Leonard Cohen - Mais Escuro (Perfil Da Revista Piauí)
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MAIS ESCURO
Um mês antes de morrer, aos 82 anos, Leonard Cohen lançou um álbum obcecado pela mortalidade,
impregnado da ideia de Deus – e engraçado
DAVID REMNICK
Na juventude, Cohen lembrava um Michael Corleone Antes da Queda, os olhos escuros levemente amendoados, a pele morena e os ombros um pouco caídos,
mas seu encanto estava na gentileza refinada e na fluência com as palavras FOTO: PLATON_TRUNK ARCHIVE
A
os 25 anos, Leonard Cohen morava em Londres, onde escrevia
poemas tristes em quartos mal aquecidos. Vivia dos 3 mil
dólares de uma bolsa do Conselho Canadense para as Artes. Era
o ano de 1960, e ainda faltava uma década para o Festival da Ilha de
Wight, em que se apresentaria diante de 600 mil pessoas. Àquela
altura, Cohen era um judeu que tentava uma carreira na literatura,
um provinciano em terra estrangeira, exilado do ambiente literário de
Montreal. Nascido numa família culta e de certa proeminência, tinha
uma visão irônica de si mesmo. Era um boêmio com a sobrevivência
garantida, e suas primeiras compras em Londres foram uma Olivetti
portátil e uma capa de chuva azul da Burberry. Muito antes de
conquistar um fã que fosse, tinha uma ideia clara do público que
desejava. Numa carta a seu editor, dizia querer atingir “os
adolescentes fiéis a seus valores originais, os amantes que sofrem de
angústia em qualquer grau, os platônicos decepcionados, os voyeurs
de pornografia, os monges com pelos na palma das mãos e os
papistas”.
Aqui e ali, Cohen via de relance uma norueguesa linda. Seu nome era
Marianne Ihlen, e ela fora criada no campo, perto de Oslo. A avó de
Marianne sempre lhe dizia: “Você vai encontrar um homem com uma
voz de ouro.” E ela achava que já tinha encontrado: Axel Jensen, um
romancista norueguês entusiasta de Jack Kerouac e William
Burroughs. Os dois casaram e tiveram um filho, o pequeno Axel.
Porém, Jensen não era um marido constante – quando o bebê
completou 4 meses, ele, nas palavras dela, estava “de quatro” por
outra mulher.
Um dia de primavera, Marianne entrou com o filhinho num café
misto de mercearia. “Eu estava lá, de pé, com minha cesta, tinha ido
comprar água mineral e leite”, ela lembrou décadas mais tarde, num
programa de rádio norueguês. “E aí ele apareceu na porta, com o sol
pelas costas.” Cohen a convidou para sentar do lado de fora, com ele
e uns amigos. Usava calça cáqui, mocassim sem meia, camisa de
manga arregaçada e um boné. Parecia irradiar “uma compaixão
imensa por mim e por meu filho”. E ela se apaixonou. “Foi uma coisa
que senti no corpo todo”, contou. “Uma leveza tomou conta de mim.”
C
ohen já fazia algum sucesso com o sexo oposto. E viria a fazer
ainda mais. Para um trovador da tristeza – “mestre supremo da
melancolia”, como seria apelidado mais adiante –, ele
encontrava bastante consolo nos braços das mulheres. Na juventude,
lembrava um Michael Corleone Antes da Queda, os olhos escuros
levemente amendoados, a pele morena e os ombros um pouco caídos,
mas seu encanto estava na gentileza refinada e na fluência com as
palavras. Aos 13 anos, leu um livro sobre hipnotismo. Experimentou
a técnica com a governanta da casa da família, e ela tirou a roupa. Ao
longo dos anos, nem todo mundo se deixaria enfeitiçar no mesmo
grau. A cantora e compositora alemã Nico não cedeu, e Joni Mitchell,
que a certa altura foi sua namorada e continuou sua amiga,
costumava defini-lo como um “poeta de alcova”. Entretanto, elas
foram exceções.
Leonard passava cada vez mais tempo com Marianne. Iam à praia,
transavam, cuidavam da casa. Certa vez, quando Marianne e Axel
estavam na Noruega, e Cohen em Montreal, cavando algum dinheiro,
ele lhe mandou um telegrama: “Tenho casa vg só preciso minha
mulher e o filho dela pt Amor vg Leonard.”
Ele passava cada vez mais tempo longe de casa, dedicado à carreira.
