Devotos 20 Anos - Hugo Montarroyos
Devotos 20 Anos - Hugo Montarroyos
Devotos 20 Anos - Hugo Montarroyos
Devotos 20 anos
Hugo Montarroyos
Apoio
Copyright © 2010 Hugo Montarroyos
COLEÇÃO TRAMAS URBANAS (LITERATURA DA PERIFERIA BRASIL) A ideia de falar sobre cultura da periferia quase sempre
organização esteve associada ao trabalho de avalizar, qualificar ou
HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA
autorizar a produção cultural dos artistas que se encon-
consultoria
ECIO SALLES tram na periferia por critérios sociais, econômicos e cul-
produção editorial turais. Faz parte dessa percepção de que a cultura da
CAMILLA SAVOIA
periferia sempre existiu, mas não tinha oportunidade de
projeto gráfico
CUBICULO ter sua voz.
ilustrações da capa e da quarta capa a partir de fotos de
MICHELE SOUZA
No entanto, nas últimas décadas, uma série de trabalhos
vem mostrar que não se trata apenas de artistas procu-
DEVOTOS 20 ANOS
rando inserção cultural, mas de fenômenos orgânicos,
produtor gráfico
SIDNEI BALBINO profundamente conectados com experiências sociais
designer assistente específicas. Não raro, boa parte dessas histórias assume
DANIEL FROTA
contornos biográficos de um sujeito ou de um grupo mobi-
revisão
BEATRIZ BRANQUINHO lizados em torno da sua periferia, suas condições socioe-
CAMILLA SAVOIA conômicas e a afirmação cultural de suas comunidades.
ELISA ROSA
revisão tipográfica Essas mesmas periferias têm gerado soluções originais,
CAMILLA SAVOIA
criativas, sustentáveis e autônomas, como são exemplos
M765d a Cooperifa, o Tecnobrega, o Viva Favela e outros tantos
Montarroyos, Hugo
Devotos, 20 anos / Hugo Montarroyos. – Rio de Janeiro: Aeroplano, 2010.
casos que estão entre os títulos da primeira fase desta
il. – (Tramas urbanas) coleção.
aeroplano@aeroplanoeditora.com.br
www.aeroplanoeditora.com.br
Na virada do século XX para o XXI, a nova cultura da
periferia se impõe como um dos movimentos culturais
de ponta no país, com feição própria, uma indisfarçá-
vel dicção proativa e, claro, projeto de transformação
social. Esses são apenas alguns dos traços de inovação
nas práticas que atualmente se desdobram no pano-
rama da cultura popular brasileira, uma das vertentes
mais fortes de nossa tradição cultural.
Ainda que a produção cultural das periferias comece
hoje a ser reconhecida como uma das tendências cria-
tivas mais importantes e, mesmo, politicamente inaugu-
ral, sua história ainda está para ser contada.
É neste sentido que a coleção Tramas Urbanas tem como
seu objetivo maior dar a vez e a voz aos protagonistas
deste novo capítulo da memória cultural brasileira.
Tramas Urbanas é uma resposta editorial, política e afe-
tiva ao direito da periferia de contar sua própria história.
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Cap.01
Seus sonhos vão viver. E você vai viver pra ver1.
1 Trecho de letra de “C.O.S.”, faixa de Agora tá valendo (1997), primeiro disco dos Devotos do Ódio
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Tem de tudo
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O Alto hoje
carnavais do bairro. O animado Brega do Bolinho, clube
que serviu de palco para vários shows de rock das ban-
das do Alto, também fica a poucos metros da praça. Há
duas escolas públicas no bairro: a Maria Tereza, inau-
gurada em 1955, e a Santa Maria, aberta em 1968 e tam-
bém conhecida como colégio das freiras. E, por ironia
do destino, uma de suas salas de aula serviu de cenário
para a gravação do clipe da música “Os peitinhos”, da
O conselho de moradores do Alto José do Pinho calcula não exatamente religiosa banda Matalanamão.
que a população atual do bairro esteja na casa dos 20 mil
Na esquina da rua principal está a sede do Bonsucesso
habitantes. O Alto é dividido em 72 ruas, levando-se em
Futebol Clube, time de futebol desativado, fundado em
conta escadarias, becos e vielas. O centro conta com uma
1 de abril de 1949, e que chegou a disputar a terceira
pequena praça, onde se destaca uma imagem de Cristo
divisão do campeonato pernambucano. O clube, que
crucificado, feita de cerâmica branca. Nesta praça,
hoje abriga as oficinas de break de Zé Brown, do Faces
funciona o terminal de ônibus que atende à população,
do Subúrbio, e reuniões do grupo de terceira idade do
ligando o bairro ao centro do Recife. Ela abriga, ainda,
bairro, foi palco do primeiro evento roqueiro organizado
um posto policial e uma lanchonete, e está cercada de
pelas bandas do Alto, o Gestos, Atitudes e Rock’ n’ Roll.
pequenos bares por todos os lados. É comum, mesmo nos
Eclética por necessidade e por obrigação, a casa tam-
dias de semana, ver gente sentada nos bancos jogando
bém abriga bailes funk, shows de brega e as oficinas
dominó e conversa fora.
periódicas da ONG Alto Falante. O clube serviu, também,
Em frente à praça, fica o mercado municipal. Nos fun- como local de várias reuniões organizadas por dona
dos dele, está o minúsculo estúdio da rádio comunitária Detinha, e todos os prefeitos do Recife e governadores
Alto Falante, inaugurada em 2002 pela ONG de mesmo de Pernambuco que passaram pelo poder desde 1979
nome, formada pelos músicos das bandas do Alto José se reuniam com a líder comunitária no Bonsucesso para
do Pinho. Ela é veiculada a partir de caixas de som colo- discutir os problemas do bairro.
cadas nos postes do bairro. A programação vai das oito
O convívio religioso é democrático. Existem, pelo
da manhã às sete da noite, com intervalo de meio-dia às
menos, quatro templos evangélicos e duas igrejas
duas da tarde. A rádio leva ao ar prestação de serviços,
católicas em funcionamento hoje. Fora os terreiros de
programação musical variada, do samba de Cartola ao
xangô e umbanda localizados na Manguba, a periferia
punk do Sex Pistols e até um programa dedicado à lite-
do Alto, “cidade” que dona Detinha ajudou a construir.
ratura, produzido por estudantes de jornalismo da Uni-
versidade Católica de Pernambuco. Do lado do mercado
público, funciona uma banca de jogo do bicho, bem em
frente ao posto policial! Logo atrás da banca de jogo do
bicho, fica a sede do boneco Zé do Pinho, que desfila nos
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Cap.02
Do metal ao mangue
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metal ao mangue
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era Cristiano, guitarrista da Paulo Francis Vai pro Céu, para assistir ao show. A banda havia tocado em Salvador
uma das 12 atrações pernambucanas que tocaram na e ficou por lá mesmo. A solução encontrada pela produ-
primeira edição do Abril Pro Rock, em 1993. Paulo André ção do show foi a seguinte: devolver o ingresso inteiro,
começou a investir na carreira de produtor. Produziu, em ou metade do valor para quem quisesse entrar e assistir
1992, nos Aflitos, o show da cultuada banda de thrash aos shows das bandas locais que abririam para o Sepul-
metal alemã Kreator, e uma apresentação da também tura. Optei por entrar e, depois de quase levar duas gar-
alemã Morbid Angel, no Sport Club do Recife. Os espa- rafadas de metaleiros enfurecidos com o show cance-
ços para as bandas locais começaram a ser ampliados. lado, rumei, triste, de volta para casa. Fato curioso é que
O Sepultura, orgulho nacional e, na época, um dos maio- os Devotos do Ódio haviam sido convidados para fazer
res nomes do metal no mundo, teve show agendado no um dos shows de abertura, mas foram dispensados sem
Recife, no Sport Club Recife, pouco depois de a banda nenhuma justificativa.
ter se apresentado na segunda edição do Rock in Rio, no
Não era fácil gostar de rock no Recife.
Maracanã. E com o disco Arise recém-lançado em todo
o mundo. Esse episódio merece um registro especial do Alheio a toda essa movimentação da cena pesada per-
autor: comprei meu ingresso, feliz da vida, com um dia nambucana, o jovem Francisco de Assis França frequen-
de antecedência. No dia do show, passei a tarde ouvindo tava bailes black para ouvir James Brown, ao mesmo
os discos do Sepultura com amigos meus em Olinda. tempo em que se apaixonava pelas batidas do maracatu.
Com duas horas de antecedência, pegamos dois ônibus Outro jovem, Fred Montenegro, legítimo punk da perife-
que nos levariam até o local do show. Eu não acreditava ria, começava a expandir seus horizontes musicais des-
no que estava vivenciando. O Recife, finalmente, entrara cobrindo a obra de Jorge Ben entre um disco e outro do
para o primeiro mundo no roteiro dos grandes shows The Clash. Enquanto seu Mundo Livre S/A existia desde
internacionais. Os shows do Sepultura lotavam em 1984, a Nação Zumbi de Francisco de Assis França, aos
todos os lugares. A banda dos irmãos Cavalera estava poucos, ia sendo moldada. De Olinda, surgia o Eddie,
em plena fase de ascensão, e o Recife era uma das pou- grupo comandado por Fabio Trummer. Alguns dos anti-
cas cidades brasileiras a ter o gostinho e o privilégio de gos metaleiros começaram a se interessar por cultura
conferir isso ao vivo. Descemos do ônibus. As hordas de popular e folclore local e criaram, em 1994, o Mestre
cabeludos e de skatistas já estavam por lá. Assim como Ambrósio. Percebendo toda essa movimentação, Paulo
os evangélicos, a pregarem e proclamarem que aquilo André criou, em 1993, o Abril Pro Rock, evento que, em
tudo era coisa do demônio. Quando comecei a subir a sua primeira edição, contava com 12 atrações. Todas de
rampa que dava acesso ao local do show, um grupo de Recife. E todas absolutamente desconhecidas do grande
cabeludos veio em minha direção e disse: “Nem suba. público. Apesar disso, cerca de mil pessoas comparece-
Não vai ter show!” Retruquei, atônito: “Como é que é? ram ao evento. Os Devotos do Ódio não foram chamados
Vim de Olinda, peguei dois ônibus para chegar até aqui e para tocar nessa primeira edição do Abril pro Rock, por-
não vai ter show?” E um dos cabeludos me disse que eu que a produção do festival considerava o som da banda
ainda era sortudo, pois o grupo dele tinha vindo de Natal muito pesado para o perfil do público esperado.
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Enfim, do casamento entre Lamento Negro, Loustal e palco como fora dele, adotavam um visual bem camelô:
Nação Zumbi, nascia Chico Science & Nação Zumbi. Em chapéu de palha, óculos escuros, camisas floridas, cal-
uma das primeiras aparições em rede nacional na TV, a ças largas. Desenvolveram um vocabulário peculiar cheio
banda foi tema de matéria no programa Vídeo Show, da de novas gírias. “Sair com minha turma”, a partir daquele
Rede Globo, que mostrou imagens do grupo em estúdio, momento, na boca dos mangueboys e manguegirls,
gravando sob a tutela de Liminha, que já havia traba- ganhava nova nomenclatura: “sair com minha corda”, em
lhado, nos anos 1980, com os Titãs e o Ultraje a Rigor. referência aos caranguejos que eram vendidos em cor-
Empolgado com uma matéria que tinha feito para a das, cada uma contendo dez unidades deles. Ao perce-
retransmissora do SBT no Recife sobre mangue, o jor- ber a intenção estética e literária de Chico Science, o
nalista Fred Montenegro redigiu um release sobre o jornalista José Teles, do Jornal do Commercio, apresen-
movimento que batizariam de manguebit. O release, tou a Chico a obra do escritor Josué de Castro. Era só o
intitulado Caranguejos com cérebro, foi confundido com que faltava para o ícone do mangue, a partir dali, cons-
manifesto2 pela imprensa nacional. Daí em diante, nin- truir um novo repertório linguístico, tendo como base os
guém mais conseguiu controlar o alcance da parabólica livros do escritor de A geografia da fome.
fincada na lama.
A sonoridade de Chico Science & Nação zumbi “brincava”
Em 1994, Chico Science & Nação Zumbi lançavam, pela de transformar o regional em universal, de criar o diálogo
Sony Music, o álbum Da lama ao caos. No mesmo ano, entre elementos à primeira vista tão díspares como tam-
o Mundo Livre S/A, liderado pelo jornalista Fred Zero bores de maracatu, guitarras pesadas e vocais falados
Quatro, testemunhava o nascimento de seu primeiro na mesma linha do rap e do hip-hop. O Mundo Livre S/A
disco, Samba Esquema Noise, bancado pelo selo Ban- não era menos ousado: misturava cavaquinho com gui-
guela (criado pelos Titãs), uma perna da gravadora War- tarra distorcida, dando camadas de peso ao samba e o
ner. Estavam fincadas, a partir de então, as duas pedras balanço da música brasileira ao punk. À época, a jorna-
fundamentais do movimento Mangue, batizados por lista Bia Abramo escrevia sobre o grupo de Zero Quatro:
seus criadores como Manguebit, e erroneamente nome- Essa geração (a dos anos 90) já produziu pelo menos um
ado pela imprensa nacional de Manguebeat. Recife pas- grande disco. Samba Esquema Noise é candidato certo a
sou a ser a bola da vez. Jornais como a Folha de S.Paulo melhor disco de música brasileira do ano. Em relação ao
diziam que a capital pernambucana era a Seattle bra- Mundo Livre S/A, é injusto falar de mistura ou de qualquer
sileira, em alusão ao movimento grunge que gerou, por coisa do gênero para explicar o tipo de música que eles
aqueles lados, nomes como Nirvana, Mudhoney, Pearl fazem. Não se trata de uma mera justaposição de samba e
Jam, Alice in Chains e tantos outros. Um séquito de fãs, de guitarras, de rock e de influências regionais3.
denominados mangueboys e manguegirls pelo próprio
Chico Science, passaram a frequentar os shows dos gru-
pos locais e a se vestir como seus ídolos, que, tanto no
E Abramo concluía, logo a seguir: “É samba, sim, mas Alceu Valença, Zé Ramalho e Lula Côrtes nos anos 1970.
feito com uma atitude roqueira. E rock também, mas Ou seja, o movimento mangue acabou despertando a
feito a partir da ‘Cidade Estuário’.”4 curiosidade da mídia nacional em conhecer todo e qual-
quer som novo que viesse do Recife. As bandas se multi-
Chico também era bastante festejado pela imprensa
plicavam, a cena começava a se profissionalizar, grupos
paulista, que, literalmente, carregou o movimento man-
assinavam com grandes gravadoras. O Recife era o cen-
gue no colo e o elegeu como a cena musical brasileira
tro das atenções, tema de matérias sem fim dos cader-
mais importante a surgir na década de 1990:
nos culturais de jornais de todo o país. Grupos surgiam
Mais do que letras – algumas muito diretas e cruas, outras, aos montes: do rock escrachado de Paulo Francis Vai pro
como as de Chico, por exemplo, mais elaboradas –, o que Céu ao funk rock do Dona Margarida Pereira e Os Fula-
chama atenção nessa nova safra é o desenho de uma
nos. Do metal dos Conservados em Formol ao regiona-
iluminada globalização rítmica e sonora, unindo orgânica e
lismo rabequeiro do Mestre Ambrósio. Do coco eletri-
antropofagicamente forró e rock, maracatu e rap, xaxado e
toast, embolada e funk5.
ficado do Cascabulho ao rock de pegada anos 1970 do
Querosene Jacaré. E, no meio desses grupos todos, dois
Um ano antes do lançamento dos discos de estreia de se destacavam por um peculiar fator geográfico, além do
Chico Science & Nação Zumbi, era realizada, no Circo som que faziam: os Devotos do Ódio, com o seu punk rock
Maluco Beleza6, a primeira edição do festival Abril Pro hardcore, e o Faces do Subúrbio, com seu rap embolada.
Rock. Em seu primeiro ano de vida, o evento apostou Ambos saídos de um morro chamado Alto José do Pinho,
em uma programação só com bandas recifenses. Come- local cuja história roqueira já vinha sendo escrita desde
çava a surgir, naquele momento, um real interesse pela 1985, mas que acabou ganhando visibilidade somente
formação de um mercado consumidor de música jovem a partir do estouro do mangue, no início dos anos 1990.
pernambucana. E, acima de tudo, uma rica vitrine que Porém, seja estética ou temporalmente, o Alto José do
atraía as atenções e curiosidades da mídia especiali- Pinho sempre abrigou um cenário à parte de tudo o que
zada de todo o país. Além de Chico Science e do Mundo foi descoberto a partir — e por causa — do manguebit.
Livre, outros nomes começaram a despontar nacional-
mente: de Olinda, o grupo Eddie. De Boa Viagem, bairro Chico Science acabou perdendo a vida em fevereiro de
de classe média alta do Recife, surgiam Jorge Cabeleira 1997, vítima de um acidente automobilístico. Um ano
e O Dia em Que Seremos Todos Inúteis. As diferenças antes, porém, deixava seu testamento artístico: Afroci-
entre as sonoridades individuais das bandas deixavam berdelia, disco que, ainda hoje, figura em várias listas dos
todo mundo intrigado. Eddie fazia um rock mais cru, mais importantes da história da música brasileira. A vida
enquanto Jorge Cabeleira trilhava um caminho psicodé- de Chico era abreviada justamente no momento em que o
lico ao injetar experimentalismos à fórmula criada por Alto José do Pinho vivia seu apogeu.
