Erich Auerbach Sociologo
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Leopoldo Waizbort
Duas teses
Podemos dizer de toda obra de arte que ela é determinada essencialmente por
três fatores: pela época de sua origem, pelo local e pela peculiaridade de seu
criador. Isto vale em maior medida para a novela, pois enquanto na tragédia ou na
grande epopéia é um povo que fala, para com isso questionar deus ou o destino
[...], na novela o sujeito é sempre a sociedade, e com isso o objeto é por excelência
aquela forma de mundanalidade que denominamos cultura. [...] seu pressuposto é
um círculo de seres humanos circunscrito diante de um exterior, que obteve uma
determinada posição na vida terrena e tem interesse em conhecê-la e considerá-
la criticamente. Assim, a novela está sempre em meio ao tempo e em meio ao
lugar; ela é um pedaço de história [...] (Auerbach, 1921, p. 1).
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[...] a forma interna e externa da novela é uma criação nova e, para dizer rapida-
mente, uma criação nova da Renascença. Tornar-se consciente de sua própria
pessoa, ver-se em uma existência terrena, que exige ser alcançada e dominada: esta
é a aspiração decisiva da Renascença. Dela origina-se a “sociedade cultivada”
[expressão utilizada por Burckhardt] e, ao mesmo tempo, a novela (Idem, p. 2).
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5. Ver, a título indicativo, poeta do mundo terreno), surge como uma estação significativa, embora
Hoeges (1994); Benja- o problema em pauta não ganhe destaque explícito no livro, sobretudo
min (1991a); Jurt (1991);
porque, no entender de Auerbach, Dante é um dos poucos escritores cuja
Flasch (2001, pp. 226-
227); Bialas e Raulet leitura pode ser feita com um mínimo de informação e conhecimento
(1996). exterior à obra. Não obstante, um dos tópicos abordados no livro é a
discussão acerca do grupo social que ancora o dolce stil nouvo, poesia ges-
tada em um círculo restrito – e sociologicamente concebido:
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Escritor e público
No mesmo ano em que publicou sua tese sobre Dante, passou a atuar
como Privatdozent de filologia em Marburg e ministrou sua aula inaugural
sobre “Dante e o romantismo”, Auerbach escreveu um notável ensaio so-
bre Montaigne, “Der Schriftsteller Montaigne” (O escritor Montaigne),
no qual a categoria de público, eminentemente sociológica, desempenha
um papel estratégico e determinante, e que seria retomada de maneira re-
corrente em outros textos seus. (Nos seis anos em que permaneceu como
docente universitário na Alemanha, de 1929 a 1935 – a partir de 1930,
como professor titular –, Auerbach dedicou-se sobretudo ao estudo da
literatura francesa.) No caso de Montaigne, seu argumento é que se trata,
de fato, da criação de um público, que até então não existia, para os Essais.
E a categoria de público encontra em Montaigne também sua contra-face:
o escritor, homme de lettres, figuração histórica do intelectual.
[...] Montaigne não encontrou o público dos Essais já formado e não podia ima-
ginar que ele existisse. Ele não escreveu nem para a corte, nem para o povo; nem
para os católicos, nem para os protestantes; nem para os humanistas, nem para
qualquer coletividade existente. Ele escreveu para uma coletividade que não pa-
recia existir, para os homens vivos em geral, que, como leigos, possuíam alguma
formação e queriam prestar contas de sua existência; para o grupo que, posterior-
mente, foi nomeado público culto. Até então havia como coletividade apenas a
cristandade, se se abstrai a profissão, o estamento e o Estado. Montaigne dirigiu-se
a uma nova coletividade, e na medida em que assim o fez, criou-a; em seu livro ela
manifesta pela primeira vez sua existência (Auerbach, 1932, p. 186).
