Paulo: Fonte Editorial, 2011.
121
VERMES, Geza. Jesús, el judio. Barcelona: Muclsnik Editors S.A., 1984.
122
VAILATTI, op. cit.
123
VERMES, op. cit., p. 73
48
apócrifo de Tobias. Vamos agora descrever esses eventos para posteriormente poder analisá-
los.
É possível observar que nesta passagem o “espírito maligno pairava sobre Saul” e
posteriormente “adentrava” nele, assim o texto deixa claro que o rei Saul estava possuído por
esta entidade considerada perversa124. Ou dedilhar a harpa, o texto ainda afirma que o espírito
maligno “afasta-se dele” indicando a possível libertação demoníaca de Saul. Como era de
costume no Antigo Israel, Davi provavelmente tocava algum salmo ou evocava alguma
oração enquanto dedilhava o instrumento.
Em Tobias temos medidas típicas dessa fase da história israelita contra a ação dos
demônios. A utilização de fel, fígado de peixe e o coração do mesmo animal podem ser vistos
aqui como elementos farmacológicos, ou seja, um tipo de “remédio” que combina também, de
acordo com as crenças vividas, elementos mágicos, necessários para a realização da expulsão.
124
BERGER, Klaus. É possível acreditar em milagres? São Paulo: Paulinas, 2004, p. 189-190.
125
LXX – Septuaginta é o nome da versão da bíblia hebraica para o grego Koiné, traduzida em etapas entre o
terceiro e o primeiro século a.C. em Alexandria.
49
Podemos citar aqui três exemplos de práticas exorcistas, Abraão, Daniel e os Salmos
sobre exorcismo, encontrados na décima primeira caverna de Qumrã. Nestes manuscritos
temos o relato do Gênesis Apócrifo, que afirma que Abraão era uma espécie de sábio dotado
de poderes especiais, nos quais se destacavam os dons terapêuticos, como um indivíduo que
cura.
Em Daniel, vemos a chamada Oração de Nabônides, que também se faz presente nos
pergaminhos de Qumrã, descrevendo um exorcismo realizado pelo sábio Daniel, embora não
126
STORMOLO, Irlo; BORTOLONI, José. Como ler o livro de Tobias: a família gera vida. São Paulo: Paulus,
2006, p. 40.
127
VIDAL, César. Jésus y los manuscritos del mar muerto. Barcelona: Phaneta, 2006, p. 187.
128
VAILATTI, Carlos Augusto. Manual de demonologia. São Paulo: Fonte Editorial, 2011.
50
fique claro no texto que a pessoa imbuída do dom da cura seja o próprio Daniel. O termo
exorcismo se repete mais quatro vezes, como nos mostra Martínez129, em 2.27; 4.4; 5.7,11.
Porém, o termo é muitas vezes associado às palavras mágico, astrólogo ou até mesmo
adivinho, como já visto anteriormente.
Apesar disso, tal relato ainda é marcante por causa da junção dos pontos que levam a
pessoa a ser possuída por entidades malignas, como por exemplo, o texto junta os fatores:
doença, pecado e demônio, como sendo associados uns aos outros. No relato sinótico do NT:
que trata da cura de um paralítico em Mt 9.1-8; Mc 2.1-12; Lc 5.17-26, esse tema também
volta a figurar, sem no entanto envolver diretamente demônios ou exorcismos. Assim
percebemos que é notável a presença de demônios no início do século I D.C na população
judia, principalmente no que se refere às enfermidades graves. Posteriormente veremos como
esses efeitos eram retratados na Idade Média.
129
MARTINEZ, Florentino Garcia. Textos de Qumran. São Paulo: Vozes, 1994, p. 334.
130
ALLEGUE, Jaime Vázquez La. Regla de la comunidade de Qumrán. Salamanc: Ediciones Segueme, 2006,
p. 133.
131
VAILATTI, Carlos Augusto. Manual de demonologia. São Paulo: Fonte Editorial, 2011, p. 114.
51
primeira passagem que “o Senhor habitará em vós, e Belial fugirá”, assim como na segunda
passagem está escrito que “Ele mesmo subjugará Belial, e tomará por vingança eterna dos
inimigos. Ele resgata de Belial os que estavam presos”.
Ainda nos tempos antigos era notável o uso de fórmulas mágicas no processo de
expulsão e uma dessas fórmulas mais eficazes é a porção concedida através de uma planta
chamada Bara, como mostraremos mais especificamente nas próximas páginas.
132
PROENÇA, Eduardo de. Apócrifos e pseudo-epígrafos da Bíblia. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, p. 262.
52
Ezekeel, Narakijal, Azael, Armaros, Batarel, Ananel, Sakeil, Samsapeel, Satarel, Turel,
Jomjael e Sariel133. Aqui, percebemos claramente uma evolução nas figuras demoníacas em
sua mais variadas formas e características.
Para Carlos Vailatti134, esses demônios, eram os responsáveis por ensinar aos homens
várias práticas de bruxaria, além da tradição hebraica descrever que os mesmos mantinham
relações com mulheres, familiarizando as mesmas com ervas e raízes consideradas nocivas.
Os nomes Azazel e Belial também são citados nos textos pseudepigrafos, destacando a figura
de Beelzebul, uma junção entre duas antigas entidades, cananéia e filistéia, Baal e Zebub.
A tradição judaica pode ser definida como sendo um grande conjunto ou junção de leis
que foram transmitidos de geração a geração. Através desta tradição, estabelecida por meio da
Mishná e do Talmude, temos o fator que foi o grande responsável por ampliar conceitos
exorcísticos, bem como figuras que cruzaram o mundo antigo e atingiram um novo conceito
no mundo medieval, marcado pela grande religiosidade cristã. Neste período temos uma total
separação entre o bem e o mal. Forças antagônicas que jamais podem se misturar, onde uma
tenta salvar o homem do pecado, enquanto a outra tenta arrastá-lo para o mesmo.
Sabemos que o diabo foi mostrado das mais variadas formas possíveis no mundo
medieval. Para Sérgio Alberto Feldman: “Desde a patrística grega e latina, e por todas as
crônicas e relatos do mundo medieval, o diabo era onipotente e exercia uma influência notável
no mundo dos vivos, sendo referenciado como atuante e proselitista”.135
133
PROENÇA, Eduardo de. Apócrifos e pseudo-epígrafos da Bíblia. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, p. 261.
134
VAILATTI, Carlos Augusto. Manual de demonologia. São Paulo: Fonte Editorial, 2011.
135
FELDMAN, Sérgio Alberto. A presença do diabo no cotidiano medieval judaico: os ritos de passagem. In.:
Revista de História e Estudos Culturais Fênix, v. 4, ano 4, n. 2, 2007, p. 01.
136
FERNANDES, José Lucas Cordeiro. As marionetes do diabo: as representações de satã no corpo na Idade
Média. Universidade Federal do Ceará, 2009. Disponível em: <http://www.ce.anpuh.org/1342121799
_ARQUIVO_TrabalhoANPUH.pdf>. Acesso em: 15 set. 2014, p. 01.
53
hordas demoníacas e a figura de satanás ganhara notável destaque. Assim percebemos que o
cristianismo em seu momento de afirmação dogmática, tornou possível a chamada
“unificação do mal”137, pois na antiguidade, como afirma Jose Lucas “o mal era bem variado
e haviam apenas poucas representações de maldade”. Com a vitória do cristianismo no
ocidente a personificação do mal deixa de ser algo atribuído a divindades distintas.
Outro fator que fez com que o diabo se fortalecesse neste período foram os
surgimentos das heresias, que estarão presentes desde o século IX, os hereges eram sempre
considerados uma grande ameaça a Igreja, pois para a mesma eram indivíduos possuídos por
uma presença maligna ou ameaçadora, o que faria com que o contato dos fiéis com os hereges
causa-se o desvio dos chamados “servos de Deus”.
137
FERNANDES, José Lucas Cordeiro. As marionetes do diabo: as representações de satã no corpo na Idade
Média. Universidade Federal do Ceará, 2009. Disponível em: <http://www.ce.anpuh.org/1342121799
_ARQUIVO_TrabalhoANPUH.pdf>. Acesso em: 15 set. 2014, p. 03.
54
como Corrente Misógena138 e afirmará que Lúcifer havia caído em desgraça não por conta da
inveja ou do orgulho como a tradição ensina, mas por conta da luxúria.
Como alguns desses autores e estudiosos na temática temos São Jerônimo, (347 a
420), sendo o mesmo, uma das mais fortes e importantes referências desse período, e João
Crisóstomo, (347 a 407) na Antioquia, que em suas afirmações e discursos já chamava a
atenção de seus fiéis sobre as tentações do demônio.142
138
FERNANDES, José Lucas Cordeiro. As marionetes do diabo: as representações de satã no corpo na Idade
Média. Universidade Federal do Ceará, 2009. Disponível em: <http://www.ce.anpuh.org/1342121799
_ARQUIVO_TrabalhoANPUH.pdf>. Acesso em: 15 set. 2014, p. 10.
139
Idem, ibidem, p. 10.
140
Idem, ibidem, p. 02.
141
Nome da filosofia adotada pelos padres em I DC e que teve duração até VIII DC.
142
FELDMAN, Sérgio Alberto. A presença do diabo no cotidiano medieval judaico: os ritos de passagem. In.:
Revista de História e Estudos Culturais Fênix, v. 4, ano 4, n. 2, 2007, p. 03.
55
Além desses teólogos vale destacar Isidoro de Sevilha, (560 a 636), Agostinho (354 a
430) e São Tomas de Aquino (1225 a 1274). Para Isidoro de Sevilha, o diabo tinha uma
influência direta nos pecados e nas ações realizadas pelo homem, por isso o mesmo
discursava de forma muito intensa e prolongadamente sobre o diabo143.
Santo Agostinho, em sua ótica neo-platônica e cristã, afirmava que o diabo habitava
no mundo inferior, porém não devemos compreender aqui mundo inferior como o inferno e
sim como o próprio mundo dos homens. Através desses teólogos e pensadores criou-se o
conceito ou ideia de uma grande batalha entre o bem e o mal. Batalha esta que era travada
entre Deus e o diabo, no próprio mundo dos homens.
Esses opositores mais exaltados no período medieval, eram conhecidos pela Igreja
como os heréticos dualistas, ou como também eram chamados, maniqueus. Os maniqueus146,
assim como outros grupos como os mazdeistas, paulicianos, logomilos, albigenes, por
exemplo foram, aos poucos sendo reprimidos e foram desaparecendo do cenário teológico.
Esses grupos tinham em comum o fato de afirmarem que o universo apresentava duas
forças antagônicas distintas, ou seja, Deus e o diabo, o que iria de oposição ao monoteísmo
trinitário fundamentado pela Igreja. Sérgio Alberto Feldman afirma que: “Isso era a negação
143
FELDMAN, Sérgio Alberto. A presença do diabo no cotidiano medieval judaico: os ritos de passagem. In.:
Revista de História e Estudos Culturais Fênix, v. 4, ano 4, n. 2, 2007, p. 03.