4 Idem.
5 “O país dos oráculos musicais”, de Marcos Augusto Gonçalves; Folha de
S.Paulo, 17/12/1995.
6 Principal casa de shows do Recife na década de 1990.
Cap.03
Viva a vida que você me deu
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Marconi, conseguiam trilhar um caminho diferente, ter- boa reputação pelo Alto José do Pinho. A comunidade
minavam os estudos, e até viravam professores. achava que aqueles garotos não passavam de um bando
de vagabundos, maconheiros sem a menor perspectiva
O grande problema para a família de Marconi veio com a
de futuro. O pior é que o preconceito não era apenas dos
chegada da adolescência. Absolutamente revoltado
moradores do Alto.
com a realidade que o cercava, com a falta de pers-
pectiva e de horizontes para a esmagadora maioria dos Cannibal começou a frequentar os shows punks que
moradores do Alto José do Pinho, pelo preconceito que aconteciam no subúrbio do Recife. Um episódio reflete
sentia na pele por ser negro e da periferia, por sempre bem a perseguição que sofria. Voltando de um show punk
ser abordado pela polícia, que não raro o confundia com no suburbano bairro de Prazeres com Neilton, Cannibal
bandido, restou ao adolescente Marconi, aos 15 anos de desceu de um ônibus na cidade para esperar o bacurau1,
idade, tornar-se punk. Raspou a cabeça. Começou a usar ônibus que costuma sair de hora em hora a partir das
camisetas e calças rasgadas. As camisas traziam a ban- duas da manhã no centro da cidade. No ponto de ônibus,
deira do Brasil de ponta cabeça e os dizeres “desordem notaram que uma viatura da polícia passava devagar por
e regresso”. Correntes e cadeados ornavam seu pes- eles. Não deram muita importância para o fato. Três dias
coço. Em suma, Marconi não era bandido, mas se tornou depois, Cannibal foi abordado pela tia:
vítima constante de perseguição policial. — Marconi, você sabia que ia ser preso no sábado de
Nessa época, metade dos anos 1980, com o país ainda madrugada?
na ressaca dos tempos ditatoriais, Marconi se iniciou — Como é que é?
— Você não estava com Neilton na avenida Guararapes
no movimento punk do Recife. Tornou-se engajado. Em
esperando um ônibus no sábado de madrugada?
tempos de resquícios do regime militar, era comum
— Estava.
que a polícia e seus informantes conhecessem todos — Pois teve um tiroteio lá pouco antes de vocês chegarem.
os elementos considerados subversivos pelo governo. Não conseguiram prender ninguém. Só não levaram vocês
Os punks, que costumavam se reunir numa praça em dois presos, porque Reginaldo estava na viatura.
frente à estação central do metrô, evitavam chamar uns
Reginaldo era policial e morador do Alto José do Pinho.
aos outros pelo nome. Sabiam que não eram bem vistos
Quando um de seus colegas policiais sugeriu que prendes-
pela polícia. Marconi, então, resgatou seu apelido de
sem os dois para não saírem de mãos vazias, Reginaldo
infância, e passou a ser conhecido no movimento pela
disse que conhecia os dois do Alto José do Pinho, e que
alcunha de Canibal. Mais tarde, acrescentaria mais um
eles não eram bandidos. Por essas e outras, era preciso
“n” ao nome artístico.
ter muito cuidado naquele tempo. Cannibal era o que o
Cannibal logo descobriu que não era o único no bairro cantor paulista Itamar Assumpção genialmente designou
a curtir punk. Marcelo Massacre, jovem músico que de “isca de polícia”: preto e pobre. E, para piorar, punk.
futuramente seria baixista do Terceiro Mundo e, pos- Era o alvo perfeito para preconceitos e generalizações.
teriormente, do Faces do Subúrbio, começou a andar
com Cannibal e a turma dele. Esses jovens não tinham
1 Um tipo de coruja.
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Para complicar ainda mais as coisas, no próprio movi- não perdia um ensaio das bandas SS-20, Moral Violenta
mento punk existia gente que só estava naquela por pura e Câmbio Negro HC, ficando amigo dos seus integrantes.
arruaça mesmo, pelo prazer de brigar. Isso acabava estig- O problema é que faltava identificação. Cannibal gostava
matizando os mais politizados, como Carlinhos, editor de se reunir com a galera para escutar os “Iron Maidens”
do fanzine Recifezes, e o próprio Cannibal. Curioso é que, da vida, mas não cogitava montar uma banda no mesmo
nessa época, Cannibal sequer pensava em montar uma estilo. Nessa época, passou a trabalhar como ajudante
banda. Sentia-se satisfeito em assistir aos shows e par- de pedreiro no Alto José do Pinho para ajudar em casa.
ticipar das reuniões. No Alto José do Pinho, os roqueiros Depois, passou a trabalhar em um lava-jato. Nos interva-
passaram a descobrir que não estavam fechados em si los, jogava bola no time juvenil do Santa Cruz, mas nunca
mesmos. Ao contrário, cada um deles passou a perceber se imaginou como jogador profissional. Até que começou
que não era o único exótico do bairro a gostar de ouvir a desenvolver o gosto pela leitura. O menino que detes-
rock e tomar vinho. Aliás, já havia bandas de rock no Alto tava estudar, que apanhava todo dia porque não ia para
José do Pinho desde 1984. A Egoesmo foi uma das que a escola, sem perceber e aos poucos, estava lendo todo
surgiram nessa época, fazendo covers de sucessos de e qualquer fanzine que lhe caísse nas mãos. Assim como
MPB e do rock nacional da época. Essa banda contava, as revistas de música. Em uma delas, na Bizz, leu uma
em sua formação, com Celo (bateria), Lee (guitarra), matéria sobre um grupo punk de São Paulo chamado Ino-
Wally (baixo) e André (vocal), e foi responsável pela cria- centes, liderado por um negro e que falava da realidade
ção de quase todos os grupos do Alto José do Pinho. do cotidiano da periferia da capital paulista. Ficou tão
impressionado com o que leu que decidiu procurar o disco
A casa de Wally servia como ponto de encontro de todos
Pânico em SP em um sebo no centro do Recife. Achou,
os roqueiros do bairro. Wally tinha um primo que morava
ouviu e a identificação foi imediata. Tudo o que Clemente,
em São Paulo, e ele costumava voltar da capital paulista
vocalista do Inocentes, cantava em suas letras condizia
com a mala lotada de vinis. Em tempos pré-internet, foi
exatamente com a realidade enfrentada por Cannibal
assim que toda a turma passou a conhecer Iron Maiden,
no Alto José do Pinho. Ali, naquele instante, Marconi de
Ratos de Porão, Van Halen e, de forma mais surpreen-
Souza Santos, para desespero da família, encontrou sua
dente, The Cure e The Smiths. Passavam tardes inteiras
vocação: montar uma banda punk e viver dela.
escutando esses vinis na casa de Wally. E aquilo tinha
um efeito avassalador sobre a turma. Todos queriam, ao
ouvir aquela música tão diferente de tudo que escuta-
vam até então, montar uma banda. Menos Marconi.
Cannibal se contentava com o lado político da coisa toda.
Por exemplo, com os Encontros Antinucleares no cen-
tro da cidade, que aconteciam, anualmente, no dia 6 de
agosto, dia do lançamento das bombas sobre Hiroshima e
Nagasaki pelos norte-americanos. Além de ir aos shows,
Viva a vida que você me deu 59
O encontro
Um belo dia, quando tinha 12 anos de idade, Celo foi a uma
festa com uns amigos no bairro vizinho da Mangabeira.
Nela, havia uma grande banda de baile que animava os
convidados. Celo ficou a noite inteira com os olhos gru-
dados na bateria, e ali, naquele momento, descobriu o
que queria fazer da vida. Passou, a partir de então, a jun-
tar os móveis da sala e batucá-los o dia inteiro, acompa-
nhando as músicas que tocavam no rádio. Percebendo o
Marcelo Coleta Junior nasceu no Recife no dia 27 de maio fascínio do menino por bateria, seu primo, Lee, tratou de
de 1970. Filho de um sargento da polícia militar e de uma improvisar uma. Arrumou várias latas de doce, tirou as
professora primária, Celo, como viria a ser mais tarde tampas, envolveu as aberturas com plástico e colou com
chamado pelos amigos, teve uma infância pobre no Alto borracha. Chamou Celo até sua casa para mostrar a novi-
José do Pinho, mas extremamente divertida. Apesar de dade. Apesar de improvisada, a bateria possuía um som
um pouco tímido e muito quieto, o garoto não deixava de interessante, e foi com ela que Celo tocou com sua pri-
brincar de pião, empinar pipa, correr pelas escadarias meira banda, a Egoesmo, que contava com o próprio Lee
do Alto e, naturalmente, jogar futebol. E a música, desde em sua formação, e com Wally, o amigo dos vinis. A banda
cedo, esteve presente em sua vida. fazia covers de sucessos da época, e se apresentava em
Seu pai possuía um grande rádio, daqueles antigos, aniversários de amigos e até em festivais estudantis. Ao
que vinham dentro de um móvel. O aparelho ficava o dia mesmo tempo, Celo ia ampliando seus horizontes musi-
inteiro ligado, e o menino ia absorvendo tudo que era cais nas sessões de audição na casa do amigo Wally. Pas-
tocado nele, de Luiz Gonzaga a Djavan. A mãe cantava sou a se interessar por Joy Division e, em especial, pelas
no coral da igreja. De tanto ouvir, quis aprender a tocar. batidas de Budgie, na época baterista do Siouxsie and
Tentou o violão, para poder reproduzir as músicas que The Banshees. Descobriu que queria tocar como ele. E
escutava no rádio. Mas seu casamento com a bateria já começou a sentir necessidade de estudar música. Para
estava traçado. Até ali, o conhecimento musical dele se isso, lançou mão de um expediente para lá de sofisticado.
limitava ao que tocava na rádio, já que não tinha acesso O pai era fã de Luiz Gonzaga. Sabendo disso, Celo disse a
a vinil, um luxo para o padrão de vida da família. Em seu velho que gostaria de aprender a tocar acordeom no
suma, Celo ouvia muita MPB e pop rock dos anos 1980, Conservatório Pernambucano de Música. Motivo: poder
carros-chefe das AMs e FMs na época. tocar para o pai as músicas de Luiz Gonzaga de que ele
tanto gostava. Empolgado, o velho mandou o filho pesqui-
Aluno um tanto disperso, a mãe, professora, encontrou a sar preço para fazer o curso. O filho obedeceu, mas, na
solução para o então relapso menino Celo: alfabetizou-o verdade, matriculou-se para as aulas de bateria. A farsa
em casa. A experiência foi crucial para o garoto, que cedo durou uns dois meses. A mãe de Celo não apenas aco-
percebeu que poderia, com persistência e dedicação, bertava, como ainda comprava algumas baquetas de
aprender qualquer coisa em casa. Mesmo que a matéria presente para o filho. O real interesse de Celo era sentar
fosse música.
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em uma bateria de verdade, e ele achou que o Conserva- Porém, aos poucos, foi aprendendo a extrair o essen-
tório fosse o caminho mais curto para realizar seu obje- cial daquilo. E, somado ao rádio do pai e aos vinis de
tivo. Estava enganado. Passou a estudar muita teoria Wally, Celo, agora, contava com o reforço dos bateristas
e pouca prática. Nas audições na casa do amigo Wally, de jazz. Nada mau para alguém oriundo do Alto José do
começou a filtrar só sons de bateria, fossem dos Ratos Pinho.
de Porão ou do The Cure. Tentava imaginar como exe-
As trupes de preto aumentavam no Alto José do Pinho. Às
cutaria aquilo tudo na prática. Como todo bom músico,
turmas de Wally e Celo somavam-se as de Peste e Mar-
não pensava em segmentação. Queria ouvir de tudo —
celo Massacre, do Terceiro Mundo, e a de Gilson Gerrard,
ainda que esse tudo fosse limitado pelas programações
do A Ostenta, banda de Beberibe2 que foi adotada pelos
das rádios, e um pouco expandido nas tardes na casa
grupos do morro. E toda essa turma se reunia na praça
de Wally — e extrair o que lhe parecesse mais interes-
para beber vinho e tocar violão, sempre estigmatizados
sante. Celo começava a sentir também que a bateria
como a turma de vagabundos pelos moradores do bairro.
feita por seu primo já não era suficiente. No conserva-
tório, passou mais de um ano estudando apenas teoria. Em uma das sessões de audição de vinil na casa de
Só depois veio alguma prática, e, ainda assim, interca- Wally, Celo foi apresentado a Cannibal, que o convidou
lada com mais teoria. Aos poucos, Celo ia se cansando para ser baterista da banda que ele estava montando.
daquilo tudo. No mesmo período, seu primo Lee montou Celo achou Cannibal, com suas calças rasgadas, cami-
um pequeno estúdio em sua casa, onde as primeiras sas de protesto, correntes e careca reluzente a própria
bandas do Alto começaram a ensaiar: Egoesmo, Flores visão do inferno. Mas como Marconi o convidou com jeito
Negras, Nanica Papaya, O Lírio, Realidade Encoberta. e disse que sabia que a praia de Celo era mais pop, ele
Fora a Realidade Encoberta, que não era do bairro, todas resolveu encarar só para ver no que dava.
contavam com Celo na bateria. Quando não era ele que
assumia as baquetas, Peste, o outro baterista da trupe
de preto, encarregava-se de comandar a bateria nos
momentos em que Celo não estava presente. E os dias
de Celo se dividiam entre a casa de Wally, o estúdio de
Lee e o Conservatório. Neste último, recebeu o conselho
definitivo. Seu professor, Gilberto, perguntou que estilo
o garoto gostaria de seguir. Ao saber que a resposta era
rock, perguntou a Celo se o pai dele conhecia jazz. “Pro-
fessor, meu pai é militar e gosta de Luiz Gonzaga. Nem
eu nem ele sabemos o que é isso.” O mestre, então, pas-
sou a seguinte lição: ir aos sebos, comprar discos de jazz
e ficar em casa ouvindo as batidas e aprendendo com
elas. O impacto inicial foi grande. Celo achava-se inca-
paz de reproduzir a sonoridade daqueles bateristas. 2 Bairro da região metropolitana de Recife.
Viva a vida que você me deu 65
Brincando
que o público era devoto de todo aquele ódio amplificado
pela mídia. Poucos entenderam a sutileza (ou falta dela) na
escolha do nome da banda, e durante anos os Devotos do
64
66 Devotos 20 anos
Professor Pardal
Sua inclinação para a música foi despertada por volta
dos 6 anos, influenciado por um vizinho que tocava
saxofone na Orquestra Municipal do Recife e passava
o dia ensaiando em casa. Nessa época, formou, com
suas irmãs, sua primeira “banda”. Utilizando o mesmo
processo de Lee, primo de Celo, juntou latas de doces,
tirou as tampas, envolveu as aberturas com plástico e
Neilton José de Carvalho nasceu em 1971 e foi criado
colou tudo com borracha. Passava tardes inteiras com
na Bomba do Hemetério, bairro vizinho ao Alto José do
as irmãs batucando para cima e para baixo dentro de
Pinho. Caçula de quatro irmãos e filho de um comerciário
casa. Ao mesmo tempo, começou a tentar desenhar
com uma dona de casa, o garoto teve despertado, logo
seu super-herói preferido, o robô japonês Spectreman,
cedo, seu interesse pelas artes. O pai, Aércio Ribeiro de
que aparecia em seriado exibido pela televisão no início
Carvalho, vendia peças para máquinas industriais. Tra-
dos anos 1980. E passou, simultaneamente à descoberta
balhava numa lojinha e num depósito, que ficavam na
da música e do desenho, a se interessar por eletrônica.
rua Vigário Tenório, no Centro Velho do Recife. Zona por-
Desmontou, junto com o irmão Nilson, o rádio da casa,
tuária e local considerado barra-pesada até a década de
pois estava certo que bonecos trabalhavam dentro dele
1980, o bairro era famoso pela má reputação que pos-
e não queria perder a oportunidade de vê-los em ação.
suía: prostitutas à caça de marinheiros de fora, trafican-
Passaram, então, a abrir todos os eletrodomésticos de
tes, viciados e loucos de toda espécie eram os principais
casa para saber como funcionavam por dentro. Fizeram
frequentadores da região. E o pai de Neilton, conhecido
isso com um velho gravador do pai, e utilizaram o motor
no local pela alcunha de “pai”, era extremamente que-
do gravador para a construção de um carrinho elétrico.
rido e respeitado por todos. Boêmio incorrigível, jamais
Começou a fabricar seus próprios brinquedos, nem que
chegava em casa antes da meia-noite.
fosse para ter o prazer de destruí-los depois. Certa vez,
Desde muito novo, Neilton já demonstrava intensa curio- dedicou-se o dia inteiro à construção de uma casinha de
sidade pelas carreiras que abraçaria ao longo da vida: massapé. Depois de pronta, colocou fogo nela só para
música, pintura e engenharia eletrônica. Em seu caso, assistir ao incêndio. O pai costumava presentear o filho
o espantoso é que ele é autodidata em todas essas com um carrinho simples de brinquedo, que trazia da
áreas. Jamais teve uma aula de música, de desenho ou feira. Neilton o reconstruía por inteiro e o deixava igual-
de mecânica. Punk legítimo, mesmo sem ter feito parte zinho ao carro do Batman, além de “envenená-lo” com o
do movimento, elevou à enésima potência as conse- motor do gravador.
quências do mandamento punk do it yourself. Tudo que
Tímido, Neilton sempre teve um comportamento bas-
aprendeu e realizou desde então foi sozinho, sem ajuda
tante peculiar. Costumava matar aulas para, em vez de
de ninguém, o que o coloca bem perto do rol – para não
ganhar as ruas, voltar para casa para assistir televisão ou
dizer que ele próprio é um – daquela seleta categoria de
se dedicar aos desenhos e à fabricação de brinquedos.
humanos que costumamos designar de gênios.