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9.A formulação é bas- público, cria também algo novo na sua própria posição: “uma nova cate-
tante sugestiva e me- goria social: o homme de lettres ou écrivain, o leigo como escritor” (Auer-
rece ser reproduzida:
bach, 1932, p. 187). Auerbach imediatamente situa a nova categoria na
“Este homem inde-
pendente e sem profis- origem mesma da figura do intelectual, como para reforçar que se trata,
são criou portanto uma realmente, da constituição de um campo intelectual, no qual atuam escri-
nova profissão e uma tores e públicos, e que se apresenta como um processo que, na França, vai
nova categoria social: de Montaigne ao século XIX ou até mesmo o XX – em rodapé Auer-
o homme de lettres ou
bach aponta o complexo arco histórico-social no qual situa o problema,
écrivain, o leigo como
escritor. Conhecemos
ao mencionar as invectivas de Karl Kraus, na Viena dos anos de 1920,
a carreira que teve essa contra os “escritores”9.
profissão, inicialmente A constituição dessas categorias sociais – e, sublinho, categorias que
na França e depois tam- implicam um complexo processo, histórico e social, de identidade, pois se
bém em outras nações fundam na relação de mútua interdependência escritor/público, relação
de cultura: esses leigos
que configura um espaço social específico, denominado por Auerbach de
tornaram-se os verda-
deiros sacerdotes, os re- “comunidade de leigos” – é percebida claramente por Auerbach como
presentantes e guias da um desafio intelectual, e ao final do ensaio ele aponta a direção para o
vida espiritual, reco- encaminhamento do problema: esse novo tipo historiciza-se na figura do
nhecidos hoje em dia honnête homme, que reaparece em seu estudo subseqüente, intitulado Das
de tal modo que Julien
französische Publikum des 17. Jahrhunderts (O público francês do século
Benda os denominou
clercs – portanto com XVII), publicado em 1933. Ainda no texto sobre Montaigne, Auerbach
aquele nome que afirmava, antecipando:
designava or iginal-
mente aqueles diante A pessoa de Montaigne era apropriada para criar um novo tipo humano; em lugar
dos quais eles estavam
do cristão crente, duvidoso ou revoltado, surge o honnête homme, que realiza todas
em oposição, os clerici
as formas e considera as coisas a partir de si. Entretanto, o honnête homme dos
ou clérigos. Com isso
está dito e reconheci- séculos XVII e XVIII foi rapidamente levado por outras influências a outras
do que o escritor é seu direções; no final das contas ele se tornou mais ativo, mais burguês e mais diminu-
herdeiro e passa a ocu- to (Idem, p. 194).
par o seu posto, a saber,
a hegemonia espiritual
No opúsculo editado em 1933, um de seus últimos trabalhos publica-
da Europa moderna.
De Montaigne a Vol- dos na Alemanha antes do exílio – e que ainda traz, na página de rosto, o
taire há uma ascenção título de professor titular, do qual em breve o autor não mais poderia
ininterrupta; no século fazer uso10 –, Auerbach delineou essas direções no século XVII francês,
XIX ampliaram sua tendo em vista o problema, eminentemente sociológico, da formação do
posição e sua atuação a
público:
uma base mais ampla,
o jornalismo, e apesar
de alguns sinais de Ao lado de algumas expressões bastante genéricas – lecteurs, spectateurs, auditeurs,
declínio, observáveis já assemblé – encontram-se nas fontes contemporâneas duas novas designações para a
camada a que as obras de literatura, e em especial as de teatro, são dirigidas. São há muito, é bastante
elas le public e la cour et la ville (1933, p. 5). provável que ainda no
século XX eles sejam
considerados a voz do
Trata-se de investigar um processo que se revela nessas duas novas mundo” (Auerbach,
designações: um público específico, que se busca caracterizar. A partir de 1932, p. 187). Esse
uma semântica histórica, Auerbach desvenda um processo social, a forma- mesmo processo é tam-
ção de um público, a definição de tipos sociais, a definição de uma cama- bém tema do capítulo
sobre Montaigne em
da social11.