Marianne e Axel continuaram na ilha mais algum tempo, depois
foram para a Noruega. Marianne voltaria a se casar. Mas a vida teve
suas dificuldades, especialmente para Axel, que viveu constantes
problemas de saúde. O que os fãs de Cohen conheciam de Marianne
era sua beleza e o que ela tinha inspirado: Bird on the Wire; Hey,
That’s no Way to Say Goodbye e, acima de tudo, So Long, Marianne.
Ela e Cohen nunca perderam contato. Sempre que ele fazia alguma
turnê pela Escandinávia, ela ia vê-lo no camarim. Trocavam cartas e
e-mails. Quando falavam com jornalistas e amigos sobre a história
deles, era sempre em termos carinhosos.
Caro Leonard,
Marianne adormeceu aos poucos e deixou a vida ontem à noite.
Tranquila, cercada de amigos próximos.
Quando sua carta chegou, ela ainda conseguia falar e rir, estava
totalmente consciente. Nós lemos em voz alta, e ela sorriu como só
Marianne era capaz de sorrir. Levantou a mão no trecho em que você
dizia que estava logo atrás dela, tão perto que podia tocá-la.
Foi muito reconfortante para ela que você soubesse como ela estava. E
sua bênção para a viagem deu a ela uma força extra… Em sua última
hora de vida, eu segurei a mão dela e cantarolei Bird on the Wire,
enquanto ela respirava bem de leve. E ao deixarmos o quarto, depois
da alma dela ter voado pela janela em busca de novas aventuras,
beijamos-lhe a cabeça e murmuramos para ela suas palavras eternas.
So long, Marianne…
eonard Cohen morava no 2º andar de um modesto apartamento em
L
Mid-Wilshire, uma área de Los Angeles desprovida de qualquer
encanto. Estava com 82 anos. Entre 2008 e 2013, havia passado
quase o tempo todo em turnê. Era muito improvável que sua
saúde continuasse a permitir essa empreitada. Dali a um mês, em
outubro de 2016, ele lançaria um novo disco – obsessivamente
impregnado com os temas da mortalidade e da presença de Deus,
mas ainda assim divertido, chamado You Want It Darker –, mas seus
amigos e colegas duvidavam tornar a vê-lo num palco, exceto em
participações muito limitadas: uma apresentação única, talvez, ou
uma curtíssima temporada num mesmo local. Quando lhe mandei
um e-mail com um convite para jantar, Cohen respondeu que estava
mais ou menos “confinado em seus aposentos”.
“Olá, amigos”, ele disse. “Por favor, por favor, sentem-se.” Sua voz
era tão grave e rouca que, perto dele, Tom Waits soaria como um
contratenor.
E então, como minha mãe, ele nos ofereceu o que só podia ser o
cardápio completo de sua despensa: água, suco, vinho, um pedaço de
frango, uma fatia de bolo, “talvez alguma outra coisa”. Nas horas que
passamos juntos, ele foi nos oferecendo mais e mais coisas, e sempre
com a maior gentileza. “Querem umas fatias de queijo com
azeitonas?” – proposta que um entrevistador jamais escutaria de Axl
Rose. “Uma vodca? Um copo de leite? Uma aguardente?” E, também
como quando visito minha mãe, às vezes o melhor é aceitar de vez.
Um dia, comemos cheeseburgers “com tudo” que pedimos de uma
lanchonete da vizinhança e, no outro, fatias grossas de gefilte fish
com raiz-forte.
C
ohen chegou à maioridade depois da guerra. A Montreal em
que cresceu, porém, nada tinha a ver com a Newark de Philip
Roth ou a Brownsville de Alfred Kazin. Ele foi criado em
Westmount, um bairro majoritariamente anglofônico onde viviam os
judeus mais prósperos da cidade. Os homens de sua família,
sobretudo do lado paterno, estavam entre os “figurões” da Montreal
judaica. Seu avô era “provavelmente o judeu mais importante do
Canadá”, fundador de uma série de instituições voltadas para a
colônia judaica; após uma onda de pogroms antissemitas no então
Império Russo, ele promoveu a ida de inúmeros refugiados para o
Canadá. Nathan Cohen, o pai de Leonard, dirigia a Freedman
Company, a fábrica de roupas da família. A mãe do compositor,
Masha, vinha de uma família de imigrantes mais recentes. Era
adorável e depressiva. Tinha um espectro emocional “tchekhoviano”,
nas palavras de Leonard: “Tanto ria quanto chorava intensamente.” O
pai de Masha, Solomon Klonitzki-Kline, lituano, era um reconhecido
estudioso do Talmude, autor de um Léxico de Homônimos
Hebraicos. Leonard frequentou boas escolas, inclusive a Universidade
McGill, e, por algum tempo, a Universidade Columbia. Nunca se
queixou dos confortos que a família lhe proporcionou.