68
70 Devotos 20 anos Viva a vida que você me deu 71
72 Devotos 20 anos Viva a vida que você me deu 73
Quando ficou um pouco mais velho, passou a acompa- uma loja, uma Sonic. Pediu a outra metade do valor para
nhar o pai no trabalho aos sábados. Em um desses dias, o pai, que perguntou se o filho sabia tocar. Neilton, na
viu uma turma de motoqueiros gringos, todos trajando caradura, respondeu que sabia, e o velho deu a grana na
jaquetas com estampas de caveiras nas costas. Pare- esperança de ouvir o filho tocar “Brasileirinho” para ele.
ciam com os Hells Angels. Eles, de vez em quando, apa- Feliz da vida, Neilton foi até a loja e comprou a guitarra.
reciam para comer em uma lanchonete barra-pesada Chegou em casa, foi até o quarto e, antes mesmo de ten-
perto da loja em que o pai de Neilton trabalhava. Ficou tar tirar qualquer som, desmontou a guitarra inteira. O
fascinado com o visual da turma. E, via televisão, veio pai ficou doido quando viu aquilo. Neilton queria saber
o acontecimento que o despertaria para todo o sem- onde estavam as pilhas da guitarra. Não as encontrando,
pre para o mundo do rock: descobriu um tal de Elvis passou a fazer uma série de experiências, colocando
Presley. Decidiu, por influência do Rei, que aprende- captadores, incrementando-a de todas as formas. Como
ria a tocar guitarra. Ficou fascinado com a sonoridade gostava de dizer, sua guitarra parecia saída do filme O
e com o formato da guitarra. Além dos filmes de Elvis, jovem Einstein. Começou a aprender os primeiros acor-
que passavam na TV, Neilton descobriu que o pai pos- des sozinho. Era difícil encontrar um curso de guitarra
suía uma coletânea com os grandes sucessos do can- naquele tempo no Recife. E, quando achava algum, era
tor. Escutou o disco obstinadamente a partir de então. caro demais. Na mesma época, passou a frequentar
Sempre curioso, Neilton pesquisou, por conta própria, os shows de punk e de metal nos subúrbios do Recife.
quem havia influenciado aquele cara de costeletas de Virou colecionador de vinil também e fã de bandas como
quem tanto gostava. Foi assim que chegou até a obra Metallica e Slayer. Só que, ao contrário do radicalismo
de Bill Haley & His Comets. Para completar o fascínio, dos fãs dos dois gêneros, que sequer cogitam a possi-
um dia, em um culto da igreja que a família frequentava, bilidade de ouvir qualquer coisa que não estivesse atre-
ouviu o pastor dizer, em alto e bom som, que o rock’ n’ lada a esses ritmos, Neilton sempre teve a cabeça e os
roll era coisa do demônio e que Bill Haley era o próprio. ouvidos abertos para tudo que caía em suas mãos. Como
Na mesma hora, o garoto pensou: “Bill Haley é o cara!” já estava mergulhado de cabeça no mundo do rockabilly,
Virou fã de rockabilly. O problema — ou solução — no passou a pesquisar também tudo sobre metal e punk,
caso de Neilton foi que ele descobriu a obra de Elvis bem mas jamais se limitava a apenas esses estilos. Também
próximo dos últimos dias de vida do cantor. Com a morte considerava burra a lógica punk, que ditava que o bom
dele, a TV tratou de exibir uma série de especiais, shows era ser ruim. Punk que era punk, segundo os próprios,
e filmes estrelados por Presley, que, evidentemente, não podia saber mais do que os três acordes básicos.
foram vistos um a um por Neilton. Ainda garoto, Neil- E Neilton se considerava extremamente frustrado jus-
ton começou a fazer pulseirinhas e camisetas pintadas tamente por não poder estudar música, e ficava furioso
à mão. Vendia aos amigos no colégio e guardava toda a com quem fazia essa apologia à ignorância musical. Pas-
grana arrecadada embaixo do colchão. Um dia, resolveu sou a ouvir Hendrix e Eric Clapton, e sempre se pergun-
contar o dinheiro e viu que tinha o suficiente para com- tava quem os havia ensinado a tocar. Em sua imaginação,
prar metade da guitarra mais barata que havia visto em eles tinham aprendido tudo sozinhos. E, ainda que não
74 Devotos 20 anos Viva a vida que você me deu 75
tivessem aprendido a tocar sozinhos, alguém, algum dia, tentava fazer — as vezes de palco. Sem contar que a
inventou a guitarra e a forma correta de tocá-la. E, para estrutura de som era qualquer nota: vitrolas improvisa-
Neilton, isso bastava. Se alguém começou do nada, ele das, gambiarras aqui e ali. O importante era tocar. Em
também poderia. Na marra, sem professor e com muita uma dessas apresentações, um incidente constrange-
vontade, foi inventando solos que depois não sabia repe- dor e engraçado marcaria a vida da banda. Em determi-
tir, criando acordes que não tinha como decorar. E assim nada hora, o vocalista, que caprichava no vocal gutural
foi até entrar em sua primeira banda, a Túmulo. estilo thrash metal, empolgou-se tanto com a perfor-
mance que sua dentadura acabou caindo no chão. Para
Aílton Peste, amigo de infância e do colégio, um morador
mostrar que era roqueiro mesmo, tratou de pegar a peça
negro do Alto José do Pinho que aprendeu a tocar bateria
no chão e colocar novamente na boca, como se nada
sozinho, convidou o colega para fazer um teste, pois o gui-
houvesse acontecido. Aílton Peste ria tanto atrás de
tarrista original, Ronaldo, havia saído do grupo. Com cara
sua bateria que sua dentadura acabou tendo o mesmo
e pose de quem sabia tocar muito, Neilton improvisou
destino que a do vocalista. Na periferia, era comum que
uns solos que, até hoje, não sabe de onde surgiram. Os
mães de adolescentes preferissem arrancar os dentes
integrantes ficaram impressionados com sua “técnica”, e
da frente de seus filhos quando estavam com cáries
Neilton foi aceito na banda na mesma hora. Detalhe: ele
e colocar uma “peça” no lugar do que submetê-los a
ainda não sabia tocar patavinas. Ironicamente, foi o pró-
tratamento odontológico, considerado extremamente
prio Ronaldo que veio ensinar a Neilton como montar um
caro para o padrão de vida dessas famílias. Em shows
power cord, um acorde de tônica e quinta que é muito uti-
de rock nos subúrbios da capital pernambucana, todos
lizado no rock. Isso foi essencial para os primeiros passos
eram sujeitos da história: bandas e público eram forma-
de Neilton como guitarrista.
dos por um proletariado pobre e, não raro, desdentado.
A Túmulo serviu como laboratório para Neilton. Pas-
sou a fazer shows nos subúrbios. Essas apresentações
eram uma aventura só. Precisavam se deslocar de ôni-
bus pelas periferias da cidade, fazer os shows, e, só
depois, pensar em como seria para voltar para casa.
Alguns ambientes eram bem barra-pesada e, em algu-
mas ocasiões, eles saíam correndo dos tiros, pegavam o
primeiro ônibus que encontravam e se jogavam no chão
para não serem atingidos por alguma bala. O interes-
sante é que tanto as bandas quanto o público depen-
diam do transporte público. Ou seja, o “glamour” só
existia na hora de subir no palco. Mesmo que esse palco
fosse improvisado em um circo fuleiro, com a banda
tocando em cima de um monte de terra que fazia — ou
Cap.04
O Leonardo da Vinci da guitarra
Cap.04
O Leonardo da Vinci da guitarra 79
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estúdio de Lee, que a essa altura do campeonato, era fre- sido dispensados do serviço militar, e trataram de come-
quentado até por bandas de fora do Alto José do Pinho. morar na hora, tomando cachaça às sete da manhã em
Nascia, naquela época, Nanica Papaya, banda de reggae um boteco em frente ao quartel do bairro de Afogados.
liderada por André Nanica, que, lá atrás, havia fundado
Paulo André ficou amigo do pessoal dos Devotos do Ódio,
a Egoesmo com Celo. Aliás, o baterista dos Devotos era
e logo passou a empresariar informalmente a banda, faci-
um caso à parte no meio punk do Recife. Apesar de não
litando o trânsito e contato com demais bandas e produ-
apenas ter aprendido a tocar punk, mas a desenvolver
tores. Por meio de um contato seu, um repórter da revista
um estilo próprio de tocar, a praia de Celo era outra. Ele
Trip subiu o morro para fazer uma matéria com a banda.
gostava mesmo era do rock inglês dos anos 1980, como
Até então, nenhum veículo local dava a menor pelota para
The Smiths e The Cure. Para dar vazão a essa necessi-
o movimento punk do Recife e, muito menos, para uma
dade artística, emprestava seu talento a outras ban-
banda do Alto José do Pinho. O repórter da Trip topou a
das, como O Lírio e O Verbo. Assim como Neilton, Celo
pauta e se encantou com a guitarra de Neilton. Por pro-
se beneficiou do fato de não se limitar apenas ao punk
vocação, Neilton colocava um band-aid para “esconder”
rock. Curioso e sedento de informação, procurava estu-
a marca dela, que obviamente não existia, já que fora
dar todos os ritmos que, aos poucos, chegavam aos seus
feita pelo próprio. O repórter perguntou qual era a marca
ouvidos, via rádio ou na casa de Wally, que continuava
da guitarra, pois não conhecia aquele modelo. Em off,
servindo de point para toda a trupe escutar as novidades
Neilton contou que havia feito a guitarra com sucata.
nos vinis que o primo dele trazia de São Paulo.
O jornalista pirou com a história. Tempos depois, a Trip
E a pressão e o preconceito no Alto José do Pinho con- publicava uma longa matéria que tinha como fio con-
tinuavam firmes e fortes. Fora dona Maria, mãe adotiva dutor os Devotos do Ódio, uma banda de hardcore do
de Cannibal, que sempre apoiou o filho em seu sonho morro, cujo guitarrista fez sua guitarra com pedaços de
louco de viver de uma banda de punk no Recife, a histó- fogão, geladeira e até de micro-ondas. Uma “mentira
ria era bem diferente nas outras famílias. Com os meni- da porra”, segundo Neilton, pois ele não chegou a usar
nos perto de atingir a maioridade, era grande a cobrança peças de geladeira e de micro-ondas. A história da gui-
para que arrumassem empregos normais e passassem a tarra começou a incomodar Neilton. Em vez de sentir
ajudar no sustento da casa. Ou seja, a fama de vagabun- orgulho do invento, passou a ter uma espécie de bronca
dos desocupados estava longe de ser dissipada. Para pela maneira como a mídia abordava o assunto. Para
piorar as coisas, boa parte das famílias tinha origens ele, era a coisa mais natural do mundo. Não havia criado
religiosas ou militares. Ou ambas. O pai de Celo, sar- uma guitarra de sucata para aparecer, mas porque não
gento da Polícia Militar, nutria esperanças de que o filho tinha dinheiro para comprar uma nova. O “problema” é
seguisse carreira no Exército. O baterista não estava que todo mundo passou a se encantar pela história, e
tão interessado assim em seguir os passos do pai, nem ainda mais quando conhecia a guitarra pessoalmente.
Cannibal em servir a uma instituição que já criticava em Não foram poucas as propostas de venda que recebeu.
suas letras. Assim sendo, foi com muita satisfação que Recusou todas. A Gorda, para seu dono e inventor, não
os dois ficaram sabendo, na mesma manhã, que haviam tinha preço.
O Leonardo da Vinci da guitarra 85
O estúdio de Lee
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Cap.05
Gestos, Atitudes e Rock’ n’ Roll
Gestos, Atitudes e Rock’ n’ Roll 91
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92 Devotos 20 anos Gestos, Atitudes e Rock’ n’ Roll 93
Com o sucesso da primeira edição do Gestos, Atitudes e que, naquela época, já era também palco de shows das
Rock’ n’ roll a turma se animou e resolveu colocar o bloco bandas do Alto José do Pinho. Ou na rua.
definitivamente na rua. Os meninos passaram a fazer
Outro evento pontual era o Natal nas Alturas. As bandas
shows semanais, na rua mesmo, onde imperava a von-
organizavam shows em que a entrada era um brinquedo
tade acima de tudo. Juntavam grades de cerveja, colo-
usado. Quando chegava o Natal, reunia a gurizada e dis-
cavam um tablado em cima delas, pegavam emprestada
tribuía os brinquedos para elas. O Natal, assim como o
a radiola de alguém, montavam uma bateria e mandavam
Dia das Crianças, também terminava em rock.
ver. Com o tempo, essas apresentações foram ganhando
repercussão e, coisa inimaginável até então, jovens de Os Devotos do Ódio se destacavam das demais bandas
classe média começaram a subir o morro para ver esses pelo engajamento e pela organização. Sempre focados
shows. Peste tinha o sonho maluco de encontrar um lugar nos interesses da banda, faziam tudo visando o sucesso
no Alto José do Pinho que fosse uma versão no morro do dela. Neilton ficou responsável por toda a parte gráfica
lendário CBGB’S, casa de Nova York que abrigou apre- da banda. Pintava as camisetas, fazia os desenhos das
sentações memoráveis de Ramones, Sex Pistols, Televi- fitas demo. Criou uma logomarca da banda em que uma
sion, Blondie e Talking Heads. Enquanto não achava tal cruz e a letra “s” formavam um cifrão. E, com o apoio de
local, os shows eram realizados na rua mesmo. Paulo André, a banda começou a participar de festivais
e de concursos de banda. O repertório de seis músicas
A fama dos Devotos do Ódio ia crescendo na cena local.
havia sido amplamente ensaiado e tocado com o passar
Além da música, o trio começou a desenvolver, junto com
do tempo. Ainda era bem tosco, tudo na base dos três
as outras bandas do Alto, um trabalho social forte. Rea-
acordes, mas muito bem amarrado. Assim eram “Nova
lizavam shows filantrópicos para arrecadar alimentos e
vida”, “Luz da salvação”, “São fatos da guerra”, “Asa
distribuir para a população carente. Ou destinavam toda
preta”, “Pela justiça” e “Futuro inseguro”. O diferencial
a bilheteria de uma apresentação a hospitais e entida-
era um quê de baião em algumas músicas, como em “Luz
des. Com o sucesso do Gestos, Atitudes e Rock’ n’ Roll,
da salvação” e “Asa preta”. As letras eram simples, até
decidiram fazer eventos pontuais na comunidade. Assim
ingênuas demais. Mas algumas acertavam direto o alvo
nasceram o Rockriança e o Natal nas Alturas. O primeiro
− caso de “Nova vida”:
era realizado no Dia das Crianças. Um mês antes, o trio
visitava os dois colégios do bairro e lançava um tema. Continuamos nossa vida
Esse tema virava matéria na escola, e os alunos faziam Mesmo sem aceitar
Vamos parar pra pensar
redações e desenhos sobre o assunto escolhido. A
Reivindicaremos mudança
banda pegava todo esse material e expunha na comuni-
Sempre vivemos da esperança
dade no Dia das Crianças. Além disto, fechavam parce- Isso vai ter que acabar
ria com a Escola Pernambucana de Circo, e as crianças
Temos força, não somos fracos
passavam o dia inteiro aprendendo novas brincadei-
Ideologia, passado
ras. Como o nome indica, tudo terminava em rock, com O Brasil vai ter que mudar
apresentações no Bonsucesso ou no Clube do Bolinho, Unidos em um só grito
94 Devotos 20 anos Gestos, Atitudes e Rock’ n’ Roll 95
Cap.06
Deus, abençoe a todos
Deus, abençoe a todos 99
98
100 Devotos 20 anos Deus, abençoe a todos 101
Deus,
Por conta dessa experiência, a família de Eraldo sempre
se preocupou muito com o futuro do filho. Uma vez, ainda
moleque, chegou com uma bermuda nova em casa, que
abençoe meu povo havia ganho de presente de um amigo. Quando o pai per-
guntou qual amigo tinha sido tão generoso, descobriu que
o sujeito era um ladrão conhecido no bairro, e obrigou o
filho a devolver o presente. “Se um dia você tiver de ter
uma bermuda dessa marca, será fruto de seu trabalho, e
não produto de roubo.” Anos mais tarde, a empresa que
fabricava a tal bermuda foi uma das primeiras patroci-
nadoras do Faces do Subúrbio, e o filho chegou em casa
Eraldo Tavares nasceu no Alto José do Pinho, em casa orgulhoso com a bermuda de marca, conseguida a partir
e em parto feito por parteira, no dia 26 de novembro de de seu trabalho. Relembrou a história para o pai, que não
1973. Filho de um motorista com uma dona de casa, a conseguiu esconder o sorriso de orgulho.
infância de Eraldo talvez tenha sido um pouco mais dura
Inteligente, o sonho de Eraldo era ser médico. Jamais
do que a de seus demais companheiros das bandas do
havia pensado em ser músico e, caso tivesse cogitado
Alto José do Pinho. O pai ganhava um salário mínimo e
seguir a carreira artística desde novo, hoje, prova-
sustentava duas famílias, a dele e a outra que mantinha
velmente, seria um cantor de brega, influenciado por
fora do casamento. Por conta disso, ainda muito cedo,
gente como Reginaldo Rossi, Evaldo Braga e Maurício
Eraldo precisou vender picolé para ajudar em casa. Ven-
Reis. Os pais gostavam de lambada e, aos sábados, a
dia na praia de Boa Viagem ou nos parques da Jaqueira e
mãe de Eraldo costumava colocar para tocar os dis-
do Treze de Maio. E um incidente envolvendo o pai o mar-
cos de Capiba e de Nelson Ferreira, de que tanto gos-
caria para o resto da vida.