Mimesis (cf. Auerbach,
La cour et la ville, que se firma ao longo do século XVII, designa “o 1946, pp. 292 ss.); entre
espaço público literário e social” (literarisch-gesellschaftliche Öffentlichkeit), e nós, o problema foi
a importância da definição desse espaço social deriva do fato de que ele se abordado, a partir de
constitui, gradualmente, como o “portador/suporte do gosto literário” Auerbach, por Arantes
(Auerbach, 1933, p. 6)12. “La cour” é o entorno do Rei, não apenas a no- (1979).
breza, mas também notáveis não pertencentes à nobreza e possuidores de 10.Sobre a condição
um habitus burguês;“la ville” não se refere absolutamente ao povo da cida- judaica de Auerbach e
suas conseqüências, ver
de, mas ao grupo que realiza uma “sociabilidade de cidade grande”, pos-
Barck (1994); Mat-
suidor de uma “urbanidade”, no sentido mesmo do “salão”, de um círculo tenklot (1998); Gum-
de sociabilidade. brecht (2002). Não há
Auerbach indica como, ao longo do século – pois se trata de investigar dúvida de que a expe-
um processo social-histórico –, as forças propulsoras que convergem em riência da exoneração
compulsória e o exílio
“la cour et la ville” oscilam entre as duas partes da expressão: no início, as
forçado marcaram a
forças concentram-se em “la ville” e, posteriormente, ao final do século, fundo a obra e, decer-
em “la cour”. De todo modo, o processo caracteriza-se pela confluência, to, a valorização da di-
que se deposita na própria expressão “la cour et la ville”. mensão histórica e so-
Essa expressão é superposta a “público”, pois este é resultado histórico cial concreta das obras
de lutas de poder na França do século XVII que, no entender de Auer- literárias.
bach, deixam-se visualizar nas polêmicas e disputas acerca do teatro de 11. Essa dimensão social
Molière, seus defensores e detratores. Nesse contexto, aparece o “grande importante nos estudos
de Auerbach é o que se
público” como ocupante do parterre – tópico sobre o qual Auerbach de-
poderia denominar
senvolve uma sensacional sociologia dos ocupantes dessa posição no tea- uma semântica históri-
tro. Será no parterre e na corte que encontraremos o “bon sens, naturel” e o ca. Um exemplo signi-
“bon goût”, e são portanto seus ocupantes que aparecerão como portado- ficativo é o humilis; a
res do gosto. compreensão justa do
termo e seus usos exi-
ge compreender o teor
Por ora basta constatar que a unidade cultural que se revela por volta de 1660,
histórico das palavras,
que está na base do florescimento do Classicismo, resulta de uma aliança ou de frases, textos, para o que
uma comunidade íntima do Rei e seu entorno com certas camadas da popula- é preciso recorrer à
ção citadina – cuja determinação sociológica exata ainda está por ser examina- história e à sociologia
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(cf.Auerbach, 1941a, pp. da –; que essa aliança está direcionada contra o preciosismo e a pedanteria; que
23-25; posteriormente seu grito de guerra, com ou sem razão, proclama o bon sens e o naturel. Não há
1958, pp. 25-63). Pois
dúvida de que o Rei e a corte representam e conduzem socialmente essa alian-
conhecer uma obra im-
plica conhecer a fundo ça; mas com isso ainda não se esclarece quem fornece os conteúdos na nova
toda a época e o con- mentalidade [Gesinnung] comum, qual era sua origem social (Auerbach, 1933,
texto. Para ilustrar com p. 13).
o exemplo já mencio-
nado: na análise da pre-
Tal aliança de la cour et la ville, capitaneada pelo rei, não se esgota no
sença de São Francis-
co de Assis na Comé-
ambiente cortesão; seus conteúdos e sua origem precisam ser procurados
dia, somente a recons- na burguesia, pois o bon sens e o naturel são valores antes burgueses que
trução de todo o uni- cortesãos ou mesmo populares. Portanto, a aliança cria um espaço social
verso simbólico ligado específico, marcado por uma nova mentalidade e atitude que tem sua an-
à imitação do Cristo na coragem social e histórica nos estratos médios, em processo de ascensão.
cristandade permite
Sumarizando, portanto, o argumento: valores, mentalidade e atitudes
compreender a apari-
ção alegórica do santo gestados no ambiente burguês e em contraposição à nobreza e ao povo
naquela obra (cf.Auer- são, no curso do século XVII francês, encampados por sujeitos sociais dis-
bach, 1945).A conclu- tintos, levando à configuração de um público na forma “la cour et la ville”.
