Dialogo Aberto
Dialogo Aberto
Dialogo Aberto
Londrina
2006
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Londrina
2006
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COMISSÃO EXAMINADORA
________________________________
Prof. Dr. Rozinaldo Antonio Miani
Universidade Estadual de Londrina
________________________________
Prof. Dr. Paulo César Boni
Universidade Estadual de Londrina
________________________________
Profª Flávia Lúcia Bazan Bespalhok
Universidade Estadual de Londrina
AGRADECIMENTOS
À Flávia Lúcia Bespalhok, pela paciência e carinho com que sanou minhas dúvidas;
À Rosane Verdegay de Barros, pela amizade quase que maternal e por ter me
ensinado a praticar um jornalismo responsável e de qualidade;
Aos meus pais, por terem garantido que eu pudesse viver este momento;
À minha família, principalmente à Nydia Natali, pelo carinho e apoio nas horas
difíceis;
Às amigas Aline, Audrey e Glória, pelos livros emprestados, pela recepção sempre
calorosa em São Paulo e, principalmente, pelos sonhos, receios e conquistas
compartilhados;
E, finalmente, a Edvaldo Pereira Lima, que me alicerçou durante toda esta viagem e
me abriu as portas para o universo da reportagem em livro.
6
RESUMO
ABSTRACT
It has as its aim to verify, in a practical procedure, how the theoretical stages of
production of the nonfiction novel are developed, – task assignment, information
search and editorship – suggested by Edvaldo Pereira Lima in his doctorate thesis,
“Páginas Ampliadas – o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da
literatura”. It was obtained over the methodology of detailed interviews, associated
with content and documental analyses, through the meeting with the writers Mylton
Severiano, Fernando Morais, Caco Barcellos and Edvaldo Pereira Lima. It also
presents a dialog between Lima´s hypotheses and suggestions and the other writers’
opinion about these concepts, functions and motivations of the nonfiction novel, in
addition to those, new points that have never been worked by Lima in his thesis.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 08
Metodologia .................................................................................................. 15
1.1 Mylton Severiano: "A escola de jornalismo pra mim é: tanto faz" ................. 22
1.2 Fernando Morais: "Livro-reportagem é a única coisa que eu sei fazer" ....... 25
1.4 Caco Barcellos: "A maneira mais bela de se contar uma história
é a da reportagem" ....................................................................................... 30
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 90
ANEXOS ................................................................................................................. 93
INTRODUÇÃO
conhecido nos meios editoriais do mundo ocidental. No Brasil, não são raros os
passar dos anos até se chegar ao que é hoje o mercado editorial do livro-reportagem
grandes editoras nacionais. Uma das maiores editoras do país, a Companhia das
Editora Record também possui números expressivos: 47 obras de seu acervo estão
e profissionais da área (ou não) que optaram por esta modalidade. Também os
1
Como não existem conceituações teóricas acerca do livro-reportagem, fato salientado por Edvaldo
Pereira Lima em sua tese: “...convém ilustrar com um exemplo a ausência de maiores referências ao
livro-reportagem nos veículos acadêmicos. O Dicionário de comunicação (Rio de Janeiro, Codecri;
1978), de Carlos Alberto Rabaça e Gustavo Barbosa - ...apresenta o verbete livro, mas nada diz de
sua variante, que é exatamente o livro-reportagem. Também apresenta o verbete reportagem, mas
tampouco aí menciona qualquer coisa a uma das formas pelas quais a reportagem pode se
apresentar, que é justamente a do livro”. (LIMA, 2004, p.9. Grifos do autor), optamos por usar a
denominação dada por esse autor em seu trabalho. Assim, o livro-reportagem será tratado como uma
modalidade do jornalismo. Também a grafia do termo - com uso de traço entre as palavras - foi
adotada em todo este trabalho, tomando-se como modelo a grafia utilizada por Lima.
9
sete estados brasileiros: São Paulo (66 inscritos), Minas Gerais (5), Paraná (2), Rio
Grande do Norte (2), Santa Catarina (2) e Espírito Santo e Ceará com um inscrito
cada.
preferência crescente que autores têm dado a esta modalidade de jornalismo, o que
(LIMA, 2004, p. 4), o que fica evidente quando comparados o número de livros-
jornalismo literário, mas apenas dois deles estão disponíveis em português e versam
teve sua 2ª edição lançada em 1998 pela Editora Brasiliense; e Páginas Ampliadas:
vezes pela Editora da Unicamp e uma pela Editora Manole, em 2004. Mais
edição em livro.
serem adotados para a confecção de uma obra de não-ficção. Segundo ele, o livro-
(LIMA, 2004 p. 8), levando-se em consideração o fato de que a função que o livro-
dos princípios que regem o jornalismo como um todo” (LIMA, 2004, p. 11).
reportagem.
jornais e revistas – e pela difusão coletiva – pois circula publicamente para uma
periódicas.
se-ia, segundo Lima, das demais publicações por três condições essenciais:
e intensivo, respectivamente.
suas obras, mesmo sem a certeza de que o acesso a eles seria possível. Nesse
falou mais alto e nos empenhamos em viabilizar o projeto, mesmo tendo consciência
acesso a eles. A entrevista com Mylton Severiano foi a que encontramos maior
facilidade, já que, no mês de abril deste ano, o autor esteve em Londrina por ocasião
Com os outros autores, os primeiros contatos foram feitos via e-mail e telefone,
cada autor estudado, além de fornecer dados relevantes sobre suas obras, com o
diz respeito à definição da pauta. No capítulo 4 o foco é para o encontro entre teoria
redação do livro-reportagem.
importância para quem se propõe a trabalhar com a não-ficção atualmente, mas que
gênero da reportagem em livro oferece muita liberdade ao autor - o que não impede
Metodologia
Pesquisa Bibliográfica
Paixão de João Antonio, de Mylton Severiano, publicado em 2006 pela editora Casa
Amarela; Carmen: uma biografia, de Ruy Castro, publicado em 2005 pela editora
Companhia das Letras; Cela Forte Mulher, de Antonio Carlos Prado, publicado em
2003 pela Labortexto; Abusado – O dono do morro dona Marta, publicado em 2003
pela editora Record, e Rota 66 – A história da polícia que mata, publicado em 2004
por alguns dos autores e excluir outros. Além de Abusado e Rota 66, de Caco
crianças; após a entrevista com Fernando Morais, além de Corações Sujos foram
incluídos Cem quilos de Ouro, Chatô – O rei do Brasil e A Ilha; outro livro que
passou a fazer parte do trabalho foi Ayrton Senna: guerreiro de Aquário, de Edvaldo
livros Carmem: uma biografia, de Ruy Castro, e Cela Forte Mulher, de Antônio
As entrevistas
utilizamos para tentar compreender nossa condição humana”, dizem Fontana & Frey
(apud DUARTE in LOPES, 2001. p. 62). Ela tornou-se técnica clássica de obtenção
definida como: “uma técnica qualitativa que explora um assunto a partir da busca de
p. 62)
17
E ainda:
contato com os autores selecionados. O primeiro resultado positivo foi com Mylton
livro Paixão de João Antônio. Um contato prévio foi feito por telefone para acertos de
data e local da entrevista. Entretanto, apesar desta primeira vitória, o contato com os
3
Ruy Castro, durante contato telefônico, negou-se a colaborar com o projeto por não se considerar
um autor de livro-reportagem. Em suas palavras: “Eu não escrevo livros-reportagem, eu escrevo
biografias, o que demanda anos de trabalho. Considero que os autores de livro-reportagem são
oportunistas, porque acontece um fato qualquer eles já vão escrever um livro pra ganhar dinheiro em
cima. Eu não quero ser incluído em trabalhos que falem de livro-reportagem.” Já Antônio Carlos
18
perguntas, porém, a cada novo contato, o roteiro de perguntas era reformulado tanto
para atender às informações pessoais que buscávamos de cada autor, quanto para
registro tão logo seja possível: “Segundo minha própria experiência, o melhor é pôr o
gravador a funcionar logo que você possa, assim que comece a falar” (THOMPSON
a pessoas que vinham ao seu escritório, o gravador era desligado. Também, ao final
Prado mostrou-se muito acessível, porém, devido à sua rotina de trabalho, não encontrou tempo para
realizarmos o encontro. Durante uma semana tentamos o contato pessoal em São Paulo. Como não
foi possível, a pedido do autor tentamos realizar a entrevista por via telefônica, procedimento tentado
por mais de um mês, mas que também não foi concretizado, o que nos levou a excluí-lo do trabalho.
19
pelos próprios entrevistados. Mylton Severiano nos recebeu no Hotel Bourbon, onde
esteve hospedado durante sua estadia em Londrina. Fernando Morais nos recebeu
em sua casa de praia na cidade de São Sebastião, no litoral norte de São Paulo. O
encontro com Caco Barcellos ocorreu nos estúdios da Rede Globo em São Paulo.
transcrição do material, que foi feito segundo sugere Portelli, citado pela professora
Análise de Conteúdo
4
Embora tivéssemos a possibilidade técnica de realizar as entrevistas por telefone, fizemos questão
de viajar aos locais das entrevistas e realizá-las pessoalmente.
20
atuais a considerassem “uma técnica híbrida por fazer ponte entre o formalismo
em sua globalidade.
22
de cada autor e os processos pelos quais seus diversos livros foram escritos.
obras, com ênfase para aquelas que integram o corpus de nossa pesquisa. O ponto
de chegada, neste capítulo, é a atuação dos profissionais nos dias de hoje, seja no
cidade de Marília, interior de São Paulo. Aos dez anos publicou o primeiro texto em
jornal escolar. Em 1960 mudou-se para São Paulo para estudar Direito no Largo São
de São Paulo. Três meses depois passou ao cargo de redator do então caderno de
Carta para integrar o expediente da revista Quatro Rodas como redator, situação
5
Os títulos que acompanham cada biografia foram extraídos das entrevistas concedidas pelos
autores, cujas transcrições encontram-se anexadas a este trabalho, e representam, de acordo com
nossa percepção, um traço da personalidade de cada um deles.
23
redator e copy, além de levar em paralelo o trabalho na revista Quatro Rodas, que
alternativos históricos, entre eles Bondinho e ex-. Após relativo sucesso, as revistas
empreendimento que foi tolhido desde o início pelos censores da ditadura militar.
Londrina, iniciativa que, por motivos políticos, durou somente um mês – a revista
1977 lançou seu primeiro livro: Se liga!, que trata de vários tipos de drogas, como
álcool, tabaco, tranqüilizantes, maconha, cocaína e LSD. Escrito por quem havia
experimentado várias dessas substâncias, o livro não condena nem endeusa tais
produtos, mas busca identificar seus vários conceitos, sejam eles culturais,
legalização.
revista Brasil Extra que, apesar do sucesso de vendas, durou somente um número.
24
jornal Hora da Notícia da TV Cultura de São Paulo entre 1973 e 1975, depois na TV
do Esporte Espetacular e Globo Esporte entre 1983 e 1984. Ainda fez na TV Abril o
cartas que restaram das 500 que João Antônio lhe enviou entre 1965 e poucos dias
(MG), onde viveu até os 18 anos, antes de ir para São Paulo. Começou a trajetória
house-organ local. Em 1965 mudou-se para São Paulo, quando começou a trabalhar
Tarde, onde passou oito anos, sucessivamente como repórter, redator, sub-editor e
Jornal da Tarde, transferindo-se para a revista Visão, de onde saiu para juntar-se à
26
equipe que fundaria o semanário Aqui São Paulo. (MORAIS, 1976, p. XV). Ainda na
década de 70, Morais deixou a rotina das redações e, desde então, prefere atuar
- datam do final de 1975 e início de 1976 os dois últimos assassinatos sob tortura, os
lança seu segundo livro: A Ilha. Nele, o autor, após três meses vivendo em Cuba,
economia, cotidiano, imprensa, reforma agrária etc. Em 2001, 25 anos após o autor
ter visitado Cuba pela primeira vez, a editoria Companhia das Letras relançou A Ilha,
com a inserção de um novo comentário do autor sobre a realidade do país nos idos
do século XXI.
judia alemã, membro do serviço secreto militar soviético e esposa do líder comunista
Luís Carlos Prestes. O livro virou filme em 2004 sob a direção de Jayme Monjardim.
literatura para dedicar-se unicamente à política: foi deputado estadual durante oito
anos – pelo MDB - SP e depois pelo PMDB - SP, entre 1978 e 1986, enquanto ainda
reportagens assinadas por ele entre as décadas de 70 e 90. O livro foi concebido
Letras, mas, como o próprio Morais explica, o trabalho se desenvolveu para outra
vertente.
revela como as histórias foram feitas e com o qual o autor deseja responder às
Como tal reportagem foi feita? Foi pauta sua ou do jornal? Em que
circunstâncias o trabalho se desenvolveu? Quanto tempo você levou
para conseguir essa ou aquela entrevista? Que dificuldades
enfrentou? Que dilemas éticos? Havia censura? Como era o Brasil
daquela época?(MORAIS, 2003, p. 10)
três sócios, gerou polêmica e teve de ser recolhido em todo o país por ordem de um
consideradas pelo político como sendo difamatórias a ele. Fernando Morais recebeu
três vezes o Prêmio Esso, quatro vezes o Prêmio Abril de Jornalismo e uma vez o
documentais Brasil, 500 anos e Cinco dias que abalaram o Brasil, exibidos pelo
canal GNT/ Globosat. Tem livros traduzidos em dezoito países. (MORAIS, 2001, p.
349)
trabalho: a biografia do também escritor Paulo Coelho. O livro ainda não possui data
Paraná, em 1951. Já residiu em Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia, Costa Rica e
Estados Unidos. Está radicado em São Paulo desde 1971. Graduou-se em Turismo
Cidade do México pela Editora Trillas; em 1993 lança Páginas Ampliadas: O Livro-
fruto de sua tese de doutoramento e base teórica deste trabalho. Também em 1993
6
O Jornalismo Literário Avançado é um estilo de trabalho criado por Edvaldo Pereira Lima que traz
para dentro do Jornalismo Literário alguns elementos das ciências de ponta do século XXI, como a
física quântica, a psicologia humanista, as neurociências, a biologia e a nova história francesa. Para
traduzir e integrar tais conhecimentos ao campo da comunicação, Lima desenvolveu um método de
trabalho que ele chamou de Escrita Total. A forma narrativa da Escrita Total é similar à utilizada pelo
jornalismo literário, porém, a visão de mundo é expandida, os propósitos são ampliados e algumas
técnicas são inseridas, como a visualização criativa, o método narrativo da jornada do herói e o
mapa mental, este último explicado no capítulo 4 deste trabalho. Todos esses recursos foram
empregados pelo pesquisador em Ayrton Senna – Guerreiro de Aquário, obra em que tanto a
narrativa como o propósito diferenciam-se muito do que até então podia ser encontrado no mercado
editorial de livros-reportagem no Brasil. O JLA, segundo Lima, foi criado com o objetivo enriquecer a
visão de mundo dos autores, possibilitando a criação de obras que ajudem o leitor a transformar sua
compreensão da realidade e cujos textos "sejam instrumentos de auxílio à construção de um mundo
realmente melhor" (LIMA, 2006).
30
Literário (ABJL). Além disso, Edvaldo Pereira Lima cobre o setor de aviação de toda
reportagem”
com desigualdades sociais, o que mais tarde viria a determinar o seu estilo e opção
infância, como, por exemplo, vendedor de sucata. Aos 18 anos, enquanto cursava a
exatas teve seu primeiro contato com o jornalismo, ao ser convidado para fazer o
começou sua carreira na Folha da Manhã, em Porto Alegre. Era o final do ano de
1973.
31
Foi com esse olhar que, em 1979, mesmo morando em Nova York -
onde desenvolvia trabalhos paralelos para sustentar a primeira mulher Avani Stein e
revistas Veja e Isto É e apresentou, por seis anos, um programa semanal para a
Globo News, todo produzido nas periferias e áreas mais pobres do país,
que deu origem ao seu segundo livro, Rota 66 – A história da polícia que mata,
resultado de sete anos de pesquisa sobre os abusos e crimes cometidos pela Polícia
1970 a 1992. O livro, que foi lançado pela primeira vez em 1992 pela Editora
morro Dona Marta, um relato do tráfico nos morros cariocas. No livro, que lhe custou
morros do Rio de Janeiro. Tendo como fio condutor a história de Márcio Amaro de
Oliveira, o Marcinho VP, tratado no livro como Juliano, Caco conduz o leitor pelas
vielas e becos da favela Dona Marta – escolhida por ele por ser uma favela vertical e
da trajetória profissional dos autores aqui analisados e o contexto que deu origem a
cada obra, porém, não é somente por esse caminho que tentaremos compreender
próximos capítulos.
34
Severiano, Caco Barcellos e Edvaldo Pereira Lima, bem como identificar o contexto
no qual estão inseridas suas respectivas obras. Neste capítulo, nos ateremos ao
indica que as técnicas aplicadas para se fazer uma pequena reportagem são as
7
Não nos ateremos, neste capítulo, às definições de livro-reportagem propostas por Edvaldo Pereira
Lima por entendermos que o assunto, se não esgotado, já foi suficientemente abordado na
Introdução.
35
tese de Lima:
produção de um livro-reportagem aos por ele empregados nas redações dos jornais
em que trabalhou.
do sistema jornalismo", nos cabe perguntar em que contexto e por quais motivos
realizar uma análise - mesmo que superficial – das práticas incorporadas nas
redações nas últimas décadas. A corrida cada vez mais sufocante conta o tempo, a
nos elementos o que, quem, quando, onde, como e porque e a recorrência apenas a
fontes consideradas legítimas (LIMA, 2004, p.66) são os fatores que, tanto Edvaldo
Segundo Lima:
36
práticas inseridas nas redações em decorrência deste fato - e o uso dos manuais de
Fernando Morais, que salienta a falta de tempo como sendo um fator limitante à
Todo jornalismo deveria ser literário, mas não dá, tem hora pra
fechar, tem limitação de espaço físico...Nas revistas você encontra
gente ali capaz de fazer livros de uma qualidade estética, de uma
qualidade literária impecável e que não pode fazer isso no cotidiano
do jornal, porque não dá tempo. A realidade comprova isso. Há um
mercado interessante [de livros-reportagem], há uma demanda
interessante por histórias do Brasil. Começou com a ditadura, com o
fim da ditadura, que foi quando as pessoas começaram a poder se
assanhar. Então se você olhar de lá pra cá o que saiu nessa área, é
uma barbaridade e acho que isso se deve à carência de grandes
reportagens na imprensa. O livro-reportagem supre hoje uma
deficiência da imprensa. (MORAIS, 2006)
37
reportagem viva, o que acaba por ser um fator de atração para os leitores:
8
Lima utiliza-se do termo “aparente” pois não descarta as outras funções exercidas pelos livros-
reportagem, como as funções ideológica, política, econômica, educativa e todas as demais (conf.
LIMA, 2004, p. 40)
38
Estes são alguns dos motivos apontados pelos autores para a escolha do caminho
jornalismo periódico os fatores que abrem espaço para o livro, no qual a primeira
marca é, muitas vezes, a liberdade do autor, o que permite ao jornalista fugir aos
9
Este aspecto na obra de Caco Barcellos será abordado novamente mais adiante, no capítulo sobre
definições de pauta.
39
Apesar de serem verdadeiras, as afirmações foram por nós entendidas como uma
ironia do autor, já que ele trilhou um longo caminho de reportagem até chegar à
usou como critérios “o objetivo particular, específico com que o livro desempenha
tema de que trata a obra” (2004, p. 51) Assim, temos os seguintes grupos de livro-
Livro-reportagem perfil
livro-reportagem biografia.
Livro-reportagem depoimento
escrito pelo próprio envolvido na ação – com auxílio de um jornalista ou não – ou por
Livro-reportagem retrato
objeto em questão.
Livro-reportagem ciência
Livro-reportagem ambiente
homem e natureza.
Livro-reportagem história
tempo, porém, sempre mantendo algum elemento que o conecta com o presente,
possibilitando, dessa forma, um elo comum ao leitor atual. Esta atualização pode
dar-se tanto com a atualização “artificial” de um fato como por outros motivos.
Livro-reportagem instantâneo
Livro-reportagem atualidade
atuais de maior perenidade no tempo, mas cujos desdobramentos finais ainda não
são conhecidos. Assim, permite que o leitor resgate as origens do fato ocorrido, seu
Livro-reportagem antologia
publicadas na imprensa cotidiana ou até mesmo em outros livros. Podem ser tanto
trabalhos de diferentes jornalistas, sobre diversos temas, mas que têm em comum
Livro-reportagem denúncia
Livro-reportagem ensaio
sobre o tema, de forma que esta presença conduza o leitor a compartilhar do ponto
43
decorrer do livro.
Livro-reportagem viagem
específica, o que serve para retratar aspectos sociais, históricos e humanos das
reportagem, o próprio Edvaldo Pereira Lima admite que elas não podem ser
2004, p. 59). Tanto é que, o próprio Lima, na entrevista referida, incluiu uma nova
inseriu sua obra Ayrton Senna – Guerreiro de Aquário. Esta nova categoria de livros-
qual categoria seus livros poderiam ser enquadrados. Barcellos, ao ser perguntado
Eu acho que não, quero dizer, eu não queria [que o livro fosse
enquadrado na categoria Biografia], mas o pessoal acabou
divulgando como se fosse a história do Marcinho VP. Eu acho que
não é. É a história da quadrilha dele, da quadrilha da 3ª geração,
mas claro que dá um grande personagem de livro, por ser o chefe da
quadrilha. É mais uma reportagem sobre o morro. Eu não sei se ele
se enquadra em alguma classificação.Talvez tenha, bem definida,
mas eu não sei qual é. Eu comecei a falar romance-reportagem, mas
nem sei se existe isso, e acabaram reproduzindo “romance-
reportagem”. (BARCELLOS, 2006)
às classificações, os livros de sua autoria que fazem parte do corpus deste trabalho
foram inseridos, de acordo com a Câmara Brasileira do Livro, nos seguintes grupos:
definição da pauta.
10
Assim como sugeriu Lima, quando afirmou que "na prática é possível que títulos se enquadrem
simultaneamente em mais de uma classificação” (LIMA, 2004, p.59), enquadramos algumas das
obras em mais de uma categoria.
46
CAPÍTULO 3: PAUTA
– tendo em mente, é claro, que ele acaba por revestir-se de qualidades específicas,
também fora dele, o que faz com que ganhe características individualizadoras
(LIMA, 2004, 61) – é lógico pensar que também o primeiro passo a ser dado para a
almejado. Neste capítulo trataremos desta primeira etapa de produção de uma obra
procedimento simples – não é igual para jornalistas em seus trabalhos nas redações
oferece maior grau de autonomia, já que mesmo os profissionais que têm liberdade
vieses de leitura com que o jornalismo tem encarado habitualmente o real" (LIMA,
2004, p. 81), hipótese esta que não deixa de levar em conta, é claro, as
e a relatividade de tudo.
serem entrevistadas, definir o tempo que o livro irá abordar – livre, assim, da
ilustrando seu pensamento com o caso do livro Corações Sujos, que, de acordo com
[...]Em primeiro lugar tem que ter algum ineditismo. Tem que ser um
personagem que tenha uma vida diferente da minha, da sua, que
justifique a energia que você vai gastar com ele, ou seja, ele tem que
ser ou agente ou testemunha de coisas, de episódios, de fatos que
sejam saborosos. O ideal é que sejam saborosos e importantes. Se
você for olhar os meus personagens, sejam os biografados ou não,
você vai encontrar esse ingrediente. O ideal é você pegar um
personagem cujo trajeto, cujas pegadas, te ajudem a contar um
pouco da história do Brasil que não foi contada, história não oficial,
não obrigatoriamente a chamada história dos vencidos, pode até ser
a história dos vencedores, desde que conte coisas que a história
oficial não contou.
[...] talvez o caso dos Corações Sujos seja um bom exemplo de como
surge um assunto. Por acaso, entrevistando uma mulher, que foi
namorada do Chatô quando era mocinha, uma japa, eu perguntei
como o Chatô tinha chegado perto dela se ele não tinha nenhuma
ligação maior com a comunidade japonesa do Brasil. Ela contou que
o pai dela tinha sido preso, era um funcionário dos Associados
[Diários Associados], e o Chatô deu carteiraço nas pessoas,
conseguiu soltar. No dia que ela foi lá agradecer, junto com o pai, o
Chatô viu aquela japonesinha e caiu em cima, mas daí eu já não
estava me interessando mais pela história da paixão, eu queria saber
porque o pai tinha sido preso, se era por razões políticas e tal, e ela
disse: "Não, era por causa da Shindo Renmei", eu disse "Que Shindo
Renmei?" Na hora que eu falei Shindo Renmei, que eu comecei a
perguntar, ela começou a arrepiar, a dizer, "Ahh não, não, não se
preocupe, isso é uma briga de família, de japonês", o que só fez
despertar o meu interesse. Essa história, enquanto eu escrevi Chatô,
eu guardei, eu tenho um arquivinho de histórias que podem, em
algum momento, servir. Quando estava para terminar o século, 97,
98, o Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, me propôs um livro,
que seria muito legal, e que a gente chamava enquanto não tinha
nome como “O século das sombras”. Era fazer uma recontagem que
era pra sair no ano 2000, personagens e histórias do século XX que
49
desenvolvido.
com seu método pessoal, constroem suas pautas a partir de análises sobre qual
12
Outro trecho da entrevista com Caco Barcellos que trata dos processos iniciais de realização de um
livro-reportagem e estão descritos com mais detalhes pode ser encontrado no capítulo 2 deste
trabalho.
50
Jornalismo Literário Avançado, com sua nova forma de visão de mundo, integrando
uma obra de não-ficção, além de acompanhar como se dão, na prática, todos esses
informações.
52
abordagem inicial a ser aplicado, o autor de livro-reportagem passa para a etapa que
(LIMA, 2004, p.90), auxiliando a compreensão real, mas também colocando dose
forma conjugada.
histórico de vida ao comportamento, dos valores aos conceitos" (LIMA, 2004, p. 93).
Nesta técnica, que busca construir um retrato humano por trás, muitas vezes, do
[...] uma entrevista de tipo aberto se define como história de vida uma
vez que utiliza a vivência do entrevistado de maneira longitudinal,
buscando encontrar padrões de relações humanas e percepções
individuais, além de interpretações sobre a origem e o funcionamento
dos fenômenos. (BUITOINI apud LIMA, 2004, p. 93).
54
realidades.
Outra técnica que provém das ciências sociais e pode ser utilizada
descobriu que não há como retratar a realidade senão com vivacidade, cor,
consiste no registro dos gestos cotidianos, das maneiras, costumes, hábitos, estilos
comportamento etc. Mesmo que sem a mesma intensidade com a qual a observação
participante era aplicada nos anos 60, ela ainda hoje é utilizada e surge como
a situação examinada. Nesta etapa, porém, Lima não indica se o procedimento seria
formas conjugadas.
uma deficiência neste campo na imprensa brasileira, Lima destaca alguns autores
que são exceção no assunto, como o próprio Fernando Morais, que veremos mais
adiante.
na atualidade. Nela:
E conclui Lima:
com Caco Barcellos, que mesmo que intuitivamente, o autor utiliza-se de quase
Outro trecho que deixa claro o uso dos procedimentos sugeridos por
Lima é este no qual Barcellos, ainda falando sobre o Abusado, explica como
trabalha a documentação:
[...] essa história recorrente dos meninos, pra facilitar o exemplo: tá,
matou três crianças. Que dia foi? O pessoal nunca lembra. O morro
58
importante e deve ser realizada em exaustão, mesmo que isso signifique ter de
captação das informações, da apuração, é uma etapa exaustiva. O livro Rota 66, por
tais tempos são relativos, já que o autor necessitou conjugar seu trabalho na
televisão com a apuração dos materiais que dariam origem aos livros, Barcellos
confessa que este é um processo de muito fôlego. Quando perguntado até onde ia
neste trecho em que Morais descreve a forma como iniciará o seu próximo livro, a
13
É interessante observar que, nem Barcellos, nem Morais, conhecem o método pelo nome de
observação participante.
61
personagem, o que nos fez estabelecer uma ligação com os outros procedimentos
trabalho de apuração que realiza antes de publicar uma obra, por isso, também
perguntamos a ele até que ponto esta etapa se estende. A resposta revela, assim
como na declaração de Barcellos, que essa é uma decisão muito difícil a ser tomada
que deram origem à Paixão de João Antônio demorou quatro anos e meio, entre
documentação:
62
técnica com a experiência do próprio Edvaldo Pereira Lima, por ocasião dos
o que nos faz concluir que tais técnicas estão inseridas e podem ser aplicadas por
exclusivamente da percepção do autor sobre o material que tem em mãos para que
algum viés que poderia ser melhor trabalhado, ele retorna às investigações:
Normalmente eu volto, a não ser que seja uma coisa que eu deixei
de abordar mas é uma coisa super secundária e não precisa de
maior abordagem. Mas se eu sentir que para o foco provável da
matéria aquilo é importante, eu volto atrás. Com os entrevistados, por
exemplo, eu sempre deixo a abertura pra eventualmente voltar. Com
as observações também, então eu nunca fecho um assunto com a
pessoa. Eu digo: "Olha, parece que acabou, mas se precisar, eu
posso voltar a contatar?". A mesma coisa a documentação que eu
leio, que eu acho que é suficiente, que tá feito, mas num outro
momento, se eu percebo que faltou alguma coisa, eu vou atrás pra
completar aquilo, desprezo quando realmente me parece que não
tem muita necessidade. (LIMA, 2006)
64
registro das informações, Edvaldo Pereira Lima também inovou o processo com um
Na minha cabeça, o propósito do livro tem que estar muito claro, qual
o objetivo do livro, que aspectos ele vai abordar. Em função disso eu
preparo um roteiro de captação, que busque atender a aqueles itens,
aqueles sub-temas, e aí tem várias formas de processamento da
captação. Uma delas é a entrevista. Na entrevista eu uso gravador.
Eu prefiro sempre usar o gravador, obviamente neutralizando ao
máximo a presença do equipamento, para não provocar inibição nas
pessoas, e tento fazer com que a pessoa se sinta à vontade pela
conversa. Esse é um processo. Outro recurso que eu uso hoje em
dia, não usava na época do Ayrton porque eu acrescentei ao meu
método depois, é fazer um mapa mental. Mapa mental é um registro
das observações que eu estou fazendo durante a entrevista, então
isso me facilita, por quê? O gravador está cuidando de gravar a fala e
eu estou observando outros sinais, o olhar, o gesto, o
comportamento psicológico, emocional, se a pessoa fala alguma
coisa com emoção na voz, se ela fala empostadamente, segurando a
emoção, o que o corpo dela está me transmitindo, o ambiente em
torno eu observo. Então isso me facilita muito porque se eu ficasse
tentando só gravar o que a pessoa diz, eu acho que me diminuiria a
capacidade de observar os outros sinais que são importantes. (LIMA,
2006)
O próximo ponto a ser trabalhado será a redação, última etapa na produção do livro-
CAPÍTULO 5: REDAÇÃO
trabalho.
fase que, segundo Edvaldo Pereira Lima, pode ser comparada a um jogo implícito
com o leitor.
Para alcançar este objetivo, o autor deve criar um texto que flua com
naturalidade, que transite suavemente de uma passagem a outra, que tenha ritmo,
de como Caco Barcellos soube utilizar bem este recurso em Rota 66:
68
que pode ser entendida como a representação particular dos seres, dos objetos e
dos ambientes. A descrição "[...] imobiliza esse objeto ou ser em certo instante do
que se faz pela soma dos detalhes com o observador imóvel em relação ao
emocional, serve não apenas para detalhar uma situação, mas também para evocar
Ampliadas. Sempre citando Sodré e Ferrari, Lima explica (2004, p. 154) que o termo
problema.
com estilo didático, o tema de que trata a reportagem – e, por fim, poética. Segundo
não-ficção.
Angulação, que significa, nas palavras do professor Gaudêncio Torquato, citado por
Lima, o ato de "[...] escolher uma abordagem, uma palavra, uma imagem, cores;
interessante da matéria.
Lima:
que está sendo desvendada. Para cumprir tal tarefa, a narrativa tem
de selecionar a perspectiva sob a qual será mostrado o que se
pretende. Em outras palavras, deve optar na escolha dos olhos – e
de quem – que servirão como extensores da visão do leitor. (LIMA,
2004, p. 161)
com uma menos habitual em segunda pessoa -, é mais comum nos livros-
narrador protagonista.
Em nosso corpus, dois dos livros estudados foram escritos com foco
este trecho em que Caco Barcellos nos apresenta um dos momentos mais tensos de
Severiano, por ser uma obra composta não só de narrativas, mas também de cartas,
contos e críticas, alterna a primeira com a segunda pessoa do singular e, ainda, com
a primeira do plural14.
