Livro Comissao Da Verdade UFES
Livro Comissao Da Verdade UFES
Livro Comissao Da Verdade UFES
COMISSÃO DA
Relatório Final
VERDADE
Comissão da Verdade da Universidade Federal do Espírito Santo (CVUfes)
UFES
Vitória (ES), 2016
Paulo Velten
Subcoordenador da CVUfes e Professor do Departamento de Direito
Wellington Pereira
Técnico-administrativo em educação e representante do Sindicato dos Trabalhadores
da Ufes (Sintufes)
Nevitton de Souza
Discente
Fotos
Arquivo da CVUfes
Capa: adaptação da foto “Inside Alcatraz 7”, de FreeImages.com/Lauren J
VERDADE
Apresentação ..............................................................................................................................9
Introdução .................................................................................................................................11
Reinaldo Centoducatte
Reitor da Ufes
APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO
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Uma das primeiras medidas dos militares depois que tomaram o poder foi es-
truturar a criação de um órgão voltado para a vigilância, o monitoramento e o
controle político da sociedade organizada. Assim, três meses após o golpe, foi
estabelecido o Serviço Nacional de Informação (SNI). Entretanto, devido ao cli-
ma de suspeição anticomunista instalado no país na época, a ditadura iniciou a
montagem de um amplo aparato repressivo para monitorar todos os setores da
sociedade.
Com esse objetivo, foram criadas as chamadas Divisões de Segurança e Infor-
mação (DSIs), que passaram a atuar no interior dos órgãos governamentais, in-
clusive nos ministérios civis, sendo implantadas também em vários órgãos da
estrutura estatal – especialmente no âmbito dos ministérios civis e militares.
Como consequência de sua história de atuação política, as universidades e,
principalmente, os estudantes e a intelectualidade, passariam a ocupar espaço
privilegiado nas atividades dos órgãos de repressão. Sendo assim, gradativamen-
te, esse processo passaria a tomar corpo ao longo da segunda metade da década
de 1960 e chegaria ao auge em meados dos anos 1970.
Para assessorar as atividades de vigilância junto às DSIs, foram criadas as cha-
madas Assessorias de Segurança e Informação (ASIs) e as Assessorias Especiais
de Segurança e Informação (Aesis) em toda a estrutura estatal civil e militar, que
incluiu autarquias, fundações, empresas estatais e demais órgãos públicos. Em
tese, o objetivo era monitorar possíveis casos de corrupção e a atuação de “comu-
nistas” dentro dos ministérios, repartições públicas e autarquias1.
Assim, a estrutura repressiva ganhou musculatura administrativa e burocrática
1 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Incômoda Memória: os arquivos das ASI universitárias. Rio de Janei-
ro: Acervo, v. 16, p. 44.
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Manifestação estudantil no centro de Vitória, outubro de 1968. Acervo: Arquivo Público do Estado do
Espírito Santo (Fundo: DOPS/ES).
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3 É possível encontrar outras denominações para esse tipo de procedimento, tais como: Inquéri-
tos Administrativos ou Processos Administrativos.
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NOTA METODOLÓGICA
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vos. Esses documentos, em sua maioria, tratam da vigilância dos militantes es-
tudantis, da abertura de inquéritos contra servidores, do confisco de material e
documentos, de prisões etc.
Toda essa busca permitiu que, até março de 2015, fossem recuperadas 1.400 pá-
ginas de documentos em quase todos os centros de ensino da Ufes. A princípio,
esse conjunto documental passou por um processo de higienização, tarefa realiza-
da por discentes dos departamentos de Arquivologia e de História, sob a orientação
da CVUfes, nas dependências do Siarq. Os passos seguintes, que ocorreram em
uma sala destinada especificamente para as atividades da Comissão da Verdade,
foram de organização, descrição e digitalização dos documentos.
Por sua vez, o GT Entrevistas ficou responsável pela coleta dos depoimentos de
pessoas da comunidade acadêmica que vivenciaram diretamente aquele período.
Ao todo, foram 15 entrevistas com ex-estudantes, ex-professores e ex-funcioná-
rios. O critério para o convite aos depoentes foi o de estarem ligados a casos que
envolveram graves violações dos direitos humanos, ou seja, pessoas que foram
presas, torturadas, processadas ou expulsas da Universidade.
Inicialmente, os depoimentos foram realizados reservadamente no estúdio
da Secretaria de Ensino a Distância. Em um segundo momento, ainda seguindo
orientações da Comissão Nacional da Verdade, foram realizadas três audiências
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ES), o qual teria seu mandato parlamentar cassado pelo primeiro Ato Institucio-
nal da ditadura, depois conhecido como AI-1.
Na reunião, fazendo referência à “situação difícil que o Brasil atravessava e
à atitude de outras universidades da federação que de alguma maneira haviam
manifestado sua solidariedade ao Movimento Democrata Revolucionário” 5, Paes
Barreto propôs ao Conselho Universitário que fosse votada a redação de uma
nota à imprensa, na qual seria afirmada a sua linha “democrática” e de toda a
Universidade. Vários conselheiros se manifestaram, mas o Conselho avaliou que
não era necessária a redação de qualquer nota à imprensa, alegando que a “linha
democrática” do magnífico reitor era deveras “conhecida”.
Poucos dias depois, em 12 de abril de 1964, coube ao deputado federal Dirceu
Cardoso, então parlamentar do Partido Social Democrático (PSD), em matéria
publicada no jornal A Gazeta, informar que Paes Barreto Filho havia sido exone-
rado do cargo de reitor da UES pelo novo ministro da Educação, Flávio Suplicy
de Lacerda, com base na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e
“atendendo o interesse da Segurança Nacional” 6.
Foi também o parlamentar capixaba, cujo papel havia sido fundamental para
a federalização da UES em 1961, que informou que o professor Fernando Duarte
Rabelo seria o indicado de forma interina para a função, até que fosse enviada
ao Governo Federal uma nova lista tríplice visando à escolha definitiva do novo
reitor. Destituído, Paes Barreto não compareceu à reunião do Conselho Univer-
sitário realizada no dia seguinte, 13 de abril, presidida pelo vice-reitor, Alaor
de Queiroz Araújo.
O vice-reitor informou que, até aquele momento, não tinha conhecimento
oficial da intervenção, mas que haviam sido publicadas notícias nos jornais do
país de que Paes Barreto fora afastado de suas funções, e ele teria procurado o
professor Fernando Duarte Rabelo, também presente à reunião, o qual lhe havia
informado que também não tinha conhecimento oficial de tal ato.
De acordo com Queiroz Araújo, Rabelo o aconselhara a assumir o cargo que
havia sido transferido a ele devido à ausência do reitor. O futuro reitor ainda lhe
relatou que entrara em contato com o então comandante do 3º Batalhão de Ca-
çadores (BC), coronel Newton Fontoura Reis, transformado em “representante”
do “Comando Revolucionário” no Espírito Santo, e este teria concordado que ele
5 Ibid.
6 PAES Barreto Filho não é mais reitor: anuncia Dirceu Cardoso. A Gazeta, Vitória, 1964, p. 3.
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foi substituída por um decreto presidencial que exonerou Barreto Filho, baixado
em 14 de abril de 1964 11.
Memorando sobre o
afastamento do Reitor
Manoel Xavier Paes
Barreto Filho, 1964.
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disse para o reitor que ele teria que ir ao Rio de Janeiro, mas a mãe de Marcelo
exigiu que o filho acompanhasse Manoel Xavier Paes Barreto, com receio de que
acontecesse algo com ele lá.
Marcelo Paes Barreto disse ainda que seu pai tinha uma amizade muito forte
com o presidente João Goulart, que costumava vir com frequência ao Espírito
Santo, o que teria causado muita “ciumeira” em alguns setores. Ele recorda
que chegou a almoçar algumas vezes em Brasília e a participar de churrascos
organizados pela equipe do presidente João Goulart num sítio localizado em
Domingos Martins/ES.
Apesar de ainda adolescente, Marcelo se lembra de um personagem que era
ligado aos militares: Alberto Monteiro 15. “Ele era covarde. Esse pessoal faz isso,
denuncia, mas foi lá dar um beijo, aquele amigo de Jesus. Eu me lembro de uma
vez, que quando ele entrou lá em casa, minha mãe deu um estouro nele: ‘o que é
que o senhor está fazendo? Por que o senhor está denunciando meu marido?’.”
15 Para mais informações sobre a atuação de Alberto Monteiro, ver parte final do relatório.
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ta” nas entidades estudantis e que essa “orientação esquerdista” vinha da UNE. O
documento também acusa a Juventude Universitária Católica (JUC), sob a orien-
tação dos padres Waldyr e Franz Victor, religiosos conhecidos como progressis-
tas, de usar a chamada doutrina social da Igreja para divulgar ideias políticas.
Entre as sugestões apresentadas pela comissão de inquérito, estava a destitui-
ção da diretoria do DA, que deveria ser substituída por uma comissão formada
por três alunos para realizar novas eleições para a entidade; vedação da partici-
pação de entidades estudantis em qualquer atividade de natureza política; inves-
tigação da participação da ex-aluna Heloísa Gomes de Almeida em movimentos
de natureza “subversiva”; e que fossem “revistas” pelas autoridades a orientação
político-social ministrada pela JUC e pela Juventude Estudantil Católica (JEC),
ambas ligadas à Igreja Católica.
Da comissão de inquérito da antiga Faculdade de Ciências Econômicas da UES,
somente conseguimos descobrir que ela foi criada pela Portaria nº 4, de 15 de
maio de 1964, sendo composta pelos professores Antônio Lugon (presidente),
Sebastião Júlio e Mário Ferreira Sacramento 30.
Por meio de ofícios assinados pelo reitor Alaor de Queiroz Araújo, também foi
possível constatar que os integrantes da comissão de inquérito da Escola Poli-
técnica foram os professores Sebastião Magalhães Carneiro 31, Jorge Minassa 32 e
Luiz Moreira Barbirato 33. Os documentos eram dirigidos aos órgãos e empresas
em que eles também trabalhavam na época, solicitando que fossem liberados
para dedicar tempo integral à investigação pelo prazo de 30 dias, entre 15 de
maio e 15 de junho daquele ano.
Logo depois de empossado como reitor nomeado pela ditadura, o professor
Fernando Duarte Rabelo enviou para o ministro Flávio Suplicy de Lacerda, pelas
mãos do novamente vice-reitor Alaor de Queiroz Araújo, os inquéritos adminis-
trativos montados pela Reitoria, pela FAFI, pela Faculdade de Direito e pela Es-
cola Politécnica 34.
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Aldemar de Oliveira Neves, médico e professor da então UES, junto com o ex-
-reitor Paes Barreto, talvez tenha sido a principal vítima da primeira onda re-
pressiva deflagrada pela ditadura na Universidade depois do golpe de 1º de abril.
Em 13 de junho de 1964, Oliveira Neves teve seus direitos políticos cassados com
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base no AI-1, o que seria o pretexto para sua demissão arbitrária da Universidade,
determinada pelo então reitor Fernando Duarte Rabelo.
Em 1964, Aldemar de Oliveira Neves era médico parasitologista, com pesquisas
publicadas em nível nacional, e também conhecido no Espírito Santo pela sua
militância comunista. Nascido em 1905, em São Mateus, o médico foi prefeito
do município em 1929. Mais tarde, aderiu ao PCB e participou de diversas lutas
e campanhas lideradas pelo partido no período entre 1945 e o golpe de 1964. O
médico presidiu o Centro Regional de Estudos e Defesa do Petróleo e da Econo-
mia Nacional e, durante o período anterior ao golpe, foi diversas vezes preso por
motivos políticos.
Intelectual respeitado, o médico participou do Instituto Histórico e Geográfi-
co do Espírito Santo (IHGES), realizando pesquisas e escavações arqueológicas,
chegando a publicar estudos como “Cerâmio da Sapucaia”, em 1943 40. Em 1958,
visitou a União Soviética (URSS) e outros países socialistas, escrevendo um livro
sobre suas experiências, que acabou não sendo publicado. Em 1962, foi lançado
candidato a deputado estadual pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB).
Apesar de preso logo depois do golpe, como afirmamos anteriormente, Alde-
mar de Oliveira Neves foi poupado no relatório da Comissão de Inquérito Admi-
nistrativo da Faculdade de Medicina da UES. De acordo com um ofício do DOPS/
ES, Oliveira Neves havia sido detido “várias vezes”, bem como processado em 16
de novembro de 1949, por infringência ao Decreto-lei nº 431. “Quanto aos últi-
mos acontecimentos políticos nacionais, no que se refere ao esquema de subver-
são comunista que se articulava em todo país, tem ele também uma participação
ativa, motivo por que temos em andamento diversas outras providências 41”.
Mas, Aldemar de Oliveira Neves acabaria tendo seu contrato com a UES res-
cindido pelo reitor Duarte Rabelo, por meio da Portaria nº 434, de 25 de agosto
de 1964, com efeito retroativo a 13 de junho do mesmo ano, data da publicação
do decreto que cassou seus direitos políticos. Para isso, Duarte Rabelo teve que
revogar outra portaria, baixada por ele mesmo, que havia prorrogado uma licen-
ça médica concedida ao médico para tratamento de saúde, com base num laudo
assinado por três médicos e confirmado pela Junta Federal de Saúde, o qual mos-
trava que o professor era portador de uma cardiopatia grave.
Num despacho dado no processo referente à licença médica de Oliveira Neves,
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Apesar do conselho da Assessoria Jurídica da UES para que fosse feita a cobran-
ça judicial a Oliveira Neves, o reitor preferiu mandar arquivar o processo. O mé-
dico morreu na década de 1970, antes da Lei da Anistia de 1979. Em 1994, diante
de uma campanha iniciada pelo então vereador de Vitória e ex-preso político
Perly Cipriano, o Conselho Universitário da Ufes decidiu conceder ao professor
e médico o título de “Professor Emérito Póstumo” 48. O título foi entregue numa
sessão solene realizada pelo Conselho em 29 de agosto daquele ano.
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faziam parte seis membros de sua família, dois deles servidores públicos 49.
Com base no documento, por meio do Ofício nº 28-CIP, de 6 de julho de 1964,
o chefe da 3ª Circunscrição de Recrutamento (CR), coronel Henrique Ramos de
Moura, designado pelo comandante do 3º BC e da Guarnição Militar do Espíri-
to Santo, coronel Newton Fontoura Reis, para coordenar os IPMs resultantes da
aplicação do AI-1 no Espírito Santo, determinou a instalação de um inquérito
para investigar as denúncias no município, nomeando como encarregado o 2º
tenente Juracy Sarmento.
O IPM foi instalado em 14 de julho de 1964, nas dependências do Fórum do
município e concluído em menos de duas semanas. Sobre Renato Soares, o te-
nente Sarmento fez questão de assinalar que se tratava de estudante da FAFI, em
Vitória, “declaradamente subversivo” e filiado à UNE, com manias de liderança
em todo meio que se encontrava e “grande admirador” da política anterior ao
golpe. Rômulo Araújo, então vice-prefeito de Muniz Freire, foi “acusado” de ser
ligado ao PTB e de ser admirador de João Goulart, Leonel Brizola e Fidel Castro.
Os depoimentos mostram que o “Grupo dos 11” de Muniz Freire havia sido for-
mado poucos dias antes do golpe e não chegou a realizar nenhuma reunião.
O IPM foi enviado para a 3ª Auditoria Militar do Rio de Janeiro e, em 19 de feve-
reiro de 1965, o Ministério Público Militar (MPM) ofereceu denúncia de uma pági-
na contra nove integrantes do Grupo dos 11 de Muniz Freire 50. Sem mais explica-
ções, o promotor do caso deixou de denunciar o vereador Walfredo Ribeiro Soares
e outros dois integrantes do grupo, Lino Ribeiro Soares e Mário Ribeiro Soares.
Importante destacar que o Conselho de Sentença da 3ª Auditoria Militar do Rio
de Janeiro, formado por um juiz togado e três militares, em julgamento realizado
em 10 de setembro de 1965, acatou, por três votos a um, o pedido feito pelos ad-
vogados dos acusados sobre a incompetência da Justiça Militar para julgar o caso,
determinando que os autos fossem para a Justiça Comum 51. No entanto, em 3 de
novembro do mesmo ano, a decisão foi reformada pelo Superior Tribunal Militar
(STM), atendendo a um recurso do MPM 52.
O processo foi enviado novamente para a 3ª Auditoria Militar do Rio de Janeiro,
onde aconteceu o julgamento, realizado em 28 de janeiro de 1966. Os nove acu-
sados não compareceram e foram julgados como revéis. Um advogado de ofício
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foi nomeado no mesmo dia para ser o curador dos réus e fazer a sua “defesa”. No
final, por maioria de votos, Jonatas Ribeiro Soares foi condenado a um ano de
prisão, enquanto Renato Viana Soares, Jair Ribeiro Soares, Rômulo de Araújo,
Carlinhos José de Arêas, Ilton Vieira, Ângelo Cizotto, Mauro Rodrigues de Olivei-
ra e Nélson Bolzan receberam a sentença de seis meses.
O juiz togado José Garcia de Freitas votou pela absolvição dos acusados, por
entender que a prova conseguida nos autos era insuficiente para motivar a con-
denação, a qual ficou por conta dos votos dos auditores militares. Renato Soares
explicou que os nove acusados não compareceram ao julgamento, no Rio de Janei-
ro, porque a maioria não tinha dinheiro e, se fossem condenados, ficariam presos
lá. “Aí foi combinado que ninguém iria comparecer. Eu fui lá depois, clandestino,
para verificar o processo e a possibilidade de recurso. Só podia recorrer quem es-
tivesse cumprindo a pena. Houve recurso, mas as penas foram confirmadas 53”.