O
s mesmos ouvidos que pela primeira vez atentaram a Bob
Dylan, em 1961, também descobriram Leonard Cohen em 1966.
Pertenciam a John Hammond, homem bem-nascido aparentado
aos Vanderbilt e de longe o produtor e descobridor de talentos mais
intuitivo de toda a indústria fonográfica americana. Hammond foi
decisivo para as primeiras gravações de Count Basie, Big Joe Turner,
Benny Goodman, Aretha Franklin e Billie Holiday. Amigos que
acompanhavam apresentações de músicos folk na zona sul de Nova
York lhe falaram de Cohen, e Hammond ligou para ele, pedindo para
conhecê-lo.
Quando pedi que Cohen comentasse esse episódio, ele disse: “Foram
essas as cartas que nos couberam.” Quanto à observação de Dylan, de
que as canções de Cohen “pareciam preces”, Cohen disse que nunca
havia se disposto a sondagens mais profundas sobre os mistérios da
criação.
“Não tenho muita ideia do que eu faço”, ele disse. “É difícil descrever.
Agora que estou me aproximando do fim da vida, tenho cada vez
menos interesse em discutir avaliações ou opiniões que só podem ser
muito superficiais sobre o significado da minha vida ou da minha
obra. Se já não era dado a isso quando tinha saúde, agora sou menos
ainda.”
“Uma das canções dele tocou no rádio”, lembrou Cohen. “Acho que
era Just Like a Woman, ou coisa assim. Quando a canção chegou ao
trecho antes do refrão, normalmente chamado de ponte, ele disse:
‘Essa ponte já foi cruzada por muitas jamantas.’ Para me mostrar
como era poderosa.”
D
ylan, que tem 75 anos, não costuma se prestar muito ao papel
de crítico musical, mas não se furtou a discorrer sobre Leonard
Cohen. Fiz uma série de perguntas sobre o Número 1, e ele
respondeu detalhadamente, numa crítica esmerada – nada críptica
nem ambígua.
Numa turnê no final dos anos 80, Dylan tocou Hallelujah na forma de
um blues áspero com um refrão inesperado em crescendo. Sua
interpretação lembra menos a versão embelezada de Jeff Buckley que
alguma criação de John Lee Hooker. “Esta canção, Hallelujah, tem
muitas ressonâncias para mim”, disse Dylan. “Aqui também temos
uma melodia lindamente construída que sobe, evolui e depois
retorna. Mas tem um estribilho que lhe dá coesão, e que quando vem
mostra uma força muito grande. O ‘acorde secreto’ de que a letra fala
em sua primeira estrofe e esse outro aspecto da canção, que dá a
impressão de entender cada um de nós melhor do que nós mesmos,
têm muitas ressonâncias para mim.”
A
presentar-se em público sempre deixava Cohen nervoso. Sua
primeira tentativa para valer ocorreu em 1967, quando Judy
Collins o convidou para cantar com ela no Town Hall, em Nova
York, num concerto contra a Guerra do Vietnã. A ideia era fazê-lo
estrear interpretando Suzanne, uma de suas primeiras canções, que
Collins transformara num grande sucesso depois de ouvi-la pelo
telefone, cantada pelo próprio.
P
or muitos anos, os discos de Cohen eram mais reverenciados do
que comprados. Embora vendessem razoavelmente bem, nem
chegavam perto da escala dos principais nomes do rock. No
início da década de 80, quando entregou à gravadora as canções de
Various Positions – um disco magnífico, trazendo entre outras
Hallelujah, Dance Me to the End of Love e If It Be Your Will –, Walter
Yetnikoff, presidente da cbs Records, discutiu a seleção das faixas
com ele.
Isso foi há quase quatro décadas e, pelo que Vega se lembra, àquela
altura os admiradores de Cohen compunham uma espécie de
“sociedade secreta”. E mais: havia uma forma correta de responder à
pergunta semi-inocente do rapaz: “Sim, eu adoro Leonard Cohen –
mas só em certos estados de espírito.” Senão o interlocutor poderia
achar que você sofria de depressão.