tava. Até que um dia, o amigo Zé Brown o convidou para
O pai de Eraldo era funcionário contratado de uma dançar break. Eraldo não tinha a menor noção do que
empresa de fornecimento de energia elétrica. Traba- era a cultura hip-hop e, assim como Brown, ficou fas-
lhava por escala. Em uma dessas escalas, sem saber, cinado com a dança e com o som. Quando um amigo
caiu com um pessoal procurado pela polícia por roubar em comum mostrou o vinil Cultura de rua, os dois pira-
fios elétricos. Como era motorista, apenas levava os fun- ram e resolveram ser músicos. E, como toda a rapa-
cionários para fazer o serviço onde eles diziam. Ele não ziada do movimento roqueiro do Alto José do Pinho,
fazia a menor ideia, mas, enquanto estava no carro espe- viraram alvo de preconceitos. Principalmente porque
rando que a turma terminasse o trabalho, o que aconte- se vestiam como os rappers americanos: rasparam
cia, na verdade, era um senhor roubo de fios. A polícia a cabeça, furaram a orelha e passaram a usar bonés
chegou na hora e prendeu todo mundo, inclusive o pai com a aba virada para trás. Se o autor dessas linhas
de Eraldo, que ficou detido por cinco meses no presídio enfrentou muito preconceito ao usar brinco em terra
Aníbal Bruno até conseguir provar sua inocência.
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104 Devotos 20 anos Deus, abençoe a todos 105
de cabra macho como o Recife no início dos anos 1990, terceira edição do Gestos, Atitudes e Rock’ n’ roll, ainda
imagina então o que não sofreram Eraldo e Zé ao fura- sob o nome de The Boys of the Rap. Com poucas músicas
rem a orelha, na mesma época, no Alto José do Pinho. escritas, dançaram mais do que cantaram, mas chama-
O jornalista José Teles lembra que eles eram malvistos ram a atenção. Agora o Alto José do Pinho também tinha
pela comunidade, considerados “maconheiros vagabun- um grupo de hip- hop.
dos”. Ou seja, que baita encrenca foram arranjar. Não
bastasse o preconceito externo por virem de uma das
regiões mais violentas do Recife, precisavam, também,
enfrentar a má aceitação da comunidade em que viviam
apenas pelo fato de se vestirem de forma diferente.
Eraldo andava para cima e para baixo com um tênis bas-
queteira da marca Puma, que estampava o felino em sua
língua. Os amigos acharam que o animal parecia um tigre,
e passaram a chamar Eraldo pela alcunha de Tiger.
O fato é que Zé Brown e Tiger resolveram compor. Um dia,
combinaram de cada um ir para casa e escrever metade
de uma letra. Depois, juntariam as duas partes e cria-
riam uma música. Nascia assim “O Brasil do racismo”,
primeira composição da dupla. Os dois ficaram impres-
sionados com a semelhança entre a realidade descrita
nas letras dos rappers de São Paulo e a que eles viviam
no outro lado do país, no Alto José do Pinho. Passaram a
ter, no ato de escrever, um verdadeiro exercício de desa-
bafo, e foram colocando para fora tudo que, durante
tanto tempo, estava engasgado em sua vida. Não à toa,
temas como preconceito e criminalidade sempre esta-
vam presentes em suas letras. Estimulados por amigos
que fizeram na Unidrad — a União dos Djs, rappers e dan-
çarinos do Recife —, começaram a ler Malcolm X e a se
interessar pela história da luta negra norte-americana.
Dali passaram a pesquisar sobre Zumbi dos Palmares,
Che Guevara e Zapata. Escreviam as letras e pediam
que os Devotos do Ódio fizessem uma levada para can-
tar em cima dela. Foi assim que se apresentaram na
Cap.07
É no banheiro...
É no banheiro… 109
108
110 Devotos 20 anos É no banheiro… 111
Aborto masculino:
vadio. Com 15 anos, começou, de forma autodidata, a
tocar bateria, pegando escondido os instrumentos que
o pai guardava em seu quarto. As influências vinham do
pare de jogar menino maracatu do pai, mas o que despertou mesmo a paixão
no menino pela música foi o rock. Logo passou a andar
116
118 Devotos 20 anos 119
Bar do Orlando:
o CBGB do Alto José do Pinho
Bar do Orlando: o CBGB do Alto José do Pinho 123
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124 Devotos 20 anos Bar do Orlando: o CBGB do Alto José do Pinho 125
Espelho
Outro local de ensaio era a casa de Lindenberg, baixista
do Arame Farpado. Linde (como é conhecido), junto com
Lael, da SS-20, tinha uma equipe de locação de som e
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128 Devotos 20 anos Bar do Orlando: o CBGB do Alto José do Pinho 129
E a parte final:
Punk, rock, hardcore
Sabe onde é que faz?
Lá no Alto José do Pinho...
É do caralho!
Hardcore, Alto José do Pinho”, que acabou tendo empa- Como essa história vai acabar
tia imediata com as crianças que participavam do vídeo, E se puxar tem que atirar
embora tenha sido tocada em público pela primeira vez. E se atirar tem que matar
Para a sua honra poder lavar
O fato é que a fama da banda foi crescendo a passos lar- Um caso tão bonito
gos, mas a grana não. Não raro, o trio ia a pé, carregando Um amor quase impossível
seus instrumentos, até o local do show. Passava pela Mas o amor não vence o ódio
multidão, ia até o backstage, subia no palco, fazia o show Gil Gomes narra o episódio:
e depois retornava a pé para casa. Na ida e na volta, claro,
levava um baculejo da polícia. Uma vez, em 1994, abriram E a banda entrava em fúria e velocidade máximas do
um show dos Raimundos no Circo Maluco Beleza. Os bra- hardcore para explodir no refrão:
silienses acabavam de lançar seu primeiro disco, pelo selo Matou a mãe, matou o pai, matou a filha
Banguela, um braço da gravadora Warner, de propriedade Matou a mãe, matou o pai, matou a amiga
dos Titãs. O álbum foi um sucesso no mercado indepen-
Era desgraça pura jogada no ventilador para um público
dente, e músicas como “Puteiro em João Pessoa”, “Nega
que se acostumara a consumir aquele tipo de noticiário.
Jurema” e “Selim” caíram na boca da garotada. Os Devo-
A banda tocou também “Vida de ferreiro”, porradaria de
tos do Ódio tinham, nesse dia, uma outra apresentação
menos de dois minutos que contava a história de seu
em outro local. Foram a pé até lá, fizeram o show e foram
Antônio, que “todo dia, o dia inteiro, acorda cedo para
andando até o Circo Maluco Beleza. Passaram com os ins-
no trampo começar...”, pois “esse é meu trabalho, meu
trumentos no meio da multidão, subiram no palco e fize-
amigo, eu tenho mais de trinta filhos, pra comer tenho
ram um baita show. Algumas pessoas viram ali, pela pri-
que trampar”. E a conclusão, simples, direta, objetiva,
meira vez, um show dos Devotos do Ódio, que pegou boa
punk: “Vida de ferreiro é hardcore, seu Antônio, pode
parcela do público roqueiro de classe média dos Raimun-
crer!” E veio o final com “Punk, Rock, Hardcore, Alto José
dos. A imensa roda de pogo2, tradicionalíssima nos shows
do Pinho”, com mais de 2 mil pessoas respondendo que
do trio, deixou parte da plateia embasbacada. A banda
o punk rock hardcore feito no Alto José do Pinho era “do
tocou “Caso de amor e ódio”, música inspirada no telejor-
caralho”. Para os que estavam presentes àquele show,
nalismo sanguinolento na linha do Aqui e agora, extrema-
como eu, é difícil acreditar, mas a verdade é que a banda
mente popular na época. Um baixo sinistro começava a
voltou a pé para o Alto José do Pinho, levando o bom e
dialogar com uma batida incômoda, criando, no ouvinte,
velho baculejo antes de subirem o morro.
uma sensação de claustrofobia. Depois entrava a guitarra
cortante de Neilton, e Cannibal começava a cantar:
Caso de amor e ódio
Gil Gomes vai contar
Na rua a tristeza
Do pobre a mendigar
Na casa a miséria
Do natal que não vai chegar
Pobre do menino DEUS
Que não precisa mendigar
Para ele tudo tem
Os Devotos do Ódio finalmente iam realizar o sonho de Para ele nada vai faltar
gravar um vinil. Na verdade, era uma coletânea com
Tem a oração
outras duas bandas, Delinqüentes, do Maranhão, e Karne Tem a devoção
Crua, de Sergipe. O projeto foi intitulado “Cooperativa do Tem a alienação
Kaos.” A ideia era colocar no mercado um álbum apenas De um povo cristão
com bandas punks do Nordeste, mas faltou grana para
A plateia, em sua maioria composta de pessoas de classe
finalizar a empreitada, e o disco não vingou. Carlos, edi-
média alta, ficou atônita, sem saber como reagir, se
tor do fanzine “Recifezes”, junto com Marcus Arbar, da
aplaudia ou vaiava. A banda tocou mais algumas músicas,
produtora Maos Contatos, tentaram lançar as faixas dos
desceu do palco e fez o caminho de volta para casa a pé.
Devotos do Ódio que seriam utilizadas na coletânea em
um compacto da banda. Neilton chegou a fazer a capa e o Mesmo com todas as dificuldades enfrentadas, os Devo-
fotolito, mas o projeto não foi adiante por falta de verba. tos não desanimaram e trataram de seguir em frente do
jeito que dava, na base da raça mesmo.
Nessa época, Paulo André convidou os Devotos para
tocarem num evento chamado “Mangue Feliz”, que seria Como ainda não tinham condições de alcançar o sonho
realizado no Circo Maluco Beleza e contaria com a pre- de gravar um vinil, coisa extremamente cara na época, os
sença de várias bandas do movimento. O trio fez todo o meninos dos Devotos do Ódio nutriam um carinho e zelo
percurso do Alto José do Pinho até o local do show (cerca especiais por suas fitas demo, que enchiam os olhos de
de 4 km) a pé, levando os instrumentos nas mãos. Che- quem as comprava. Bom de desenho, Neilton caprichava
garam exaustos, com os pés cobertos de poeira (alguns na arte das fitinhas. Criava capas com encartes, tudo
tinham ido de chinelo, outros, de coturno, calçado comum desenhado à mão. Da matriz, tirava cópia dos desenhos, e
entre os punks). Subiram ao palco e tocaram “Já é Natal”, todas as fitinhas vinham personalizadas, com o nome do
composição de protesto ainda hoje inédita em gravação: grupo desenhado nelas.
136
138 Devotos 20 anos Bar do Orlando: o CBGB do Alto José do Pinho 139
Nessa época, participaram do concurso de bandas Recife na gravação do vídeo da música que integra o documen-
Rock Show, festival produzido pela Arte Viva e realizado tário “Punk, Rock, Hardcore, Alto José do Pinho é do
no bairro de Boa Viagem, em que os Devotos ficaram em caralho”, aquele que supostamente foi visto e aprovado
primeiro lugar, superando Jorge Cabeleira e o Dia em que por Bono, em Dublin. “Vida de ferreiro” teve ótima cir-
Seremos Todos Inúteis, que ficou em segundo, e Os Mor- culação no Brasil. A troca de fitas entre as bandas era
domos (que nada mais era do que o Jorge Cabeleira ins- uma constante no país. Quando alguma banda de fora
crito com outro nome) em terceiro. No júri estavam, entre aparecia para tocar no Recife, voltava com a bagagem
outros, Chico Science e Paulo André. Curioso é que Neilton repleta de demos de grupos da cidade. Assim foi com
não gostou do resultado. Ele queria o segundo prêmio, um os Raimundos. E, no caso dos Devotos do Ódio, havia
amplificador, e ficou bastante chateado quando o amigo o apelo natural por ser uma banda de punk rock de um
André Nanyca deu a notícia. morro recifense. E, ainda por cima, tinha a história da
guitarra de Neilton.
Pouco depois, os Devotos tocaram no Recife Summer
Fest, festival que contou com a paulistana Viper na pro- Chico Science mostrou a invenção para os Raimundos,
gramação. Apresentaram seis músicas: “Nova Vida”, que, obviamente, piraram com a história. Chico até che-
“São Fatos da Guerra”, “Asa Preta”, “Luz da Salvação”, gou a aconselhar Neilton a explorar a história da guitarra.
“Pela Justiça” e “Futuro Inseguro”. A banda gravou o Mas Neilton tinha claro na cabeça que o instrumento
show e lançou em fita cassete. Neilton caprichou e fez não havia sido fabricado com essa finalidade. O líder do
um capa gigante, estilo mapa, que, aberta, trazia o S e a movimento mangue sempre demonstrou interesse em
cruz formando um cifrão e as letras de todas as músicas trabalhar com os Devotos. Como, até então, nunca havia
tocadas. Eram nítidos o carinho e o zelo com que a banda tocado na periferia, propôs fazer um show junto com o
fazia suas demos. trio no Alto José do Pinho. O evento teria o nome “Esta-
mos por cima”. Chico também pensava em abrir um selo,
A banda então entrou em estúdio e gravou, com cuidado
e os Devotos era a primeira banda que ele queria produzir.
profissional, “Vida de ferreiro”, até hoje, uma das demos
Infelizmente, Chico morreu sem realizar o desejo de tra-
mais disputadas pelos colecionadores. Nela apareciam
balhar com o grupo.
composições um pouco mais rebuscadas, que iam um
pouco além do punk rock, como “Fogo cruzado”, que ter- Paralelo ao trabalho musical com os Devotos do Ódio,
minava com um verso mortal de Cannibal: “Inocentes e Neilton ia se aperfeiçoando na arte de desenhar. Suas
culpados são estilhaçados. Aqui todos são vítimas: fogo camisetas pintadas rendiam um bom dinheirinho, e eram
cruzado.” Era o retrato fiel do Alto José do Pinho. E de tão benfeitas que pareciam saídas de fábrica. Passou a
todos os subúrbios do Recife. “Vida de ferreiro” trazia receber encomendas personalizadas. Um amigo che-
também “Uma bala na agulha”, “Formando opiniões”, gava para ele e dizia que queria uma camiseta de deter-
“Enganado”, “O homem monstro” e “Faz parte do coti- minada banda que contivesse um desenho específico. E
diano”. “Punk, Rock, Hardcore, Alto José do Pinho” tinha o desenho era feito à perfeição por Neilton. O guitarrista
sua primeira versão gravada, a mesma que foi utilizada via os anúncios das lojas de camisas em revistas gringas
140 Devotos 20 anos Bar do Orlando: o CBGB do Alto José do Pinho 141
142 Devotos 20 anos Bar do Orlando: o CBGB do Alto José do Pinho 143
de música, como a Guitar Player, e copiava todos os dese- E os shows nas ruas no Alto José do Pinho, aqueles com
nhos. Foi ficando tão craque naquilo que alguns amigos grades de cerveja servindo de sustentação para um
sugeriram que ele partisse para a pintura de verdade, na tablado improvisado como palco, permaneciam firmes e
tela. Neilton, sempre muito modesto, dizia que aquilo não fortes. E, agora, com o aval da Rede Globo e da MTV. Mui-
era para ele, e continuava firme na produção de camise- tos jovens de classe média passaram a subir o morro para
tas e de capas de demos. Fez as capas de todas as demos se divertir nesses shows, para se juntar aos moradores do
das bandas do Alto José do Pinho. Generoso, Neilton gra- Alto José do Pinho nas rodas de pogo, espaço punk demo-
vou as demos de boa parte das bandas do Alto José do crático onde todas as classes sociais se misturavam. E,
Pinho em sua casa, sem cobrar um centavo sequer, pois para espanto de todos, esses jovens de classe média
não queria que elas enfrentassem as mesmas dificul- eram muito bem recebidos pelos moradores do Alto José
dades que ele enfrentou para conseguir gravar. Neilton do Pinho. Não demorou muito, o bairro criou fama por
ainda não sabia, mas começava a construir uma sólida ser um local calmo, onde se podia tomar uma cerveji-
carreira de artista gráfico e plástico, além de designer. nha por um preço justo e ver shows de bandas punks do
bairro e até de fora dele. Os moradores passaram a ter
Já Celo arrumou um emprego como agente de saúde,
orgulho de morar no morro. E o orgulho era fruto do tra-
trabalho que gostava bastante de fazer, pois envolvia,
balho justamente daqueles meninos que eram margina-
de certa forma, um exercício de conscientização nas
lizados em sua comunidade. Ainda hoje, muitos deles,
comunidades carentes. Gostava de dizer que fazia uma
já adultos, casados e com filhos, guardam certa mágoa
espécie de trabalho de psicólogo, conversando com as
por terem sido tão discriminados naquele período. Mais
pessoas. Só que as atividades com os Devotos do Ódio
do que orgulho para os moradores, o Alto José do Pinho
foram ficando cada vez mais intensas, as viagens eram
se transformou em referência para as demais periferias,
muitas, e o chefe acabou encostando Celo na parede:
e não havia cidadão no Recife que não se orgulhasse da
“E aí? Vai continuar trabalhando com a gente ou vai ser
reviravolta acontecida no bairro. A imprensa, que antes
artista?” “É, vou ter que sair.” A partir daquele momento,
só subia o morro para cobrir assassinatos ou deslizamen-
Celo seria músico profissional para o resto da vida, sem
tos de barreiras, agora procurava o Alto José do Pinho
tempo ou espaço para exercer qualquer outra atividade.
para pesquisar sua cultura. E, mais uma vez, os meninos
Caminho que tinha escolhido desde cedo, aos 12 anos,
deram um belo exemplo de generosidade.
ao ver aquele baterista de banda de baile tocando numa
festinha na Mangabeira.