O então estudante cumpriu sua pena no Quartel do CBM, na Praça Misael Pena.
Os outros oito condenados, inclusive o seu pai, Jair Ribeiro Soares, que foi de-
mitido da Prefeitura Municipal de Cachoeiro de Itapemirim, ficaram presos no
Fórum de Muniz Freire. Na prisão, Soares conta ter sofrido algumas ameaças e
que houve uma tentativa de simular uma fuga sua, mas que ele conseguiu evitar.
Com relação às aulas na FAFI, o ex-líder estudantil relata que os professores con-
tinuaram lhe dando presença e aceitavam os trabalhos que ele enviava, os quais
eram levados por duas irmãs de caridade que estudavam com ele.
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isso é, o ensino primário, médio e superior, a articulação entre os diversos níveis, o treinamento de
professores e a produção e veiculação de livros didáticos. Entre 1964 e 1968 foram firmados 12
acordos.
63 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Ofício nº 62-R, de 3 de junho de 1966.
64 Ibid.
65 Id. Ofício nº 650-R, de 21 de junho de 1966.
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pessoas, pelo período de dois anos. Pelo artigo 3º, o reitor foi autorizado a destacar,
do fundo destinado à Cidade Universitária, a importância de Cr$ 50 milhões para
atender às despesas iniciais dos estudos e planejamentos especificados na Mensa-
gem nº 6/66, bem como às que fossem necessárias ao seu adequado funcionamento.
A Comissão de Planejamento foi inicialmente presidida pelo professor da Es-
cola Politécnica, José Manuel da Cruz Valente, substituído posteriormente pelo
professor Ivan Ramos de Medeiros, que faleceria em maio de 1967. Assim, assu-
miu a presidência Marcello Antônio Basílio. Também compuseram a comissão
Stélio Dias, Manoel Ceciliano Salles de Almeida e Enildo Carvalhinho.
Atcon apresentou o projeto de reestruturação para a comissão em dezembro de
1966. O Plano de Reestruturação Acadêmico-Científica da Ufes, elaborado com
base na proposta do técnico da USAID, foi entregue aos membros do Conselho
Universitário na reunião realizada em 4 de abril de 1967. No entanto, antes mes-
mo que o plano fosse aprovado pelo órgão colegiado superior, quando o técnico
da USAID já ocupava a Secretaria Executiva do Conselho de Reitores das Univer-
sidades Brasileiras (CRUB), o projeto foi transformado em livro e publicado pela
editora da Universidade Federal de Santa Catarina 66.
Por meio da Mensagem nº 4, de 4 de abril de 1967, ao enviar o Plano de Rees-
truturação para apreciação do Conselho Universitário, o reitor Alaor de Queiroz
Araújo esclareceu que a nova estrutura acadêmico-científica se encontrava den-
tro do espírito que norteava a política para o ensino superior preconizado pela
ditadura militar no Decreto-lei nº 53, de 18 de novembro de 1966, suplementado
pelo Decreto-lei nº 252, de 28 de fevereiro de 1967 67. Os dois decretos-lei foram
editados depois que a Comissão de Planejamento já havia sido criada pela Ufes e
Atcon apresentado sua proposta de reestruturação da Universidade, que envolvia
até um plano de zoneamento do campus.
No final da mesma reunião de 4 de abril de 1968, o reitor Queiroz Araújo deter-
minou a distribuição do Volume I do Plano de Reestruturação Acadêmico-Cien-
tífica para os integrantes do Conselho Universitário, dando início à discussão do
projeto naquele órgão, o que se estenderia até o mês de julho. Naquele momento,
eram representantes discentes o presidente do DCE, Jorge Augusto Pires Encar-
nação, e o conselheiro Rodrigo Loureiro Martins, ambos identificados com po-
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sições próximas ao governo. Não há qualquer registro que essa discussão tenha
sido levada para o conjunto dos estudantes.
Ainda segundo Caetano (2013), com a eleição de uma nova diretoria do DCE
no final de maio de 1966, em pleito indireto, a representação estudantil mudou,
com o então estudante de Direito Carlos Magno Gonzaga Cardoso assumindo
a vaga como novo presidente da entidade. Segundo ele, Cardoso era conhecido
por suas posições moderadas e conciliatórias, embora participasse de uma gestão
mais à esquerda. Já o ex-presidente do DCE Jorge Augusto Pires Encarnação foi
reconduzido ao Conselho na condição de representante discente. A discussão e a
votação das emendas ao projeto começaram na sessão de 12 de julho de 1967 e se
estenderam até 17 de julho de 1967.
Na sessão do Conselho Universitário realizada na tarde de 17 de julho de 1967,
os conselheiros aprovaram o parecer do conselheiro Emílio Roberto Zanotti, fa-
vorável ao Plano de Reestruturação, com o voto contrário apenas do conselheiro
João Luiz Horta Aguirre, representante da Faculdade de Odontologia, por ques-
tões estritamente corporativistas.
Os dois representantes estudantis Carlos Magno Gonzaga Cardoso e Jorge Au-
gusto Pires Encarnação votaram pela aprovação do projeto. Lideranças estudan-
tis da época, como José Cipriano da Fonseca e Antônio Caldas Brito, dizem que o
presidente do DCE não teria discutido suas posições na diretoria da entidade. De
qualquer forma, também não há nenhum indício de que o conjunto do ME tenha
mobilizado os estudantes ou debatido melhor o tema.
No geral, as emendas aprovadas não alteraram nada de substancial no plano. Na
mudança mais importante, os conselheiros aprovaram a emenda do conselheiro
Nelson Abel de Almeida, que propunha a supressão do Departamento de Educação
do Centro de Estudos Gerais (CEG) e acrescentava o Centro Pedagógico (CP) à estru-
tura de centros que seriam constituídos. Foi definida também a mudança do nome
dado por Atcon ao Centro de Ciências da Saúde para Centro Biomédico (CBM). O
Centro de Educação Física e Esporte recebeu o nome de Centro de Educação Física e
Desportos (CEFD). O Centro de Ciências Sociais, por decisão do Conselho Universi-
tário, receberia o nome de Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas (CCJE).
Uma emenda proposta pelo professor Ademar Martins definiu que o Centro
Agropecuário, que ainda não havia sido criado, deveria ser localizado no inte-
rior, em cidade a ser definida após estudos prévios, na época de sua instalação 68.
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Como dissemos, não existe nenhuma referência de uma discussão mais aprofun-
dada da parte do ME ou do conjunto dos estudantes sobre o projeto. Em nenhum
momento, os representantes discentes afirmaram ter encaminhado propostas a
serem discutidas com os estudantes.
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Além das comissões de inquérito abertas logo depois do golpe de 1964, o regi-
me militar manteve constante monitoramento político sobre a comunidade aca-
dêmica da Ufes, apesar de ainda não contar em sua estrutura com um órgão que
fosse responsável pela vigilância interna das atividades consideradas “subversi-
vas”. No material analisado pela CVUfes, foram encontrados vários documentos
que tratam do levantamento de informações, principalmente sobre as práticas
políticas por parte de estudantes, professores e servidores.
São documentos oriundos, entre outros, dos seguintes órgãos: Superinten-
dência Regional do Departamento da Polícia Federal (DPF) no Espírito Santo,
Departamento de Ordem Política e Social do Espírito Santo (DOPS/ES), Divisão
de Segurança e Informação do Ministério da Educação e da Cultura (DSI/MEC),
Serviço Nacional de Informações (SNI), Ministério da Justiça (MJ), Centro de In-
formações do Exército (CIE), Centro de Informações da Marinha (CENIMAR) e
Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA).
Considerando as quatro ondas repressivas apontadas por Fagundes 75, este tó-
pico irá tratar do período entre 1967 e 1969, que corresponde à fase de ascenso
das mobilizações estudantis contra a ditadura, as quais foram duramente golpea-
das no final de 1968 com o recrudescimento da repressão depois que foi promul-
gado o Ato Institucional nº 5 (AI-5) e, no âmbito das universidades, o Decreto-lei
nº 477/1969. Especialmente a partir de 1968, os documentos mostram a evolução
do processo de endurecimento da repressão dentro da Ufes.
Entretanto, já existiam algumas práticas antecedentes, como registramos an-
teriormente, inclusive com a troca de documentos oriundos do DOPS/ES e da
DSI/MEC. Um ano após o encerramento das comissões de inquérito instaladas
em todas as unidades da Ufes, depois do golpe de 1964, em 9 de agosto de 1965,
o então diretor da Escola de Belas Artes, Raphael Samú, como possivelmente
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professores que então trabalhavam na unidade naquela época. A resposta veio pelo
Ofício nº 303/67, por meio do qual o delegado informou que nada constava nos
arquivos daquela delegacia sobre a conduta ideológica e política dos professores.
professor Affonso Bianco. Trata-se do Ofício Circular nº 78/67-R, assinado pelo vice-reitor em
exercício, professor Décio Neves da Cunha, enviado em 5 de outubro de 1967.
77 Ofício Circular nº 80/67, assinado pelo chefe de Gabinete do Reitor, Rômulo Augusto Penina,
enviado ao professor Affonso Bianco, diretor da Faculdade de Medicina, em 17 de outubro de 1967.
78 Ofícios nos 1155 a 1166; 1171 a 1199; 1227 a 1235/67, datados de 9, 10 e 14 de novembro
de 1967.
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que causaram todo o confronto. Inicialmente, o valor imposto pela Reitoria era
de CR$ 1,00, reduzido depois para CR$ 0,80 e, finalmente, para CR$ 0,50, o que
acabou levando ao encerramento do movimento dos estudantes.
Logo depois da mobilização contra os preços do RU, com a comoção causada
em todo o país pelo assassinato de Edson Luis de Lima Souto, os estudantes capi-
xabas organizaram uma manifestação no dia 3 de abril de 1968, depois de um ato
realizado na Catedral Metropolitana de Vitória em homenagem ao secundarista
morto pela Polícia no Rio de Janeiro, que terminou com uma passeata e uma
manifestação em frente ao prédio do RU. De acordo com o jornal A Gazeta 86, a
manifestação contou com a participação de cerca de três mil pessoas.
No final da passeata, os estudantes decidiram homenagear Edson Luis de Lima
Souto colocando simbolicamente o nome dele no prédio do RU, afixando uma
faixa que lá permaneceu por meses. O jornal A Gazeta registrou a realização de
três prisões naquele dia, duas das quais ocorridas no aeroporto da Capital, mas
simplesmente não mencionou os nomes dos presos. De acordo com o Jornal do
Brasil 87, José Aldo da Conceição, que dizia ter chegado a Vitória um mês antes, foi
preso pela polícia no retorno da passeata do RU para a Praça Oito.
Uma nova manifestação aconteceu três dias depois, em 6 de abril de 1968, com
a participação de cerca de 2 mil estudantes, de acordo com A Gazeta. Dessa vez,
houve confronto com a polícia e os estudantes queimaram uma bandeira dos
Estados Unidos (EUA) nas escadarias do Palácio Anchieta. O líder estudantil Ce-
sar Ronald Pereira Gomes chegou a ser preso, mas foi arrancado das mãos dos
policiais pelos estudantes, que cercaram o camburão em que ele seria levado 88.
A mobilização contra os preços do RU e os protestos contra a morte de Edson
Luis transformaram Cesar Ronald na principal liderança estudantil no estado,
naquele momento, o que alavancou sua eleição para presidente do DCE por meio
de uma chapa única, em eleições diretas organizadas pelas entidades estudantis.
Dessa forma, elas contornaram as exigências do DL 228/67, o qual determinava
que as eleições devessem ser feitas de forma indireta, com a participação apenas
dos presidentes dos Centros Acadêmicos e Diretórios Acadêmicos (CAs e DAs) e
um representante estudantil de cada faculdade.
86 VEEMÊNCIA (com disciplina) em protesto dos estudantes. A Gazeta, Vitória, p. 1, 4 abr. 1968.
87 SITUAÇÃO nos Estados. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, p. 7, 4 abr. 1968.
88 CAETANO, Alexandre. Movimento Estudantil no Espírito Santo 1964/1969: da ditadura militar
à reestruturação da Ufes. 2013. Monografia (Graduação em História), Universidade Federal do
Espírito Santo, Vitória, 2013, p. 38.
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89 O professor Ademar Martins era pai de outra líder estudantil da época, Jussara Lins Martins,
então vice-presidente da UEE e militante da Ação Popular (AP).
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de Janeiro para responder a um IPM 94. Essas prisões só puderam ser esclarecidas
por meio da consulta ao acervo digital do projeto Brasil Nunca Mais 95. As prisões
de Maria Augusta e Délio Fernandes da Rocha foram provocadas por uma outra,
no Rio de Janeiro, do estudante secundarista Gilson Rosalém, que depois de sub-
metido à tortura, citou os nomes deles em depoimento.
O secundarista era namorado da irmã da estudante da FAFI e havia se muda-
do meses antes de Vitória para o Rio de Janeiro, onde foi preso com um pedaço
de papel contendo o que parecia ser uma senha (“vim apanhar a encomenda de
Colatina”) e uma contrassenha (“infelizmente não estive com a Regina”). Em-
bora não fosse militante, os agentes da repressão chegaram até ele depois que
encontraram, num aparelho da AP estourado no Rio de Janeiro, um papel em que
estava escrito o seu endereço e a mesma senha e contrassenha.
Nos depoimentos das dezenas de pessoas presas, não havia nada que envolvesse
o nome de Délio com a AP. Já no caso de Maria Augusta, os militares encontraram
em sua casa exemplares do jornal clandestino da AP, Libertação, cartas e outras
publicações. Além disso, ela teve o nome citado no depoimento de dois outros
presos como sendo representante do Espírito Santo no Comitê Regional 4 (R-4)
da AP, que envolvia também os Estados da Guanabara e do antigo Rio de Janeiro.
Os dois foram levados para o quartel do Batalhão de Manutenção da Divisão Blin-
dada, no Rio de Janeiro, onde ficaram presos por dez dias e tiveram que prestar
depoimento, sendo submetidos à acareação com Rosalém. Maria Augusta Feliciano
da Silva foi denunciada na 2ª Auditoria Militar da Marinha, no Rio de Janeiro, junta-
mente com outras 23 pessoas, mas o processo somente foi julgado em 16 de abril de
1974, quase seis anos depois das prisões, quando todos foram, finalmente, julgados
e absolvidos pelo Conselho de Sentença da 2ª Auditoria Militar da Marinha.
Em nível nacional, devido à repressão cada vez mais violenta por parte da di-
tadura, o Movimento Estudantil (ME) já vivia o início de um processo de refluxo
das manifestações quando, em 12 de outubro de 1968, cerca de 700 lideranças
estudantis de todo o país foram presas durante a tentativa de realização clan-
destina do XXX Congresso da UNE em um sítio localizado na cidade de Ibiúna,
94 MARIA AUGUSTA está presa no Rio e responde a IPM. O Diário, p. 1, 18 de jun. 1968.
95 htpp//: www.bnm.mpf.mp.org.br.
58
96 FAGUNDES, Pedro Ernesto. Memórias silenciadas: catálogo seletivo dos panfletos, cartazes e
publicações confiscadas pela Delegacia de Ordem Política e Social do Estado do Espírito Santo -
DOPS/ES (1930-1985). 1. ed. Vitória: GM Editora, 2012, p. 28.
59
Ficamos seis dias lá. Sofri muitas humilhações e tortura psicológica. Numa
cela para 12 pessoas, havia 104. Fazíamos rodízio para dormir e para comer e,
obviamente faltava comida. Nós sabíamos que algumas lideranças estavam sen-
do separadas, como Vladimir Palmeira, César Ronald, José Dirceu, Travassos e
outras que não lembro agora. Ficamos lá durante seis dias, no sétimo dia fomos
trazidos sob escolta para o Espírito Santo. 97
60
100 Ibid., p. 5.
101 GUIMARÃES, Ewerton Montenegro Guimarães. Requerimento de anistia protocolado na
Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Vitória, 18 dez. 2001, p. 6.
61
102 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Portaria nº 3.779. Diário Oficial da União, Seção 1, 30 nov. 2010, p.
94.
62
Assim, por exemplo, os diretores das oito faculdades que compunham a Ufes
receberam o Ofício Circular nº 40 do Gabinete do Reitor, de 13 de maio de 1968,
assinado por Penina, no qual foi anexada cópia autêntica de um informe da DSI/
MEC referente à realização, entre 28 de julho e 6 de agosto daquele ano, em Sofia,
na Bulgária, do IX Festival Mundial da Juventude.
Assinado pelo então diretor da DSI/MEC, Waldemar Raul Torola, o documento
revela a preocupação da ditadura com o fato de que, segundo ele, o evento tivesse
como objetivo a “unificação dos movimentos estudantis e da juventude em todo
mundo” e que, portanto, seria “inconveniente” a participação dos estudantes
brasileiros.
De acordo com o informe, o governo da Colômbia havia anunciado a autoriza-
ção para a entrada em porto colombiano de um navio da União Soviética (URSS)
destinado ao transporte de delegações para o festival, e que tal embarcação faria
escala também em outros países da América Latina 103. A preocupação da DSI/
MEC é que, dessa maneira, delegações de países onde o navio não visitaria, como
o Brasil, poderiam se deslocar para os portos onde a embarcação faria escala,
beneficiando-se do transporte.
