As Regras Do Método Sociológico Émile Durkheim
As Regras Do Método Sociológico Émile Durkheim
As Regras Do Método Sociológico Émile Durkheim
fatos, as regras que devem presidir a administração das provas, tudo isso perma-
Émile Durkheim necia indeterminado.
Uma série de circunstâncias felizes, entre as quais é justo destacar a inici-
Durkheim, Émile, 1858-1917. ativa que criou em nosso favor um curso regular de sociologia na Faculdade de
As regas do método sociológico / Émile Durkheim; tradução Paulo Neves; revi- Letras de Bordéus, o qual possibilitou que nos dedicássemos desde cedo ao
são da tradução Eduardo Brandão. – 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. – (Coleção
tópicos)
estudo da ciência social e inclusive fizéssemos dele o objeto de nossas ocupa-
ções profissionais, nos fez sair dessas questões demasiado gerais e abordar um
Título original: Les règles de la méthode sociologique. certo número de problemas particulares. Assim, fomos levados, pela força mes-
ISBN 978-85-336-2364-4 ma das coisas, a elaborar um método que julgamos mais definido, mais exata-
mente adaptado à natureza particular dos fenômenos sociais. São esses resulta-
1. Sociologia – Metodologia I. Título. II. Série.
dos de nossa prática que gostaríamos de expor aqui em conjunto e de submeter
à discussão. Claro que eles estão implicitamente contidos no livro que publica-
INTRODUÇÃO mos recentemente sobre A divisão do trabalho social. Mas nos parece interes-
sante destacá-los, formulá-los à parte, acompanhados de suas provas e ilustra-
Até o presente, os sociólogos pouco se preocuparam em caracterizar e dos de exemplos tomados tanto dessa obra como de trabalhos ainda inéditos.
definir o método que aplicam ao estudo dos fatos sociais. É assim que, em toda Assim poderão julgar melhor a orientação que gostaríamos de tentar dar aos
a obra de Spencer, o problema metodológico não ocupa nenhum lugar; pois a estudos de sociologia.
Introdução à ciência social, cujo título poderia dar essa ilusão, destina-se a
demonstrar as dificuldades e a possibilidade da sociologia, não a expor os pro- CAPÍTULO I
cedimentos que ela deve utilizar. Stuart Mill, é verdade, ocupou-se longamente O QUE É UM FATO SOCIAL?
da questão; mas ele não fez senão passar sob o crivo de sua dialética o que
Comte havia dito, sem acrescentar nada de verdadeiramente pessoal. Um capí- Antes de procurar qual método convém ao estudo dos fatos sociais, im-
tulo do Curso de filosofia positiva, eis praticamente o único estudo original e porta saber quais fatos chamamos assim.
importante que possuímos sobre o assunto. A questão é ainda mais necessária porque se utiliza essa qualificação sem
Essa despreocupação aparente, aliás, nada tem de surpreendente. De fato, muita precisão. Ela é empregada correntemente para designar mais ou menos
os grandes sociólogos cujos nomes acabamos de mencionar raramente saíram todos os fenômenos que se dão no interior da sociedade, por menos que apre-
das generalidades sobre a natureza das sociedades, sobre as relações do reino sentem, com uma certa generalidade, algum interesse social. Mas, dessa manei-
social e do reino biológico, sobre a marcha geral do progresso; mesmo a volu- ra, não há, por assim dizer, acontecimentos humanos que não possam ser cha-
mosa sociologia de Spencer quase não tem outro objeto senão mostrar como a mados sociais. Todo indivíduo come, bebe, dorme, raciocina, e a sociedade tem
lei da evolução universal se aplica às sociedades. Ora, apara tratar essas ques- todo o interesse em que essas funções se exerçam regularmente. Portanto, se
tões filosóficas, não são necessários procedimentos especiais e complexos. Era esses fatos fossem sociais, a sociologia não teria objeto próprio, e seu domínio
suficiente, portanto, pesar os méritos comparados da dedução e da indução e se confundiria com o da biologia e da psicologia.
fazer uma inspeção sumária dos recursos mais gerais de que dispõe a investiga- Mas, na realidade, há em toda sociedade um grupo determinado de fenô-
ção sociológica. Mas as precauções a tomar na observação dos fatos, a maneira menos que se distinguem por caracteres definidos daqueles que as outras ciênci-
como os principais problemas devem ser colocados, o sentido no qual as pes- as da natureza estudam.