14
Destacamos a flexão de alguns verbos com o objetivo de ilustrar os diferentes pontos de vista nos
quais foram escritos os trechos retirados da obra de Severiano. O procedimento também se repetiu
nos fragmentos do livro de Lima, reproduzidos abaixo.
73
vinha dobrando a cada década desde os fins dos anos 1930. Inchava
de imigrantes, como eu, chegado de Marília em 1960.
Duas da manhã, podíamos sair a pé sem susto da Folha, com
entrada ainda pela alameda Barão de Campinas, ir jantar filé à
cubana no Planalto, na Avenida Ipiranga, ao lado do Jeca; ou o Filé
do Morais na Praça Júlio de Mesquista. Com pouco dinheiro,
freqüente, croquete com batatas na Salada Paulista, ao lado do
Brahma, na famosa esquina: Ipiranga com Avenida São João. [...]
Tímido, comprei o livro e não pedi autógrafo. Em torno do estreante
de 26 anos, gente importante: a poeta Ilka Laurito Brunhilde [...]
(p.33).
alternância do ponto de vista e suas variações e dessa nova visão sobre o livro-
reportagem.
15
Assim como explicou Edvaldo Pereira Lima no primeiro capítulo, quando tratamos das
classificações, a obra Ayrton Senna – Guerreiro de Aquário é uma peça típica do JLA.
74
são formados por narrativas extensas, o desafio do autor, nesta etapa, é tratar
unidade organizada com lógica e harmonia (LIMA, 2004, p 166). É dessa engenharia
mas sim de criar um ritmo na narrativa que seja capaz de estabelecer aquele jogo
Para Lima:
utilizou o termo "romance". Como o uso deste termo para a designação de obras de
tem ligação com seu modo particular de estruturar a narrativa, no que, o autor
respondeu:
típica do morro, o que acaba por conferir maior veracidade à cena. Caco Barcellos
em Abusado:
ainda ser – muito influenciado por outros autores de não-ficção e até ficcionista,
Durante encontro que tivemos com Edvaldo Pereira Lima, este autor
nos explicou o porquê de Caco Barcellos ter lido mais de 30 vezes o livro A Sangue
Frio, de Truman Capote, questão que havia ficado em aberto durante a entrevista
com o Barcellos:
que ele leu trinta vezes, ele sacou qual era. "Pô, desses recursos,
quais eu posso empregar?" Veja o Abusado. Viu alguma semelhança
com o A Sangue Frio? Não só pelo tema, mas a estrutura, entendeu?
Isso é investir no seu próprio talento. (LIMA, 2006)
redação é uma etapa difícil de ser realizada, mesmo para autores experientes e já
para imprimir um ritmo à escrita, e que muitas vezes eles não são alcançados.
elementos se utiliza.
Morais, é um trabalho que exige fôlego e paciência, e onde não conta somente a
inspiração.
[...] eu as vezes fico aqui dois três dias aqui para acertar um
parágrafo, desesperado, desesperado...Eu hoje tava andando de
manhã na praia e lembrei de uma palavra, era "temido", tava
precisando da palavra "temido"...peguei o celular, liguei pra
secretária eletrônica e "temido" [...] É aquilo que o Millôr Fernandes
fala que é noventa por cento de transpiração e dez por cento de
inspiração. Noventa por cento de transpiração, é trabalho, trabalho,
trabalho. É a carta do Mário de Andrade para o Fernando Sabino16.
Não tem frescura não, "Eu sou um intelectual, eu sou um literato, eu
estou aqui e a inspiração não aparece", vá ao diabo! Você não tem
que comer? Não tem que pagar a conta de luz? Não tem que
trabalhar? Agora, faça bem feito, faça bonito, faça elegante, conta a
coisa de uma maneira saborosa, escolhe a palavra certa. No fundo,
fazer um livro, seja ele um livrinho nessa área de trabalho, de
jornalismo, ou um livro sobre o Chateubriand, no fim, é construir tijolo
por tijolo, sabe?! Você não escreve um texto em toques de cinco
páginas, cinco parágrafos. É palavra por palavra, letra por letra, é
esmerilar, ficar com um cinzel ali... "Ahh, ainda está um pouco
áspero", então lima mais um pouquinho.
16
Fernando Morais refere-se ao livro Cartas a um jovem escritor, no qual estão compiladas as
correspondências enviadas por Mário de Andrade à Fernando Sabino. O trecho em questão é: “Não
tem disposição? Não se trata de ter disposição, você é um operário como qualquer outro: se trata de
ter horas de trabalho. Então vá escrevendo, vá trabalhando sem disposição mesmo. A coisa
principia difícil, você hesita, escreve besteira, não faz mal. De repente você percebe que,
correntemente ou penosamente (isto depende da pessoa) você está dizendo coisas acertadas,
inventando belezas, forças etc. Depois, então, no trabalho de polimento, você cortará o que não
presta, descobrirá coisas para encher vazios etc etc.” (ANDRADE, SABINO, 1981, p. 25)
79
ilustrativo, intercalamos trechos de sua entrevista com fragmentos dos livros Chatô –
Na hora que você fala "tá pronta" [referindo-se à apuração], daí vai
fazer uma estrutura, daí é você, daí não tem mais nada a ver com o
personagem. Você pode fazer um negócio rigorosamente
cronológico... você faz a história do jeito que você quiser, conta como
você quiser. O Chatô eu comecei com uma mentira, um delírio dele...
(MORAIS, 2006)
breve trecho de sua entrevista que diz respeito ao uso de técnicas no momento da
redação.
Então eu vou escrever um livro [...] Por onde eu começo, o que vou
fazer? Eu acho que é a cabeça de cada um, depende da pessoa, do
autor que vai escrever aquilo. Aliás eu sou suspeito pra essa posição
porque eu sou contra a exigência do diploma, a escola de jornalismo
pra mim é: tanto faz. Se a pessoa quiser fazer, faz. Se não quiser,
não faz. Jornalista primeiro tem ser bom de texto, tem que escrever
bem, tem que ter lido muito.
Eu acho que o jornalismo é um gênero literário [...] Então, como é um
gênero literário, cabe tudo...fluxo de consciência, todos esses
diálogos, elipses, metáforas, tudo vale [...] (SEVERIANO, 2006)
17
Mesmo tendo encontrado dificuldades na análise da entrevista com Mylton Severiano, justamente
por ele se considerar totalmente avesso a técnicas, inserimos os trechos referentes ao assunto
abordado por entender que a posição do autor é reveladora, no que diz respeito à realidade das
redações e perfil de autores de não-ficção no Brasil.
81
realmente sejam todos eles. Neste trecho de sua entrevista, Severiano confunde-se
Pereira Lima, nos quais ele nos conta como inicia o processo de redação, com a
E ainda:
haviam sido apontados por Páginas Ampliadas, mas que julgamos importante para a
durante a etapa da captação e que situa-se como o primeiro procedimento a ser feito
como ler todo o material coletado mais de uma vez antes de criar o roteiro, separá-
los em pilhas de acordo com o assunto e grifar os textos com diferentes cores para
[...] Eu adoro papel. Pra mim não é concreto isso aqui [aponta para o
computador]. Então antes tem que pôr no papel, eu pego o papel, pra
sublinhar, com várias cores: o que é prioridade, é, sei lá, em
vermelha, segundo em importância, azul, terceira, amarela, quarta,
bem fraquinha. Enfim, tem mil loucuras pra me organizar. Eu sou
extremamente indisciplinado, eu sou uma pessoa desorganizada,
84
só horas de gravação, mas também documentos, diários pessoais e tudo mais que
ajuda na organização.
Quando você está de posse com aquilo que você supõe que seja
material de pesquisa, aí é um período duro, de trabalho quase braçal,
mas se for bem feito é recompensador, porque quanto mais
abundante e quanto mais... Porque não adianta você ter uma
pesquisa abundante se você não sabe onde as coisas estão, então
eu pego 40 anos de diários do senhor Paulo Coelho, bom, o diário,
embora ele seja cronológico, ele faz muito flash-back, eu preciso
organizar isso. Outra coisa, o que eu vou usar e o que eu não vou
usar? Eu estou falando do diário do Paulo Coelho, mas eu poderia
falar das atas da Shindo Renmei, então aí entra sim um pouco de
metodologia, é inevitável. Eu numero tudo, de cada tema, de cada
ano. Todas as páginas são numeradas [Fernando Morais mantém
sempre uma maquininha de numerar em seu escritório]. Separo, no
caso do Paulo, por exemplo, tem uma separação grossa que é
cronológica. Se você vir ali [aponta a estante em que as pastas estão
85
E continua:
a fase da captação e mesmo no momento das entrevistas, com a criação do que ele
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fernando Morais, Caco Barcellos e pelo próprio Edvaldo Pereira Lima. Viagem esta
que elucida os caminhos, mas não determina qual é o local da chegada, que aponta
isso pudemos abranger o contexto do objetivo que nos interessava. Porém, mais do
prática, que entendemos ser integrantes de uma única via, mesmo que a primeira
esta monografia?
considerado sim - não só por teóricos, mas também por profissionais ligados
revelou que muitos dos procedimentos sugeridos pelo pesquisador são sim
trabalho dos autores -, mesmo que estes não os conheçam pelos nomes com os
mas que não encontraram eco na opinião dos autores aqui estudados. Porém, tais
abrangendo aspectos que não haviam sido trabalhados por Lima em Páginas
Ampliadas, mas que foram identificados no decorrer das entrevistas com os autores.
trabalho.
inferimos que é a teoria, não de forma acabada, que está fundamentada nos
produção de um livro-reportagem, mas que, por mais que os autores não sigam
sistêmico deles - , a teoria está sim sistematizada e não deve ser deixada de lado
trabalho por não contemplar nosso objetivo, porém fazem parte de experiências
sobre a teoria, opinião sobre o mercado editorial de não-ficção no Brasil, sobre o que
desta modalidade. Fica, então, o convite para ler o material em anexo e aprofundar
essas reflexões, de modo a contribuir cada vez mais para o incremento do universo
da reportagem em livro.
mundo da não-ficção e com um profundo respeito por todos os autores que tão bem
me receberam e que me mostraram que o respeito pela verdade e pelo ser humano
é mais importante que qualquer desejo pessoal que venhamos a ter. Edvaldo
REFERÊNCIAS
BARCELLOS, Caco. Abusado – O dono do morro dona Marta. 16. ed. Rio de
Janeiro: Record, 2006.
CORNELSEN, Julce Mary; MÜLLER, Mary Stela. Normas e padrões para teses,
dissertações e monografias. 5. ed. Londrina: Eduel, 2003.
FONSECA JUNIOR, Wilson Corrêa da. Análise de Conteúdo. In: BARROS, Antônio
Teixeira de; DUARTE, Jorge (Coords). Métodos e Técnicas de Pesquisa em
Comunicação. São Paulo: Atlas, 2005. p. 280-304.
91
GIRON, Luis Antônio. Um autor boêmio entre duas Lapas. Disponível em:
<http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG72525-6011-395,00.html>.
Acesso em 9 de out. 2006.
GONÇALVES, Jaime; PINTO, Sônia Oliveira. Caco Barcellos fala sobre Marcinho
VP, o Robin Hood do tráfico. Disponível em:
<http://www.piratininga.org.br/artigos/arquivo/artigo_cacobarcellos.htm>. Acesso em
5 de out. 2006.
___________. Chatô – O Rei do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
SEVERIANO, Mylton. Paixão de João Antônio. São Paulo: Casa Amarela, 2005.
STUMPF, Ida Regina C. Pesquisa Bibliográfica. In: BARROS, Antônio Teixeira de;
DUARTE, Jorge (Coords). Métodos e Técnicas de Pesquisa em Comunicação.
São Paulo: Atlas, 2005. p. 51-61.
92
WOLF, Rom. Radical Chique e o Novo Jornalismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2005.
93
ANEXOS
94
ANEXO A
[Durante uma conversa prévia, expliquei a Mylton objetivo do trabalho, por isso, na primeira pergunta,
não há uma introdução ao assunto]
96
Cristiane – A primeira pergunta acho que é justamente essa, Mylton, que se hoje em dia..existe na
produção.....quando um autor se propõe a fazer um livro-reportagem, se existe a preocupação com
pela técnica ou ela foi suprimida pela prática? Se a prática está mais do que a os textos, mais do que
a preocupação com a linguagem, com a pauta..várias coisas...
Cristiane - A técnica, no sentido assim, que algumas teorias, né, de poucas pessoas como o Edvaldo
Pereira Lima, por exemplo, propõem classificações, propõem etapas que deveriam ser cumpridas na
produção de um livro-reportagem, né, como a pauta e depois a captação das informações por várias
técnicas além da entrevista, né e tal, pra depois sentar e escrever o livro, daí depois com o estilo do
autor. A questão que eu gostaria de saber de você é, se hoje em dia, quando o autor vai escrever o
livro-reportagem, se ele se preocupa com isso, ou se tem a impulsividade e as coisas vão fluindo,
como é isso?
Mylton – Eu, eu vejo assim..[responde relutante] o resultado que eu vejo, né. O caminho que a
pessoa fez não altera o produto, né. Agora, o mínimo de organização você tem que ter quando você
vai partir prum trabalho, né, mesmo que essa organização seja aparentemente, para a maioria das
pessoas, um caos. Eu acabei de lançar um livro que não deixa de ser um livro-reportagem, porque é
uma biografia, e ali tem tudo, todas as técnicas jornalísticas praticamente, ali tem entrevista, tem
pesquisa, tem pesquisa na Internet, hoje, que não existia antigamente, tem consultas, tem
documentos escritos, cartas, histolografia [ou autor, na verdade, queria dizer historiografia] né, tem
história, enfim...Eu adotei...como eu tinha, né, eu tinha no escritório, assim, uma mesa cheia de
coisas, e um mundo de informações na cabeça, por isso eu falei caótico, eu não sabia como eu fazia.
Por onde eu vou começar? Então eu até me lembrei, em dado momento, do José Carlos Barão, que
foi um baita texto de repórter da revista Realidade, que é uma revista cult hoje, o José Carlos Barão
uma vez pegou uma reportagem... qualquer reportagem da revista, da Realidade... eu era um dos
editores de texto e ele me mostrou uma coisa curiosa, ele falou...eu sou conhecido como Myltainho,
"Ô Myltainho, olha que coisa engraçada", ele fechou os olhos, pegou o texto aberto assim, fechou os
olhos, pegou o dedo e baixou assim e pôs [com um papel na mão, Mylton reproduz o movimento de
quem, com os olhos fechados, aponta, ao acaso, um ponto no texto] e aí olhamos ....e a matéria
podia começar ali, sabe, quer dizer...você pode...as possibilidades são quase infinitas pra você partir
pro trabalho, depois de você captar tudo o que você tem. E a organização prévia, a organização
prévia também, eu acho que...se você tiver uma...um auxílio como esse do Li...Lima, né? Você tem
alguém que te passa uma dica de como você organizar o seu trabalho de campo, o seu trabalho
prévio pra você partir pra escrever, e for útil pra pessoa, tudo bem, eu acho muito útil. Quer dizer,
tanto faz você partir de um jeito seu, especial, exclusivo, que possa parecer fora dos cânones, como
se você tiver alguma organicidade de técnica, né, de captação das informações. Pra mim é
indiferente, o que me interessa é o produto, é o resultado. Você lê uma coisa que está maravilhosa e
a técnica que você usou é absolutamente fora dos padrões, pra mim não tem importância, né...
Cristiane - Na verdade, o que me motivou pra esse tema é que o Edvaldo acaba tendo uma voz
única, além da Cremilda Medina ..
Mylton – ECA.
Cristiane - ...e tem um site que chama texto vivo, que é sobre jornalismos literário, só que ele acabou
sendo um dos poucos teóricos sobre o assunto, né, e aí, a idéia partiu de entrevistar autores
consagrados...
Mylton – [risos] Bibliografia é ótimo. Certo, então você veja, se você pegar uma bibliografia de, sei lá,
dez livros básicos pra você atingir a um resultado e der pra 30 pessoas, vão sair 30 coisas diferentes.
Então é isso que eu estava falando....
Cristiane – O que eu queria saber é assim: pra um autor, é necessário passar por essas etapas?
Mylton – Não!
Mylton – Não, eu acho que... Você vai escrever um livro sobre o que? Então você tem o assunto, seu
objetivo. Eu vou escrever um livro sobre jornalismo literário, vai. Por onde que eu começo? O que vou
fazer? Eu acho que é a cabeça de cada um, porque pode sair... depende da pessoa, do autor, da
pessoa que vai escrever aquilo...[pausa] Não vejo, aliás, eu sou suspeito pra essa posição porque eu
sou contra a escola de jornalismo...não, desculpa, eu sou contra a exigência do diploma. A escola de
jornalismo pra mim é: tanto faz! Se a pessoa quiser fazer, faz, se não quiser não faz. Jornalista tem
ser primeiro bom de texto, tem que escrever bem, tem que ter lido muito. Outro dia tinha uma carta na
revista Caros Amigos de uma moça falando, a propósito de algum assunto lá, que ela tinha tido um
namorado que era estudante de direito...e ela...que era estudante de jornalismo, o namorado, o ex-
namorado dela, e ela estudante de direito, e o rapaz, esse ex-namorado, tinha lido 1 livro. Um
estudante de jornalismo que leu 1 livro? Eu prefiro um que não estudou jornalismo mas que leu 100
livros. Esse que leu 100 livros é muito mais capacitado a ser jornalista, a escrever bem, do que um
sujeito que está na escola de jornalismo e leu um livro na vida. O que é isso? Onde estamos..né?!
Mas então eu sou meio suspeito pra ficar com esses pé atrás, com essas ... afirmações taxativas pra
você fazer uma produção intelectual, principalmente jornalística. O diploma de jornalista pra mim é
uma aberração, igual ao sujeito que vai, sei lá...em algum lugar que está pedindo documento e ele diz
[reproduz um diálogo] "O que o senhor faz?", "Eu sou pintor e escultor", "O senhor tem o
diploma?"...sabe? É o mesmo absurdo, querer exigir agora diploma de pintor, sabe?! De escultor, né,
diploma de atriz. São profissões que são profissões de vocação, né... escritor, carteirinha de escritor?
Já pensou em uma coisa dessas? É o mesmo absurdo pra mim de diploma...professor doutor em
jornalismo...acho tão [enfatiza o "tão"] ridículo isso. Então eu sou meio suspeito pra isso, Cristiane...
pra, pra, pra...Essa primeira pergunta eu vejo com um pouco de ironia. Acho que você pode ir em
frente agora.
Cristiane - Tem algumas técnicas utilizadas...Eu falo em técnicas mas acabou... que são coisa que o
escritor faz sem pensar, como por exemplo o uso dos estilos do novo jornalismo, como o jornalismo
social, como o ponto de vista, fluxo de consciência, ponto de vista auto-biográfico do Norman Mailler,
diálogos, construção cena a cena. Isso você considera imprescindível pra um livro-reportagem ou ele
pode ter linguagens diferentes que não utilizem a do novo jornalismo?
Mylton – Não, eu acho que o jornalismo é um gênero literário e estou afirmando isso com bastante
sossego porque quem disse isso antes de mim foi o Garcia Marquez, é um gênero literário. Então,
como é um gênero literário, cabe tudo, fluxo de consciência...Outro dia estava lá no Chile, a propósito
de um encontro de teatro infanto-juvenil, e lá eu li muitos jornais, porque eu gosto de saber como é
que é. Eu li um jornal lá, isso foi de janeiro pra fevereiro, na época que a filha do Pinochet, Lucia
Pinochet, tinha fugido do país, ela tinha que depor na polícia a propósito dos crimes que ela foi
acusada. E chega nos EUA, em Washington, ela desce lá e havia um mandado de detenção dela
pela Interpol, ela foi detida, presa, quando desceu do avião, e foi presa e foi pro presídio que tem em
anexo no aeroporto, ali perto, e ela teve que se submeter a tocar piano como se diz...as impressões
digitais... entregar os pertences, tirar a roupa civil e vestir o macacão verde de presidiária, de
prisioneira, enfim, todo o procedimento. E o repórter que narrou isso, o jornal era La Tercera, se não
me engano, lá de Santiago...achei aquilo incrível, na nossa imprensa não vejo isso. Ele narra tudo
isso que eu te falei aí que a mulher passou lá e daí ele abre um parágrafo e diz assim, que aí então
9h da noite são todos recolhidos às celas e depois às cinco da manhã são acordados, "Então às 9h
da noite, quando ela se recolheu à cela, o que será que se passou à cabeça dela?", né?! Fluxo de
consciência do repórter agindo ali. Isso bateu na cabeça dele e quando ele passa isso pro texto, isso
traz uma carga de emoção pro leitor, porque o leitor hoje, com esses textos frios....de... com a camisa
de força dos manuais de redação, jamais pode escrever uma coisa dessas. "Nesse momento, o que
terá passado pela cabeça de Lucia Pinochet?”, ele pergunta assim: “Será que ela teria pensado que
até poucos anos atrás ela foi uma das pessoas mais poderosas do Chile?" Legal, isso. Bacana?!
98
Achei incrível, nos nossos jornais o repórter não pode de escrever isso, a não ser que ele tenha...
seja uma estrela. Então todos essas... diálogos, fluxos de consciência, sabe, elipses, metáforas, tudo
vale no texto jornalístico.
Mylton – Claro, claro. Uso tudo, todo instrumental que fui me locupletando durante a vida,
instrumentais todos da linguagem, tudo pode ser usado.
Cristiane – O uso do novo jornalismo foi bastante forte na Revista Realidade. Eu gostaria de saber
qual a contribuição da revista Realidade pra consolidação desse estilo de fazer jornalístico.
Mylton – Mas esse estilo hoje está um pouco abandonado. É difícil você ver hoje em dia uma boa
reportagem, hoje em dia, no Brasil, na imprensa, no impresso. É bem difícil. Tem... na Caros Amigos
tem boas reportagens, na Carta Capital tem boas reportagens..Às vezes...eu até brinco assim, que às
vezes a mídia gorda se engana e publica uma boa reportagem...parece que eles erraram. Aqui e ali
você encontra, mas não se consolidou. Depois de Realidade, aí acabou mesmo, aquilo morreu
durante muito tempo, vários anos. Depois, de repente, começaram a aparecer umas reportagens, já
no fim da ditadura. Mas não existe isso sistematicamente, não existe uma revista hoje, um jornal que
seja um jornal, uma revista com aquele tipo de jornalismo...sistemático mesmo. Não, às vezes
aparece uma reportagem legal, bem escrita, com preocupação de beleza, porque o texto não precisa
ser "apenasmente" bem informado. O repórter trouxe tudo, trouxe tudo da rua, mas aí ele é obrigado,
por questões industriais ou porque tem o manual de redação que ele tem que obedecer, ele não pode
fazer um texto autoral, não digo assim que tem que ser aquela coisa beletrista, falsamente literária,
que o cara fica ali querendo me enrolar, falar "Olha como escrevo bonitinho"...Não. Uma coisa
autoral, uma coisa que você fala: "Nossa, esse cara tem uma cabeça legal, ele trouxe as coisas mas
ele fez uma conjunção legal do texto, ele, além de me informar, ele me deu um prazer estético
também". Isso é difícil de você encontrar hoje. Era o que acontecia nos textos da revista Realidade,
que era...além de você praticar um jornalismo de engalfinhamento mesmo com a realidade, a gente
não fazia matéria por telefone, nem pela Internet, a gente ia pra rua, sujar, pisar no barro, amassar
barro e ficar sujo, tomar cachaça com aqueles fudidos lá que a gente tava entrevistando. Além disso,
ainda eram repórteres...acho que o repórter ali que menos livro leu, devia ter, naquela época, lá com
25, 27 anos, que era a média de idade nossa, o que menos leu ali devia ter lido uns 50, 80 livros já
naquela vidinha ali, eu já tinha lido incontáveis livros...
Cristiane – Devido a essa escassez de espaço, de tempo, o livro-reportagem surgiu como uma
alternativa...alguns autores o consideram como uma alternativa à essa poda que o jornalista
freqüentemente tem que lidar...
Mylton – [reponde com relutância] Eu acho que são louváveis esses jornalistas que por falta de
veículo, né, põem a história deles num livro, eu acho maravilhoso isso. É uma pena que... imagina se
"invêz" de eles estarem escrevendo um livro a cada dois, três anos, cinco anos, se eles não tivessem
fazendo uma reportagem por mês ou a cada dois meses... um veículo só de bom jornalismo, de
reportagem, seria bem melhor, né?!
Cristiane – Mas o senhor... você, desculpa! Você concorda que o livro-reportagem é uma alternativa
à escassez de tempo, de informação?
Mylton – Claro! Mesmo que houvesse duas três revistas como foi a Realidade, fossem semanais,
mensais, isso não exclui o livro-reportagem, porque o livro, obviamente, é mais perene, mais
permanente do que uma revista que muitas vezes você acaba não comprando ou perdendo. Então o
99
livro vai pra biblioteca, é mais compartilhado ainda, a família toda lê, empresta, e vai pra biblioteca..
então não exclui..acho eficaz o instrumento do livro jornalismo (sic).
Cristiane - Ele é fruto do que? De um desejo? De uma sensação de que ninguém conhecia, de que
ele era pouco conhecido, como é que é?
Mylton – Eu fui amigo do João Antonio 30 anos, aliás faz 32 anos que eu e o João Antonio nos
hospedamos aqui nesse hotel aqui pra fazer o Panorama. A gente ficou aqui antes de ir morar numa
casa. Mas eu fui amigo dele durante 30 anos e a gente morava...ele no Rio eu em São Paulo, uma
época ele na Alemanha, um ano e pouco lá, uma época pré-Internet, telefone era muito caro na
época, então a gente trocava cartas. A gente trocou por volta de 500 cartas das quais eu perdi
metade porque eram duas caixas e uma caixa eu perdi numa mudança, então sobraram 223 cartas. E
eu estava conversando com o Sérgio de Souza que é o editor da Caros Amigos, isso há uns cinco
anos atrás, e à propósito dos Rebeldes, a [Editora] Casa Amarela publicou uma série: "Os rebeldes
brasileiros" e um deles era o João Antonio, e a propósito de eu comentar com ele, eu falei: "Rapaz,
você sabe que eu tenho 223 cartas do João Antonio?", e ele falou: "Então porque você não faz um
livro?" Então eu devo esse livro a esse, sabe, a essa... a uma conversinha coloquial ali, porque ele
me botou um desafio interessante ali na frente. Inicialmente eu falei: "Puta, um livro", e ele falou
assim: "Pois é, só as cartas João Antonio é um livro" Mas eu fui pra casa, já morava em
Florianópolis..."Mas um livro? Publicar as cartas é chocho, né?! Publicar as cartas do João Antonio,
fazer uma seleção". E aí eu fui ficando mordido com aquilo, eu fiquei ruminando, como se diz, e
pensando: "Fazer um livro..fazer um livro..." E aí, a primeira providência que eu tomei, eu peguei as
223 cartas e passei pro computador, copiei na íntegra, passei tudo pro computador e na medida que
ia passando aquilo a limpo, foram nascendo idéias.
[O primeiro lado da fita K7 acaba e interrompemos a conversa. Durante este intervalo, Mylton
acendeu um cigarro e começou a falar de sua mulher. Quando ligamos o gravador ele já havia
iniciado a fala]
Mylton - ...ela não tá vendo, então eu vou fumar mais um, porque na frente dela se eu fumar dois em
seguido, assim, ..."Fumando outro, já? Faz dez minutos..." [retoma a entrevista] Mas então você vê, o
processo... é um processo meu, ninguém me falou faz isso, e isso e isso, ta?! Eu tô respondendo um
pouco da primeira pergunta né?! Não fui pegar um manual de como se faz um livro-reportagem, meu
deus, que isso?! Isso não existe! Fui... e fui maturando aquilo...vou também pegar, amealhar, vou
pegar todos os livros que eu tenho dele, eu tenho praticamente tudo dele em casa, alguns
autografados, comecei a reler os livros dele, os que eu mais gostava. Fui entrevistar as ex-
mulheres...uma delas que está no livro lá, a segunda, a Tereza, uma crioula...eu só sabia o nome:
"Tereza", não sabia o sobrenome, só sabia que tinha voltado pra Divinópolis. Quer dizer, tem toda
uma saga aí. Enfim, depois de 4 anos e meio tava pronto o livro. Mas por onde começar de novo?
Como é que começa um livro? Por onde que começa? Eu fui naquela brincadeira do Marão, José
Carlos Marão, fechei os olhos e...
Cristiane – Ao acaso...
Mylton - ... pensei: "Ahh, qualquer lugar dá pra começar", daí comecei, pronto, daí fui embora...
Cristiane – Foi daí que surgiu também a escolha da linguagem, da reprodução das cartas e não uma
outra?
Mylton – Exatamente. Porque as cartas são tão abundantes que..., tudo o que aproveitei no livro eu
não joguei no apêndice onde estão as cartas. Depois, como eu tenho por formação ser editor de
texto, eu não apenas simplesmente joguei as cartas lá, eu editei elas, eu extraí só o sumo de cada
uma e agrupei por assuntos mais recorrentes. Então tem umas coisas lá: Brasil, broncas e por aí a
fora. [pausa] Contratei, paguei do meu bolso um repórter lá do Rio pra fazer uma visita ao prédio
onde ele morreu, viveu 30 anos e morreu lá...foi fazer uma visita lá e com isso eu encerro o livro.
Quero dizer, é uma homenagem ao repórter, é uma homenagem minha ao repórter. Eu peguei o texto
100
dele, só dei uma arrumadinha, uma limpadinha, e publiquei o texto do repórter pra encerrar o livro.
Porque eu tenho muita inveja de repórter, porque é um dom muito raro do repórter...eu tenho inveja,
eu não me considero um repórter, eu sou um redator de jornalismo...E foi assim, saiu o livro, pro meu
gosto, sou muito exigente, sou virginiano, meticuloso, preciosista, perfeccionista... o livro poderia ter
ficado pronto na metade do tempo, mas eu refiz e refiz, copidesquei de novo, cortei na carne n
vezes...
Cristiane – Então, de certa maneira você já respondeu a essa pergunta...mas tem algumas
classificações pro livro-reportagem, como o livro-reportagem perfil, antologia, biografia...Você acha
válida essa classificação e classificaria seu livro em algum deles itens ou não?
Mylton – A efeito...a editora me inscreveu num prêmio lá, Jabuti, não sei, me inscreveu num prêmio
lá, num concurso, como biografia. É... o mais próximo que meu livro está é de biografia, porque eu
conto a vida dele. É uma biografia sim, mas é uma biografia com algumas nuances. Tem crítica
literária ali, minha não, porque eu não sou crítico literário, mas eu uso muitos críticos falando sobre
ele pra amparar idéias que eu tenho sobre o João Antonio escritor, né. Literatura dele eu amparei
muito bem em críticas, peguei todos que eu pude arrebanhar pra amparar o que eu achava, e tem as
cartas, aí...é um livro-reportagem histolografia (sic), então tem várias nuances, mas é o mais próximo
de biografia.
Mylton – O conto-reportagem é uma idéia que nasceu na cabeça do Sérgio de Souza quando nós
chamamos o João Antonio pra trabalhar na Realidade. O Sérgio na época era o editor de texto da
Revista Realidade, editor de texto... no expediente estava Sergio de Souza, eu estava como redator,
embora eu já fosse editor de texto, eu já tava aprendendo com o Serjão, o Serjão foi o meu mestre de
texto jornalístico...E eles foram conversar o que o João Antonio ia fazer na revista e tal e conversa
vai, conversa vem, o Sérgio falou: "Você é contista e repórter, vamos criar o conto-reportagem. A
gente faz a reunião de pauta normal, como todo mundo, você pega seu assunto e vai pra rua como
todo repórter, mas você volta e faz um texto seu, de autor mesmo, com mais liberdade até ficcional".
Então esta é a origem do conto reportagem. O primeiro foi o “Um dia no cais”. Você lê aquilo você
fica ali no fio da navalha, entre o repórter e o escritor. Você não sabe se a Rita Cadilac existe mesmo
ou se ele inventou. É um barato aquilo, e é uma observação de um dos críticos citados por mim no
livro, eu não me lembro qual é, que é um texto de atmosfera. Ele não tem enredo como um conto
tem, é só atmosfera. Tem uns pontos de tensão, daquela briga das prostitutas que depois fazem as
pazes, o tatuador, aparece um tatuador, os marinheiros que vêm lá de não sei aonde...Não tem
enredo, não tem desfecho, é atmosfera que você fica vendo ali, parece até que você sente até cheiro
de cais...Pena que a revista não tem cheiro. Ainda, né [risos].
Cristiane – Mylton, como você avalia a produção de livros reportagem hoje no Brasil?
