Durkheim - O Que É Fato Social

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 7

r

XXXIV AS RRGRAS DO METODO SOC!OLOGICO

Spencer quase nao tern outro objeto senao mostrar como CAPITULO I
a lei da evolw;;ao universal se aplica as sociedades. Ora,
para tratar essas quest<)es filos6ficas, nao sao necessarios
0 QUE E UM FATO SOCIAL?
procedimentos especiais e cornplexos. Era suficiente, por-
tanto, pesar OS meritOS comparados da dedU\;aO e cia in-
clU\;aO e fazer uma inspe<,:ao smmiria dos recursos mais
gerais de que clispoe a investigac;;ao sociol6gica. Mas as
precauc;;oes a tomar na observa\;ao dos fatos, a maneira
como os principais problemas devem ser colocados, o
sentido no qual as pesquisas devem ser dirigiclas , as prati-
cas especiais que podem permitir chegar aos fatos, as re-
gras que clevem presidir a administrac;;ao das provas, tuclo
isso permanecia indeterminado.
Uma serie de circunstancias felizes, entre as quais e
justo destacar a iniciativa que criou em nosso favor um Antes de procurar qual metodo convem ao estudo dos
curso regular de sociologia na Faculclade de Letras de fatos sociais, importa saber quais fatos charnamos assim.
Bordeus, o qual possibilitou que nos cleclicassemos desde A questao e aincla mais necessaria porque se utiliza
cedo ao estudo cia ciencia social e inclusive fizessemos essa qualificac;;ao sem muita precisao. Ela e empregada
dele o objeto de nossas ocupac;;oes profissionais, nos fez correntemente para designar mais ou menos todos os fe-
sair dessas questoes demasiado gerais e abordar um certo nomenos que se ciao no interior da sociedacle, por menos
numero de problemas particulares. Assim, fomos levaclos, que apresentem, com uma certa generalidade, algurn inte-
pela for\;a mesma das coisas, a elaborar um metodo que resse social. Mas, dessa maneira, nao ha, por assim clizer,
julgamos mais definido, mais exatamente adaptado a na- acontecimentos hurnanos que nao possam ser chamaclos
tureza particular dos fenomenos sociais. Sao esses resulta- sociais. Todo individuo come, bebe, dorme, raciocina, e a
dos de nossa pratica que gostariamos de expor aqui em sociedade tem todo o interesse em que essas fun\;6es se
conjunto e de submeter a discussao. Claro que eles estao exer\;am regularrnente. Portanto, se esses fatos fossem so-
implicitamente contidos no livro que publicamos recente- ciais, a sociologia nao teria objeto pr6prio, e seu dominio
mente sobre A divisao do trabalho social. Mas nos parece se confuncliiia com o da biologia e cia psicologia.
interessante destaca-los, formula-los a parte, acompanha- Mas, na realidade, ha em toda sociedade um grupo
dos de suas provas e ilustraclos de exemplos tomados tan- determinaclo de fen6menos que se distinguem por ca-
to dessa obra como de trabalhos ainda ineditos. Assim racteres clefinidos claqueles que as outras ciencias cia n(l-
poderao julgar melhor a orientac;;ao que gostariamos de tureza estudam.