E ainda havia mais uma coisa. Certa vez, depois que Cohen e Vega
ficaram amigos, ele ligou e convidou-a para visitá-lo em seu hotel. Os
dois se encontraram à beira da piscina, e Cohen perguntou se ela
queria ouvir sua última canção.
D
sinagoga do seu avô, Cohen sempre esteve numa busca
espiritual. “Qualquer coisa: catolicismo, budismo, lsd; para
mim serve qualquer coisa que funcione”, ele disse certa vez. No
final dos anos 60, quando vivia em Nova York, estudou por um
tempo num centro de cientologia e saiu com um certificado em
“Gradiente iv”. Em tempos menos remotos, passou várias manhãs de
shabat e noites de segunda-feira na sinagoga Ohr HaTorah, no Venice
Boulevard, conversando sobre textos cabalísticos com o rabino local,
Mordecai Finley. Em comemorações de Rosh Hashaná e do Yom
Kippur, Finley, para quem Cohen era “um grande escritor litúrgico”,
já leu do púlpito trechos de seu Book of Mercy, uma coletânea de
“salmos contemporâneos” lançada em 1984, profundamente
influenciada pelos Salmos de Davi. “Participei de todas essas
procuras que atraíram as mentes da minha geração naquele tempo”,
disse Cohen. “Dancei e cantei com os hare krishnas – nunca me
enrolei naquelas roupas nem entrei para a seita, mas experimentei de
tudo.”
P
or quarenta anos, Cohen seguiu o mestre zen japonês Kyozan
Joshu Sasaki Roshi. (Roshi é o tratamento honorífico usado
para um mestre venerado, e era assim que Cohen sempre se
referia a ele.) Roshi, que morreu em 2014 aos 107 anos, chegou a Los
Angeles em 1962, mas nunca aprendeu muito bem a língua de seu
país de adoção. Por meio de seus intérpretes, porém, adaptou vários
koans tradicionais japoneses para a iluminação de seus discípulos
americanos: “Como você pode se dar conta da natureza de Buda
enquanto dirige um carro?” Roshi era baixinho, corpulento e gostava
de tomar saquê e uísque escocês. “Eu vim aqui para me divertir”,
disse certa vez sobre sua permanência nos Estados Unidos. “Quero
que os americanos aprendam a rir de verdade.”
Até o início dos anos 90, Cohen costumava passar com Roshi, no
Centro Zen do Monte Baldy, na Califórnia, vários períodos de estudo
e meditação que se estendiam por dois a três meses a cada ano.
Considerava Roshi um amigo próximo, um mestre espiritual e uma
influência profunda em sua obra. E assim, pouco depois de voltar
para casa ao final da turnê do Château Latour, em 1993, Cohen tornou
a subir o monte Baldy. Dessa vez, ficou quase seis anos no alto da
montanha.
Cohen ocupava uma cabana bem pequena, que equipou com uma
cafeteira, uma menorá, um teclado e um laptop. Como os demais,
limpava as privadas. Tinha a honra de cozinhar para Roshi, e mais
tarde acabou se mudando para outra cabana, que se comunicava com
a do mestre por uma passarela coberta. Meditava várias horas por
dia, sentado em posição de Meio Lótus. Se ele, ou qualquer outro,
cochilasse durante a meditação ou deixasse a posição correta, um dos
outros monges se aproximava e, com uma vara de madeira, desferia
um golpe seco no ombro do sujeito.
E
m 1996, Cohen se tornou monge, mas isso não o salvaguardou
da depressão que o atormentava havia muito – dois anos mais
tarde, ele sucumbiu. “Vivi às voltas com a depressão desde a
adolescência”, contou. “Períodos debilitantes, em que tinha
dificuldade até para levantar do sofá, se alternavam a épocas em que
eu funcionava plenamente, mas sempre sob o predomínio do ruído
de fundo da angústia.” Tentou antidepressivos. Tentou se livrar deles.
Nada funcionou. Finalmente, disse a Roshi que ia “descer da
montanha”. Na coletânea de poemas Book of Longing, escreveu:
O
encanto pessoal de Cohen tinha algo de irresistível. Quem
quiser uma prova que assista ao clipe disponível no YouTube,
Why It’s Good to Be Leonard Cohen [Por que É Bom Ser
Leonard Cohen]: Cohen é filmado nos bastidores enquanto uma linda
atriz com sotaque alemão tenta convencê-lo, diante de um camarim
repleto, a “ir para algum lugar” com ela, o que ele acaba recusando
constrangido. E seu encanto não era menor com os homens.