Mylton – Eu tenho visto que está bem, viu?! Só pela minha mão este último ano passaram dois pra
editar o texto, pra arrumar o texto. Por coincidência os dois da mesma editora, Geração Editorial, e
por coincidência os dois sobre a Guerrilha do Araguaia. O primeiro da Taís Morais que é "Araguaia...",
"Dossiê Araguaia", uma coisa assim [refere-se ao livro Operação Araguaia – os arquivos secretos da
guerrilha], que ela é filha de militar, de um militar que passou pela guerrilha combatendo os
guerrilheiros. E um outro agora recente, que saiu agora em março, esse do Hugo Studart, "A lei da
Selva” [refere-se ao livro A Lei da Selva — Estratégias, Imaginário e Discurso dos Militares Sobre a
Guerrilha do Araguaia] que abordou do ponto de vista inédito dos livros, de todos os trabalhos sobre a
guerrilha que eu já vi, ele foi nos militares, imaginário dos militares. Então você veja, só pela minha
mão passaram dois, mas tenho visto aí, saiu também uma antologia: “As dez reportagens que
abalaram a ditadura”, saiu pelo fim do ano passado, que tem um texto final meu, que é a morte do
Vlado, são mais nove reportagens, uma delas, talvez a primeira depois da Revista Realidade que veio
com aquele texto bom, que é do Ricardo Kotscho, que é as mordomias, já era o começo do fim da
ditadura...
Cristiane – E a qualidade?
Mylton – Olha, esses dois que eu me engalfinhei são muito bons, muito bons, muito bem apurados,
até certo ponto muito bem escritos, claro que eu ajudei. Que mais que eu vi? Esse já tem algum
101
tempo já, foi do Macluf, tem uns oito nove anos, "As mulheres que pegaram em armas", uma coisa
assim, bom livro também sobre as mulheres que na ditadura foram pra luta armada. Eu não me
lembro de mais algum que tenha passado....ahh, tem o Abusado do Caco Barcellos, meu amigo.
Barbaridade, aquele puta livro, o Abusado maravilhoso, um livraço. Enfim, tá bem, eu to gostando.
Mylton – Olha, eu tenho sentido que está bom ....tenho sentido que está sendo bem recebido...ahh,
eu tenho outro livro-reportagem também, sobre drogas, e esse tem oito anos, eu tenho sentido que
está saindo mais...parece que João Antonio tem até editora, a Geração, por exemplo tem esse nicho
pra livro-reportagem, né, eles publicaram também, um livro do...também trabalhei no texto..dum
presidiário famoso, Osmani....é Osmani..’Pavilhão 8’, uma coisa assim , uma narrativa, ele não é
repórter, mas uma narrativa dos fatos lá dentro do Carandiru, aliás o livro do Dráusio Varela também
é um livro-reportagem, não deixa de ser, embora ele não seja jornalista...o que comprova minha tese
de que não precisa ter diploma de jornalista pra fazer jornalismo, né, mas acho que está bem, é
alvissareiro, estou gostando.
Cristiane – Pra terminar, eu gostaria de saber quais são as características necessárias pra autor de
livro-reportagem e eu gostaria que você desse algumas dicas pra quem deseja seguir ....
Mylton – Esse filão? Bom, livro-reportagem é pra repórter, a condição primeira é o repórter...as
qualidades do repórter é curiosidade, é ler, ter lido muito, é saber escrever bem, ser claro, objetivo,
ser ousado, tem que ser peitudo, mas basicamente ser jornalista, ter vocação para o jornalismo...
Mylton – Não, não precisa necessariamente ser acadêmico...de preferência não ser (risos)...
ANEXO B
Fernando – Olha, em primeiro lugar é muito difícil pra mim dizer o que eu pretendo com o livro-
reportagem, porque é a única coisa que eu sei fazer. Eu nem sei se fazer isso é muito, mas é a única
coisa que eu sei fazer. Eu sou uma pessoa que não tem especialidade em nada. Ao contrário do que
acontece hoje, e eu ainda não sei se isso é bom ou mal, mas hoje os jornalistas são muito
especialistas, sabe, então você pega um sujeito como o Luiz Nassif, por exemplo, ele virou um
homem de economia, ligado à economia e por aí vai. Eu, salvo economia e futebol, eu tenho
interesse por praticamente tudo. Então sou de uma geração de jornalistas mais ecléticos, mais
universais, eu diria, mais universais e menos específicos. Eu posso fazer coisas tanto de futebol, já
fiz, embora não entenda, já fiz coisa de economia, se você se prepara especificamente pra aquilo
você faz...Então a única coisa que eu sei fazer, com todo esse trololó, é pra te dizer que eu não sei,
porque eu faço...Eu faço porque eu preciso comer, eu vivo disso, exclusivamente disso, eu não tenho
nenhuma fonte de renda, não tenho banco, não tenho boi, não tenho industria, não tenho nada...
Que importância que pode ter o livro-reportagem? Eu acho que o livro- reportagem, na verdade,
supre hoje uma deficiência da imprensa. Eu me lembro, não posso deixar de dar um exemplo
pessoal, não porque é pessoal, mas que é muito eloqüente, em 1970 eu e um outro repórter, o
Ricardo Gontijo, fomos destacados pelo Jornal da Tarde pra fazer uma reportagem sobre o mundo
que ia ser descoberto, que ia ser revelado pela transamazônica. Primeiro que já é um feature, não é
uma notícia, não é um hardware, que você tem que cobrir...EUA invadiu o Iraque, escândalo disse,
escândalo daquilo, seqüestraram um repórter...não, é um negócio que, teoricamente o jornal pode
passar a ser isso. Ainda sendo assim, o jornal de dispôs a manter, durante três meses, dois
repórteres, nós não éramos do primeiro time, mas éramos bem remunerados, eu era garoto eu tinha
23, 22, 23 anos, que idade você tem?
Cristiane – 26.
Fernando – 26...eu era mais novo que você. Também não tem nada que ver, é outra historia, eu
comecei com 13 anos, 14 anos em redação, não tenho curso de jornalismo. Então o jornal se dispôs
a botar três funcionários bem pagos durante três meses prum negócio que você não sabia se ia ter
matéria. Porque no fundo era isso, não tem nada, tem mato só. Por sorte, não só por sorte, tinha uma
série de ingredientes, tinha, porque se tem gente tem matéria, tem história...O jornal deu 20 páginas
limpas pra nossa reportagem, página limpa é página sem anúncio, apesar de ser o anúncio que paga
o Nescau das criança. Durante cinco dias, todos os dias, o jornal dava 4 páginas, sem um
calhauzinho, sem um anúncio desse tamanho [faz gesto com o polegar e o indicador como se
estivesse medindo algo pequeno], tanto que virou um livro, a reportagem virou um livro e não é o
único caso, sabe?! A revista Realidade, a revista Repórter 3...Eu me lembro que uma vez, quando
o...na sucessão do general Geisel, estava pra ser indicado o Figueiredo, circulou a notícia que os
orixás da Bahia estavam divididos entre a candidatura do general Euler Bentes Monteiro, que era o
anti-candidato, candidato da democracia e tal, e a candidatura do Figueiredo, os terreiros estavam
divididos, de um lado o Jorge Amado apoiando o Euler Bentes e do outro lado o Antonio Carlos
Magalhães, apoiando o Figueiredo, e tal. Você quer matéria melhor do que essa, guerra do orixás?
Política! E eles mandam pra lá quem? Eles mandam o João Antonio, não é que catô um foca na rua,
então, que ele era repórter assalariado da revista, já era um autor consagrado, já era repórter
assalariado, tinha carteirinha e tudo....O Antonio passou três semanas em Salvador, no melhor hotel,
ele e o fotógrafo e depois falou: "Não tem matéria nenhuma", sabe?! Então, nessa época, os veículos,
alguns veículos, ofereceriam aos leitores grandes reportagens. Eu...a minha carreira toda foi de
repórter, fui outras coisas, fui editor, fui pauteiro, fui isso, fui aquilo, fui copy na Folha durante muito
tempo, mas fazia isso por causa de dinheiro, porque precisava trabalhar. Eu tinha três empregos.
105
Casei, com 20 anos casei, trabalhava de manhã como pauteiro da TV Cultura, com o Herzog, com o
Fernando Jordão, com o João Batista de Andrade, de tarde trabalhava como repórter do Jornal da
Tarde, de noite trabalhava como copy da Folha de SP. Mas porque, porque eu precisava de grana, se
qualquer um dos três me oferecesse uma boa grana só pra eu ser repórter, eu preferia.
Cristiane - O que eu queria saber é se a parte ideológica ainda existe....[pequeno trecho ininteligível]
Fernando - Olha, eu sempre fui militante, sempre fui de esquerda, nunca escondi. Sou isento, sou
muito isento. Pelo menos eu procuro ser. Você tem que ter, tomar uma distância muito grande do
personagem ou do tema com o qual você está tratando, pra você nem crucificar nem penalizar. No
fundo as pessoas perguntam muito isso, "Ahh, você está fazendo a biografia do fulano de tal, você é
contra ou a favor?", porque tem gente que acha também que biografia é uma espécie de cirurgia
plástica, né. Tem um pintor em São Paulo chamado Roberto Smith que é ótimo, porque ele melhora
as pessoas, ele faz o retrato das pessoas e dá uma certa caprichada...
Nydia – Um upgrade
Fernando - Dá um upgrade na pessoa. Como se eu fosse lá e pedisse a ele "Pinta um retrato meu
que eu quero por no meu escritório". Aí eu vou lá buscar o retrato e é o Guilherme Fontes, tenho olho
azul, um metro e oitenta....e biografia não é isso. Não é nem pra penalizar as pessoas, nem pra
crucificar. Eu acho que, ao contrário, o êxito de um autor de biografia está diretamente associado à
capacidade que ele terá ou não de desenterrar o defunto e colocar ele pra andar o mais parecido
possível com o que ele era. Então quando você pega as críticas a um livro como o Chatô [refere-se
ao Chatô – O Rei do Brasil], por exemplo, eu fico feliz, porque os inimigos do Chateubriand dizem que
eu transformei um gângster em um santo, os amigos do Chateubriand dizem que eu transformei o
maior mecenas da história do Brasil em um batedor de carteira, de segunda. Legal! Então, porque ele
era isso, ele era gângster e ele era santo, era batedor de carteira e era mecenas. Então é, se ocê se
envolve com o personagem, em alguma medida você vai fraudar, vai mutilar a história real dele.
Então é um esforço muito grande, porque como é que você consegue não ser contra a um sujeito
como o Chateubriand, e ele nem é, talvez nem seja o caso...se você for fazer a biografia do delegado
Fleury, por exemplo, como ter algum sentimento, nem falo de simpatia ou de indiferença, por um cara
como esse? Tem que ter, tem que ter...E uma outra coisa também, as pessoas se espantam pelo fato
de eu ser uma pessoa de esquerda e estar, por exemplo, trabalhando na biografia do Antonio Carlos
Magalhães. Já há alguns anos eu estou trabalhando, e tal, e todas as vezes que me cobram isso, eu
respondo com a mesma resposta: "Quem não se interessa pelo Antonio Carlos Magalhães, jornalista
que não se interessa pala história do Antonio Carlos Magalhães, tem que mudar de profissão". É a
história do Brasil andando ali! Não é a história inteira, é uma fatia importante, pode não ser do seu
gosto, mas é uma fatia importante da história do Brasil, é a memória da história do Brasil ali andando.
E, se eu tivesse a idade que você tem hoje, se eu tivesse a idade de quando eu fiz a transamazônica,
provavelmente eu não me interessaria pelo Antonio Carlos Magalhães, porque eu era ainda uma
pessoa sectária, era um militante e a militância talvez ainda tivesse no mesmo patamar do trabalho e
tal. Então, claro que eu fazia qualquer matéria, cobria os generais todos. Salvo o Castelo Branco,
todos os outros presidentes eu cobri. Tudo bem... imagina passar pela minha cabeça: "Não, eu não
vou cobrir porque eu sou de esquerda e ele é o ditador, fascista"... Agora, quando você faz um livro, é
a sua escolha, é a sua pauta, então, tem que se tomar muito cuidado para não se endeusar uma
pessoa como a Olga, e não enterrar uma pessoa como o Chateubriand, por exemplo.
Cristiane – Fernando, sobre a parte da produção, dos processos de produção, tem o Edvaldo Pereira
Lima, que escreve muito sobre isso, tem a Cremilda Medinab [na verdade, a pesquisadora Cremilda
Medina possui um trabalho muito extenso sobre a reportagem e não sobre a práxis do livro-
reportagem], diz que tem certas etapas que devem ser cumpridas pra se escrever um livro-
reportagem, né, começando da pauta, depois a coleta de dados, pesquisa, entrevista, até a fase da
confecção dos livros. Como que é essa realidade pra você? Você segue isso..
Fernando - Olha, eu nunca li um livro, vou ler agora, você está falando que tem o livro da Cremilda,
trabalhei com ela um período, porém não li. Mas eu acho que ajuda, claro, toda contribuição...eu não
tenho muita metodologia não, porque a forma de trabalho varia de personagem pra personagem, as
vezes até não é nem uma biografia, como o caso do Corações Sujos, é uma história, um episódio,
mas não tem muito segredo, varia um pouco de personagem pra personagem mas não tem muito
segredo. Em primeiro lugar escolher o assunto, escolher o tema. Eu tenho alguns critérios objetivos,
106
alguns subjetivos. Em primeiro lugar é algum ineditismo... quase tudo vício de redação, tudo cacoete
de jornalista, jornal que noticiar o que aconteceu há uma semana atrás vai embrulhar peixe na feira
no dia seguinte. Então, em primeiro lugar, algum ineditismo. Depois, tem que ser um personagem que
tenha uma vida diferente da minha, da sua [aponta para mim], da sua [aponta para Nydia] que
justifique a energia que você vai gastar com ele, ou seja, ele tem que ser ou agente ou testemunha
de coisas que sejam...de episódios, de fatos que seja saborosos. O ideal é que sejam saborosos e
importantes. O ideal é pegar um personagem cujo trajeto... e se você for olhar os meus personagens,
sejam os biografados e os não, você vai encontrar esse ingrediente, o ideal é você pegar um
personagem cujo trajeto, cujas pegadas te ajudem a contar um pouco um pedaço da história do Brasil
que não foi contata pra gente em banco de escola. História não oficial, não obrigatoriamente a
chamada história dos vencidos, pode até ser a história dos vencedores, desde que te conte coisas
que a história oficial não contou. Então se você for... se você juntar Chatô, Olga e Corações Sujos,
você vai ver que um nucleão aí que é o mesmo. São coisas completamente diferentes: é uma história
de um grande capitalista, de uma seita político-religiosa, e a história de uma americana comunista.
Então tem isso, tem alguns pré-requisitos pra a escolha do tema, do personagem..
Cristiane - E como você define se aquele...eu li em entrevistas que você tem vários materiais de
outras pessoas...
Fernando - Tenho! E talvez o caso dos Corações Sujos seja um bom exemplo como é que surge um
assunto.
Fernando - Por acaso, entrevistando uma mulher, que tinha namorada do Chatô quando era
mocinha, o Chato já adulto, e japa, nissei, ou sansey, asiática...Eu perguntei como o Chatô tinha
chegado perto dela se ele não era ligado, pelo que eu já sabia, se ele não tinha nenhuma ligação
maior com a comunidade japonesa do Brasil. Ela contou que o pai dela tinha sido preso, era um
funcionários dos Associados [Diários Associados], e o Chatô deu carteiraço lá nas pessoas,
conseguiu soltar. E no dia que ela foi lá agradecer, junto com o pai, o Chatô viu aquela japonesinha
mocinha, tchu, tchu, tchu e créu e caiu em cima. Mas daí eu já não estava me interessando mais pela
história da paixão, eu queria saber porque o pai tinha sido preso, se era por razões políticas e tal, e
ela disse: "Não, era por causa da Shindo Renmei", "Que Shindo Renmei?". Na hora que eu falei
"Shindo Renmei", que que era... que eu comecei a perguntar...[Fernando Morais se dirige a uma
pessoa que bate na porta] Pode entrar... [e continua] ela começou a arrepiar, a dizer: "Ah, não, não.
Não se preocupe. Isso é uma briga de família, de japonês, tal", o que só fez despertar o meu
interesse. Essa história, enquanto eu escrevi Chatô eu guardei. Eu tenho um arquivinho lá de
histórias que podem, em algum momento, servir. Quando estava para terminar o século, 98, 97, 98, o
Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, me propôs um livro, que seria muito legal, que não tinha
nome ainda e que a gente chamava, o apelido enquanto não arrumasse nome, como “O século das
sombras”. Era fazer uma recontagem que era pra sair no ano 2000, na virada do milênio, na virada do
século... personagens e histórias ao longo do século XX que não tinham sido objeto de interesse ou
de historiadores ou de jornalistas ou da mídia, ou disso, ou daquilo, ou seja, personagens que estão
enterrados por aí e que foram da maior importância, ou de muita importância, e que estão aí
enterrados. Pá, lembro um: Piero Machado, senador Piero Machado do Rio Grande do Sul, foi o vice-
rei do Brasil. O Kurt de Ninhengaju que vem da Alemanha pra fazer pesquisa etnológica no Brasil e
se apaixona pelos índios, casa com uma índia e passa a viver com os índios...[começa a retomar o
momento do encontro com Luiz Schwarcz] "Ahh tá bão", essa ia ser uma das histórias, e eu falei pro
Luiz: "Ô Luiz, to com dó...as histórias dos japoneses... to com dó de gastar num capítulo, porque é um
desperdício, porque dá um filme, dá um livro, dá uma minissérie, dá o que você quiser", e ele falou:
"Taca o pau então", e o livro nasceu assim. Então é muito... eu tenho hoje dez histórias pra escrever,
prontas, dez assuntos que eu poderia imediatamente começar a trabalhar neles, sabe. Se eu for
declamar esses assuntos aqui, você vai achar que tem uma certa obviedade, "Ué, mas que
engraçado, como ninguém se lembrou de escrever sobre essa pessoa se tem uma história tão legal,
ou sobre esse episódio?" Não sei porque, mas é isso. É um negócio que o Darci Ribeiro costumava
dizer e me anima muito essa frase: "Esse país é ótimo, o que falta é gente pra contar isso"..não
tem...tem histórias... Se você for olhar o Brasil da Proclamação da República até a Revolução de
Trinta, até a República Velha, você tem personagem pra tudo, pra tudo! Pra romance, pra minissérie,
sabe?! O que os Estados Unidos fizeram com a Conquista do Oeste, em termos de literatura, de
produção cinematográfica, você poder fazer cem vezes mais com coronéis do Brasil, com jagunços,
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com cangaceiros, com Lampião, com revoltas locais, repúblicas de princesas...República de Princesa
é um filme, é um livro...Tem o que? tem um livrinho de alguém, algumas coisas locais, sabe?! Então
você pega o Ceará tem um bom livrinho sobre fulano de tal. Agora, quase é possível dizer que dá pra
escolher o tema que quiser. Se quiser mais dramático, se quiser mais anedótico, sabe?! Tem
personagem à vontade porque a gente vive numa diversidade cultural riquíssima e num país em
construção, então surgem aventureiros, surgem, sabe, esses personagens ricos ...
Fernando – Insista!
Cristiane – Eu queria saber se você, nessa sua metodologia, entre aspas, se existem etapas a serem
cumpridas...
Cristiane - ...ou se isso é uma coisa está tão arraigada que não tem mais essa separação: "Agora
vou fazer isso, vou fazer aquilo"...
Fernando - Vai naturalmente mas tem. O doutor Ulisses Guimarães, meu querido chefe, costumava
dizer o seguinte, citando um filósofo francês, La Roche Foucault, ele dizia que "A arte de improvisar é
não improvisar jamais". Então, claro já há uma natureza, você adquire uma natureza adicional, mas
tem algum método, nessa loucura tem algum método. Então o que é? Varia um pouco mas há uma
metodologia. Em primeiro lugar entrevistas. Primeira coisa é pegar o maior número de pessoas que
tenham convivido ou com tema ou com o personagem. Porque primeiro as entrevistas? Porque esse
tipo de trabalho você está fazendo antes dos outros? Simplesmente por uma questão etária. Em
geral, você está escrevendo sobre um personagem remoto e as pessoas vão morrendo, então em
primeiro lugar pegar os velhinhos, cerca os velhinhos antes que eles morram. É muito comum você
ver entre o pessoal que faz esse tipo de trabalho dizer: "Puta, perdi o velhinho por três dias, morreu
há três dias", em primeiro lugar isso. Agora isso já não vale se você for fazer um livro sobre Frei
Caneca, sabe?! Frei Caneca viveu em 1750 [Na verdade, Frei Caneca viveu entre 1779 e 1825], é
outra metodologia. De qualquer maneira, passou as entrevistas você vai pegar o quê? Os
depoimentos, como esse que você está fazendo ao vivo, já existentes. Então, vale pro Frei Caneca.
O que existe nos arquivos de Pernambuco sobre o assunto? O que existe no Vaticano? O que existe
de depoimento sobre ele? O Frei Caneca ou o Padre Cícero, sei lá. E aí depois a varredura de
acervos. Onde tiver uma impressão digital da pessoa eu vou atrás. Isso é uma parte gostosa,
dependendo do tipo de personagem, porque você as vezes... aparece alguém que conhece seu
personagem e tá no Amazonas. Bom, aí você arranja um Auro Sato [refere-se à um estudante que
Fernando Morais contratou aqui no Paraná para buscar informações sobre um militar envolvido com a
prisão de Paulo Coelho durante a ditadura militar] em Manaus, paga a pessoa, isso quando você não
tem que ir, pegar avião, ou gastar 12 horas de telefone, dinheiro, energia, tempo. E as vezes a
pessoa não tem nada, isso me toma..isso é muito comum com gente famosa. Nos Estados Unidos
brinca-se muito dizendo que o sujeito serve um uísque pro Frank Sinatra e na semana seguinte
vende os direitos pra uma editora de um livro chamado “Minha vida com o Frank Sinatra” [risos].
Então tem muito disso. E tem o oposto, gente que sabe muita coisa e não quer falar...Mas de
qualquer maneira ir atrás de papel, de documento, de depoimento. Quando você está de posse
daquilo que você supõe que seja material de pesquisa, e aí eu volto a dizer aquilo que eu estava
dizendo na hora do almoço, que é o seguinte: é um período duro, de trabalho quase braçal, mas, se
for bem feito, é recompensador, porque quanto mais abundante e quanto mais [não conclui o
pensamento]...Porque não adianta você ter uma pesquisa abundante, aí é que tá, se você não sabe
onde as coisas estão. Então eu pego 40 anos de diários do senhor Paulo Coelho. Bom, o diário,
embora ele seja cronológico, ele faz muito flash-back. Eu hoje posso falar no meu diário, posso gastar
30 páginas do meu diário falando de uma negócio que aconteceu quando eu tinha 14 anos, falando
de você [aponta para Cristiane], falando de você [aponta para Nydia]...Então eu preciso organizar
isso. Outra coisa: o que eu vou usar desses diários e o que eu não vou usar? Eu estou falando do
diário do Paulo Coelho como eu poderia falar das atas da Shindo Renmei, então aí entra sim um
108
pouco de metodologia..é inevitável, daí você usa Internet, então, o que você faz? Eu numero tudo...eu
tenho uma maquininha de numerar ali...de cada tema, de cada ano. Todas as páginas são
numeradas, separo, no caso do Paulo, por exemplo, tem uma separação grossa que é cronológica,
se você ver ali [aponta a estante em que as pastas estão dispostas por datas e por cores], tem pastas
desde a pré história, desde antes de ele nascer, avô, avó, não sei o que, não sei o que, até hoje, até
a viagem dele pra Transiberiana semana trás. A partir do momento que você tem essa maçaroca na
mão, organizada, fichada... se eu fosse fazer um livro com tudo o que está aí dentro dessas pastas,
eu teria que fazer um livro de 10 mil 20mil páginas, como não vai ser um livro de 20 mil páginas, eu
vou buscar fragmentos de cada um desses documentos e vou juntar não na ordem de que eles
aconteceram, mas na ordem que meu livro vai acontecer, e muda de livro pra livro, de acordo com o
que, de acordo com o personagem, com aquilo que o personagem te dá...
[Interrompe a entrevista para falar com o arquiteto que vem até o escritório]
Cristiane – Continuando, uma curiosidade: até aonde vai a sua pesquisa? Até onde você fala: "Agora
está bom"? Depois dessa etapa o que vem?
Fernando - Olha, é muito difícil dizer "Está pronta a pesquisa". Sempre fica um rabicho pra trás, na
maioria das vezes um rabicho "desiportante", sabe?! Quando é rabicho é rabicho, material
descartável. Mas na hora que você fala "Tá pronta", aí você vai fazer uma estrutura, era disso que eu
tava querendo falar, daí é você, daí não tem mais nada a ver com o personagem. Você pode fazer
um negócio rigorosamente cronológico: "Fulano de tal nasceu no dia 1º de janeiro de 1921..."
Então você faz uma história... Você faz a história do jeito que você quiser, conta como você quiser.
Então o Chatô eu comecei com uma mentira, um delírio dele...é uma coisa curiosa, se você pegar
gente que não leu o livro até o fim, é um barato, inclusive teve gente que fez crítica escrita, assinada,
dizendo "Não, o livro é bom, mas o Fernando exagerou na liberdade literária e leu os pensamentos
que estavam na cabeça do Chateubriand durante um estado de coma". É porque? É porque ele não
terminou de ler o livro, se não ele teria descoberto que o Chatô não morre naquele coma, vive, e volta
e escreve o que ele estava sentindo e vendo e ouvindo durante o coma! Eu achei que era uma
mentira dele e fui atrás de neurologistas para descobrir se era possível num estado de coma o sujeito
ouvir o que está em volta..e eles disseram que não é comum, masacontece, é possível, e ainda me
citou um exemplo.."tenta descobrir nos arquivos aí uma entrevista que o Roberto D´Ávila fez com o
Nick Lauda, aquele piloto de fórmula 1 ele sofre um acidente brutal no meio de uma corrida, é posto
num helicóptero em coma e ele ouve o camarada falando , o médico falando pro hospital pra onde
eles estão levando ele, dizendo o seguinte....’não precisa de médico aí não, precisa de um padre pra
dar extrema unção porque ele não chegará vivo aí’..e ele sobreviveu e contou isso pro Roberto
D´Ávila então me certifiquei, tenho um nome isso, esse fenômeno médico...então .você pode começar
com isso, com uma mentira, você pode começar com uma cena cinematográfica, que é o caso do
Corações Sujos..seis japas enrolados nas cuecas brancas túnicas, um negócio bem asiático, uma
coisa bem insólita pra nós, o olhar ocidental, descalços, atravessando uma cidadezinha, com
espadas na mão, brilhando, todo mundo olhando da veneziana e aqueles 7 japas atravessando a
cidade pra ir se degolar um soldado da pm, preto, que tinha limpado a botina com cocô de vaca com
a bandeira japonesa, então e eu achei isso de uma força tão grande, e eu poderia ter começado lá na
guerra, começar lá na guerra, mas eu achei melhor isso, então eu começo com o rei o imperador,
fazendo o anúncio, pá, pá, pá então você constrói o livro do jeito que vc quizer então, a partir do
momento em que você decide o que vai ser a estrutura do seu livro, você faz um roteiro,...eu faço um
roteiro, que é o seguinte, eu vou abrir com a informação da marcha dos tokotai no centro de tupã,
onde está essa informação? Na pasta número 79, na página 18...
Fernando - Porque não adianta eu passar 2 anos esgravatando a vida do Paulo Coelho,
entrevistando gente pelo mundo inteiro, acompanhando ele lá no Egito se depois eu não souber onde
está a informação do que aconteceu lá no Egito que eu anotei, e registrei e pus....sabe, 200 e tantas
horas de depoimentos que eu gravei dele, isso é uma trolha que ocupa não sei quantos tantos giga
de memória de um chipezinho desse aqui de gravação [pega um pendrive na mão]...não vale nada.
Não tem nenhum valor se eu não souber localizar as coisas aí dentro. É como se eu chegasse na
109
Biblioteca Nacional, tem 300 mil livros e nenhum deles ter lombada. Não tem utilidade nenhuma para
mim esse material então, ..isso eu aprendi como tempo, a vida foi me ensinando, o trabalho dos
amigos e tal, e o computador,...o computador pra nós foi a salvação da lavoura então, daí é simples,
se a pesquisa foi boa, trouxe um abundância de informações, e você sabe onde estão essas
informações , você faz o que você quiser...
Fernando – Você faz o roteiro a partir do que você decidir, como é que você vai matar, como ele vai
morrer ...
Cristiane - Mas você tem a liberdade, trabalha com essa liberdade de mudar?
Fernando – Tenho. Ahh, mas já fiz várias vezes. Olga eu mudei a abertura várias vezes. Do Paulo,
eu estou tocando, ainda não estou escrevendo, escrevendo, estou terminando [a pauração], mas eu
vou esquentando o motor, como é um livro de um personagem internacional, é um livro que já ta
vendido pra um montão de países, eu não posso fazer um livro brasileiro. É um preocupação nova
pra mim, então quando eu escrevi Olga eu não sabia que ele ia ser publicado em 21 países...
Como é um livro que vai ser vendido simultaneamente aqui no Brasil e já tá vendido para um monte
de lugar, eu não posso... eu tenho que tomar cuidados do tipo, eu não posso falar: "Um dia ele
encontrou o Cláudio Lembo...". Eu tenho que explicar quem é o Cláudio Lembo, quem é o Fernando
Henrique, quem é o Getúlio...Falar: "Ahh, ele pintava retratos do Getúlio quando ele era pequeno,
espetava agulhas...", eu tenho que explicar, "Ahh, o Getúlio era o presidente do Brasil e tal, tal, tal".
Então, pensando nesse tipo de coisa, estou pensando até em fazer duas versões, fazer uma versão
Brasileira, porque eu também não to querendo encher o saco do leitor brasileiro explicando pra ele
que branco é branco preto é preto, mas eu resolvi fazer uma abertura que informe a qualquer leitor.
Então eu fiz? Eu estou abrindo o livro com um avião da Air France, rolando no aeroporto de [fala o
nome do aeroporto, mas não foi possível entender], acabou de pousar Budapeste, fim de tarde e tal.
Então eu descrevo, [começa a descrição da cena que abre seu próximo livro, a biografia de Paulo
Coelho] na primeira fila da primeira classe, um camarada sozinho, de cabeça branca e tal, com uma
cinta hindu, com um chumaço de cabelo aqui atrás [pega os cabelos da nuca], jeans preto, coturno
preto, camiseta preta. E quando o avião está pousando, ele pára os olhos, faz como fosse uma
oração, então pega uma malinha ali em cima e veste um paletó preto e daí percebe-se que ele não é
um mortal comum, porque na lapela do paletó tem uma chapinha vermelhinha com um fio branco e
um fio vermelho e aquilo é a medalha... mostra que ele é o Chevalier d'Honneur, que recebeu uma
comenda que foi criada pelo Napoleão e só é dada pelo presidente e a dele foi colocada pelo
presidente Chirac. Pega a malinha, doido pra fumar, um cigarro Galaxy brasileiro na boca, um
isqueiro na mão, Zipo, louco pra fumar e todos lugares do aeroporto escrito proibido fumar, [fala
"proibido fumar" em russo] proibido fumar...a paranóia ante tabagista é universal. E percebe-se que
ele está um pouco ansioso, olhando do lado de fora e tal. Eu ainda não disse quem é, o nome do
passageiro. Todo mundo pega mala, a dele...ahh, ele não pega a mala, ele pega uma mochila no
avião e a mala dele é uma malinha desse tamanho [faz gesto com a mão como se medisse um objeto
pequeno] e acha ela fácil porque ele desenhou... pra achar fácil nos aeroportos, ele desenha com giz
antes de sair de casa um coração na mala e se perder é fácil "A mala que ta desenhada um coração".
Pega a malinha dele, sai andando e se espanta. Sai do lado de fora, os passageiros ali pegam táxi,
coisa e tal. Ele pega o celular, fala com ódio, acende o cigarro, dá uma chupada, acaba o cigarro de
um tragada só, pega o celular e fala em português com alguém: "Puta que o pariu, não tem ninguém
me esperando aqui, porra! Eu to dizendo: ninguém”, pá [faz o gesto de quem desliga o telefone com
força]. Fica olhando de um lado pro outro, fuma dois cigarros, daí ele ouve um tropel familiar [faz som
de cavalos], um bando de repórteres, de câmaras, de jornalistas que tinha descido na porta errada,
estavam esperando na porta errada. Daí ele se ilumina, daí eu falo: "Esse é o verdadeiro Paulo
Coelho, autor que já vendeu cem milhões de livros e tal pá, pá, pá". Conto a viagem dele pela Europa
oriental, conto a viagem pelo Oriente Médio, como é que é, como é recebido, como as pessoas
querem apalpar, pegar. Vou acompanhando sem eu aparecer, como se um mosquito tivesse pousado
no ombro dele. Acompanho ele num banquete na França, pra cem pessoas, black-tie, pra anunciar
que ele foi pra editora Flamarion. Vou com ele pro Cairo, vou com ele pra Beirute, vou com ele pra
110
Damasco, na Síria, vou pra Praga, vou pra Budapeste, vou pra Hamburgo, vou pra Barcelona, e aí
voltamos pra casa dele....