tentar dar aos estudos de sociologia. Quando desempenho minha tarefa de irmao, de ma-
rido ou de cidadao, quando executo os compromissos
2 AS l<EGNAS DO METOJJO SOC10LOGJCO 0 Q UE E UM FA TO SOOAU 3

que assumi, e u cumpro deveres que estlo definidos, fora eu o expie, se nao p uder ser reparado de outro mo do. Em
de mim e de meus atos, no direito e nos costumes. Ainda se tratando de maximas puramente marais, a consciencia
que e les estejam de acordo com me us se ntimentos pr6- ptiblica reprime tod o ato que as ofenda atraves da vigilan-
prios e qu e e u sinta interiormente a rea lidade deles , esta cia que exerce sobre a conduta dos cic!adaos e das penas
nao deixa de ser o bjetiva; pois nao fui eu q ue os fiz , mas e s peciais d e qu e clispoe . Em outros casos, a coe r<;a o e
o s rece bi p e la educa <;ao . Alia s, qu a ntas vezes nao no s menos vio lenta, mas nao deixa de existir. Se nao me sub-
ocurre igno ra rmos o detalhe das o briga<;oes que nos in- meta as conven<;oes do mundo , se, ao vestir-me , nao le vo
cumbem e precisarmos , para conhece-las, consultar u C6- em conta os costumes o bservaclos em meu pais e em mi-
digo e seus interpretes autorizados! Do mesmo mix!o , as nha classe , o riso q ue p rovoco, o afastamento em rela<;ao
cren<;as e as praticas de sua vida religiosa, o fi e! as encon- a mim produ zem, embo ra de maneira mais atenu ada , os
trou inteiramente prontas ao nascer; se elas existiam antes mesmos e fe itos qu e uma pena propriamente dita . Ade-
dele , e que existem fora dele. 0 sistema de signos de que mais, a coer<;ao, mesmo senclo apenas indireta, continua
me sirvo pa ra exprimir meu p ensame nto, o sistema de sendo eficaz. Nao so u obrigaclo a falar frances com meus
moedas que e mprego para pagar minhas dlvidas, os ins- compatriotas , ne m a e mpregar as mo edas lega is; mas e
trumentos de cre ditu que utilizo e m minhas re la<;<)es co- imposslvel agir de outro modo. Se eu quisesse esca par a
me rciais, as praticas observadas em minha p rofissao , etc. essa nece ssidade , minha tentativa fracassari a miseravel-
funcio nam indepe ndentemente do uso que fa<;o deles. Que mente. Industria l, nada me proibe de trabalhar com pro-
se tomem um a um todos os membros de q ue e composta cedimentos e metodos do seculo passad o; mas, se 0 fizer,
a sociedade; o que precede podera ser repetido a prop6si- e certo que me arruinarei. Ainda que , de fato , eu possa li-
to de cada urn deles. Eis a!, portanto, maneiras de agir, de bertar-me dessas regras e viola-las co m sucesso, isso ja-
pensar e de sentir que apresentam essa notavel proprieda- mais ocorre sem q ue e u seja obrigado a lutar contra elas.
de de existirem fora das consciencias individuais. E ainda que elas sejam finalmente vencidas, demonstram
Esses tipos de conduta ou de pe nsa me nto nao ape- suficientemente sua for<;a coercitiva pe la resistencia que
nas sao exteriores ao indivlduo, co mo tambem sao dota- opoem. Nao ha inovador, mesmo afo rtunad o, cujos e m-
dos de uma forp imperativa e coercitiva e m virtudc cia preendimentos n ao venham a deparar co m opos i<;oes
qual se impoem a ele, quer ele q ue ira , qu e r nao. Certa- desse tipo .
me nte, quando me co nformo voluntariamente a ela , essa ' Eis portanto uma o rde m de fatos que apresentam ca-
coen;,:ao nao se fa z o u pouco se faz sentir, sendo inutil. racterlsticas muito esp eciais: consiste m e m man e iras de
Ne m p o r isso ela deixa de ser urn ca rate r intrinseco des- agir, de pensar e de sentir, exteriores ao individuo, e que
ses fatos, e a prova disso e que ela se afirm a tio logo ten- sao dotadas de um poder de coer<;ao em virtude do qual
to resistir. Se tento violar as regras do direito , elas reagem esses fatos se impoe m a ele. Por conse guinte, eles nao
contra mim para impedir meu ato , se estive r em tempo, poderiam se confundir com os fenome nos o rganicos, ja
ou para anula-lo e restabelece-lo em su a forma normal, se que consistem e m representa<;oes e em a<;oes; nem com