Começaram pelo Canadá e dali seguiram para toda parte nos cinco
anos seguintes – foram 380 récitas, de Nova York a Nice, de Moscou a
Sydney. No início de cada apresentação, Cohen dizia que ele e a
banda iam “dar tudo que tinham”, e nunca mentiu. “Acho que ele
estava querendo competir com Bruce Springsteen”, brincou Sharon
Robinson, uma de suas cantoras e muitas vezes coautora, referindo-se
à duração dos espetáculos. “Em certas noites, os shows duravam
quase quatro horas.”
C
ohen tinha mais de 70 anos, e seu empresário fez o possível
para que o artista aproveitasse ao máximo as suas energias. A
produção era de primeira classe: um avião particular, em que
ele podia escrever e dormir; bons hotéis, onde podia ler e compor
com um teclado; um carro para levá-lo ao hotel no minuto em que
deixasse o palco.
A apresentação que vi, no Radio City Music Hall, em Nova York, foi
um dos espetáculos mais comoventes da minha vida. Cohen, um
velho mestre de sua arte, nos serviu a nata do seu catálogo com a
ajuda de um grupo inspirado de excelentes músicos. Em vários
momentos, interpretava suas músicas, além de simplesmente cantá-
las, dobrando um joelho em gratidão ao objeto de seu afeto ou
dobrando os dois para enfatizar sua devoção – ao público, aos
músicos, às canções.
O
mais provável é que nunca mais houvesse uma turnê. Cohen só
pensava na família, nos amigos e no trabalho imediato. “Eu
tinha uma família para sustentar, não há nada de virtuoso
nisso”, ele me disse. “Nunca vendi tanto a ponto de me despreocupar
com dinheiro. Tinha dois filhos e a mãe deles para sustentar, além de
a mim próprio. E por isso jamais cogitei parar de todo. Trabalhar se
tornou um hábito. Além disso, preciso levar em conta a questão do
tempo, que é poderosa, com seu incentivo para deixar tudo
arrumado. Mas ainda não estou perto do fim. Acabei algumas coisas.
Não sei quantas outras vou conseguir deixar prontas, porque a esta
altura tenho sentido um cansaço profundo… Há horas em que preciso
me deitar. Não consigo mais tocar, e minhas costas também estão se
acabando depressa. As coisas espirituais, baruch Hashem [graças ao
Senhor], chegaram ao devido lugar, pelo que sou profundamente
grato.”
O
disco mais recente de Cohen começa com a canção-título, You
Want it Darker, e no refrão o cantor declara:
Hineni Hineni
[6]
I’m ready, my Lord
E continuou: “O que eu quero dizer é que nessa hora você escuta a Bat
Kol.” A voz divina. “Você ouve essa realidade mais profunda
cantando pra você o tempo todo, e quase nunca consegue decifrar.
Mesmo quando eu não estava doente, já era sensível a ela. E nessa
altura do campeonato, é essa voz que eu escuto: ‘Leonard, continue
com aquilo que você tem que fazer.’ É uma coisa de compaixão, no
ponto em que eu me encontro. Mais do que em qualquer outro
momento da vida, não tem mais aquela voz dizendo: ‘Você está
fazendo merda.’ O que, afinal de contas, é uma bênção e tanto.”
[1]
Deixei meu hábito pendurado num prego/na velha cabana/onde
passei tanto tempo sentado e tão pouco dormindo./Finalmente
compreendi/que não tenho dom/para Questões Espirituais.
[2]
Toque os sinos que ainda tocam/Esqueça a oferenda
perfeita/Existe uma rachadura em tudo/É assim que entra a luz.
[3]
Nasci assim, não tive escolha/Nasci com o dom de uma voz de
ouro.
[4]
Atente para o beija-flor/Cujas asas não pode ver/Atente para o
beija-flor/Não faça caso de mim.// Atente para a borboleta/Cujos
dias são só três/Atente para a borboleta/Não faça caso de mim.//
Atente para a mente de Deus/Que não precisa existir/Atente para a
mente de Deus/Não faça caso de mim.
[5]
Ele vai pronunciar essas palavras profundas/Como um sábio, um
homem de visão/Embora saiba que na verdade/Não passa da breve
elaboração de um tubo.
[6]
Eis-me aqui, eis-me aqui/Estou pronto, meu Senhor.