144
HUIZINGA, J. O declínio da Idade Média. São Paulo: Verbo Edup, 1978, p. 219.
145
FELDMAN, op. cit., p. 03.
146
Maniqueos – Maniqueísmo é a religião fundada por Mani em 230. De acordo com Joana Paula Pereira
Correia, uma vez analisada, como uma religião. O Maniqueísmo desperta curiosidade por convergir
elementos gnósticos, cristãos, budistas e do zoroastrismo.
CORREIA, Joana Paula Pereira. Maniqueísmo: religião, seita, ou heresia? Anais do XXVII Simpósio
Nacional de História ANPUH, Brasil 2013. Natal, 2013, p. 01.
56
O diabo surge no cristianismo primitivo como um adversário para Deus, que marca o
dualismo responsável pelo firmamento da Igreja nos séculos III e IV. Por isso o mundo
medieval é marcado pelo grande conflito entre salvação e perdição. O homem medieval era
um homem dividido entre a recompensa do paraíso e o bem, aqui representado pela Igreja e
suas fileiras de sacerdotes, e os prazeres mundanos, que seria a personificação das tentações,
aqui representando o diabo e suas hordas infernais.
Uma vez esse conceito teológico aceito, o diabo poderia “caminhar” livremente pelo
mundo, vagando entre os humanos para assim seduzi-los para o mal. Logo a presença do
demônio no mundo medieval é intensa. Ele está presente em praticamente tudo e aqueles que
147
MISCHO, Johannes. A “possessão diabólica” – sobre a psicologia das reações irracionais. In.: KASPER,
Walter; LEHMANN, Karl; KERTELGE, Karl; MISCHO, Johannes. Diabo, demônios, possessão: da
realidade do mal. Tradução de Silvino Arnhold. São Paulo: Loyola, 1992, p. 04.
148
Idem, ibidem, p. 04.
149
FRANCO Apud FELDMAN, Sérgio Alberto. A presença do diabo no cotidiano medieval judaico: os ritos de
passagem. In.: Revista de História e Estudos Culturais Fênix, v. 4, ano 4, n. 2, 2007, p. 04.
150
Hierofania é toda e qualquer manifestação do Sagrado. Neste sentido devemos nos acostumar com a
hierofania em qualquer lugar e em qualquer tempo nos vários setores da vida, seja fisiológica, econômica,
social e espiritual: tudo que o ser humano operou, sentiu, encontrou ou amou pode se transformar em objeto
hierofânico.
57
o seguem são considerados numerosos, além de bastante empenhados em sua causa, como
afirma Carlos Roberto Nogueira151.
Mesmo com as críticas e com a contestação dos grupos considerados hereges na Baixa
Idade Média, a Igreja era a grande formadora de opinião, e se utilizava de todo um poderio
político e religioso para isso. Por isso era normal que a mesma encabeçasse a luta contra o
mal e o seu grande líder: Satanás.
Inicialmente a figura de satã não tinha, no período da Alta Idade Média, uma
representação em primeiro plano como afirma Le Goff. 152 A mesma irá se firmar como grande
adversário no século XI; sendo implementada pelo imaginário da sociedade medieval. Como
sabemos o pensamento, assim como o comportamento, do homem medieval eram dominados
por um maniqueísmo um tanto quanto sumário.
Logo a concepção dominante era que de um lado estava Deus e do outro o diabo, esse
pensamento rejia o dia-a-dia das pessoas, influenciando na moral, na política, na vida social,
etc153. Sendo efetuada esta divisão, para os homens da Idade Média um ser não era menos real
que o outro e ate menos avaro de encarnações e aparições. 154 Para que essa visão se
perpetuasse houve a colaboração de uma vasta iconografia.155
Nesta iconografia, satã muitas vezes era a serpente, colocando-se no caminho de Adão
e Eva, ou seja, ele era o símbolo maior do pecado, que para Le Goff, poderia ser descrito
como o pecado da carne e do espírito juntos. O símbolo do apetite sexual e intelectual. 156
Segundo Jean Delumeau, a figura de satã aparecia muito pouco na arte cristã primitiva, tendo
sido ignorada nos afrescos das catacumbas.
Uma de suas iconografias mais antigas na arte cristã aparece nas paredes da igreja de
Baouit, no Egito (Séc. VI).157 Nela observamos com clareza a imagem de um anjo decaído,
cujo os traços mais grotescos são apenas unhas recurvadas e um sorriso irônico. Apenas nos
séculos XI e XII o ocidente irá presenciar a primeira grande, como afirma Le Goff, “ explosão
diabólica “ na iconografia católica. Nela, satã aparecerá com olhos vermelhos, cabelos de
151
NOGUEIRA, Carlos Roberto. O diabo no imaginário cristão. Bauru: Udusc, 2000, p. 71-72.
152
LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1983, v. 1, p. 200.
153
Idem, ibidem, p. 200
154
Idem, ibidem, p. 201.
155
Idem, ibidem, p. 201.
156
Idem, ibidem, p. 201.
157
DELUMEAU, Jean. A história do medo no Ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999, p. 239.
58
fogo, asas de dragão; como mostra a obra Apocalipse, de Saint-Sever, ou o diabo devorador
de homens na obra de Saint- Pierre-de- Chauvigny.158
Aos poucos essa iconografia passou a fazer parte do mundo dos cristãos, revestindo as
paredes e os capitéis das igrejas de uma grande espécie de formas humanas e de animais. No
século XIV, a atmosfera se torna ainda mais pesada, logo, a contração entre o diabólico e o
sagrado nas catedrais dá lugar a uma progressiva invasão demoníaca. 159 Assim percebemos
segundo Delumeau:
Uma obsessão que ganha duas formas essenciais, ambas refletidas pela iconografia:
um alucinante conjunto de imagens infernais e a ideia fixa das incontáveis
armadilhas e tentações que o grande sedutor não cessa de incentivar para perder os
humanos.160
Outro exemplo deste tipo de iconografia é a obra Très riches heures du duc de Berry,
do século XV, nela, Lúcifer, um gigante coroado, se alimenta dos condenados, deixando
escapar fogo e fumaça de sua horrível boca. As iconografias transmitiam medo e o homem
medieval era atormentado constantemente por essas visões. Assim, uma terrível angustia
vinha na mente dos católicos medievais: ver, segundo Le Goff, o diabo sugir. 161 Todos se
sentiam constantemente vigiados.
Para os cristãos a figura de satã poderia surgir sob dois aspectos. Como sedutor, onde
o imaginário idealizava uma aparência delicada, geralmente uma jovem muito bonita e
atraente, e a forma de perseguidor, onde nela o diabo surgiria em sua forma repugnante. 162
Ambas as formas tinham o intuito de enganar e desviar o homem de Deus. Essa angustia
158
DELUMEAU, Jean. A história do medo no Ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999, p. 239.
159
Idem, ibidem, p. 240.
160
Idem, ibidem, p. 240.
161
LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1983, v. 1, p. 201.
162
Idem, ibidem, p. 201.
59
seguir o cristão até o dia de sua morte, onde segundo a crença passaria pela disputa final pela
sua alma.
A arte medieval também iria retratar tal cena. Nela a alma do morto era puxada de um
lado para outro, pelo diabo e por São Miguel, para ser por fim levada pelo vencedor, para o
inferno ou paraíso.163 É importante salientar que no pensamento cristão medieval, a figura do
diabo também era capaz de realizar milagres, com a permissão de Deus; esta faculdade está
associada a alguns mortais, na equivocada dualidade entre a chamada magia negra e magia
branca, cujos processos eram, em sua grande maioria, incompreensíveis as pessoas vulgares.
Para os católicos medievais a prática do exorcismo, segundo Le Goff, era função dos
santos e santas; os mesmos deveriam cuidar de uma grande massa de pessoas, que eram
disputados por uma minoria de feiticeiros.164
Podemos dividir essa luta contra o mal em várias etapas, lideradas por várias ordens e
grupos ligados à Igreja. A Ordem de Cluny comandou a luta durante o século X, sendo
seguida pela Inquisição medieval, dirigida pelos Dominicanos. A inquisição ira se tornar
posteriormente a grande ponta de lança na luta contra as heresias e contra os chamados “
filhos do diabo “, durante o século XIII.
Alguns manuais e textos foram divulgados através dos dominicanos, sob a tutela da
Igreja. Uma dessas obras se tornaria famosa e seria considerada o grande manual de estudos
sobre bruxaria e demonologia no final do século XV, trata-se do Malleus Maleficarum, ou o
Manual de Caça às Bruxas, também conhecido pelo nome de Martelo das Feiticeiras. Sergio
Alberto Feldman165 afirma que:
O Manual de Caça as Bruxas, que foi editado no final do século XV, por dois frades
dominicanos, Heinrich Kramer e Jacob Sprenger era declarado para servir como
guia para os inquisidores que interrogavam e torturavam bruxas e seguidores de
heresias satanistas. Exorcismos e formas de identificar bruxas e demônios povoavam
suas páginas.
163
LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1983, v. 1, p. 202.
164
Idem, ibidem, p. 203.
165
FELDMAN, Sérgio Alberto. A presença do diabo no cotidiano medieval judaico: os ritos de passagem. In.:
Revista de História e Estudos Culturais Fênix, v. 4, ano 4, n. 2, 2007, p. 05.
60
Sabemos que os judeus, através das perseguições que sofriam eram associados ao
demônio no mundo medieval cristão. Os mesmos eram relegados a camadas inferiores da
sociedade e expulsos de determinados ramos da produção econômica. Para os cristãos
medievais, o povo judeu estava sempre envolvido em artes consideradas profanas e ligadas ao
poder do diabo. Assim, temendo por seus fiéis, a Igreja levantou várias regras e leis que
afastaram os judeus da sociedade cristã, sendo algumas das mais famosas leis fincadas no
quarto Concílio de Latrão em 1215, por Inocêncio III166.
Várias eram as imposições, que variavam de lugar para lugar, dentre elas a chamada
“marca infame” que os judeus deveriam portar em suas roupas como identificação, além de
terem que habitar os chamados guetos, ou bairros segregados para desta forma evitar
“contaminar” os cristãos. O povo judeu, também era visto e interpretado como uma ameaça à
sociedade, devido às suas crenças consideradas “impróprias”.
Podemos aqui realizar duas análises: o judaísmo dito como oficial se fundamentava e
se organizava sobre estudos metódicos que exigiam um elevado conhecimento, ou seja, era
uma religião erudita; uma vez que era necessária grande leitura e compreensão dos textos
talmúdicos. Tais estudos eram demorados e aprofundados. Em alguns locais esses estudos
geraram centros de conhecimento como nos afirma Sergio Alberto Feldman: “Em locais e
períodos nas quais havia estabilidade e plena tolerância aos judeus por parte da Igreja e das
autoridades seculares, os judeus podiam fundar suas academias talmúdicas (Ieshivot ) 168”.
