A Invisibilidade Da Desigualdade Brasileira - Jesse Souza
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Ruy Braga
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RESENHAS 139
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“usar Freyre contra Freyre”, ou seja construir a cessos essenciais à sociedade” (p. 122). Da mesma
tese da singularidade da formação social brasilei- forma o autor analisa os livros de Florestan Fernan-
ra utilizando aspectos descritivos contidos na obra des a respeito d’A revolução burguesa no Brasil, e
freyreana sem compartilhar de suas generaliza- de Luiz Werneck Vianna, Liberalismo e sindicato
ções fortemente ideológicas. Tal recurso explica- no Brasil, sempre no intuito de melhor apreender
se, por um lado, pelo fato de Souza, como mui- a singular construção de um capitalismo periférico
tos outros estudiosos, considerar Freyre nosso marcado por processos sociais que, genericamen-
principal intérprete do século XIX, o século estra- te, poderíamos qualificar de “modernização con-
tégico da modernização periférica brasileira. Por servadora” – ou processos de “revolução passiva”,
outro, pelo fato de a instituição social “total” da como diria Antonio Gramsci –, da Independência
escravidão assumir em Gilberto Freyre, ao contrá- nacional até o “pós-1930” e a hegemonia ideológi-
rio da imensa maioria dos estudiosos de nossa co-política do “organicismo estatal”.
formação nacional, um caráter central: “Se não es- Na terceira e última parte do livro, intitulada
tou sendo injusto, o tema da escravidão só atinge “A construção social da subcidadania”, encontra-
este status na obra de Joaquim Nabuco e do pró- mos um esforço final por tornar mais precisa a
prio Gilberto Freyre” (p. 103). apreensão da especificidade do processo de mo-
É nesse sentido que Souza irá identificar em dernização capitalista empreendido no Brasil e cuja
Freyre uma “versão reprimida” do núcleo da sin- forma predominante repousa sobre aquilo que o
gularidade da escravidão brasileira, resgatando da autor identifica como correspondendo à constitui-
conhecida ideologia celebratória do sincretismo ção de uma espécie de “ralé” estrutural naturaliza-
cultural – ou “democracia racial” – uma interpre- da pela reprodução característica de nossa desi-
tação específica do patriarcalismo segundo a qual gualdade periférica. Souza busca antes mais nada
a noção estrutural passa a ser, não a do consen- lançar novas luzes sobre a “formação de um pa-
so, mas um tipo de conflito “sadomasoquista” ine- drão especificamente periférico de cidadania e
rente à relação social da escravidão: subcidadania” ao longo do período de emergência
e estruturação de nossa vida republicana.
Estamos lidando, no caso brasileiro, na verdade, Para tanto, o autor dialoga criticamente com a
com um conceito limite de sociedade, onde a au- obra de Florestan Fernandes, A integração do ne-
sência de instituições intermediárias faz com que o gro na sociedade de classes, no que concerne à
elemento familístico seja seu componente princi- problemática inserção do liberto às novas condi-
pal. [...] É precisamente como uma sociedade cons- ções marcadas pela modernização capitalista. Sou-
titutiva e estruturalmente sadomasoquista, no sen- za procura deslocar o argumento do processo de
tido de uma patologia social específica, em que a marginalização permanente de grupos sociais,
dor alheia, o não reconhecimento da alteridade e a apreendido sobre a base do preconceito de cor,
perversão do prazer transforma-se em objetivo má- para a formação de um “habitus precário” estrutu-
ximo das relações interpessoais, que Gilberto Frey- rado sobre concepções morais e políticas.3 O “ha-
re interpreta a semente essencial do patriarcalismo bitus precário”, conceito construído sobre a base
brasileiro (p. 115). de um criativo trabalho de síntese entre Bourdieu
e Taylor, como já aludido, traduziria um tipo de
Souza passa também pela obra já clássica de padrão comportamental que afastaria indivíduos e
Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens livres na grupos dos padrões utilitários oriundos do univer-
ordem escravocrata, no intuito de estabelecer os so mercantil, inviabilizando um moderno reconhe-
vínculos entre escravos – função produtiva essen- cimento social do significado de ser “produtivo”
cial – e dependentes livres – franjas da atividade na sociedade capitalista, tanto a central como a
econômica –, e melhor caracterizar a “‘ralé’ que periférica.