são do mencionado es- A conclusão eminentemente sociológica de Auerbach é que, no plano esté-
tudo é reveladora dos
tico, essa aliança atualiza a velha aliança entre o rei e a burguesia que caracte-
problemas de com-
preensão da obra literá- rizaria o processo de formação e unificação da nação francesa, e isso de um
ria, tal como Auerbach modo bastante característico, pois implica a exclusão da participação do
os compreende:“Todos povo em todo o processo.
esses nexos eram reco- O mesmo argumento se deixa demonstrar na polêmica acerca do Tartufo,
nhecidos espontanea-
pois o bon sens que caracteriza a peça nada tem de monárquico nem de
mente pelo leitor me-
autoritário – aspectos que poderiam em princípio facultar o favorecimento
dieval, pois ele vivia em
meio a eles; as repre- do rei –, senão que é característico dos “estratos médios que se emanci-
sentações de repetição pam” (Idem, p. 15).
profetizadas e imitativas Note-se ainda, para destacar o sentido do argumento, que o floresci-
eram-lhe tão comuns, mento do Classicismo francês é visto em relação de correspondência com
como por exemplo ao
esse processo social bem mais amplo, que mostra uma de suas faces na
leitor de hoje o con-
ceito de desenvolvi- composição do parterre. Ao longo dos séculos XVI e XVII, o parterre,
mento histórico; até inicialmente freqüentado por pajens, lacaios, soldados, clercs e até pelo
mesmo o aparecimento populacho, caracteristicamente um lugar conturbado e propenso à desor-
do Anticristo era ima- dem, vai sendo domado e disciplinado, de sorte que, na segunda metade
ginado como uma re-
do século XVII, uma nova figura passa a freqüentá-lo: o burguês. Há,
petição exata, embora
enganadora, do apare-
digamos, uma elevação do parterre; a burguesia média vai acossando e
cimento do Cristo. Nós expulsando as camadas mais populares, embora estas permaneçam sempre
perdemos a compreen- presentes, ainda que limitadas.
Mas é de fato o burguês que posteriormente predomina no parterre, e lá, ao seu são espontânea dessa
lado, encontram-se o escritor e o crítico, enquanto ainda não se tornaram total- concepção da história
e somos forçados a re-
mente “proeminentes”. Sem dúvida alguma é a esse público burguês do parterre,
construí-la mediante
um pouco impregnado de literatos, que Molière se refere (Idem, pp. 19-20). pesquisa” (Auerbach,
1945, p. 54). É evidente
Com os anos, o parterre é identificado cada vez mais fortemente com a que tal pesquisa possui
burguesia; essa identificação iguala “bourgeois” e “peuple”, contrapostos a uma dimensão eminen-
temente histórica e so-
“personnes de qualité” ou “de condition”, isto é, a nobreza (que enche os
cial, de sorte que a fi-
camarotes e balcões). Ao que se acrescenta a constatação de que o gosto lologia auerbachiana
burguês coincide com o da nobreza, o “público mais elevado” – tanto so- deita raízes nessas dis-
cialmente como na sua disposição no teatro, pois a ocupação dos lugares ciplinas auxiliares. O
nobres ainda era privilégio estamental da nobreza, embora o burguês pu- principal caso e exem-
desse freqüentá-los, se se tornasse um “homme de condition”. plo dessa semântica his-
tórica seria, decerto, a
Portanto, o parterre é o locus de uma camada social que “tendia a se
investigação acerca de
amalgamar com a sociedade cortesã mais elevada e deixar-se por ela con- “figura” (Auerbach,
duzir” (Idem, p. 24) – donde a fórmula “la cour et la ville”. Ademais, a 1939) e, a seguir, acerca
“robe” realizava uma espécie de mediação, pois, embora em geral perma- de “passio” (Auerbach,
necesse no parterre, os funcionários mais elevados possuíam o status de 1941b) . Decerto tal
semântica histórica não
“gens de condition”. “La cour et la ville”, dessarte, indica um gosto “cul-
é prerrogativa de Auer-
to”, em oposição ao gosto popular; a tragédia clássica francesa encontrou bach, mas um tipo de
seu público não no povo, que nela não encontrava elemento algum de iden- investigação histórico-
tificação, mas sim em “la cour et la ville”. Com efeito,“o público francês do social que se mostrava
século XVII” (ou seja, o público do teatro clássico francês) foi “la cour et la fundamental a seu tem-
po. Exemplo disso é o
ville”, um público “culto”.