Para proteger a criança nesse período, vários elementos ritualísticos eram acionados ao
seu redor. Velas eram, por exemplo, acesas dia e noite, assim como o já tradicional uso de
objetos metálicos. Textos e outros amuletos cabalísticos eram frequentes, além de rezas,
cânticos e a prática da vigília. Esse ritual se repetia até que se concluísse o período que se
estendia desde a semana do nascimento até sua circuncisão.
169
FELDMAN, Sérgio Alberto. A presença do diabo no cotidiano medieval judaico: os ritos de passagem. In.:
Revista de História e Estudos Culturais Fênix, v. 4, ano 4, n. 2, 2007.
170
Idem, ibidem, p. 08
62
chamado de Wachnacht171. Este costume constituía-se por uma noite de vigília absoluta na
qual a mãe e o recém nascido eram acompanhados a todo o momento. Essa noite antecedia a
circuncisão da criança. Além do Wachmacht os judeus medievais tinham o costume no qual a
mulher trocava de roupas com seu esposo durante a semana da circuncisão, com a finalidade
de que o diabo e seus seguidores se confundissem e observassem na figura da mulher um
homem e não uma mãe172.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Brit_mil%C3%A1#mediaviewer/Ficheiro:
Isaac%27s_circumcision,_Regensburg_c1300.jpg
Era comum também a cerimônia ou ritual no qual havia a concessão do nome judaico
do recém nascido. Seu nome judaico era dado apenas no oitavo dia, assim como o nome
alemão advinha no trigésimo dia de vida. Essa cerimônia era conhecida pelo nome de
Hollekreisch. Para Feldman:
É importante notar que algumas dessas práticas medievais não irão ocorrer apenas na
Europa. A Wachnacht, por exemplo, vai ser realizada pelos judeus estabelecidos no Marrocos,
171
FELDMAN, Sérgio Alberto. A presença do diabo no cotidiano medieval judaico: os ritos de passagem. In.:
Revista de História e Estudos Culturais Fênix, v. 4, ano 4, n. 2, 2007, p. 08.
172
Idem, ibidem, p. 09
173
O Ritual da Wachnacht era realizado desde o nascimento da criança até o período da sua circuncisão
174
FELDMAN, op. cit., 2007.
63
porém o período de vigília será de sete noites para evitar o chamado “olho gordo”. No
Marrocos, esse ritual irá adotar o nome de Tahdid175. Além disso, outras comunidades não
europeias irão adotar o uso de velas, luz, orações, metais, amuletos, além de cânticos.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Brit_mil%C3%A1#mediaviewer/
Ficheiro:Chair_of_Elijah.JPG
Para Lauterbach, o sentido medieval era outro, tratando-se de mais uma medida contra
175
DOBRINSKY, Herbert C. A treasury of sephardic laws and customs. New York: Ktav Publishing; Yeshiva
University, 1988, p. 11-21.
176
O referido profeta era considerado um grande defensor da fé judaica e protetor dos oprimidos e das crianças.
Para honra-lo, era comum colocar uma cadeira no ritual da circuncisão especialmente para ele
177
LAUTERBACH Apud FELDMAN, Sérgio Alberto. A presença do diabo no cotidiano medieval judaico: os
ritos de passagem. In.: Revista de História e Estudos Culturais Fênix, v. 4, ano 4, n. 2, 2007.
64
o diabo e suas hordas satânicas178. Devemos lembrar, no entanto, que esse era um costume
popular, assim como outras táticas simples que levavam à luta contra os demônios. Algumas
dessas práticas simples constituíam em subornar “espíritos malignos” com presentes ou
enganá-los durante o casamento. A farsa era simplesmente fazer com que o diabo acreditasse
que as pessoas em matrimônio apenas “pareciam ser felizes”, quando na verdade estavam
insatisfeitas e não mereciam atenção sobre si179.
A quebra do copo, segundo Lauterbach, serviria como uma espécie de distração, onde
a partir de sua quebra os olhos do diabo estariam fixados no copo e não no casal. Além do
copo são tidos como outros utensílios para afastar demônios do casamento o uso de tochas,
sal, pedaços de metal e ruídos sonoros. Algumas dessas práticas seriam ainda incorporadas ao
universo cristão180.
178
Na tradição judaica quebrar o copo significa, segundo a superstição popular, que a pessoa que quebrou o copo
terá boa sorte, ou seja, que algo de bom vai acontecer em sua vida. Existe, porém, outra corrente de
superstição que acredita na força da energia negativa que algumas pessoas produzem em outras, resultando
no mal olhado ou atraindo entidades ruins.
179
FELDMAN, Sérgio Alberto. A presença do diabo no cotidiano medieval judaico: os ritos de passagem. In.:
Revista de História e Estudos Culturais Fênix, v. 4, ano 4, n. 2, p. 10.
180
LAUTERBACH Apud FELDMAN, op. cit., p. 10.
181
LAUTERBACH, Jacob Z. The ceremony of livro king a glass at weddings. In.: Studies in jewish Law,
customs and Folklore. New York: Ktone, 1970, p. 08.
182
TRACHTENBERG, Joshua. Jewish magic and superstition: a study in folk religion. New York: Behmmons
Hause, 1939, p. 173-174.
183
FELDMAN, op. cit., p. 11.
184
Idem, ibidem, p. 11.
65
Assim, quando uma pessoa estava agonizando, uma reunião de todos os parentes
próximos era realizada junto ao mesmo. Neste ponto ocorria uma cerimônia, uma espécie de
extrema unção conhecida com o nome de Vidui, bastante semelhante à existente no
cristianismo. A vidui foi bastante acentuada nos séculos XIV e XV. A partir desta cerimônia
objetivava-se salvar a alma do moribundo antes que esse caísse em delírios por falta de
consciência e por essa razão cometesse alguma blasfêmia contra Deus ou contra sua própria
salvação.
Para Feldman: “A crença dizia que o caixão deveria sair antes do que qualquer ser
vivo de dentro da casa do defunto ou do local onde se encontrava para evitar que por engano,
os demônios se precipitassem sobre alguém vivo e o vitimasse”189.
185
POLLACK, Herman. Jewish folkways in Germanic Lands. Cambridge: Mit Press, 1971, p. 38.
186
TRACHTENBERG, Joshua. Jewish magic and superstition: a study in folk religion. New York: Behmmons
Hause, 1939, p. 175.
187
MARCOS, Jacob Rodar. Command sick core in the German Guetto. Cincinnati: Hebrew Union College,
1947, p. 266.
188
TRACHTENBERG, op. cit., p. 178.
189
FELDMAN, Sérgio Alberto. A presença do diabo no cotidiano medieval judaico: os ritos de passagem. In.:
Revista de História e Estudos Culturais Fênix, v. 4, ano 4, n. 2, 2007, p. 12.
66
A figura do diabo sempre foi uma temática de bastante reflexão no mundo judeu, em
sua rígida estrutura monoteísta. Percebemos então que a presença de sua crença e os meios de
proteção utilizados para combatê-lo são devido ao meio circundante, ou seja, devidos a grande
influência tanto do cristianismo como do islamismo, que acreditavam e lutavam para que as
chamadas “hordas demoníacas” não atacassem seus fiéis. Assim essas ideias também
atingiram o judaísmo.
Desta forma, eram comuns perguntas como o que de fato seria uma verdadeira
possessão? Como saber o que era verdadeiro ou fraude? Os cientistas buscavam várias
respostas para vários sinais que caracterizavam uma possível possessão. Porém, no imaginário
cristão, alguns desses sinais eram evidências concretas, como a habilidade de falar “línguas
estranhas”. No entanto, para muitos cristãos fervorosos, a habilidade de falar línguas estranhas
também poderia ser interpretada como uma “intervenção de Deus” ou uma “incorporação pelo
espírito”, uma vez que este sinal era visto como uma revelação ou realização de Pentecostes
para o povo de Deus190.
190
HUXLEY, Aldous. Os demônios de Lordum. São Paulo: Círculo do Livro, 1952, p. 181-182.
67
O mesmo sentido vale para certos locais geográficos, como podemos observar em
alguns textos da bíblia, no livro de Daniel e nos livros apócrifos 191. Para Champlin192, existe
uma espécie de “ lista” ou de condutas que podem desencadear uma manifestação demoníaca.
No século XX existe uma grande retomada, porém de forma lenta, de estudos sobre os
fenômenos tidos como sobrenaturais, e em particular da figura dos demônios. Johan Huizinga,
em sua obra O Declínio da Idade Média, já realizava análises sobre essa presença marcante no
dia-a-dia medieval. Segundo Huizinga, o demônio era bastante descrito entre os séculos XIV
e XV, sendo praticamente um ser “vivente” nas vilas e aldeias, além das cidades e fortalezas
medievais, onde influenciava negativamente as pessoas 195.
Além de Huizinga, outros nomes deram muita contribuição sobre as pesquisas nesta
temática, porém somente no terceira geração da Escola dos Annales é que os estudos e
191
SCHIAVO, Luiz; SILVA, Valmor da. Jesus milagreiro e exorcista. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 71.
192
CHAMPLIN, R. Dicionário de teologia, filosofia e história. São Paulo: Agnos, 2000
193
Idem, ibidem.
194
Antigo documento sacerdotal que descreve dezessete formas de um sacerdote reconhecer a possessão
demoníaca.
195
HUIZINGA apud FELDMAN, Sérgio Alberto. A presença do diabo no cotidiano medieval judaico: os ritos
de passagem. In.: Revista de História e Estudos Culturais Fênix, v. 4, ano 4, n. 2, p. 02.
68
Por essas análises, percebemos que a posição da igreja é contraditória, sendo uma
instituição que se utilizou de várias formas ao longo de sua trajetória histórica de conceitos
ligados ao demônio.
Para Aroldo Lara, “No início dos tempos modernos, apesar de um reavivamento do
‘sagrado selvagem’, ainda não conseguimos ver nenhum esclarecimento maior do aspecto
social da possessão”198.
Muitas pessoas também atribuem o fenômeno a vários tipos de doenças. Assim sendo,
doenças e possessão estão ligados para vários grupos religiosos, principalmente neo
pentecostais, como nos mostra Lara: “Tem sido cada vez mais apregoado pelos meios de
comunicação, radio e TV por Igrejas neo pentencostais, que todo o mal, incluindo a doença,
vem do diabo”199.
Percebemos aí a crença antiga de que aquilo que é ruim ou negativo, tanto para o
corpo, como para a alma e mente, vem do diabo. Logo, é também uma perpetuação de
condições ligadas ao fenômeno, que vem desde a antiguidade.
Ainda hoje, para muitos, a doença é um sinal de que o diabo se apossou da pessoa e,
para o processo de cura e restabelecimento das “doenças de possessão”, recorre-se ao ritual de
exorcismo. No próximo capítulo veremos então como o fenômeno é entendido por estudiosos
da modernidade.
196
LARA, Aroldo. Possessão e exorcismo. São Paulo: Biblioteca 24 Horas, 2011, p. 55.
197
SAMPAIO, Fernando G. A história do demônio da antiguidade aos nossos dias. Porto Alegre: Garatuja,
1976, p. 100.