Fernando - Fui. E daí eu descrevo a casa dele, como é uma casa simples. Pra uma pessoa tão rica,
que diz ser tão rica, que tem trezentos milhões de euros, tal tal tal. Uma casa que qualquer um de
nós tem, de dois dormitórios, uma casa mais simples do que essa. Claro, na França, custa dez vezes
mais do que essa, de lá você vê os Pirineus, na porta casa dele você aquela massa. Mas é uma casa
simples, o carro dele é um carro simples, ele não tem secretária, não tem guarda-costas, não tem
jatinho, não tem segurança, não tem nada. Ele, a mulher dele e uma empregada brasileira, que
ganha seis mil reais por mês, dois mil euros que é o que se paga lá pra uma doméstica. As poucas
pessoas que tem doméstica em tempo integral é isso, seis sete paus por mês. Conto como é o dia-a-
dia dele, chegar de manhã, abrir o correio, sessenta cartas, aí ele anda, às 11h ele abre o e-mail. Aí
eu conto um pouco sobre o e-mail dele, que diariamente ele recebe 1.600 e-mails já filtrados. E um
dia, por acaso, dia 25 de agosto, vai fazer aniversário agora, um dia depois do aniversário dele, eu
tava na França com ele, e eu falei: "Hoje eu quero ver seu e-mail antes de você"...tinha mensagens
de 111 países...
O livro apresentando o Paulo Coelho pode ir pra qualquer lugar do mundo [refere-se ao fato de ter
que adaptar as histórias dependendo do país em que o livro é lançado]. Esse é o cara. Ali eu conto
quem é, quantos e-mails tem, quantos livros já vendeu. Eu conto de gente que pede conselhos, que
pede isso, que pede aquilo, falo dos assédios das mulheres, tenho a oportunidade de falar, a
mulherada dando em cima dele...Então eu conto quem é esse cara, e no finzinho do capítulo, ele fala
alguma coisa da mãe, lembra um pouco da mãe e eu corto no meio da fala dele sobre a mãe e corto
pro segundo capítulo, dizendo o seguinte: no dia tal, assim, assim, numa maternidade do Rio de
Janeiro nasceu Paulo Coelho de Souza, tal, pá, pá, pá. De fórceps, nasceu morto. O fórceps quebra a
clavícula dele, deforma um pouquinho o rosto dele, ele tem uma cara, você pode olhar, ele tem uma
cara de Kombi depois que bateu no poste, meio tortinho. Nasceu morto. Todo mundo começou a
chorar, chorar, chorar...Chora pai, chora mãe, chora filha, chamam uma freira, não tinha padre e os
pais são muito religiosos, chama uma freira pra dar extrema unção e no meio do choro de todo
mundo ele acorda, começa a viver. Aí vem, vem, ai vem vindo e eu vou voltar, vou terminar o livro
voltando ao começo, que é ele 20 anos depois de ter escrito O Diário de um Mago refazendo a pé o
caminho de Santiago. Eu fui me encontrar com ele agora no começo do ano, eu fui lá pro país basco,
pra encontrar com ele no meio da trilha, 20 anos depois de ter começado. Tudo isso pra dizer que
não tem, não pode ter metodologia. A história de cada pessoa é diferente da outra. Agora, apesar
disso, tem ali no meio, tem que ter o fio condutor, se não você se perde. Então eu acho que não tem
truque. Escolher bem o personagem, pesquisar direito, organizar direito essas informações e se você
for do ramo, se o personagem for bom, a pesquisa for boa, você faz um tremendo de um livro.
Cristiane – Outro ponto que você já começou a falar e que eu queria perguntar é sobre mesmo a
linguagem. Na maioria dos livros, em quase todos os livros, você usa a linguagem do jornalismo
literário. Em que medida você usa isso? Como você trabalha a literatura?
Fernando - Olha, todo jornalismo deveria ser literário. Todo. Mas não dá, porque você tem hora pra
fechar, tem limitação de espaço físico. Nas revistas você encontra gente ali capaz de fazer livros, tem
gente até que já fez, de uma qualidade estética, de uma qualidade literária impecável e que não pode
fazer isso no cotidiano do jornal, porque não dá tempo. Eu às vezes fico aqui dois três dias para
acertar um parágrafo, desesperado, desesperado. Eu hoje tava andando de manhã na praia, lembrei
de uma palavra, era "temido", tava precisando da palavra "temido". Porque eu tô contando a história
do avião que tá voando, tem nuvens negras na frente, os CBs, os pilotos chamam de CB, os temidos
Cbs... na hora me faltou a palavra "temido". Hoje eu tava andando na praia, "temido, temido". Peguei
o celular [faz gesto com a mão de quem segura o telefone ao ouvido], liguei pra secretária eletrônica
e "temido". Então é isso. Agora, não dá pra fazer isso no jornal. Então o que é jornalismo literário? É
você reescrever dez vezes. Salvo os gênios, que eu não conheço nenhum que escreva de bate e
pronto, nenhum! E entre as pessoas que eu conheço está o Gabriel Garcia Márquez, prêmio Nobel de
literatura. Eu lembro de ter ido pra casa dele uma vez, há muito tempo, não existia nem computador,
ele escrevia em uma máquina de escrever e ele tinha um cesto de lixo como esse daqui desse
111
tamanho [pega um cesto de lixo de cerca de 50 cm de altura que está ao lado de sua mesa] só pra
jogar papel fora. Uma vez nós fizemos juntos, eu e ele, um manifesto aqui no Brasil, por causa da
morte de estudantes pela ditadura e tal. No hotel, ele ditando e eu datilografando, em São Paulo,
ficou pronto, ele pegou a caneta e começou [pega uma folha e começa a "canetar"], eu guardei o
original, canetado por ele, no papelzinho do hotel, porque é engraçado o Gabriel Garcia Márquez
canetando seu próprio texto. Então não tem, não tem gente que escreva...agora é aquilo que o Millôr
Fernandes fala que é noventa por cento de inspiração...é dez por cento de inspiração e noventa por
cento de transpiração. Noventa por cento de transpiração! É trabalho, trabalho, trabalho... é aquilo,
você leu o de baixo, é o de cima [sobre o computador do autor havia duas mensagens coladas. Uma
era da mulher de Paulo Coelho para Fernando Morais, a outra um trecho do livro Cartas a um Jovem
Escritor, reproduzido no capítulo 5 deste trabalho], é a carta do Mário de Andrade para o Fernando
Sabino. Não tem isso não, não tem frescura não, "Eu sou um intelectual, eu sou um literato, eu estou
aqui, a inspiração não aparece"...vá ao diabo! Você não tem que comer? Não tem que pagar a conta
de luz? A Sabesp veio agora uma nota preta. É por isso que eu falo: tem que trabalhar, não tem jeito,
tem que trabalhar. Agora, faça bem feito, faça bonito, faça elegante. Conta a coisa de uma maneira
saborosa, escolhe a palavra certa, "Essa palavra não ta boa, ta muito..." E isso. Eu acho que qualquer
pessoa, o Paulo diz que eu não devo ficar me desvalorizando, mas eu não considero que isso seja
me desvalorizar, eu acho que qualquer pessoa bem alfabetizada, que tenha sido bem alfabetizada na
infância, no grupo escolar e no ginásio, pode escrever do jeito que eu escrevo e muito melhor. Eu não
tenho nenhuma virtude que não tenha um brasileiro médio bem alfabetizado. Não tenho mesmo. E a
minha prova de que isso é possível, de que qualquer pessoa pode escrever se quiser e se souber o
português, um pouquinho de português... eu acabei de ter um exemplo, vai vir a público daqui a
pouco. Eu fui procurado há dois, três anos, mais um pouquinho, por um senhor, bonito, elegante, um
homem de uns 75 anos, cabelo branco, foi no meu escritório, paletó de tweed, calça de flanela,
"Prazer, Doca Street!". Você sabe quem é Doca Street?
Cristiane - Não.
Nydia – Que barato, ela não sabe... [fala junto com Fernando]
Fernando – Que barato, ela não sabe. Vou ligar pra editora agora. Foi bom você ter dito: "Não sei
quem é". Doca Street é o cara que matou a Ângela Diniz, a pantera Ângela Diniz, uma amante.
Fernando - Pois é, o Doca me procura e diz: "Olha, eu quero contar a minha versão do crime",
"Então me conta", e ele contou. "Porra, é legal, né" [reproduz uma fala dele], "Eu queria que você
escrevesse" [reproduz uma fala de Doca Street], "Ah, ta legal, eu topo". Eu ia fazer e daí, por acaso,
caiu em tentação, Deus não me livrou do mal, de eu sair candidato pra governador de São Paulo. Eu
tive que largar tudo, largar livro..e eu falei pro Doca: "Ó malandro, desculpa mas eu caí em tentação,
eu vou fazer campanha pra governador", devia ter ficado com o Doca, teria feito melhor negócio...
Fernando - Fui cair na mão do Quércia e ele quis passar a mão na minha bunda, com o perdão da
vulgaridade. Daí falei pro Doca: "Por que você não escreve?", "Porque eu não sei escrever, eu nunca
escrevi na vida", "Você já tentou?" ele falou: "Não", "Então tenta", ele falou: "E como é que eu
escrevo?", "Do jeito que você me contou. Organiza um pouco, organiza e tenta escrever". Sumiu,
nunca mais vi, no dia, no ano passado, no dia que eu estava lançando Toca dos Leões, aparece o
Doca na fila com a mulher dele, um pacote debaixo do braço, um tijolo desse tamanho [faz gesto com
a mão como se medisse um objeto grande], os originais do livro. E você sabe que ele escreveu
direito? Claro, a editora teve que...tá saindo agora pela Planeta [o livro foi lançado em setembro deste
ano], e depois eu digo porque foi bom você ter falado que não sabia quem era Doca Street, a Planeta
teve que dar uma penteada. O cara não é profissional, mas consegue escrever. Mas porque que eu
to falando do nome? Eu sugeri que o título do livro fosse “Mea Culpa”, porque ele assume a culpa, o
tempo todo, não é que ele diz: "Ela era uma vagabunda, piranha" e tal. Ela fez coisas horrorosas com
ele, coisas que pra cultura masculina, machista brasileira, sabe....Num nos ataques de fúria dela,
bêbada, que tinha fumado, cheirado, tal, ela em público, na frente dos amigos... dizia que tinha
aparecido lá, eles tinha uma casa em Búzios, tinha aparecido uma francesinha que fazia coisas de
artesanato, e tal. A Ângela disse pra ele, no dia, horas antes da morte ela disse pra ele: "Ahh, você é
112
um merda, você é num sei o que, num sei o que, e você, nem trepá você sabe! A francesinha é
melhor de cama do que você". Pá, matou. E eu falei: "Ponha isso no papel, ponha desse jeito". E
decidiram que o livro ia ter na capa, eu soube esses dias, que o livro ia ter na capa, “Mea culpa, Doca
Street’, só isso. Daí eu falei pro editor: "Mas vocês vão afogar o burro, porque 80 % da população
brasileira tem a idade dela pra baixo..."
Fernando - 80% dos compradores de livro tem a idade dela pra baixo, um pouquinho pra cima, um
pouquinho pra baixo, sabe?! É a minha filha, meu genro, não sabem, porque isso tem 40 anos que
aconteceu, sei lá. Então eu sugeri que eles fizessem o seguinte: "Confissões do assassino de Ângela
Diniz", e mais, ainda sugeri que entrasse uma fotinha pequenininha dela, assim, com um clipezinho
na capa [pega um livro, um clip e mostra como havia sugerido]...se não a pessoa não vai saber que
ele é o assassino da Ângela Diniz. Mas então, voltando à vaca fria, eu acho que o negócio de
qualidade literária, de tratamento literário...Olha, um bom leitor, em geral, é um bom escritor. Você
aprende a escrever lendo, lendo, lendo, lendo...De preferência livros bons, autores ...se só for
possível ler maus autores, lê bula de remédio é melhor, se não, não aprende a escrever. Ninguém
aprende a escrever se não for lendo. Eu não conheço nenhum caso de alguém que "Olha, fulano de
tal escreve bem e tal, pá, pá, pá, mas não lê, não é uma pessoa que leia".
Fernando - Olha, é uma discussão...Eu não sei. O que é talento? Acho que é esforço, esforço,
esforço...Claro, nem todo mundo pode fazer tudo, eu não consigo fazer... eu tava vendo o sujeito que
está fazendo o telhado do barracão aqui [refere-se a um dos operários que estavam construindo uma
área ao lado da piscina da casa], eu tava vendo a armação, eu não consigo fazer aquilo. Claro, se um
dia treinar, aprende. Aquele cara tem talento pra aquilo, faz o serviço melhor que a maioria das
pessoas. Eu acho que, se a pessoa não tiver deficiência de formação, tem gente que não sabe
ortografia...não precisa saber teoria, precisa saber escrever. Eu sei escrever de ouvido. Eu não
conheço gramática, mas eu não cometo erros. Pode pegar um livro meu, eu não estou me gabando
não, eu e a maioria das pessoas da minha geração, que tiveram educação elementar de boa
qualidade. Um livro meu não passa por revisão, não precisa passar por revisão. Não tem...eu dou pra
algumas pessoas lerem, eu pego os originais e dou pra pessoas de áreas completamente diferentes.
Em geral eu dou pra um adolescente, pro filho de um amigo e tal. Dou pra alguém que não tenha
nada a ver com aquilo e dou pra alguém que tenha a ver com aquilo, que conheça, que tenha certa
familiaridade ou com o personagem, ou com período tal, e peço pra pessoa dizer: "Oha, não entendi,
tá ruim, aqui ta mal construído, o personagem está desaparecendo, tal personagem desaparece de
um hora pra outra! Pô, precisa melhorar, tem coisas que não entendi". Eu levo em consideração,
reescrevo. E o que e agente costuma fazer hoje, as editoras todas têm, é o chamado checador. O
que é o checador? O checador é um super revisor. Ele não toca ....não é mais aquele revisor que
mexia no seu estilo, é um preparador de texto, que é o seguinte: eu não posso escrever, Casemiro
Montenegro no começo do livro e Casimiro depois. Se eu falo que você tem 26 anos, eu não posso
depois dizer "Em 1954, quando ela foi ao Rio...", o revisor não tem nada que ver com isso, agora, o
checador tem. "Ahh, mas lá atrás ele falou que ela tem 26 anos ela não pode ter nascido em 54, uma
das duas coisas está errada. Ou ela tem 40 e tantos anos, ou ela não nasceu em 54". Então isso é
uma coisa..."Ó, fulano de tal não foi Ministro da Aeronáutica em 41 porque em 41 não existia a
aeronáutica ainda"...O Gabriel Garcia Márquez conta uma história muito engraçada que aconteceu
com ele: quando ele estava escrevendo, quando ele acabou de escrever O general em seu labirinto,
a biografia do Bolívar, Simon Bolívar, ele deu pra um historiador, amigo dele ler, professor da
Universidade do México ler...[Fernando interrompe a conversa para nos oferecer bebidas] Vocês
querem alguma coisa? Água, café, Coca-Cola, Guaraná?
Fernando - Ele deu os originais do Bolívar pra um professor da Unam, e o cara devolveu pra ele,
dizendo que tinha adorado, mas disse que tinha, na página tal, dizendo assim, assim, que o Bolívar
aparecia chupando uma abstração..."Um abraço, fulano de tal". O Gabo foi lá, era uma cena que o
Bolívar estava sem camisa, chupando uma manga, se lambiando com uma mangona grande e tal.
113
Ele ligou pro cara e falou "Pô, meu! Porque você encrencou com o negócio da manga?” e ele falou:
"Porque a manga não tinha chegado lá na América aquela época”. Não existia manga na América
Latina, ele não podia estar chupando uma manga. Então foi uma liberdade literária que o Gabo teve e
então é sempre bom pedir pra alguém, sobretudo pedir pra gente que escreve sobre tudo. Eu peço!
Em todas as aberturas e agradecimentos eu coloco: "Esse livro eu pedi pra fulano, cicrano e beltrano
pra ler, agradeço as contribuições" Agora, é isso! Acho que é uma coisa meio generacional,
geracional...de geração. Eu sou de uma geração, eu talvez seja um dos últimos de uma geração que
aprendeu em escola pública, que escola pública era boa, e eu meu lembro que eu estudava no
colégio estadual em Belo Horizonte, estudei só um ano porque não podia levar pau. Levou pau,
dançou! Você não quer estudar? Tem gente pobre querendo sua cadeira. Pô, então é esse tipo de
educação que faz com que a pessoa não precise.... quer escrever, escreve. Eu falo isso pras
pessoas, "Escreve e me manda que eu vou te dizer o que esta errado, porque você fez errado,
porque você construiu errado". Hoje você não encontra mais isso em redação, não tem mais isso em
redação de jornal. Eu saí da linha de montagem, eu freqüento, tenho amigos, colaboro com o
jornal...cabô. No tempo do Jornal da Tarde, chegava no fim do dia, os repórteres vinham da rua e
ficavam ali em fila sentados, coçando o saco, fumando, tomando café, esperando a hora de sentar
com chefe de reportagem que tinha acabado de ler sua trolha que você escreveu e dizer assim: "Tá
muito ruim! Tá muito ruim porque você não viu isso, olha aqui ó, você jogou lá no fim da matéria um
negócio da maior importância, isso podia ser manchete” [faz os gestos com um papel na mão]. Ou
você aprende, ou muda de profissão ...aprende, aprende...se tiver alguém te ensinando, se o volume
de erros for tão grande o cara vai dizer pra você: "Olha, desiste, você precisa fazer um curso de
ortografia", o que é muito comum hoje. As pessoas me perguntam, qual é a melhor escola de
jornalismo que tem no Brasil? Eu digo: "A coleção completa da obra de Machado de Assis". Você tem
que ler..ler, ler...que aprende a escrever.
Cristiane - Fernando, um pouco ainda sobre o estilo literário. Você busca elementos que dão um
sabor especial à leitura, por exemplo, aquele delírio que você falou do Chatô, ou as duas
entrevistadas na cadeia que você fez pra Olga. Como você trabalha esses elementos?
Fernando - Eu acho que isso é um pouco, também... boa parte do que ta impregnado no meu
trabalho é herança de redação. Não de redação do dia-a-dia. Isso que eu falei herança de redação eu
não to falando do...não sobre o cara que vai cobrir cachorro de rua. Você pode fazer grandes
matérias até cobrindo cachorro de rua. A matéria que deu meu emprego no Jornal da Tarde era uma
matéria sobre carrocinha de cachorro: [descreve o conteúdo da matéria] "Agosto, o cara sai com a
carrocinha, vai pra periferia de São Paulo, o único bem que a criança tem, que a família tem é o
cachorro e a carrocinha vai lá e pega" Isso não é nada. "Pô, que merda! Vocês deviam me mandar
entrevistar o presidente da república, vocês estão me botando numa carrocinha de cachorro pra ir pra
periferia de São Paulo...", mas é uma puta de uma história humana, belíssima. O cara ali, o carrasco,
o laçador é o carrasco. Então, esse é o tipo de coisa que você aprende em redação. Agora, é isso! E
é isso aqui ó ta vendo [pega papéis de dentro de uma caixa cheia de documentos de Paulo Coelho],
cartinhas, cartinhas. Se você dobrar muito olha o que acontece [pega um documento muito velho,
com marcas de dobradura e rasgado em alguns pontos], ta vendo? É daqui que sai. É uma sílaba
daqui, é um pedaço da entrevista feita em Berlim, é um pedaço de não sei o que, é uma pontinha de
um recorte que saiu no jornal. No fundo, fazer um livro, seja ele um livrinho nessa área de trabalho,
de jornalismo, seja um sobre o Chateubriand, no fim é construir tijolo por tijolo, sabe. Você não
escreve um texto em toques de cinco páginas, cinco parágrafos, é palavra por palavra, letra por letra.
É daí que vai sair um bom ou mal livro, é esmerilar, ficar com um cinzel ali, pá, pá, pá. Lima... ainda
está um pouco áspero, lima mais um pouquinho. Texto não pode ter quebra mola, aquele negócio,
põe primeira, freia, põe segunda, freia. Isso é texto de Fernando Henrique, é texto de acadêmico.
Você tem que facilitar a vida do leitor, tem que escrever legal. Traduz as coisas pro leitor, descreve.
Quando eu fui descrever um personagem, Chamado Casimiro Montenegro, eu pus: "Uns profundos
olhos azuis, magrinho, franzino e nome de poeta romântico", eu podia simplesmente dizer: "O sujeito
chamava Casimiro". Mas se você...atrai o leitor, fala "tsc, tsc, tsc..vem, vem, vem.." faz uma coisa
elegante, coloquial, sofistica, arranja uma palavra melhor, eu vivo com tudo quando é tipo de
dicionário, sou um rato de dicionário....
Fernando - Não, não. Eu uso muito dicionário analógico, ajuda muito. Agora é difícil porque o único
autor de dicionário analógico do Brasil, os herdeiros brigaram com a editora e pararam de publicar,
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então não tem mais em livraria, então você compra em sebo por 400, 500 reais. É uma mão na roda,
uma mão na roda, porque você vai lá e fala "tempestade", ele tem lá uma página e meia de
"tempestade", desde a tempestade propriamente dita, até tempestade de ódio, até brainstorm,
tempestade cerebral. Então ajuda muito, te amplia o horizonte...Dicionário de sinônimo e antônimo,
às vezes eu to querendo um antônimo, "o que o cara deveria ter dito"...dicionário, dicionário,
dicionário...Dicionário ajuda.
Cristiane - Você definiria algum estilo seu ou estilo que você mais se identifica?
Fernando - Não, eu não acho que eu tenha estilo. Acho que depende do personagem também, sabe.
Não sei dizer. Primeiro que eu não leio as coisas que eu escrevo, eu nunca li um livro meu...
Fernando - Depois de impresso. Às vezes eu uso pra consulta, passo os olhos e penso: "Ai meu
deus, podia ser tão melhor". O único livro meu que eu li inteiro foi A Ilha pra refazê-lo agora quando o
Luiz lançou uma edição nova, com um ensaio feito pela minha filha, mas em geral não leio.
Cristiane - Saindo um pouco da esfera pessoal, como você avalia a produção de livros-reportagem
no Brasil? Você disse que.. usou a frase do Darci Ribeiro, que no Brasil falta gente pra contar, eu
queria ...
Fernando - Eu acho que hoje, acho não, a realidade comprova isso, há um mercado interessante, há
uma demanda interessante por histórias do Brasil. Acho que isso começou com a ditadura,com o fim
da ditadura que foi quando as pessoas começaram a poder se assanhar. Então se você olhar de lá
pra cá o que saiu nessa área, é uma barbaridade. Acho que isso se deve à carência de grandes
reportagens na imprensa. Não é que a grande reportagem substitua, mas se você já leu quatro
páginas, cinco páginas, oito páginas bem escritas sobre determinado tema, ou determinado
personagem, você vai vacilar antes de dar cinquentinha numa livraria por livro sobre aquele
personagem. Não acho que o jornalista tem essa capacidade de matar a demanda, tem, [acende
outro charuto] hoje, biografia, relato pessoal, histórias da resistência. Até, infelizmente, vou falar mal
de um cara que fez dois livros de memória. O cara que foi acusado pela Beth Mendes, Ustra, Carlos
Alberto Brilhante Ustra, de ter torturado ela, quando o DOI-CODI...[não termina o pensamento] Soltou
dois livros com aversão dele. Podia ser bem escrito, mas é um mega relatório, número, nome, nome,
nome, tabelas...Você poderia transformar isso num...Você pega um a carteira de motorista de um
personagem, Paulo Coelho [pega o documento do autor]. Se você começar a olhar, você vai começar
a descobrir coisas: "olha só"....Eu estava com o certificado militar dele outro dia, você vai, descobre,
vai descobrindo coisas, que ele não pegou o serviço militar por causa disso e daquilo...Você pode dar
vida ao papel, ao passo que tem gente que joga aquela maçaroca e é isso que acaba determinando
se, se o livro vai fazer sucesso ou não, às vezes, também tem livro ruim que faz sucesso, tem livro
bom que não faz sucesso. É isso: dar vida. Primeiro a um defunto, no caso de uma biografia, e depois
a tudo aquilo que gravitou na órbita dele, reconstituindo. No fundo, tentar fazer com o que o leitor
tivesse vendo aquelas coisas, transpor o leitor pra aquilo. Outro dia eu dei uma entrevista pra
televisão que perguntava sobre um negócio de cinema, programa de cinema, e três livros meus
virando filme: Olga virou, o Chatô está pronto, finalmente, e agora o Corações que o Cacá vai
filmar...se eu escrevo pensando nisso. Não. Não escrevo! Eu escrevo pensando no leitor, tô sempre
pensando no leitor, pensando no leitor crítico. Então eu tenho alguns personagens na cabeça que eu
sempre que eu estou escrevendo eu penso, o que que fulano vai achar? O quê que Beltrano vai
achar? O que acharia disso? Isso te permite ter uma auto-crítica muito afiada.
Fernando - Não, não. Varia de livro pra livro. Quando o Cláudio Abramo era vivo eu pensava muito
nele, escrevia pensando: "O que o que o Cláudio Abramo vai achar"? Porque era um cara rigoroso,
escrevia bem e era um sujeito rigoroso, seco, aquela coisa sem gordura. Mas não escrevo pensando
em cinema não, agora já começo, é uma coisa curiosa, depois que me chamaram a atenção, eu
começo a pensar: "Olha, essa história pode dar um filme, hein!"
115
Cristiane - Sobre os livros. Tirando esse que você falou que não gostou por ser um relatório,você
tem gostado?
Fernando – Tenho! Tenho gostado muito, eu acabei de receber um livro, legalésimo do Ricardo
Kotscho, do golpe ao poder, do golpe ao planalto [o nome correto é Do Golpe ao Planalto], uma coisa
assim, livro de memórias...[trecho ininteligível] Ahh, tem muita coisa boa. Saiu uma biografia agora
do José de Alencar escrito por um cara chamado Lira Neto...
Fernando – Desculpe?
Cristiane - Biografia a duas Vozes que você falou...[Fernando havia citado o livro neste trecho em
que não foi possível compreender sua fala]
Fernando – [risos] Depois o Fidel fica doente e volta a vender a ilha. E é isso que acaba garantindo,
dizer [bate três vezes na mesa de madeira]...hoje eu posso me preparar para fazer trabalhos como o
do Paulo, por exemplo, sem muita preocupação. Mas não é absolutamente sem nenhuma
preocupação. Como eu sou um mineiro falso, eu não guardo, eu gasto tudo o que ganho. Gasto tudo,
tudo! Não tenho nada. Tenho minha casa, tenho uma motocicleta e tenho um carro, e pronto! Mas é
uma profissão, eu vivo disso há trinta anos, exclusivamente disso.
Cristiane - A primeira é um pouco resumindo o que a gente falou aqui: o que tem que ter um livro-
reportagem pra ser bom? E se você poderia dar algumas dicas pra quem quer seguir essa
modalidade...
Fernando – Olha, o que deve ter um livro-reportagem, assim como a gente falou, algum ineditismo, o
que não significa obrigatoriamente que seja algo desconhecido, você não pode dizer o que o Chatô
era desconhecido, durante meio século ele imperou nesse país, no entanto é um livro de revelações.
Se você pegar, por exemplo, o Roberto Marinho, um personagem maravilhoso, acho que foi mal
gasto pelo Bial, que fez uma biografia oficial. Tudo bem, isso não é uma condenação, mas eu acho
que a história do Roberto Marinho ainda está para ser escrita. Então, primeiro, algum ineditismo.
Segundo, que o personagem tenha alguma efervescência, uma vida rica interiormente, ou por coisas
que fez, por coisas que falou ou que viu. E tem que ser bem escrito. E o que é ser bem escrito? É ser
escrito com simplicidade. A coisa mais difícil do mundo é escrever fácil, você lê e fala "Pô, é mole".
Você lê um Gabriel Garcia Márquez, lê Machado de Assis e fala "É mole, meu", não é? Então eu acho
que é isso, procurar ser crítico duro com sua própria produção. Qual era a segunda pergunta?
Cristiane – Dicas.
Fernando - Dicas? Não tem! Cê sabe que se tivesse truque eu ficava rico ensinando. Não tem. Eu
acho que você constrói a sua reputação fazendo as coisas direito e fazer as coisas direito é ser fiel à
fonte, ser fiel ao documento. Difícil dizer, é muito difícil dizer, sabe...dicas? Porque no fundo é
trabalho. É isso, produzir, produzir, produzir. Eu sei que é difícil. É isso: dedicação, dedicação,
dedicação, foco, foca no que você está fazendo. A gente fica inventando coisa pra não escrever,
inventando, inventando. Eu agora estou inventando de criar peixe em um córrego aqui atrás da casa
e eu descobri que já é sacanagem pra sair daqui. Não pode, tem que ficar aqui, tem que trancar a
porta e jogar a chave fora, tem que ficar aqui dentro. Não conheço ninguém que escreva numa nice,
"Ahh, eu tiro de letra". Não conheço! Eu sofro muito. Uma vez eu vi a Raquel de Queiroz no programa
Jô Soares e a primeira pergunta que o Jô fez pra ela foi a seguinte: "Raquel, você gosta de
escrever?", "Não, Jô Soares, eu odeio!" Eu entendi o que ela quis dizer. Claro que ela gosta de
escrever, agora, é um sofrimento, um sofrimento cotidiano. E quanto mais você escreve, maior é o
sofrimento porque maior é a expectativa das pessoas. Então, você pega autores consagrados no
planeta, como o Paulo Coelho, ficam ansiosos quando está pra lançar um livro novo, porque é
expectativa, é expectativa que se cria. Agora, é um ramo... eu se tivesse no seu lugar hoje...Eu nunca
fui de planejar muito minha vida não, o destino meio que escolheu algumas coisas pra mim, mas, se
pudesse, eu faria o que eu fiz. Talvez tivesse feito um pouco diferente, talvez tivesse começado um
pouco mais cedo, talvez tivesse aprendido línguas mais cedo, sabe?! É uma dificuldade muito grande
você lidar, sobretudo quando você começa a lidar com personagem internacionais, se você não falar
pelo menos o inglês e o francês. É um puta dum obstáculo. Mas eu, se tivesse hoje começando a
carreira....minha filha chegou a pensar em fazer jornalismo, eu falei pra ela: "Se você for fazer, vai se
planejando pra isso". Não é ir se planejando pra sair daqui amanhã, terminar seu curso e escrever um
livro, sabe?! Mas é já ir montando sua carreira, se é isso que você gosta, eu estou falando de
pessoas que gostam disso, tem gente que prefere ser correspondente internacional, trabalhar na TV
Globo, no Estadão, na Folha, em Beirute...Uma coisa na verdade não exclui a outra, às vezes até
ajuda, contribui. O primeiro livro do Bial e da ex-mulher dele, a René Castelo Branco, é sobre a
guerra do Iraque. Eles estava cobrindo a guerra do Iraque...então é uma profissão que cada dia que
você entra numa redação você tem uma história nova. Eu faço muito isso. Na semana passada saiu
uma matéria no Estadão, no domingo, sobre um menino abandonado, há 20 anos atrás, ele tinha
alguma deficiência mental muito leve, então ninguém queria adotar, ele estava naquela roda das
crianças do padre Júlio Lancelot, crianças abandonadas e como ele era um pouco diferente, ninguém
queria adotar, mas acabaram adotando e tal. Ele cresceu, foi pra Marinha, se apresentou lá, foi
soldado da Marinha durante um ano, voltou pra São Paulo, se inscreveu na PM, passou, virou
soldado da PM. Com dois dias de trabalho ele foi morto pelo PCC. Eu liguei pra ela, descobri, liguei
pro diretor do jornal, que é do meu tempo de Jornal da Tarde, o Sandro Vaia, "Quem é uma moça
chamada Mônica Tami", nunca tinha ouvido falar, "Mônica Sami....", "?Ahh, é”. Peguei o telefone dela,
117
liguei: "Olha, primeiro te cumprimentar pela matéria. Segundo, o seguinte: você tem um livro aí, hein!