Cannibal, nas horas vagas, exercitava suas origens negras,
tocando baixo na Nanica Papaya, banda de reggae de seu
amigo André. Pouco tempo depois, sua figura ficou extre-
mamente conhecida nas ruas do Recife, pois ele ia pes-
soalmente aos colégios do centro da cidade divulgar os
shows dos Devotos do Ódio.
Bar do Orlando: o CBGB do Alto José do Pinho 145
Tem afoxé,
a mesma matéria e foto que trazia Devotos do Ódio, Mata-
lanamão, Faces do Subúrbio, A Ostenta e Terceiro Mundo
reproduzia, também, o pessoal do maracatu Estrela
tem pagode 3 catu e do afoxé para tentar sanar uma injustiça histórica.
Por essas e outras, os meninos viraram o jogo de forma
impressionante na comunidade. Passaram a ser res-
peitados de tal forma no bairro que ainda hoje tamanha
aceitação causa certo estranhamento. Esteticamente,
pouca coisa mudou. Quase ninguém no morro, fora os
integrantes das bandas, gosta de rock. Em compensa-
ção, hoje não há quem não admire o trabalho que eles
desenvolveram e ainda desenvolvem na comunidade. E
Fato raro na imprensa em todo o mundo, os três jornais justo “aqueles vagabundos de preto, maconheiros que
da cidade se juntaram para fazer uma matéria sobre as não queriam nada com a vida”. Às vezes, a vida tem um
bandas de rock do Alto José do Pinho. O normal é que um senso de humor bem punk...
jornal queira ferrar o outro, obter matérias exclusivas,
furos. Porém, à época, o Jornal do Commercio, o Diário de
Pernambuco e a Folha de Pernambuco subiram o morro
juntos para uma reportagem conjunta sobre o movi-
mento roqueiro do Alto José do Pinho. Efeito dominó
provocado pela Rede Globo e, principalmente, pela MTV,
que tratou de apresentar o Alto para todo o país. Além
de juntar todas as bandas do Alto José do Pinho, Canni-
bal e seus amigos fizeram questão de chamar o pessoal
do maracatu e do afoxé, que já tinham grande tradição
local, mas nunca tiveram espaço na mídia. Assim sendo,
3 Trecho da letra da música “Tem de tudo”, dos Devotos do Ódio, gravada no
álbum Agora tá Valendo (1997).
144
Bar do Orlando: o CBGB do Alto José do Pinho 147
Anos 1980
Mas os integrantes da banda passaram a encarar a B.U.
de formas distintas. Enquanto para Neilton a banda era
apenas uma fuga ao hardcore dos Devotos do Ódio, mais
uma forma de ampliar seus horizontes como músico,
para Cannibal e Celo, a coisa era mais séria. Eles acre-
ditavam que a banda tinha potencial para fazer carreira
no grande circuito. Como as pretensões de Neilton eram
bem mais modestas, o guitarrista tratou de pular fora e
acompanhar tudo de longe. Luciano foi recrutado para
ocupar seu lugar. O B.U. existe até hoje e, volta e meia, é
Bá, um dos amigos de infância dos meninos, tocava gui- escalado para algum show independente no Recife.
tarra na Egoesmo com Celo. Com o fim da banda, Bá ficou
cerca de um ano parado. Celo então juntou o útil ao agra-
dável, e, como já sentia necessidade artística de dar vazão
às suas influências do rock inglês dos anos 1980, resolveu
criar uma nova banda que trouxesse Bá de volta ao meio
musical. Nasce a B.U. (Bond of union, nome dado por Neil-
ton, referente ao quadro de Escher), banda que traz Celo
na bateria e nos vocais, Neilton e Bá nas guitarras e Micro
no baixo. Todas as composições eram em inglês. Poste-
riormente, Cannibal assumiu a bateria, deixando Celo com
liberdade para se dedicar apenas aos vocais. Luciano, que
sempre acompanhava os ensaios e shows da banda, ficou
com o lugar de Micro no baixo quando ele deixou o grupo.
O B.U. abraçaria a sonoridade dark de bandas como
Bauhaus, com letras melancólicas escritas por Celo nas
folgas entre um show e outro dos Devotos do Ódio. Esteti-
camente, nada produzido pela B.U. teria espaço nos Devo-
tos do Ódio. A temática da maioria das composições era
sobre amores frustrados e relacionamentos problemáti-
cos. Nenhum dos temas sociais de sua banda de origem.
O grupo chamava atenção justamente pelo inusitado.
Pouca gente imaginava que aquela banda responsável
146
Cap.02
Não somos marginais
Não somos marginais 151
O The Boys of the Rap foi tocar no Arte Viva, uma academia
de propriedade de uma senhora chamada Lourdes Rossi,
que abria o local para shows de rock. Ela é considerada
até hoje uma espécie de madrinha do hip-hop, pois foi a
primeira a abrir espaço para os grupos locais. Sem contar
que o Arte Viva virou um programa de televisão veiculado
pela TV Jornal, retransmissora do SBT no Recife. Nesse
dia em que o The Boys of the Rap tocou no Arte Viva,
havia mais de cem pessoas na plateia, todas ligadas
ao movimento hip-hop de Recife. E os meninos se apre-
sentaram no formato tradicional, cantando em cima de
bases pré-gravadas. Cannibal havia levado Paulo André
para assistir, e ele gostou do que viu. Mais tarde, reuni-
Zé Brown e Tiger criaram o hábito da escrita. Colocaram
dos com o pessoal do movimento hip-hop, Paulo André
no papel tudo o que enfrentaram na pele desde que se
perguntou a alguns membros qual seria a reação deles
entendiam por gente. O preconceito que sofreram por
frente a um convite da Sony Music para gravar um disco.
serem negros e moradores de uma das comunidades
A maioria reagiu de forma radical, dizendo que gravar
mais violentas do Recife. Haviam nascido para escre-
por uma major era coisa de playboy ou de vendido. Paulo
ver, só não tinham descoberto a vocação até então. Foi
André então repetiu a mesma pergunta para Tiger e Zé
quando decidiram que já estava na hora de mostrar seu
Brown. Mais antenados e esclarecidos do que a maio-
trabalho. Ou, pelo menos, um pouco dele. Na terceira
ria ali, responderam que, se o contrato fosse legal para
e última edição do Gestos, Atitudes e Rock’ n’ Roll, em
eles, assinariam sem o menor problema. Paulo André
1993, Zé Brown pediu que Cannibal fizesse umas levadas
perguntou se eles conheciam o álbum Judgment Night,
de baixo no estilo funk para ele se apresentar com Tiger
trilha sonora do filme homônimo — lançado no Brasil
no evento. Cannibal disse que não conseguia. Zé Brown
como Judgement Night: uma jogada do destino — que
apelou então para Neilton e Celo, que toparam o desa-
trazia bandas de rap tocando com grupos pesados como
fio e improvisaram na hora, lá no Bonsucesso Futebol
Slayer. Como os meninos não conheciam, Paulo André
Clube, umas levadas balançadas para a dupla se apre-
emprestou o disco a eles. Os caras ouviram e gostaram.
sentar escudada por alguns dançarinos. Foi a primeira
Ligaram para Paulo André para agradecer a atenção. E o
apresentação deles, que ainda atendiam pelo horroroso
último conselho de Paulo André foi fundamental. “Tro-
nome de The Boys of the Rap. O show foi quase todo de
quem de nome. Esse de vocês é muito americanizado.
dança, e Tiger e Zé Brown recitaram algumas coisas de
Procurem achar um que tenha mais a ver com vocês.”
improviso. Depois disso, Nilson, irmão de Neilton, foi
Tiveram a ideia de Faces do Subúrbio. Mas o empurrão
recrutado como DJ por eles. Assim como o irmão, que
definitivo para a carreira do Faces foi do Devotos do
fabricou sua guitarra, Nilson também fez sua primeira
Ódio. No Abril pro Rock de 1994, os Devotos teriam vinte
pickup a partir de sucatas.
150
152 Devotos 20 anos Não somos marginais 153
154 Devotos 20 anos Não somos marginais 155
156 Devotos 20 anos Não somos marginais 157
e cinco minutos de show. Cannibal perguntou a Paulo pediu para tocar no grupo. Era Garnizé, que, mais tarde,
André se daria para acrescentar mais cinco minutos no ficaria nacionalmente conhecido por ter sua história
tempo de apresentação da banda, pois ele queria levar o contada no filme “O rap do pequeno príncipe contra as
Faces do Subúrbio para fazer uma participação no show almas sebosas”, de Paulo Caldas e Marcelo Luna. Gar-
deles. Paulo André disse que era impossível. Mas afir- nizé indicou Oni como guitarrista, e, para completar a
mou que, durante o tempo deles de show, a banda pode- banda, chamaram Marcelo Massacre, baixista do Ter-
ria fazer o que bem entendesse. Então Cannibal, Neilton ceiro Mundo. Essa formação, mais o DJ KSB, que entrara
e Celo cederam cinco minutos de sua apresentação para no lugar de Nilson, gravou a demo “Não somos mar-
chamar ao palco o Faces do Subúrbio, que foram apre- ginais”, que trazia as músicas “Críticas e críticas”, “O
sentados ao público como “uma banda nova de rap do Brasil do racismo”, “Homens fardados” e a faixa-título.
Alto José do Pinho”. A plateia, formada em sua maioria Esse trabalho ganhou o prêmio de melhor demo de 1996
por fãs de hardcore, gostou da novidade, e o Faces foi pela revista Trip. Foram convidados por Gutie para a edi-
muito aplaudido. ção paulista do Rec-Beat, e o pai de Tiger não acreditou
quando o filho disse que viajaria para São Paulo. “Tá pen-
Empolgados, gravaram, na casa dos pais de Neilton e
sando que São Paulo é ali em Camaragibe?” Só acreditou
Nilson, uma demo intitulada “Ser Negro”, onde Nilson
quando viu uma matéria na Rede Globo, que mostrava o
fazia as bases e Zé Brown e Tiger cantavam. A capa,
filho embarcando em um ônibus para São Paulo com as
como de costume, foi feita por Neilton, e trazia a figura
outras bandas do Recife.
de Nelson Mandela estampada nela. Nilson, além de DJ
do Faces, foi o técnico de som da demo. O esforço deu E as coisas começaram a acontecer rápido para o Faces.
resultado. Uma cópia dela acabou parando nas mãos Mas eles ainda precisariam superar muitos preconceitos.
de Chico Accioly, diretor de cinema e publicitário que
na época cuidava da carreira de Chico Buarque. Ele
viu o potencial que existia ali e bancou a segunda fita
demo, “Não Somos Marginais”. Como a dupla gostou da
fusão que ouviu em Judgment Night, decidiu montar uma
banda. Seria o segundo “sacrilégio” cometido por eles
no meio hip-hop. O primeiro foi misturar rap com embo-
lada, o que dava ao som que faziam um delicioso sota-
que nordestino e os diferenciava dos demais grupos do
estilo. A ideia da embolada surgiu após um conselho de
Chico Science, que, ao assistir a um show da dupla junto
com Paulo André, sugeriu que os meninos mergulhas-
sem na embolada assim como ele, Chico, havia feito com
o maracatu. Um baterista de Camaragibe1, fã da banda,
Cap.03
Quero até sua mulher
Quero até sua mulher 161
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168 Devotos 20 anos Nós faremos que você nunca esqueça 169
Alto José do Pinho e em Peixinhos, com Cannibal vestindo Chico Science havia morrido em um acidente de carro,
uma camiseta preta escrita INRI. “Punk, Rock, Hardcore, e a comoção ainda era grande. Naquele ano, o festi-
Alto José do Pinho” ganhava sua versão definitiva, assim val contou, em sua programação, com Paralamas do
como “Vida de ferreiro”, “Luz da salvação”, “Caso de amor Sucesso, Ratos de Porão e Arnaldo Antunes. Max Cava-
e ódio”, “Fogo cruzado” e “Nova vida”. O disco impres- lera, recém-saído do Sepultura, veio dos Estados Unidos
sionava pela crueza, e, principalmente, pelo trabalho de para conferir o evento. Os Devotos do Ódio fizeram uma
guitarra de Neilton. “Enganado”, por exemplo, trazia um apresentação correta, mas pouca gente ali conhecia o
pouco das influências de fora do mundo punk do guitar- repertório do disco. Emocionado, Cannibal dedicou o
rista. E a penúltima faixa do disco era uma canção que show a sua filha recém-nascida, Lais, e disse que o CD
parecia traduzir todo o passado, o presente e o futuro da estava à venda em um stand ali mesmo, no Centro de
banda: “Mas eu insisto”. O álbum terminava com “Futuro Convenções. Foi como adquiri o meu.
inseguro”, primeira composição da vida dos Devotos.
O disco possibilitou algumas viagens, e garantiu a popu-
Neilton fez as ilustrações, e o projeto gráfico ficou por laridade da banda, pelo menos, na região Nordeste. Mas
conta da Ouriço Designer, empresa de Pernambuco. Todo os perrengues continuavam.
o trabalho gráfico foi feito no Rio de Janeiro. A capa estam-
O fato é que os Devotos do Ódio eram contratados de uma
pava o desenho, sobre um fundo azul, do rosto de um anjo
grande gravadora, mas recebiam um tratamento pior ao
morador de rua com uma tarja preta cobrindo os olhos.
que costuma ser dado a uma banda independente, como
O guitarrista não ganhou um centavo pelas ilustrações.
lembra Neilton: “A gente ficou num hotel perto da grava-
O encarte ainda trazia um longo e emocionado texto de
dora (BMG). Hotel três estrelas, com uma delas já apa-
Fábio Massari, que contava como ele havia descoberto a
gando e caindo (risos). E a gente tinha a grana contada pra
banda e o Alto José do Pinho.
tocar e passar um mês lá. E o café da manhã da gente era
A banda não gostou da produção do álbum. Achou que o pão com queijo, uma banana e café com leite. Aí ficava
som ficou chocho, que não reproduzia fielmente a violên- assim até a hora do almoço, geralmente às quatro e meia
cia sonora dos shows da banda. Para piorar, alguns punks da tarde, pra gente poder compensar o jantar, que não ia
mais radicais chegaram a acusar o grupo de traidor do ter. Todo dia era isso. E o resto da noite era a barriga ron-
movimento por ter gravado um disco por uma grande gra- cando. A gente entrava naquele puta prédio da gravadora,
vadora e por ter feito um clipe veiculado pela MTV. Como cheio de seguranças, de bermuda e chinelo para encher
gosta de dizer João Gordo, vocalista do Ratos de Porão e nossas garrafas de água. O passatempo da gente era ficar
apresentador da MTV, punk só dá valor “se você for feio, olhando as meninas na praia1.”
sujo e comer merda”.