198
LARA, op. cit., p. 57.
199
Idem, ibidem, p. 57.
69
Como percebemos nos capítulos anteriores, o imaginário popular foi um grande aliado
das forças demoníacas, tanto para sua propagação como para sua consolidação. Como afirma
Irineu Rabuske200, apesar de os textos chamados sinóticos afirmarem a vitória de Jesus sobre
Satanás; essa ideia não teria conseguido atingir as crenças populares na qual o demônio
continuava atuante no dia-a-dia das pessoas, tentando fazer com que as mesmas fossem
seduzidas e desviadas do caminho de Deus por legiões de demônios.
Assim, o fenômeno da possessão pode ser visto e entendido como uma prova da
influência do “diabo” sobre o corpo humano. Nas culturas antigas, acreditava-se que os
espíritos malignos “entravam” no corpo humano sob as mais variadas formas e aspectos;
dentre eles, falta de fé, acúmulo de pecado, alimentos “tocados” pelo diabo, etc. Logo, a
possessão poderia se dar sobre os indivíduos das mais diferentes classes sociais, que têm
como principal elo seus dramas e complexos pessoais.
Segundo Fernandes, Hans Sachs afirma que no caso do corpo masculino o chamado
“saco de vícios” é mais notado, como por exemplo o “diabo” poderia atuar livremente sobre
um homem que bebe em excesso, levando-o a praticar atos que seriam “contrários a Deus”, e
consequentemente o levando mais próximo da perdição201. Percebemos que a influência do
meio social é bastante nítida em casos onde as pessoas julgam estarem realizando tais atos sob
a orientação de forças malignas, o que coloca o indivíduo em um conflito entre o bem e o mal
interior.
200
RABUSKE, Irineu José. Possessão e exorcismo: da prática do Jesus histórico à atualidade. In.: Revista
Cultura e Fé. v. 129, ano 33, 2010
201
FERNANDES, José Lucas Cordeiro. As marionetes do diabo: as representações de satã no corpo na Idade
Média. Universidade Federal do Ceará, 2009. Disponível em: <http://www.ce.anpuh.org/1342121799
_ARQUIVO_TrabalhoANPUH.pdf>. Acesso em: 15 set. 2014, p. 07.
202
Idem, ibidem, p. 06.
70
miséria e sofrimento, onde satanael, atuava sobre a mente e o corpo de seus habitantes 203.
Embora visto e entendido como uma visão herética, o bogomilismo irá colocar sua
influência em alguns textos deste período; mostrando que, para os mesmos, os espíritos
malignos agiam de forma com a vontade do diabo e atacavam com cautela, pois os mesmos
teriam medo da prática do exorcismo204, e procurariam abrigo no interior do corpo humano.
Na Idade Moderna a chamada Teoria dos Humores de Hipócrates, assim como os estudos
desenvolvidos por Eduardo Galeno irão alertar os médicos e especialistas para associar
alterações de humores e doenças a possíveis casos de possessão.
Neste processo, o olfato, era muitas vezes, segundo Ambrose Paré, o sentido mais
diabolizado, pois contava com a contribuição da Igreja e da própria medicina moderna para
uma pré disposição a “malignidade oculta e invisível”. Segundo Fernandes, para Ambrose, o
ar poluído ou pestilento não era um ar pútrido, mas sim um ar venenoso, que trazia consigo
forças malignas que adentravam pelas narinas. Ainda no inicio da Idade Moderna,
observamos que o diabo aparece fortemente expresso a práticas do corpo, sendo essas práticas
as mais diversificadas possíveis. Assim sendo, da mesma forma que a bebida e o vício, a falta
de fé e a prática de pecados, a prática sexual, também eram consideradas uma porta para a
possessão205.
Segundo Fernandes, a prática sexual que era pregada na Igreja, era vista apenas para a
multiplicação dos homens e deveria ser realizada apenas depois e dentro do casamento. Longe
desta regra, o chamado “sexo desregrado” ou com propósitos de realização prazerosa pessoal
poderia ser um atrativo pecado e consequentemente algo chamativo para demônios. Mais uma
vez temos a influência do imaginário popular e de um conjunto psicossocial, onde era comum
afirmar que as feiticeiras, bruxas, prostitutas, amaldiçoados, hereges, dentre outras figuras
203
FERNANDES, José Lucas Cordeiro. As marionetes do diabo: as representações de satã no corpo na Idade
Média. Universidade Federal do Ceará, 2009. Disponível em: <http://www.ce.anpuh.org/1342121799
_ARQUIVO_TrabalhoANPUH.pdf>. Acesso em: 15 set. 2014, p. 06
204
Idem, ibidem, p. 06.
205
Idem, ibidem, p. 09.
71
marginalizadas, praticavam sexo para atrair o diabo, e desta forma levavam suas vidas para a
“imundície através da luxuria”206.
206
FERNANDES, José Lucas Cordeiro. As marionetes do diabo: as representações de satã no corpo na Idade
Média. Universidade Federal do Ceará, 2009. Disponível em: <http://www.ce.anpuh.org/1342121799
_ARQUIVO_TrabalhoANPUH.pdf>. Acesso em: 15 set. 2014, p. 10.
207
MISCHO, Johannes. A “possessão diabólica” – sobre a psicologia das reações irracionais. In.: KASPER,
Walter; LEHMANN, Karl; KERTELGE, Karl; MISCHO, Johannes. Diabo, demônios, possessão: da
realidade do mal. Tradução de Silvino Arnhold. São Paulo: Loyola, 1992, p. 45.
208
Idem, ibidem, p. 47.
209
Idem, ibidem, p. 55.
72
diante do fator apresentado. Para Kasper, a fé na criação afirma que todo o existir só é
possível pelo fato que Deus o permite e faz deste mesmo existir por amor de seu próprio ser.
Partindo deste raciocínio da doutrina cristã, percebe-se que ocorre toda uma evolução
sobre o mal e suas causas. Assim, a doutrina tradicional apoia-se na refutação do dualismo e
do monismo210. O primeiro explica o mal ao lado de Deus, um princípio do mal independente
de Deus. O segundo não atribui nenhuma culpa em relação a criatura em se tratando da sua
autonomia, o que obriga o monismo a colocar o mal no próprio Deus e, assim, demonizá-lo.
Logo, ao se excluir o dualismo e o monismo, resta a resposta clássica para o mal, onde o
mesmo é determinado pela história, como afirma Kasper: “No fato em que a realidade foi
criada por Deus, e que o mal é resultado das decisões tomadas pelas criaturas ao longo de sua
trajetória por serem dotados de liberdade”211.
Finalizando, assim, essa análise, vemos que o mal não deriva da fragilidade da criação,
porém, ao contrário, deriva de sua grandeza e plenitude; assim como o que dela é o mais
perfeito: a realidade da liberdade perfeita. Percebe-se então que ao se praticar o mal o ser ou
criatura opta por ensejar a possibilidade que Deus excluiu na realidade de sua criação, ou seja,
o fator de acabar com a ordem e desencadear o caos no cosmos. 212
Do ponto filosófico, o mal pode ser interpretado como sendo algo não categorial, uma
vez que, o referido conceito se coloca anterior ao do polo transcendental da consciência
humana. Logo, teologicamente falando, o mal permanece um mistério aos olhos de nosso
intelecto como afirma Kasper:
Assim, percebe-se que a figura do diabo não é pessoal, porém torna-se uma
personificação que se dilui em qualquer coisa ou objeto anônimo, ou seja, um ser que se
210
MISCHO, Johannes. A “possessão diabólica” – sobre a psicologia das reações irracionais. In.: KASPER,
Walter; LEHMANN, Karl; KERTELGE, Karl; MISCHO, Johannes. Diabo, demônios, possessão: da
realidade do mal. Tradução de Silvino Arnhold. São Paulo: Loyola, 1992, p. 56.
211
Idem, ibidem, p. 57.
212
Idem, ibidem, p. 58.
213
Idem, ibidem, p. 65.
73
perverte e torna-se maligno no “não ser”. Para Kasper é a pessoa na maneira de negar a
pessoa.214
214
MISCHO, Johannes. A “possessão diabólica” – sobre a psicologia das reações irracionais. In.: KASPER,
Walter; LEHMANN, Karl; KERTELGE, Karl; MISCHO, Johannes. Diabo, demônios, possessão: da
realidade do mal. Tradução de Silvino Arnhold. São Paulo: Loyola, 1992, p. 68.
215
FERNANDES, José Lucas Cordeiro. As marionetes do diabo: as representações de satã no corpo na Idade
Média. Universidade Federal do Ceará, 2009. Disponível em: <http://www.ce.anpuh.org/1342121799
_ARQUIVO_TrabalhoANPUH.pdf>. Acesso em: 15 set. 2014, p. 196
216
Idem, ibidem, p. 196.
217
Cf. TRUNK, Dieter. Der messianische Heiler. Eine redaktions: und religionsgeschichtliche Studie zu den
Exorzismen im Matthäusevangelium. Freiburg; Basel; Wien: Herder, 1994, p. 14
Cf. KERNBERG, O. F.. Borderline: Starungen und pathologische Narzissmus. Suhrkamp: Frankfurt A. M.,
1996, p. 44-55.
218
Cf. OESTERREICH, Traugatt K. Die besessenheit. Lanzensalza: Wendt und klauwell, 1921.
219
Cf. OESTERREICH, op. cit., p. 16.
Cf. MURPHY, G. Pernality apud MISCHO, Johannes; NIEMANN, Ulrich. Die besessenhert der anneliese
Michel in interdisziplinarer sicht. Zeitschrft fur parapsychologie und grenzzehete der pyschologie, v. 25,
1983, p. 107.
74
Essas características, assim como outras descritas no capítulo dois, apenas afloram em
um momento de transe que caracteriza a possessão. Passado este estado, o indivíduo retorna
ao seu estado de psique normal, desaparecendo, dessa forma, os traços característicos de
possessão. Ao longo da história a medicina e a psicanálise tentaram enfocar o fenômeno da
possessão como uma doença psíquica, contando com a ajuda da Parapsicologia, da
Antropologia Cultural e das Ciências da Religião para diagnosticar e entender esse fenômeno
complexo.
220
RABUSKE, Irineu José. Possessão e exorcismo: da prática do Jesus histórico à atualidade. In.: Revista
Cultura e Fé. v. 129, ano 33, 2010
221
Cf. ELLENBERGER, H. F. Entdeckung apud TRUNK, Dieter. Der messianische Heiler. Eine redaktions:
und religionsgeschichtliche Studie zu den Exorzismen im Matthäusevangelium. Freiburg; Basel; Wien:
Herder, 1994, p. 10
222
RABUSKE, op. cit., p. 197.
223
OESTERREICH, Traugatt K. Die besessenheit. Lanzensalza: Wendt und klauwell, 1921.
224
RABUSKE, op. cit., p. 199.