Mas, nem sempre os documentos dos órgãos de informações passaram pela
Reitoria. Muitas vezes eles eram enviados diretamente para as faculdades, como
o Ofício Confidencial Circular nº 17/DSI/SI/MEC/68, enviado pelo diretor da DSI/
MEC, que solicitava a relação dos militares que eram discentes nas unidades da
Universidade. De acordo com o ofício, a relação deveria conter nome, graduação,
unidade militar a que pertencia e curso que frequentava o referido aluno. Essa
solicitação foi feita de acordo com o Art. 21 do Decreto nº 62.803, de 3 de junho
de 1968, publicado no Diário Oficial da União em 10 de julho daquele mesmo ano.
O que chamou a atenção foi um carimbo que alertava que o destinatário era
responsável pela manutenção do sigilo do documento. Provavelmente, tal do-
cumento foi enviado para todas as faculdades, mas a CVUfes somente conseguiu
localizar a resposta da Faculdade de Direito, por meio do Ofício s/nº, de 3 de ou-
tubro de 1968, no qual enviou uma lista contendo o nome de sete militares que
estavam matriculados na unidade naquele ano, sendo seis da PM (cinco oficiais e
um suboficial) e um capitão do Exército.
Três dias depois da invasão policial que decretou o fim do Congresso da UNE, o
103 A Comissão da Verdade localizou cópias do ofício enviadas para os diretores da Escola
Politécnica e da Faculdade de Direito, respectivamente, professores Filemon Tavares e Ademar
Martins.
63
104 Na documentação encontrada das unidades, a Comissão da Verdade localizou cópias do ofício
circular que foram enviados para os diretores da Faculdade de Medicina, da Faculdade de Direito e
da Escola de Belas Artes, respectivamente, Affonso Bianco, Ademar Martins e Nórdia de Luna Freire.
105 José Carlos Cipriano da Fonseca, conhecido como Zezinho Cipriano, histórica liderança
estudantil do Espírito Santo na década de 1960, disse não lembrar da prisão. Da mesma forma
como não lembrou de ter prestado depoimento para a Comissão de Inquérito da Faculdade de
64
Medicina, logo depois do golpe de abril de 1964, cuja cópia foi obtida pela Comissão da Verdade.
O ex-líder estudantil alega não ter uma memória muito boa (CAETANO 2013).
106 A CVUfes encontrou cópias do ofício circular enviado à Faculdade de Medicina, à Escola
Politécnica, à Faculdade de Direito e à Escola de Belas Artes.
107 A CVUfes localizou cópias do ofício circular na documentação da Faculdade de Medicina, da
Escola Politécnica, da Faculdade de Direito e da Escola de Belas Artes.
65
66
67
68
blicações estudantis produzidos em 1968 pelo DCE, pela UEE e pelos diretórios
acadêmicos das faculdades de Filosofia (FAFI), Medicina, Engenharia e Direito.
O relatório final do IPM, de 4 de junho de 1969, indiciou o ex-presidente em exer-
cício do DCE/Ufes, José César Leite (FAFI); o ex-presidente e a ex-vice-presidente
da UEE, respectivamente, Antônio Carlos Dall´Orto 113 e Jussara Lins Martins; os
estudantes Marcelo Santos Neves (Escola Politécnica), Domingos Freitas Filho (pre-
sidente do DA/FAFI), Helena Maria Soares Rezende (FAFI), Iran Caetano (Faculdade
de Medicina) e Roberto Gomes (Faculdade de Medicina); a então funcionária da
Ufes Carmélia Maria de Souza, conhecida jornalista e cronista do estado; a profes-
sora formada na FAFI Antonieta Maria Rabelo Leite; e o estudante secundarista e
jornalista Rubens Manoel Câmara Gomes, filho de Rubens Vervloet Gomes. 114
Também foram indiciados os proprietários de duas gráficas de Cachoeiro de
Itapemirim, Joel Pinto e Nemir Antônio de Moraes, acusados de imprimir jornais
e publicações estudantis durante o ano de 1968. Ambos tiveram seus estabeleci-
mentos invadidos pelos militares em busca de “provas” de atividades “subversi-
vas” e foram levados para prestar “esclarecimentos” no 3º BC 115. Tudo indica, in-
clusive, que Joel Pinto teria ficado mais tempo preso na PF, já que se encontrava
detido nas dependências daquele órgão quando foi convocado pelo militar Orrico
para depor no segundo IPM, quase dois meses depois de ter prestado depoimento
no primeiro inquérito 116.
Durante as investigações do segundo IPM, o oficial Orrico também chegou a
determinar a prisão, para “averiguações”, de Jussara Lins Martins 117, Marcelo
Santos Neves e Domingos Freitas Filho. Jussara e Marcelo, que haviam trans-
ferido seus cursos para a UFRJ, foram presos no Rio de Janeiro e levados para o
quartel do 3º BC, onde foram “entregues” pela PF no dia 26 de abril de 1969 118.
O encarregado do IPM determinou a prisão e a realização de operação de busca
e apreensão na residência de Domingos Freitas Filho, em 13 de maio de 1969,
com o pretexto de investigar a denúncia feita na PF, segundo a qual o estudante,
então presidente do DA da FAFI, estaria usando o dinheiro arrecadado pela enti-
69
dade em festas, rifas e na cantina da Faculdade com “fins subversivos” 119. O líder
estudantil foi enviado para a então Penitenciária Estadual de Pedra D’Água, loca-
lizada na região da Glória, em Vila Velha. Os três estudantes só tiveram a prisão
relaxada pelo militar Orrico em 26 de maio daquele ano 120.
Entre a “farta documentação” anexada como “provas” no processo, estão jor-
nais e boletins produzidos pelas entidades estudantis, publicações que analisam
a política educacional da ditadura, os chamados acordos MEC/USAID e recortes
de reportagens de jornais. Depois de concluídos e enviados para a Justiça Militar,
os dois IPMs acabaram tendo tramitação, já que inicialmente foram distribuídos
juntos – a chamada “distribuição por dependência” – na 1ª Auditoria Militar da
Marinha, no Rio de Janeiro.
Essa distribuição foi contestada pelo primeiro procurador militar encarregado
do processo, Rubens Pinheiro de Barros, o qual alegava que ambos tratavam de
fatos diversos enquadrados na Lei de Segurança Nacional (LSN) em épocas di-
ferentes, apesar do encarregado dos dois IPMs ser o mesmo 121. Assim, os autos
do segundo inquérito foram enviados para a 2ª Auditoria Militar da Aeronáuti-
ca. Ocorre que o procurador daquela unidade, Roberto Albuquerque, suscitou o
chamado “conflito negativo de jurisdição”, considerando a 1ª Auditoria Militar
do Exército como competente para julgar os dois IPMs. No entendimento dele,
o segundo inquérito girava em torno de publicações estudantis, muitas delas re-
produção de artigos favoráveis ao ponto de vista dos estudantes e publicados em
jornais de grande circulação, como o Jornal do Brasil.
70
71
STM em 5 de abril de 1973, quase quatro anos depois da abertura do IPM 127.
Nas páginas do mesmo processo relativo às atividades “subversivas” no ME
capixaba, encontramos a denúncia e a sentença de uma terceira ação movida
na Justiça Militar, que foram anexadas aos autos a pedido da defesa de Marcelo
de Almeida Santos Neves. O referido processo também havia tramitado na 1ª
Auditoria da Aeronáutica e tinha como réus o então presidente em exercício do
DCE, José César Leite; o representante estudantil no Conselho Universitário José
Carlos Risk; a vice-presidente da UEE, Jussara Lins Martins; o próprio Marcelo de
Almeida Santos Neves e o estudante secundarista Gildo Loyola Rodrigues.
A origem da denúncia feita pelo MPM foram cartazes e publicações afixados
no mural do DCE/Ufes no Restaurante Universitário, com dizeres considerados
“ofensivos” à ditadura e apreendidos pela PF em 15 de janeiro de 1969 128. No
mesmo dia, à tarde, policiais federais invadiram a sede do DCE e prenderam César
Leite, apreendendo mais “farto material subversivo” na entidade. Risk foi preso
pela PF no dia seguinte e indiciado no processo, exatamente por ter denunciado
a invasão do DCE e a prisão do presidente da entidade numa reunião do Conselho
Universitário da Ufes, conforme já citado neste relatório.
Jussara e Marcelo foram indiciados devido a uma mera citação feita pelo es-
tudante secundarista Eustáquio Salatiel Barros, conhecido como “Pastor”, que
em depoimento prestado na PF, disse ter visto os dois “arrumando” panfletos
que estavam sendo impressos no mimeógrafo do DCE, juntamente com César
Leite 129. Tratavam-se dos mesmos panfletos distribuídos no vestibular de 1969.
Entretanto, também nesse processo, os acusados acabaram sendo absolvidos por
insuficiência de provas pelo Conselho da 1ª Auditoria da Aeronáutica, em julga-
mento realizado em 17 de outubro de 1970.
Em 1967, por meio do Decreto nº 60.940/67, foi determinada a criação das As-
sessorias de Segurança da Informação (ASIs) e Assessorias Especiais de Segu-
rança e Informação (Aesis) no âmbito dos diversos órgãos governamentais. Nas
72
130 FAGUNDES, Pedro Ernesto. Universidade e repressão política: o acesso aos documentos da
assessoria especial de segurança e informação da Universidade Federal do Espírito Santo (ASI/
Ufes). Tempo e Argumento, v. 5, n. 10, p. 295-316, 2013.
131 A terceira relação em menos de dois anos.
73
vias, os dados solicitados pelo SNI sobre 15 estudantes, a maioria deles envolvi-
dos com as mobilizações estudantis ocorridas no Espírito Santo 132.
A relação em que foram solicitadas informações, como endereço, idade, cor
e altura, entre outras, era composta pelos nomes dos estudantes João Chequer
Von Habib, Zélia Malusa Stein (FAFI), Amaranto Silva (Faculdade de Direito),
José Cipriano da Fonseca (Faculdade de Medicina), Gilberto Secoman, Roberto
Gouvêa, Délio Fernandes da Rocha 133, Carlos Magno Cardoso (ex-presidente do
DCE/Ufes e aluno da Faculdade de Direito), Theresa Braga Sales 134, Maria Lúcia
Cruz, José César Leite (ainda presidente em exercício do DCE/Ufes e aluno da
FAFI), Luiz José Finamori Simoni (Faculdade de Direito), José Carlos Risk (Fa-
culdade de Direito), Maria Augusta Feliciano da Silva (FAFI) e Geraldo Pignaton
(Faculdade de Medicina) 135.
Por meio do Ofício nº 4-GAB/AS, de 10 de março de 1969, assinado pelo chefe
de Gabinete Rômulo Penina, foi remetido para os diretores das faculdades da
Ufes um informe da DSI/MEC 136, que advertia os reitores das universidades
federais sobre uma possível campanha de sensibilização da opinião pública
contra a política educacional da ditadura por parte dos estudantes, procuran-
do mostrar que o número de aprovados nos vestibulares era maior do que o
número de vagas ofertadas. Segundo o documento, o movimento já teria sido
iniciado a partir da convocação para que todos os aprovados permanecessem
nas salas de aula, quer fossem matriculados ou não.
O passo seguinte, segundo o documento da DSI/MEC, seria a tentativa de ocu-
pação das escolas e a realização de manifestações de rua, o que acabou não acon-
tecendo, uma vez que, naquele momento, já era intensa a repressão ao ME nas
universidades, com muitas lideranças estudantis sendo presas ou processadas.
132 A CVUfes localizou a cópia do Ofício nº 165/69, por meio do qual o diretor da Faculdade
de Medicina, professor Affonso Bianco, enviou para o reitor, em três vias, a lista dos docentes da
unidade.
133 Havia sido preso com Maria Augusta Feliciano da Silva e não era estudante universitário na
época.
134 Era estudante de licenciatura, mas havia sido detida na manifestação realizada em 15 de
outubro de 1968 e teve que prestar depoimento no DOPS.
135 A Comissão da Verdade encontrou a cópia do ofício pelo qual a Faculdade de Direito enviou
resposta à solicitação do SNI referentes a Amaranto, Carlos Magno, Luiz Finamori e José Carlos
Risk. O documento foi datado em 30 de janeiro de 1969 e assinado pela secretária substituta da
unidade, Maria de Fátima Pereira Amâncio. No entanto, talvez por ser tratar de uma cópia, ele não
possui numeração.
136 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Divisão de Segurança e Informação. Informe DSI/
SEP/MEC 8, de 27 de fevereiro de 1969.
74
137 Ofícios nos 38-Circ., de 24 de junho de 1969; 43, de 11 de agosto de 1969; 53, de 18
setembro de 1969; 68, de 20 outubro de 1969; 78-Circ, de 12 de dezembro de 1969; e 81, de 30
de dezembro de 1969, todos assinados por Rômulo Augusto Penina. O Ofício nº 41-Circ, de 16 de
julho de 1969, foi assinado por Alberto Monteiro, que na época exercia a subchefia do Gabinete
do reitor Alaor de Queiroz Araújo.
75
[...] A atuação das ASI (ou Aesi) revela verdadeira obsessão em impedir a in-
filtração comunista e soviética nas universidades, dedicando-se, por exemplo, a
monitorar o ensino de russo nas instituições brasileiras e a vigiar os estudantes
retornados da URSS com diplomas obtidos naquele país. Essas agências não pro-
tagonizaram ações espetaculares, tampouco tinham poder inconteste, uma vez
que alguns reitores nem sempre obedeciam a suas recomendações. Mas, em sua
ação cotidiana, miúda, elas ajudaram a retirar da vida acadêmica um de seus ele-
mentos mais preciosos, a liberdade. Durante sua existência, elas contribuíram
para criar nas universidades ambiente de medo e insegurança, que certamente
atrapalhou a produção e reprodução do conhecimento, sobretudo nas áreas de
saber mais visadas, para não falar do empobrecimento do debate político 139.
138 MOTTA, Rodrigo P. S. As universidades e o regime militar. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
139 MOTTA, Rodrigo P. S. As universidades e o regime militar. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, . 45-46.
76
140 Informações colhidas no relatório A Ala Vermelha do PCdoB, Deops/SP, 1971. Arquivo Públi-
co do Estado de São Paulo.
141 Não foi possível determinar o dia exato em que os estudantes foram transferidos para a
sede do DOI-CODI de São Paulo, mas documentos obtidos no acervo da Delegacia Estadual de Or-
dem Política e Social de São Paulo (Deops) no Arquivo Público do Estado de São Paulo mostram
que eles prestaram depoimentos às equipes de tortura do DOI-CODI, chamadas de “equipes de
interrogatório inicial”, já em 27 de março de 1971.
77
No dia 22 de março de 1971, após o primeiro dia de aula na Ufes, voltei pra
casa e almoçamos, eu e a minha mulher na época, Laura, que fazia Odontolo-
gia. Almoçamos e fomos dar uma descansadinha, antes de sair pra dar aula em
Itanguá e depois no Ibes. Estudava e dava aula pra sobreviver. Foi quando a re-
pressão chegou, através de um comando vinculado ao DOI-CODI de São Paulo,
famigerada Operação Bandeirantes. Me chamaram com metralhadoras e a casa
cercada. 142
Há alguns lances interessantes, que acho que captam bem a situação da épo-
ca. Minha mulher estava passando mal, para tentar dormir, a gente foi apagar a
luz da sala e um dos guardinhas, eram recrutas que estavam de plantão, colocou
o cano da baioneta na porta e falou: “acende essa luz, senão eu atiro!”. “Calma,
ela está passando mal”. “Acende essa luz, senão eu atiro!” Eu ficava ouvindo
eles conversando a noite toda e tinham repassado para eles que nós éramos
perigosíssimos. “Não vacila não, senão esses caras saem e matam vocês”. Aque-
las paranoias que tinham os pobres dos recrutas. Foi aí que senti que, se não
acendesse a luz, eles iriam atirar mesmo, mais por medo do que por culpa 144.
Segundo Amorim, todas as noites os presos passavam por tortura física, parte
78
Durante o dia, era o momento que a gente ficava conversando, avaliando a si-
tuação, porque estava naquela situação. Tinha horário de alimentação, alimen-
tação normal, um cuidando do outro, alguns mais machucados do que os outros.
Tinha um companheiro que tinha ficado tanto tempo, que perdeu o movimento
das pernas, então tinha que fazer uma massagem nele para tentar melhorar. En-
fim, situações terríveis que a gente assistiu. Tinha gente numa situação muito
pior do que a minha e a gente ficava naquele trabalho solidário ali na cela 145.
Alguns dos presos pelos agentes do DOI-CODI não tinham relação alguma com
a luta armada ou participação em qualquer tipo de organização política, expres-
sando como a suspeição generalizada, ao mesmo tempo em que seletiva, levou
os órgãos de repressão a equívocos e injustiças ao intervirem violentamente no
79
Acho que se torturava por prazer mesmo, pela prática. Parece inércia, caiu
aqui, tem que sofrer. Isso com pessoas absolutamente inocentes, que não ti-
veram participação nenhuma em nada, que eram parentes de gente que estava
presa lá em São Paulo, que foram presas e ameaçadas, não sei se chegaram a ser
torturadas de fato, com choque elétrico e tudo. Pessoas que tinham ido daqui
conquistar emprego em São Paulo, levados por um dos companheiros nossos.
[...] Quando eu entrei, identifiquei justamente essas pessoas, que eram de Santo
Antônio. Pessoas absolutamente simples, que estavam lá para buscar trabalho.
