Numa hora assim escura
De Paula Dip
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Numa hora assim escura - Paula Dip
Rio de Janeiro, 2016
CIP-Brasil. Catalogação na publicação
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
Dip, Paula
D627n
Numa hora assim escura [recurso eletrônico]: a paixão literária de Caio Fernando Abreu e Hilda Hilst / Paula Dip. - 1. ed. - Rio de Janeiro: J. O, 2017.
recurso digital
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-03-01304-8 (recurso eletrônico)
1. Literatura brasileira. 2. Livros eletrônicos. I. Título.
16-38008
CDD: 869.909
CDU: 821.134.3(81).09
Copyright © Paula Dip, 2016
Copyright © herdeiros de Caio Fernando Abreu, 2016
Copyright © herdeiro de Hilda Hilst, 2016
Capa: Ana C. Bahia
Projeto gráfico: Carolina Falcão
Este livro foi revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Para o caderno de fotos foram utilizados alguns dos fac-símiles das cartas trocadas entre Caio Fernando Abreu e Hilda Hilst. As cartas que Caio escreveu para Hilda são do acervo de Paula Dip e as cartas de Hilda para Caio são do acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa. Na transcrição desse material, alguns trechos foram suprimidos para preservar o direito à privacidade de terceiros.
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.
Reservam-se os direitos desta edição à
EDITORA JOSÉ OLYMPIO LTDA.
Rua Argentina, 171 – 3º andar – São Cristóvão
20921-380 – Rio de Janeiro, RJ
Tel.: (21) 2585-2000
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ISBN 978-85-03-01304-8
Produzido no Brasil
2016
Isso é escrever. Tirar sangue com as unhas. É de uma solidão assustadora. E não importa a forma, não importa a função social, nem nada, não importa que, a princípio, escrever seja apenas uma espécie de autoexorcismo. Essa expressão é fundamental na minha vida.
CAIO FERNANDO ABREU
A minha solução, a vida inteira, foi sempre escrever.
HILDA HILST
A Caetano Veloso porque ele existe.
CAIO FERNANDO ABREU
Sumário
Prólogo
O escritor encontra sua voz
À sombra da figueira
Amor, infância, sóis e sombras
Deus, a morte e o ato de escrever
Cartas
O trem que já vai passar
Epílogo
Legendas e créditos das aberturas de capítulos
Agradecimentos
Referências bibliográficas
Prólogo
No final de 2010, como num passe de mágica, um pacote de cartas que Caio Fernando Abreu enviou a Hilda Hilst, entre os anos de 1971 e 1990, veio parar em minhas mãos. Missivas autênticas, inéditas, datadas, algumas ainda em envelopes selados, que abri com cuidado, como se deles pudessem saltar aquelas silhuetas coloridas de livros infantis. Escritas à mão em papéis amarelados, devorados por cupins, ou datilografadas em sua Olivetti portátil, que ele chamava de Virginia Woolf, sobre folhas finíssimas, brancas ou coloridas, com colagens, desenhos, segredos: joias raras de um tempo em que as pessoas ainda escreviam cartas. Hoje, elas são como pequenos pássaros em extinção.
A escritora e dramaturga Maria Adelaide Amaral, amiga antiga, diz que "Caio era um epistolista, ler suas cartas era como ler o diário dele". De fato: havia dias em que nosso amigo colocava cinco ou seis cartas no correio, para vários cantos do globo, algo impensável hoje, quando remetentes e destinatários ao redor do mundo se encontram instantaneamente, num toque de dedos.
Caio adorava saber tudo sobre a vida de escritores e artistas – Woolf, Rimbaud, Verlaine, Lorca, Bishop –, era leitor atento de livros de correspondência, e sonhava em ter suas cartas publicadas, não fazia disso segredo. Seus textos, mesmo os mais íntimos, se projetavam para o futuro. Ele queria ser lido e amado por tudo o que escreveu. Publiquei a correspondência e as confidências que trocamos no livro Para sempre teu, Caio F., cartas, conversas, memórias de Caio Fernando Abreu (Record, 2009), que está em sua quarta edição, e em 2014 virou filme, premiado no Festival Mix Brasil, em São Paulo.