Esse troço numa página de jornal é pouco. E mais, você tem um roteiro de um filme dramatiquíssimo,
retrato da merda em que estamos vivendo, com um personagem e uma história linear". Então é isso,
as histórias estão aí dando sopa. Essa menina, assassina, Richthofen, se eu não tivesse com o Paulo
Coelho eu ia ligar pro advogado ela e dizer "Olha, eu quero fazer a história"... O Marcola, o bandido
que lê Lênin, sabe, um bandido que lê Goethe, que já leu 3 mil livros, que tem um
vocabulário....Vocês leram o depoimento dele? Vocês não devem ter lido porque está meio
clandestino mas já está circulando na Internet. O sujeito tem o vocabulário mais rico do que qualquer
deputado que estava lá, e tinha um ex-ministro pô.. Se isso não é um personagem, eu não sei o que
é um personagem. Então ta dando sopa. Leia jornal com esses olhos, vai pra...vai você [aponta para
Cristiane] pra casa de custódia de Taubaté, que é pertinho de Jacareí e faz uma semana com o
banqueiro do Banco Santos, o Edemar Cid Ferreira, que está lá lavando privada. Morava numa casa
de 150 milhões de dólares, que tinha heliporto, que tinha auditório pra 200 pessoas dentro, mandou
fazer uma banheira copiada do hotel mais caro de Londres, lavando privada ..se isso não é..uma
semana...vai lá...
[neste momento a fita acabou e não a trocamos por considerarmos que os objetivos tinham sido
cumpridos]
118
ANEXO C
Cristiane – Tenho algumas perguntas sobre o seu trabalho e depois algumas mais geral...Eu gostaria
de saber primeiro, porque você escreve livros-reportagem?
Caco - Porque? Acho que são várias coisas... nunca pensei direito, mas quando eu percebo que eu
tenho uma história, eu gosto muito de contar história, sobretudo de apurar histórias, quando eu
percebo que eu tenho uma história forte, contundente, e que acrescenta informação talvez não
conhecida de muita gente, eu acho que me motiva a fazer uma reportagem de maior fôlego. Se eu
acho que eu tenho muita coisa, que talvez muita gente não saiba, então eu me encaminho pro livro.
Então, essencialmente, eu jamais poderia escrever um livro a partir de um projeto muito planejado.
Eu acho que eu tenho que estar já há algum tempo envolvido em determinado tema, ou em
determinada história, e aí eu fico extremamente ansioso, convivendo mal com aquele volume grande
de informação e eu tenho que dar um sentido pra aquilo, então eu acho que é hora de escrever um
livro. Pelo menos os três que eu fiz até agora, eu fiz outros, mas em parcerias com outros autores, eu
conto o meu só, essa situação se repetiu. Na guerra da Nicarágua eu me envolvi lá com os
guerrilheiros, fiquei um tempo mais preocupado em contar a história sobre a guerra. Naquele tempo a
gente tinha sido...estava convivendo com movimentos populares derrotados, armados, no Uruguai, na
Argentina, no Brasil, no Chile, na Colômbia, na Guatemala, sempre derrotados, mas daí de repente
surgiu um movimento popular muito organizado, na Nicarágua eu acreditei que pudesse ser vitorioso
e eu achei interessante que pudesse contar aquele história, que o povo, depois de Cuba, volta a se
rebelar e com chances de vencer uma ditadura. Essa foi a motivação como repórter, de acompanhar
a ofensiva guerrilheira. Aí eu fiz a cobertura toda, pensando em reportagem, sem objetivo de livro.
Quando acabei tudo, eles venceram a guerra, eu tive sorte, porque eu fiquei do lado deles, não morri
junto...
Caco - Sim, eu vendia. Eu trabalhava muito pra imprensa alternativa, de combate à ditadura, eu
ajudei a fundar uma revista em São Paulo chamada Versus, trabalhava muito pro movimento em
120
troca de nada, trabalhava pra escrever ali contra a ditadura, só isso, e, na medida das possibilidades,
vendia pra grande imprensa um free-lance, estava envolvido lá com as coisas que eu queria e como
não tinha jornalista, eventualmente não tinha no lugar onde eu estava, aproveitava e vendia. Vivia
assim, fiquei cinco anos assim, mas daí acabou a guerra, acompanhei a criação da lei número zero,
da lei 1, da lei 2, a revolução, os primeiros grandes encontros das pessoas que não se viam havia
anos, que estava na guerrilha e assim, em algum tempo eu fiquei lá, pós-vitória. Voltei pra onde eu
morava, que era Nova York, passei pelo Brasil, me dei conta que eu tinha feito uma cobertura que a
imprensa não tinha falado nada a respeito. A imprensa tinha feito uma cobertura centrada nas
entrevistas coletivas no lado da ditadura e alguma coisa de orelhada da guerrilha. Mas dificilmente
com os guerrilheiros e menos ainda, muito menos, com o povo envolvido na guerra. "Olha, porque
não escrever isso então se aqui no Brasil as pessoas só ficaram sabendo da guerra pela visão
oficialista da ditadura que perdia os combates progressivamente, a visão americana também e
alguma coisa do que os combates revelavam, sobretudo a destruição, mas intimidade da guerra, pela
a visão dos vencedores, nada, praticamente nada, com algumas exceções". Daí eu achei, "bom, aí
tem um livro, eu acho" eu fui pra contar essa história, tem muitos capítulos aqui e fiz meu primeiro
livro assim [Caco refere-se ao Nicarágua – A revolução das Crianças]. Com o Rota [refere-se ao Rota
66 – A história da Polícia que mata] foi uma coisa parecida, eu trabalhava muito na cobertura de
assuntos relacionados à injustiça social tal, e dava conta que a polícia matava todo dia e o noticiário
não falava nada. Tentava vender nas revistas, eu trabalhava na Veja nessa época, na Isto É, e fazia
free-lances pras revistas e jornais, e quando eu oferecia alguma matéria sobre execução praticada
pela PM, eles perguntavam quanto os mortos [reproduz um diálogo] "mas porque vocês estão
perguntando quantos os mortos?", "Ah, não, porque três, quatro não é notícia", "mas como assim?
Eles matam todo dia dois, três".."ahh, mas qual é a diferença? Ontem foi dois"...cria o inusitado, mas
daí se são 111 daí é notícia. Matar 111 por mês não é notícia. Que absurdo essa visão. E outro fator
que me levou a escrever, eu acho que a imprensa mentia todo dia nesses episódios, que retratava só
a visão do Comando da Polícia Militar, que é uma visão mentirosa, versão mentirosa, ou melhor,
então eu estava em crise profissional, achando que é um absurdo, se eu sei que é mentira, como eu
não faço nada, se eu sei que é mentira, ou faço muito pouco, apenas uma reportagem pra uma
revista, e geralmente quando eu conseguia provar bem que tinha sido uma execução e não um
tiroteio legítimo, como os comandantes falavam, eventualmente havia uma punição pro soldado que
era afastado do quartel, das ruas, trabalhava no quartel, raramente um era expulso, eu sentia
também que era uma sacanagem com o soldado porque eu tinha certeza que o comandantes, os
coronéis que tinham mandado matar, ele só executou a ordem e ele é o punido e o coronel saía de
bacana, quer dizer, "ou saio dessa área do jornalismo ou eu faço alguma coisa, como cidadão, não
como repórter". Resolvi fazer um livro pra provar que quem matava era o estado e não o soldado que
assume e dá tiro. O Abusado [refere-se ao livro Abusado – O dono do morro dona Marta], só pra
finalizar esse raciocínio, eu acho que o Brasil, os brasileiros falam muito sobre drogas, como mais ou
menos acontece com o futebol todo mundo sabe escalar um time, tem opinião pra tudo, mas eu acho
que conhecem pouco o universo do tráfico, sobretudo o universo dos traficantes que são os
protagonistas da história. Quase sempre é uma reprodução do discurso dos policiais, dos coronéis da
PM, ou de especialistas da academia que nunca sobem o morro, que jamais falam com os moradores
do morro, mas olha, é uma visão só, ou só a visão só dos organizados, da sociedade organizada, a
academia, especialistas daqui, especialistas dali, policiais e repórteres que sobem atrás da
metralhadora do Estado, quando tem tiroteio no morro, sobem sempre atrás cobrindo o universo da
polícia. E o outro lado? Os traficantes, os moradores do morro. Todo mundo emite juízo sem
conversar com os moradores, sem conhecer como é por dentro o tiroteio, como funciona uma boca
de cocaína, e eu tinha muita informação sobre isso, porque eu tinha um programa na TV a Cabo, que
eu gravei durante 6 anos, 100 % gravados nas periferias das grandes cidades e nas favelas do Rio,
principalmente nas favelas do Rio. Então eu estava sempre cruzando com traficante, pedindo
autorização pra subir no morro, discutindo o comportamento de elite com eles, essas coisas que a
gente tem que fazer pra trabalhar o morro. Eu disse "Ahh, tem aqui uma história que precisa ser
contada". Porque vêm aquelas teorias de que traficante obriga as pessoas a ficar no tráfico e se entra
não pode sair senão morre... as mentiras, que nem são exatamente mentiras, mas verdades, entre
aspas, que são reproduzidas e que ninguém sabe qual é a origem. Então pra desmascar isso, só pra
dar um exemplo mais simplório, e outras, e descobrir outras coisas, aprender também um pouco mais
sobre o universo do tráfico, eu achava legal escrever sobre isso também, o Abusado, então a
motivação sempre foi a mesma: tratar de temas que dizem respeito ao cotidiano das pessoas, que
todo mundo tem opinião, mas que eu acho que tem algumas lacunas que eu acho que merecem
trazer a tona.
121
Caco – É, se é que se pode ter essa pretensão. Eu tenho esse objetivo, eu não sei se atinge isso, se
isso tem importância ou não, mas o que me motiva é isso. Eu acho que tem que contar essa história
pras pessoas que estão falando aí, coisa que eu não concordo, vamos ver se é isso mesmo. Até
mesmo pra abastecer os especialistas, entre aspas, a academia, se eles não vão lá alguém tem
que...
Caco – É, dane-se, dane-se! Eu acho que alguém tem que contar a história, não só interpretá-la ou
emitir juízo ou opinião . Eu acho legal a pessoa emitir opinião, mas precisa saber a história.
Cristiane – Hoje em dia você acha que tem a preocupação, de tantos autores de técnica de livro-
reportagem, você acha que tem a preocupação com a técnica ou isso já é uma coisa que é intrínseca
ao jornalista, porque já está ali tão no cotidiano...
Cristiane - Sim.
Caco – Ahh, olha, eu não sei os outros, eu gosto muito, sempre que eu tenho a oportunidade eu leio
os americanos eu gosto muito, os ingleses...imagino que eles tenham. Eu sou fã de alguns autores.
Eu, quando escrevo, eu procuro ao máximo, ao máximo, assim, tornar a leitura agradável, tento de
toda maneira prender o leitor e isso exige técnica.
Cristiane – Sim.
Caco - Tantos, pra falar assim até mesmo de ficcionistas que me influenciam bastante, que eu
aprendo com eles, Frederick Forsyth , por exemplo, é ficcionista, mas eu tenho certeza que ele
escreve baseado na realidade, acho que ele deve trabalhar com um grupo de apuração muito grande
de realidade, porque os livros dele parecem verdade, são ficção, mas eu tenho certeza que ele se
baseou na realidade pra escrever, e as técnicas também de narrativa dele também são maravilhosas.
Bom, Truman Capote eu lembro de ter lido, seguramente mais de 30 vezes o A sangue Frio, mas lá
nos anos 70. John dos Passos, também era um grande repórter. Stephen Crane, também, um
repórter americano, muito jovem adoeceu de tuberculose, escreveu sobre a primeira guerra mundial.
Ahhh, bom, mais os contemporâneos, tem [pausa] Jack London, clássico. Hemingway, fiquei puto
outro dia que eu descobri que ele foi agente da Cia, foi uma decepção, ganhava uma mensalidade,
uma mesada, da Cia, eu preciso até, na verdade, gostaria de investigar melhor pra saber se é
verdade, de repente é uma...mas ele parecia ser uma figura tão romântica, interessante a vida
dele...agente da Cia...
[Aqui começa um trecho em que Caco Barcellos interrompe várias vezes o entrevistador, na medida
em que vai se lembrando dos nomes dos escritores]
Cristiane – Você disse que teve contato, que os seus livros surgiram...
Caco – Fitzgerald, também que foi contemporâneo meu, mas seguramente tem uma penca de
autores que eu estou esquecendo.
Cristiane – Tá, você me fala... Você disse que suas histórias elas surgem dentro do material que
você tem...
122
Caco – Menos. Ele é mais um analista, um pensador. Eu prefiro aqueles que ficam centrados nas
histórias do que de um analista, mas é maravilhoso...só que pra essa nossa conversa, de técnicas de
narração, eu prefiro os que mexem com a realidade...[pausa] Fernando Morais, pra falar dos
brasileiros....
Caco - To lembrando dos nomes...eu falei que ia lembrar...[pausa] João Antônio, mestre...
Cristiane – Se você se lembrar de outro pode falar...mas você disse que seus livros surgem do
material...
Caco - Carlos Morais. [risos] Eu sou um pentelho...acabou de escrever um livro, eu comecei a ler e
não tive tempo de seguir, depois eu vou te falar o nome. [fala junto com o entrevistador]
Cristiane – Você disse que os seus livros surgem das idéias, das informações que você tem, que
estava ali trabalhando já há algum tempo, você ..
Caco – Sim, eu tenho aqueles informações todas daí eu parto pra fazer...[interrompe o entrevistador]
Cristiane – Sim. eu gostaria de saber se existem....Porque as teorias dizem...é uma entrevista meio
teórica...as teorias dizem que tem certas etapas a serem cumpridas pra confecção de um livro, né,
como a pauta, depois a pesquisa, levantamento de dados, entrevistas, pra depois a confecção, a
redação. Você acha necessário passar por essas etapas? Como é a sua experiência?
Caco - Eu não sei qual são as etapas que a teoria recomenda. Os meus critérios são semelhantes
aos de qualquer reportagem que eu faça, ou uma reportagem de cinco minutos que eu tenho que
fazer pra tv, ou um livro de 600 páginas, meus critérios são os mesmos, exatamente iguais, é claro
que eu aviso pro telespectador que eu tive só cinco minutos pra aquela apuração, então deu tempo
só pra meia entrevista, mas eu procuro..... no caso do livro tem o componente de que eu já estou
muito enfronhado na história, aí decidi: "Agora vou fazer o livro". Uma vez decidido, eu parto pra uma
grande apuração, quero dizer, do tamanho que eu acho que é necessário pra eu poder ter um
razoável entendimento daquela história. Então qual é a seqüência? Vamos pensar assim no
Abusado, eu queria contar a história da terceira geração do Comando Vermelho. Porque eu queria a
terceira geração do Comando Vermelho? Porque foi essa geração que levou o Comando Vermelho a
controlar o comércio de drogas no Brasil, no Rio de Janeiro em conseqüência no Brasil, ou a
organização mais importante que estava controlando as drogas no Brasil. Queria também não fazer
um livro sobre o Comando Vermelho, e sim sobre uma boca de cocaína. Eu procuro sempre ter uma
história menos pretensiosa possível, mais focada possível, porque eu acho que quando você escolhe
um tema pequeno e fechadinho, você tem maior chances de aprofundá-lo, do que pegar um tema
muito amplo, você corre o risco de contar toda a história de maneira superficial porque ela é ampla
demais. Então eu procuro, de preferência, uma história só e, através dessa história, eu conto toda
uma realidade em volta dela, mas pra dar ao leitor a oportunidade de ter uma história com
123
profundidade. Então o grande desafio pra mim, que eu me auto-imponho, é descobrir qual é a história
que seja síntese do universo que eu quero abordar. Então eu entendi que, pra contar a história das
drogas no Brasil eu tinha que contar a história de uma quadrilha da terceira geração. A primeira
geração foi criada pelos comunistas, os jovens comunistas que enfrentavam a ditadura, foram presos,
mortos, torturados, desapareceram e tal, e os que sobreviveram foram pra cadeia e na cadeia, como
era medieval, como é medieval hoje, acho que só veio piorando o sistema carcerário no Brasil,
naquele tempo era medieval, abandonados, jogados como animais, com respeito aos animais porque
nem os animais são tratados dessa maneira, e eles criaram o Comando Vermelho pra ter um mínimo
de auto defesa, de organização, pra cuidar..pra não serem estuprados pelos presos, não serem
torturados pelos carcereiros, não apanharem de um policial que vai lá de visita, ou pra exigir o direito
que está na constituição de receber visitas de maneira sistemática, receber os parentes, os filhos,
enfim, brigar pelos seus direitos, a primeiro geração criou o Comando Vermelho. Daí os criminosos
comuns, os chamados presos comuns, aprenderam com os da luta ideológica como se organizar nas
cadeias. Na medida em foram saindo, que os comunistas foram saindo da cadeia, ficaram lá os
presos comuns, gostaram da idéia de unir forças pra que defender seus direitos e impuseram
também um jeito deles, né. E na medida em que eles foram saindo pras ruas, cumprindo suas penas,
levaram a organização pra rua, com o compromisso de continuar assaltando, parte do dinheiro do
assalto voltado pra contratação de advogados, pra financiar uma ida de uma pessoa que não tem
dinheiro pra ir cadeia, levar comida, com alguma dignidade, enfim, coisa que você sabe muito bem
como funciona. A segunda geração, foi a geração que levou então pra rua, a primeira são os
comunistas a segunda levou o comando pra rua e fez a ponte rua-cadeia. E, dependendo da época,
eles vieram a controlar assaltos, de maneira organizada, usando a mesma organização interna da
cadeia pra se organizar na rua, agir em grupo pra assaltar banco. Sobretudo no Rio, os criminosos do
Rio, estão sempre na vanguarda dos criminosos de qualquer outra cidade brasileira. São Paulo está
chegando perto hoje, mas eles realmente são à frente, no sentido de que são organizados. Partiram
depois pra assaltos à carro forte, quando os bancos começaram a tirar dinheiro dos caixas, quando a
polícia aperta numa área eles vão pra outra, inventaram o seqüestro, trazendo tecnologia dos
colombianos, dos seqüestros foram pulando até chegar nas drogas. Então como eu queria falar de
drogas, achava que terceira geração foi a que levou o Comando Vermelho a controlar o tráfico, a
primeira coisa era localizar uma quadrilha. Isso demorou bastante. Tentei inicialmente na Rocinha,
era da terceira geração, mas daí aconteceram guerras, o cara que tinha me dado a possibilidade de
trabalhar lá morreu e eu tive que parar até conhecer o Juliano, o Marcinho VP, e ele me deu a
possibilidade de trabalhar lá no Santa Marta, e aí quando eu consegui dele o sinal verde pra subir no
morro, o que pra mim era tirar a sorte, porque era um morro estratégico pro Comando Vermelho, pro
controle de todo o tráfico da zona sul, é um morro amigo dos outros vizinhos ali, Vidigal, Cerro Corá,
Pavão Pavãozinho, era interessante porque tem os tentáculos pros outros morros eu podia ampliar
sempre com o foco fechado no Santa Marta. Outros componentes me ajudaram também a ficar no
Santa Marta porque é a maior concentração de brasileiros está no Santa Marta. Aquela relação por
metro quadrado segundo o IBGE, você sabe né?! Realmente ela é muito pequenininha, então por
isso a grande concentração, é uma coisa interessante também de se escrever um livro próximo, fácil,
não fácil mas você tem a possibilidade de ter toda a informação concentrada num raio muito
pequeno. Como eu gosto do universo micro pra me aprofundar o máximo possível é também
interessante a geografia do morro..
Caco – A próxima etapa é contar uma história de forma atraente. Então que histórias selecionar? Daí
eu começo a fase que pra mim é a mais fascinante, que é me aproximar das pessoas, conquistar a
confiança delas, fazer com que elas contem histórias pra mim. Isso é o que eu acho mais legal, e daí
eu começo a escrever, embora não assim fisicamente escrevendo, mas eu apuro pensando na frase
de cada um no livro. Então algumas técnicas, por exemplo, de apuração, se você diz que João é um
covarde sanguinário, provavelmente eu vá jogar o seu depoimento no lixo. O que eu vou querer saber
de você? [reproduz um diálogo] "O que o João fez pra você dizer que ele é covarde?" “ahh, ele pegou
três crianças da vizinha que todo mundo adora e, enfim, machucou, agrediu com facadas. Coisas
brutais contra as crianças e tirando sangue delas" Então eu quero riqueza de detalhes na ação desse
cara, pra não ofendê-lo, não chamá-lo de covarde sanguinário, eu não quero ofender ninguém mas
eu quero contar histórias do que as pessoas fazem, histórias que permitem confronto da informação
pra saber se ela é verdadeira ou não. Então em vez de simplesmente ter uma frase de efeito "João
sanguinário covarde", eu quero contar: "O operário João, tal, aquele dia virou comerciante ilegal de
drogas, usou o que não devia, cruzou com o inimigo e em vez de enfrentar o inimigo, foi enfrentar os
124
filhos, cometer atrocidades contra os filhos" e daí eu conto história, um, dois e três que ele cometeu.
Aí eu começo, na seqüência, saber se esta história é verdadeira. Eu tenho o seu depoimento, é
importante, mas é um só, então eu te obrigo, forço a dizer quem assistiu àquilo e você diz "sete
pessoas" então eu vou atrás dos sete. Bom, se é um crime, tem que haver processo. Vou na justiça
vejo ..mas daí nossa justiça é incompetente, nossa polícia mais ainda, às vezes crimes acontecem e
a polícia não fez nada, nem sequer sabe que aconteceu. Aí complica, eu não tenho esse dado pra
confrontar, mas se tem é legal, pra ver como a polícia trabalhou isso, como a justiça trabalhou, como
tratou desse tema. Geralmente é uma distância imensa entre a verdade do morro e a verdade do
judiciário. É uma distância absurda, uma omissão total, uma incompetência recorrente. Mas se você
sabe, você conhece o universo que está trabalhando, é assim mesmo. Quando crime envolve gente
poderosa, gente do lado onde há cidadania, você tem um processo razoavelmente eficaz. Quando
envolve pobre, esquece. A Cristiane tá mentindo? Não, o mais provável é que a polícia tenha se
omitindo. Por isso eu acho que o contexto é importante você ter muito claro, você conhecer o
universo que você está trabalhando a priori porque te ajuda muito a traçar seu caminho. Mas enfim,
tem a imprensa. Contou essa história ou não contou? É uma outra fonte..as fontes formais e as
oficiosas. Eu costumo dar muito mais crédito às oficiosas, eu acho que eu estou mais perto da
verdade quando eu estou mais perto das pessoas envolvidas, das pessoas simples, de rua,
enganam menos do que do lado da sociedade organizada, que são pessoas que costumam enganar
bastante, de má fé ou por incompetência, eu acho que é mais freqüente. Pessoas simples, pessoas
comuns é muito difícil você ter um relato... de má fé sim, não é tão raro porque as pessoas sempre
escondem o que fazem, mas é mais difícil você encontrar mentira nesse universo das pessoas do
morro, é muito difícil.
Cristiane – Caco, você...para o Rota 66 foram sete anos de pesquisa, é isso? E para o Abusado
quatro...
Caco – Mas não são tempos efetivos, porque como eu trabalho muito na televisão, há tantos anos
em média...não sei, talvez 14 horas, 15 por dia, se fosse fazer uma média..eu faço livro na décima
sexta hora, então é um livro sempre cansado e limitado no tempo. Então eu acho que eu contei aí
quando eu comecei e quando eu acabei, mas se não houvesse a televisão no caminho, talvez eu
pudesse fazer em dois anos, ou quatro e em um ano o Abusado.
Caco - Daí eu pedi duas licenças. Eu pedi licença pra sair da TV, fiquei dois, três meses cada uma,
todas as férias, todos os fins de semana...muitas vezes nessa hora que tocava o telefone..agora não
porque não dá mais tempo [a entrevista foi realizada por volta de 22h]...não, até daria. Se tocasse o
telefone agora, “Caco, mataram, sei lá, um rebelde". Eu saía daqui correndo, pegava a ponte aérea e
ia pro velório dele, aí ficava lá no velório até quatro, cinco da manhã, dormia três horas, voltava pra
cá de manhã pra trabalhar. Muitas, muitas, muitas vezes isso. .Mas se você contabilizar, não são
cinco anos de trabalho noite e dia, como eu gostaria.
Cristiane – Eu queria saber até onde vai com sua pesquisa? Em que momento você diz: "Poxa,
agora eu tenho informação suficiente, agora dá pra eu escrever"?
Caco – Poxa isso é terrível. Tem que seqüestrar o livro de mim. Eu não acabo nunca, porque
reportagem não tem fim, né. Você falou de sete testemunhas que viram as crianças morrendo, você
vai falar com uma testemunha "ahh ela disse que naquele dia..."
Caco – E aí vai. Quanto mais sério você for, mais possibilidades você encontra pra ver se...Mas
também chega num momento que você "bom, essa história ta redonda por aqui ". Então o que eu faço
pra poder dar um ponto final em algum seguimento? Bom, eu tenho aqui 80% da história me parece
verdadeira, 20% eu tenho em dúvida. Eu posso trabalhar mais duas semanas pra apurar até 90%.
Mas vem cá, 80% já tem fonte pra caramba. Lixo 20%, na dúvida, lixo. Então muitas e muitas
histórias maravilhosas foram pro lixo, potencialmente maravilhosas, porque eu tenho a camisa de
força da verdade, né, quando você trabalha com não-ficção. No primeiro não tinha tanto porque eu
estava muito influenciado pelos ficcionistas, então eu me permitia uns vôos assim, de mudar de lugar
as histórias. Depois eu fui eu sou e vi que eu realmente quero. Fiquei realmente fascinado pela não-
125
ficção, pela realidade das pessoas que é tão complexa também que pode até parecer ficção. Cada
pessoa tem uma história mais maluca que a outra....
Cristiane - Isso seria uma das perguntas: o que mudou em você ou no seu modo de escrever de um
livro para o outro?
Caco – A apuração.
Caco – Eu não sei avaliar, me auto-definir, me auto-avaliar. Mas eu acho... pensando no que rolou,
eu acho que eu fui me dedicando cada vez mais à apuração. Como eu te falei, escrever na apuração.
Então essa história recorrente dos meninos, pra facilitar o exemplo, a história que eu quero te contar,
ta, matou três crianças "Que dia foi?" O pessoal nunca lembra..o morro então não tem memória, eu
tive que levantar as histórias, fazer a cronologia, a partir dos santinhos que as pessoas produzem pra
homenagear os parentes que morrem. Eu ficava: "Tem santinho, tem santinho e tal...?" Porque com
os santinhos você tem as datas, morreu fulano naquela data, daí eu comecei, depois de um bom
tempo, mais de um ano, acho, quando as pessoas não lembravam, "Foi antes ou depois da morte do
Zezinho? Foi na semana?", daí as pessoas: "Ah, foi no velório", aí eu começava a guardar, a partir
disso... é um outro tipo de apuração, mecanismos pra ajudar as pessoas...
Caco – Eu acho que eu fui. Com o passar do tempo, dos anos, passei a ser mais rigoroso. A pessoas
não sabe? Ok, então eu vou ajudá-la. Então eu invento essa loucura, o santinho. Cada situação é
uma coisa diferente, por exemplo: investigar a geologia pra poder narrar com mais detalhes, mais
perfeccionismo as histórias que envolviam a escavação pra esconder cocaína. Enfim, "Que terra é
essa?". As pessoas não sabem? Tem outras que sabem. Um dia um jovem que subiu, fez uma obra,
sei lá. Então vem um momento que amplia ao máximo pra depois novamente fechar. Quando está
ampliando evidentemente sempre com a preocupação, "ah, eu preciso saber desse solo, dos
barracos, como são, eu preciso saber que madeira é essa. Nos anos 70 era uma coisa, nos 80 outra,
porque vem alvenaria". Tem que investigar, sair fora. Material de construção, envolve importação,
cimento, enfim, tem possibilidades infinitas de você ir apurando com mais precisão. Mas aí a coisa da
fala, digamos, eu te forço a saber a data, você não lembra da data...[reproduz um diálogo hipotético
dele com outras pessoas] "Você se lembra se alguém falou alguma coisa na hora do crime?", "Ahh,
eu lembro que a dona Joaquina gritou da janela", "O que ela gritou?", "Ahh, não sei. Ela ficou puta da
cara com isso", "Mas o que ela disse?" você não lembra, então eu vou atrás da dona Joaquina, já
morreu, "Alguém viu a dona Joaquina? Tava em casa? Com quem ela estava aquele dia?", "Tava
com o marido. Tá vivo mas ta de cama, sei lá o que", mas tem alguém, enfim, que ouviu ela dizer "Por
favor, João, não mate essa criança", "Foi isso que ela disse? Mais alguma pessoa ouviu?", "Não, não
foi ‘por favor’, ela caral....um palavrão, não mate esse menino". E aí eu tenho lá a frase "Por favor não
mate". Então eu estou narrando a história sobre a ótica de alguém e foi uma frase que não foi dita por
você, foi dita pela ....você não lembra a frase, mas alguém lembra. Então vai crescendo lá no meu
romance a frase literalmente como meia dúzia disse que aconteceu. E aí entra questões assim, um
diz que no momento do crime ele estava usando uma calça jeans "Como era essa calça jeans?",
"Ahh, era hippão, boca de sino, cobria o pé inteiro", daí um vai vir: "Não, bobagem, ele tava de
bermuda". Era calça jeans ou era bermuda? Ele usava calça jeans, mas naquele dia estava de
bermuda. E às vezes fica o detalhe da bainha da calça, "Não, era moda cocota, com fitinha na
canela", aí o outro diz "Não, eu tenho certeza que era...". Duas testemunhas, que assistiram o mesmo
crime, mas esqueceram esse detalhe, ou uma costumava vê-lo andando pelo morro com uma calça
larga daquele jeito e colocou essa calça no dia do crime. Não que queira te mentir, mas é assim que
as pessoas narram as coisas. Um outro exemplo muito freqüente: a cena do crime acontece aqui [a
entrevista foi realizada em uma das salas da redação da Rede Globo. Estávamos sentados um de
frente para o outro, com uma bancada à minha esquerda que seguia por toda a parede. Sobre a
bancada, ao meu lado, uma bolsa vermelha]. Eu atiro contra a bolsa, daí alguém que estava naquele
canto [aponta para o ponto oposto], narra, diz que eu atirei nessa posição [a queima-roupa], que a
bolsa era vermelha, que os tiros atingiram aquele ponto [ainda apontando para minha direção] e tal. E
um terceiro diz que aquela bolsa... [Caco cria uma situação hipotética onde há duas testemunhas: a
testemunha A em uma posição que forma um ângulo reto à minha direita, e a testemunha B que está
na minha diagonal] aquele aí diz que era azul [aponta para o local em que estaria a testemunha A],
126
esse diz que era vermelha [aponta para o local em que estaria a testemunha B]. Aquele pode estar
enganado [refere-se à testemunha A], porque você está aqui na frente da bolsa e ele não viu. Quem
tá mentindo não necessariamente esteja mentindo, é que aquele ali [testemunha A] não viu a cor da
bolsa porque você estava na frente, esse aqui viu [testemunha B]. É importante você montar a cena
do crime com essa preocupação. Qual é a posição dos objetos relacionados ao crime? Por isso a
perícia é tão importante, a perícia do local. Cadáver fala muito, os objetos relacionados com o crime,
como é que estavam? Você estabelece relações de coerência e incoerências no relato de uma
testemunha a partir da análise da perícia no local, coisa que a Rota é campeã em desfigurar porque
eles sabem que isso é importante. Sempre eles levam a vítima para o hospital porque sabem que
dessa maneira não vai haver perícia de local, porque só tem perícia de local quando tem cadáver.
Caco – Eu acho que quanto mais detalhista for mais perto da verdade você estará...
Cristiane – Mas muita informação dessa apuração toda, às vezes, acaba em nada...
Caco – Acaba em nada, mas te alimenta a convicção. Você tem que estar convicta de que está com
a verdade. Eu preciso. Muitas não, infinitas informações você não usa pra construir a história. Por
exemplo, eu não gosto de adjetivo, então isso tudo é lixo. Agora, eu gosto que me falem de uma
covardia, é importante porque a história está ali, só que ela está mal contada, está contada por quem
não é escritor, está contada por quem gosta de opinião e esse tipo de manifestação. Eu gosto do
verbo, porque o verbo me possibilita provar as coisas, porque quando você tem ação, você tem
testemunha, elementos pra confronto.
Cristiane – Caco, você usou uma palavra, uma definição que é um ponto de questionamento também
pra quem estuda o livro-reportagem, você falou romance...
Cristiane – Então, eu queria falar desse assunto mesmo. Na técnica você disse que usa algumas
coisas influenciado por certos autores. Como você utiliza o jornalismo literário na sua obra?