75
pois partem da observação e do estudo de um indivíduo, uma vez em que o fenômeno era
visto como algo que atacava única e exclusivamente uma pessoa. Com a contribuição da
Antropologia e das Ciências da Religião, as análises passam a ser feitas em cima também do
ambiente social e do grupo social ao qual o indivíduo, denominado de possesso, se encontra.
Aqui, Rabuske, chama a atenção para o fato de que apesar do estudo social ser realizado, a
sociedade não é analisada dialeticamente225.
Segundo Rabuske:
[...] a Teoria Espiritista, só é levada em consideração por poucos autores; razão pela
qual é muito pouco estudada. O uso descuidado da teoria espírita pode trazer sérios
perigos para o equilíbrio psicológico das pessoas, por que as pessoas estão lidando
com complexos inconscientes que acabam por fugir ao seu controle 227.
225
RABUSKE, Irineu José. Possessão e exorcismo: da prática do Jesus histórico à atualidade. In.: Revista
Cultura e Fé. v. 129, ano 33, 2010, p. 198.
226
A Parapsicologia, segundo Valter da Rosa Borges, é a ciência que tem por objeto o estudo e a pesquisa dos
fenômenos paranormais. Esses fenômenos são vistos como eventos incomuns de natureza psíquica, biológica
e física atribuíveis a uma aptidão especial do ser humano, denominada de paranormalidade. Ao mesmo
tempo, é considerada uma ciência humana e da natureza, investigando as manifestações incomuns do
psiquismo humano nas suas relações com os seres vivos e a matéria em geral. Atualmente, é considerada uma
ciência bastante contestada pela maioria dos especialistas e cientistas.
BORGES; Valter da Rosa. Manual de parapsicologia. Recife-PE: Instituto Pernambucano de Pesquisas
Psicobiofísicas, 1992, p. 03.
227
RABUSKE, op. cit., p. 200.
76
que demônios não existam, a mesma propaga que existem poderes que as pessoas
erroneamente ligaram ao diabo 228 . Por esta causa a parapsicologia coloca o fenômeno da
possessão em um conjunto de manifestações “paranormais“ bastante complexo e muito
próximo a outros fenômenos encontrados nos estudos parapsicológicos, como por exemplo a
chamada percepção extrassensorial, ou seja, casos como a telepatia, clarividência, etc.
Alguns desses fatores também são utilizados como explicação para possíveis aparições
de vultos e assombrações 229 . De acordo com Rabuske 230 , as observações, a partir da
parapsicologia, são consideradas importantes para compreendermos supostos casos de
possessão nos dias atuais; porém, J. Mischo acredita que não se espera que por detrás de
fenômenos supostamente “explicáveis” para a parapsicologia exista a ação de seres
malignos231. Estudiosos como W. M. Pfeiffer232 direcionam o fenômeno da possessão e do
exorcismo para o campo sociocultural, onde o mesmo seria nada mais nada menos que uma
expressão psicopática.
Assim sendo, percebemos que a possessão é um fator que não está apenas presente em
casos isolados, mas se trata de um fenômeno que apresenta uma interação entre indivíduo e
sociedade, onde ambos são afetados; ou seja, se o sistema político interfere negativamente nas
condições reais de um povo, sua economia, isso irá atingir diretamente a sociedade, podendo
228
RABUSKE, Irineu José. Possessão e exorcismo: da prática do Jesus histórico à atualidade. In.: Revista
Cultura e Fé. v. 129, ano 33, 2010, p. 200.
229
Idem, ibidem, p. 201.
230
Idem, ibidem.
231
MISCHO, Johannes; NIEMANN, Ulrich. Die besessenhert der anneliese Michel in interdisziplinarer sicht.
Zeitschrft fur parapsychologie und grenzzehete der pyschologie, v. 25, 1983, p. 109.
Cf. CARDIAL; MEDINA, apud. RABUSKE, Irineu José. Possessão e exorcismo: da prática do Jesus
histórico à atualidade. In.: Revista Cultura e Fé. v. 129, ano 33, 2010, p. 201.
232
PFEIFFER apud. RABUSKE, op. cit., p. 201.
233
Idem, ibidem.
234
RABUSKE, op. cit., p. 202.
77
afetá-la psicologicamente 235 . Voltando ao caso de Cristo para finalizarmos esse aspecto,
temos a convicção de que através desta análise os exorcismos realizados por Jesus e os seus
efeitos procuravam atingir um âmbito muito mais elevado do que o de um simples indivíduo,
mais toda a comunidade pobre da Galiléia do século I.
Apesar da temática ser um fenômeno atual, alguns pesquisadores afirmam que tal
acontecimento já é um estudo superado para a Teologia, principalmente para a Igreja Católica
como afirma Cesar Kuzma. Para Kuzma 236, o fenômeno da possessão deve ser entendido a
partir do quadro cultural que foi especifico de uma determinada época, ou seja, do ano I da era
cristã até o final da Idade Média, estendendo-se um pouco para a era moderna. Como já fora
analisado, no ano I da era cristã encontrava-se um ambiente psicológico e social totalmente
favorável para o fenômeno.
Para Kuzma: “Há em todas essas expressões uma construção sociocultural e religiosa
em cima disto, hoje, seguramente, temos outra interpretação”237.
Sabemos que dentro desta visão do fenômeno os exorcismos realizados por Jesus nada
mais seriam do que um resgate dos chamados “possessos” ao seu meio social, anunciando
assim a boa nova de seu Evangelho. Logo, o que Kuzma menciona é que devemos entender o
fenômeno do exorcismo como algo ligado ao ambiente onde foi construído e não apenas
como algo paranormal, pois apesar de existir o mistério do mal, podemos claramente observar
no fenômeno todos os dramas internos do possesso. Ainda segundo Kuzma, não só a
possessão e o exorcismo, mas também outros fenômenos ditos como “paranormal” podem ser
entendidos e analisados dentro do contexto psicológico, antropológico, científico, cultural e
social238. Kuzma afirma:
235
RABUSKE, Irineu José. Possessão e exorcismo: da prática do Jesus histórico à atualidade. In.: Revista
Cultura e Fé. v. 129, ano 33, 2010, p. 204.
236
KUZMA, Cesar. Exorcismo: como entendê-los? 28/06/2014. Disponível em: <http://cesarkuzma-theology.
blogspot.com.br/2014/07/exorcismos-como-entende-los.html>. Acesso em: 15 set. 2014, p. 01.
237
Idem, ibidem, p. 01.
238
Idem, ibidem, p. 01.
78
Isso talvez explique alguns eventos que ocorrem atualmente. Não os vejo como
possessões, para mim, isso é algo superado. Forçar a isso pode levar ao
fundamentalismo e ao fanatismo, ambos ruins para a religião e para a sociedade239.
Irineu Rabuske ainda nos chama atenção para uma outra realidade que está envolvida
na interpretação da possessão. Trata-se da realidade sociopolítica do indivíduo considerado
possesso. Neste caso especifico podemos perceber o fenômeno da possessão e do exorcismo
de uma forma bastante ampla, e não apenas reduzido a um indivíduo. Esta é uma tentativa,
segundo Rabuske, de interpretar e analisar a possessão e o exorcismo dentro de uma
conjuntura sociopolítica; ou seja, nas relações sociais, na ideologia das pessoas, na economia,
etc242.
239
KUZMA, Cesar. Exorcismo: como entendê-los? 28/06/2014. Disponível em: <http://cesarkuzma-theology.
blogspot.com.br/2014/07/exorcismos-como-entende-los.html>. Acesso em: 15 set. 2014, p. 01.
240
Idem, ibidem, p. 202.
241
C.f. GOODMAN, F.. Ekstase, Besessenheit, Dämonen: die geheimnisvolle Seite der Religionen.
Gütersloher Verl. Haus: Gütersloh, 1996, p. 25-56.
242
RABUSKE, Irineu José. Possessão e exorcismo: da prática do Jesus histórico à atualidade. In.: Revista
Cultura e Fé. v. 129, ano 33, 2010, p. 203.
79
243
MEGA, Orestes Jayme; SILVA, Antonio C. R. A. M.; MATOS, Lennon Oliveira. As metamorfoses de satã:
as ressignificações do mal. I Congresso Internacional de Religião e Magia no Mundo Antigo. Rio de
Janeiro, 2010, p. 257.
244
CALBA, Marcos. Terra Brasilis: pré-história e arqueologia da psique. São Paulo: Paulus, 2006.
245
MEGA; SILVA; MATOS, op. cit., p. 259.
246
Idem, Ibidem, p. 259.
80
instintos que devem ser libertados e atendidos 247 . Assim, compreendemos como certas
práticas realizadas em determinado grupo podem ser vistos como invocação e possessão do
“diabo”, uma vez que no referido fenômeno, o principal vetor da manifestação é o corpo
humano, ou seja, não há possessão sem um corpo ou objeto onde o arquétipo do “mal” possa
atuar.
Para Agostinho, uma outra forma de visualização deste quadro é negar a entidade,
colocando o “mal” na simples condição de “privação do bem”, ou seja, a desontologização do
mal. Para Afonso Ligorio: “O objeto aqui é esvazia-lo de sua substância e reformula-lo como
questão apenas epistemológica a ser solucionada quando olhamos o todo da realidade 249.
247
MEGA, Orestes Jayme; SILVA, Antonio C. R. A. M.; MATOS, Lennon Oliveira. As metamorfoses de satã:
as ressignificações do mal. I Congresso Internacional de Religião e Magia no Mundo Antigo. Rio de
Janeiro, 2010, p. 260.
248
SOARES, Afonso Maria Ligoro. De volta ao mistério da iniquidade. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 128.
249
Idem, ibidem, p. 128.
250
Idem, ibidem, p. 129.
251
SOLOMON Apud SOARES, op. cit.
81
ocorrer em nossas vidas deve ser procurada através da matéria, como afirma Platão, e que
posteriormente será também entendida por Platino, ou no “criador do mundo”252.
Além desta dificuldade, a proposta dualista, que pode ser vista na tradição judaico-
cristã, no islã e no antigo zoroastrismo, ainda tem a prática de levar ou enquadrar possíveis
soluções para a atuação do mal em nosso meio para situações extremas ao universo empírico,
fazendo com que ocorram as teodiceias que são inaceitáveis para o tipo de ética ou propostas
da religião bíblica254.
Para finalizar percebemos que, apesar das críticas, no entanto, a postura dualista sobre
o mal possui pontos distintos que a tornam uma das linhas mais populares, ou seja, a própria
experiência humana cotidiana que proporciona mesclas de bem e mal em nossos corpos.
Corriqueiramente observamos casos de pessoas consideradas simples, pacatas, bondosas, que
subitamente revelam ao mundo seu lado sombrio e perverso, envolvendo-se em escândalos
das mais variadas formas possíveis.
Como terceira postura ou linha de raciocínio, encontramos uma forma ou uma maneira
de procurar por o peso do mal no próprio ser humano, ou seja, a “antropologização do mal”.
Para R. Solomon:
252
SOARES, Afonso Maria Ligoro. De volta ao mistério da iniquidade. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 130.
253
RICOEUR Apud SOARES, op. cit.