Era o cunhado de um companheiro nosso, o Paulo Roberto, que tinha sido preso
lá 146.
Depois de três meses afastado das atividades acadêmicas por conta da sua pri-
são, ao retornar ao Espírito Santo, Amorim relatou não ter encontrado dificulda-
des para retomar o curso de Geografia na Ufes. Ele disse ter contado com o apoio
dos professores, os quais propiciaram condições para que recuperasse o tempo
perdido e não perdesse o ano, como determinava o regimento da Universidade na
época. Mas, antes disso, disse ter ficado chocado com o aborto que Laura sofrera
nas dependências do DOI-CODI/SP, resultado das sessões de tortura.
Seguindo a vida no Espírito Santo, conseguiu ainda ingressar, por concur-
so público, como funcionário no Banco de Desenvolvimento do Espírito Santo
(BANDES), engajando-se na luta sindical da categoria, sendo, anos mais tarde,
em 1985, eleito presidente do Sindicato dos Bancários. Apesar de retomar a vida
comum, João Amorim diz que foi obrigado a carregar por muito tempo ainda o
estigma pejorativo de “subversivo”, influenciando o olhar das pessoas sobre o seu
presente e, principalmente, o seu passado militante.
80
tado à CVUfes, Laura Coutinho relatou que, mesmo antes das prisões, havia a
prática de monitoramento exercida pelos órgãos de repressão na Ufes. Segundo
ela, em sua turma, existiam três estudantes matriculados que faziam parte dos
quadros do Exército e que estavam infiltrados na Faculdade de Odontologia para
coleta de informações de interesse das forças de segurança. “Eles se identifica-
vam como pessoas do Exército [...]. Eram oficiais que tinham cotas [...]. O com-
portamento deles era de um estudante normal, mas a gente nem imaginava que
eles estavam lá com essa função, até que ocorreu a nossa prisão” 147.
Laura Coutinho relatou que não era uma militante “organizada”, o que não a
impediu de exercer uma atividade política e social no Espírito Santo, diante do
contexto que havia se instalado no país, despertando o olhar vigilante dos órgãos
de informação. De acordo com ela, no início da década de 1970, atuava junto com
João Amorim em um projeto social no bairro de Porto de Santana, em Cariacica,
que, segundo ela, “por ironia do destino”, tentava integrar o Exército à comuni-
dade. Nessa experiência, encontrou-se de perto com as injustiças sociais, com a
miséria e a exclusão que a população daquele bairro vivia, e se sentiu motivada a
se “insurgir” contra tal condição.
Mas, a aproximação com a resistência política à ditadura, segundo Laura Cou-
tinho, não a levou a se organizar como militante de base da Ala Vermelha, como
seu então marido. No entanto, isso não a impediu de contribuir para a organiza-
ção no Espírito Santo. Sua prisão ocorreu no dia em que tentava ajudar integran-
tes paulistas do grupo a obterem certidões de nascimento falsas.
Eles vieram para o Espírito Santo para ver se conseguíamos uma forma de
conseguir documentação [...]. Descobriu-se, naquela época, que formulários de
certidão de nascimento eram vendidos em papelarias. Então a gente comprou
alguns formulários, fizemos umas certidões ilegais e através dessas certidões,
nós trouxemos as pessoas para que fizessem uma documentação aqui e saíssem
da clandestinidade 148.
Nesse dia, segundo seu depoimento, caminhonetes que eram utilizadas pelos
órgãos de repressão do Rio de Janeiro e de São Paulo circulavam em Vila Batista,
bairro em que morava, no município de Vila Velha, alterando a rotina pacata do
local. Na parte da tarde, depois de retornar à sua casa com as certidões forjadas,
militares à paisana bateram em sua porta, exigindo que ela e o marido fossem ao
81
Fomos levados para o hospital militar. Fiz um exame de urina que comprovou
que eu estava grávida e voltei do hospital militar com aquele resultado, na cer-
teza que nada aconteceria comigo porque estava grávida [...]. Pela madrugada,
não obstante eu tivesse esse documento que provava a gravidez, fui chamada e
levada para o segundo andar, onde o meu companheiro João Amorim Coutinho
estava sendo interrogado e também sendo torturado. Eles tentaram negociar
com ele para que eu fosse poupada, desde que ele entregasse algumas pessoas,
alguns companheiros que queriam. Quando ele se negou a fazê-lo, eles come-
çaram a me torturar. [...] Eu fui torturada com palmatória, choques elétricos na
vagina, no seio e na língua. Fui colocada no pau-de-arara, só aguentei cinco mi-
nutos e desmaiei. Fiquei sendo torturada durante a madrugada toda. Na realida-
de, como não era organizada, não tinha muito que entregar, então o que a gente
sentia era o sadismo dos torturadores. Dava para eles saberem que uma garota
de 21 anos pouco teria para apresentar. Na realidade, o que eles queriam mesmo
era exercitar o sadismo, o poder e o autoritarismo. Então, de madrugada, quan-
do terminou essa sessão de tortura, eu não conseguia andar. Fui engatinhando,
descendo as escadas para a cela e, nesse processo, os torturadores ofereciam
uma arma. “Não quer se suicidar? Tem aqui um revólver, você não vai sair daqui
com vida. Você pode resolver logo isso agora” 149.
82
lado. Segundo ela, tratava-se de uma casa comum da cidade de São Paulo, porém
com muros altos. Ela ficava em uma cela somente para mulheres e, no andar
acima, ficava a sala onde ocorriam as torturas. De acordo com ela, a falta de tra-
tamento acústico do ambiente improvisado permitia que se ouvissem barulhos
de copos quebrados, coisas caindo no chão e gritos de dor, que geravam um clima
psicológico torturante, fazendo com que os prisioneiros se sentissem como “em
um filme de terror”.
Esses traços de tortura psicológica eram agravados pelas condições desumanas
a que os presos eram submetidos diariamente. Ainda durante seu depoimento,
ela relatou que as celas não tinham banheiros e as condições de higiene e ali-
mentação eram péssimas. No caso das mulheres, a violência de gênero era prati-
cada cotidianamente, com as presas sempre ameaçadas de sofrerem abusos por
parte dos agentes da repressão.
Eles só davam uma banana verde para a gente. Era única alimentação que a
gente tinha. Não nos deixavam tomar banho, nos ridicularizavam, diziam que
a gente nunca ia sair de lá. Diziam “seu marido está sendo torturado, daqui a
pouco venho ficar com você aqui na cela”. Essas coisas assim de abuso mesmo
da questão de gênero 150.
Fiquei uma semana sangrando sem ter qualquer assistência. O “modess” [ab-
sorvente íntimo] que a gente tinha era o jornal que a gente amassava e botava
para poder usar como absorvente. Depois de uma semana, como eu comecei
a ter febre muito alta, nos levaram para o hospital militar, onde fui submeti-
da a uma curetagem. Depois voltei para a Operação Bandeirantes (organização
que antecedeu o DOI-CODI), onde ficamos mais um mês. Depois da Operação
Bandeirantes, nós fomos para o DEOPS/SP, onde foi feita a parte jurídica do
processo.
83
Na cela que a gente ficava não tinha banheiro, era um quarto adaptado e, de
madrugada, quando cheguei [depois da tortura], fiquei sentindo muita dor, não
tive sangramento nem nada, mas muita dor. De manhã, quando foi aberta a cela
para que a gente fosse ao banheiro, eu senti um peso descendo. Era o bebê que
eu tinha perdido naquela sessão de tortura 151.
84
Era como se tivéssemos uma peste e fôssemos leprosos. A exclusão era tan-
ta, que os próprios amigos e companheiros, quando sentávamos perto deles no
Restaurante Universitário, se levantavam com medo de serem comprometidos
e associados a gente” 154.
85
155 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Volume I, Parte II, Cap. 3 – Contexto histórico das
graves violações entre 1946 e 198. Relatório Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014, p.
85 e 108.
156 Para mais informações sobre a criação das Aesi durante o regime, consultar: MOTTA,
Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização
autoritária. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
157 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Assessoria Especial de Segurança e Informa-
ção. Ofício nº 10, de 27 de março de 1972.
86
158 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Centro de Artes. Ofício nº 43, de 1972.
159 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Centro Biomédico. Ofício nº 1, de 1972.
160 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas.
Ofício nº 119, de 1972.
161 Id. Ofício nº 178, de 1972.
162 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Centro Tecnológico. Ofício s/nº, de 1972.
163 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Centro Biomédico. Ofício nº 4, de 1972.
87
88
167 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Centro de Artes. Ofício nº 75, de 1972.
168 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Assessoria Especial de Segurança e Informa-
ção. Pedido de busca nº 16, de 1972.
169 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas.
Ofício nº 176, de 1972.
170 Id. Ofício nº 179, de 1972.
171 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Assessoria Especial de Segurança e Informa-
ção. Pedido de busca nº 13, de 1972.
172 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Centro Tecnológico. Ofício s/n., de 1972.
89
90
Cientes de que foi realizada uma reunião na Comissão de Festas dessa Fa-
culdade na qual participaram 52 estudantes, onde 38 decidiram prestar uma
homenagem em suas formaturas ao colega Júlio Prattes 182, preso em Ibiúna-SP,
que não passou para o 6º ano, porque estava preso, vimos solicitar de Vossa Se-
nhoria que faça cancelar do referido programa de festas a citada homenagem 183.
O ponto alto da repressão imposta pela ditadura nos campi da Ufes foram as
prisões e torturas de professores e estudantes relacionados ao PCdoB, ocorridas
a partir de dezembro de 1972. É importante ressaltar que os documentos pesqui-
sados pela CVUfes e o depoimento de ex-estudantes nesta Comissão indicam a
presença, entre os torturadores, de militares integrantes do DOI-CODI/RJ, com
destaque para o coronel Paulo Malhães, morto sob circunstâncias misteriosas em
25 de abril de 2014, poucas semanas depois de ter prestado depoimento junto à
Comissão Nacional da Verdade.
O IPM aberto por ocasião das prisões arrolou 18 pessoas ligadas à Ufes como
182 Júlio César Prattes Matos, como já citado neste mesmo relatório, havia sido preso em outu-
bro de 1968, na manifestação contra a prisão dos delegados capixabas no Congresso de Ibiúna.
Em 1970, foi condenado a uma pena de seis meses e ficou preso na Base Aérea de Santa Cruz, no
Rio de Janeiro.
183 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Assessoria Especial de Segurança e Informa-
ção. Ofício nº 60, de 1972.
184 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Centro Biomédico. Ofício nº 7, de 1972.
185 FAGUNDES, Pedro Ernesto. Universidade e repressão política: o acesso aos documentos da
assessoria especial de segurança e informação da Universidade Federal do Espírito Santo (ASI/
Ufes). Tempo e Argumento, v. 5, n. 10, p. 295-316, 2013.
91
92
186 IPM com 31 indiciados por subversão no Espírito Santo chega a auditoria carioca. Jornal do
Brasil, Rio de Janeiro, 17 mar. 1973, p. 4.
187 Sumário do BNM 674. Ação Penal Ação Penal nº 40/72. Disponível em: <http://bnmdigital.
mpf. mp.br/sumarios/700/674.html>. Acesso em: 5 jul. 2015.
188 Jornal do Brasil, 10 abr. 1973, p. 13.
189 SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR. Apelação nº 40,640, fl. 1011.
93
Universidade Federal do
Espírito Santo. Assessoria
Especial de Segurança e
Informação, Ofício nº 084
29, de 1974.
94
celo Amorim Neto, Gustavo Pereira do Vale, Adriano Sisternas, Ângela Milanez
Caetano, William Sarandi e Jorge Luiz de Souza foram suspensos da atividade
estudantil por três anos, embora esse último já estivesse formado. Uma matéria
publicada pelo Jornal do Brasil sugere que as punições foram indicadas pelo “se-
tor de segurança” da Universidade 192, na época dirigido por Alberto Monteiro.
De acordo com a matéria, no mesmo processo, a Reitoria da Ufes considerou
inocentes os estudantes Sebastião Lima Nascimento, Elizabeth Santos Madei-
ra, Maria Magdalena Frechiani, Luzimar Nogueira Dias, Guilherme Lara Leite,
Marcus Lira Brandão, Luiz Carlos Garcia Genelhu, Miriam Azevedo de Almeida
Leitão, Maria Gilma Erlacher e Maria Auxiliadora Ferreira Gama, e o professor
Vitor Buaiz.
Anos depois, em 20 de abril de 1977, o Serviço de Inteligência do 38º BI relatou
ter recebido da ASI/Ufes a informação de que cinco dos sete estudantes atingidos
pelo Decreto-lei nº 477/69 haviam solicitado sua rematrícula na Ufes: Iran Ca-
etano, Ângela Milanez Caetano, Gustavo Pereira do Vale, Marcelo Amorim Neto
e Adriano Sisternas. Pela Informação nº 277-S2/77, o 38º BI informou também
que Iran Caetano, o qual tinha sido condenado à revelia, havia se apresentado à
1ª Auditoria Militar da Aeronáutica e se encontrava recolhido num presídio em
Bangu, no Rio de Janeiro 193.
192 UNIVERSIDADE do ES pune os estudantes. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 set. 1973, p. 14.
193 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Acervo DOPS. Caixa 21. Dossiê 13.
BRSAPEES,DES.0.ME.Ufes.13, p. 11.
95
194 As eleições diretas de 1972 foram previstas pelo Art. 3° do Ato Institucional n° 11, de
14/08/1969, e regulamentadas pela Resolução - TSE n° 9.208, de 31/05/1972. De acordo com a
Constituição Federal de 24/01/1967, art. 16, a autonomia municipal seria assegurada “pela eleição
direta de prefeito, vice-prefeito e vereadores realizada simultaneamente em todo o país, dois
anos antes das eleições gerais para governador, Câmara dos Deputados e Assembleia Legislativa”.
Disponível em: <http://www.tse.jus.br/eleicoes/eleitos-1945-1990/cronologia-das-eleicoes#23>.
Acesso em: 2 jul. 2015.
96
tou ainda que ficou, juntamente com outras mulheres, numa cela escura e sem
banheiro, além de ter sido alimentada com comida estragada. Quando precisava
ir ao banheiro, era acompanhada por dois militares homens e dois cães treinados
para o ataque, que ao comando da palavra “terrorista”, pulavam e babavam sobre
os corpos das mulheres presas.
A tortura psicológica foi rememorada pela vítima como um terrível recurso dos
militares: Magdalena chegou a ser forçada a abortar, sob o argumento de que fi-
caria presa por muitos anos e a filha também. Sofreu com o escárnio, por ser tra-
tada como fraca para comer a comida oferecida. Seus familiares também foram
pressionados. Além de não saberem seu paradeiro, eram vítimas da presença diá-
ria da Polícia na casa de sua mãe, ameaçando levá-la presa, e também suas irmãs.
Quando soube que ela estava viva e visitou a filha, a mãe apenas disse: “que
bom que você está viva”. Após 32 dias presa, Magdalena Frechiani disse que teve
que se apresentar no Rio de Janeiro por muito tempo, em virtude de um inquérito
que respondeu à Justiça Militar, ainda enfrentando um inquérito na Ufes, por ter
sido enquadrada no Decreto-lei nº 477/69, no qual acabou sendo absolvida.
Já Elizabeth Santos Madeira relatou à CVUfes ter ingressado muito jovem na
Universidade, com cerca de 18 anos, sem experiência política alguma, uma vez
que havia sido criada na cidade interiorana de Alegre, região sul do Espírito San-
to, onde, segundo ela, pouco se comentava ou se sabia sobre o ambiente criado
pela ditadura militar. Ela relembrou a agitação que marcava a Ufes e a Facul-
dade de Medicina no início dos anos de 1970: o DA era atuante e os estudantes
conseguiram, inclusive, articular-se pelo afastamento de um professor “que não
contribuía com o ensino”.
As reivindicações se referiam à abertura do RU no campus do CBM, em Maruí-
pe, à melhoria do ensino, à defesa da autonomia da Universidade e ao funciona-
mento do Pronto-Socorro do Hospital Universitário. Segundo Elizabeth Madeira,
essa última reivindicação gerou uma mobilização que envolveu estudantes de
toda a Ufes numa grande manifestação, a qual ganhou as ruas e ocupou a Câmara
de Vereadores de Vitória (CMV), que na época ficava no prédio do atual Cine Te-
atro Glória, ganhando destaque no Jornal do Brasil com a seguinte nota: “é uma
luz que se acende no fundo do túnel”.
Além da mobilização política, a ex-estudante rememorou a efervescência cul-
tural e as ricas experiências de sociabilidade na Ufes. Havia, segundo ela, uma
grande circulação de livros nas bibliotecas dos DAs e o próprio “trote” do curso
de Medicina consistia na doação de obras à biblioteca da entidade, que eram em-
97
98
99
mantida nua. A vigilância dos militares era permanente e as portas das celas não
podiam ser fechadas, o que inibia as mulheres de ir ao banheiro e tomar banho. A
tortura psicológica que sofreu incluiu ser encapuzada e ameaçada de transferência
para outra unidade desconhecida, caso não prestasse as informações solicitadas,
especialmente sobre o marido, que havia escapado da prisão e estava foragido.
Além disso, ela conta ter sido ameaçada com uma cobra jiboia, que seria colo-
cada em seu corpo caso ficasse em silêncio 195. Também relatou ter sido mantida
em celas solitárias, algumas vezes nua e, em outras, enrolada em cobertores, em
pleno verão capixaba. O constrangimento e o desrespeito também afetariam a
família de Ângela Milanez. Ela relatou na audiência pública que os militares, pas-
sando-se por Iran Caetano, ligaram para sua mãe, a qual orientou o genro a não
retornar a Vitória, pois seria preso.