Cristiane – É. A literatura que tem no jornalismo literário. Escrever dessa forma romanceada os fatos
verídicos...
Caco –É, eu nem sei se é o correto dizer romanceado, eu estou dizendo porque eu digo pra mim
mesmo isso. Quando eu falo romanceado, não que seja isso um romance, mas é a técnica de contar
uma história com toda a complexidade dela. E também pensar no formato realmente, qual é a leitura
mais agradável? Tem romance que é romance quase que ensaio. Eu prefiro, como sou repórter,
contar a história sem muita interpretação, enriquecendo muito em detalhes. E gosto muito dos
diálogos, porque os diálogos ajudam a transportar o leitor pro cenário do acontecimento, mais
fortemente do que você só ficar com a sua observação em terceira pessoa. Eu gosto de trazer o leitor
pra dentro da história. Não sei se isso é técnica de romance ou não, mas quando eu falo isso de
técnica de romance é isso que eu quero dizer. Então a influência são desses caras, desses escritores
que também mergulharam em reportagem e contaram as histórias pela forma da reportagem. Eu
acho que... evidentemente que há centenas de maneiras de contar uma história, eu acho que a mais
bela de todas é a da reportagem, quando relacionado à não-ficção.
Cristiane – Como que você armazena seus dados e como você os coleta? É no gravador, é na mão?
Caco - Eu fiz questão no Abusado a mesma coisa que você fez. Simbolicamente eu achava que tinha
que ter algo entre nósdois...entre o entrevistador e o entrevistado, ali esse componente, embora não
representasse nada para os traficantes. Pra ele se eu tivesse colocado uma pistola aí sim, aquilo é
simbolicamente importante, mas um gravador não faz parte do universo deles...pra mim sim, mas eu
queria dizer pra eles: "Ó você está dando um depoimento pra em escritor, que vai escrever um livro,
pensa no que você está dizendo", mas isso não tem a menor importância para o universo deles...
127
Caco – Não, e também pra, na hora de escrever a frase, eu posso esquecer. Eu aprendi muito com
Truman Capote e com outros autores a memorizar, mas você falha, esquece uma palavra e outra. Eu
gosto de ter também do ritmo da frase, então eu gravava também pra isso, pra ficar ouvindo, ouvindo
muito. Antes de separar os capítulos eu ouvi muito o que eles falavam, então eu fiquei falando como
eles também pra ajudar a escrever. Eu sempre pensava, “aí", como falam os cariocas, "Aí, qual ..."
[fala uma expressão que não foi possível compreender], então eu ficava treinando o máximo. Levava
sempre uma câmera digital porque facilita muito a visão. Você tem uma cena que aconteceu nessa
sala, eu filmo tudo, toda a sala. Os tiros atingiram aquele quadro [aponta para um quadro na parede],
então eu tiro muitas fotos aí. Então eu filmo porque na hora de escrever eu tenho tudo. Tem um
grupo, três caras, naquele canto [aponta para o canto oposto da sala]... ajuda, o material da sala, de
cada elemento, de cada peça, cada papel. Com câmera digital, colocava lá monitor, na hora de
escrever, esquecia alguma coisa, ia lá, ouvia, assistia....Eu adoro papel, pra mim não é concreto isso
aqui [aponta para uma tela de computador], eu preciso por no papel. Eu pego o papel, pra sublinhar,
com várias cores, o que é prioridade, e sei lá, em vermelha, segundo em importância, azul, terceira,
amarela, quarta, bem fraquinha, sem importância. Enfim, tem mil loucuras pra me organizar. Eu sou
extremamente indisciplinado, eu sou uma pessoa desorganizada, assim, gosto de freqüentar o
abstrato, mas quando eu me dedico a um trabalho, a uma reportagem, isso vira uma coisa doentia de
organização. Depois de toda a apuração feita, a montanha de informação lá, eu fico meses,
dependendo do volume, a quantidade necessária pra ler tudo, uma, duas, três vezes se for o caso e
eu conseguir tempo, daí uma vez que eu tudo aquilo na cabeça, eu penso em um roteiro, então os
capítulos serão, sei lá, eu vou por histórias, quantas histórias bacanas eu tenho?, Digamos que eu
tenho 30, então serão trinta capítulos. Aí começo a escrever..capítulo 1 dou um título, capítulo dois,
três...Isso tudo vai mudando na medida que eu vou viajando nas histórias, mas eu tenho um título pra
pegar aquele volume todo de informação e colocar. Digamos, capítulo um: Volante [personagem do
livro Abusado], então pego todo o material relacionado com aquela história do Volante, que foi morto,
fuzilado, coloco aqui na pilha do Volante. Capítulo dois, eu coloco na pilha do capítulo dois. E tem um
material central que serve pra todos, geralmente os acontecimentos do cotidiano, do dia a dia,
servem para pano de fundo da história, background da história: política, secretaria de segurança
pública, estatística, coisas que são comuns a todos os capítulos ficam numa área comum. E na
medida que eu vou escrevendo depois, eu vou eliminando com a maior felicidade do mundo aquela
montanha do capítulo um, tiro dali pra não ver mais na minha frente e vou avançando, terminando
tudo.
Caco – Que eu não obedeço, mas que eu tento obedecer. Às vezes até emplaca quatro ou cinco na
seqüência, às vezes tem uma ali que viram três, ou três que viram um, depende. E gozado, ganha, às
vezes uma coisa na minha cabeça, os personagens crescem e daí eu volto a apurar e eu lendo ali ou
ouvindo a entrevista, eu falo "mas como é que eu não perguntei isso, ele falou ouro aqui, na hora eu
não percebi". Você está exausto, está atento a outra coisa, acha que não é importante descobrir
quem é o cara que leva do morro pra Bolívia e vice e versa, fica concentrado ali no lado, daí o cara te
fala ouro ali do lado e você não está enxergando, você quer o cara que leva pra Bolívia e ninguém te
fala.
Caco - E daí eu volto pra apuração. Por exemplo, eu cheguei no morro do Saréu...eu não posso ouvir
histórias futuras, eu acabo o livro na hora e falava, na medida em que eu ia conquistando os
traficantes e tal, [reproduz um diálogo dele com os traficantes] "Eu não posso ouvir histórias de futuro.
Se vocês falarem alguma coisa que vão fazer amanhã, eu vou embora. Eu não posso saber também
o que está acontecendo hoje, não façam nada na minha frente. Vocês são criminosos e eu vou
interferir e vou brigar com vocês porque se eu sei que vocês vão matar aquele moleque, eu vou
avisar o moleque, é minha obrigação fazer isso e eu faço isso e vai ter problema entre a gente, então
não fale”, mas eles ficavam putos comigo, eles falavam "Olha, a gente está confiando em você, tá te
dizendo as coisas, você não quer ouvir, se vai confiar na gente", "Não é isso cara, mas é uma coisa
complicada, vocês estão no crime e eu não estou no crime e eu sou contra gente que mata, contra
gente que rouba, sou conta, então eu vou brigar com vocês. Agora, o que vocês fizeram ontem, eu
quero saber tudo, e mais, eu quero saber as coisas que vocês não querem falar e eu vou descobrir,
128
to avisando vocês, preparem-se. Querem aceitar, é isso, é o meu jeito. Você querem...não querem, to
fora, vocês tem todo o direito de querer ou não" aí começavam a contar história e de repente "Ahh,
semana que vem eu vou fazer tal coisa”, daí tinha que desligar, "Eu vou embora, semana que vem a
gente retoma essa conversa". Eles não entendiam direito, mas depois começavam a entender e eu
estava.... quando eu falava pra algum "Eu quero histórias do passado", o cara falava "Ahh, meu
passado é uma merda, meu passado é um horror, nasci em família violenta comigo, meu pai é um
alcoólatra..." e não queriam falar do passado então eu não falava mais que queria falar do passado,
eu deixava a conversa rolar, fazia pouquíssimas perguntas e entrava na história dele. Quando eles
começavam a contar eu ia alimentando, sem dizer "eu quero tal coisa" e como técnica isso funcionou
super bem. E, de repente, o pessoal da quarta geração entrava na história e queria contar.. "Eiii", daí
me chamavam de mano, me chamavam de francês, "Eu tenho uma história do passado interessante
pra te contar" e eu não queria. Enfim, eu acabei me convencendo que poderia ser legal, até porque
eles pediram muito e eu achei interessante, mas.o livro estava pronto, estava escrito. Eu retomei tudo
do zero, apurando tudo de novo. Então o moleque que entrava na primeira apuração com 14 anos no
livro, eu fui atrás da história de quando ele nasceu [trecho ininteligível] primeiro, segundo, terceiro...
vendo o que era interessante pra eu contar. Então quando eu estou contando, no primeiro capítulo, o
Juliano com 14 anos, o moleque que tava aparecendo originalmente no final do livro, estava
nascendo, então eu tive acrescentar essa história, sempre evoluindo. E quando o livro chega ao fim,
quando ele aparecia na versão 1, na verdade ele veio aparecendo, na versão final, desde o começo
até assumir o poder. Que é a 4ª geração que está no poder hoje. Isso eu dei como exemplo de como
a apuração vai se impondo.
Caco – Desse jeito como eu faço é impossível. Tem que ser meio doido pela apuração e gostar. Não
estou dizendo que é assim que se faz livro-reportagem, quem sou eu pra dizer, estou dizendo como
eu faço o meu, mas imagino que tenha outras técnicas eficazes, simples...
Cristiane – Você enquadraria ele em alguma classificação [trecho ininteligível] O que eu queria saber
é se você o enquadraria [referindo-me ao Abusado] em alguma classificação?
Caco -Eu não sei.Talvez tenha, bem definida, mas eu não sei qual é. Eu comecei a falar romance-
reportagem, nem sei se é, se existe isso, e acabaram reproduzindo, "romance-reportagem", nem sei
se era. Eu acho que é parecido com esses autores que eu gosto muito.
Cristiane – Caco, como você avalia a produção de livros-reportagem no Brasil? Você tem contato?
Você lê....
Caco – Sim. De certa maneira sim..eu falei do Otávio Ribeiro... [trecho ininteligível]
Caco – O livro-reportagem?
Caco - Que eles mantêm a reportagem viva, contra a vontade dos jornais das revistas, que
assassinaram a reportagem. Então o grande valor é esse. Então é a felicidade das editoras que estão
aí, vendem pra caramba, entraram numa brecha importante e as pessoas gostam, as editoras hoje
estão caçando autores de livro-reportagem, que vendem muito mais que os ficcionistas, e atribuo isso
à necessidade que as pessoas têm de ler histórias com profundidade, com riqueza de detalhes,
porque não há mais isso na grande imprensa. O que precisa ter, eu acho que é o compromisso com a
verdade, é essencial isso, com a realidade, no caso dos que estão no Brasil, daí é outro esquema
que fora...acho que tem que contar a história da maioria, não da minoria. Se você me pergunta o que
eu gostaria de ver em um livro-reportagem, é contar aquilo que a imprensa não conta, porque a
imprensa brasileira hoje não conta a história da maioria, conta a história da minoria. Parece que os
jornalistas gostam de olhar para o próprio umbigo e a importância do mundo está no seu universo
particular, no cotidiano, não no cotidiano dos brasileiros, como se estivessemos morando na Suíça. A
Suíça é um país de renda muito bem distribuída, todo mundo, comparando com a gente, é de classe
129
média alta. Se fossemos cidadãos suíços os jornalistas estariam contando a história do Brasil real,
como não estamos na Suíça eles contam a história da minoria. O que eu acho que um livro-
reportagem tem que ter? A história da maioria e não da minoria, então, a história daqueles que não
tem acesso ao poder, não tem voz, não tem direito à cidadania, nada dos privilegiados, então eu acho
que, se for hierarquizar os componentes que são necessários para a reportagem, sob a minha ótica,
primeiro lugar eu acho que a história da maioria. E até do ponto de vista mercadológico acho que dá
certo, as pessoas [trecho ininteligível] porque é um universo pouco freqüentado [trecho ininteligível]
Cristiane – As últimas perguntas...Já é sabido que para se escrever bem é preciso ler muito, mas
você acha que também tem que escrever? Tem que sentar ali [aponta para o computador] e mandar
ver
Caco - Eu, talvez por absoluta incompetência, eu preciso sentar, bater a cabeça. Não consigo
escrever a primeira frase de pronto. Admiro os colegas que sentam e sai o texto assim, fluindo como
o Norman Mailler faz, dizem que faz. Eu tenho colegas que vejo, colegas jornalistas também que são
rápidos, velozes. Eu preciso ficar sofrendo que nem um maluco e repetindo, às vezes eu demoro três
horas pra esquentar uma frase, de repente vai, eu escrevo duas horas o que eu não escrevi em dois
dias. E não tem o menor constância, a menor regra. Eu estabeleço desafios porque eu sei da
dificuldade, então eu estabeleço como desafio duas páginas por dia, durante 20 dias. Aí chegou no
décimo dia eu vejo "20 dias, duas páginas, tinha que ter 40 e eu estou com sete, mas tudo bem, nos
últimos dez eu escrevo quatro então porque ..", aí chega lá no 20º dia eu vejo que ao invés de 40 eu
tenho 27, eu fico arrasado, um sentimento horrível. Mas daí eu começo a pensar assim: "Eu tinha
zero quando eu estabeleci esse desafio e eu tenho hoje 27 páginas, que legal". Estabeleço outro
desafio, vou recuperar aquelas 13 páginas, então nos próximos dias três páginas...fracasso de novo,
e assim vou, mais dezoito, 27, 45, eu vou dessa maneira, impondo desafio pra ver se melhora o
ritmo. Tem épocas realmente que ao invés de duas por dia eu faço três, cinco, seis. Eu esquentei,
acho que peguei um ritmo que eu to curtindo, tem épocas que eu entro em crise e fico três dias numa
página e não avança, épocas que no pesadelo, eu tenho muito pesadelo enquanto durmo, no
pesadelo resolvo o capítulo, acordo e escrevo rapidinho...
Caco – Ah?
Caco – Pra mim é. Talvez eu deva considerar fortemente o seguinte: eu escrevo cansado, então eu
escrevo um capítulo hoje, quando chega amanhã, no dia seguinte eu vejo que eu tava sonhando
pensando que estava acordado, tem que escrever tudo de novo. Mas pelo menos ali eu já tinha um
desenho e então eu escrevo bem rápido, depois eu volto a escrever ainda, porque um livro grande
assim, três meses depois quando eu voltar no primeiro capítulo "Meu Deus, eu escrevi isso", então
refaço o primeiro capítulo, refaço o segundo, ou um pedaço, acho que estava num ritmo legal, ou até
a página quinze, ou da décima quinta à vigésima...
Caco – Nunca. A Luciana Villas Boas, editora da Record, sempre fala: "eu tenho que te roubar".
Agora eu sou muito rigoroso... também eu adoro ficar lendo. Eu li não sei quantas vezes o Abusado,
porque demora pra ler, então cada vez que eu lia eu ia mudando, cortando, cortando...O processo de
corte é importante, porque a gente escreve com muitas palavras, então dá pra reduzir. Escrever é um
processo de corte...escrevi muito, corta, corta, corta, escrevi muito, corta, corta, corta.., pra deixar
mais enxuto, mais direto, já que se está embuída de fazer uma não ficção.
Cristiane – Caco, eu queria que você desse algumas dicas pra quem quer seguir essa área.Você
poderia dar alguma?
Caco – Nenhuma! Sinceramente nenhuma, porque eu temo que o que dá certo, se é que dá certo pra
mim, pode ser motivo de sofrimento pra você. Com toda sinceridade possível, eu temo muito, porque
eu sei das minhas loucuras e funciona assim, se é que funciona, porque eu tenho essa dificuldade,
mas se você tem facilidade de escrever rapidamente, se eu te der dica : "Não, você tem que persistir,
130
escrever dez vezes a mesma frase", bobagem! Pra você pode ser que o texto final seja o primeiro,
que você tenha essa facilidade. Já, "Durma bem e quando acorda é o melhor momento pra escrever",
pra mim pode ser, mas pra você não, eu tenho que ser de madrugada. Enfim, você trabalha na
televisão 12 horas por dia, pra escrever na 13ª hora é uma coisa. Eu não sei o que é um livro em um
tempo ideal porque eu nunca fiz, talvez lá, quando eu tinha 28 anos de idade, hoje eu tenho 56,
minha vida mudou, talvez o que funcionava bem com 28, não funciona agora. Eu precisei de Coca-
Cola pra escrever o Rota, hoje eu não tomo Coca-Cola, aliás eu peguei uma gastrite terrível. Aliás, eu
sou muito rigoroso também na alimentação. O grau de loucura, imagina, se fosse te dar dica, chega a
ponto de fazer alimentação balanceada, com o rigor de macrobiótico que mastiga 40 vezes antes de
engolir qualquer alimento.
Caco - Quando estou fazendo livro sim, porque eu não posso ficar doente. A única, eu acho,
medicina que te garante saúde é a macrobiótica. É o remédio, porque eu não uso
remédio...alimentação correta. Da onde surgiu isso? Eu sou um imbecil, mas eu tenho esse cuidado
pra ficar mais forte, pras idéias fluírem mais, eu preciso de arroz integral [fala dos alimentos que
consome mas que não foi possível entender] Então cada doido sabe da sua loucura. Então, pra ser
bem sincero, eu não acho que tem um caminho entre as pedras pra sugerir.
Caco – Sim
Caco – É, eu acabei já te falando aqui, né. A maneira ...se você acha que isso pode ser interessante,
eu assino em baixo o que eu te falei, mas funciona pra mim. Será que precisa ter rigor assim pra se
contar bem uma história? Ou pode contratar um grupo de apuradores que apuram pra você. Eu
prefiro eu apurar e esse rigor ali...tem que ser doido que nem eu pra saber o que eu quero, o que eu
acho importante.
[Neste momento, como também aconteceu no encontro com Fernando Morais, a fita acabou e não
colocamos outra por julgar que o objetivo já tinha sido atingido]
131
ANEXO D
Depois do cafezinho, estive com ele por mais quase duas horas,
quando fiz a entrevista. Considero este o melhor dos materiais que possuo. O som
está muito limpo e a fala de Edvaldo extremamente clara, o que me ajudou na
análise do material.
Edvaldo – Eu acho que há um segmento do profissional de imprensa que sempre presa muito pelo
livro-reportagem porque, na medida em que o profissional vai avançando sua carreira no jornalismo,
encontra as limitações que existem na prática profissional dentro dos periódicos. Há muitas limitações
de tempo, de ângulo de percepção da realidade, de pauta, de temas, uma série de restrições, então
uma parte dos profissionais tem um desejo pessoal de produzir trabalhos de peso, que tenham
consistência, que perdurem um pouco mais do que acontece com os jornais que no dia seguinte já
virou papel de embrulho. Então, pra esses profissionais, há um prezar muito forte pelo livro-
reportagem, porque eles sabem que ali há espaço pra se praticar um jornalismo diferenciado. A outra
coisa é que o profissional sente no livro-reportagem o desafio de colocar o seu talento à prova. Então
a partir de um certo tempo na carreira, o profissional percebe que os veículos geralmente utilizam
uma parte muito pequena do potencial do que eles sentem que têm, e o livro-reportagem não, o livro-
reportagem exige uma disposição de mergulho mais consistente na realidade, exige o domínio
narrativo mais elaborado e exige uma disposição de querer enxergar o mundo com olhos mais
amplos, então há uma motivação intrínseca no trabalho do livro-reportagem. Do ponto de vista do
público, porque hoje no Brasil já há um público já definido ou cada vez maior pra livro-reportagem,
porque uma parte da população brasileira que lê tem interesse em receber abordagens mais
calibradas, mais bem resolvidas quanto a realidade e não encontra isso nos periódicos. Se
acostumou [referindo-se ao público] aos poucos, a descobrir nos livro-reportagem tratamentos que
não encontram em outro lugar, então esse papel também o livro-reportagem está desempenhando
cada vez com maior clareza, no caso brasileiro especialmente no sudeste, especialmente nas
grandes metrópoles. Eu não sei muito bem a realidade de Londrina, mas seguramente em São Paulo,
Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte e provavelmente Curitiba já há um comportamento do
133
público de procura de determinados tipos de produção cultural, entre essas produções o livro-
reportagem, mesmo que o consumidor não conheça por esse nome, as vezes vai buscar na livraria o
livro de não-ficção ou a biografia, porque no caso brasileiro a modalidade de livro-reportagem que
tem uma presença editorial melhor definida é a biografia.
Cristiane - No Páginas Ampliadas, você sugere algumas etapas a serem cumpridas, a captação [o
correto seria: a definição da pauta], a coleta de dados, depois a redação. Você como autor de livro-
reportagem, como que você trabalha essas etapas?
Edvaldo – A primeira etapa é a idéia que vai se transformar no livro-reportagem. Então, quanto a
idéia eu fico disponível muitas vezes para inspirações e intuições. De repente algo aparece e eu sinto
que aquilo pode dar um bom tema e aí eu manifesto uma resposta à minha própria curiosidade em
tentar explorar preliminarmente se aquilo pode realmente se transformar em um tema abordável em
livro-reportagem.
Cristiane - E isso se dá como?
Edvaldo – Se dá assim: eu não gosto de falar do que estou fazendo agora, mas digamos, como
nasceu esse livro Ayrton Senna-guerreiro de aquário? Nasceu assim, num curso de pós-graduação
que eu conduzia na USP, os alunos precisavam fazer um trabalho final e eu não sou uma pessoa que
trabalha só teoria, embora eu teorize bastante, meu objetivo é equilibrar as duas coisas, a teoria e a
prática, né. E acho que o excesso de teoria atrapalha, mas a prática sem teoria não leva a muita
coisa. Você pode, quando você não tem teoria e um bom conhecimento de fundo, você pode repetir
modelos, mas você não inova, então os meus alunos são estimulados a fazer um trabalho prático e
naquela ocasião, o trabalho prático seria escrever um livro-reportagem coletivo, cada aluno escolheria
uma sessão dentro de um tema único de fundo que era o seguinte: nós queríamos encontrar na
sociedade brasileira daquela época, e eu estou falando do início nos anos 90, setores da atividade
econômica onde houvesse profissionais trabalhando com foco de mundo diferenciado, um foco mais
integral e sistêmico, mais holístico, não no sentido pejorativo místico, mas aquela perspectiva que
hoje, por exemplo, é falada na administração de empresas, uma visão mais integral das coisas, e aí
nós mapeamos cinco áreas do conhecimento e fomos entrar nelas. Umas das áreas seria o esporte e
aí o caso que o aluno encarregado do tema descobriu, seria mostrar o trabalho pioneiro do Nuno
Cobra, que é o preparador físico que já naquela época usava não só recursos de preparo físico dos
atletas, mas também um trabalho pioneiro de preparo mental e o grande caso de sucesso do Nuno
Cobra era o Ayrton Senna. Então eu autorizei que fosse feita essa matéria sobre esporte focando o
caso do Nuno Cobra, e daí eu me interessei muito ao ler os textos e tal, me interessei muito pelo
trabalho do Nuno e quis me aproximei dele. Ao mesmo tempo os meus alunos falaram de mim pro
Nuno “pô, mas tem um cara na Eca , um professor de jornalismo com essa visão diferente” eu quero
conhecer. Então houve uma simpatia mútua, nos conhecemos, ficamos amigos e logo depois ele me
convidou pra ajudar a trabalhar num livro. Ele queria escrever um livro que seria contar o método
dele, então eu respondi a isso. Aí esse processo e mais um fenômeno intuitivo que começou a
ocorrer comigo num tempo anterior, geraram a idéia do livro que é a seguinte: eu comecei a sonhar
com o Ayrton Senna, sem mais nem menos, e achei muito estranho porque eu não admirava o Ayrton
Senna, não acompanhava a Fórmula 1, eu tinha sido fã da Fórmula 1 anos antes, na época do
Emerson Fittipaldi, então eu posso considerar que o Émerson foi meu ídolo na Fórmula 1, não como
jornalista, como fã de automobilismo. Na época do Senna essa fase já tinha passado, eu não ligava
mais, e aí comecei a sonhar com Ayrton Senna, antes de conhecer o Nuno inclusive e comecei a
achar meio esquisito, mas comecei a prestar atenção porque eu acho que a gente observar os
processos intuitivos é muito importante pra você sentir qual é o tema que realmente vai chamar você
para fazer um mergulho importante. Se você não tiver uma conexão pessoal com o tema não adianta,
não funciona. Livro-reportagem durante um tempo é um casamento, você se envolve muito. Então, se
não houver esse prazer pessoal, essa motivação pessoal, por mais que o tema externamente e
socialmente seja relevante, não vai grudar com você, então tem de ter também o fator pessoal. Então
esses sonhos com o Ayrton, depois ter conhecido o Nuno, e como eu sou uma pessoa estudiosa
dessas coisas novas, inclusive trago pro jornalismo elementos desses conhecimentos todos, eu fiquei
muito interessado, mesmo, e aí eu falei pô então agora ta na hora de escrever um livro sobre o
Ayrton, porque há vários aspectos do Ayrton Senna que a mídia não fala, por exemplo, o treinamento
mental que ele tinha a mídia não falava, uma vez ou outra que ele tentou explicar, a mídia, por
ignorância ridicularizou o Ayrton, então o que ele fez? Ele calou a boca e só falava sobre esse tema
com a imprensa estrangeira.
Um dia eu estava na Suécia...eu estou alongando, mas é pra lhe dar o contexto...
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Edvaldo – Um dia eu estava na Suécia pra fazer um trabalho pra minha revista... pra revista
americana, aí quando pego o avião de volta pra Londres, abro a revista de bordo da empresa aérea
que eu estava voando, uma empresa aérea da Suécia, ASAS, daí na revista de bordo tem uma
grande matéria com o Ayrton Senna. O que ta falando? Contando tudo isso pro repórter de fora,
porque? Porque ele sabia que os repórteres de determinados veículos europeus o respeitavam. No
Brasil, porque a imprensa não entendia isso, o mínimo que ele merecia, é que a imprensa ficar
neutra, não, mas muita gente fez piadinha do Ayrton Senna. Ele ficou muito chateado e calou a boca.
Então eu disse: "olha esse é um assunto que não está explorado" e aí entra o Livro-reportagem.
Porque, qual é o primeiro objetivo do livro-reportagem? É ampliar um conhecimento e explorar
informações que não estão esclarecidas. Que às vezes o público até tem uma certa noção, mas ela
não está compreendida, na medida em que o principal objetivo do livro-reportagem deve ser lançar
luzes de compreensão sobre a realidade. O livro-reportagem em princípio, não existe para
simplesmente denunciar, ou investigar, ou contar abobrinhas, ele existe como esforço de
compreensão de um certo tema. Então, da idéia, da intuição e do que eu soube através do Nuno
Cobra, começou a nascer já um esboço de um livro-reportagem sobre o Ayrton Senna e essa questão
do que ele é em termos de um sujeito pioneiro em vários campos. Daí eu falei pro Nuno, que eu não
conhecia o Ayrton, não tinha acesso a ele, daí eu falei pro Nuno: "olha, você ta querendo fazer um
livro, eu to querendo fazer um livro sobre o Ayrton e tal", daí o Nuno gostou da idéia e falou: "quem
sabe a gente faz uma coisa conjunta, você faz primeiro o meu livro, depois eu mesmo falo com o
Ayrton pra falar, pra você fazer o dele, ou nós fazermos nós dois, ou um do Senna", uma coisa assim,
com a seguinte estrutura: o primeiro seria o Nuno contando como era o método dele. Como era,
como ele trabalhou, como foi desenvolvido. E o segundo era contando o caso de maior sucesso, o
próprio Ayrton dizendo como ele usava aquele método. Então a idéia foi ficando madura, não é?! Daí
não avancei porque comecei a ajudar o Nuno com o livro dele durante um certo tempo. Depois não
deu certo, o projeto parou, não caminhou, por n fatores e a coisa ficou um pouco estancada, daí o
Ayrton Senna morre. Quando o Ayrton Senna morre, eu pensei: "bom, aquilo que eu tava querendo
fazer não pode ficar de lado, as pessoas não podem ficar sem saber disso. As pessoas tem que tem
um conhecimento do que era o Ayrton Senna nesse aspecto também e o que está ligado a isso tudo",
daí então eu retomei o projeto que tinha sido esboçado antes com um foco diferente, incluindo coisas
do trabalho anterior e obviamente um ângulo diferente que era o impacto da morte dele, porque o
esboço do primeiro livro era essa coisa de mostrar esse lado do Ayrton Senna, de onde vem isso, que
visão de mundo está ali atrás e quais são as coisas que estão acontecendo nas ilhas de excelência
da ciência transformando a nossa perspectiva de compreensão da realidade.
Com a morte dele esse objetivo permanece, mas entra um outro fator diferente que a
morte...o impacto que aquilo causou. O impacto foi nacional e aqui em SP a coisa foi absurda, porque
pessoas de diferentes extratos sociais foram impactadas pela morte do Ayrton de um modo
inesperado. Algumas pessoas, mais apressadamente, dizem que foi um fenômeno na mídia. Pelo
contrário, a mídia foi surpreendida com areação popular. Por exemplo, o dia que chega o corpo do
Ayrton Senna ao aeroporto de Guarulhos ele vai ser transportado pela assembléia legislativa, ao
longo da rodovia que vem do aeroporto, as pessoas se uniam, formavam correntes e davam as mãos
nas ruas. Não foi a mídia que fez aquilo, pelo contrário, a mídia ficou surpreendida com o volume da
reação popular e a espontaneidade genuína da reação. Crianças e adolescentes nas escolas, de
repente, pediam pra parar a aula e ir rezar na capela da escola, quer dizer, não foi professor que
instigou, alunos adolescentes pediam isso, quer dizer, então há algo muito fora do habitual. Então o
livro incluiu esse toque na questão da morte e do impacto, então já tava esboçada a idéia, já tava
esboçado o propósito, porque todo livro-reportagem tem de ter um foco, um propósito, o que ele vai
fazer com aquilo, e um tema ou conjunto de temas subjacentes. Então o foco era o Ayrton Senna
como um ídolo do esporte diferente, um ídolo que transcendeu o esporte, porque ele passou a ser um
ídolo de pessoas que não tinham nada a ver com o automobilismo, por exemplo, né, e passou a ser
também um exemplo e um modelo de perfeição, de você sobrepujar obstáculos, ter uma meta e ser
determinado, quer dizer, ele passou a ser essa referência, né, e um cara que não teve vergonha de
ser brasileiro.
Numa fase que o brasileiro tinha muita vergonha, eu próprio, numa fase, no final dos anos 80,
que eu estava tão desgostoso com o Brasil, que eu procurei morar fora, como eu já tinha morado
antes, mas dessas vez de uma outra maneira, eu fui ao Texas e concorri a uma vaga pra dar aula no
programa de jornalismo deles. Havia uma vaga, eu tirei o segundo lugar, quer dizer, por pouco eu não
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consigo e teria ido embora, porque eu tava muito triste com o Brasil mesmo. Era uma época em que
apareceram as primeiras grandes denúncias de corrupção, aquele problema todo o Collor, do PC
Farias... o brasileiro tinha uma fama no exterior péssima. Você chegava lá fora, nos anos 80, o
brasileiro era tido como malandro, no mal sentido, enrolão, não cumpre a palavra, então era uma fase
de muito baixo astral e nessa fase o Ayrton Senna levanta a bandeira brasileira, ele não tinha a
obrigação de fazer isso, então se criou uma empatia dele com a população muito grande, por esse
lado também, daí o livro iria tentar compreender esse fenômeno. O 1º passo depois da morte dele foi
procurar a família, eu queria ouvir a família. A família pediu um tempo, as pessoas disseram, "olha, e
muito cedo, a gente ta muito chocado ainda, aguarde um pouco". Eu respeitei, deixei o livro parado,
daí a uns meses voltei, daí a família disse, "olha ainda não estamos prontos". E eu comigo imaginei,
"olha meu livro ele tem um timing também, ele tem um tempo de espera mas tem um limite", então
quando a família realmente não se manifestou a disposição para dar entrevistas, eu resolvi escrever,
sem a família, né, e escrevi. Ele saiu em 95, um ano depois da morte do Ayrton. Daí, para minha
surpresa, a mãe do Ayrton fica sabendo, ela, por essas sincronias da vida, eu dei várias entrevistas
promocionais do livro e uma delas foi num programa da TV cultura de SP, que na ocasião tinha uma
grande audiência, chamado Opinião Nacional. Um programa de entrevistas e de jornalismo ao vivo.