Pouco tempo depois de lançar o livro, fui procurada pelo poeta baiano Antonio Nahud Júnior, que viveu na Casa do Sol nos anos 1990 e conheceu bem Caio e Hilda. Ele possuía o tal lote de cartas e queria vendê-lo. Contou-me que teriam ido parar em suas mãos depois de uma briga:
[…] Hilda Hilst, dura, abriu a boca sem piedade e Caio partiu de Campinas soltando fogo pelas ventas. A situação era mal resolvida, aparentemente sem cura. Hilda decidiu queimar todas as cartas do (ex) amigo acreditando assim afastá-lo para sempre de sua vida. Dezenas de cartas maravilhosas, confessionais, com contos e poemas inéditos, do final dos anos 1960 até a década de 1990. Implorei que não o fizesse. Quer para você? São suas. Leve-as daqui e bem rápido, antes que eu me arrependa.
Fico com elas, Hilda, se um dia desejá-las de volta, e só pedir.
Nunca o fez. Tenho até hoje essas missivas solitárias, desesperadas, inseguras e delicadas. Caio Fernando Abreu adorava escrever cartas, assinando muitas vezes como Caio F. − era o primo intelectual da Christiane F., drogada e prostituída.
Decidi pagar para ver, comprei as cartas: a encomenda chegou pelo correio em três suaves prestações, maços de seis ou sete cartas em grandes envelopes pardos que abri emocionada e li com o coração disparado. Era como se Caio as tivesse escrito para mim.
Aquele era um cara que eu não conhecia: um guri de 19 anos, meio hippie, indeciso se fazia jornalismo, teatro ou literatura; recém-saído de casa para viver sozinho em São Paulo, trabalhando num projeto de revista, indo morar num sítio em Campinas, trocando ideias e experiências com uma escritora famosa. Era bem diferente do Caio que conheci, aos 30 anos, jornalista conceituado, escritor premiado, finalizando os contos de Morangos mofados (Brasiliense, 1982), que seria seu livro de maior sucesso, com mais de uma dezena de edições.
O conteúdo dessas correspondências revelou a grande amizade e o verdadeiro caso de amor literário entre os dois. Uma história incrível se desenrolou em minha mente! Abria-se a possibilidade de revisitar a juventude de Caio, voltar com ele à lendária Casa do Sol de Hilda Hilst, um sonho.
As cartas ardiam em minhas mãos, tão preciosas que considerei estudá-las num curso de mestrado, defender a tese de que os dois autores desenvolveram em sua escrita uma importante afinidade literária a partir dessa convivência, mas venceu o desejo de editar um novo volume das cartas do meu amigo. Dividi-las com seu público, como ele queria.
Decidi reler os livros de Hilda (alguns, o próprio Caio havia me presenteado) e qual não foi minha alegria quando topei com um antigo exemplar da primeira edição de Tu não te moves de ti (Cultura, 1980). Na primeira página, preso por um clipe enferrujado, estava um bilhetinho: a dedicatória que ele me mandou em 1980.
Ele encerra o bilhete com a frase kisses curtumeiros
, referindo-se à rua do Curtume, endereço da editora onde nos conhecemos, em São Paulo, na véspera dos anos 1980. Escondido em minha biblioteca por 30 anos, o bilhete, como que um recado do Além, se revelou no momento exato em que comecei a escrever este livro. Foi como se o Caio me dissesse como fez tantas vezes:
Vai em frente, Paula Deep.
O escritor encontra sua voz
Chega de me envolver com as pessoas:
agora só quero escrever, escrever potes. Em paz.
CAIO FERNANDO ABREU1
Parecia um sonho: jantares, cafés e licores, conversas ao pé da figueira, discos voadores riscando o céu, astrologia, ciência, filosofia, drama e muita literatura. Tudo podia acontecer naquelas varandas amplas que lembravam o sol se pondo, entre sombras avermelhadas e silhuetas de cães – onde Hilda e seus amigos viviam a reinventar o mundo. As noites na Casa do Sol eram intermináveis. Caio nunca vira nada parecido a esse clima de festa onde tudo era permitido, inclusive o trabalho: um lia, outro escrevia, e todos falavam de sexo, amor e morte com a mesma naturalidade que uma mãe insiste para que o filho coma verduras.
