5 Metodologia em Historiografia Da Psicanalise
5 Metodologia em Historiografia Da Psicanalise
5 Metodologia em Historiografia Da Psicanalise
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Empregaremos aqui o termo “historiografia” no sentido definido por William Woodward, ao referir-se à
história da psicologia. Segundo ele: “O pensamento histórico não é muito diferente de qualquer outra forma
de trabalho intelectual. Em princípio divide-se em duas partes ou fases: método histórico ou análise das
fontes, e historiografia, ou análise e síntese. Em outras palavras a coleta de dados leva à apresentação dos
resultados e conclusões. Na prática a palavra ‘historiografia’ passou a ser aplicada a ambas as partes, a
análise e a síntese.” (Woodward, 1998, pp. 62-63).
uma afirmação inverossímil, tendo em vista que a psicanálise, enquanto um sistema
teórico que se propõe a explicar as manifestações psíquicas do ser humano, inscreve-se
como um sistema psicológico. Assim, partindo de um raciocínio silogístico, poderíamos
considerar que a psicanálise é uma área do conhecimento científico passível de ter sua
história investigada por intermédio dos métodos tradicionalmente empregado nas
pesquisas de história da psicologia2.
Embora coerente, o raciocínio veiculado na afirmação acima, ao invés de
contribuir para um aprofundamento e um refinamento dos debates concernentes à
historiografia da psicanálise, acaba por cumprir uma função contrária, eclipsando uma
gama de vicissitudes da teoria psicanalítica que merecem e devem ser contempladas em
uma investigação de natureza historiográfica.
Desta forma, antes de discorrermos sobre os modelos metodológicos que, em
nosso entender, constituem a historiografia da psicanálise, torna-se oportuno apontarmos,
ainda que de forma abreviada, algumas peculiaridades que caracterizam o
desenvolvimento da psicanálise e, por conseguinte, tornam a investigação de sua história
um processo diferenciado. Não se trata aqui de tecermos considerações relativas à
expansão do movimento psicanalítico, nem tampouco sobre seu desenvolvimento teórico
e clínico ao longo do tempo. Buscamos tão somente assinalar que a forma como a
psicanálise constituiu-se enquanto um campo de conhecimento sobre a psique humana e
a maneira pela qual foi inserida no universo da ciência apresentam singularidades que
devem ser consideradas em uma investigação de caráter histórico.
A primeira, e talvez a mais singular característica da psicanálise, pode ser
encontrada na indissociabilidade entre criador e criatura ou, dito em outros termos, a
matéria-prima, o substrato de experiências necessário para a constituição da teoria
psicanalítica advém, em um primeiro momento, das vivências pessoais do psicanalista,
sendo posteriormente complementado pela, não menos relevante, experiência clínica.
Neste sentido, em psicanálise, mais do que em outras ciências, a história pessoal de seus
criadores, como Freud e Melanie Klein, por exemplo, torna-se altamente relevante para
compreendermos os desdobramentos das formulações por eles postuladas ao longo de
suas trajetórias profissionais.
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Para uma descrição pormenorizada dos métodos de pesquisa empregados na historiografia da psicologia,
remetemos o leitor aos trabalhos de Michael Sokal (1998), Ludwig Pongratz (1998), Josef Brozek (1998),
Mitsuko Antunes (1998), Hans Tthomae (1998), Robert Watson (1998) e Ana Maria Jacó-Vilela (2000).
Em sua biografia sobre Freud, Peter Gay chama-nos a atenção para o fato de
que as reminiscências infantis de Freud, recuperadas em sua auto-análise, converteram-
se em fonte de inspiração de sua teoria. Afirma ele ao referir-se à auto-análise do criador
da psicanálise:
Como historiador, situei Freud e sua obra nos vários contextos relevantes: a
profissão psiquiátrica que ele subverteu e revolucionou; a cultura austríaca em que
foi obrigado a viver como judeu descrente e médico pouco convencional; a
sociedade européia que, durante a vida de Freud, passou pelos terríveis traumas da
guerra e da ditadura totalitária e a cultura ocidental como um todo, uma cultura cuja
percepção de si mesma ele transformou irreconhecivelmente para sempre. (Gay,
1988, p. 17)
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Donald Meltzer nasceu nos Estados Unidos onde especializou-se em psiquiatria infantil, emigrou para a
Inglaterra em 1954 com o fito de fazer formação psicanalítica, tendo sido analisado por Melanie Klein entre
os anos de 1954 a 1960.
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No Brasil, esta coletânea foi publicada pela Editora Escuta em três volumes: O Desenvolvimento Kleiniano
I: Desenvolvimento Clínico de Freud (1989), O Desenvolvimento Kleiniano II: O Desenvolvimento Clínico
de Melanie Klein (1990) e O Desenvolvimento Kleiniano III: O Significado Clínico da Obra de Bion (1998).
das posições esquizo-paranóide e depressiva, e o último trabalho de vulto publicado por
Melanie Klein, em 1957, denominado Inveja e Gratidão.