254
BERGER, P. L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus,
1985, p. 85
82
Assim, percebemos durante essa análise que a onipotência divina é poupada como
grande conivente do mal e, por isso, essa linha de interpretação ganha muito mais força e
interpretação nas tradições religiosas do que propriamente nas crenças e concepções
filosóficas. Uma vez o próprio ser humano seja apresentado como culpado ou causador de
suas próprias mazelas cotidianas, isso já basta para nos saciar em busca por uma razão lógica
por essas dores. Porém, apesar da tentativa de colocar apenas no homem a culpa de suas
próprias dores e atos malignos, no entendimento abrangente, a proposta analisada não supera
o modelo dualista já apresentado, pois, o terceiro modelo, se for colocado de maneira isolada,
abraça novamente a ideia de um Deus cruel, que compactua com o mal e que castiga seus
servos e servas, nesta vida e na próxima; pois se o mal, como afirma tal proposta é um fator
da liberdade humana, que então a tentou? E como é possível explicar ou compreender uma
criatura ou algo a altura de tentar o ser humano?
Para Peter Berger, o problema se encontra nas necessidades sociais. Berger, explica
que o mundo socialmente demonstrado como realmente é prova de uma ordenação de
experiências e vivências individuais. Logo, este mundo, prontamente, depende de ordem e de
renúncias de “eu individual” que Berger demonstra através da noção do nomos 257.
Para Berger: “É a voz desse Deus terrível que precisa agora ser tão acabranhadora que
afogue o grito de protesto do homem atormentado, mais ainda, converta esse grito numa
confissão de auto-humilhação [...]”258.
postura ou linha de racionalização temos a que aponta para a apologia da bondade de Deus,
demonstrando, de certa forma, uma limitação de sua onipotência. Logo, a limitação da
onipotência de Deus, demonstra-se de uma forma sedutora pós-moderna para o entendimento
da problemática do mal. Para essa postura, Deus “respeita” e movimenta o que é formado
tanto pelo bem como pelo mal, o que faria com que o mesmo não pudesse lançar sua
onipotência indistintamente259.
Alguns estudiosos vão mais além nesta perspectiva, afirmando que a tensão entre bem
e mal está presente no próprio Deus e ambos não podem ser separados do mesmo, como
afirma Scheilling e H. Jonas 260; ao demonstrar a tradição cabalista judaica, assim como a
doutrina do zimzum261. Através desta doutrina, Deus “abre” espaço na criação do mundo para
suas criaturas, o que torna sua infinitude e onipotência limitada. Para Jonas, o Deus dos
judeus não seria um Deus onipotente, mais sim um Deus limitado262.
Para Metz:
259
SOARES, Afonso Maria Ligoro. De volta ao mistério da iniquidade. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 136.
260
JONAS, H. Pensar sobre Dios y otros ensayos. Barcela: Herder, 1998, p. 195-212.
261
Doutrina hebraica que afirma que Deus é maximamente humilde, sendo o mesmo uma humildade criadora.
262
JONAS Apud SOARES, op. cit., p. 138.
263
METZ Apud SOARES, op. cit, p. 138.
264
NEIMAN Apud SOARES, op. cit., p. 138.
84
conosco.
Se chamar algo de mau é um jeito de dizer que aquilo abala minha crença no mundo,
é esse efeito, mais do que a causa, que precisa ser examinado, pois as diferentes
respostas para o problema do mal revelam “mudanças” em nossa compreensão de
nós mesmos e de nosso lugar no mundo 265.
Assim, vemos que o intuito do exorcismo é, nada mais nada menos que determinar
diretamente os complexos numa personalidade profundamente perturbada, abgenerada
psiquicamente. Devido a essa análise do indivíduo, a prática do exorcismo, principalmente
dentro do Ritual Romano, considera indispensável as perguntas sobre o número dos maus
espíritos, além do nome deles, como e por que entraram no “possesso”, além do momento da
possessão.
De acordo com o manual de exorcismo católico, a Igreja crê que existe apenas um
único Deus, sendo ele, o princípio de todo o universo e criador de todas as coisas, sendo elas
materiais ou imateriais. 267 A igreja afirma também que tudo que Deus fez é bom, e que
originalmente o diabo e os outros demônios foram bons na sua natureza, mas que por si só
tornaram-se maus.
Assim sendo, a igreja afirma que os demônios não se tornaram uma substancia ou algo
contrário, porém afastaram-se do bem, ao qual deveriam servir.268 Sabemos que Cristo deu
aos apóstolos e seus discípulos, o dom de expulsar espíritos impuros; como aparece em Mt10,
265
MARIA Apud SOARES, Afonso Maria Ligoro. De volta ao mistério da iniquidade. São Paulo: Paulinas,
2012, p. 142
266
MISCHO, Johannes. A “possessão diabólica” – sobre a psicologia das reações irracionais. In.: KASPER,
Walter; LEHMANN, Karl; KERTELGE, Karl; MISCHO, Johannes. Diabo, demônios, possessão: da
realidade do mal. Tradução de Silvino Arnhold. São Paulo: Loyola, 1992, p. 143.
267
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB). Ritual de exorcismos e outras
súplicas. São Paulo: Paulus, 2005, p. 7.
268
Idem, ibidem, p. 7.
85
1.8; Mc 3, 14-15; 6, 7.13; Lc 9, 1; 10, 17.18-20 afirmando-lhes que o Espírito Santo havia
agido no mundo e que o príncipe deste mundo já fora julgado. Por isso, a igreja acredita que,
desde o tempo dos apóstolos, exerceu o poder recebido de Cristo, ou seja, o dom de repelir ou
expulsar os demônios.269
O manual de exorcismo católico nos mostra que: “Desde a mais antiga tradição da
Igreja, observada sem interrupção, o itinerário da iniciação cristã ordena-se de tal modo que a
luta espiritual contra o poder do diabo seja claramente significada e comece de fato a realizar-
se. “270
Assim, os exorcismos menores que se fazem sobre os eleitos, são preces da igreja para
que o homem se veja livre do pecado, isso está diretamente ligado ao batismo onde os recém
nascidos passam a estarem livres da ação do diabo e de sua influência. Para a igreja, após o
batismo, o homem se fortalece espiritualmente e abre seu coração para os dons do Espírito
Santo. Por isso, através do chamado banho da regeneração, o homem passa a ser um vitorioso
sobre o pecado, passando ao estado de graça e liberto da escravidão do mal.
269
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB). Ritual de exorcismos e outras
súplicas. São Paulo: Paulus, 2005, p. 8.
270
Idem, ibidem, p. 9.
271
FREUD Apud SOARES, Afonso Maria Ligoro. De volta ao mistério da iniquidade. São Paulo: Paulinas,
2012
86
Gottlielin Dittus tinha 28 anos na época do ocorrido. Moça de família pobre, morava
com duas irmãs solteiras e um irmão meio cego em uma pequena casa nas proximidades de
Pforzheim. Atuava como empregada doméstica até ser obrigada a deixar o trabalho por
apresentar distúrbios renais e erisipela facial. Foi justamente neste período de leito que se
manifestou em Dittus a presença de um “espírito”, e que acometia a enferma a violentas
convulsões. Gottlielin passa a ser acompanhada por um pároco local, que afirma que a
enferma está possuída pelo diabo. Em seu acompanhamento o pároco passa a observar além
das convulsões rotineiras, vozes estranhas que são pronunciadas por Gottlielin e quando
pergunta sobre quem esta em ação, obtém a seguinte resposta da enferma em forma de sibilo:
“o mais maligno de todos”.
Tudo parecia estar normalizado, porém mesmo tendo sido levada para a casa paroquial
de Mottlingen em fevereiro de 1843 os fenômenos tornam a se repetir, nesta altura,
testemunhas oculares afirmam que Gottlielin vomitara areia, pedacinhos de vidro, fragmentos
de madeira, dentre outros objetos. É interessante notar que durante a segunda crise as irmãs da
paciente e seu irmão meio cego também passam a apresentar sintomas análogos. É registrado
que somente durante as festas natalinas de 1843 a luta chega ao fim, onde a irmã de Gottlielin
chega a pronunciar “Jesus é o vencedor”. Posteriormente, as três irmãs passam a morar ali, na
272
MISCHO, Johannes. A “possessão diabólica” – sobre a psicologia das reações irracionais. In.: KASPER,
Walter; LEHMANN, Karl; KERTELGE, Karl; MISCHO, Johannes. Diabo, demônios, possessão: da
realidade do mal. Tradução de Silvino Arnhold. São Paulo: Loyola, 1992, p. 144.
273
Idem, ibidem, p. 146.
87
A mesma contava apenas com a mãe e dois irmãos, e viviam uma vida de grandes
dificuldades financeiras. Passou boa parte de sua difícil infância em um barraco com os
irmãos até sua mãe colocá-la em uma casa com uma tia, onde deveria ajudar a mesma nos
afazeres domésticos. Aos seis anos de idade era acostumada com os afazeres diários, porém,
aos poucos, a tia se revelou uma pessoa brutal e egoísta, fazendo da pequena Sandra um
objeto onde descarregava sua ira e exercia todo o seu despotismo.
O tio, às vezes a protegia, porém, exigia em troca que Sandra realize suas pulsações e
desejos pedófilos. Após os abusos constantes, começaram as alucinações. Essas mesmas
alucinações eram seguidas de fortes ataques que colocavam em risco sua vida e a dos demais
presentes.
Para Donard:
A mente de Sandra lutou contra seus traumas, ela acreditava na sua integração na
sociedade, encontrou trabalho, casou-se, teve filhos. Porém, os traumas voltaram com força
276
DONARD, Véronique. Elementos sociológicos e psicanalíticos para compreender o discurso de possessão
diabólica. In.: Revista de Teologia e Ciências da Religião da UNICAP. Recife, Ano IX, 2010, p. 117.
277
Idem, ibidem, p. 127.
89
duplicada. Alucinações fortes a perseguiam e logo a figura do diabo passou a ser mencionada;
segundo a mesma, desejava a sua morte e a das suas filhas.
Casos modernos como o de Sandra ocorrem não apenas na França, mais em vários
locais do mundo. Para Donard, este caso e outros semelhantes podem ser entendidos como
traumas ocorridos em alguma etapa da vida, principalmente, infância, uma vez que em suas
análises, todas as pessoas observadas tinham em comum fatores como a solidão, o medo, o
desamparo, dentre outros problemas que levavam ao desespero. 278
Segundo Donard:
Torno a insistir sobre o fato de que a convicção e a adesão à ideia de possessão não
significam, forçosamente, uma organização psicótica, caracterizada por um delírio
de perseguição no qual o agressor adquire os traços do diabo ou de um espírito
maléfico. É verdade que tive a experiência de receber indivíduos esquizofrênicos ou
paranoicos convencidos de estarem possuídos pelo demônio: essas pessoas, na sua
maioria, já estavam sendo seguidas por um psiquiatra e a razão pela qual elas
pediam ajuda ao centro era justamente o fato de a sua medicação não conseguir
eliminar suas alucinações e sua angústia.279
[...] o discurso de possessão demoníaca parece ter causa, na grande maioria dos
casos, seja pela persistência psíquica da violação – seja qual for a sua forma – que
continua, no presente, a ação destruidora iniciada no passado, apesar da clivagem ou
do encapsulamento do trauma –, seja, no melhor dos casos, pelo retorno do
278
DONARD, Véronique. Elementos sociológicos e psicanalíticos para compreender o discurso de possessão
diabólica. In.: Revista de Teologia e Ciências da Religião da UNICAP. Recife, Ano IX, 2010, p. 121.