Entretanto, aos trancos e barrancos, “Agora tá valendo”
O lançamento de “Agora tá valendo” foi no Abril Pro Rock acabou circulando no circuito punk. A BMG não sabia
de 1997. O festival crescera a tal ponto que precisou trabalhar a banda, e esperava que ela atingisse o mesmo
mudar de endereço. Saiu do Circo Maluco Beleza para patamar de vendas do Só Pra Contrariar. Quando foram
o Centro de Convenções. Fazia apenas dois meses que
1 Ibidem.
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186
Cap.07
Me ajude a ser humano
Me
Cap.07
Me ajude a ser humano
Me ajude a ser humano 191
190
192 Devotos 20 anos Me ajude a ser humano 193
Me ajude a ser humano 195
Eu tenho a fome
A música contou com a participação do próprio Dado nos
vocais. A banda gravou também “O Herói” e “Nós fare-
mos que você nunca esqueça”, ambas já conhecidas nos
194
196 Devotos 20 anos Me ajude a ser humano 197
198 Devotos 20 anos Me ajude a ser humano 199
Nasce um artista
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Me ajude a ser humano 203
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p.08 Cap.08 Cap.08
íticas e críticas Críticas e críticas Críticas e críticas
Críticas e críticas 207
206
Cap.09 Cap.09
Coletânea Coletânea
Coletânea 211
210
Coletânea 213
Preconceito
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Cap.10
Faz parte do cotidiano
Cap.10
Faz parte do cotidiano 217
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218 Devotos 20 anos Faz parte do cotidiano 219
vez, ainda menos sutil, com “Só os que não pensam têm a sabia que um dia precisaria dessa grana extra para os
consciência limpa”: instrumentos, pra gravar. É com essa grana que a gente
Vão tomar no cu
guarda só pra banda que a gente consegue fazer as coi-
Vão se fuder sas3”. “A Hora da Batalha” foi resultado de um investi-
Vão tomar no cu mento da banda em si mesma, pois as coisas ficaram
Filhos da puta que estão no poder complicadas depois que optaram por não lançar mais
discos por gravadora.
E, coisa inédita, o álbum termina com um reggaezi-
nho, “Pra aliviar”. À época, escrevi na revista Zero que 3 Entrevista feita e publicada pelo autor para o site Recife Rock! (http://www.
reciferock.com.br/2008/01/27/entrevista-devotos-20-anos).
“com 15 anos de estrada, sem gravadora, sem produtor,
fazendo o que dá na telha, Celo Brown (bateria), Canni-
bal (baixo e vocal) e Neilton (guitarra) encontraram o
mapa da mina. Definitivamente, eles não precisam de
produtores1”. Na mesma edição, Cannibal me explicava
como a banda procederia dali em diante. “Tivemos que
aprender muito. Procurar um selo, mixar. A gente nunca
tinha feito isso. Queremos fazer os discos e oferecer às
gravadoras. Jamais ceder os direitos para as gravado-
ras2.” “Hora da Batalha” ganhou, ao lado do Sepultura,
que lançava “Roorback”, capa do Caderno 2 do jornal
carioca O Globo, cuja manchete dizia que “O Brasil é o
país do barulho.”
A partir desse disco, os Devotos seriam responsáveis por
todas as etapas da linha de produção: da composição das
músicas, passando pela mixagem e gravação, projeto
gráfico, até a distribuição. A banda prensou 1.500 cópias
do disco e distribuiu pessoalmente em algumas lojas,
até fechar contrato com uma empresa que bancasse a
distribuição. O álbum foi todo produzido com grana pró-
pria, a quarta parte que eles separavam do dinheiro que
ganhavam com os cachês dos shows e guardavam no
banco. Como me explicou Cannibal, “a grana que a gente
pegou a gente sempre dividiu por quatro, porque a gente
1 Entrevista ao autor.
2 Idem.
224
Cap.12
Quem é o pai?
Cap.12
Quem é o pai?
Quem é o pai? 229
ter sido informado sobre o projeto, e decidiu se afastar. Apesar da boa faixa-título, o álbum é nitidamente infe-
Passou, desde então, a acompanhar de longe a carreira rior ao primeiro, e teve repercussão bem modesta no cir-
do Matalanamão. “Quem é o pai?” traz várias composi- cuito roqueiro do Recife. A banda ainda chegou a fazer
ções antigas, da época em que Celo ainda fazia parte da um bom show de lançamento no festival Pré-Amp, na rua
banda. É o caso de “Os 3 tabacos”, “Aeromoças”, “Love”, da Moeda, onde, literalmente, lançou o disco, jogando
e “Goticar”. Esta última deixa claro que o lirismo do cópias de “Quem é o pai?” para a plateia. Ironia máxima
Matalanamão sempre foi o mesmo, desde os tempos de no caso do Matalanamão, seus integrantes não acha-
Celo. Eis o refrão: vam mais espaço em suas agendas para divulgar o disco.
Cabaço vai Todos trabalhavam em ONGs, e chegava a ser engraçado
Cabaço vem pensar na dicotomia da situação: uma banda que faz a
É tanto cabaço apologia da masturbação e tem em “Os peitinhos” um
E eu sem ninguém de seus hinos, não consegue levar sua carreira adiante
A novidade em “Quem é o pai?” é a tentativa do grupo em por conta de trabalhos sociais desenvolvidos por seus
expandir seus temas para além da masturbação, como membros. Aqueles mesmos que, no início de tudo, eram
em “Bomba”, composição de Jaiminho e de Peste, que apontados como vagabundos e maconheiros sem futuro.
228
230 Devotos 20 anos Quem é o pai? 231
Cap.13
Luta pacifista
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236 Devotos 20 anos 237
Cap.01
A arte de Neilton
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desenhos. Em 1998, fez mais uma série de camisas para Aos poucos, o nome de Neilton foi circulando no mundo
expor no Mercado Pop do Abril Pro Rock, agora tendo das artes plásticas, o que gerou ciumeira entre os artis-
como tema “répteis e anfíbios”. Todo mundo passou a tas. “Os artistas plásticos se incomodam por eu ser
dizer que Neilton era um artista plástico talentoso, que músico e invadir a área deles. E eu acho massa não ser
precisava expor seu trabalho, pois seria um sucesso. aceito, porque estou fazendo meu trabalho sem ajuda
Mas Neilton, em atitude tipicamente punk, queria ape- de ninguém.”
nas continuar pintando suas camisetas. “Eu tinha uma
No ano seguinte ao da exposição Imagens puras, Neilton
demanda da porra por camiseta nos anos 1990. Paguei
foi convidado pela MTV para fazer o projeto gráfico do
minhas contas todas fazendo camiseta. Até que me dis-
DVD “MTV Apresenta Cordel do Fogo Encantado”. Gutie,
seram para eu passar pra quadro.” E conta uma história
que além de produzir o Rec-Beat, também é empresário
em que acaba mostrando certo descaso com a própria
do Cordel, aproveitou para chamar Neilton para produ-
obra, típico dos gênios. “Chico Accioly, um produtor que
zir o site do Cordel do Fogo Encantado. Os convites não
trabalhava com Chico Buarque e com Gal Costa me levou
pararam mais. Foi um dos ilustradores do livro “Detri-
para uma galeria em Boa Viagem e me apresentou a uma
tos cósmicos”, de Fábio Massari. E passou a ser con-
curadora. Fiz, mandei, gostaram, mas eu não tava nem
vidado para uma série de debates, mesas-redondas e
aí. Queria pintar camiseta.”
palestras sobre artes plásticas. E, para irritação maior
De tanto insistirem, Neilton resolveu ver qual era. E dos artistas, foi chamado para ser curador de exposi-
se descobriu artista. Passou a fazer telas enormes de ções. “E agora, que fui convidado para ser curador, tem
Eucatex, pintadas em acrílico e pastel óleo. Suas telas artista virando bicho.”
mediam incríveis 120x80cm, e muitos de seus desenhos
pareciam vivos. É o caso do quadro em que retrata uma
senhora negra que viu no bairro da Linha do Tiro, e que
foi comprado por Gutie. Intitulado “Na Linha do Tiro”, o
quadro fez parte da primeira exposição de Neilton como
artista plástico, a Imagens puras. Polivalente, fez de
tudo na exposição. “Eu fiz a iluminação, fiz o projeto grá-
fico da exposição, pintei os quadros, troquei as luzes dos
postes e a parte elétrica do casarão, que estava aban-
donado. O produtor que estava me ajudando tinha um
amigo que ia emprestar duas lâmpadas de poste para
iluminar o banner. Aí o cara chegou: ‘cadê o artista?’. E eu
do lado dele, todo sujo. Ele pensava que eu era o peão que
estava fazendo as obras lá”, conta, divertido, o Leonardo
da Vinci do movimento punk do Alto José do Pinho.
A arte de Neilton 249
Amp
Hemetério, que chama carinhosamente de castelo de
Grayskull, em alusão ao castelo do desenho animado
He-Man. No andar de cima, dedica-se aos trabalhos de
produção gráfica e desenvolvimento de sites. Embaixo
fica a oficina onde produz os Amps, que, como gosta de
dizer, “falam alto”. Quando o assunto é tecnologia, o dis-
curso de Neilton é extremamente coerente:
“Nós ainda somos bem atrasados em termos de men-
talidade de mídia. A gente fica muito bitolado com as
novas tecnologias. A gente paga o desenvolvimento de
uma nova tecnologia. E nem usufrui o suficiente daquela
Uma vez, Gil Vicente, artista de quem Neilton é muito tecnologia que está em desenvolvimento pra partir pra
fã e que escreveu o texto crítico do catálogo da expo- ser ainda mais moderno. A gente, na verdade, precisa
sição “Imagens Puras”, disse para Neilton se concen- reaprender a reutilizar as coisas que ainda têm uma vida
trar em uma atividade só. Que ele jamais conseguiria se útil muito grande. Mesmo que a gente não enxergue1.”
dedicar totalmente à música, à pintura e à eletrônica ao
mesmo tempo. Aquela declaração deixou Neilton bas- Se pensar direitinho, foi este raciocínio que o levou a
tante deprimido. “Eu fiquei mal, cheguei em casa, fiquei fabricar sua guitarra. E o mesmo utilizado por seu irmão
deprê. Aí pensei: Nilson na fabricação de sua primeira pickup no Faces do
Subúrbio. Tem uma piada que virou rotineira no Alto José
‘Gil, vou continuar fazendo tudo ao mesmo tempo, como do Pinho. Uma vez perguntei ao Cannibal o que Neilton
sempre fiz.’ E ele: ‘você vai acabar como pato: não nada estava fazendo no momento, em que tipo de projeto ele
direito, não anda direito, não voa direito...’” Fato é que o estava envolvido. O baixista me olhou com um sorriso
“pato” Neilton fundou o Altovolts, um grupo de pesqui- matreiro e respondeu: “Neilton? Está fazendo o céu, a
sas de tecnologias mortas, onde ele restaura, desenha terra, os homens, as árvores...”
e constrói amplificadores de áudio à válvula. Ninguém
1 Entrevista concedida ao autor e publicada no site Recife Rock! (http://www.
melhor do que ele, que fabricou a própria guitarra, para
reciferock.com.br/2008/01/27/entrevista-devotos-20-anos).
trabalhar com tecnologias obsoletas. Atualmente, Neil-
ton fabrica, ao lado dos amigos Gilson Gerrard e Adriano
Leão, amplificadores sob encomenda. Entre seus clien-
tes estão nomes como Dado Villa-Lobos, Siba Veloso,
Fred Andrade, e Gabriel Melo, da Academia da Berlinda.
Fora, claro, os Devotos, que também utilizam os ampli-
ficadores da Altovolts. Neilton passa os dias enfurnado
em sua casa de dois andares no bairro da Bomba do
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250 Devotos 20 anos A arte de Neilton 251
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Cap.02
A fundação da ONG
A fundação da ONG 255
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vacinação, dicas de lazer e comerciais de estabeleci- respondia muito bem às oficinas que rolavam nesses
mentos locais. “É engraçado, pois existem duas lojas de eventos. Oficinas de capoeira, de break.
material de construção civil aqui. No dia que uma anun-
O empurrão para os meninos se organizarem para fundar
cia na rádio uma promoção de cimento e telha, a outra
a ONG veio da Fase, que já testemunhava e ajudava, há
imediatamente faz questão de cobrir a oferta em anún-
algum tempo, as bandas do Alto José do Pinho na rea-
cio na rádio no dia seguinte. E a gente faz questão de
lização de eventos. “Evanildo Barbosa, diretor-geral da
estimular isso”, ri Cannibal. Logo que a rádio abriu, em
Fase, disse que o melhor caminho seria a gente se cons-
2002, Cannibal comandava um programa voltado para
tituir juridicamente como uma instituição. Até então era
o samba chamado Amnésia. “Tocava muito samba de
tudo muito solto, não tínhamos uma identidade jurídica.
raiz no programa, coisas como Ataulfo Alves, Demônios
A gente mandava ofício pra prefeitura no meu nome,
da Garoa. E abria espaço também para Jorge Ben, Bel-
depois no nome de Cannibal. Era assim para todos os
chior. Você precisava ver o que tinha de senhor ouvindo
órgãos públicos e empresas”, conta Celo.
os sambões antigos”. Celo se orgulha da forma como a
rádio entrou no cotidiano dos moradores: No primeiro momento, quando foi inaugurada, a ONG
Alto Falante propôs, em projetos apresentados para
“Eu não imaginava que seria uma coisa de tanta utilidade.
algumas entidades, uma estrutura que contivesse 22
Eu me abestalhei muito de como eles se apropriam disso
oficinas, que comportassem cerca de vinte alunos em
e tornam uma coisa muito útil. Uma coisa tão mínima
cada, em categorias como break, capoeira, maracatu
assim. De informação ligada à saúde pública, informação
e software livre. “A gente sempre teve muita vontade e
social, cultural, ligadas a eventos. Muito massa ver negui-
disposição para correr atrás das coisas. Sempre tivemos
nho dizendo na rádio: ‘Fulano, vai fazer o que domingo?
muita garra, mas empacávamos nas questões burocrá-
Vai ter evento tal no Sítio da Trindade, é de graça! Leva
ticas para viabilizar alguns projetos”, conta Cannibal. O
teus filhos!’ E a galera que cuida da programação é mara-
sentimento de autoestima da população cresceu a tal
vilhosa. Sempre tem informações. É legal porque eles se
ponto que ela se orgulhava em ver carros de gente da
sentem orgulhosos disso.”
classe média subir o morro para participar das oficinas.
A participação da comunidade nos eventos pontuais que
Porém, mesmo com a assessoria jurídica da Fase e com
o núcleo das bandas do Alto José do Pinho realizava foi
todo o empenho que sempre marcou essa geração de
decisiva para a constituição da Alto Falante.
meninos das bandas de rock do Alto José do Pinho, eles
A gente achava que seria legal, por exemplo, ter uma ofi- acabaram esbarrando em um problema difícil de superar.
cina de percussão por um tempo longo aqui na comuni- Cannibal explica:
dade. Assim como oficina de teatro, de canto, de dança,
“Tudo que a gente tenta fazer aqui no Alto tem um período,
de artes plásticas. Ter uma coisa mais constante por um
porque a gente não tem uma sede. Então tudo que a gente
período maior. Porque a gente sempre fez aqueles even-
faz é na escola ou no porão da igreja, ou na rua. Então é
tos pontuais, Rockriança no Dia das Crianças, Natal nas
muito difícil pra gente. O que a gente está batendo hoje
Alturas, 7 de setembro, 1º de maio, e viu que a gurizada
260 Devotos 20 anos A fundação da ONG 261
262 Devotos 20 anos A fundação da ONG 263
em dia na tecla é de ter uma sede pra gente poder dar Em 2005, entrevistei Cannibal sobre os resultados prá-
oficinas periódicas todos os dias durante o ano todo. E ticos da ONG na comunidade. Na época, ele me con-
a gente tem projeto pra isso, só não tem o local para tava orgulhoso:
viabilizar. Se os projetos forem aprovados, nós vamos
“Conseguimos resgatar a autoestima da comunidade.
fazer onde? Já tivemos visitas de várias entidades que
Hoje, ninguém tem mais vergonha de dizer que mora no
querem ajudar e apoiar as oficinas, como a Petrobras e
Alto José do Pinho. Os índices de criminalidade baixaram
o Ministério da Cultura, mas a gente não tem uma sede.
muito. Não existe mais boca de fumo aqui. Quem quiser
Esses órgãos que a gente tem de apoio não financiam
comprar fumo hoje, compra fora daqui. E as gangues,
imóveis. Queremos ver com alguma entidade de fora para
que aterrorizavam o local, foram extintas.”
viabilizar a compra de um terreno para poder montar uma
casa do jeito que a gente quer.” No final de 2008, ao coletar material e fazer entrevistas
para este livro, o discurso infelizmente havia mudado. O
Ele dá um exemplo concreto de como a falta de um local
Cannibal orgulhoso de 2005 dava lugar a um mais rea-
próprio atrasa os trabalhos da ONG. “Temos o oficineiro
lista e preocupado agora:
do afoxé, da percussão. A gente já tem um projeto todo
fechado pra ele. Desde a compra dos equipamentos até “O crack está invadindo o Alto. Em todo canto é assim. A
o salário dele. E é um cara da comunidade. A gente tenta primeira coisa é diminuir a violência que o tráfico causa.
sempre trabalhar com pessoas da comunidade.” E lista É coisa que se você fizer oficina periódica não vai resol-
outro projeto que está também em fase de captação de ver. É pegar esses guris pra fazer trabalho o dia todo. Pra
recursos. “Queremos trabalhar com corte e costura. A se cansar de dia e, de noite, ir pra casa e dormir. De não
gente sabe que tem o maracatu e o afoxé que desfilam conseguir ficar em pé. Essas coisas você não resolve com
todo ano. A rapaziada daqui mesmo podia fazer a roupa oficina periódica. A gente sempre pensa que pode fazer
do maracatu e do afoxé e ganhar uma grana em cima mais, mas e o apoio?”
disso.” De certa forma, hoje eles vivem uma situação Quando conversei com Ailton Peste, ele mostrou a mesma
muito semelhante à de quando começaram a fazer os preocupação de Cannibal. Chegou a frisar que quem
shows no Alto José do Pinho, aqueles em que colocavam conhecia o Alto José do Pinho superficialmente e só visi-
um tablado em cima de grades de cervejas e improvisa- tava o centro do bairro achava o lugar uma maravilha, e
vam um som pela pura vontade de tocar. dizia até que gostaria de morar no morro. Mas, segundo
Essas oficinas existem periodicamente. Funcionam um ele, a realidade que os moradores encaram no cotidiano
mês e param. Aí só Deus sabe quando vai ter de novo. já não é mais a mesma de quando eles mudaram o perfil
Porque o colégio precisa do espaço, o porão da igreja do bairro com os shows punks. “Por conta do tráfico de
funciona para outras coisas. A oficina de capoeira é a crack, que está muito forte aqui e se aliou com a prosti-
mesma coisa. E ela está parada. É muito chato traba- tuição. E as meninas, para conseguir o crack, pagam um
lhar assim. E a gente sabendo que poderia ser uma coisa boquete, transam com o cara. Vira Babilônia.”
mais constante.