tiver sido e fe tuad o e for reparavel, o u para fazer com que os fenomenos p siq uicos , os quais s6 te m existen cia na
r

4 AS REGI?AS DO METODO SOC!OLOGJCO 0 QUE E UM F'ATO SOC/AU 5,

consciencia individual e atraves deJa. Esses fatos consti- Iugar de origem nenhuma consciencia particular. Eles nos
tuem portanto uma especie nova, e e a eles que deve ser vern, a cacla urn de n6s, de fora e sao capazes de nos arre-
dada e reservada a qualifica~ao de sociais. Essa qualifica- batar contra a nossa vontade. Certamente pocle ocorrer
c;ao lhes convem; pois e claro que, nao te ndo 0 individuo que, entregando-me a eles sem reserva, eu nao sinta a
por substrata, eles nao podem ter outro senao a socieda- pressao que exercem sobre mim. Mas ela se acusa tao lo-
de, seja a sociedade politica em seu conjunto, seja urn dos go procuro lutar contra eles. Que urn individuo tente se
grupos parciais que ela encerra: confissoes religiosas , es- opor a uma clessas manifestac;oes coletivas: os sentimentos
colas politicas, literarias, corpora~oes profissionais, etc. que ele nega se voltarao contra ele. Ora, se essa forc;a de
Por outro !ado, e a eles s6 que ela convem; pois a palavra coen;:ao externa se afirma com tal nitidez nos casos de re-
social s6 tern sentido definido com a condi~ao de desig- sistencia, e porque ela existe, ainda que inconsciente, nos
nar unicamente fen6menos que nao se incluem e m ne- casos contrarios. Somos entao vitimas de uma i!usao que
nhuma das categorias de fatos ja constituidos e denomi- nos faz crer que elaboramos, n6s mesmos, o que se imp6s
nados. Eles sao portanto o domlnio proprio da sociologia. a n6s de fora. Mas, se a complacencia com que nos entre-
E verdade que a palavra coer~ao, pela qual os definimos, gamos a essa forc;a encobre a pressao sofrida, ela nao a
pode vir a assustar os zelosos defensores de urn individua- suprime. Assim, tambem o ar nao deixa de ser pesado ,
lismo absoluto. Como estes professam que o indivlduo e embora nao sintamos mais seu peso. Mesmo que, de nos-
perfeitamente aut6nomo, julgam que o diminuimos sem- sa parte, tenhamos colaborado espontaneamente para a
pre que mostramos que ele n ao depende apenas de si emoc;ao comum, a impressao que sentimos e muito clife-
mesmo. Sendo hoje incontestavel, porem, que a maior rente da que terlamos senticlo se estivessemos sozinhos.
parte de nossas ideias e de nossas tendencias nao e ela- Assim, a partir do momento em que a assembleia se dis-
borada por n6s, mas nos vern de fora , elas s6 podem pe- solve, em que essas influencias cessam de agir sobre n6s e
netrar em n6s impondo-se; eis tudo o que significa nossa nos vemos de novo a s6s, os sentimentos viviclos nos ciao
defini~ao. Sabe-se, ali<'is, que nem toda coer~ao social ex- a impressao de algo estranho no qual nao mais nos reco-
clui necessariamente a personalidade individuaJI. nhecemos. Entao nos clamos conta de que sofremos esses
Entretanto, como os exemplos que acabamos de citar sentimentos bern mais do que os procluzimos. Pode acon-
(regras juridicas, morais, dogmas religiosos, sistemas finan- tecer ate que nos causem horror, tanto eram contrarios a
ceiros, etc .) consistem todos em cren~as e em praticas nossa natureza. E assim que inclivlcluos perfeitamente inoc
constituldas, poder-se-ia supor, com base no que precede, fensivos na maior parte do tempo podem ser levados a
que s6 ha faro social onde ha organizac;ao definida. Mas atos de atrocidade quando reunidos em multiclao. Ora, o
existem outros fatos que, sem apresentar essas formas cris- que dizemos dessas explos6es passageiras aplica-se iclenti-
talizadas, tern a mesma objetividade e a mesma ascenden- camente aos movimentos de opiniao, mais cluraveis, qt~e
cia sobre o individuo. E o que chamamos de correntes so- se procluzem a toclo instante a nosso reclor, seja em toda a
ciais. Assim, numa assembleia, os grandes movimentos de extensao cla sociedacle, seja em drculos mais restritos, so-
entusiasmo ou de devoc;ao que se produzem nao tern por l)re assuntos religiosos, politicos, literarios, artlsticos, etc.