célebre estudo de Erwin
Mas qual a peculiaridade, quais os atributos e fundamentos dessa sua
Panofsky acerca de
“cultura”? Ela se incorpora ao “honnête homme” – figura social que, “Idea”.
como se viu, surge com Montaigne e se transforma ao longo do tempo. A
12.Com relação ao
“honnêteté” não é um atributo estamental, mas um “ideal de personalida- problema da formação
de” que todos, em princípio, podem adquirir. do gosto e de seus por-
Também no domínio das relações de produção, por assim dizer,“la cour tadores e/ou suportes,
et la ville” amalgamam-se, pois, se a nobreza vive do prestígio e às custas do há o trabalho pionei-
ro de Schücking, escri-
rei, a burguesia, em parte almejando transformar-se em “noblesse de robe”,
to no início dos anos de
também aspira a uma existência “parasitária”: “O ideal do honnête homme, 1920, mas publicado
que a burguesia elevada então almejava, não comporta mais nada relativo à apenas coetaneamente
profissão e ao trabalho manual, senão que se pretende o mais absoluto e ao estudo de Auerbach,
universal possível” (Idem, p. 39). Tal repúdio a toda e qualquer atividade em 1931.
econômica produtiva, característico do “honnête homme”, encontra sua
contra-face no ideal de cultura:
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Esse ideal de uma cultura plena de bom gosto e universal originou-se da impreg-
nação com a matéria cultural humanista que, simultaneamente a um bem-estar de
base mais ampla, gerou uma camada mais ampla de pessoas cultas [Gebildete],
camada esta que compreende tanto a nobreza como a burguesia abastada.Trata-se
da viragem do humanismo da erudição para a cultura e formação [Bildung]. Ao
que parece, na França, ela teve seu ponto de partida no Plutarco de Amyot – sa
merci, nous osons à cette heure et parler et écrire, les dames en régentent les maîtres d’écoles,
c’est notre bréviaire, diz Montaigne. Sob o efeito do cartesianismo, a cultura inclui
em seus domínios os conhecimentos físicos e até mesmo filosóficos e destrói
gradual e progressivamente a oposição entre um espírito aristocrático-feudal e
culto e um espírito popular. O povo se cala e uma camada culta, constituída de
nobres e de burgueses abastados (camada esta que pôs a erudição a seu serviço),
domina sozinha: la cour et la ville (Idem, pp. 42-43).
Nas camadas do público de que falamos aqui, a imagem de mundo dada pelas
ciências naturais, a visão básica da política, a estrutura da sociedade, o sentido do
trabalho cotidiano e até mesmo a descontração nos dias de festa tornaram-se
autônomos: tudo isto se libertou dos conteúdos cristãos que, desde a cristianização
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origem de uma nova unidade social mais ampla. Já o sabemos: essa nova sociedade
deve sua origem à supressão [Aufhebung] dos dois estamentos que a integram, a
nobreza e a burguesia, que perfazem uma nova unidade na aliança de cour e ville.
Mas Auerbach não nos mostra nesta nova unidade a Aufhebung – se nos é permi-
tido falar hegelianamente –, mas sim o “aniquilamento” dos componentes que
estão na sua base: da nobreza e da burguesia, pois ele não enxerga o motivo de sua
união em uma relação renovada com o todo [neugeknüpften Beziehung zum Ganzen],
mas somente na ruína de sua constituição estamental específica. Por conta disto,
aquela união, em Auerbach, traz – caracteristicamente – o sinal de uma alienação,
de uma fuga no elemento heróico e estético, e de todo modo as características de
um movimento espiritual arbitrário, que se opõe à “vida real” (Idem, pp. 334-335).