cresceu e vagou ao longo de quatro séculos: ho- Como é possível perceber, o livro de Jessé
mens a rigor dispensáveis, desvinculados dos pro- Souza apresenta todas as condições para interes-
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sar seus leitores, acadêmicos ou não, por se tra- teoria marxista da dependência e da idéia segun-
tar, sem dúvida, de uma vigorosa e madura (re)in- do a qual o subdesenvolvimento corresponderia
terpretação das antinomias brasileiras. Mas, como ao produto da evolução capitalista periférica.
sempre acontece, uma leitura de qualidade esti- Diga-se de passagem, idéias contidas em algumas
mula o desejo de discutir e argumentar. Nesse formulações de Ruy Mauro Marini ou mesmo de
sentido, gostaria de tomar certa distância de uma Francisco de Oliveira não se encontram muito dis-
passagem que se encontra no final da obra, se- tantes da crítica empreendida por Jessé Souza às
gundo a qual: polarizações do tipo “pré-moderno/moderno” na
análise da singularidade de nossa formação so-
Todas essas ênfases deslocadas, ainda que certa- cial. É claro que tal ressalva crítica não diminui
mente possam obter resultados inegavelmente posi- em nada os superlativos méritos do livro, particu-
tivos topicamente, sempre passam ao largo da con- larmente no que diz respeito ao profícuo esforço
tradição principal deste princípio de sociedade que, de complexificar os marcos teóricos interpretati-
aos meus olhos, tem a ver com a constituição de vos a respeito da sociedade brasileira.
uma gigantesca “ralé” de inadaptados às demandas
da vida produtiva e social modernas, constituindo-
se numa legião de “imprestáveis”, no sentido sóbrio Notas
e objetivo deste termo, com as óbvias conseqüên-
cias, tanto existenciais, na condenação de dezenas 1 Nos limites de uma resenha, é impossível resumir
de milhões a uma vida trágica sob o ponto de vista a complexidade dos argumentos invocados por
material e espiritual, quanto sociopolíticas como a Souza nesse projeto “pouco ortodoxo” de comple-
endêmica insegurança pública e marginalização po- mentar Taylor com Bourdieu e vice-versa. Contu-
lítica e econômica desses setores (p. 184). do, é preciso salientar que o esforço é, ao mesmo
tempo, criterioso e inovador, além de muito bem-
Na verdade, a contradição principal da socie- sucedido teoricamente.
dade brasileira tem menos a ver com a constitui-
2 Segundo o autor, o processo modernizador da
ção de uma “ralé” de inadaptados às demandas
“nova periferia” consiste na transferência, sem me-
produtivas do que com a instrumentalização estru-
diações, de práticas impessoais da Europa para so-
tural do processo de marginalização social no sen-
ciedades tradicionais, como a brasileira: “A partir
tido da expansão e da reprodução das bases eco-
de 1808 temos no Brasil um exemplo típico do que
nômicas do capitalismo brasileiro. Dito de uma
venho chamando de processo modernizador da
outra forma, a pobreza é funcional tanto no que
‘nova periferia’, ou seja, sociedades que são forma-
diz respeito ao regime de acumulação, como ao
das, pelo menos enquanto sociedades complexas,
modo de organização da vida política nacional –
precisamente pelo influxo do crescimento – não da
com seus padrões de cidadania e “subcidadania”
mera expansão do capitalismo comercial como no
– e, assim, as classes subalternas brasileiras, ten-
período colonial, que deixa intocadas estruturas
do em vista suas características históricas funda-
tradicionais e personalistas – do capitalismo indus-
mentais, não são de forma alguma inadaptadas
trial europeu a partir da transferência de suas prá-
em relação à produção moderna.
ticas institucionais impessoais enquanto ‘artefatos
A “ralé” da qual fala o autor representa, ao
prontos’, como diria Max Weber.” (pp. 143-144).
contrário, um dos aspectos essenciais do proces-
so de reprodução do padrão de acumulação capi- 3 O essencial da crítica a Florestan radica na centra-
talista periférico organizado em torno da relação lidade que o preconceito de “cor da pele” adquire
entre o desenvolvimento capitalista e a superex- na obra Integração do negro na sociedade de clas-
ploração do trabalho. É precisamente neste senti- ses: “No contexto estamental e adscritivo da socie-
do que a discussão a respeito do caráter singular dade escravocrata, a cor funciona como índice ten-
de nossa modernidade não pode prescindir da dencialmente absoluto da situação servil, ainda
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