6 AS RJ::GRAS DO METODO SOC10LOG!CO 0 QUE E UM FA TO SOCIAL? 7

Alias, pode-se confirmar par uma experie ncia carac- sao fatos sociais. *Se se contentaram com esse carater para
terlstica essa defini~a o do fato social: basta observar a ma- defini-los, e que os confundiram, erradamente, com o que
neira como sao educadas as crian~as. Quando se obser- se poderia chamar de suas encarna~oes individuais. 0 que
vam os fatos tais como sao e tais como sempre foram , sal- os constitui sao as cren~as , as tendencias e as praticas do
ta aos o lhos que toda educa ~ao co nsiste num es for~o grupo to rnado coletivamente; quanto as formas que assu-
continuo para impor a crian~a maneiras de ver, de sentir mem os estados coletivos ao se refratarem nos indivlduos,
e de agir as quais ela nao teria chegado espontaneamen- sao coisas de outra especie.* 0 que demonstra categorica-
te. Desde os prime iros momentos de sua vida, for\=amo- mente essa dualidade de natureza e que essas duas ordens
las a comer, a beber, a dormir em horarios regulares, for- de fatos apresentam-se geralmente dissociadas. Com efei-
\=a rno -l as a limpeza, a calma , a obediencia ; mais tarde , to , algumas dessas maneiras de agir ou de pensar adqui-
for~amo-las para que aprendam a leva r em conta outrem, rem, por causa cia rep eti ~ao , uma especie de consistencia
a respeitar os costumes, as conveniencias, for~amo-las ao que as precipita, por assim dizer, e as isola dos aconteci-
trabal ho, etc., etc. Se, como tempo, essa coer~ao cessa de mentos particulares **que as refletem••. Elas assumem as-
ser sentida, e que pouco a pouco ela cia origem a habitos, sim urn corpo, uma forma sensivel que lhes e propria, e
a te ndencias inte rnas que a to rnam inutil, mas que so a constituem uma realidade sui generis, muito distinta dos
substituem pelo fato de derivarem deJa. E verdade que, fatos individuais que a manifestam. 0 habito coletivo nao
segundo Spencer, uma educa~ao racional deve ria repro- existe ape nas em estado de imanencia nos atos sucessivos
var tais procedimentos e deixar a crianp proceder com que ele determina, mas se exprime de uma vez por toclas,
toda a libe rdade; mas como essa teoria pedagogica jamais por urn privilegio cujo exemplo nao encontramos no reino
foi praticada por qualquer povo conhecido, e la constitui hiologico, numa formula que se repete de boca em boca,
apenas urn desideratum pessoal, nao urn fato que se pas- que se transmite pela educa~;ao , que se fixa atraves cia es-
sa opor aos fatos que precedem . Ora, o que to rna estes crita. Tais sao a origem e a natureza das regras juridicas,
ultimos particularmente instrutivos e que a educa~ao tern morais, dos aforismos e dos ditos p o pulares, dos artigos
justamente por objeto produzir o ser social; pode-se por- de fe em que as seitas religiosas ou politicas condensam
tanto ver nela , como que resumidame nte, de que maneira suas c ren~as, dos c6digos de gosto que as escolas literarias
esse ser constituiu-se na historia. Essa pressao de todos os cstabelecem, etc. ***Nenhuma dessas maneiras de agir ou
instantes que sofre a crian\=a e a pressao mesma do meio de pensar se acha por inteiro nas aplica~oe s que os pat'ti-
social que tende a modela-la a sua imagem e do qual os
pais e os mestres nao sao senao os representantes e os in- • "Tanto nao e a repeti~,:ao que os constitu i, que eles existem fora
termediarios. dos casos particulares nos quais se realizam. Cada fato social consiste
ou numa cren~a, ou numa tendencia , o u numa pratica, que e a do
Assim, nao e sua generalidade que pode setvir para grupo tomado co letivamente e que e muito distima das formas em que
caracterizar os fen6menos sociologicos. Urn pensamento cia se refrata nos individuos." (Revue philosophique, tomo XA.'"XVII,
que se encontra em todas as consciencias particulares, urn 1:111./jun. 1894, p. 470.)