Então, ficou programado com produção que eu daria uma entrevista de 5 minutos, como o programa
na ocasião permitia a participação do público, as pessoas ligavam, elas começaram a ligar, muito
interessadas pelo tema, viram que era um livro diferente do Ayrton Senna e fazer perguntas e então a
produção foi me mantendo no ar e foram 25 minutos ininterruptos. Um bloco extenso, inteiro, sobre o
livro e isso foi muito bonito... E aí a mãe do Ayrton estava navegando pela televisão, querendo ver se
tinha algum programa interessante. De repente, por casualidade, entre aspas, ela passa na tv cultura
e está começando a minha entrevista. Daí ela ficou muito interessada, porque viu que era um
tratamento muito diferente, né porque já tinham saído nessa ocasião vários livros do Ayrton, eram
livros convencionais, da carreira dele, tal etc. Então ela pediu pra comprarem o livro e depois me
chamou pra conversar com ela, e aí manifestou que gostou muito, confirmou algumas coisas que eu
coloquei no livro, algumas informações eu tinha dados, outras não eu tinha e eu usei seguir a minha
intuição, então eu digo num capítulo, por exemplo, que o Ayrton Senna já estava numa crise
existencial mais de um ano antes da morte. Estava num processo interior de crise existencial muito
forte, então por vário sinais, e a questão dos sonhos que eu dou muita importância também, eu
cheguei não a afirmar isso no livro, a dizer, " olha, parece bem provável que estava acontecendo", e a
mãe dele confirmou, que realmente ele estava num momento interno muito delicado, né, e que ele
gostaria de ter conversado muito comigo sobre esse assunto. É uma pena que eu não cheguei a
conhecê-lo.
Então aí esse exemplo acho que ilustra pra você um processo de nascimento de um livro, de
como a coisa vem da idéia para um projeto de execução, para a captação. A minha captação foi
entrevistando, como não pude entrevistar a família, entrevistando o Nuno Cobra, que era uma fonte
decisiva, entrevistando muitas pessoas sobre como o impacto da morte do Ayrton Senna aconteceu
com elas, escolhendo pessoas de diferentes extratos sociais, de diferentes padrões culturais, então
médicos, arquitetos, bancários, e ouvindo adolescentes, porque o impacto sobre a criança e o
adolescente foi muito grande, então eu queria ouvir adolescentes. Para ouvir adolescentes, eu pedi a
ajuda de uma amiga, a Sílvia Rocha que na época e talvez hoje ainda eu não tenho muito jeito com
criança eu não sei lidar muito bem, não tenho filhos, embora a minha mulher tenha netos, que são do
filho dela do primeiro casamento, e eu lido bem com eles, mas genericamente assim, eu sou um
pouco sem jeito com crianças, então eu pedi pra minha amiga fazer as entrevistas com os
adolescentes e estabeleci uma pauta e ela fez isso. Então, surgiu de entrevistas, de observações, de
levantamento bibliográfico, eu fiz um grande levantamento sobre o que a mídia tinha falado da morte
do Ayrton Senna, alguns livros, porque a proposta do meu trabalho era apresentar alguns temas
novos pra muita gente, e sustentar aquilo ns informações de fundo, por exemplo, a questão do
treinamento mental, tinha como base a teoria dos hemisférios cerebrais, que foi uma teoria que deu
um prêmio Nobel de medicina ao seu autor, então eu teria de explicar isso um pouco, então eu fui
pesquisar bibliograficamente também, algumas coisas eu já sabia, já conhecia, já dominava, outros
eu fui atrás. Então essa foi a etapa de captação depois que o plano estava pronto, e a última foi
escrever.
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Cristiane - E como você faz o registro, físico mesmo eu digo. É com gravador, é na mão, como é que
é? E até onde você vai na busca pelas informações. Quando você fala: "aqui ta bom, eu acho que dá
a partir daqui"?
Edvaldo - Ta. Primeiro, o que eu levanto de informação? Eu tenho de ter um plano. Na minha cabeça
o propósito do livro tem de estar muito claro, qual o objetivo do livro, que aspectos ele vai abordar?
Em função disso eu preparo um roteiro de captação que busque atender a aqueles itens, naqueles
sub-temas, e aí tem várias formas de processamento da captação. Uma delas é a entrevista. Na
entrevista eu uso gravador. Eu prefiro sempre usar o gravador, eu prefiro usar o gravador obviamente
neutralizando ao máximo a presença do equipamento, para não provocar inibição nas pessoas, e
tento fazer com que a pessoa se sinta a vontade pela a conversa. Esse é um processo. Outro recurso
que eu uso hoje em dia, não usava na época do Ayrton porque eu acrescentei ao meu método
depois, é fazer um mapa mental. Mapa mental é um registro das observações que eu estou fazendo
durante a entrevista, então isso me facilita, porque? O gravador está cuidando de gravar a fala e eu
estou observando outros sinais, o olhar, o gesto, o comportamento psicológico, emocional, se a
pessoa fala alguma coisa com emoção na voz, se ela fala empostadamente, segurando a emoção,
não é, o que o corpo dela está me transmitindo, o ambiente em torno eu observo. Então isso me
facilita muito porque se eu ficasse tentando só gravar o que a pessoa diz, eu acho que me diminuiria
a capacidade de observar os outros sinais que são importantes. Então uso o mapa mental como
forma de registro também dessas informações e de síntese do conteúdo que está sendo falado
também. Isso me facilita porque eu anoto cada item, cada tema que foi falado, não o conteúdo, mas o
tema, e anoto em que ponto isto está no gravador, na hora de trabalhar o texto mais adiante eu não
preciso transcrever tudo, eu já sei onde é que está cada conteúdo.
Edvaldo – Até onde vai...até eu sentir que é necessário. Geralmente, eu prefiro captar muito e ter o
que jogar fora do que ficar faltando. Então eu sou muito exaustivo na captação, não é?! Apesar de eu
ter um foco, eu procuro abarcar muita coisa porque na hora de escrever a gente nunca sabe se de
repente um ângulo novo apareceu, que você não tinha percebido e pode ser rico. E daí se você não
captou antes, aquilo fica pobre. Então eu prefiro exagerar na captação do que faltar coisas. E captar o
que? De tudo que você possa imaginar, de detalhes, até como está vestido o personagem, que tipo
de roupa, a pessoa usa brinco, usa anel, usa uns óculos de tal tipo, né, observar e captar todos os
detalhes que me chamarem a atenção, até coisas intelectualmente muito relevantes, determinados
estudos sobre o assunto, pesquisas e tal, então eu tento esgotar e eu aprender aquilo. Enquanto eu
não sinto que mais ou menos eu estou compreendendo bem aquilo, eu não me sento pra escrever.
Aquilo tem que se transformar numa natureza minha, então, por exemplo, Fórmula 1. Eu tinha
conhecido Fórmula 1 como fã e quando chegou o Ayrton eu já tinha esquecido muita coisa, já não
tava mais ligado, então havia coisas novas na época do Ayrton que não existiam na época do
Emerson Fittipaldi , e aí o que eu fiz? Eu fui tentar entender um pouco mais, como aconteciam os
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treinos de Fórmula 1 na época do Ayrton, a questão da telemetria que chegou aos carros, na época
do Emerson não tinha, o que era aquilo, então eu procurei compreender perfeitamente bem até aquilo
se transforma algo natural sobre ...um assunto sobre o qual eu pudesse falar. Então quando eu
cheguei nesse ponto, eu to pronto pra escrever. Mas enquanto não chega, ainda falta eu aprender um
pouco mais sobre o assunto base.
Cristiane – E quando você chega num ponto em que talvez você descobre, na hora que você vai
trabalhar as informações, "ahh, esse ponto eu poderia ter trabalhado mais"? Como você faz? Você
volta pra apuração ou você o descarta?
Edvaldo – Normalmente eu volto, a não ser que seja uma coisa que eu deixei de abordar, mas é uma
coisa super secundária e não precisa de maior abordagem. Mas se eu sentir que para o foco provável
da matéria, aquilo é importante eu volto atrás. Com os entrevistados, por exemplo, eu sempre deixo a
abertura pra eventualmente voltar e com as observações também. Então eu nunca fecho um assunto
com a pessoa. Eu digo: "olha, parece que acabou, mas se precisar, eu posso voltar a contatar e tal"?
A mesma coisa a documentação que eu leio, que eu acho que é suficiente, que ta feito, mas num
outro momento, se eu percebo que faltou alguma coisa eu vou atrás pra completar aquilo, desprezo
quando realmente me parece que não tem muita necessidade.
Cristiane – É ...uma coisa que eu vou perguntar um pouquinho mais adiante, sobre o jornalismo
holístico que você propõe....é... nessa forma de captação também trabalha com a consciência da
pessoa, como você mesmo sugere, o fluxo de consciência, os sentimentos da pessoa. Como que
você aborda isso?
reforço. Aí eu disse "ótimo, tudo bem, mas se você quiser, podemos falar agora" e era o momento
certo aí ele falou "OK, tudo bem", meio assim na dúvida mas consentiu, liguei o gravador, não
perguntei nada e ele começou a contar, porque a mulher dele, que era o grande amor da vida dele,
eles tinham estado juntos muito tempo, era uma grande companheira, com quem ele compartilhava
as intimidades intelectuais dele também e tal, ela ficou doente, foi adoecendo e morreu nos braços
dele, então foi um negócio extremamente forte, então ele começou a contar a morte dela em si. O ato
dela morrer nos braços dele e com a presença de um amigo em comum que eles tinham, que é um
intelectual, um filósofo americano e é sacerdote também. Foi quem tinha feito o casamento deles e os
dois em comum, a mulher, obviamente sabendo que vai morrer, os dois em comum pediram que ele
viesse pra dar e extrema unção pra ela. Você imagine a intensidade emocional disso. Então não
perguntei nada, deixei ele falando no ritmo que ele sentia que devia, com algumas pausas, e ele foi
ficando emocionado, mas falou tudo o que tinha que falar. Terminou, os dois choraram, a fonte e o
entrevistador. Fazer o quê? Somos humanos. Então isso surgiu numa entrevista desse tipo, os
pensamentos dele. Não foi só ele contar o que houve, mas o que ele sentiu, o que ele pensou, como
ele ficou, são formas de interação humana que nascem de um primeiro critério que você tem que tem
ao fazer um livro-reportagem envolvendo pessoas. O primeiro critério é um auto respeito pelo ser
humano, uma consideração muito grande e uma empatia muito forte, você buscar se colocar na pele
do outro, então eu pessoalmente não escrevo nada contra a vontade da pessoa, não digo o
conteúdo, mas digo o seguinte, se a pessoa não topou falar, eu não faço contra a vontade dela. Eu
posso buscar convencê-la ou deixar sutilmente que a oportunidade apareça, mas forçar, não posso.
Se ele, por exemplo, não tivesse falado sobre a morte da mulher mais em detalhe e não quisesse
falar, eu não forçaria e o texto sairia assim mesmo, entendeu? Isso eu respeito. Acima de tudo o
respeito humano. Depois o interesse jornalístico, então a primeira coisa é ter essa empatia, esse
respeito e essa vontade de conhecer o ser humano, porque na medida que você conhece o
semelhante você está conhecendo a si mesmo. Todos nós somos parte da mesma humanidade, da
mesma espécie, então descobrir o outro, lança luzes sobre você e sobre nós como raça, como um
povo, como espécie como um todo. Então eu acho que isso responde essa questão sua.
Edvaldo – Redação. Preferencialmente... eu sou uma pessoa que demora a escrever, demora a
começar a escrever, porque eu vou juntando todas essas coisas, né. Junto muita informação, junto
muita observação, dou muita importância às minhas intuições, e aos meus sonhos, às vezes eu
começo a sonhar com temas que eu estou trabalhando, com pessoas que eu estou entrevistando,
com a observação que eu fiz ontem, então eu dou muito espaço pra isso. Então há um momento em
que a coisa fica pronta pra ser escrita e enquanto esse momento não chega, eu não avanço muito.
Enquanto eu não sentir que eu dominei o assunto, principalmente se é um assunto que eu não
conhecia, que eu realmente não compreendi as imbricações que existem no assunto, eu não sento
pra escrever. Aí quando eu sento, hoje em dia eu não tenho muita oportunidade de fazer isso pelos n
compromissos profissionais, até esse caso do Ayrton Senna, pra ficar num exemplo que já foi citado,
eu preferia e hoje prefiro quando é possível, escrever coisas longas assim: eu paro e mergulho
intensamente e escrevo. Se possível, eu fico mergulhado no assunto e escrevendo, não faço mais
nada na vida. Então esse caso do livro do Ayrton Senna, quando foi o momento de escrever, eu
comecei a escrever, parei todos os outros compromissos que eu pudesse, profissionais e pessoais,
fiquei num apartamento sozinho, a minha companheira num outro apartamento. Eu tinha um
apartamento meu e ela tinha o dela e o meu era o espaço de escrever, onde eu me isolava pra
escrever, eu não gosto de ter gente em volta na hora de escrever coisas longas, e não gosto de ter
barulho. Tem gente que escreve com música, Garcia Márquez escreve ouvindo música, se eu colocar
música eu me atrapalho, então eu não quero ver nada, não quero ouvir nada, não quero gente a
menos de 10 metros de mim, não quero nada, quero ficar isolado... então, presente com o que? Com
as minhas fitas de gravação, com as minhas anotações, com os meus materiais de pesquisa, com
meu roteiro do livro. Daí sentei e começava a escrever tantas horas quanto eu agüentasse por dia.
Inclusive não parava pra almoçar na hora certa. Tinha uma fruta no apartamento...porque eu não
cozinho, e nesse apartamento não tinha nem empregada, porque eu não gostava que fosse ninguém.
Nem a minha mulher. Ia uma vez ou outra, mas eu não gostava que ela tivesse ficado quando eu tava
trabalhando. Então o que acontecia? Quando dava fome, comia uma maça, uma fruta, qualquer coisa
e continuava, só quando realmente apertava é que eu saía ia comer fora num restaurante. Não ia em
casa também pra não quebrar a concentração. Não via televisão, não lia jornal, me isolava do mundo.
E então, pra você ter idéia, tinha dia que eu saía pra almoçar, pra almoçar, cinco horas da tarde,
felizmente em SP tem restaurante aberto qualquer hora do dia ou da noite, né? Isso foi 20 dias, eu
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levei vinte dias pra escrever o livro. Intensamente. Na hora que o cansaço realmente era muito
grande eu parava e dormia, qualquer hora, podia ser de manhã, de tarde ou de noite, na hora que
desse o cansaço. Às vezes virava a noite, aí no outro dia parava lá pelas 7h, dormia até meio dia e
continuava. Então uma coisa muito exaustiva. É uma coisa que eu chamo, é uma criação por
impulsão. Quanto chegou no finalzinho do livro, eu escrevi a última linha do livro, mais ou menos às
5h da manhã. Eu fechei a última linha, salvei o programa, fechei o computador e fui pro hospital,
porque eu tinha passado esses 20 dias de maneira tão maluca, fora do normal, não respeitando meus
próprios ciclos, que por esse aspecto físico e por um aspecto emocional, porque o livro do Ayrton é
uma coisa que eu trabalhei não só por interesse intelectual, eu também fui muito impactado pela
coisa, tinha minha emoção na história, né. Então eu fui gerando uma prisão de ventre, porque é
obvio, não comia na hora certa, não atendia às minhas necessidades direito, o organismo foi ficando
meio truncado, então eu precisei ir pro hospital pra fazer uma lavagem intestinal, porque realmente eu
atrapalhei meu organismo totalmente, mas assim que eu escrevo. Aí eu fui pro hospital, vi o hospital
que tinha mais próximo do meu apartamento dentro do meu convênio que pudesse me atender, por
sorte tinha um a três quadras, me internei, de lá liguei pra minha companheira, falei olha"to no
hospital e acabei de escrever o livro", entendeu? Então, essa é minha maneira preferencial de
escrever. O Páginas Ampliadas, que não é um livro-reportagem mas é uma tese, foi escrito mais ou
menos assim, não dessa maneira tão caótica, quase insana, mas também foi assim, num fluxo
intenso de um breve período. Eu levei um grande tempo pesquisando, estudando, entendendo, na
hora que compreendi, foi assim. A dissertação de mestrado, que deu origem a outro livro, não
publicado no Brasil, mas publicado no México, foi dessa maneira, eu sentei pra escrever e em um
mês e meio estava tudo pronto. Eu prefiro assim. Hoje em dia, como eu tenho n compromissos e não
dá pra ficar 10 dias afastado do mundo, eu tento fazer da melhor maneira possível desse jeito, mas
estou tentando implementar uma coisa que não é muito o meu jeito, que é a disciplina do escrever um
pouco todo dia. Eu custo um pouco pra entrar psicologicamente no tema, então eu tenho uma
facilidade muito grande pra me distrair e pra me dispersar, então eu prefiro mergulhar, e daí como eu
demoro um pouco pra... me demanda muita energia entrar no tema, quando eu entro, eu não quero
também sair dele enquanto não esgotar, por isso que eu evito fazer de outro modo. Porém, por causa
dos compromissos sociais, familiares e profissionais que são muito maiores que naquela época, eu
estou tentando aprender a escrever de maneira mais balanceada, então um livro que eu escrevi
recentemente, um livro-reportagem que está nas editoras, ele já foi um pouco mais assim, ele teve
ainda aquela intensidade de mergulho minha, mas a produção foi um pouco mais disciplinada.
Cristiane - Você falou em roteiro. Esse roteiro você estabelece antes...você terminou a pesquisa e
daí você estabelece o roteiro? E eu quero saber se você segue esse roteiro ou se ele tem a liberdade
de ser modificado...
Edvaldo – Eu monto um roteiro em que eu imagino assim, eu vislumbro, a palavra não é imaginar, eu
vislumbro o seguinte: qual é o tema central do meu trabalho? Quais são os sub-temas que esse tema
vai trabalhar? Em se tratando de um livro-reportagem, eu estruturo os capítulos, um esboço dos
capítulos, onde vai entrar tal informação, tal sub tema, como eu vou passar desse sub tema pra o
outro, qual é o melhor que vem a seguir? Estruturo e coloco três pontos chave na estrutura do livro.
Assim como o edifício tem de ter alicerces, o livro também, então os pontos chave são: um sub-tema
e uma situação forte pra começar, um sub-tema muito forte novo, diferente do primeiro no meio, e um
no final, então eu estruturo os capítulos a partir desses três alicerces, então eu reservo esses três sub
temas pra posições estratégicas dentro do livro. E começo, mas naturalmente, no processo de
escrever, pode ser que algo mude, pode ser que a estrutura que eu pensei não é a coisa adequada,
pode ser que surja uma coisa nova, pode ser que eu tenha uma outra idéia, então eu vou me
adaptando, normalmente sem fugir em demasia ao roteiro, porque não há necessidade, mas em
algum caso em que realmente fuja muito, eu sinto o que é mais forte. Normalmente aquilo que
apareceu espontaneamente, intuitivamente é o mais forte. Aí eu vou atrás. No entanto, na maioria da
minha produção, noventa por cento, mesmo a tese que escrevi e tudo mais, não há necessidade de
se fugir em demasia do roteiro. O que acontece é o seguinte... são acréscimos, mas encaixáveis
dentro do sub tema, sem precisar quebrar a estrutura, e idéias novas, mas pra iluminar o que eu vou
falar e não terminar de maneira abrupta e fazer as passagens adequadamente, porque se não o leitor
perde o interesse, dificulta a vida do leitor, né.
Cristiane – Edvaldo, no livro têm algumas classificações, são treze que você sugeriu. Mudou alguma
coisa nesses dois anos que você acrescentaria ou...Como é que você avalia isso e em qual está
encaixado o Ayrton Senna [Guerreiro de Aquário]
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Edvaldo – Eu acrescento às outras categorias que estão lá e outras podem aparecer porque ali não é
uma camisa de força, não é uma tentativa de estabelecer a ferro e fogo que existem essas
categorias, podem existir até outras. Você pode usar diferentes critérios pra categorizar, eu uso o
critério do tema, o critério da velocidade de produção, o critério do foco narrativo, quer dizer, há vários
critérios que você pode usar, então, como o livro-reportagem evolui, no caso brasileiro é um produto
cultural cada vez mais presente no mercado, pode ser que daqui a pouco a gente encontre até outras
categorias.
Cristiane - Edvaldo, como que você...como foi a resposta dessa parte do seu livro, dessa primeira
parte..que você sugere essas etapas...você teve resposta de quem está escrevendo agora..e como
você entende a recepção do livro pra quem está escrevendo agora?
Cristiane – Como foi a resposta? "ahh, eu usei aquilo que você falou, isso me ajudou a sistematizar
meu trabalho"...você teve esse tipo de resposta?
Cristiane - Com relação genérica, de outras pessoas que vieram até você.
Cristiane - Como que as pessoas... como você viu a recepção do Páginas Ampliadas?
Edvaldo – Ahh, sim. Quanto assim...o detalhe de aproveitamento do Páginas Ampliadas, por
exemplo, se alguém empregou lá as técnicas que estão lá, as técnicas narrativas, eu nunca tive a
manifestação espontânea de alguém quanto ao uso das técnicas, mas quanto ao uso genérico do
Páginas Ampliadas, né, o Páginas Ampliadas ter aberto os olhos das pessoas pra formas de fazer
jornalismo, como o Páginas Ampliadas, trouxe luzes de entendimento quanto a isso, sim, muita gente
comenta, tanto que o livro, ele se transformou num pequeno clássico, ele é adotado em muitos cursos
de jornalismo, e de letras. Como ele está nesse território híbrido em que jornalismo que se aproxima
da literatura, é interessante observar que muitos cursos de letras pelo Brasil afora usam o livro ou
adotaram mesmo, como livro de bibliografia de disciplinas... isso me deixa muito feliz, porque é um
sinal de que o livro acertou, é um sinal de que ele trás uma contribuição que muita gente considera
importante e ajuda as duas áreas a se aproximar porque eu não acho que tem de haver esse
separatismo xiita, não é, entre jornalismo e literatura. Se cada um entender qual é a sua função, a
literatura está voltada para a ficção e o jornalismo está voltado para a realidade, tá tudo bem e se
pode usar instrumentos um dos outros. Você pode trazer para o livro-reportagem elementos
narrativos trabalhados pela literatura de ficção e a literatura de ficção pode aprender com o jornalismo
elementos que enriqueçam a própria literatura de ficção ou pode-se praticar o que hoje nos Estados
Unidos já é um segmento novo chamado literatura da realidade. É você usar tudo da literatura, porém
voltado não pra uma situação imaginária, mas pra uma situação real, pra descrever uma situação
real. Então, repetindo, manifestações genéricas tem muitas, agora, manifestações muito pontuais
"usei, por exemplo, a construção cena-a cena que você discute no livro e que me foi útil", isso
espontaneamente não aparece. Claro que conversando com alunos, principalmente alunos de pós, aí
sim, a pessoa comenta, né, mas reações espontâneas não. Agora, o uso do livro, a adoção do livro,
muitas vezes eu fico sabendo isso espontaneamente, às vezes as pessoas tomam a iniciativa de
informar e outro parâmetro é ver que ele é muito citado em muitas obras de... teses, artigos,
monografias, TCCs de graduação, ele é muito citado pelo Brasil afora, né, isso é um sinal indireto de
que as pessoas estão usando e aproveitaram alguma coisa.
Cristiane – Agora eu queria saber...e é uma pergunta que eu acho que você já respondeu várias
vezes... Como é que surgiu essa idéia do Jornalismo Literário Avançado e ,depois, como é a
recepção, porque, por exemplo, o Ayrton Senna, como você mesmo disse, não é uma literatura
dessas que estão por aí com detalhes de eventos históricos e cronológicos e tal . Como é aceito o
Jornalismo Literário Avançado?
Edvaldo – Bom, a primeira coisa, a história do Jornalismo Literário Avançado nasceu da seguinte
maneira: estudando o jornalismo literário, praticando, conhecendo, ensinando, pesquisando, eu
constatei o que o que é obvio que o Jornalismo Literário é uma modalidade muito rica, muito eficiente
de relatar o real e muito empolgante, não é, empolgante para nós que escrevemos e empolgante para
o leitor, porque os textos felizes saem muito bem escritos. Então, conhecendo o campo, eu percebi
que toda a história do Jornalismo Literário, desde o finalzinho do século XIX, quando ele começa a se
esboçar, é uma história de desenvolvimento de uma tecnologia narrativa muito comprovada. Mas eu
percebi que mesmo nos grandes mestres do jornalismo literário, a visão de mundo que está ali,
muitas vezes, é uma visão de mundo que está ficando um pouco caduca, porque nos últimos 20, 25
anos, a ciência deu saltos quânticos de compreensão da realidade, não é, aquilo que nós
entendíamos como realidade no começo do século XX, chegamos agora no século XXI, a ciência de
ponta diz uma coisa completamente diferente, então se você pega a física quântica, como ela explica
a realidade, é um modo muito distinto do que explicava a física clássica. E percebi que no jornalismo
e mesmo no jornalismo literário, a visão de mundo quase sempre é uma visão de mundo dessa
ciência do século XIX, ou seja, embora esses profissionais sejam muito hábeis no escrever, sensíveis
para captar o real, nem sempre eles estão habilitados, preparados, familiarizados com essas
concepções novas dentro da ciência que os ajudariam a compreender até melhor a realidade. Então
eu achei que era momento de trazer alguns elementos dessas ciências de ponta para dentro do
Jornalismo Literário, de modo que se enriquecesse a visão de mundo dos autores. Então o que eu
fiz? Toda a tecnologia narrativa do Jornalismo Literário é a mesma, porque ela é eficiente, então a
técnica do cena-a-cena, a técnica do fluxo de consciência, a técnica do símbolo do status de vida,
tudo isso, tá mais do que comprovado, então não precisaria mexer. O que precisaria acrescentar,
seria trazer elementos dessas ciências de ponta para que o jornalista que pratica o jornalismo literário
tivesse uma visão de mundo mais contemporânea, então eu desenvolvi a idéia do Jornalismo
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Literário Avançado pensando algumas teorias, alguns campos de conhecimento com as contribuições
que essas áreas traziam para o jornalismo. Ao mesmo tempo... então eu trouxe coisas da física
quântica, da psicologia humanista, das neurociências e da biologia, particularmente desses campos e
da nova história francesa também.
Edvaldo – A única coisa que havia aproximando um pouco na área da comunicação era a Teoria
Geral dos Sistemas. A Teoria Geral dos Sistemas já havia sido aplicada algumas vezes em
comunicação, tinha sido aplicada experimentalmente em São Paulo na área de jornalismo
empresarial e aí eu usei a Teoria Geral dos Sistemas como base teórica da minha dissertação de
mestrado. Quanto chegou no doutorado, que vai dar origem à idéia do Jornalismo Literário Avançado,
eu já tinha incorporado a Teoria Geral dos Sistemas como um dos alicerces, mas acrescentei outras
coisas, as outras eu não tinha visto ainda no jornalismo, trazidas pro jornalismo, então conhecimentos
desses campos que eu comentei agora há apouco. E além de trazer conhecimentos que ajudassem a
compreender o mundo, eu desenvolvi alguns métodos de trabalho, aplicados ao Jornalismo Literário,
no caso dentro do Jornalismo Literário Avançado, trazendo elementos dessas ciências, mas
traduzidas em métodos práticos que ajudassem o autor. Por exemplo [Edvaldo tem uma crise de
tosse]...ainda não me recuperei da gripe...você tem bala?
Edvaldo – Por exemplo, eu descobri, nas minhas primeiras aulas de Jornalismo Literário, eu descobri
que muitos dos meus alunos, embora já fossem jornalistas profissionais, já com carreira avançada,
alguns até muito experientes, que eles tinham dificuldade em escrever Jornalismo Literário. Porque?
Porque eles estavam acostumados com a forma de texto mais condicional do jornalismo noticioso, e
se você for fazer Jornalismo Literário com as técnicas de jornalismo noticioso, você faz uma coisa
muito pobre, você precisa escrever de um modo mais elaborado e eles tinham dificuldade, eles já
estavam tão condicionados a fazer daquele jeito, a fazer o lide e tal, que na hora que você pedia um
perfil, observar um ambiente, descrever um ambiente, a dificuldade era muito grande. Então eu fiquei
imaginando o que eu poderia fazer para ajudá-los e eu descobri que tinha de desenvolver um método
que liberasse o texto deles. Então eu fui estudar na teoria dos hemisférios cerebrais o que eles já
tinham propostos, que algumas iniciativas que já aconteciam no Estados Unidos pra liberar texto.
Então fui aos Estados Unidos fazer cursos, conhecer métodos, ler etc, pesquisar, vi alguns dos
métodos que já tinham sido criados baseados na teoria dos hemisférios cerebrais, e criei meu próprio
método que é uma mistura disso tudo e da minha própria experiência chamado escrita total e
comecei a aplicar com os alunos de jornalismo, de pós-graduação, e começou a funcionar. Então o
Jornalismo Literário Avançado incorpora um conhecimento de mundo diferente e alguns métodos de
trabalho que vêm dessas ciências de ponta e a escrita total é um deles. Outra coisa que eu fiz mais
adiante... a escrita total, por sua vez, é um guarda-chuva que usa várias outras técnicas que
procedem das ciências novas. Por exemplo, visualização criativa. Eu dou muita atenção pra intuição
como eu disse, e a visualização criativa é um método que o Ayrton Senna usava pra correr e que eu
apliquei na escrita total pra você escrever, pra você pensar numa pauta, pra você pautar um assunto,
pra você entrevistar... Então a visualização criativa é uma técnica que eu desenvolvi bastante bem,
na pós-graduação pra facilitar o trabalho de captação, observação e escrita. Outra coisa que eu fiz foi
trazer pro Jornalismo Literário Avançado o mapa mental, que é um recurso gráfico de você sintetizar
informação ou despertar a sua criatividade. Isso foi criado por um psicólogo inglês, chamado Tony
Buzzan, passou a ser aplicado na área educacional na área de empresas, de administração de
empresas e eu trouxe pra área de texto..
sido usada com personagens de ficção. Então esse é um outro exemplo de métodos que eu
incorporei ao Jornalismo Literário Avançado, então apresentando uma diferença em relação ao
Jornalismo Literário. A primeira...o ponto em comum é que a forma narrativa é mais ou menos a
mesma, o modo de fazer, de mergulhar na realidade, os alicerces do Jornalismo Literário estão
presentes, mas a visão de mundo é um pouco mais ampla, alguns instrumentos de trabalho são
diferentes, e o propósito é um pouco mais amplo. Então, por exemplo, se você olha no Gay Talese.
Você conhece o Fama & Anonimato dele?
Cristiane – Sim.
Cristiane – Sim.
Edvaldo – Aquele perfil do Frank Sinatra foi maravilhoso, mas ele ta preocupado com o quê? Só com
o Frank Sinatra externo. O Frank Sinatra o grande ídolo, o Frank Sinatra cantor, o Frank Sinatra
farrista, que gosta de sair com os amigos pra jogar nos cassinos de Las Vegas, o Frank Sinatra pai
durão, que fica vigiando a filha Nancy, não é, então, digamos assim, as facetas mais externas do
Frank Sinatra. Mas e o mundo interior dele, as motivações dele? Isso não está presente. Então no
Jornalismo Literário Avançado a gente tem, pelo menos assim, o desejo, a proposta de ampliar.
Então se eu vou fazer um perfil, eu vejo o mundo externo da pessoa, mas vejo sentimentos
profundos, valores profundos, vou dar um exemplo.
Cristiane – Isso com o objetivo interligar o que ele sente com as ações externas?
Edvaldo – Isso! Porque uma coisa explica a outra, não é?!. Então...pra fazer um perfil do Ronaldinho
Gaúcho. Ele foi pra Copa de 2006 e não jogou bem a Copa. Não só a seleção fracassou, mas ele
também fracassou e ele ter fracassado deve ter contribuído pro fracasso da seleção. Se eu faço um
perfil externo, é mais ou menos só isso, não é? Ele vai pra Copa, não se dá bem, acontece alguma
coisa...mas quais são as razões interiores? O que acontece com o Ronaldinho gente, não o
Ronaldinho ídolo, não o Ronaldinho manipulado pela mídia, pelo marketing do Barcelona e pelo
marketing das empresas pras quais ele empresta o nome pra vender produto. Ele é um ser humano
de carne e osso. A gente se acostumou...a imprensa criou a idéia de que o Ronaldinho era infalível,
um artista da bola, então a copa já ta ganha, porque nós temos a melhor seleção e além de tudo
temos um gênio que é o Ronaldinho. E o homem vai pra copa e não joga nada, entende?!. Daí a
imprensa fica ou fica no muro, às vezes critica um pouco "ah, ele não joga na seleção o que ele joga
no Barcelona". Mas uma matéria de Jornalismo Literário, não pára por aí, ela quer saber "porque será
que no Barcelona ele joga diferentemente da seleção"?