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1. Vico desenvolve uma teoria do conhecimento histórico que será 16.Auerbach tratou
apropriada por Auerbach. Ela se baseia na idéia de que somente podemos desse ponto em todos
conhecer aquilo que criamos, ou seja, aos homens cabe o conhecimento os seus escritos sobre
Vico; ver como exem-
do mundo dos homens, por eles criado, enquanto o conhecimento da na-
plo Auerbach (1937a,
tureza, criada por Deus, é prerrogativa sua. Mas a isso se soma o postulado pp. 251-253).
antropológico de que podemos potencialmente conhecer e compreen-
17.O ponto possui
der todas as formas do espírito humano, mesmo as mais distantes e estra- uma interessante rever-
nhas em tempo e espaço, pois todas elas são figurações de nosso próprio beração, pouco desta-
espírito humano, modificazioni della nostra medesima mente umana16. Assim, cada nos comentários:
mediante uma espécie de evocação (ou re-evocação) da consciência indi- é que se enlaça com um
traço constitutivo do
vidual é possível o acesso a toda a história (cf. Auerbach, 1948, p. 269). É
pensamento de Mon-
desse postulado que Auerbach derivará um fundamento de sua atividade taigne, o conhecer-se
crítica: “Aquilo que nós compreendemos e amamos em uma obra é a a si mesmo, que Auer-
existência de um ser humano, uma possibilidade de nós mesmos” (Auer- bach destaca recorren-
bach, 1958, p. 14)17. temente nos seus dois
2. O entendimento de Vico da filologia, que é retomado por Auerbach, textos sobre Montai-
gne. Com relação a
atribui-lhe, mediante um alargamento e extensão, a totalidade da vida so-
Vico, Auerbach afir-
cial: “thus philology is enlarged to such an extent, that it comprehends all mou: “Aquele reen-
the historical humanities [...]; it becomes almost identical with the Ger- contrar da história em
man term Geistesgeschichte” (Auerbach, 1948, p. 264). Como apontei ante- nosso próprio espíri-
riormente, essa pretensão da filologia, que é o horizonte que orienta a to é conhecimento de
si; trata-se do embrião
obra de Auerbach, é um centro de discussão e polêmica durante o período
de uma teoria da com-
de Weimar, e a tomada de posição de Auerbach implica, embora de modo preensão histórica a
implícito, uma posição diante da pretensão universalizante da sociologia. partir da compreensão
Daí a afirmativa de Schalk com que iniciamos. de si mesmo” (Auer-
3. Contudo, a filologia auerbachiana não é uma simples figuração da bach, 1955, p. 249).
Geistesgeschichte, precisamente em virtude de Vico e do diálogo oculto 18.É por essa razão que
com a sociologia do conhecimento, pois ela incorpora uma resposta ao firmou o período de
problema do historismo e do relativismo histórico. Se, por um lado, o composição de Mime-
sis na abertura do li-
conhecimento histórico precisa estar atento aos critérios, às concepções e
vro (Auerbach, 1946,
às categorias do próprio momento histórico que pretende compreender, p. 4) e, em texto pos-
para não lhe impor categorias exógenas, por outro lado o intérprete tam- terior, reiterou que
bém está atado a uma historicidade particular, sua situação concreta de “Mimesis é, de modo
vida. Daí Auerbach falar em um “relativismo radical”, “pois o relativismo absolutamente cons-
ciente, um livro escrito
histórico é de dupla face: refere-se tanto ao que se compreende como
por um determinado
àquele que compreende” (Auerbach, 1958, pp. 14-15)18. Com isso, assim homem, em uma de-
como a sociologia do conhecimento dos anos de 1920, Auerbach preten- terminada situação, no
dia resolver, dentro do possível, os dilemas do historismo, tal como for- começo dos anos de
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That general human quality, common to the most perfect works of the particular
periods, which alone may provide for such categories [categorias válidas para o
juízo histórico, e não categorias abstratas e a-históricas, LW], can be grasped only
in its particular forms, or else as a dialectical process in history; its abstract essence
cannot be expressed in exact significant terms. It is from the material itself that he
will learn to extract the categories or concepts which he needs for describing and
distinguishing the different phenomena.These concepts are not absolute; they are
elastic and provisional, changeable with changing history. But they will be suffi-
cient to enable us to discover what the different phenomena mean within their
own period, and what they mean within the three thousand years of conscious
literary human life we know of; and finally, what they mean to us, here and now
(Auerbach, 1948, p. 263; cf. 1958, p. 15)22. 22.A bibliografia a res-
peito de Auerbach pro-
cura explicitar e discu-
Esse é o resultado do historismo auerbachiano, um historismo que
tir as conseqüências e
teve o cuidado de furtar-se tanto dos acentos nacionais (cf. Auerbach,
os pressupostos desse
1955; 1948, p. 273) como de qualquer lógica superior do transcurso “método”; abordei o
histórico – nem Escola Histórica, nem filosofia hegeliana. Nessa sua problema em Waizbort
peculiaridade, ele inclusive marcou posição diante de outro grande (2003).