" "em que elas se encarnam todo dia ". (R.P., p. 470.)
movimento que todos os individuos repetem nem por isso ••• Frases que nao figuram no texto inicial.
8 AS REGRAS DO METODO SOCIOLOGJCO I) QUE E liM FA 1D SOCIAL? 9

culares fazem delas, ja que elas podem inclusive existir rrivaclas, elas tern claramente algo de social, ja que repro-
sem serem atualmente aplicadas. ••• duzem em parte um modelo coletivo; mas cada uma delas
Claro que essa dissociac;:ao nem sempre se apresenta depende tambem, e em larga medida , da constituic;:ao or-
com a mesma nitidez. Mas basta que ela exista de uma ma- ganico-psiquica do individuo, das circunstancias particu-
neira incontestavel nos casos importantes e numerosos que lares nas quais ele esta situado. Portanto elas nao sao fe-
acabamos de mencionar, para provar que 0 fato social e nomenos propriamente sociol6gicos. Pertencem simulta-
distinto de suas repercussoes individuais. Alias, mesmo que neamente a dois reinos; poderiamos chama-las sociopsi-
ela nao seja imediatamente dada a observac;:ao, pode-se quicas. Essas manifestac;:oes interessam o soci6logo sem
com freqi.iencia realiza-la com o auxilio de certos artif!cios constituirem a materia imediata da sociologia. No interior
de metoda*; e inclusive indispensavel proceder a essa ope- do organismo encontram-se igualmente fenomenos dena-
rac;:ao se quisermos separar o fato social de toda mistura tureza mista que ciencias mistas, como a quimica biol6gica,
para observa-lo no estado de pureza*. Assim, ha certas cor- cstudam.
rentes de opiniao que nos impelem, com desigual intensi- Mas , dirao, um fenomeno s6 pode ser coletivo se for
dade, conforme os tempos e os lugares, uma ao casamen- comum a todos os membros da sociedade ou, pelo me-
to, por exemplo, outra ao suicidio ou a uma natalidade nos, a maior parte deles, portanto, se for geral. Certamen-
mais ou menos acentuada , etc. *Trata-se, evidentemente te, mas, se ele e geral, e porque e coletivo (isto e, mais ou
de fatos sociais. * A prime ira vista, eles parecem insepara~ menos obrigat6rio), o que e bern diferente de ser coletivo
veis das formas q'ue assumem nos casos particulares. Mas a por ser geral. Esse fenomeno e urn estado do grupo, que
estatistica nos fornece o meio de isola-los. Com efeito, eles se repete nos inclividuos porque se impoe a eles. Ele esta
sao representados, nao sem exatidao, pelas taxas de natali- em cada parte porque esta no todo, o que e diferente de
dade, de nupcialidade, de suicidios, ou seja, pelo numero estar no todo por estar nas partes. Isso e sobretudo evi-
que se obtem ao dividir a media anual total dos nascimen- dente nas crenc;:as e praticas que nos sao transmitidas in-
tos, dos casamentos e das mortes voluntarias pelo total de teiramente prontas pelas gerac;:oes anteriores; recebemo-
homens em idade de se casar, de procriar, de se suicidarz. las e adotamo-las porque, sendo ao mesmo tempo uma
Pois, como cada uma dessas cifras compreende todos os obra coletiva c uma obra secular, elas estao investidas de
casos particulares sem distinc;:ao, as circunstancias indivi- uma particular autoridade que a educac;:ao nos ensinou a
duais que podem ter alguma participac;:ao na produc;:ao do reconhecer e a respeitar. Ora, cumpre assinalar que a
fenomeno neutralizam-se mutuamente e , portanto, nao imensa maioria dos fenomenos sociais nos chega dessa
contribuem para determina-lo. *0 que esse fato exprime e forma. Mas, ainda que se deva, em parte, a nossa colabo-
um certo estado da alma coletiva. rac;:ao direta, o fato social e da mesma natureza. Um senti-
Eis o que sao os fenomenos sociais, desembarac;:aclos mento coletivo que irrompe numa assembleia nao expx;i-
de todo elemento estranho.* Quanto as suas manifestac;:oes me simplesmente o que havia de comum entre todos os
sentimentos individuais. Ele e algo completamente distin-
* Frases que nao figuram no texto inicial. ro , conforme mostramos. E uma resultante da vida co-
10 AS REG'RAS DO METOD O SOCIOLOG'ICO 0 QUE f: UM FA TO SOCIA L? 11

mum , das a<;oe s e re a<;oes qu e se estabelecem entre as outra forma cia primeira; pois, se uma maneira de se con-
consciencias individuais; e, se re p e rcute em cada uma de- duzir, qu e existe exte ri o rme nte as con sciencias indivi-
las, e e m virtude da energia social que ele deve precisa- duais, se gene raliza, ela s6 p ode faze-lo impondo-se3.