Edvaldo – É!...e não é só explicação obvia: no Barcelona ele tem um esquema tático diferente. O
Parreira também em um determinado jogo deixou ele jogar como ele jogava no Barcelona e ele
continuou jogando nada, então porque? Quais são os fatores psicológicos, quais são as pressões que
esse homem vive? Qual a auto imagem que ele criou a partir do sucesso dele? De repente, ele que é
um garoto que vem de uma situação média em Porto Alegre, não vem de uma família muito
pobre...família classe média, mas é uma classe média, de repente o cara é um milionário, está
exposto o tempo todo, é considerado o maior jogador do mundo. Um homem de 26 anos e de repente
precisa representar um país. Que aconteceu na cabeça dele? O que acontece na emoção dele?
Quais são as coisas que ele sonhou nessa época? Que medos ele teve, que emoções...entende?
Então se é Jornalismo Literário Avançado eu vou explorar esses ângulos, porquê? Eu não quero no
Jornalismo Literário nem endeusar e nem sacrificar ninguém, eu quero compreender o ser humano.
Não quero compreender a figura pública, porque a figura pública é o estereótipo. O Ronaldinho que
está sempre sorridente, sempre fazendo samba, sempre jogando alegre... obviamente isso é parte
dele, mas ele não é só isso. E o Ronaldinho na hora que fica triste, na hora que tem algum receio, e o
Ronaldinho que também pisa no tomate, ele é ser humano, também erra. E o Ronaldinho que vai no
banheiro? O Ronaldinho não está só nos jatos do mundo viajando pra lá e pra cá, não está só nos
estádios, não está só dando entrevista pra televisão, não está só nos restaurantes finos. Ele é um ser
humano, ele tem seus momentos de fraqueza. Então, buscar os momentos de fraqueza não é pra
diminuir ninguém, é pra compreender, entendeu?. Então esse caso hipotético ilustraria como um perfil
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de JLA seria diferenciado, precisaria mergulhar profundamente nesses aspectos. O que exige isso do
profissional? Muita sensibilidade, muita empatia pelo ser humano, muita vontade de compreender e
não de condenar, de endeusar. E aí o que acontece? Quando você demonstra isso pra sua fonte e a
pessoa percebe que você é genuíno, o que ela faz? Normalmente ela se abre. Porque? Porque há
uma necessidade humana profunda de falar de si mesmo e na sociedade não tem como pra falar. Se
você quer falar você mesmo vai pagar lá um dinheiro violento e vai fazer uma terapia. Os amigos não
tem tempo, às vezes sua mulher não tem tempo, seu marido não tem tempo, porque? Nós vivemos
num mundo muito louco, então você está junto mas ao mesmo tempo não está, há um quê de
solidão. E essas pessoas de muita projeção social, elas tem um quê de solidão também, que a
exigência sob os ombros delas, a pressão, é enorme e isso elas não podem compartilhar com
ninguém.
Edvaldo – Claro! Atitude que antecede os acontecimentos e trás um outro propósito pro Jornalismo
Literário Avançado que é não só narrar o que acontece, falar das pessoas etc, mas fazer com que o
texto ajude as pessoas que lerem a transformar sua compreensão da realidade. De maneira que os
textos sejam instrumentos de auxílio à construção de um mundo realmente melhor. E o texto tem
esse poder. Se você fizer uma coisa bem feita, com um propósito de compreensão, você está
iluminando certas formas de compreensão de mundo que podem ser úteis pra muita gente.
Cristiane – Edvaldo, agora questões mais gerais. Precisa ser jornalista pra escrever?
Edvaldo – Pra escrever livro-reportagem não. Pra escrever livro-reportagem fora dos periódicos não
há necessidade. Porque? Desde que você conheça Jornalismo Literário, e qualquer pessoa
medianamente culta que gosta de escrever pode conhecer. Conheça, saiba como é, pratique, se tem
cultura e sensibilidade você pode escrever. Vou dar um exemplo pra você. O livro-reportagem que
ganhou o prêmio Jabuti de livro-reportagem, acho que há dois anos atrás, não foi escrito por um
jornalista, foi escrito por um médico, o Dráusio Varela, aquele trabalho sobre o Carandiru. E se você
olhar o livro, é um ótimo livro-reportagem. Ele é jornalista? Não é, e daí. Eu não tenho esses pruridos.
Eu acho que nas redações de jornais e revistas sim, deve haver uma certa proteção de categoria,
proteção de mercado, mas saiu dali, a produção em livro, a produção em documentário, a produção
em Internet, a produção sei lá em projetos culturais especiais, sei lá, pode ser de qualquer um, que
tenha o talento, que tenha habilidade e que aprenda o que é. Nos Estados Unidos não tem essa
diferença. Então, vários repórteres muito famosos nos Estados Unidos ou muito bem sucedidos, não
tem formação em jornalismo, eles são sociólogos, antropólogos, psicólogos, não são nada, são
escritores de ficção, que de repente descobrem o Jornalismo Literário e aprendem e fazem muito
bem. Então eu não tenho reservas. No nosso curso de pós-graduação da ABJL nós aceitamos
formados em qualquer área de humanas. Por exemplo, em Campinas dois dos nossos melhores
alunos são físicos quânticos, mas são físicos quânticos especiais, que gostam de escrever, já
escreviam muito antes do Jornalismo Literário, conhecem muito de Jornalismo Literário, estudam pra
burro e estão aprendendo como fazer. Em Brasília, um dos nossos alunos é um escritor de ficção,
com livros publicados, que resolveu aprender Jornalismo Literário e está se saindo muito bem.
Porque o talento pra ver o mundo e escrever sobre o mundo, ele é universal. Você não nasce com
uma carteirinha de que vai poder escrever livro-reportagem porque você é jornalista. È uma vocação,
não é?! Então eu acho que nesse patamar em que você não se está tirando o emprego de ninguém,
porque quem vai escrever o livro-reportagem não está empregado, não está sendo pago por
ninguém, não é... Nesse espaço em que não há dano à categoria de jornalistas, está aberto a quem
tenha talento, seja da onde for. Aqui em SP um dos alunos de pós-graduação de melhor qualidade
que eu tive, que acabou de participar de um livro-reportagem que foi lançado aqui em São Paulo há
dez dias, é um engenheiro... e o rapaz mudou a vida dele totalmente, largou engenharia e hoje ele
não pode dizer que ele é um jornalista, porque ele não pode trabalhar como jornalista porque ele não
tem o registro. Mas em livro, em projetos culturais, ele é um escritor da realidade e faz muito bem.
Cristiane – Edvaldo, voltando um pouquinho, a gente pulou uma resposta, eu tinha perguntado como
que é recebido o Jornalismo Literário Avançado.
Edvaldo – Bom, pouco a pouco... primeiro como é recebido o Jornalismo Literário. Porque há 15
anos atrás, 90% do universo do jornalismo no Brasil tinha se esquecido que existe jornalismo literário.
145
Nós tivemos aqui fases aqui muito boas, mas isso foi sendo abandonado e novas gerações de
jornalistas cresciam sem nem saber que o jornalismo literário existia. Então nos anos 90, quando eu
dava aulas de Jornalismo Literário na ECA, e comecei a trabalhar isso, quase ninguém sabia o que
era e os poucos que sabiam, a metade dos poucos que sabiam era contra sem saber direito o que
era. Então havia uma resistência muito grande. Com o passar dos anos, com a nossa insistência,
com o trabalho da Cremilda Medina, que é uma professora lá da ECa muito brilhante, com o meu
trabalho, com os nossos orientandos que passaram por lá e começaram a modificar isso pelo Brasil
afora, o conhecimento do Jornalismo Literário aumentou e a resistência diminuiu, pelo menos na área
acadêmica. Nas redações, pouco a pouco, na medida em que primeiro a profissão constatou um fato
óbvio: "estamos perdendo leitores, estamos perdendo leitores em parte pelo menos porque o texto é
chato, o texto é massante, não tem nenhuma novidade". Se você pega um jornal e pega outro, parece
que os dois se pautaram iguais, não é? Você pega certas revistas e você lê do princípio ao fim da a
impressão de que foi uma pessoa só que escreveu. O texto é tão pasteurizado, tão mastigado, tão
industrializado, que não tem graça, então muita gente começou a perceber que isso já não tava muito
legal, as pessoas queriam textos mais interessantes, mais brilhantes, com focos mais inovadores.
Algumas nem sabiam que existia o Jornalismo Literário, mas já demonstrava preocupação e aí como
o Jornalismo Literário começou a chegar, eles falaram, "Pô, talvez seja isso que gente precise", e aí
mais e mais jornalistas começaram a chegar no mercado entendendo o que é, a coisa começou a
amenizar. Então, eu diria que em primeiro lugar eu diria que a aceitação do Jornalismo Literário
melhorou muito nos últimos anos. Você vê, hoje surge no Brasil uma revista chamada Piauí, ninguém
estranha mais, todo mundo já aceita. Vários documentaristas estão fazendo Jornalismo Literário no
cinema, porque o Jornalismo Literário antes de tudo não é uma coisa só do impresso, é um espírito
de como reportar. Aí você pega João Moreira Salles, Eduardo Coutinho, Isabel Jaguaribe, esse povo
faz Jornalismo Literário no documentário, e o público aceita. Não sei em Londrina, mas aqui em SP e
no Rio, documentário hoje, são uma categoria muito bem aceita. Se você pegar hoje em São Paulo,
dia 12 de outubro, e abrir o jornal, tem três ou quatro documentários brasileiros em cartaz nos
cinemas de SP. Porque que as pessoas vão? Porque eles estão fazendo o que os jornais deixaram
de fazer, reportagens reais, vivas, sobre pessoas de carne e osso, não é só sobre celebridades,
sobre pessoas, algumas célebres, outras pessoas comuns. Mas fazem com vivacidade, com força.
Então eu diria que embora ainda haja resistência e muita ignorância do o que é, o Jornalismo Literário
já não causa tanta estranheza, então ele já é mais aceito. O jornalismo Literário Avançado, que é um
segmento do JL é ainda muito pouco conhecido, então em alguns segmentos, tipo, nas
universidades, em algumas universidades, a proposta e o que se faz já é melhor aceito. Fora daí eu
acho que ele é muito pouco desconhecido, até pra saber a reação, em princípio...
Edvaldo –...muito pouco conhecido. Uma reação que eu lhe dou é do Ayrton Senna Guerreiro de
Aquário, que é uma peça típica de Jornalismo Literário Avançado. Quando ele saiu, primeiro ele saiu
remando contra a maré, porque na ocasião havia vários livros sobre o Ayrton Senna no mercado,
todos meio biográficos da carreira do Ayrton. Então o público estava acostumado a querer ver aquilo
e quem foi pro meu livro, se decepcionou, se tinha essa idéia, porque o livro não é biográfico, é um
livro diferente, estranho, então causou um pouco de estranheza pra algumas pessoas, porque não
era o que elas esperavam. Por outro lado, eu tive um pouco de falta de sorte, talvez, porque na época
em que o livro foi lançado, a editora Brasiliense entrou numa crise interna muito grande, a editora na
ocasião era uma das editoras mais importantes do país, entrou numa crise interna, tanto que esteve a
beira da falência várias vezes, hoje ela é uma editora que sobreviveu, mas é muito pequena. Então o
que aconteceu? Como ela entrou em crise, exatamente naquela época, ela não pôde dar um apoio
que o livro precisava, de divulgação, de promoção, então o livro ficou um pouco abandonado. Ele não
circulou muito comercialmente, tanto que até hoje essa edição não está esgotada. Mas o que
aconteceu? Vou te dar um exemplo há pouco tempo, uma pessoa, não vou citar o nome porque eu
não pedi a autorização pra ela...se eu tivesse adivinhado que iria entrar nesse assunto eu até pediria
autorização, mas é uma pessoa que tem um cargo importante no Instituto Ayrton Senna. Quando o
livro do Ayrton saiu, evidentemente essa pessoa leu o livro, conversei com ela algumas vezes e tal, e
aí o tempo passou, cada um foi pro seu canto, o ano passado essa pessoa me encontrou, me
convidou pra almoçar, aí disse: "Olha Edvaldo, agora eu entendi seu livro. Naquela ocasião eu não
estava pronto pra isso. Agora eu entendi, agora eu estou maduro pra compreender o teu livro. Ele
agora é meu livro de cabeceira". Porque? Há livros que chegam no mercado, tanto de ficção quanto
de não-ficção, um pouco a frente ao seu tempo ou à média da visão de mundo das pessoas, então
isso causa estranheza, porque eles são diferentes, as pessoas não estão acostumadas. Aí tempos
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depois pode ser que ele caia a ficha e que pode ser que ele tenha sucesso, ou pelo menos que as
pessoas passam a aceitar melhor. Eu acho que é um caso do Guerreio de Aquário, porque? Certos
conteúdos ali são muito novos, campos morfogenéticos, inconsciente coletivo, arquétipos, não é, são
coisas que há 12 anos atrás não circulava muito fora do circuito acadêmico especializado, e eu fiz pra
o grande público, em uma linguagem acessível. Hoje, 12 anos depois, a palavra arquétipo está em
tudo quanto é lugar, inconsciente coletivo está em tudo quanto é lugar, não é?! Então, os conceitos
que estão ali já são um pouco mais assimiláveis, então o livro começa a ser mais assimilável também,
e ver o Ayrton Senna ligado a esses temas já não causa tanta estranheza, então, eu acho que, pouco
a pouco, na medida em que o público evolui também pra conhecer esses assuntos, o JL, que ta
casado com essas idéias, começa a ter mais penetração. Por exemplo, em medicina, ha 10 anos
atrás, se você falasse de medicina holística, não entendia, achava que era bruxaria. Aí você vai pra
Curitiba hoje, pra citar um exemplo do Paraná, em Curitiba tem uma clínica chamada, se não me
engano, Centro de Medicina Integrada Dr Roberto César Leite, que é uma referência sul-americana
de medicina que tem uma visão de mundo holística, então é uma medicina que tem todos o
elementos da medicina tradicional, equipamentos, tratamentos convencionais, mas tem também
tratamentos de medicina alternativa não convencional, muito bem casados, tudo junto, então
dependendo da situação do paciente, os médicos da equipe vão dizer, "olha, tome antibiótico, faça
uma cirurgia", ou não, "você vai tomar, vai fazer aquele tratamento de ozônio, ou vai tomar um chá
não sei do que", então eles tem o equilíbrio de tratar a pessoa sobre vários aspectos, sejam
tradicionais ou não e ninguém estranha, e eles tem sucesso, são referência sul-americana, vem
médico de tudo quanto é lugar da América do Sul pra fazer curso de especialização com eles, então
já é mais aceito. Você fala de acupuntura hoje, as pessoas já não estranham tanto quanto há 15
anos, você fala de meditação, há 15 anos atrás meditação era coisa de místico, hoje em dia a
empresa faz meditação, Ayrton Senna fazia meditação, escritor pode fazer meditação pra escrever,
porque não? Então já não se causa mais aquela coisa de estranhamentos, já há uma aceitação,
então eu vejo que o JLA é um jornalismo pra o século XXI, na medida em que as pessoas vão
compreendendo, vão sentindo, vão avançando, as novas gerações já chegam pra esse campo mais
abertas. Eu tive uma experiência com meus alunos de graduação da ECA do ano passado, muito
boa. Há 10 anos atrás os alunos de graduação tinham muita resistência a essas coisas, porque eles
estavam educados numa cultura de jornalismo muito tradicional, então eu vinha a falar leve, porque é
óbvio que eu não ia colocar isso na graduação de maneira tão ampla porque não era o caso, mas
mesmo o pouco do que eu trazia do JLA, havia muita resistência. Aí, de dois ou três anos pra cá eu
senti uma diferença no perfil dos alunos impressionante. Muitos alunos diziam: "eu vim por jornalismo
e antes de terminar o curso eu já estou decepcionado, eu não vim pra fazer lide, eu vim porque eu
quero escrever, quero ter uma visão de mundo melhor", eles sabiam que estava inquietos com o
jornalismo tradicional, alguns desistiam do curso, mas não sabiam direito o que eles queriam, então
quando eles encontraram o JL, e mais ainda o JLA..."Pô, me salvou, essa é minha carreira, é isso
que eu quero fazer". Então eu tenho sentido, ao contrário, nas novas gerações, um crescimento de
uma aceitação intuitiva do JL, e do JLA, muito grande, que algumas gerações imediatamente atrás
não tinham. Então as pessoas hoje em dia estão mais receptivas a essas coisas de uma maneira
geral, né, você falar de meditação, não é todo mundo que torce o nariz como torcia há dez anos
atrás, você fala de reiki, há 15anos atrás era bruxaria, era charlatanismo. Hoje, já tem hospital público
que usa reiki, e aí? Entendeu?
Então eu acho que o JLA é uma proposta em crescimento, em evolução. Eu acho que agora as
pessoas vão compreender mais, vão tomar isso e vão aperfeiçoá-lo, porque ali está uma proposta
inicial sujeita a melhoras, a aperfeiçoamentos, a erros e acertos.
Cristiane - Um pouquinho ainda no plano geral, como você avalia a produção de livros-reportagem
hoje?
que chegou pra mim foram convites pra três, só aqui em São Paulo, de uma vez, no espaço de 10
dias, quer dizer, acho que em primeiro lugar, o volume de produção, edição e publicação melhorou...
Cristiane – E a qualidade?
Cristiane - Agora eu queria perguntar sobre o incremento de livros teóricos. No site texto vivo tem a
indicação de 39 livros teóricos, mas dois que versam sobre exatamente o fazer do livro-reportagem,
que são justamente os seus. Teve um incremento de 2 anos pra cá, desde que você lançou o
Páginas Ampliadas?
Edvaldo – Teve um incremento mas não de livros publicados ainda, mas de teses e dissertações. Por
exemplo, o Sérgio Villa Boas, que é o editor executivo do Texto Vivo, um dos quatro responsáveis
pelo projeto Texto vivo, pelo curso, ele acabou de defender uma tese de doutorado na USP, que eu
orientei, e essa tese explora mais amplamente a produção de biografias jornalísticas, então essa
tese, mais dia menos dia ele vai conseguir publicar. Então a nível de tese e dissertações já tem muita
coisa, a nível de livros à público ainda não, mas ta crescendo a produção. No começo do ano, uma
outra orientanda minha, a Denise Casad, defendeu o mestrado, no mestrado ela trabalha a relação
do autor com o personagem no jornalismo literário, e traz outras coisas que os textos dos livros que
estão publicados não trazem, então ela já defendeu, foi aprovada, mais dia menos dia ela consegue
publicar. No momento está terminando a orientação de um candidato a doutorado meu, o Alex
Criado, está examinando o uso da oralidade no Jornalismo Literário, então ele faz um paralelo, assim
como o Guimarães Rosa usou a oralidade de uma certa região pra escrever ficção, que tal nós
usarmos a oralidade pra praticar um JL com um ritmo narrativo mais fluente? Então essa tese dele,
ele terminando, sendo bem sucedido, provavelmente ele vai conseguir mais dia menos dia publicar.
Então aos poucos a abordagem teórica aumenta. E alguns TCCs, alguns de boa qualidade que
também exploram determinados aspectos que ainda não foram explorados, então esses TCCs
aumentam, digamos assim, a massa crítica de conhecimento teórico conceitual sobre o JL.
Edvaldo – Só o Páginas Ampliadas, tem uma versão simples dele que é O que é livro-reportagem, e
recentemente me falaram que saiu, mas eu ainda não vi, um livro chamado Livro-Reportagem, da
editora Contexto. Você viu esse livro?
Edvaldo – Então, eu não sei o que é, mas geralmente essa coleção da Contexto, ela produz livros
simples, geralmente para alunos de graduação, e trata um pouco do assunto, são livros meio
introdutórios. Então eu não sei, eu não vi o livro, não sei quanto o autor aprofundou ou não o fazer do
livro-reportagem, não sei....então realmente tem pouca coisa no mercado....teórica.
Cristiane – Agora uma provocação, você já começou a falar, mas eu queria sabe o que você acha
desses três autores que eu te falei? O Caco Barcellos, o Fernando Morais e o Mylton Severiano?
Edvaldo – Primeiro são profissionais que merecem o maior respeito de todos nós porque fazem um
trabalho sério, fazem um trabalho muito abalizado, são profissionais que ajudam a nós todos, porque
quanto mais sucesso eles tiverem, graças a Deus, porque mais as editoras se interessam, mais o
público gosta, mais o público vai querer lê-los, as outras produções deles e outras produções novas
também, quer dizer, é bom que eles sejam bem sucedidos, então que eles continuem produzindo
bem aí, nos anos a frente. Então eles tem esse valor e tem a característica pessoal de cada um. Eu
acho que deles todos, o Fernando Morais, o Jorge Caldeira, que você não citou, mas eu acho que é
um profissional também muito respeitável, e o Ruy Castro, eles têm essa qualidade fantástica da
pesquisa, eles são ótimos pesquisadores, eles estruturam os livros muito bem, eles trabalham
assuntos de fôlego, você vê a biografia da Carmem Miranda não é pra qualquer um, não é? E o Ruy
Castro é exaustivo, ele pesquisa uma quantidade bárbara de gente, então eu acho que todos ele são
muito bons de pauta, pesquisa e produção. Quanto a estilo de texto, todos escrevem muito bem, mas
eu acho que estilisticamente, na minha opinião de todos eles, o que se sai melhor é o Caco Barcellos,
então eu acho que o Caco Barcellos estilisticamente ele tem um grau de elaboração do texto que
pode ser meio subjetivo, mas a mim, pessoalmente, agrada muito. Do ponto de vista estilístico me
agrada mais do que os outros, respeitando o estilo de cada um e a capacidade de produção de cada
um, então eu acho que são profissionais ícones de uma linha de produção que está aí, agora, o livro-
reportagem e o Jornalismo Literário tem uma característica que é o estilo pessoal, então esses são
estilos conhecidos e que tiveram sucesso no mercado, outros estilos, outras forma de fazer vão
aparecer e que seja assim, porque quanto mais diversificado for o livro-reportagem, mais sólida é a
modalidade do livro-reportagem.
Cristiane – De uma maneira resumida, o que tem que ter o livro-reportagem pra ser bom?
Edvaldo – Primeiro o coração e a alma do autor. Segundo, o tema tem que ser um tema de apelo
universal, mesmo que o assunto seja um assunto em Londrina, se o tema por trás daquilo é um tema
que interessa ao Brasil inteiro, às pessoas, porque trata de valores muito profundos, vida e morte,
nascimento crescimento, amor e ódio, coisas desse tipo, se o tema universal for muito forte, o livro
tem possibilidade de ser muito bom. Então motivação, empenho e dedicação do profissional, tema
interessante, apuração muito bem feita e texto bem elaborado. Se essas quatro coisas se casam
bem, a possibilidade do êxito cultural e comercial é alta. E atrás de tudo uma responsabilidade, um
senso de responsabilidade do autor e uma postura ética, porque na minha visão, nada justifica você
não ser ético por causa de um livro. Então eu vou citar um caso de um grande cara de jornalismo
literário, eu não quero falar mal dele porque ele não está mais aí pra se defender, mas eu acho que
do ponto de vista educativo pedagógico é até interessante, que é o Truman Capote. Ele escreve A
sangue Frio e quem viu o filme percebeu, ele tem uma relação manipulativa com as fontes deles...Se
aproximou daquelas pessoas, dos dois condenados, com o objetivo puramente jornalístico, digamos
assim, e com o passar do tempo, aparentemente criou-se uma intimidade entre eles, e um dos dois,
agora não me lembro qual deles, parece que projetou no Truman Capote uma amizade, um
sentimento de amizade, alguns dizem que pelo Truman Capote ter sido homossexual tiveram até
alguma outra situação, não sei, mas independente disso, um grau de amizade que parece ter
nascido, pelo menos da parte do executado. E aí essa pessoa, que era uma pessoa sozinha no
mundo, projetou no Truman Capote uma necessidade, uma tábua de salvação, então apelava pro
Truman Capote que era um intelectual respeitado, conhecido, um jornalista de fama, apelava pra ele,
pra fazer reivindicações junto ao governo, até pra ver se escapava da pena de morte, pra fazer
literalmente apelos judiciais, e o Truman Capote o ajudou até um certo ponto e depois parou, porque
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chegou um momento em que parecia que para o livro era mais importante que eles morressem, que o
livro teria mais impacto. Então há uma cena no filme, se aquilo é verdade...eu não conheço a
biografia do Truman Capote em detalhes, se aquilo é verdade, há uma situação em que o sujeito
escreve pro Truman Capote e pede pra fazer um novo apelo junto ao Supremo Tribunal, uma coisa
assim e o Truman Capote ignora as cartas porque pra ele enquanto autor é melhor que o cara morra
logo porque o livro vai ficar interessante. Então naquele momento ele agiu como autor e não como
ser humano, tudo bem, o livro saiu foi um grande estouro, um grande sucesso no mundo inteiro,
amplificou a fama do Truman Capote que já era um cara bastante conhecido. Mas que preço o
Truman Capote pagou? Embutiu, bloqueou a criatividade dele, nunca mais ele escreveu nada que
preste. Começou a ficar um cara auto-destrutivo, depressivo etc, e quando ele estava pra morrer, ele
deu uma famosa entrevista ao vivo na televisão americana ele disse que se considerava uma pessoa
extremamente infeliz, morreu com culpa, com um monte de coisa, então o que adiantou? Então eu
acho que no século XXI nós estamos em uma nova fase, num novo momento da humanidade em que
nós precisamos de um mundo mais ético, ta todo mundo cansado das podridões que existem, o
escritor de não-ficção, o autor de jornalismo literário ele tem de pensar nesses aspectos. Nenhum
assunto, nenhuma pauta é superior ao valor da vida humana. A sua enquanto autor, nem de
ninguém. Nenhuma pauta é superior à destruição de um ser humano ou a se causar um dano muito
fundo em um ser humano. Nada, nenhuma pauta merece isso. Entre a vida e a pauta, melhor a vida,
e se você faz uma coisa pela ambição profissional, o que vai acontecer? Nós temos mecanismos
psicológicos dentro de nós que são os nossos verdadeiros juízes e esses mecanismos entram em
ação mesmo. Quem estuda um pouco de psicologia humanista sabe disso, não é necessário que haja
um julgamento externo do mundo. A própria psique, da pessoa que mais ou menos foi programada
pela existência pra controlar um pouco, então vai haver problemas, no caso do Truman Capote,
secou a fonte criadora dele. Claro, ele ainda escreveu algumas coisas e tudo.... nunca mais escreveu
nada que prestasse, nunca mais foi reconhecido por ter escrito uma outra obra de qualidade, e entrou
num declínio pessoal que foi até a morte dele. Ele morreu se vendo, se considerando infeliz, então,
vale a pena? Não vale. Então essa postura ética do respeito ao ser humano tem de ser sempre algo
chave para um livro-reportagem funcionar bem e o autor estar em paz com ele mesmo, porque não
adianta você ter sucesso e a tua alma estar caótica.
Então por isso, eu citei o Truman Capote, vou citar um outro caso do lado contrário, de
alguém que até hoje, na sua carreira, tem tido uma postura extremamente ética, e reta, fabulosa, que
é o Gay Talese. O Gay Talese é um homem hoje de uns 70 e poucos anos, já é um velho, então ele
tem uma produção de 50 anos... e o Gay Talese nunca escreve um perfil, por exemplo, sem o
consentimento de sua fonte... ele não escreve às escondidas ou contra a vontade das pessoas. Não
é que o teor e o conteúdo vai ser o conteúdo que a fonte quiser, não. Ele é o dono da matéria e o
outro tem que aceitar, mas é assim, é feito um pacto: "Vou fazer o seu perfil, preciso mergulhar no
seu mundo, você me aceita?" Teve uma vez que ele foi fazer um perfil de um mafioso, imagine só, e
num perfil de jornalismo literário, você não pode fazer uma matéria rasa, você tem que mergulhar no
universo da pessoa, tem de conviver com a pessoa, tem de ver a família da pessoa, então ele diz pro
mafioso "eu trabalho assim, vou fazer isso, você me aceita?" Obviamente o cara não queria... se
passaram meses e meses e meses e meses, mas o Gay Talese não começou, não é porque cara era
mafioso e ele ficou com medo de o cara matá-lo, ele não faz isso com ninguém. Pode ser o verdureiro
da esquina, se ele quiser fazer o perfil do verdureiro, enquanto o verdureiro não aceitar que ele faça,
ele não começa às escondidas. Mesmo o caso do Frank Sinatra, o Frank Sinatra concordou e não
voltou atrás, ele não queria dar entrevista naquele período, mas ele não disse "não faça", tanto que o
Gay Talese continuou a fazer, o assessor do Frank Sinatra ajudava, ele não falou com o Frank
Sinatra, mas o assessor ajudou, levou ele pra televisão e tudo, então todo mundo sabia o que ele
estava fazendo e o Frank Sinatra também e não disse não, então nem o Frank Sinatra ele fez contra
a vontade do Frank Sinatra. Então eu acho essa a melhor postura. É obvio que tem certos
jornalismos que não pode ser assim, jornalismo investigativo... tem coisas que você tem que fazer
contra a vontade da pessoa porque a matéria é aquela, de repente a sua matéria é uma matéria de
denuncia e a pessoa não vai querer se confessar, mas eu, pessoalmente, jamais faria uma matéria
investigativa, eu reconheço a validade disso, respeito os profissionais que fazem, mas eu não tenho
temperamento pra isso, eu prefiro outro tipo de trabalho, né, e a minha linha é a do Gay Talese, se
não há o consentimento, não faço.
Cristiane – Então, resumidamente, agora a característica do autor. Ética, paixão pelo tema
estudado...
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Edvaldo – Conhecimento sobre a sua ferramenta de trabalho. O que é um livro-reportagem? Pra que
serve? O que é Jornalismo Literário? Quais são os instrumentos de narrativa que eu tenho? Como eu
entrevisto? Quem foram os grandes caras que se eu ler eu vou aprender alguma coisa com eles?
Entendeu? Então conhecer, depois, cultura geral, e terceiro, cultura do tema que você vai trabalhar.
Se você não conhece, aprenda antes de fazer a primeira entrevista.
Edvaldo – Precisa ter talento sim. Se o talento não estiver manifestado, precisa desenvolvê-lo. O
talento potencial todos que escrevem...A história do escritor que escreve por inspiração ela é válida
assim, se você quiser escrever um livro na vida, pode ser que um dia você tenha uma bela idéia, uma
bela inspiração, está abençoado pelos anjos criadores e você escreve, mas o segundo você não vai
conseguir escrever. Então se você pensa numa carreira, você não pode contar só com a inspiração,
tem de ter disciplina, empenho, determinação e aplicação do desenvolvimento do seu texto. Vou dar
um exemplo, o Caco Barcellos quando lançou o Abusado deu uma entrevista, acho que pra Folha,
contou que ele leu e releu A Sangue Frio vária vezes...porque ele queria...
Cristiane - Falou.
Cristiane – Não...
Edvaldo - Que ele queria descobrir a carpintaria do Truman Capote. As técnicas, o modo de
escrever, como é que ele armou o livro, como ele estruturou, como ele tratava os personagens,
entendeu? Aí, quando ele...depois de ter lido trinta vezes, ele sacou qual era. "Pô, desses recursos,
quais eu posso empregar?". Veja o Abusado. Já leu o Abusado?
Cristiane - Já.
Edvaldo – Viu alguma semelhança com o A Sangue Frio? Não só pelo tema de polícia, mas a
estrutura, entendeu? Então isso é investir no seu talento. Se você olha um livro-reportagem anterior
do Caco Barcellos, o Rota 66, é um livro socialmente importante, mas estilisticamente é um livro
muito pobre, extremamente pobre estilisticamente. Pega o Abusado, veja o salto de qualidade que ele
teve, porque? Porque ele investiu no talento.
Cristiane – Então agora a última. Você poderia dar alguma dica pra quem quer fazer livro-
reportagem?
Edvaldo – Várias. Ler bons livros-reportagem, pra, né, pegar o gosto, sentir como é, então escolher
autores que você goste, ou temas que de repente te chamou a atenção... e leia, de autores
diferentes, brasileiros, estrangeiros, homens, mulheres, porque a mulher tem um olhar, o homem tem
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outro, não é...temas conhecidos, temas desconhecidos, leia sei lá, 10, 15 livros reportagem num
espaço de 6 meses pra sentir o que é. Segunda coisa, compreenda a tecnologia do Livro-reportagem,
leia o Páginas Ampliadas, debulhe o Páginas Ampliadas, disseque, veja ali as técnicas e tal. Terceiro,
comece a praticar, experimentar com matérias menores, tudo o que você ver, aprender, descobrir...
se a pessoa estuda e há cursos de livro-reportagem na universidade, na faculdade, aproveite bem,
experimente bem e mão na massa, porque não tem outro jeito, você trava contato, conhece, absorve,
e experimenta como você se sai na tarefa, basicamente por aí.
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