Émile Durkheim - As Regras do Método Sociológico (Soc. Geral) 1
Quando desempenho minha tarefa de irmão, de marido ou de cidadão, patriotas, nem a empregar as moedas legais; mas éimpossível agir de outro modo.
quando executo os compromissos que assumi, eu cumpro deveres que estão Se eu quisesse escapar a essa necessidade, minha tentativa fracassaria misera-
definidos, fora de mim e de meus atos, no direito e nos costumes. Ainda que eles velmente. Industrial, nada me proíbe de trabalhar com procedimentos e métodos
estejam de acordo com meus sentimentos próprios e que eu sinta interiormente a do século passado; mas, se o fizer, é certo que me arruinarei. Ainda que, de fato,
realidade deles, esta não deixa de ser objetiva; pois não fui eu que os fiz, mas os eu possa libertar-me dessas regras e violá-las com sucesso, isso jamais ocorre
recebi pela educação. Aliás, quantas vezes não nos ocorre ignorarmos o detalhe sem que eu seja obrigado a lutar contra elas. E ainda que elas sejam finalmente
das obrigações que nos incumbem e precisarmos, para conhecê-las, consultar o vencidas, demonstram suficientemente sua força coercitiva pela resistência que
Código e seus intérpretes autorizados! Do mesmo modo, as crenças e as práti- opõem. Não há inovador, mesmo afortunado, cujos empreendimentos não ve-
cas de sua vida religiosa, o fiel as encontrou inteiramente prontas ao nascer; se nham a deparar com oposições desse tipo.
elas existiam antes dele, é que existem fora dele. O sistema de signos de que me Eis portanto uma ordem de fatos que apresentam características muito
sirvo para exprimir meu pensamento, o sistema de moedas que emprego para especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao
pagar minhas dívidas, os instrumentos de crédito que utilizo em minhas relações indivíduo, e que são dotadas de um poder de coerção em virtude do qual esses
comerciais, as práticas observadas em minha profissão, etc. funcionam indepen- fatos se impõem a ele. Por conseguinte, eles não poderiam se confundir com os
dentemente do uso que faço deles. Que se tomem um a um todos os membros de fenômenos orgânicos, já que consistem em representações e em ações; nem com
que é composta a sociedade; o que precede poderá ser repetido a propósito de Os fenômenos psíquicos, os quais só têm existência na consciência individual e
cada um deles. Eis aí, portanto, maneiras de agir, de pensar e de sentir que através dela. Esses fatos constituem portanto uma espécie nova, e é a eles que
apresentam essa notável propriedade de existirem fora das consciências indivi- deve ser dada e reservada a qualificação de sociais. Essa qualificação lhes con-
duais. vém; pois é claro que, não tendo o indivíduo por substrato, eles não podem ter
Esses tipos de conduta ou de pensamento não apenas são exteriores ao outro senão a sociedade, seja a sociedade política em seu conjunto, seja um dos
indivíduo, como também são dotados de uma força imperativa e coercitiva em grupos parciais que ela encerra: confissões religiosas, escolas políticas, literárias,
virtude da qual se impõem a ele, quer ele queira, quer não. Certamente, quando corporações profissionais, etc. Por outro lado, é a eles só que ela convém; pois
me conformo voluntariamente a ela, essa coerção não se faz ou pouco se faz apalavra social só tem sentido definido com a condição de designar unicamente
sentir, sendo inútil. Nem por isso ela deixa de ser um caráter intrínseco desses fenômenos que não se incluem em nenhuma das categorias de fatos já constituí-
fatos, e a prova disso é que ela sê afirma tão logo tento resistir. Se tento violar as dos e denominados. Eles são portanto o domínio próprio da sociologia. É verda-
regras do direito, elas reagem contra mim para impedir meu ato, se estiver em de que a palavra coerção, pela qual os definimos, pode vira assustar os zelosos