me nte a sua orige m coletiva. Se to dos ns cora c;:oes vibram Entreta nto, pncler-se-ia pe rgunta r se essa definic;:ao e
em unissono, n ao e p o r causa d e uma cnncorclancia e s- completa . Com efeito , os fatos que nos forneceram su a ba-
pnnta nea e preesta be lecida; e q ue uma m esma for<;a os se sao, to dos eles, maneiras de jazer; sao de ordem fisio-
move no mesmn se ntido. Cada urn e arrastadn p or todos. l6gica. Ora, ha tambem maneiras de ser coletivas, isto e,
Po d e mos assim re presentar-nos, de mane ira precisa , fatos sociais de ordem anat6mica ou m orfol6gica. A socio-
o do minio da sociologia. Ele compree nde apenas um gru- lo gia nao p o d e desinteressar-se do qu e cliz respe ito ao
p o d e te rminado d e fe nomenos. Um fato soc ial se reco- substrato cia vida coletiva. No e ntanto, o numero e a natu-
nhece p elo poder de coer<;ao exte rna que cxerce o u e ca- reza das partes elementares de que se compc)e a socieda-
paz d e exercer so bre os individu o s; e a pre se n c;:a desse de, a maneira como elas estao dispostas, o grau de coales-
· pode r se reconhece, por sua vez, seja pela existe ncia de cencia a qu e chegaram, a distribuic;:ao d a popula<;ao p ela
a lguma san<;an d e te rminada , seja p e la resisten cia que o superficie do te rrit6rio, o nume ro e a natureza das vias de
fato o p oe a toda te nta tiva individual de fa zer-lhe violen- comunicac;:ao, a forma d as habitac;:oes, e tc. nao p a recem
cia . *Contudo, pnde-se defini-lo tambem pela clifusao que capazes , num primeiro exame , de se redu zir a modos d e
apresenta no inte ri or do grupo, contanto que, conforme agir, de se ntir ou de pensar.
as observa<;oes precede ntes, tenha-se o cuiclado d e acres- Mas , e m primeiro Iuga r, esses div e rsos fen6m e n o s
ce nta r como segunda e essen cia l ca racteris ti ca que ele apresentam a mesma caracte ristica que nos ajudou a defi-
existe incle pende ntemente das formas individuais que as- nir os outros. Essas mane iras de ser se impoem ao indivi-
sume ao clifundir-se.* Este (rltimo criterio, em certos casos, duo tanto q uanto as m a ne iras de fazer d e que fala mos.