A marca distintiva do trabalho de Petot, que o torna uma referência para uma
compreensão mais apurada da doutrina kleiniana, não reside propriamente em tecer
considerações que levem a uma nova compreensão ou reinterpretação de conceitos
formulados por Melanie Klein, uma vez que este autor, em linhas gerais, concorda com
as conclusões veiculadas nos trabalhos de Hanna Segal e Willy Baranger, que são por
vezes citados em seu texto. O caráter original imprimido em seu estudo consiste na
proposta metodológica adotada, ao primar por um enfoque epistemológico da obra
kleiniana, possibilitando ao leitor compreender como os conceitos foram gerados e quais
os desdobramentos que sofreram ao longo do desenvolvimento da teoria, uma vez que
suas formulações seguem “(...) a formação das concepções kleinianas no triplo
movimento da formação dos conceitos conforme as necessidades da teoria, da
consideração dos fatos que o trabalho clínico impõe e do movimento de reenvio
permanente entre uma e outra.” (Petot, 1979, p. XXI).
Outro trabalho de expressão que merece destaque é a biografia de Melanie
Klein escrita por Phyllis Grosskurth, professora do Programa de Ciências Humanas e
Pensamento Psicanalítico da Universidade de Toronto. Trabalho de caráter
eminentemente historiográfico, elaborado a partir de fontes orais e documentais,
apresenta uma narrativa pormenorizada, criteriosa e completa da vida e, por extensão, da
obra de Melanie Klein. O cuidado no levantamento das fontes históricas e a criteriosa
análise que realiza fazem emergir de sua síntese um matiz bastante equilibrado que retrata
com fidedignidade a personagem biografada, compondo um ponto de equilíbrio sobre
Melanie Klein, que fica a meio termo entre as críticas deflagradas por seus detratores que,
na tentativa de contestar a teoria, conspurcavam a mulher, e as considerações idealizadas
de seus discípulos, que a todo custo procuraram preservar sua imagem.
Seguindo a vertente historiográfica, encontramos o trabalho dos psicanalistas
britânicos Pearl King e Riccardo Steiner, publicado em 1991, que tem como título As
Controvérsias Freud-Klein: 1941-45. Valendo-se unicamente de fontes documentais
extraídas dos Arquivos da Sociedade Britânica de Psicanálise, notadamente atas e
correspondências, os autores procuram sistematizar os fatos ocorridos durante as
“Discussões Controversas” ocorridas entre freudianos e kleinianos, na primeira metade
da década de quarenta, ocasião em que os kleinianos foram convidados a confirmar a
veracidade de suas formulações psicanalíticas. A relevância do referido trabalho reside
menos nas considerações críticas e na análise que tece sobre o material estudado, mesmo
porque são bastante escassas, e mais em organizar e tornar acessível ao leitor uma farta
documentação que possibilita uma apreciação abrangente acerca do período histórico
estudado.
Por seu turno, merece destaque a coletânea organizada pela psicanalista
Elizabeth Bott Spillius, em 1988, sob o título Melanie Klein Hoje. Organizada em dois
volumes, o primeiro dedicado a trabalhos de natureza teórica e o segundo voltado para
artigos predominantemente clínicos, esta coletânea “(...) tem por objetivo apresentar e
discutir um conjunto de artigos que ilustram o desenvolvimento de conceitos e
formulações de Melanie Klein escritos por seus colegas e seguidores durante os últimos
trinta anos.” (Spillius, 1988a, p. 9). Além dos artigos compendiados nestes volumes, que
por si só constituem um testemunho da evolução e da vitalidade das idéias kleinianas que
vêm sendo aperfeiçoadas e expandidas ao longo dos anos, os capítulos introdutórios
escritos por Spillius apresentam uma análise precisa dos desdobramentos que os conceitos
postulados por Melanie Klein tiveram a partir dos trabalhos de seus seguidores,
particularmente Hanna Segal, Wilfred Bion e Herbert Rosenfeld.
Em 1991, Robert Hinshelwood publica a segunda edição revista e ampliada
de seu Dicionário do Pensamento Kleiniano. Seguindo uma tendência introduzida por
Laplanche e Pontalis, o autor narra a história dos principais conceitos cunhados por
Melanie Klein durante sua vida profissional. Para tal, o autor procura identificar a origem
dos conceitos na teoria freudiana para, a seguir, apontar seus desdobramentos ao longo
da obra kleiniana.
No Brasil, Ryad Simon5, valendo-se de sua experiência como docente,
publicou, em 1986, o livro Introdução à Psicanálise: Melanie Klein, que congrega
simultaneamente a simplicidade de um texto introdutório à consistência na exposição dos
conceitos discutidos ao longo dos capítulos. Com relação à proposta metodológica
empregada na produção deste trabalho, damos a palavra ao autor: “Por último deter-me-
ei no problema metodológico da execução deste livro. (...) Adotei um critério
cronológico, mas assinalando sua variação posterior. Isso levará a algumas repetições
Todavia, dada a complexidade da teoria, suponho que isso será clarificante e construtivo.”
(Simon, 1986, p. XI). Desta forma, o leitor tem a possibilidade de acompanhar a evolução
dos conceitos dentro do conjunto geral da obra kleiniana.
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Ryad Simon é Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e Professor Titular
do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
1.3. Problema e Justificativa
1.4. Objetivos
(...) termo amplo que recobre uma quantidade de relatos a respeito de fatos não
registrados por outro tipo de documentação ou cuja documentação se quer
completar. Colhida por meio de entrevistas de variada forma, ela registra a
experiência de um só indivíduo ou de diversos indivíduos de uma mesma
coletividade. (Queiroz, 1988, p. 19)