264 Devotos 20 anos A fundação da ONG 265
Ailton Peste, o mesmo que escreveu “Os peitinhos”, tra- duas bandas se apresentam no local. O repórter acompanhou um
balha, há 12 anos, como arte-educador. Seu discurso desses eventos, protagonizado pelas bandas Conspiração Alie-
nígena e Ataque Suicida. No térreo, uma televisão passando cli-
impressiona pela crueza e sinceridade. Ele tem cons-
pes dos Ramones anima o público. No segundo andar, os shows
ciência de que ele poderia ter sido vítima da criminali-
rolam no melhor clima “festa punk”. Ou seja, o espaço para uma
dade. Sua fala é contundente porque expressa o esforço
roda de pogo e para a banda tocar é o suficiente para garantir
de alguém que, desde os tempos dos shows no bar do a alegria dos roqueiros. Um fato inusitado chama a atenção. Os
Orlando, tinha plena consciência de que estava desen- organizadores do evento tiveram que fazer um acordo com a
volvendo um trabalho social. igreja evangélica localizada na frente do bar, a exatos seis passos
de distância. Terminado o primeiro show, é respeitada uma hora e
Tanto eu como os meninos tivemos essa coisa da violên-
meia de silêncio para que o culto evangélico seja realizado. “Das
cia suburbana em nossa vida. E escolhemos a música
19h30 às 21h, nós interrompemos os shows para a realização do
como forma de sobrevivência. De tanto que eu participei culto. Pra gente é bom, pois essa é a hora em que o público para
de movimento, de tanto que lutei por um meio de comu- para relaxar e consumir cerveja”, conta André Papillon. E é o que,
nicação fixo, cheguei até a rádio. A gente sabe que há de fato, acontece. A igreja realiza suas atividades sem maiores
uma carência de informação da porra. É como se a gente problemas, enquanto um público sedento de rock aguarda tran-
estivesse fazendo trilha sonora para a miséria. A gente quilamente o segundo show, tomando uma cervejinha gelada e
sabe que a mídia é uma cobra de duas cabeças. Quando colocando a conversa em dia. Terminado o culto, o rock volta a
comer solto, em uma demonstração de respeito mútuo entre bar
a gente surgiu, foi independente da mídia. Era o faça-
e igreja, difícil de testemunhar por aí. Particularidades que só
você-mesmo. Era a atitude punk mesmo.
mesmo o Alto José do Pinho poderia oferecer.
O próprio Peste chegou a me dizer que o pessoal das
Infelizmente, o Papillon Bar durou pouco tempo e logo fechou
bandas está se organizando novamente para voltar a as portas, e o Rock Zoeira ficou sem local para realizar suas
fazer shows nas ruas, como no início de todo o processo. atividades.
Durante algum tempo, uma nova geração de bandas do
Alto José do Pinho retomou o espírito punk. Cheguei a
escrever sobre o assunto:
Nova Geração do Alto José do Pinho1
O processo natural de continuidade é nítido no Alto José do
Pinho. Bandas novas surgem a cada dia, e já têm, pelo menos,
um lugar garantido para apresentar sua música: o Papillon Bar.
De propriedade de André Papillon, a casa, que possui dois anda-
res, é palco, todos os domingos, do festival Rock Zoeira, evento
organizado por Adilson Ronrona, Sérgio (integrante da banda
punk Terceiro Mundo) e pelo skatista Henrique. A cada domingo,
“Alto Falante –
oferecem nos palcos do Primeiro Mundo estava, naquele
momento, à disposição das bandas do Alto José do
Pinho. Cada banda fez seu show completo, mas apenas
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que eu
Cap.03
Tudo que eu queria
Tudo que eu queria 273
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Tudo que eu queria 275
O núcleo hoje
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276 Devotos 20 anos Tudo que eu queria 277
Discografia: Videoclipes:
Ao vivo — fita demo, 1994. Mais Armas? Não! — vídeo demo, 1990.
Vida de Ferreiro — fita demo, 1995. Devotos do Ódio — direção: Nilton Pereira (TVViva), 1991.
Agora tá Valendo — Plug / BMG, 1997. Futuro Inseguro — direção: Jobalo, 1991.
Alien e Selvagem – SINGLE — Rock It! 2000. Punk, Rock, Hardcore, Alto José do Pinho — direção: Claudio
Devotos — Rock It!, 2000. Assis, 1994.
Hora da Batalha — independente, 2003. Vida de Ferreiro — direção: Claudio Assis, 1994.
Sobras da Batalha – EP — independente, 2004. Fogo Cruzado — direção: Claudio Assis, 1996.
Flores com Espinhos para o Rei — independente, 2006. Dia Morto — direção: Raul Machado, 1997.
Devotos 20 anos — independente/ Monstro discos, 2009. Eu Tenho Pressa — direção: Nilton Pereira (TVViva), 1998.
Alien — direção: Diego Mezza, 2000.
Meu País — direção: Mário Rios (Videotape), 2001.
Livros:
CAVALCANTI, Carlos. “Caminhos da Vida”. Recife,
Ed. Bagaço, 1997.
TELES, José. “Do Frevo ao Mangue Beat”. São Paulo,
ed.34, 1998.
ESSINGER, Silvio. “Punk: anarquia planetária e a
cena brasileira”. São Paulo, Ed.34, 1999.
EZCURRA, Ana Maria. “Fugas musicais: a movimentação
das bandas do Alto José do Pinho”. Universidade Federal
de Pernambuco, 2002.
MURPHY, John. “Music in Brazil: experiencing music, expressing
culture (Global Music Series)”. Estados Unidos, Oxford
University Press, 2006.
Festivais:
Anexo
3º Encontro Anti- Nuclear — Recife-PE, 1988.
Abril Pro Rock — Recife-PE, 1994 a 1999.
Festival da UNB — Brasilia-DF, 1998.
Soulfly Tour Brasil — São Paulo-SP, 1998.
Man or Astroman? — Recife-PE, 1998
Kildare Festival — Salvador-BA, 1998
FIG — Garanhuns-PE -1998, 1999, 2000, 2004 e 2008
PE No Rock — Recife- PE, 1999, 2000, 2003
Marky Ramone & The Intruders — Rio de Janeiro-RJ – 1999
Mangue em Movimento — São Paulo-SP – 1999
Alto Falante — Recife-PE – 1999 e 2006
Abril Pro Rock — São Paulo-SP – 2000
Palco 6 – head-Line — Lisboa - Portugal – 2000
Acorda Povo — Recife-PE - 2000 e 2001
Recbeat — Recfe-PE - 2001, 2002, 2004, 2008
Da Tribo Festival — São Paulo-SP – 2002
Carnaval Multicultural — Recife-PE – 2005, 2006, 2007, 2008, e 2009
Do sol — Natal-RN – 2006
Bananada — Goiana-GO – 2008
Varadouro — Rio Branco – AC – 2009
Jambolada — Uberlândia – MG – 2009
53 HC — Belo Horizonte – MG – 2009
Calango — Cuiabá – MT – 2009
Aumenta que é Rock — João Pessoa – PB – 2009
Dosol — Natal – RN – 2009
Goiana Noise — Goiana-GO – 2009
Entrevista Devotos 20 anos 281
Entrevista
uma conversa sobre os mais variados temas, Guilherme
Moura, editor do Recife Rock!, liga e pergunta se já rolou
a entrevista. Respondo que Cannibal está atrasado e
E assim foi. O que era para ser uma entrevista séria, com
27 de janeiro de 2008
guia estabelecido, acabou se convertendo num delicioso
— Alô, Cannibal? bate-papo entre cinco amigos espalhados no estúdio
— Fala, Hugo! Já chegou em casa? caseiro de Cannibal. E foram surgindo as histórias mais
— Na verdade, liguei pra dizer que vou atrasar um pouco. engraçadas e tristes sobre os vinte anos de carreira
O ônibus está demorando. da banda, tudo sempre contado com inteligência e um
— Tudo bem, eu estou na rua também. Se chegar em casa senso de humor que beira as raízes do absurdo. Talvez
antes de mim, pode esperar numa boa. Minha esposa e tenhamos perdido um pouco do enfoque jornalístico,
minha filha estão lá. mas ganhamos muito em espontaneidade. E, por que
— Falou.
não dizer, assim é mais punk. Punk-rock-hardcore, como
Chego alguns minutos depois no Alto José do Pinho, a história de uma das mais importantes bandas já sur-
e começo a perceber alguns indícios de que estarei gidas em Pernambuco desde sempre. Confira, abaixo, a
diante de uma banda com vinte anos de carreira. A filha íntegra de um bate-papo de quase duas horas com três
pré-adolescente de Cannibal atende à porta e pede que caras que têm histórias de sobra para contar.
eu espere pelo pai. Sua esposa pede que eu fique à von- Hugo: Vinte anos… Esperavam chegar até aqui? Passou
tade e diz que o marido volta logo. Pouco depois, che- rápido?
gam Neilton e seu amigo Gilson. O cara que ficou famoso
por fabricar sua guitarra a partir de sucata e por pin- Celo: (gargalhadas) Demorou pra caralho!!!!
tar quadros agora investe na fabricação de Amps. Que, Hugo – Se a banda não tivesse dado certo, vocês esta-
de sucateados, não têm nada. Orgulhoso do “filho”, me riam fazendo o quê hoje?
convida para ir ao estúdio de Cannibal para ver sua cria:
um bicho que “fala alto”, segundo ele. Bonito, benfeito, Neilton – Porra, Hugo! Tá pegando pesado…
dá até vontade de comprar um. Enquanto engatamos
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282 Devotos 20 anos Entrevista Devotos 20 anos 283
Cannibal – É velho… Tem que botar a mão na cabeça e Neilton – Porque é um documentário, não é um show.
pensar… Aquele show de São Paulo seria mais um material pro
documentário.
Hugo – Vinte anos! É hora de parar pra pensar mesmo…
Guilherme – Teve até a participação do Clemente, né?
Neilton – O problema é esse: parar pra pensar.
Como vai ser agora no Rec-Beat?
Cannibal – Aí acaba… Vou entrar naquela: “O que estou
Cannibal – Tem umas pessoas que a gente já sabe que
fazendo da minha vida?”
vão participar do DVD, daqui pra lá vai dar pra acertar
Neilton – Se for pensar nas broncas todinhas, “Ordem com todo mundo: Clemente, Pitty, Lirinha, Zé Brown,
dos músicos”, um monte de merda acontecendo… Adilson Ronrona. Fora outros… Daqui pra lá vai rolar
Cannibal – É melhor nem pensar… muita ideia ainda. Essa vai ser a comemoração mesmo,
patrocinada pela Petrobras.
Hugo – Vocês vão lançar algum material relacionado aos
vinte anos da banda? Guilherme – Rola esse ano ainda?
Cannibal – Não agora no Rec-Beat, mas a gente tem um Cannibal – Tem que rolar esse ano porque o projeto
projeto de fazer um CD ao vivo patrocinado pela Petro- é para os vinte anos dos Devotos. O nome do projeto é
bras. A ideia é fazer uma coletânea com músicas de “Devotos – 20 anos”.
todos os discos da gente e trazer alguns convidados. E Neilton – Na verdade, o Rec-Beat é só o início das
gravar aqui mesmo no Alto José do Pinho. comemorações.
Celo – CD ao vivo e DVD. Cannibal – Na verdade, vai ser igual ao fim de Sandy e
Guilherme – E a história de São Paulo, o DVD que seria Junior (risos).
gravado lá? Neilton – Vai ter um acústico pra fazer…
Cannibal – Aquela história de São Paulo já está virando Hugo – Hoje, com 20 anos de carreira, dá pra perceber
lenda. Quando você faz um lance na brodagem, você não qual foi o pior e o melhor momento de vocês? Tem como
tem condições de cobrar, de exigir. E a gente sabe que avaliar isso ou não?
o trabalho com audiovisual é um trampo muito foda pra
Celo – O pior eu apaguei (risos).
ser feito, pra ser finalizado. E a gente tinha dado mais
de trinta fitas com material da gente de viagem e aquela Cannibal – É muita tosqueira na vida, né, meu irmão?
coisa toda. E elas (a produtora) tinham toda a boa von-
Neilton – Teve fases de você botar a mão assim na
tade de fazer. Mas a gente viu que não ia dar. Sem grana,
cabeça e dizer: “Pô, onde é que eu estou? O quê que a
não tem condições. Hoje em dia, mesmo com toda a tec-
gente vai fazer?”
nologia na mão, o trabalho ficou maior para quem faz o
trampo. Então, sem dinheiro, não dá pra fazer. Cannibal – “Vou morrer agora…”
284 Devotos 20 anos Entrevista Devotos 20 anos 285
Neilton – Coisas assim que a gente nem imaginava como Enquanto tem banda que vem de Brasília e que toca no
ia resolver. E o pior: a gente não estava nem aqui, estava carnaval todo. Ontem uma menina do Jornal do Commer-
longe, fora de casa, na maior roubada. Coisa muito pesada cio perguntou como a gente conseguiu chegar até aqui
mesmo. (20 anos), e eu expliquei pra ela que toda a grana que a
gente pegou a gente sempre dividiu por quatro, porque
Hugo – Com vocês já estabelecidos no mercado?
a gente sabia que um dia precisaria dessa grana extra
Neilton – Não, na época que a gente estava começando. para os instrumentos, pra gravar… É com essa grana que
Cannibal – Não tem um pior momento específico, mas a gente guarda só pra banda que a gente consegue fazer
teve coisas que a gente poderia ter aproveitado muito as coisas. Mas ainda não é uma coisa que dá para apos-
melhor. Como a gente não tinha maturidade pra isso, tar, para arriscar e fazer um show. Você pode apostar na
deixava nas mãos de terceiros. Tanto que a gente vol- feitura de um disco, mas em um show é muito arriscado.
tou a se produzir. Tanto que as pessoas cobram que a Tem que ter um suporte muito bom.
gente toca muito pouco no Recife. E aí tem gente que Celo – Até as viagens que nós fizemos foi com o dinheiro
fica achando que a gente fica esperando os eventos da que a gente juntou.
prefeitura pra tocar. Mas não é. Quando a gente vai fazer
Cannibal – Com o terceiro disco (“A hora da batalha”,
um orçamento pra fazer um show aqui, acaba consta-
2003), depois que a gente rompeu com Dado (Dado Villa-
tando que não temos o suporte de grana pra bancar a
Lobos, do selo Rock It!, que produziu o segundo disco
coisa se ela der errado. A gente não quer ficar devendo
dos Devotos), ali rolou uma doideira…
a todo mundo, faz tudo com um pé no chão do caralho.
Então, se a gente fizer por conta própria e der errado, a Celo – Ali a gente percebeu que ou investia na banda ou
gente vai tomar no cu. Como é que a gente vai pagar a morria.
galera? E a gente sempre fica pensando: como é que a
Cannibal – E a coisa boa é isso (pensativo). Não tem como
gente vai fazer um show só dos Devotos?
negar, uma das melhores coisas que aconteceu com os
Hugo – Na verdade, era uma pergunta que eu já tinha Devotos foi o respeito, não só do público que curte o
engatilhada aqui: por que vocês tocam tão pouco no som da banda, mas de pessoas que nem curtem o som
Recife? mas respeitam a história da banda, dos componentes.
Hoje em dia, tem muita gente que vê a banda muito mais
Cannibal – A história é justamente essa. Tem muito
como uma realização social do que musical. É uma coisa
pouca gente que investe em banda, principalmente em
positiva, legal. Mas não é tudo, porque não dá pra viver
banda do nosso estilo. Até mesmo eventos do governo
só de prestígio.
e da prefeitura, tipo carnaval. A gente só vai fazer um
show no carnaval pela prefeitura. A gente vai fazer o Hugo – E show? Tem algum especial que vocês
Rec-Beat, mas porque Gutie coloca quem ele quiser no lembram?
festival dele. Mas sempre foi assim. Desde que começou
esse carnaval multicultural que a gente só tem um show.