279
Idem, ibidem, p. 120
280
Idem, ibidem, p. 120
281
Idem, ibidem, p. 120
90
Esse não é apenas um caso isolado; mostrando que na longa história dos exorcismos,
existem vários casos, muito bem comprovados, de excessos 283 ou de abusos que foram
denunciados. Porém, esses casos são uma exceção, definitivamente levado por atos
individuais sobre uma visão distorcida e enganosa da fé sobre o fenômeno.
282
DONARD, Véronique. Elementos sociológicos e psicanalíticos para compreender o discurso de possessão
diabólica. In.: Revista de Teologia e Ciências da Religião da UNICAP. Recife, Ano IX, 2010, p. 121.
283
MISCHO, Johannes. A “possessão diabólica” – sobre a psicologia das reações irracionais. In.: KASPER,
Walter; LEHMANN, Karl; KERTELGE, Karl; MISCHO, Johannes. Diabo, demônios, possessão: da
realidade do mal. Tradução de Silvino Arnhold. São Paulo: Loyola, 1992, p.153.
91
CONSIDERAÇÕES FINAIS
284
A. LEFRÉVRE apud HUXLEY, Aldous. Os demônios de Loudun. São Paulo: Círculo do Livro, 1952, p.
179.
93
Como explica Afonso Maria Ligório Soares 285 , os mitos são como manifestações
primordiais da vivência e proporcionam, por sua vez, a junção do ser humano com o abstrato,
com o divino absoluto, além de colocá-lo perante símbolos e ritos que representam esse
mistério. Para Jung, o mito é proporcionado pelo inconsciente coletivo, ou seja, é proveniente
das camadas mais internas da alma e representa uma espécie de manifestação psíquica que
descreve o ser em sua essência. Seguindo esta linha, J. Campbell 286 afirmava que o mito não
constitui somente a busca ou a procura por um sentido em nossa existência. Para Campbell, os
mitos são como ressonâncias no interior do ser humano que o leva a se integrar com a
natureza e a sociedade que o cerca, superando assim o informe, o indeterminado, o caos.
Pelo mito, encontramos expressões religiosas que ajudam a entender um pouco o
racional. Através dele, pode-se encontrar um elo com o intelecto, uma vez que a sua
linguagem permite que ocorra uma transmissão de pensamento ou raciocínio, que se propaga
por meio de rituais, orações, cânticos, relatos históricos, textos, etc. É justamente em cima
desta tradição que o homem reflete sobre sua origem, destino, lugar no mundo e qual a razão
para tudo isso.
Ricoeur 287 , com o intuito de observar e analisar a simbologia do Mal, busca, no
contexto das religiões antigas do Oriente Médio, além de na Grécia, formas de como esses
povos entendiam e procuravam se defender do Mal. Ricoeur sintetizou os seus resultados em
quatro modelos de mito: o teogônico, o adâmico, o trágico e, por último o modelo órfico.
Na cultura helenística, percebe-se, no que diz respeito à cultura popular, um grande
número de figuras que representam demônios, não necessariamente sendo estes maus. Porém,
eles estão também presentes na filosofia grega, no pensamento de grandes filósofos, como
Platão, que os imaginava fazendo o papel de intermediação ente humanos e deuses.
Xenócrates, que foi posterior a Platão, seguiu os passos de seu mestre e elaborou uma teoria
bastante detalhada sobre essas entidades.
Diferentemente destes pensadores, o estoicismo tardio admite que almas de pessoas
mortas possam se tornar demônios, realizando assim tarefas iguais àquelas realizadas por
entidades espirituais de origem sobrenatural. É importante notar que as ideias aqui
demonstradas, segundo Rabuske288, não ficam somente no campo dos debates e discussões
filosóficas, mas tiveram grande divulgação no contexto popular e encontraram um vasto
285
SOARES, Afonso Maria Ligório. De volta ao mistério da iniquidade: palavra, ação e silêncio diante do
sofrimento e da maldade. Paulinas: São Paulo, 2012, p. 58.
286
CAMPBELL apud HUXLEY, Aldous. Os demônios de Loudun. São Paulo: Círculo do Livro, 1952, p. 179.
287
RICOEUR apud SOARES, op. cit., p. 65.
288
RABUSKE, Irineu José. Possessão e exorcismo: da prática do Jesus histórico à atualidade. In Revista
Cultura e Fé. v. 129, ano 33, 2010, p. 192.
94
campo para se expandir através do helenismo, alcançando assim várias partes do mundo.
Mas nem tudo era concordância sobre os demônios: Luciano de Samósata, em sua
conhecida obra, Amigo da Mentira, chega a zombar de tais figuras, assim como a zombar dos
processos utilizados para expulsá-las.
Há exatamente três mil e quinhentos anos, na antiga Pérsia, onde hoje se encontram os
atuais Iraque, Síria e Irã, havia muitos deuses, sendo bons e maus. Um religioso chamado
Zoroastro ou Zaratustra reduziu o complicado grupo de personagens ou o amplo panteão dos
deuses Mesopotâmicos a apenas dois.
O pensamento de Zoroastro é bastante simples. Ahura Mazda é um deus que reúne a
luz e a ordem, enquanto que Ahriman é um deus que reúne o Mau e o Caos, as Trevas e a
Mentira. Elementos opostos que simplesmente poderiam ser escolhidos pelos seres humanos.
A figura de Satanás, embora seja sempre associada ao Mal, também irá servir aos próprios
cristãos como justificativa de poder. Quatro séculos mais tarde, o imperador Constantino, o
Grande, irá se converter ao cristianismo, fazendo com que a religião que outrora fora
perseguida se tornasse o credo oficial do mais poderoso império da Terra. As autoridades
cristãs logo passaram a possuir grande poder, e logo eram aparadas pelo Estado. Eles usariam
a figura de Satanás para ajudá-los a manter essa posição, gerando o medo pelo pecado e pelo
acúmulo de bens materiais.
Ainda no mundo antigo, além da personagem de Lúcifer, é importante notar como
outros deuses de povos distintos foram sendo demonizados pelo próprio judaísmo e,
posteriormente, pelo cristianismo. Isso ajuda bastante no entendimento da evolução do
fenômeno da possessão, no qual esses mesmos deuses seriam os causadores de tais males.
Conclui-se com isso os principais termos demonizados no AT, sejam eles
representando supostos seres inferiores, assim como fenômenos naturais, animais, pessoas, ou
seja, fatores que estavam no dia a dia de Israel e também no contexto das civilizações
vizinhas. Uma vez compreendida a concepção do que era considerado demoníaco em Israel
Antigo, vê-se agora com mais clareza o que era considerado demoníaco nas demais
civilizações e grandes religiões destas mesmas regiões próximas a Israel, lembrando que serão
justamente esses costumes que farão com que os hebreus antigos partam para uma melhor
formulação de sua demonologia e práticas de expulsão.
No capítulo dois, foi demonstrado que o termo “exorcismo”, no sentido específico,
não possui palavra na língua hebraica que possa ser utilizada com este mesmo significado. O
que se tem presente muitas vezes é a apalavra Ashap, com o sentido de “astrólogo”,
95
“encantador” ou até mesmo “necromante” como afirma Carlos Vailatti289. Pode-se analisar
esse tipo de expressão em algumas passagens do AT, nos Apócrifos, nos pergaminhos do Mar
Morto, nos Pseudepígrafos, o que contribui bastante para a compreensão da evolução do
pensamento sobre o referido fenômeno.
Voltando ao termo Ashap, existe o exemplo da passagem de Daniel 1.20, onde o termo
é citado. Acredita-se que o termo seja retirado da antiga Babilônia, cuja palavra inicial era
“Shiptu”, ou conjuração, traduzindo literalmente. Nesse mesmo livro, em Daniel 2.27; 4.4;
5.7,11, existe também outro termo, como mostra Vailatti, o vocábulo “ Gazer”, com o
sentido de “adivinho”. Acredita-se que o termo Gazer também possa significar “decretar”, ou
seja, decretar que espíritos impuros sejam expulsos com autoridade.
Pode-se constatar como era realizado um exorcismo em Israel antigo através de duas
passagens que relatam tais feitos. Uma delas está contida em 1 Samuel, e outra no livro
apócrifo de Tobias. O Diabo foi mostrado das mais variadas formas possíveis no mundo
medieval. Para Sérgio Alberto Feldman290: “Desde a patrística grega e latina, e por todas as
crônicas e relatos do mundo medieval, o diabo era onipotente e exercia uma influência notável
no mundo dos vivos, sendo referenciado como atuante e proselitista”.
Neste período da história judaico-cristã não eram incomuns grandes debates entre
teólogos e pensadores ligados à cristandade sobre os limites de sua influência e poder no
mundo dos vivos. A finalidade era evitar que a religião cristã, então já a maior e a mais
influente religião do mundo ocidental, ganhasse um ar de doutrina dualista.
A transição do Cristianismo para a Idade Média foi um processo gradual e localizado.
Porém, foi com ele que ocorreram drásticas mudanças nas questões culturais, nas práticas das
pessoas e principalmente no imaginário. Com os conflitos gerados, essa religião foi, aos
poucos, moldando o ideológico medieval, e convertendo as pessoas e fazendo-as com que elas
abandonassem práticas consideradas pagãs; esse medo do pecado, Jose Lucas Cordeiro
Fernandes chama de “pedagogia do medo”.
Com esse pensamento, a Igreja passa a demonizar inúmeras figuras e as coloca sob a
ordem ou comando do maior dos demônios, Satanás. Nascia, assim, as hordas demoníacas, e a
figura de Satanás ganha notável destaque. Desse modo, percebe-se que o Cristianismo, em
seu momento de afirmação dogmática, tornou possível a chamada “unificação do Mal”, pois
289
VAILATTI, Carlos Augusto. Manual de demonologia. São Paulo: Fonte Editorial, 2011, p.96.
290
FELDMAN, Sérgio Alberto. A presença do diabo no cotidiano medieval judaico: os ritos de passagem. In
Revista de História e Estudos Culturais Fênix, v. 4, ano 4, n. 2, 2007, p. 1.
96
na antiguidade, como afirma Fernandes291, “o mal era bem variado e havia apenas poucas
representações de maldade”. Com a vitória do Cristianismo no Ocidente, a personificação do
Mal deixa de ser algo atribuído a divindades distintas.