De manhã, Caio ficava preguiçando na cama antes de despertar, mas naquele dia foi diferente. Pulou dos lençóis, lépido, esfregou os olhos, passou as mãos nos cabelos para afastar a ressaca e foi para a frente do espelho, queria ter certeza de que estava mesmo ali. Concentrado, ligou o gravador para registrar o acontecido, disse algumas palavras, rebobinou a fita, clicou no play e ouviu: Muito obrigado, meu Deus.
Então, repetiu muitas vezes, testando sua nova tessitura de barítono e se beliscando para ter certeza de que não sonhava. A garantia de que aquela voz profunda e máscula saía mesmo da própria garganta.
Pura verdade: sua voz tinha mudado. Ele não ia mais sentir vergonha daquele tom esganiçado que produzia cada vez que abria a boca para falar, pesadelo que vivia desde a adolescência. Na sala de aula, pedia a um amigo que respondesse a chamada por ele. Na redação da primeira revista em que trabalhou, passava por antipático, não dizia uma palavra.
De repente, não mais que de repente, articulava as cordas vocais num tom grave e sensual que seria sua marca registrada no futuro. Finalmente, ainda que tardio, o menino encontrou sua voz. Um verdadeiro milagre! Ele escreveu aos pais:
Casa do Sol, 29 de outubro de 1969.
Queridos pai e mãe, esta é uma carta só de boas notícias, portanto preparem-se. Em primeiro lugar A MINHA VOZ MELHOROU! Foi uma mudança completa: estou com uma voz muito bonita, grave, forte, perfeitamente normal. Tudo começou quando Hilda e Dante me deram de presente um GRAVADOR (eles são mesmo maravilhosos). Gravei a minha voz vários dias, várias vezes, pensava em fazer exercícios, melhorar aos poucos. Até que ontem à noite, de repente, a voz MUDOU. Fiquei assustadíssimo, achei que fosse uma melhora repentina e que logo ia voltar a ser como antes. Aí fiquei umas duas horas falando no gravador, e a voz continuava ÓTIMA. Hoje de manhã mostrei à Hilda, ela ficou felicíssima. Dante também, foi uma verdadeira festa. É impressionante a mudança, vocês vão ficar tão bobos quanto eu quando ouvirem. Me sinto felicíssimo, isso resolve praticamente todos os meus problemas, posso fazer o que quiser, falar com quem quiser, ninguém vai rir nem achar esquisito. A única explicação que tenho é que se trata de um autêntico milagre. Amanhã vou num otorrinolaringologista aqui de Campinas, para ver se não há problema de forçar demais a garganta, acontecerem coisas péssimas depois. Acho que não. Me sinto perfeitamente à vontade falando assim. Que pena que vocês não possam ouvir, ficariam alegríssimos. Depois, não é só uma voz normal; é principalmente uma voz bonita, charmosa, sei lá. Fiquem contentes comigo. Graças a Deus tudo melhorou. Vou sábado para o Rio. Escrevi para o Francisco dizendo que eu só tinha cem contos, se ele não se importava de me hospedar por um tempo e até mesmo me pagar algumas refeições até eu arrumar onde morar e receber o primeiro ordenado. Ontem recebi um telegrama dele: Te espero de braços abertos.
Assim, decidi ir. Essa voz nova torna tudo mais fácil, me sinto com coragem para enfrentar qualquer coisa… Francisco e o rapaz que mora com ele, Hilton Papini, são pessoas maravilhosas, e vocês não têm absolutamente com que ficarem preocupados. Tenho certeza que tudo vai sair às mil maravilhas. Nunca tive tanta certeza de alguma coisa.
Recebi também uma carta duma amiga minha do Rio, escritora, Nélida Piñon, dizendo que já encaminhou os contos que havia deixado com ela para os suplementos do Rio e para outras revistas que não sei ainda