marco. Pois é surpreendente o modo como, na apropriação de Vico,
emerge a relação com o campo de problemas do marxismo; relação que,
em virtude do recato e compostura de Auerbach, jamais ganha referên-
cias ou menções explícitas. Agora de modo ainda mais esquemático,
assinalo que:
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Por fim, como mais acima lancei mão de Luiz Costa Lima, faz-se mis-
ter reconhecer também sua objeção, de que “o problema do realismo não
está em suas metamorfoses, mas sim na afirmação do indivíduo como
constante” (Lima, 1986, p. 418). Mas creio não compreender por inteiro o
ponto: é evidente que Auerbach considerava o indivíduo intrinsecamente
histórico, e talvez se quisesse dizer “sujeito”. Haveria um sujeito contínuo,
que se metamorfosearia em indivíduos históricos concretos e particula-
res. Nesse sentido, a crítica a se fazer ao procedimento de Auerbach seria
similar à que foi feita, ao final do século passado, às filosofias da consciên-
cia, na defesa de algo como um linguistical turn27. 27.Ver, a título de
Os leitores familiarizados com a obra e o pensamento de Erich Samuel exemplo, Habermas
Israel Auerbach sabem que deixei de lado, neste artigo, muitos de seus (1985, pp. 346-347). O
mesmo Luiz Costa
textos e idéias. O intuito foi apenas indicar um nexo de problemas e pos-
Lima enveredou pela
sibilidades, que pedem desenvolvimento. Entre outras coisas, o programa discussão do “sujeito”
auerbachiano superpunha-se ao programa da sociologia de sua época, e em seu ajuste de con-
por essa razão faz sentido, para nós hoje, retomá-lo como sociólogo. Se tas com o problema da
hoje a sociologia sente-se mais segura em suas pretensões identitárias – mimesis (cf . Lima,
2000).
cognitiva, histórica, institucional –, por outro lado, em função de sua pró-
pria diferenciação disciplinar, não deve (ao menos em meu entender) ab-
dicar da pretensão de ser uma teoria da sociedade. Nesse sentido, a filologia
de Auerbach vive, forte e desafiadora.
Referências Bibliográficas
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Erich Auerbach sociólogo
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junho 2004 89
Erich Auerbach sociólogo
Resumo
Desde cedo as pesquisas de Erich Auerbach foram tomadas, por seus contemporâ-
neos, como contribuições à sociologia da literatura. Contudo, esse aspecto sempre foi
considerado secundário, ofuscado pela empreitada gigantesca da sua escrita da histó-
ria e por seus estudos “filológicos”. Este texto pretende destacar Auerbach como
sociólogo, indicando em que medida sua obra dá ensejo a uma sociologia de literatu-
ra e permanece um desafio para os sociólogos.
Palavras-chave: Sociologia da literatura; Erich Auerbach; Filologia; Intelectuais; Re-
pública de Weimar.
Abstract
Leopoldo Waizbort é
professor de sociolo-
gia na USP.
junho 2004 91