tempo, ou para anulá-lo e restabelecê-lo em sua forma normal, se tiver sido defensores de um individualismo absoluto. Como estes professam que o indiví-
efetuado e for reparável, ou para fazer com que eu o expie, se não puder ser duo é perfeitamente autônomo, julgam que o diminuímos sempre que mostramos
reparado de outro modo. Em se tratando de máximas puramente morais, a cons- que ele não depende apenas de si mesmo. Sendo hoje incontestável, porém, que
ciência pública reprime todo ato que as ofenda através da vigilância que exerce a maior parte de nossas idéias e de nossas tendências não é elaborada por nós,
sobre a conduta dos cidadãos e das penas especiais de que dispõe. Em outros mas nos vem de fora, elas só podem penetrar em nós impondo-se; eis tudo o que
casos, a coerção é menos violenta, mas não deixa de existir. Se não me submeto significa nossa definição. Sabe-se, aliás, que nem toda coerção social exclui ne-
às convenções do mundo, se, ao vestir-me, não levo em conta os costumes cessariamente a personalidade individual1.
observados em meu país e em minha classe, o riso que provoco, o afastamento Entretanto, como os exemplos que acabamos de citar (regras jurídicas,
em relação a mim produzem, embora de maneira mais atenuada, os mesmos morais, dogmas religiosos, sistemas financeiros, etc.) consistem todos em cren-
efeitos que uma pena propriamente dita. Ademais, a coerção, mesmo sendo apenas ças e em práticas constituídas, poder-se-ia supor, com base no que precede, que
indireta, continua sendo eficaz. Não sou obrigado a falar francês com meus com- só há fato social onde há organização definida. Mas existem outros fatos que,
Émile Durkheim - As Regras do Método Sociológico (Soc. Geral) 2
sem apresentar essas formas cristalizadas, têm a mesma objetividade e a mesma mes, as conveniências, forçamo-las ao trabalho, etc., etc. Se, com o tempo, essa
ascendência sobre o indivíduo. É o que chamamos de correntes sociais. Assim, coerção cessa de ser sentida, é que pouco a pouco ela dá origem a hábitos, a
numa assembléia, os grandes movimentos de entusiasmo ou de devoção que se tendências internas que a tornam inútil, mas que só a substituem pelo fato de
produzem não têm por lugar de origem nenhuma consciência particular. Eles nos derivarem dela. É verdade que, segundo Spencer, uma educação racional deve-
vêm, a cada um de nós, de fora e são capazes de nos arrebatar contra a nossa ria reprovar tais procedimentos e deixar a criança proceder com toda a liberda-
vontade. Certamente pode ocorrer que, entregando-me a eles sem reserva, eu de; mas como essa teoria pedagógica jamais foi praticada por qualquer povo
não sinta a pressão que exercem sobre mim. Mas ela se acusa tão logo procuro conhecido, ela constitui apenas um desideratum pessoal, não um fato que se
lutar contra eles. Que um indivíduo tente se opor a uma dessas manifestações possa opor aos fatos que precedem. Ora, o que torna estes últimos particular-
coletivas: os sentimentos que ele nega se voltarão contra ele. Ora, se essa força mente instrutivos é que a educação tem justamente por objeto produzir o ser
de coerção externa se afirma com tal nitidez nos casos de resistência, é porque social; pode-se portanto ver nela, como que resumidamente, de que maneira
ela existe, ainda que inconsciente, nos casos contrários. Somos então vítimas de esse ser constituiu-se na história. Essa pressão de todos os instantes que sofre a
uma ilusão que nos faz crer que elaboramos, nós mesmos, o que se impôs a nós criança é a pressão mesma do meio social que tende a modelá-la à sua imagem e
de fora. Mas, se a complacência com que nos entregamos a essa força encobre do qual os pais e os mestres não são senão os representantes e os intermediários.