Em outra ocasião, Ângela Milanez deparou-se com a própria mãe numa sala
do então 3º BC, sendo interrogada, aos prantos, e coagida a confessar coisas que
desconhecia. A ex-estudante relembrou a angústia dos dois meses de intensa
tortura psicológica e física que sofreu e as consequências disso em seu estado
emocional, já que, mesmo em liberdade, ela sentia-se em estado de tensão e des-
confiança em relação às pessoas: “eu tinha medo de tudo”.
Os depoimentos prestados por Maria Magdalena Frechiani, Elizabeth Santos
Madeira e Ângela Milanez coincidem sobre uma questão essencial: além do so-
frimento experimentado pelas mulheres e por suas famílias, a participação na
resistência política à ditadura também gerou danos ao desenvolvimento de suas
carreiras profissionais. Ângela Milanez não concluiu o curso de Geografia. Magda-
lena relatou a dificuldade em trabalhar depois de ter sido presa e marcada como
“subversiva”. Elizabeth Madeira afirmou ter sido vítima de perseguição quando
era servidora pública do Estado do Espírito Santo, durante a gestão do governador
Eurico Rezende (1979-1982), já que foi destituída de sua função de médica e realo-
cada no setor técnico de Engenharia, sendo pressionada a se demitir.
A dramaticidade dos relatos apresentados durante a audiência pública sobre
as estudantes da Ufes torturadas no 38º BI confirma um fato: essas prisões e
principalmente as torturas são os episódios que constituem as mais graves viola-
ções contra os direitos humanos durante a ditadura militar no Espírito Santo. Tal
situação foi endossada por depoimentos de outros estudantes da Universidade
195 A cobra jiboia pertencia ao coronel Paulo Malhães e foi citada em depoimentos de diversos
presos políticos torturados pelos homens do DOI-CODI, como consta no Relatório da Comissão
Nacional da Verdade.
100
AS CONSTANTES PERSEGUIÇÕES
Aqui no 38º BI (então 3º BC), o pessoal até fazia o seguinte, levava a gente
para banho de sol, exercício, tudo isso. Lógico que com cachorro em volta, poli-
ciamento e tudo, mas até banho de mar eles deixavam a gente tomar. Quer dizer,
nesse ponto aí, nós fomos muito bem tratados, muito melhor do que no Rio. No
Rio, a gente só tinha direito a meia hora de banho de sol nas segundas-feiras, se
fizesse sol de manhã. E só isso, fora disso, era só na cela.
101
O ex-estudante diz ter ficado pouco mais de quatro meses preso no 3º BC, sendo
transferido para o Rio de Janeiro numa caminhonete, com pés e mãos amarrados
em outros companheiros. Na capital carioca, todos foram levados para um quar-
tel do Exército em Realengo. Ele afirmou não ter sofrido nenhum tipo de tortura
ou constrangimento no Rio de Janeiro, e disse ter ficado em uma cela com apenas
uma pessoa. Posteriormente, sozinho. Contou também que, por ser estrangeiro,
foi defendido por um advogado ligado ao consulado francês, sendo libertado em
21 de dezembro de 1973, ou seja, depois de um ano e dezessete dias preso.
Depois de solto, Sisternas relata ter retornado para Vitória, onde não partici-
pou mais de atividades políticas, pois se sentia vigiado. Igualmente, voltou para
a mesma empresa em que trabalhava antes de ser preso. Entretanto, na Ufes, ele
foi punido com base no Decreto 477/69 e só voltaria a estudar na Universidade
em 1977, conseguindo terminar o curso de Engenharia no ano seguinte. O ex-es-
tudante relatou que, quando estava finalizando a graduação, surgiu uma chance
de ministrar aulas na instituição como professor colaborador.
Lança à Divisão de Polícia Federal a quem este for apresentado, indo por mim
assinado, que em seu cumprimento, prenda e recolha ao 3º Batalhão de Caçado-
res, o indiciado Jorge Luiz de Souza, filho de Salvador de Souza e de Lídia Perim
de Souza, nascido em 1º de Maio de 1951, natural do Estado do Espírito Santo,
por 30 (trinta) dias, durante as investigações policiais, pela prática de atividades
subversivas ligadas à organização PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL (PCdoB),
estando sujeito, pois, às sanções da Lei de Segurança Nacional. 198
Com essas palavras, o major José Maria Alves Pereira, encarregado do IPM con-
tra os militantes do PCdoB, expediu o mandado de prisão contra Jorge Luiz de
Souza em 30 de novembro de 1972. Na denúncia contida no IPM, Jorge foi ligado
ao codinome “Onofre”. No depoimento prestado à CVUfes 199 e à Comissão Esta-
dual da Verdade, Jorge Luiz de Souza informou que havia iniciado a sua militân-
cia política no curso ginasial, em Cachoeiro de Itapemirim, no período em que
eclodiu o golpe de 1964.
198 Sumário do BNM 674. Ação Penal nº 40/72, p. 98. Disponível em: <http://bnmdigital.mpf.
mp.br/sumarios/700/674.html>. Acesso em: 5 jul. 2015.
199 Depoimento prestado à CVUfes e à Comissão Estadual da Verdade em 20 de março de 2015.
102
103
que se deu a escolha do Geisel, esse período que vai do AI-5 até o momento
que eu estava preso, até a metade da minha prisão, era um período de terror na
Universidade 201.
Durante a sessão de tortura, Jorge Luiz continuava a insistir que haviam pe-
gado a pessoa errada. O plano de negar não surtiu efeito, visto que os militares
já tinham capturado aquele que havia dado as informações sobre o partido. “[...]
eles trouxeram o Foedes para me reconhecer, [...] aí o Foedes chegou e disse: ‘É
ele mesmo’”, descreveu.
Jorge Luiz relata ainda uma conversa tensa com Foedes dos Santos, momento
em que o dirigente estadual do PCdoB disse que os militares já “sabiam de tudo”,
inclusive sobre um encontro que ele teria no Rio de Janeiro com um dirigente do
Comitê Central do partido. Jorge Luiz afirma que Foedes não aparentava ter sido
torturado ou ter qualquer ferimento.
Segundo Jorge Luiz, provavelmente Foedes forneceu informações aos órgãos
de segurança as quais desencadearam uma operação que acabou provocando a
104
Eu fiquei sabendo que daí a uma semana e algumas horas mais, porque era
domingo de manhã, ia cair o Lincoln Oest ou quem fosse do Comitê Central que
estivesse lá. Não adiantava mais eu dizer que não era eu, e o próprio Foedes
falou: “se não quer falar, você não fala, mas eles já sabem quem você é”. Tomei a
seguinte atitude e falei: “está bom, eu sou mesmo o dirigente do partido que foi
denunciado e, por essa razão, não vou falar mais nada”. Aí que os caras partiram
para o pau mesmo em cima. Ao mesmo tempo, também não era heroísmo meu.
Veja bem a minha situação, não tinha o que falar, não adiantava, eles já sabiam
de tudo, não tinha o que apontar, então não tive aquele medo da tortura: “o que
eles vão fazer comigo pra eu falar?” Não tive essa reação, eles partiram muito
violentos para cima de mim e eu apanhei 207.
Jorge Luiz narra também outras estratégias de tortura, inclusive o uso de sua
esposa:
Eles trouxeram a minha mulher, me disseram que ela estava sendo torturada,
mas eu continuava irredutível. Aí á trouxeram, foi um grande alívio para mim,
porque vi que ela não estava ferida. Eu só disse: “Se não sabe, vai continuar sem
saber, porque não vou falar nada aqui com você agora. Desculpa, você vai apa-
nhar sem saber por que tá apanhando”. Foi a frase que eu falei para ela, aí eles
não bateram nela, só deixaram ela presa lá. Fizeram muita tortura psicológica,
mas não bateram nela. E eu, me levaram para a área da parte dos choques e no
choque você desmaia, dói muito, realmente é muita dor!
203 Ex-deputado constituinte em 1946, Lincoln Cordeiro Oest foi preso em 20 de dezembro de
1972 no Rio de Janeiro, ao cumprir um ponto que havia sido entregue à repressão por Foedes dos
Santos, e torturado até a morte pelos agentes do DOI-CODI/RJ. Tinha 65 anos de idade.
204 Carlos Danielli conseguiu escapar da prisão em 20 de dezembro de 1972, por ocasião do
ponto entregue por Foedes do Santos, já que deveria ir à mesma reunião que o dirigente capixaba
iria participar. Mas, a partir das pistas encontradas no aparelho de Lincoln Cordeiro Oeste, ele
acabou sendo preso oito dias depois em São Paulo e barbaramente torturado até a morte pelos
agentes do DOI-CODI/SP em 31 de dezembro de 1972.
205 Luiz Guilhardini foi preso pelos agentes do DOI-CODI/RJ em 5 de janeiro de 1973 e tam-
bém morreu sob tortura.
206 Lincoln Bicalho era capixaba e foi assassinado aos 28 anos de idade. De acordo com a ver-
são oficial, Lincoln morreu em um “tiroteio” com as forças de segurança, ao supostamente “reagir à
prisão”. Seu corpo, crivado com mais de 15 tiros, foi encontrado em 13 de março de 1973, ao lado
do Pavilhão de São Cristóvão, no Rio de Janeiro (RJ).
207 Depoimento prestado à CVUfes e à Comissão Estadual da Verdade em 20 de março de 2015.
105
Eu apaguei duas vezes, primeiro com os choques [...] eu tenho impressão que
o coração para, realmente aqui queima, parece que vai explodir e, a impressão
que tenho ainda hoje, não tenho uma coisa muito clara, é a de que eles faziam
isso para amedrontar o Foedes. Eu suponho, porque a gente urra e ele ficava ali
perto, devia estar ouvindo. A gente se mija todo também, a gente fica com ver-
gonha, é humilhante, e cai. Eu estava em pé e caí. Você não consegue ficar em
pé. Teve uma hora que eu falei assim para o chefe da tortura, o Malhães: “Dá um
tempo, cara”. Era choque atrás do outro e ele falou o seguinte: “Se eu te der um
tempo, você inventa uma história e enrola a gente”.
Preso por quase quatro meses no 3º BC, Jorge Luiz falou sobre a dificuldade de
urinar com uma arma apontada para a cabeça e também das dificuldades para
comer. Durante o Natal de 1972, segundo o ex-militante, os presos foram au-
torizados a receber visita dos familiares e, de acordo com ele, o comandante do
quartel os presenteou com garrafas de Coca-Cola, que foram colocadas em bacias
de dar banho em crianças, além de cigarro.
Dizer que a sua filha estava presa numa sala com uma cobra para forçá-lo a as-
sinar um depoimento foi outra estratégia de tortura usada contra ele. E sua filha
foi realmente levada ao quartel:
Eles abriram a porta que dava para o pátio. Assim falaram: “Jorge vem cá”. Eu
já estava sem algema, sem nada, levantei e fui. Quando vi, era minha filha lá. Ela
veio correndo. Foi aí que eu percebi que estava com o peito quebrado, porque
ela veio correndo, já andava, tinha um ano e meio, veio correndo e pulou no meu
colo. Na hora em que a peguei no colo, foi como se alguém me arrancasse assim
pelo meio. Doeu tudo. Aí vi que a minha filha estava lá, não estava na sala com
a cobra, quem estava na sala com a cobra era a Mirinha (Miriam Leitão). Depois
106
ela contou isso, sobre a sala escura com a cobra. Mas eles falavam para mim
que a minha filha estava lá e eu assinei o documento. Curiosamente, na hora de
assinar, o major chamou dois sargentos e gritou: “chama os dois sargentos aí”.
“Vocês vão assinar como testemunhas. Vão testemunhar de que ele está assi-
nando de livre e espontânea vontade”. Aí eu disse: “Livre e espontânea vontade
porra nenhuma, estou assinando porque a minha filha está nas mãos de vocês.
Vou assinar, mas não quero nem ler o que está escrito aqui”. Eu soube depois
que esses dois sargentos disseram que assinaram como testemunhas, mas que,
na hora, eu disse que não era de livre espontânea vontade coisa nenhuma.
A “Mirinha”, citada por Jorge como sendo a pessoa que estava em uma sala
com uma cobra, é a hoje jornalista Miriam Leitão, também presa em dezembro de
1972, junto com o então marido, Marcelo Amorim Neto. Quarenta e dois anos de-
pois da prisão, Miriam Leitão concedeu uma entrevista ao jornalista Luiz Cláudio
Cunha. Seu depoimento foi divulgado no portal Observatório da Imprensa em
19 de agosto de 2014 208. O depoimento teve grande repercussão em todo o país,
sendo divulgado em diversos meios de comunicação, inclusive do Espírito Santo.
209
A cobra citada por Jorge Luiz realmente foi usada para torturar Miriam Leitão,
que relatou em detalhes o fato:
Eles saíram e o homem de cabelo preto, que alguém chamou de Dr. Pablo,
voltou trazendo uma cobra grande, assustadora, que ele botou no chão da sala,
e antes que eu a visse direito, apagaram a luz, saíram e me deixaram ali, sozinha
com a cobra. Eu não conseguia ver nada, estava tudo escuro, mas sabia que a
cobra estava lá. A única coisa que lembrei naquele momento de pavor é que co-
bra é atraída pelo movimento. Então fiquei estática, silenciosa, mal respirando,
tremendo. Era dezembro, um verão quente em Vitória, mas eu tremia toda. Não
era de frio. Era um tremor que vem de dentro. Ainda agora, quando falo nisso, o
tremor volta. Tinha medo da cobra que não via, mas que era minha única com-
panhia naquela sala sinistra. A escuridão, o longo tempo de espera, ficar de pé
sem recostar em nada, tudo aumentava o sofrimento. Meu corpo doía 210.
O próprio Paulo Malhães confirmou o uso da cobra, uma jiboia com o nome de
“Miriam”, e também o uso de outros animais para torturar os presos políticos:
208 CUNHA, Luiz Claudio. A repórter pergunta, o ministro gagueja. Portal Observatório da Im-
prensa, São Paulo, ago. 2014. Disponível em: <http://observatoriodaimprensa.com.br/caderno-da-
cidadania/_ed812_a_reporter_pergunta_o_ministro_gagueja/>. Acesso em: 9 jul. 2015.
209 Os jornais O Globo e A Gazeta repercutiram o depoimento de Miriam Leitão.
210 Depoimento de Miriam Leitão. In: CUNHA, Luiz Claudio. A repórter pergunta, o ministro
gagueja. Portal Observatório da Imprensa, São Paulo, ago. 2014. Disponível em: <http://observato-
riodaimprensa.com.br/caderno-da-cidadania/_ed812_a_reporter_pergunta_
o_ministro_gagueja/>. Acesso em: 9 jul. 2015.
107
Tem os jacarés, o Pata, o Pita, o Po.. como é que é? Pato, Peto, Pito, Poto e
Joãozinho. [...] A cobra sempre apavorava, o jacarezinho também. O jacarezinho
fazia um barulho com os dentes, tec, tec, tec, tec ... A cobra foi um presente, eu
trouxe ela. [...] É, trouxe de Xambioá. Ela enrolava no meu braço e ficava. Nunca
me fez mal, primeiro que ela não tem veneno, ela só morde, até deixa os dentes
na mordida dela. Ela se dava comigo maravilhosamente bem. O jacarezinho não
posso dizer o mesmo, porque o jacarezinho era muito assustado. Eu dei todos
para o jardim zoológico, ali na Quinta da Boa Vista 211.
Em abril de 1973, Jorge Luiz de Souza contou que ele e os outros presos foram
levados para o Rio de Janeiro em um carro similar aos que a Ufes tinha na época,
embora ele acredite que fosse um disfarce. Durante sua prisão no Regimento da
Escola de Infantaria, no Rio de Janeiro, a família do ex-militante chegou a ser
impedida de visitá-lo, o que os próprios militares faziam questão de contar aos
outros presos.
Jorge Luiz também afirmou em seu depoimento à CVUfes que o reitor da Uni-
versidade na época, professor Máximo Borgo Filho, não se importou com os estu-
dantes que estavam presos: “[...] as histórias que eu soube, era que o reitor queria
que a gente morresse”. Jorge descreveu outros problemas que teve com o reitor,
já que foi preso em um domingo e a sua colação de grau, a qual tinha direito de
participar mesmo faltando cursar uma matéria, seria na quarta-feira seguinte.
Precisando concluir a referida matéria, ele recebeu a visita, na prisão, do pro-
fessor Ivantir Antônio Borgo, que levou uma atividade para ser realizada e depois
conseguiu registrar a sua última nota. Durante a visita, o professor teria contado
que tentou levá-lo do quartel para a Ufes a fim de fazer a atividade, mas, segundo
lembra do relato do professor a ele, o então diretor da Faculdade e o reitor não
autorizaram que ele assim fizesse.
Ivantir Borgo teria então, segundo Jorge Luiz, literalmente “roubado” o livro
de frequência que os estudantes que faziam prova final precisavam assinar. De-
pois que foi solto, como ainda diziam na Ufes que ele não teria como provar a
conclusão do curso, seu colega Valério Fabris conseguiu solicitar, em seu nome,
o histórico escolar, documento que serviu como prova de que tinha se formado:
Quando eu saí da prisão, já com o 477, vim aqui pedir uma audiência ao reitor,
mas ele não me recebeu. Reivindiquei a colação de grau e ele não queria fazer,
mas aí exibi o documento: “Olha aqui, eu tenho um histórico escolar. O reitor
108
não pode me negar a colação de grau”. Legalmente, o reitor tinha que colar grau
pessoalmente, mas eu colei grau sem o reitor a presença dele. Ele botou o livro
para eu assinar e colei grau assim.