Foi demonstrado como no mundo medieval pouco a pouco houve um crescimento
sobre a produção de obras que retratavam Satanás. Isso, no entanto, só foi possível devido a
conversão de grandes reis e seus impérios, como, por exemplo, o de Clóvis I, do Reino
Franco. Com a conversão de Clóvis, o Cristianismo se expandiu a regiões distantes,
derrubando ou incorporando costumes pagãos em várias culturas. Logo, o Cristianismo pode
colocar seus dogmas em prática nos processos de conversão.
Com a conversão, dois elementos considerados fundamentais eram utilizados para
fincarem o crente recém-convertido à nova prática religiosa. Novamente entra em cena o
medo do pecado e o fator demonizador. Através dessas duas práticas, o homem medieval
cristão passava a direcionar sua vida para Deus, sempre em busca da salvação, e sempre
fugindo das tentações e provocações do Diabo, responsável pelos malefícios terrenos, como a
pobreza e as pragas. Assim, o homem medieval passa a ser uma figura fragmentada entre o
pecado mundano e a salvação.
O diabo surge no Cristianismo primitivo como um adversário para Deus, que marca o
dualismo responsável pelo firmamento da Igreja nos séculos III e IV. Por isso, o mundo
medieval é marcado pelo grande conflito entre salvação e perdição. O homem medieval era
um homem dividido entre a recompensa do paraíso e o Bem, aqui representado pela Igreja e
suas fileiras de sacerdotes; e os prazeres mundanos, que seria a personificação das tentações,
aqui representando o Diabo e suas hordas infernais.
Esse dualismo e confrontos eternos e contínuos entre Deus e o Diabo no período
medieval, também eram retratados no belicismo, no simbolismo, e no contratualismo do
mundo medieval. Para Hilário Franco, o pensamento medieval sobre as atuações do Bem e do
Mal podem ser resumidos em uma simples expressão: “O sobrenatural se mostrando no
natural”.
Percebe-se, assim, a presença de uma “hierofania”, ou seja, manifestação do sagrado
no profano. A única diferença entre católicos e outros grupos religiosos era o simples fato de
que, para os católicos, o Demônio não poderia jamais ser colocado no mesmo grau de poder
para com Deus.
291
FERNANDES, José Lucas Cordeiro. As marionetes do diabo: as representações de satã no corpo na Idade
Média. Universidade Federal do Ceará, 2009. Disponível em: <http://www.ce.anpuh.org/1342121799
_ARQUIVO_TrabalhoANPUH.pdf>. Acesso em: 15 set. 2014, p. 7.
97
Sabemos que os judeus eram associados ao Demônio no mundo medieval cristão. Eles
eram relegados a camadas inferiores da sociedade e expulsos de determinados ramos da
produção econômica. Para os cristãos medievais, o povo judeu estava sempre envolvido em
artes consideradas profanas e ligadas ao poder do Diabo. Assim, temendo por seus fiéis, a
Igreja levantou várias regras e leis que afastaram os judeus da sociedade cristã, sendo algumas
das mais famosas leis fincadas no quarto Concílio de Latrão em 1215, por Inocêncio III.
A figura do Diabo sempre foi tema de bastante reflexão no mundo judeu, em sua
rígida estrutura monoteísta. Percebe-se então que a crença nele e os meios de proteção
utilizados para combatê-lo são devido ao meio circundante, ou seja, à grande influência, tanto
do Cristianismo quanto do Islamismo, que acreditavam e lutavam para que as mencionadas
“hordas demoníacas” não atacassem seus fiéis. Essas ideias também atingiram o Judaísmo.
Essas crenças no Diabo prevaleceram disfarçadamente em rituais, cerimônias e outras
práticas enrustidas do povo simples, tanto judeu como cristão, em suas crenças de cunho
místico. Deixando o mundo medieval e chegando à era moderna, percebe-se que muitas
características se modificaram com o passar do tempo. No entanto, com o avanço das
ciências, vários foram os questionamentos sobre o referido fenômeno religioso e seus métodos
de defesa.
Como foi visto no capítulo três, o imaginário popular foi um grande aliado das forças
demoníacas, tanto para sua propagação como para sua consolidação. Como afirma Irineu
Rabuske 292 , apesar de os textos chamados “sinóticos” afirmarem a vitória de Jesus sobre
Satanás, essa ideia não teria conseguido atingir as crenças populares, sobre as quais o
Demônio continuava atuante no dia-a-dia das pessoas, tentando fazer com que elas fossem
seduzidas e desviadas do caminho de Deus por legiões de demônios.
Assim, o fenômeno da possessão pode ser visto e entendido como uma prova da
influência do “Diabo” sobre o corpo humano. Nas culturas antigas, acreditava-se que os
espíritos malignos “entravam” no corpo humano sob as mais variadas formas e aspectos;
dentre eles, falta de fé, acúmulo de pecado, alimentos “tocados” pelo Diabo etc. Logo, a
possessão poderia se dar sobre os indivíduos das mais diferentes classes sociais, que têm
como principal elo seus dramas e complexos pessoais.
Apesar da evolução das ciências médicas, sem um grande conhecimento físico que
proporcione quebras com os mitos antigos, o diabólico ainda desponta como princípio de
diversos males. Até mesmo o ar contaminado pela sujeira crescente é visto como ameaças
292
RABUSKE, Irineu José. Possessão e exorcismo: da prática do Jesus histórico à atualidade. In: Revista
Cultura e Fé. v. 129, ano 33, 2010, p. 195.
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diabólicas, assim como outros acontecimentos no dia-a-dia, o que possibilita uma crescente
“diabolização dos sentidos”.
A prática sexual pregada na Igreja é vista apenas como multiplicação dos homens e
devia ser realizada apenas depois e dentro do casamento. Longe desta regra, o chamado “sexo
desregrado” ou com propósitos de realização prazerosa pessoal pode ser um atrativo do
pecado e consequentemente algo chamativo para demônios. Mais uma vez, tem-se a
influência do imaginário popular e de um conjunto psicossocial, onde era comum afirmar que
as feiticeiras, bruxas, prostitutas, amaldiçoados, hereges, dentre outras figuras marginalizadas,
praticavam sexo para atrair o diabo, e desta forma levavam suas vidas para a “imundície”
através da luxúria.
Partindo deste raciocínio da doutrina cristã, percebe-se que ocorre toda uma evolução
sobre o Mal e suas causas. Assim, a doutrina tradicional apoia-se na refutação do dualismo e
do monismo. O primeiro explica o Mal ao lado de Deus, um princípio do Mal independente
de Deus. O segundo não atribui nenhuma culpa em relação à criatura em se tratando da sua
autonomia, o que obriga o monismo a colocar o Mal no próprio Deus e, assim, demonizá-lo.
Finalizando esta análise, vê-se que o Mal não deriva da fragilidade da criação, porém,
ao contrário, deriva de sua grandeza e plenitude; assim como o que dela é o mais perfeito: a
realidade da liberdade perfeita. Percebe-se então que ao se praticar o Mal, o ser ou criatura
opta por ensejar a possibilidade que Deus excluiu na realidade de sua criação, ou seja, o fator
de acabar com a ordem e desencadear o caos no cosmos.
Do ponto de vista filosófico, o Mal pode ser interpretado como sendo algo não
categorial, uma vez que o referido conceito se coloca anterior ao do pólo transcendental da
consciência humana. Ao longo da história moderna, várias pessoas que possuíam
comportamentos estranhos foram ligadas à figura de Lúcifer, bem como à prática da magia ou
bruxaria. Segundo Rabuske293: “O pano de fundo para isso é fornecido pelas cenas bíblicas,
com as quais o imaginário popular tende a interpretar essas pessoas que se desviam do que se
tem por ‘normal’”.
Com essas contribuições, pode-se entender como a realidade social de um Indivíduo
pode estar ligada ao fenômeno da possessão. No século XIX, surgiram as tentativas
consideradas mais racionais de explicar ou tentar colocar os fenômenos de possessão como
doenças mentais de diversos graus, como foi colocado primeiramente neste capítulo. Assim,
problemas como distúrbios epiléticos, histeria, esquizofrenia, doenças consideradas maníaco-
293
RABUSKE, Irineu José. Possessão e exorcismo: da prática do Jesus histórico à atualidade. In: Revista
Cultura e Fé. v. 129, ano 33, 2010, p. 202.
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depressivas eram colocadas e interpretadas como sendo próximas dos sintomas observados no
fenômeno.
Em parapsicologia, o fenômeno da possessão pode ser interpretado e estudado além
dos rigores patológicos ou do racionalismo médico. Assim sendo, a prática da feitiçaria,
realização de rituais mágicos, maldição etc. são vistos como objetos de estudo no mundo
moderno para os parapsicólogos, que costumam dividi-los em dois pontos: a Teoria Espiritista
e a Teoria Animista. Estas duas teorias ajudariam a entender o fenômeno da possessão.
No campo da ciência da religião, acredita-se que o fenômeno da possessão possui um
caráter de sentido tanto positivo como negativo, gerando assim uma ambivalência. Para o
aspecto negativo, tem-se a situação de uma “figura” ruim, o Demônio ou um espírito mau,
com intenções malévolas. Já no caso positivo, trata-se de um espírito ou divindade benfeitora
que, segundo Rabuske 294 , pode assumir papeis específicos de cura, ou outras funções de
ajuda, como ocorre, por exemplo, no Vodu do Haiti ou culto Afro-cubano.
Desta forma, para a Ciência da Religião, a possessão pode funcionar como um
instrumento de organização para estados de caos ou inquietação interna, que os indivíduos
procuram integrar, passando assim a conviver na sociedade onde habita. Percebe-se que o
fenômeno da possessão possui várias formas de interpretação a serem consideradas, o que
leva o pesquisador do fenômeno a ter cuidado, pois não se deve de maneira nenhuma optar
por uma única análise ou interpretação e rejeitar as demais ciências que se ocupam de tal
acontecimento.
Irineu Rabuske 295 chama atenção para outra realidade que está envolvida na
interpretação da possessão. Trata-se da realidade sociopolítica do indivíduo considerado
possesso. Neste caso específico, pode-se perceber o fenômeno da possessão e do exorcismo
de uma forma bastante ampla, e não apenas reduzido a um indivíduo. Esta é uma tentativa,
segundo o autor, de interpretar e analisar a possessão e o exorcismo dentro de uma conjuntura
sociopolítica; ou seja, nas relações sociais, na ideologia das pessoas, na economia, etc.
Logo, o intuito do exorcismo é determinar diretamente os complexos numa
personalidade profundamente perturbada, abgenerada psiquicamente. Desta forma, conclui-se
o que foi proposto neste estudo: mostrar a conexão compreensível entre a origem de uma
enfermidade complexa e sua interpretação como fenômeno de “possessão diabólica”.
Percebeu-se que se trata de pessoas psiquicamente enfermas, ou seja, que apresentam uma
294
RABUSKE, Irineu José. Possessão e exorcismo: da prática do Jesus histórico à atualidade. In: Revista
Cultura e Fé. v. 129, ano 33, 2010, p. 203.
295
Idem, ibidem.
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