a pressão sofrida, ela não a suprime. Assim, também o ar não deixa de ser pesa- Assim, não é sua generalidade que pode servir para caracterizar os fenô-
do, embora não sintamos mais seu peso. Mesmo que, de nossa parte, tenhamos menos sociológicos. Um pensamento que se encontra em todas as consciências
colaborado espontaneamente para a emoção comum, a impressão que sentimos particulares, um movimento que todos os indivíduos repetem nem por isso são
é muito diferente da que teríamos sentido se estivéssemos sozinhos. Assim, a fatos sociais. *Se se contentaram com esse caráter para defini-los, é que os
partir do momento em que a assembléia se dissolve, em que essas influências confundiram, erradamente, com o que se poderia chamar de suas encarnações
cessam de agir sobre nós e nos vemos de novo a sós, os sentimentos vividos nos individuais. O que os constitui são as crenças, as tendências e as práticas do
dão a impressão de algo estranho no qual não mais nos reconhecemos. Então grupo tomado coletivamente; quanto às formas que assumem os estados coleti-
nos damos conta de que sofremos esses sentimentos bem mais do que os produ- vos ao se refratarem nos indivíduos, são coisas de outra espécie.* O que de-
zimos. Pode acontecer até que nos causem horror, tanto eram contrários ànossa monstra categoricamente essa dualidade de natureza é que essas duas ordens de
natureza. É assim que indivíduos perfeitamente inofensivos na maior parte do fatos apresentam-se geralmente dissociadas. Com efeito, algumas dessas manei-
tempo podem ser levados a atos de atrocidade quando reunidos em multidão. ras de agir ou de pensar adquirem, por causa da repetição, uma espécie de
Ora, o que dizemos dessas explosões passageiras aplica-se identicamente aos consistência que as precipita, por assim dizer, e as isola dos acontecimentos
movimentos de opinião, mais duráveis, que se produzem a todo instante a nosso particulares **que as refletem**. Elas assumem assim um corpo, uma forma
redor, seja em toda a extensão da sociedade, seja em círculos mais restritos, sensível que lhes é própria, e constituem uma realidade sui generis, muito distinta
sobre assuntos religiosos, políticos, literários, artísticos, etc. dos fatos individuais que a manifestam. O hábito coletivo não existe apenas em
Aliás, pode-se confirmar por uma experiência característica essa definição estado de imanência nos atos sucessivos que ele determina, mas se exprime de
do fato social: basta observar a maneira como são educadas as crianças. Quan-
do se observam os fatos tais como são e tais como sempre foram, salta aos olhos * "Tanto não é a repetição que os constitui, que eles existem fora dos casos particu-
que toda educação consiste num esforço contínuo para impor à criança maneiras lares nos quais se realizam. Cada fato social consiste ou numa crença, ou numa tendência,
de ver, de sentir e de agir às quais ela não teria chegado espontaneamente. Des- ou numa prática, que é a do grupo tomado coletivamente e que é muito distinta das formas
em que ela se refrata nos indivíduos." (Revue philosophique, tomo XXXVI, jan./jun. 1894,
de os primeiros momentos de sua vida, forçamolas a comer, a beber, a dormir p. 470.)
em horários regulares, forçamo-las à limpeza, à calma, à obediência; mais tarde, ** "em que elas se encarnam todo dia". (R.P., p. 470.)
forçamo-las para que aprendam a levar em conta outrem, a respeitar os costu- *** Frases que não figuram no texto inicial.
* "Ora, a vida social, no estado de liberdade, é infinitamente móvel e fugaz. Ela não
está isolada, pelo menos imediatamente, dos fenômenos particulares nos quais se encarna,
e estes diferem de uma vez a outra, de um caso a outro. São correntes". (R.P., p. 497.)
** Elemento que não figura no texto inicial.
*** "apresentam um grau suficiente de consolidação". (R.P., p. 497.)