Como já havia colado grau, o Decreto 477/69 não teve como prejudicar Jorge Luiz
na Ufes, mas, em 1976, ele não conseguiu se matricular num curso de pós-gradua-
ção da Universidade de São Paulo (USP), já que havia sido punido e não poderia se
matricular em nenhuma faculdade. Outro problema que enfrentou posteriormen-
te, destacado por ele, foi a dificuldade para adquirir o registro de jornalista, uma
vez que, mesmo sem formação específica nessa área, exercia a profissão.
Vale ressaltar que, em 17 de outubro de 1969, a Junta Militar que substituiu
o general-presidente Arthur da Costa e Silva publicou o Decreto-lei nº 972/69
213
, o qual regulamentou a profissão de jornalista, estabelecendo como mudança,
entre outras, a exigência de formação superior específica em Jornalismo para o
exercício da ocupação. No entanto, ele exercia esse ofício antes do decreto que
regulamentou o DL, o que lhe dava o direito de continuar atuando na área.
No entanto, Jorge Luiz não conseguiu tirar o atestado de “ideologia política”,
outro dos documentos exigidos, por ter ficha “suja” na Polícia, o que o impediu
de solicitar o registro profissional de jornalista junto ao Ministério do Trabalho.
Apesar disso, o ex-preso político trabalhou por dez anos como jornalista, con-
seguindo obter o seu registro profissional só depois da Lei de Anistia, em 1979.
212 CONSELHO de Aeronáutica relaxa prisão de operário e estudantes. Jornal do Brasil. Rio de
Janeiro, 20 dez. 1973, p. 14.
213 Decreto-lei nº 972, de 13 de outubro de 1969. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/AIT/ait-05-68.htm>. Acesso em: 10 jul. 2015.
109
2 de abril de 2013. Ele contou que, na época da prisão, além de suas obrigações
profissionais como professor e médico, realizava também um trabalho volun-
tário no bairro de Itacibá, em Cariacica, juntamente com o colega José William
Sarandi, então estudante do curso Direito, e com suas respectivas esposas, que
trabalhavam como assistentes sociais.
O médico contou que, apesar de não ser vinculado a qualquer movimento políti-
co naquela época 214, ele e o colega de trabalho, que era ligado ao PCdoB, chegaram
a preparar alguns pacotes de medicamentos para colaborar com a organização par-
tidária. Além disso, ele também se envolvia na distribuição de panfletos e sempre
discutia a situação política do país com seus estudantes da Faculdade de Medicina,
muitos dos quais estavam ligados a movimentos contrários ao regime militar.
Vitor Buaiz contou que foi preso quando visitava a casa de José William Saran-
di, sendo levado para o quartel do 3º BC, onde foi interrogado pelos agentes DOI-
CODI/RJ. Segundo ele, na primeira noite, ficou numa cela coletiva, junto com
alguns de seus estudantes. No segundo dia, foi colocado sozinho numa cela pe-
quena, que ficava atrás da enfermaria, onde havia um guarda de vigia. De acordo
com o médico, o guarda fazia muitas perguntas sobre o movimento estudantil e
chegou a lhe contar que alguns dos presos daquele grupo haviam sido torturados.
Durante os cerca de 15 dias em que ocorreram os interrogatórios, Vitor Buaiz
disse que os presos ficaram incomunicáveis. Passado esse período, foram auto-
rizados a fazer ginástica e tomar banho de mar. No único interrogatório a que
foi submetido, ele conta que os militares queriam saber qual era a sua posição
política em relação ao regime militar. “Eu falava que era da esquerda progressis-
ta democrática”, conta. Questionavam também se havia alguma vinculação sua
com o PCdoB, mesmo não existindo uma denúncia de que fosse filiado ao partido.
Os militares saberiam, no entanto, da suposta colaboração de Vitor Buaiz na
preparação de alguns pacotes de medicamentos para a Guerrilha do Araguaia.
Essa informação havia sido obtida por meio de Foedes dos Santos, o secretário da
direção estadual do PCdoB capixaba que, segundo depoimentos de ex-militantes
do partido, ao ser preso, havia delatado todos os companheiros no Espírito Santo.
A ligação do professor com o PCdoB, segundo ele próprio, resumia-se ao Espírito
Santo, não tendo, portanto, nenhum contato com dirigentes nacionais do parti-
do. O Buaiz contou ter ficado 45 dias preso, não tendo recebido nenhuma visita
214 É importante assinalar que, durante o período em que foi estudante da Faculdade de Medi-
cina da Ufes, Vitor Buaiz participou de diretorias do DCE.
110
de representantes da Ufes.
Ele relatou ainda que não chegou a ter grandes problemas com o trabalho na
Universidade por conta de sua prisão, já que o episódio aconteceu no período de
recesso acadêmico. A família, no entanto, sofreu com o ocorrido:
Após a prisão, Buaiz diz ter voltado a exercer normalmente suas funções na
Ufes. Sobre Alberto Monteiro, chefe da Aesi, o professor conta que ele era “famo-
so” como representante do regime militar e circulava por toda a Universidade. “A
conversa dele era agradável, mas o papel que ele exercia aqui era político, para
as pessoas ele fazia transparecer que não tinha nada contra e que não estava
vigiando, mas, na verdade, no fundo, estava de olho”.
111
Sendo uma das metas atuais dos organismos comunistas, como o PCB, PCdoB
e APML, a união de todos os estudantes através da dinamização dos diretórios,
da realização de encontros regionais, formação de grupos culturais, etc. Como
sabe vossa senhoria, estas reuniões não devem ser proibidas, mas sim autori-
zadas e observadas pelas direções, pelo que solicitamos comunicar a nossa as-
sessoria com antecipação possível das referidas reuniões, para que possamos
informar aos órgãos responsáveis de nossa área no sentido de tomarmos as pro-
videncias que se fizerem necessárias 220.
112
Universidade Federal do
Espírito Santo. Assessoria
Especial de Segurança e
Informação, Ofício nº 29,
de 1973.
No que se refere aos estudantes que haviam sido presos meses antes, acusados
de ligação com o PCdoB, um importante documento localizado pela CVUfes é o
ofício confidencial encaminhado à chefia da Aesi/Ufes pelo diretor do CBM, da-
tado de 5 de setembro, no qual foram fornecidas informações sobre a situação
dos discentes:
113
MALFITANO 222(sic) cursou a 6ª série no ano passado, tendo sido reprovado por
frequência, não se rematriculando no corrente ano 223.
A CVUfes localizou ofícios enviados para as direções do CBM 224 e do CAR 225,
ambos datados de 18 de maio de 1973, em que foi determinado que informassem,
em caráter urgente, o número de professores em atividade em suas respectivas
unidades, o que leva a crer que a solicitação também tenha sido feita aos demais
centros da Universidade.
As cerimônias de colação de grau continuaram sendo um motivo de permanen-
te monitoramento da ASI, como demonstram os ofícios enviados para o CBM 226,
o CT 227, o CCJE 228 e o CAR 229, todos datados de 8 de outubro de 1973, que cobram
dos diretores das unidades o cronograma e a programação da colação de grau dos
formandos e os nomes dos prováveis homenageados nas cerimônias que seriam
realizadas no final daquele ano.
Os documentos localizados também permitem notar que a direção do CT de-
monstrava maior “colaboração” em relação à Aesi/Ufes, tendo em vista a locali-
zação de diversos ofícios emitidos pelo diretor época, professor Nelson Goulart
Monteiro Filho, contendo informações sobre os acontecimentos do Centro.
Em 4 de outubro de 1973, a direção do CT enviou um ofício informando quais
eram os componentes da chapa que concorreria às eleições para a diretoria do
Diretório Acadêmico “Dido Fontes”, listando os dados sobre a qualificação dos
estudantes Kieram Martins Brum, Sebastião Luiz Bozzi, Racchel Almeida Vieira
e Renato Cunha Rodrigues 230. Também foi localizado um ofício em que o diretor
encaminhou à Aesi/Ufes, conforme solicitação de Alberto Monteiro, o convite de
formatura que havia sido entregue pessoalmente pelo estudante Carlos Alberto
Feitosa Perim em 28 de novembro de 1973 231.
Mas o documento que chamou mesmo a atenção, por mostrar o grau de vigi-
114
115
égio Gomes Ramalho, informou que o docente havia sido transferido para o CEG
e que ministrava aulas de História da Arte para o regime de créditos, sob coorde-
nação do Departamento de História. Também ressaltou que o professor sempre
gozou de excelente conceito entre o corpo docente, discente e administrativo 236.
A CVUfes descobriu inúmeros documentos que indicam o adensamento do mo-
nitoramento por parte de outros órgãos do sistema de informação nas questões
acadêmico-administrativas nos campi a partir de 1974. Confirmando, por exem-
plo que, durante esse período, os processos de contratação de docentes, transfe-
rência e matrícula de discentes passaram a ter interferência direta dos órgãos de
repressão. Assim, por exemplo, em 9 de janeiro de 1974, por meio da DSI/MEC, a
Aesi/Ufes solicitou informações ao vice-reitor em exercício da Universidade Fe-
deral de Minas Gerais (UFMG), professor Marino Mendes Campos, sobre os pro-
fessores João Dias Pereira Gomes e Vicente de Paula Mendes 237.
Prosseguindo na prática, em 11 de março de 1974, a Aesi solicitou aos diretores
de centros de ensino informações acerca da possível matrícula no sistema seria-
do dos estudantes Luiz Inácio e Oswaldo Pacheco. Embora não se saiba o objetivo
de tal solicitação, a CVUfes localizou as respostas enviadas pelos diretores do
CAR 238, do CCJE e do CBM 239. Os pedidos de transferência também eram monito-
rados pela Aesi, como a solicitação de informações feita ao CCJE, em 26 de junho
de 1974, sobre o estudante Djalma Pompeu Filho 240.
As atividades de representação estudantil também mereciam uma grande
atenção por parte da Aesi. A legitimação de candidaturas, pelo que indica a do-
cumentação encontrada por esta Comissão da Verdade, dependia do resultado da
consulta feita à chefia da Aesi, discriminando a conduta dos acadêmicos que plei-
teavam os cargos junto aos diretórios acadêmicos e órgãos colegiados da Univer-
sidade. Dessa forma, era obrigatório o envio da lista de candidatos para a Aesi por
parte das direções dos centros.
Assim, por exemplo, em 26 de setembro de 1974, num ofício assinado por
Alberto Monteiro enviado à direção do CBM, a Aesi enviou um “Nada Consta”
236 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Centro de Artes. Ofício nº 22, de 1973.
237 As informações não constam nos documentos, apesar de ser citado no Of. SG-002/74 que
duas vias das fichas modelos 13 dos referidos professores foram encaminhados ao DSI/MEC (BR.
AN.BSB.AT4.12, 25, p.1-2).
238 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Centro de Artes. Ofício nº 59, de 12 de
março de 1974.
239 Ofício nº 129/74 – CCJE/Ufes e Ofício nº 1/74 – CBM/Ufes, ambos de 13 de março de 1974.
240 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Assessoria Especial de Segurança e Informa-
ção. Ofício nº 3, de 26 de novembro de 1974.
116
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118
dessas obras nas bibliotecas setoriais, as direções dos centros deveriam enviá-los
para a Aesi. A CVUfes encontrou a resposta apenas da direção do CBM 256, que
negou a existência das citadas obras em sua biblioteca setorial.
Em 1974, a Aesi também determinou a busca, a apreensão e o encaminhamento
para a Assessoria dos exemplares do livro do líder comunista da Coreia do Norte,
Kim Il Sung 257. O CBM informou, em 3 de dezembro, que não havia encontrado
exemplares daquela obra em sua biblioteca setorial 258.
As cerimônias de formatura também continuaram a merecer a rigorosa vigi-
lância da Aesi. Em 1974, o CBM recebeu da Assessoria uma solicitação de infor-
mações sobre os discursos que seriam proferidos pelos oradores, juradores, para-
ninfos e patronos, bem como sobre os programas e os nomes dos homenageados
pelas turmas de formandos 259. Em resposta, sua direção enviou os programas e
homenageados nas formaturas dos cursos de Medicina 260 e Odontologia 261, que
ocorreriam em dezembro daquele ano, assim como cópias dos discursos que se-
riam proferidos 262.
Essa era uma preocupação que se estendia a todos os centros da Ufes, já que a
CVUfes encontrou o Ofício nº 643 – CEG/Ufes, de 18 de dezembro de 1974, por
meio do qual o diretor do Centro de Estudos Gerais, professor Roberto João Ver-
vloet, encaminhou à Aesi cópia dos pronunciamentos que seriam feitos, dois dias
depois, na colação de grau dos formandos dos cursos existentes naquele Centro.
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271 A CVUfes localizou os Ofícios nos 107/75, 109/75 e 112/75, enviados pela ASI aos diretores
do CAR, do CCJE e do CBM.
272 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Centro Biomédico. Ofício nº 3, de 1975.
273 Foram encontrados os Ofícios nos 165/75, 167/75 e 169/75, enviados para os diretores do
CCJE, do CAR e do CBM.
274 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Centro Biomédico. Ofício nº 5, de 1975.
275 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Assessoria Especial de Segurança e Informa-
ção. Ofício nº 50, de 1975.
276 Foram encontrados os Ofícios nos 174/75, 117/75 e 179/75, dirigidos pela chefia da Aesi
aos diretores do CCJE, do CBM e do CAR.
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277 Os Ofícios nos 95/75, 98/75 e 100/75 foram enviados pela chefia da ASI aos diretores do
CAR, do CCJE e do CBM.
278 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Centro Biomédico. Ofício nº 5, de 1975.
279 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas.
Ofício nº 419, de 1975.
280 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Assessoria Especial de Segurança e Informa-
ção. Ofício nº 113, de 1975.
281 Id. Ofício nº 118, de 1975.
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303 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Acervo DOPS. Caixa 21. Dossiê 13.
BRESAPEES, DES.0.ME,Ufes.13, p. 23.
304 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Acervo DOPS. Caixa 21. Dossiê 13.
BRESAPEES, DES.0.ME,Ufes.13, p. 23.
130
Os DAs do CBM e do CCJE possuem, cada uma das entidades, um dossiê “exclusivo”
no acervo do DOPS/ES. No caso do primeiro, são 87 páginas. O documento mais an-
tigo trata de um incidente ocorrido em 1977, quando os ônibus que levariam os estu-
dantes da Ufes para participar da VI Semana de Saúde Comunitária (SESAC), em Belo
Horizonte, foram impedidos de seguir para a capital mineira e quatro dos estudantes
foram presos. Na época, eventos como o SESAC e as reuniões nacionais da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) haviam se tornado grandes fóruns que
aglutinavam forças contrárias à ditadura militar, especialmente os estudantes.
Durante anos, existiu a dúvida de onde partiu as ordens para que os ônibus se-
guissem para Belo Horizonte. As acusações recaíram sobre o então governador bi-
ônico do Espírito Santo, Elcio Alvares (1974-1978). Mas, a Informação nº 469/77-S,
datada de 2 de junho, não deixa margens de dúvidas: a determinação partiu do
comando do 38º BI, que produziu o documento e mandou difundir entre a Secre-
taria de Estado de Segurança Pública (SESP), a Polícia Civil (PC), a Polícia Militar
(PM), o DPF e a ASI do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER) 306.
Uma informação que chama atenção no documento é que o 38º BI mencionou
os nomes dos estudantes de Medicina Marli Alves dos Santos, Adauto Emmerich
Oliveira e Antonio Claudino de Jesus, os dois últimos integrantes do DA do CBM,
como líderes estudantis de destaque, cuja locomoção para Belo Horizonte deveria
ser detectada. No entanto, os agentes da 2ª Seção do 38º BI, que correspondia ao
setor de “inteligência” do batalhão, orientaram as demais agências que, “por re-
comendação superior”, deveria ser evitada a detenção das lideranças estudantis,
mas sim dificultado o seu deslocamento à capital mineira para participar do con-
gresso, podendo ser criados pretextos como: “irregularidades em documentação
do veículo, no próprio veículo, na documentação pessoal do elemento, etc”. 307
305 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Acervo DOPS. Caixa 21. Dossiê 13.
BRESAPEES, DES.0.ME,Ufes.13.
306 A Polícia Rodoviária Federal (PRF), na época, era vinculada ao antigo Departamento Nacio-
nal de Estradas de Rodagem (DNER).
307 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Acervo DOPS. Caixa 21. Dossiê 2.
BRESAPEES, DES.0.ME,Ufes.2, p. 2.
131
132
Pode-se afirmar que a vitória da chapa Gota D’Água nas eleições do Diretório
Acadêmico (DA) do CCJE, em 1976, foi um marco no movimento estudantil capi-
xaba, que desembocaria, dois anos depois, na reabertura do Diretório Central dos
Estudantes (DCE) da Ufes. A chamada “geração Gota D’Água” já rendeu inclusive
a produção de um documentário 311, lançado no Cine Metrópolis, no campus de
308 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Acervo DOPS. Caixa 21. Dossiê 2.
BRESAPEES, DES.0.ME,Ufes.2, p. 56.