e inclusive mais facil de aplicar qu e o precede nte . De fa- De fato, qu ando se que r conhecer a for ma como uma so-
to, a coerc;:ao e facil de constatar q uando se traduz exterior- ciedade se divide politicamente, como essas divisoes se
me nte por alguma rea<;ao direta d a sociedade, como e o compoem , a fu sao m a is o u menos com ple ta qu e existe
caso e m rela<;ao ao direito, a mo ral, as cren<;as, aos costu- entre elas, n an e por m e io d e uma ins p e<;ao mate ria l e
por observac;:6es geograficas que se p ode chegar a isso;
mes, inclusive as m oclas. Mas , qu ando e ape nas indireta,
pois essas divisc) es sao mo rais, ainda que te nham alguma
como a que exerce uma organizac;:ao econ6mica, ela nem
hase na natureza fisica . E somente atraves do direito p (r-
sempre se deixa p e rceber tao bem . A generaliclad e com-
hlico que se p o cle estuda r essa organizac;:ao, pois e esse
binacla com a obj etividacle pocle m e nta o ser m a is faceis
direito que a d e termina, assim como d e te rmina nossas re-
de esta belecer. Alias, essa segunda d efini<;ao nao e senao
Lt <,· c) es clo m es ticas e civicas. Portanto, e la nao e m e n~ s
• "Pode-se defini-l o igualmente: uma maneira d e pensar ou de
(1hrigat6ria. Se a populac;:ao se amontoa nas cidades e m
agir que e geral na exrensao do grupo, mas que existe independente- Vl'Z de se dis persar nos ca mpos, e que h a uma corre nte
mente de suas expressoes individuais." (R.P. , p. 472.) dl' opiniao , u m movime nto coletivo que impoe aos indivi-
12 AS RECRAS DO METODO SOCIOLOCJCO 0 QUE f:: UM FA/0 SOCIAL? 13

duos essa concentra<;ao. Nao podemos escolher a forma estruturais mais caracterizados as correntes "!ivres da vida
de nossas casas, como tampouco a de nossas roupas; pe- social ainda nao submetidas a nenhum molde definido. f:
lo menos, uma e obrigat6ria na mesma medida que a ou- que entre os primeiros e as segundas apenas ha diferen-
tra. As vias de comunica<;ao determinam de maneira im- <;as no grau de consolida<;ao que apresentam. Uns e ou-
periosa o sentido no qual se fazem as migra<;oes interio- tras sao apenas vida mais ou menos cristalizada. Claro
res e as trocas, e mesmo a intensidade dessas trocas e que pode haver interesse em reservar o nome de morfol6-
dessas migra<;oes, etc., etc. Em consequencia, seria, quan- gicos aos fatos sociais que concernem ao substrato social,
do muito, o caso de acrescentar a lista dos fen6menos mas com a condi<;:ao de nao perder de vista que eles sao
que enumeramos como possuidores do sinal distintivo do cia mesma natureza que os outros. Nossa defini<_:ao com-
fato social uma categoria a mais; e, como essa enumera- preendera portanto todo o definido se dissermos: EJato
~:ao nao tinha nada de rigorosamente exaustivo, a adi\~ao social toda maneira de fazer, fixada au nao, suscetivel de
nao seria indispensavel. exercer sohre o individuo uma coerr;ao exterior; ou ainda,
Mas ela nao seria sequer proveitosa; pois essas ma- toda maneira de fazer que egeral na extensao de uma so-
neiras de ser nao sao senao maneiras de fazer consolida- ciedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existencia
das. A estrutura politica de uma sociedade nao e senao a propria, independente de suas man~festar;oes individuais 4 .
maneira como os diferentes segmentos que a compoem
se habituaram a viver uns com os outros. Se suas rela<;:6es
sao tradicionalmente pr6ximas, os segmentos tendem a se
confundir; caso contrario, tendem a se distinguir. 0 tipo
de habita<;ao que se impoe a n6s nao e senao a maneira
como todos ao nosso redor e, em parte, as gera~:oes ante-
riores se acostumaram a construir suas casas. As vias de
comunica~:ao nao sao senao o leito escavado pela propria
corrente regular das trocas e das migra<;:oes , correndo
sempre no mesmo sentido, etc. Certamentc, se os feno-
menos de ordem morfol6gica fossem os (micos a apresen-
tar essa fixidez, poderfamos pensar que eles constituem
uma especie a parte. Mas uma regra jurldica e urn arranjo
nao menos permanente que urn modelo arquitet6nico, e
no entanto e urn fato fisiol6gico. Uma simples maxima
moral e, seguramente, mais maleavel; porem ela possui
formas bem mais rlgidas que um simples costume profis-
sional ou que uma moda. Ha assim toda uma gama de
nuances que, sem solu<;:ao de continuidade, liga os fatos

Você também pode gostar