309 Ibid., p. 60-61.
310 Os nomes dos estudantes dos quais havia sido solicitada a qualificação pela SII/SPI eram o
presidente do DA/CBM, Idelbrando Muniz de Almeida (Paraíba); o vice-presidente, Lauro Ferreira
Pinto Neto; a secretária-geral, Denise Ribeiro de Carvalho; a 1ª secretária, Ludmila de Oliveira;
o tesoureiro-geral, Pedro Carlos de Souza Neto; a tesoureira-adjunta, Maristela Alves Silva; e o
secretário cultural, Wellington Coimbra.
311 Geração Gota D’Água: Memória de um movimento estudantil pelas liberdades democráticas no
país. Universidade Federal do Espírito Santo 1976–1980. Coordenador Paulo Roberto Fabres, 2009.
133
Goiabeiras. De fato, a eleição daquela chapa havia sido, até aquele momento, o
maior avanço obtido pelos setores de dentro da Ufes que se opunham à política
repressiva da ditadura. Obviamente que todo esse processo foi acompanhado de
perto pelos órgãos de repressão do regime militar.
A chapa Gota D’Água era presidida pelo então jornalista e estudante de Direito
Joaquim Silva, conhecido como Kinkas, que mais tarde se notabilizaria como um
dos principais advogados dos sindicatos de trabalhadores mais combativos do
ES. A campanha para as eleições foi acirrada e teve muita repercussão na mídia
local, já que outras duas chapas de perfil conservador disputavam a diretoria da
entidade: Opção e Despertador. Os recortes das matérias se encontram arquiva-
dos no volumoso dossiê sobre o DA/CCJE existente no Fundo DOPS da APEES.
Na edição de 2 de outubro de 1976 do jornal A Gazeta, os integrantes da chapa
Gota D’Água denunciaram a existência de um “complô” para impedir a sua vitória
nas eleições do DA. De acordo com eles, as outras duas chapas teriam se unido
para dar continuidade à “alienação” dos universitários do CCJE. Na matéria, que
não abre aspas para nenhum integrante individual da chapa, seus membros fa-
lam na defesa das reivindicações dos estudantes e da reabertura do DCE, fato
considerado “impossível” pelos integrantes das outras duas chapas.
312 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Acervo DOPS. Caixa 21. Dossiê 3.
BRESAPEES, DES.0.ME,Ufes.3, p. 488.
134
Durante sua gestão, foi criado o jornal O Grito, que como no caso do jornal do
DA/CBM, era mimeografado e possuía anúncios de papelarias, livrarias e outros
estabelecimentos comerciais, que ajudaram a viabilizar uma periocidade relati-
vamente regular para a publicação. Além de Kinkas, que era o presidente, inte-
gravam a executiva do DA/CCJE na gestão Gota D’Água o vice-presidente Robson
Moreira, o Chicô; a secretária-geral Judith Lopes; a 1ª secretária Maria da Penha
Daher; o tesoureiro-geral Eneias Lobo Diniz; e o tesoureiro-adjunto Paulo Fabris.
Pouco tempo depois da posse da chapa Gota D’Água, o Serviço de Investigação
e Informação do DOPS encaminhou ao 38º BI, à EAMES, ao DPF, à SESP, à PM/2
e a outras agências o Informe nº 24/76-SII-DOPS/ES, de 1º de dezembro, em que
fez uma apreciação sobre a nova diretoria do DA/CCJE e traz “denúncias” contra
Kinkas e Robson Moreira 313.
Em 30 de março de 1977, por meio da Informação nº 241/77-SI/SR/PF/ES, o SI/
DPF alertou as outras agências, inclusive o SNI do Rio de Janeiro e o Serviço de
Informações da Superintendência da PF daquele mesmo estado, que o presiden-
te do DA/CCJE tinha aumentado sua atividade naquele mês. De acordo com o
documento, Kinkas tinha pedido ao também universitário Heitor Manuel Lopes
de Moraes que no dia 8 de março ligasse para um telefone do Rio de Janeiro, no
qual ele falou com o cineasta Orlando Bonfim Neto 314, para que esse avisasse ao
cartunista Ziraldo que “topamos o negócio e esperamos ele aqui no dia 04 315”.
De acordo com os agentes, outros três telefonemas foram feitos de Vitória para
Orlando Bonfim nos dias 9 e 10 do mesmo mês. No segundo deles, teriam pedido
para avisar Ziraldo que ele seria levado para a Associação Universitária de Venda
Nova. Durante muitos anos, a realização da Festa dos Universitários de Venda
Nova foi uma tradição, mesmo antes da emancipação do município serrano, um
evento que era organizado pelos estudantes que haviam nascido lá e se mudado
para Vitória com o objetivo de estudar na Ufes.
Agentes da Escola de Aprendizes-Marinheiros do Espírito Santo (EAMES) di-
fundiram entre os demais órgãos da comunidade de informações, entre os quais
o Centro de Informações da Marinha (CIM) do Rio de Janeiro, um informe datado
de 17 de maio de 1977, que alertava sobre a realização naquele dia, na II Mostra
313 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Acervo DOPS. Caixa 21. Dossiê 3.
BRESAPEES, DES.0.ME,Ufes.3, p. 488.
314 Filho do militante do PCB Orlando Bonfim Jr., desaparecido pela ditadura, no Rio de Janeiro,
em outubro de 1975.
315 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Acervo DOPS, Caixa 21, Dossiê 13.
BRESAPEES, DES.0.ME, Ufes.13.
135
316 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Acervo DOPS, Caixa 21, Dossiê 13.
BRESAPEES, DES.0.ME, Ufes.13, p. 17.
317 Id. Acervo DOPS, Caixa 22, Dossiê 03. BRESAPEES, DES.0.ME, Ufes.3, p. 17-19.
318 Ibid., p. 21.
319 Ibid., p. 15.
136
320 DIA Nacional de Luta leva polícia a ocupar São Paulo. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 23 ago.
1977, p. 15.
321 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Acervo DOPS. Caixa 22. Dossiê 3.
BRESAPEES, DES.0.ME,Ufes.3, p. 33.
137
tra que parte da documentação foi incinerada por iniciativa do próprio chefe da
Aesi/Ufes, Alberto Monteiro, que ainda levou outra parte para a sua própria resi-
dência depois da extinção do órgão.
Por outro lado, a CVUfes localizou uma ampla documentação sobre a Ufes em
outros órgãos de vigilância, especialmente junto aos acervos do DOPS/ES e do SNI
custodiados, respectivamente, no APEES e no Arquivo Nacional, em suas sedes
em Brasília e no Rio de Janeiro. Essa documentação, em especial do período de
maior mobilização do ME e do início de organização dos movimentos reivindica-
tórios de professores e funcionários da Ufes, que passaram a ter as suas próprias
entidades de representação e a realizar as primeiras greves nacionais de suas ca-
tegorias, também fazem emergir alguns elementos importantes de análise.
Sobre os documentos do DOPS/ES, inicialmente podemos afirmar que a maior
parte deles é formada por recortes de jornais locais, cópias de panfletos, cartas-pro-
gramas e cartazes de chapas que disputam eleições de entidades e outros documen-
tos produzidos por elas. É possível também encontrar alguns relatórios elaborados
por agentes designados para acompanhar assembleias e manifestações realizadas
pelos estudantes, principalmente no caso dos órgãos ligados à Polícia Civil.
Outra observação importante é que os trabalhos dos agentes do DOPS/ES e
também do Serviço de Inteligência da PM (PM-2), nesse período, parecem prati-
camente se limitar ao acompanhamento e monitoramento das ações dos movi-
mentos, sem se aprofundar nas nuances e em suas características próprias.
No mesmo sentido, outro elemento que emerge da análise da documentação
encontrada no acervo do DOPS/ES é que, a partir de 1979, começou a escassear e
se tornou raro o envio para os órgãos estaduais de informes, pedidos de busca e
documentos produzidos pelas agências federais da “comunidade de informações”,
como o SNI, a PF, o CENIMAR, o DOI-CODI, o 38º BI e até da própria Aesi/Ufes.
Da mesma forma, são raros no acervo do DOPS/ES os documentos difundidos
pela chamada Seção de Inteligência da Polícia Militar (PM/2), o que não significa
que os agentes desta última estivessem inativos. Muito pelo contrário. Sabe-se,
por exemplo, que o teor de alguns relatórios produzidos parece confirmar a práti-
ca de que a PM/2 tinha o costume de infiltrar agentes no ME e nas manifestações.
No âmbito da estrutura do ES, em especial no período do último governador
nomeado pela ditadura militar, Eurico Rezende (1979-1982), a documentação en-
contrada na APEES mostra que o setor de inteligência era composto basicamente
por três agências: a Assessoria Técnica de Informação e Contra Informação da
SESP (ATICI), ligada ao Gabinete do então secretário de estado de Segurança
138
322 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Acervo DOPS. Caixa 21. Dossiê 1.
BRESAPEES, DES.O.ME.Ufes.01, p. 2.
323 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Fundo DOPS. Caixa 21. Dossiê 1.
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142
Paulo Hartung, Anselmo Tose e Maria Angela Coser (de frente), no Congresso de Reconstrução da UNE,
1979, em Salvador. Fonte: Acervo do Núcleo de Estudos e Pesquisas Indiciárias (NEI-Ufes).
143
O então estudante de Odontologia da Ufes, Perly Cipriano (em pé à direita), e outros presos políticos.
144
Propaganda das chapas para eleição do DCE/Ufes. Acervo: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo
(Fundo: DOPS/ES).
145
146
Rodrigues Coelho (secretária geral do DCE/Ufes), Nísio Gomes Souza (representante estudantil no
Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão / DCE/Ufes), Ernesto Negris Neto (2° vice-presidente do
DA/CBM), Róbson J. Cogo (representante estudantil no Conselho de Curadores / DCE/Ufes), Róbson
L. Nascimento (estudante da Ufes), Fernando João Pignaton (estudante de Medicina/Ufes), José de
Arimathéia Campos Gomes (presidente do DA/CCJE), Antônio Fernando Pego Silva (vice-presidente
do DA/CEG), Izabel Cristina Novaes (presidente do DA/CP), Maria Lúcia Chequer Soares (estudante
de Economia/Ufes), Magda Maria B. da Costa (representante estudantil no Conselho Universitário
/ DCE/Ufes e estudante de Educação Física), Maria Tereza (estudante da Ufes e representante
das Comunidades Eclesiais de Base – Cebs), Valmir Castro Alves (estudante de Direito/Ufes), Rosa
Stein (estudante de Serviço Social/Ufes) e Ester (estudante de Economia/Ufes).
344 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Fundo DOPS. Caixa 21. Dossiê 1.
BRESAPES, DES.O.ME, Ufes.1, p. 73-109.
147
345 APEES. FUNDO DOPS. Caixa 2. DOSSIÊ 13. BRESAPEES, DES.0.ME,Ufes.13, p.52-59.
346 PROFESSORES decidem paralisar. Boletim Adufes. Vitória, set. 1980, p. 01
148
347 PROFESSORES da Ufes aderem a greve geral. A Gazeta. Vitória, 22 nov. 1980, p. 06
348 PROFESSORES terminam greve em todas as universidades. A Gazeta. Vitória, 12 dez. 1980
349 POLÍCIA reprime estudantes. A Tribuna. Vitória, 7 de janeiro de 1981, p. 6, e POLÍCIA reprime
ato público do DCE. A Gazeta. Vitória, 7 de janeiro de 1981, p. 5.
149
350 A União dos Professores do Espírito Santo (UPES) antecedeu a criação do Sindicato dos
Trabalhadores em Educação Pública do Espírito Santo (Sindiupes).
351 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Acervo DOPS. Caixa 21, BRESAPEES,
DES.O.ME.Ufes.01, p. 550.
352 Ibid., p. 547.
150
151
Propaganda da chapa Ação Conjunta para eleição do DCE/Ufes. Acervo: Arquivo Público do Estado do
Espírito Santo (Fundo: DOPS/ES).
152
no centro da cidade 356. Num outro relatório 357, a policial civil Alcilúcia Pereira
Penha, agente indicada pelo chefe da SII/SPI para acompanhar a manifestação,
informa que a passeata realizada no Centro teria reunido apenas 150 estudantes.
Para os jornais A Gazeta 358 e A Tribuna 359, 300 estudantes estavam presentes na
passeata e no ato público, que foi encerrado com a queima simbólica da portaria
do ministro-general Rubem Ludwig.
O segundo jornal, inclusive, registrou a presença “discreta” de um agente e
dois fotógrafos do DOPS na manifestação. O número reduzido de estudantes na
passeata, em comparação com os 1.500 que haviam participado da assembleia,
no campus de Goiabeiras, pela manhã, foi explicado pelo próprio agente do
ATICI360 como resultado da decisão do reitor Rômulo Penina, que havia adiado
para o dia 25 de março a aplicação da Portaria nº 3/82.
A SII/SPI produziu relatório sobre outra assembleia geral, em 24 de março de
1982, que contou com a participação de três mil estudantes e com a presença de
um representante da Reitoria. O representante do reitor apresentou uma pro-
posta que previa a permanência da gratuidade das refeições para os estudantes
carentes que já possuíam esse direito; o preço de Cr$ 30 para o restante dos ca-
rentes; de Cr$ 60 para os estudantes não considerados carentes, mas que usavam
o RU diariamente, e de Cr$ 130,00 para os demais estudantes da Ufes.
Em 11 de maio de 1982, a ATICI difundiu o Informe nº 22/82-ATICI/SESP/ES 361,
que dá a dimensão da crise que a Ufes enfrentava na época: os estudantes de Clí-
nica Protética do curso de Odontologia estavam em greve há três meses por falta
de material e de condições higiênicas nos laboratórios. Com o apoio do DA/CT, os
estudantes da turma da disciplina de Centrais Elétricas, do curso de Engenharia
Elétrica, haviam lançado um manifesto de apoio ao professor Antônio Sérgio de
Souza, que teria sido discriminado num concurso realizado no CT por seu po-
sicionamento político. Os estudantes dos cursos de Administração e Psicologia
haviam entrado em greve devido à falta de professores, e os estudantes do curso
de Letras também ameaçavam paralisar as atividades.
Ainda de acordo com o informe, no dia 17 de maio, seria iniciado um congresso
153
362 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Acervo DOPS. Caixa 21. Dossiê 13.
BRESAPEES, DES.0.ME,Ufes.13, p. 63.
363 Ibid., p. 69-76.
364 Ibid., p. 22.
365 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Acervo DOPS. Caixa 21. Dossiê 8.
BRESAPEES, DES.0.ME,Ufes.8, p. 23.
154
155
Estudantes se reúnem no campus de Goiabeiras para ouvir palestra da professora Marilena Chauí.
156
professor Vitor Buaiz. O documento ainda informa que, na tarde do mesmo dia,
Marilena Chauí iria presidir um debate com os estudantes, e que pessoas ligadas
ao curso de Odontologia, que estavam em greve há varias semanas, haviam dis-
tribuído um documento sobre o movimento 371.
Para a disputa da Reitoria, 15 professores se apresentaram como candidatos
nas eleições organizadas pelas entidades: Marcelo Antônio Basílio 372, Rogério
Vello, Joaquim Beato, Aloísio Krohling, Ivantir Antônio Borgo, Kleber Frizzera,
Nélson Piotto, Roberto Beling, Sebastião Edvar, Luiz Sérgio Ferreira, Sebastião
Gomes Ferreira, Doracy Marino Costa, José Pires Martins, João Oscar Moreira
Carneiro e José Gilson Estevão.
O projeto de eleições acabou sendo frustrado, já que o pleito teve que ser adia-
do em função da adesão da Adufes e da Afufes ao movimento nacional de greve
dos servidores públicos federais. A Reitoria então se aproveitou do esvaziamento
da Universidade para manter o pleito indireto, com a indicação de uma lista sêx-
tupla. De acordo com um relatório da ATICI, datado de 6 de julho de 1983, as dire-
torias do DCE e da Adufes entraram em contato com o reitor Rômulo Augusto Pe-
nina para tentar adiar as eleições para meados de agosto, mas não conseguiram.
Em 24 de junho, ao tomarem conhecimento da decisão de Penina em levar à
frente o processo indireto, o DCE, a Adufes e a Afufes fizeram manifestações de
protesto em frente ao prédio da Reitoria no dia marcado para a oficialização da
lista sêxtupla pelos conselhos superiores 373. O documento registra que nenhum
dos candidatos da lista oficial estava inscrito na proposta das eleições diretas.
Foram eles: Romualdo Gianordoli (sub-reitor de Planejamento), João Batis-
ta Maia (sub-reitor Administrativo), Fausto Edmundo Lima Pereira (diretor do
CBM), José Antônio Abi Zaid (diretor do CT), Luiz Flores (diretor do CCJE) e Hég-
ner Araújo (sub-reitor de Assuntos Comunitários).
A lista sêxtupla foi oficializada com os votos de 55 integrantes dos conselhos
Universitário; de Ensino, Pesquisa e Extensão; e de Curadores. O mais votado foi
Gianordoli, com 40 votos, seguido de Abi Zaid e João Batista Maia, que obtiveram
39 votos. Luiz Flores e Hégner Araújo tiveram 38 votos e Fausto Edmundo 37 vo-
371 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Fundo DOPS. Caixa 22. DOSSIÊ 11.
BRESAPES, DES.O.ME, Ufes.11, p. 42.
372 O programa de campanha de Marcelo Basílio foi anexado a um relatório de 17 de junho de
1980. APEES. FUNDO DOPS. Caixa 22. Dossiê 11. BRESAPES, DES.O.ME, Ufes.11, p. 61-63.
373 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Fundo DOPS. Caixa 22. DOSSIÊ 11.
BRESAPES, DES.O.ME, Ufes.11, p. 35.
157
tos 374. No final, apesar de Gianórdoli ter sido o mais votado, a ditadura preferiu
escolher José Antônio Abi Zaid.
Nos pleitos seguintes, a Universidade passaria a adotar o sistema de pesquisa à
comunidade para a indicação dos nomes a serem ratificados pelos conselhos supe-
riores na lista a ser enviada ao Ministério da Educação e à Presidência da República.
158
em tais contratações, a não ser o fato de os quatro citados serem, na época, co-
nhecidos por sua militância na esquerda capixaba. A conclusão do documento é
reveladora:
159
377 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Fundo DOPS. Caixa 22. DOSSIÊ 11.
BRESAPES, DES.O.ME, Ufes.11, p. 168.
160
professor, enguiçado dois dias antes, e que havia ficado parado durante dois dias
a 400 metros de sua casa, em Manguinhos, no município de Serra.
Tudo começou, de acordo a versão dada pela PM ao jornal A Gazeta, depois
que o Centro de Operações da PM (COPOM) recebeu um telefonema denuncian-
do que um Opala branco quebrado, aberto e cheio de “propaganda subversiva”
estava parado em frente à Associação Atlética Banco do Brasil (AABB). O Co-
mandante do Policiamento da Capital, coronel Mayr Ramalhok, relatou que uma
equipe foi deslocada para a região e “constatou” a veracidade das informações,
momento em que o proprietário do veículo (Tadeu César) apareceu. “Imediata-
mente encaminhamos o material apreendido e o carro para o Departamento da
Polícia Federal, onde existe a competência que requer o assunto”, contou 378.
O presidente da Adufes, que participava de uma confraternização na sua casa
em homenagem ao nascimento do filho, estava de bermuda e camiseta quan-
do foi preso, permanecendo detido entre 15h30 e 22h30. Na sede da PF, ele foi
interrogado pelo delegado Agnaldo Cassiano Barbosa. O material “subversivo”
apreendido eram exemplares do jornal e de cartazes da recém criada Central Úni-
ca dos Trabalhadores (CUT), boletins da Adufes, materiais da Pró-CUT Estadual,
folhetos referentes a uma análise da política educacional do governo, uma pasta
do congresso da Associação Nacional dos Docentes realizado em Fortaleza (CE),
e livros e apostilas usadas em suas aulas na Ufes.
Um porta-voz da Superintendência da PF/ES chegou a declarar ao jornal A Ga-
zeta que Tadeu César poderia ser enquadrado na Lei de Segurança Nacional (LSN)
ou na Lei de Greve, de acordo com a análise que seria feita por um delegado “es-
pecialista”. O presidente da Adufes contou que o delegado da PF não permitiu que
ele telefonasse para a sua família para avisar que havia sido preso e o interrogou
sobre a ilegalidade da CUT, o porquê do material se encontrar em seu carro e se as
reivindicações feitas ao Governo Federal eram justas e seriam atendidas 379.
Barbosa ainda teria afirmado, segundo Tadeu César, que, se tivesse tomado co-
nhecimento da reunião de confraternização que ocorria na sua casa, no momen-
to em que seu carro estava sendo abordado pelos policiais militares, também
teria revistado o local, já que para ele se tratava de uma “reunião subversiva”.
No dia seguinte, Tadeu César deu uma entrevista para denunciar a ilegalidade
da prisão e anunciar o envio de um ofício ao então governador, Gerson Camata,
378 POLÍCIA diz que professor pode ser enquadrado na LSN. A Gazeta. Vitória, 25 out. 1983.
379 PRESIDENTE da ADUfes diz que foi preso sem mandado e quer apuração. A Gazeta. Vitória,
25 out. 1983.
161
162
O documento relata que a Praça Oito havia sido cercada pela PM para impedir
a concentração dos manifestantes, proibida pelo então secretário de estado da
Segurança Pública, o ex-senador Dirceu Cardoso, mas que foi posteriormente li-
berada por ordem do então vice-governador José Moraes (PMDB) 382.
Descritivo, o Informe nº 47/84 registra a presença de aproximadamente 700
manifestantes, a maioria professores e estudantes da Ufes, e a lista de oradores
que fizeram uso da palavra durante o ato público: Arthur Viana (presidente do
DCE); Nilton Gomes (presidente do Sindicato dos Médicos); Standard Silva (di-
retor da CUT); Eugênia Raizer (presidente da Adufes); Antônio Celso (diretor da
Adufes); João Recla (presidente da Associação dos Funcionários da Ufes - Afufes);
os deputados estaduais Rose de Freitas (PMDB), Salvador Bonomo (PMDB) e João
Miguel Feu Rosa (PDS); os jornalistas Roberto Tinoco (sic) e Dilson Ruas; Fábio
Correia Dutra; e os professores Cícero e Kleber, ambos sem citar o sobrenome. O
relatório também fez uma síntese de alguns dos discursos feitos 383.
É interessante notar, no caso dessa manifestação, que no mesmo dossiê foi
encontrado um raro relatório produzido por agentes do 38º BI. O documento
dos agentes do Exército é mais detalhado do que o de seus colegas da SESP: cita
desde o nome do oficial da PM que coordenou as viaturas que estavam à frente
da passeata, até as palavras de ordem gritadas pelos manifestantes. O Informe nº
252 – S/2, datado de 18 de julho de 1984, difundido também entre a 2ª Brigada de
Infantaria do Exército, no Rio de Janeiro, e o SI/SR/DPF/ES, aponta a presença de
apenas 200 pessoas, contra as 700 do relatório dos agentes do SII/SPI 384.
O documento descreveu ainda o uso de uma pick up Kombi para servir de pa-
lanque, e corrige informações referentes a alguns dos oradores do ato público,
como do então presidente do Sindicato dos Jornalistas, Edivaldo Euzébio (Tino-
co) dos Anjos, e do professor Kleber Perim Frizzera. Também acrescentou à lista
os nomes do professor Carlos Eduardo Zanata, citado como o primeiro orador,
Perly Cipriano (PT), Mariza Barcelos Costa (Sindicato das Assistentes Sociais),
Denise de tal (sic) (Associação Profissional dos Enfermeiros), Luiz Vital (UEE) e
Euclides Piccoli (Comitê de Luta Contra o Desemprego).
Também foram registradas no documento a distribuição de exemplares do jor-
nal Tribuna da Luta Operária e a presença de diversas lideranças sindicais, estu-
382 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Fundo DOPS. Caixa 22. Dossiê 11.
BRESAPES, DES.O.ME, Ufes.11, p. 80-81.
383 Ibid., p. 8-81.
384 Id. Dossiê 10. BRESAPES, DES.O.ME, Ufes.11, p. 82-83.
163
164
A EXTINÇÃO DA AESI/UFES
165
166
uma matéria em 14 de julho de 1986, com o título “Ufes ignora inquérito sobre
serviço de informação”. Em 19 de julho, foram publicadas, respectivamente, as
matérias com os títulos “Diretório quer o fim da ASI”, e, “Serviço de informação
funciona, mas ninguém sabe quem o mantém”.
No informe, a ASI/CST relatou que, em 26 de agosto de 1986, os estudantes da
Universidade Federal do Ceará (UFC), liderados por membros do DCE ligados à
“esquerda radical”, haviam ocupado as dependências da ASI local, permitindo
que os arquivos daquela Assessoria fossem tomados por eles, “com graves preju-
ízo para a atividade de informações” 393.
No Informe nº 144/86-ASI/CST, datado de 15 de setembro de 1986, os agentes
da estatal reiteraram sua preocupação com a situação da Aesi/Ufes, e com a possi-
bilidade de que fossem repetidos no Espírito Santo os episódios ocorridos na UFC.
De acordo com eles, a divulgação do relatório da Comissão de Inquérito da Ufes,
tornando pública a existência da Aesi e de agentes federais matriculados como
estudantes na Universidade, havia criado uma situação de “muita agitação”.
A ASI/CST relata que a campanha política dentro do campus da Ufes, onde um
professor era candidato a governador pelo PT e outro a deputado federal pelo mes-
mo partido 394, vinha se “radicalizando” em algumas ocasiões, nas quais já teria sido
apresentada a proposta de invasão da Aesi/Ufes – uma informação completamente
falsa, de acordo com integrantes da diretoria do DCE da época. “Essa sugestão não
tem sido debatida mais amplamente, no entanto não foi descartada como absurda”.
167
168
reiro de 1965, que reativou o CI, o referido curso tinha “a finalidade de cooperar
no estudo e desenvolvimento de uma doutrina de Segurança Nacional e preparar
civis e militares para funções relacionadas com as Informações” 400. O Curso de
Informações foi extinto a partir de 1º de janeiro de 1973 401.
Alguns arquivos da época, e que constam no sistema administrativo da Ufes, refe-
rem-se ao CI, como a autorização do afastamento de Alberto Monteiro, a concessão
de diárias para participar do curso no Rio de Janeiro voltado para a área de segurança
402
, além da comunicação, em outro processo, da sua atuação como estagiário do CI
403
. Em fevereiro de 1981, Alberto Monteiro tornou-se o terceiro delegado da história
da seção da ADESG no Espírito Santo, ocupando o cargo até outubro de 1987, quando
se afastou por motivos de saúde 404. Durante o mandato de Alberto Monteiro como
delegado, a ADESG/ES realizou apenas três ciclos de estudos, sendo os de 1982 e
1986 realizados em Vitória, e o de 1985 em Cachoeiro de Itapemirim.
169
O futuro chefe da Aesi fez parte do grupo dos primeiros servidores do quadro
administrativo da Universidade 408 e passou por diversos cargos e funções duran-
te a sua trajetória. Para se ter uma ideia, a ata da primeira reunião do Conselho
Universitário da UES federalizada foi produzida por ninguém menos que Alberto
Monteiro, em 1962.
405 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Fundo DOPS. Caixa 38. BRESAPPES.
DES.O.INV.Ufes.10. p. 1.
406 Ibid.
407 Na década anterior, quando ainda era estudante, Antônio Carlos Pimentel foi ligado a parti-
dos de esquerda e atuou no ME. Anos mais tarde, seria Procurador Geral do Estado na administra-
ção do ex-governador José Ignácio Ferreira (1999-2002).
408 Sessão solene em homenagem aos 60 anos de fundação da Ufes realizada pela Assembleia
Legislativa do Estado do Espírito Santo em 8 de maio de 2014. Ata disponível em: <http://www.
al.es.gov.br/appdata/anexos_sptl/ata_sessao_plenaria/Solene_08_08.05.2014.pdf>. Acesso em: 14
jun. 2015.
170
Da esquerda para direita: Camilo Cola, Alberto Monteiro, Tenente Coronel Vinícius e dois não identificados.
Fonte: Delegacia no Estado do Espírito Santo, da Associação dos Diplomados da Escola Superior de
Guerra (ADESG/ES).
171
O célebre e extinto jornal alternativo capixaba Posição, que circulou entre 1976
409 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Sistema de Arquivo. Cx. Arquivo 889. Proces-
so nº 006031/1971-15. CX. Arquivo: 889.
410 Id. Cx. Arquivo 1310. Processo nº 004721/1974-47.
411 PEREIRA, Valter Pires et al. Ditaduras não são eternas: memórias da resistência ao golpe de
1964 no Espírito Santo. Vitória: Flor&Cultura, 2005, p. 148.
172
e 1979 412, tinha uma linha editorial contrária à ditadura militar e, numa de suas
edições, teceu críticas à atuação de Alberto Monteiro na Ufes:
Por sua vez, o ex-estudante e ex-professor da Ufes Renato Viana Soares afirma
que Alberto Monteiro era “informante dos órgãos de segurança” e diz que foi ele
quem montou, junto com o ex-reitor Manoel Ceciliano Abel de Almeida Filho, o
Manoelito, “todo o processo farsa para desapropriar ilegalmente o patrimônio
estudantil existente aqui no estado”. 414
O ex-presidente da UEE Jayme Lanna Marinho, em depoimento à CVUfes, rela-
tou as dificuldades para efetivação de sua contratação como professor da Univer-
sidade em 1971, mesmo tendo passado em primeiro lugar no concurso público
realizado para preenchimento do cargo. Segundo ele, o seu processo de contra-
tação ficou preso numa comissão de inquérito liderada por Alberto Monteiro e,
somente dois anos depois de ter sido aprovado no concurso, ele conseguiu ser
definitivamente efetivado 415. O professor aposentado se refere ao chefe da Aesi/
Ufes como “porta-voz dos militares” e relata ainda que, atuando como professor,
ele tinha que pedir autorização ao SNI e ao próprio Alberto Monteiro para reali-
zar qualquer atividade ou viajar a trabalho.
O ex-presidente da UEE também poderia incluir em sua lista o então profes-
sor da Faculdade de Odontologia da Ufes Moacir Lofêgo, titular da 1ª cadeira de
Clínica Odontológica, que enviou um expediente dirigido ao diretor da unidade,
professor João Luiz Horta Aguirre, manifestando-se contra a sua contratação e
denunciando Lanna Marinho como “subversivo”. Uma cópia do documento foi
412 RESENDE, Lino Geraldo. Mídia, ditadura e contra hegemonia: a ação do jornal Posição no
Espírito Santo. 2006, 173 fls. Dissertação (Mestrado em História Social das Relações Políticas),
Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2006.
413 ALVES, Henrique. Ditadura? Somos contra! Século Diário, Vitória, abri. 2014. Disponível em:
<http://seculodiario.com.br/16240/13/reportagem-especialbrditaduraij-somos-contra-1>. Acesso
em: 16 jun. 2015.
414 Depoimento de Renato Vieira Soares à Comissão Estadual da Memória e Verdade Orlando
Bonfim e à Comissão da Verdade da Ufes em 24 de novembro de 2014.
415 Depoimento de Jayme Lanna Marinho à Comissão da Verdade da Ufes em 16 de abril de
2012.
173
416 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Fundo DOPS. Caixa 22. DOSSIÊ 10.
BRESAPES, DES.O.ME, Ufes.10, p. 2-5.
417 Ibid., p. 3.
418 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Fundo DOPS. Caixa 22. DOSSIÊ 10.
BRESAPES, DES.O.ME, Ufes.10, p. 4.
174
[...] ele era o esquema de espionagem na Universidade, mas ação direta dele
não vi em momento algum. Quer dizer, houve como eu disse, essa tentativa de
me impedir de fazer a prova, depois não queria me colar grau, foi uma coisa, eu
via, ele estava na outra sala lá e falou: ‘eu não recebo esse cara’. Eu vi isso. Aí
eu assinei lá o papel sem que ele visse, mas aí um distrato pessoal, uma coisa
assim, mais era do reitor, dele eu nunca vi, e que eu saiba ele nunca apareceu
no quartel.420
419 TOMAZELLI, Rondinelli. Ditadura no Espírito Santo: um inferno que castigou vidas. Portal
Gazetaonline, Vitória, nov. 2014. Disponível em: <http://gazetaonline.globo.com/_conteudo
/2014/11/noticias/politica/1501578-ditadura-no-espirito-santo-um-inferno-que-castigou-vidas.
html>. Acesso em: 15 jun. 2015.
420 Depoimento à Comissão Estadual da Memória e Verdade Orlando Bonfim-CEMVOB e à
Comissão da Verdade da Ufes em 20 de março de 2015.
421 MOREIRA, Robson. Geração Gota d’Água: Memória de um movimento estudantil pelas liber-
dades democráticas no país. Universidade Federal do Espírito Santo 1976-1980. 2007. Entrevista
concedida a Paulo Fabris, Vitória, 4 maio 2007.
175
Numa reportagem publicada em 1988 pela extinta revista Agora, sobre os lí-
deres estudantis de 1968 no Espírito Santo, o juiz do trabalho e atual presidente
do Tribunal Regional do Trabalho do Espírito Santo (TRT-ES), José Carlos Risk,
disse que foi perseguido por Alberto Monteiro durante muito tempo. De acordo
com Risk, entre 1974 e 1978, ele deu aulas na Ufes e, sob a acusação de que era
“subversivo”, Alberto Monteiro não permitiu que ele fosse contratado 422.
422 LÍDERES estudantis de 1968: onde estão? Revista Agora, Vitória, mar. 1988, p. 21.
423 MEMÓRIAS da repressão. Revista Espírito Santo Agora, Vitória, set. 1979, p. 15.
424 MEMÓRIAS da repressão, Revista Espírito Santo Agora, Vitória, set. 1979, p. 15.
176
A mesma reportagem da Espírito Santo Agora contém, também, uma rara en-
trevista concedida por Alberto Monteiro, na qual a revista registra que o entre-
vistado era uma pessoa hábil em conduzir a conversa, a fim de evitar assuntos
polêmicos.
Nada do que dizem por aí é verdade. Sou um homem simples, que convive
amigavelmente com os estudantes porque deposito neles a confiança de um fu-
turo melhor. Mas assumo o cumprimento de meu dever dentro da universidade
e compreendo que isso possa causar antipatias 426.
425 Ibid.
426 NOTORIAMENTE desativado, Revista Espírito Santo Agora. Vitória, set. 1979, p. 16.
427 Ibid.
428 NOTORIAMENTE desativado, Revista Espírito Santo Agora. Vitória, set. 1979, p. 16.
177
429 NOTORIAMENTE desativado, Revista Espírito Santo Agora. Vitória, set. 1979, p. 16.
178
CONCLUSÕES
CONCLUSÕES
179
RECOMENDAÇÕES
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183
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