286 Devotos 20 anos Entrevista Devotos 20 anos 287
Cannibal – Pra mim, foi aquele que aquela banda gringa Hugo – Vocês são praticamente os responsáveis pela
não veio… nova reputação do Alto José do Pinho. Hoje o lugar é pra-
ticamente uma atração turística de Recife. Até que ponto
Hugo – Suicidal Tendencies, Abril Pro Rock de 98.
isso causa orgulho e até que ponto gera desconforto?
Cannibal – Isso! Aquele ali foi foda, velho! Até porque
Cannibal – Desconforto é só quando a gente está na rua e
liberaram o PA todinho pra gente (risos). Nunca tinham
colocam um palco desses (estava sendo erguido o palco
feito isso! Pra quem não sabe, a maioria das bandas
do polo Alto José do Pinho perto da casa de Cannibal)
que tocam antes das bandas headlinners nos festivais,
aqui e a galera acha que a culpa é nossa (risos). Porque
o PA é sempre mais ou menos. Então fica sempre um
nem tudo que rola culturalmente aqui no Alto é a gente
som chochinho. Aí a galera da técnica libera o PA todo
que faz. Mas, ao mesmo tempo, a gente tem consciência
pra banda principal e fica todo mundo pensando: “Porra,
de que fomos nós que proporcionamos isso. Apesar de
essa banda é foda mesmo! (risos)” Aí foi isso. O show da
ser uma coisa independente. A viagem da gente era mos-
gente foi a mesma merda de sempre, mas liberaram o PA
trar a cultura que tinha no Alto. A gente não sabia que as
todo pra gente, ficou aquele sonzão (risos).
pessoas iam valorizar tanto, o que é uma coisa positiva.
Neilton – O mais legal era a galera da produção. Che- De tirar aquela imagem da mídia sensacionalista que o
garam pra gente e disseram: “Ó, aconteceu isso, isso e local era ponto de droga, de violência. Então esse foi o
isso.” Tava todo mundo num clima tenso do caralho. Saía lance legal, das pessoas perderem o preconceito com a
um e chegava outro: “Vocês estão bem? Tá tudo certo? comunidade. E o lado ruim é justamente esse: a gente
(risos. Celo estoura numa gargalhada)” Aí depois chegou leva a culpa de muita coisa que a gente não tem nada a
todo mundo e disse: “Olha, vocês sabem da responsabi- ver. E outra que as pessoas daqui começaram a desen-
lidade que têm.” volver uma autoestima tão forte que passaram a fazer
Cannibal – Quase que eu dizia: “Eu pensei que a gente as coisas aqui de forma independente, sem consultar
não ia tocar mais.” a gente, que já tem certa experiência com esse tipo de
coisa. Já falando da ONG Alto Falante: se nem a gente
Neilton – E a gente tranquilo, dizendo: “Tá beleza…” mais pede consultoria às pessoas mais experientes nas
Cannibal – E o pior é que a gente não tinha noção do que coisas que resolvemos fazer, acontece a mesma coisa
estava acontecendo no show, porque a gente não escuta com as bandas novas. Elas vêm conversar já para querer
o PA. Quando terminou, que a gente viu as críticas, caiu tocar no evento que vamos produzir. E a ideia da gente
a ficha: “Caralho, foi tudo isso? (risos)” Essa valorização, não é essa. É ter um diálogo, um papo do porquê o cara
Hugo, é que não tem jeito. Você pode ser a banda que for, estar querendo fazer aquilo, se tem uma irmandade, uma
você precisa morar fora para as pessoas valorizarem aqui. amizade… Porque a gente vê que, se um cara for mon-
E a gente sempre fez o caminho contrário. A gente sempre tar uma banda pra ganhar grana, não vai dar em lugar
achou que aqui mesmo poderia fazer a diferença. E até nenhum. Mas se ele tiver pensando no coletivo, aí sim, a
hoje a gente não faz (risos). Mas a gente continua. gente consegue colocar todo mundo junto. Hoje tá foda,
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porque isso é resultado da mídia tecnológica na mão de e dizia que era daqui. Mas hoje acabou. Hoje em dia, o
todo mundo. As divulgações estão muito rápidas. Orkut, nome só é usado politicamente mesmo. Tem muita gente
MSN, as pessoas se comunicam muito rápido e se divul- usando o Alto José do Pinho pra isso. Muita gente colo-
gam muito rápido. Mas o que colocam na cabeça deles cando rádio, até neguinho querendo dar uma força ao
não são referências que passam alguma coisa positiva. maracatu e ao afoxé e ao caboclinho e, em boa parte
Podia até citar nome de banda que passa algo positivo. das vezes, é algo apenas de política partidária. A gente,
Você vê uma banda tocando em algum site ou numa TV muitas vezes, paga por isso. A gente não se apresenta
qualquer e você vê que são bandas que seguem a car- nos eventos da prefeitura e as pessoas sabem muito
tilha da mesmice. E são bandas que você nunca ouviu bem o porquê. Basta pensar. A gente não consegue ficar
falar, e que de uma hora pra outra estão no Faustão calado. Quando a gente percebe alguma coisa errada,
recebendo prêmio. E aí o cara acha que, se o cara chegou a gente vai e fala mesmo. E, às vezes, é uma faca de
ali fazendo mais do mesmo, o negócio então é fazer mais dois gumes, porque eu me lembro que, em dezembro, a
do mesmo. Na época da gente, a gente escutava o cara gente foi no Sopa diário1 e aí eu falei que eu achava um
no rádio, aí ia no show do cara, porque pra ver o cara em absurdo a prefeitura pagar 3 milhões pra Mangueira
algum programa de TV era quase impossível. Pra com- fazer uma homenagem ao frevo de Pernambuco, tendo
prar um disco, tinha que ser no sebo. Então era muito tanta escola de samba daqui que não consegue nem sair
diferente a história comparada com o que é hoje em dia. no carnaval, tanta agremiação que não consegue desfi-
As pessoas não se preocupam em pesquisar, já que têm lar. É uma coisa inaceitável na cabeça de todo mundo.
toda a tecnologia na sua casa. E isso é um lado negativo A prefeitura pode dar 3 milhões para quem ela quiser,
pra caramba aqui em cima. Porque a galera aqui tam- mas tem que dar também pras pessoas que estão pre-
bém está correndo atrás de mais do mesmo. Todo mundo cisando aqui. É a mesma coisa que você cuidar do filho
quer fazer igual, corre atrás de Rec-Beat, de Pré-Amp, e dos outros e não cuidar do seu. E eu sempre falei isso e
não se preocupa em fazer o próprio show, como a gente sempre que vejo alguma coisa que acho errado eu ligo
fazia antigamente. pra falar também. Esse show agora que a gente fez no
Burburinho eu liguei pra Beto Rezende (jornalista) pra
Hugo – Você sempre fala que tem muita gente que divulga
dizer que foi uma merda, que a prefeitura faz show e não
show dos Devotos sem fechar com vocês, usando o nome
divulga, principalmente aquele. Porque eu não consigo
de vocês. Acontece o mesmo com o Alto José do Pinho?
ficar calado. E a gente paga por isso. Fica muito claro
Tem gente que se beneficia da marca Alto José do Pinho
depois porque fazem um evento e não colocam a gente. A
sem ter nada a ver com ela?
gente tira leite de pedra o ano todo. As pessoas pergun-
Cannibal – Politicamente, com certeza. Culturalmente, tam por que a gente continua… Deve ser a adrenalina.
até que não. No início dos anos 1990, no começo do
movimento mangue, com certeza, aconteceu muito.
Tinha gente que vinha fazer matéria aqui e vinha gente
1 Programa de TV veiculado pela TV Universitária, retransmissora local da TV
que nunca tinha aparecido aqui, que era de Boa Viagem
Cultura.
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Hugo – Vocês já pensaram alguma vez em parar? tume de tocar em festival. Ninguém toca mais em buraco
como a gente tocava, né, Celo?
Cannibal – Parar os Devotos? Nunca. De jeito nenhum.
Ao contrário. Muito antes de a gente gravar, a gente sen- Celo – E a questão do investimento mesmo que a gente
tou pra saber se era isso realmente que queríamos fazer. sempre fez. Nós viajamos muito pelo Nordeste e banca-
Traçamos uma meta e fomos tocando, tocando, tocando, mos tudo do nosso bolso. Andando de ônibus, de cami-
exatamente como o Matalanamão faz. E aí a gente parou nhão, de jegue, da porra toda. A gente sempre se arris-
uma vez e perguntou: o que estamos querendo com a cou e sempre foi buscar. As bandas daqui costumam
banda? Queremos levar isso em frente? Porque, se não achar que aqui é o começo de tudo. Que aqui é a base
for, a gente vai estudar, arrumar uma profissão e pronto. para a carreira.
E decidimos levar em frente. E tudo que a gente faz é pen-
Neilton – E o lance é botar a cara, é fazer show. Mas
sando na banda. Pro show agora do Rec-Beat, a gente
principalmente cair na estrada. E juntar grana pra fazer
já fez a camisa em comemoração aos 20 anos. Sempre
isso, porque ninguém faz.
pensamos em colocar a banda em evidência. Tem que ter
alguma coisa pra mostrar que a banda está viva, que a Cannibal – O governo criou uma história em cima da cul-
banda está acontecendo. Eu sempre digo isso pra quem tura de Pernambuco, que a turma não entendeu. Acho
está começando. Senta e pensa se é realmente o que você que aquela coisa de fazer os eventos patrocinados pelo
quer fazer, porque ganhar dinheiro com banda não rola. governo e pela prefeitura, a rapaziada entendeu que
aquilo ali seria o trampolim. E, na verdade, não é assim.
Guilherme – A gente estava conversando sobre essa his-
Se você for ver, quando você pega esses produtores que
tória da dependência do governo. Vocês não acham que
vinham ver os eventos, o cara terminava no Galettu’s
existe uma dependência muito grande das bandas com o
(antigo nome do bar Garagem). Terminava indo a lugares
governo, que ninguém faz nada, essa coisa das bandas
em que não tinha banda nenhuma que tocava no Abril
não correrem atrás.
Pro Rock. E o cara queria pesquisar aquilo, porque ele via
Neilton – Acho que existe dependência de tudo. que ali tinha coisa melhor do que o que estava tocando
naquele evento. Na cabeça deles, lógico. Aconteceu
Guilherme – Fica essa história de existir banda que só
isso com a gente aqui no Alto José do Pinho. Quando o
toca no carnaval, Fig, ao invés de se produzir e correr
Fábio Massari foi fazer o Abril Pro Rock, ele quis vir no
atrás. Eu vejo o pessoal de Natal, da Paraíba… lá não tem
Alto. Ele queria saber como era possível que num morro
mamatinha do governo.
tivesse tanta banda de rock. Porque, na cabeça dele, no
Neilton – É um mau costume. Todo mundo queria apare- morro, deveria ter banda de samba, de pagode, de qual-
cer na televisão, todo mundo queria aparecer na MTV e quer coisa. Mas de rock? E aí veio aqui e viu um monte
o caminho mais fácil pra isso era tocar no Abril Pro Rock de banda de rock tocando junto. E a rapaziada que está
ou em algum evento que fosse transmitido pra fora. As começando se esquece disso. Se você não está tocando
bandas que estão começando se prenderam a esse cos- no Abril Pro Rock, você pode estar lá dentro com o seu CD,
com o seu release. E dar na mão do cara. Aquela coisa do
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“nem toquei, mas consegui alguma coisa”. E a rapaziada Cannibal – A gente teve um problema desses quando a
esquece disso, dessas coisas bem simples, porque fica gente gravou. Quando a gente fez clipe pra MTV. Pare-
bitolado em tocar e tocar no evento. cia que a gente tinha feito a pior coisa do mundo. Depois
que a gente gravou o primeiro disco (“Agora tá valendo”,
Hugo – Vocês chegaram num formato agora que só são
1997), andava na rua e punkzinho ficava enchendo o
vocês três. Acabaram com todos os atravessadores:
saco, dizendo: “traidor do movimento”. Faziam panfle-
não têm produtor, assessoria de imprensa, o Neilton
tos escritos “Devotos traíra” e distribuíam. Mas nunca
está fazendo os Amps agora. A ideia é vocês mesmo
chegou a incomodar fisicamente. (risos).
fazerem tudo…
Neiton – Teve um lance muito doido. Lembro de uma crí-
Neilton – É dominar o mundo (risos).
tica que eu li sobre o primeiro disco da gente dizendo que
Cannibal – É dominar o Alto… a banda perdeu a vontade de ir pra eventos como o Abril
Celo – O Alto a gente já dominou (risos). Pro Rock. Era aquele discurso: “aquela banda sofrida do
Alto José do Pinho, mostrando o valor que tinha o subúr-
Cannibal – Aconteceu isso no Showlivre, não sei se vocês bio”. E aí concluía: “agora acabou, eles gravaram” (risos).
viram. O Clemente (Inocentes) perguntou pra gente o que É sério. Aquela coisa “eles não vão passar mais fome,
Neilton tava fazendo. A gente respondeu: “Neilton está começaram a ganhar dinheiro”.
fazendo tudo. Neilton fez a Terra, as árvores, as pessoas
(risos).” Cannibal – A miséria é linda (risos).
Hugo – Mas a gente que acompanha as bandas novas vê Neilton – Engraçado que a maior luta da gente é jus-
muito essa acomodação, da galera não fazer nada. Banda tamente pra acabar com isso, com a miséria. E o que
que não tem nem um ano e já precisa de um produtor… a galera mais quer é isso. Na verdade, é um lance que
está na cabeça da galera: que você tem que ser fodido
Hugo – Mudando de assunto: qual foi o primeiro cachê e ruim pra ter valor. E, ao mesmo tempo, você é tratado
que vocês ganharam? como gueto, por mais valor que você consiga passar pra
Cannibal – Foi num show que a gente fez com Stella alguém, você é tratado como gueto por não fazer uma
Campos de versões punks para as músicas do The Doors. música que venda. Porém, você tem que ser pobre,
Foi uma merda do caralho (risos). fodido, magro.
Hugo – Falar em punk, vocês ainda levam muito dedo na Cannibal – A gente sempre procurou fugir disso. A gente
cara e acusações de “traidores do movimento” porque sempre tocou para ter um sustento, uma dignidade.
tiraram o “do Ódio” do nome da banda? Por isso que eu volto para aquela história de darem 3
milhões para a Mangueira, sabendo como é a situação
Neilton – Esse lance de traidor do movimento nunca do samba aqui em Pernambuco. Como ele é maltratado,
pegou com a gente. não é tocado nas rádios. Celo tava me contando que viu
na TV Lia de Itamaracá pedindo para a Celpe (Companhia
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Energética de Pernambuco) ligar a luz dela, porque eles Hugo – Vocês saíram e não tocaram?
tinham cortado. E a mulher vai desfilar na Mangueira!
Neílton – A gente tocou. Fomos até a “atração interna-
Que porra é isso? Onde é que a gente está? Não tem
cional”. Foi um festival de inverno.
como a gente ficar calado com isso. E a turma paga a luz
dela, colocando um showzinho dela aqui e ali. Aí ela vai e Hugo – Eu não sabia disso. Foi onde?
agradece ao prefeito João Paulo. Essas coisas revoltam. Neilton – Em Lisboa. Em 2000.
E eles (prefeitura e governo) sabem que se der chance
pra neguinho do morro o neguinho vai falar, velho! E é Cannibal – E ficamos uma semana lá sem fazer mais
por isso que os Devotos não tocam nesses eventos. Os nada.
Devotos nunca tocaram no Marco Zero. Uma menina Celo – Comendo bacalhau pra caralho (risos)!
da Bahia me perguntou por que a gente nunca tocou no
Marco Zero. Ninguém quer colocar uma banda que quer Neilton – É muito fácil pegar um produto já pronto. Um
falar dos seus deveres e direitos em evidência. Porque, produto que o cara sabe que vai vender. É muito difícil
se der moral pra galera saber o que de fato acontece, vai hoje os produtores locais encararem uma temporada de
foder tudo. E a gente não se cala. Não é porque a Prefei- estrada num circuito mais alternativo. Eu nem digo cir-
tura colocou a gente pra tocar num palco que eu vou me cuito muito underground. A gente recebeu proposta de
calar. fazer uns shows com uma banda que tinha um público
do caramba em Portugal. E tudo que fizeram foi dizer
Hugo – Vocês acham que são discriminados aqui em Per- que a passagem estava comprada para o dia tal. Porra,
nambuco também por fazer hardcore? na Europa, cara! Com um monte de coisa pra fazer,
Cannibal – Total, cara! Não só por causa do hardcore, um monte de lugar para tocar e explorar. E você voltar
mas, principalmente, pelos temas. Por ser do subúrbio. pra casa sem ter feito nada. Você lembra, Celo, desse
estresse?
Neilton – Porque a gente tem ciência das coisas que se
passam ao nosso redor. E a gente tenta passar isso pra Celo – Eu não lembro dessas partes ruins porque eu vou
galera nas músicas. E, no nosso caso, fica ainda mais difí- deletando.
cil porque é muito mais fácil exportar o exótico, o modelo Neilton – Eu guardo algumas coisas para relembrar. Pra
preestabelecido. E não estou falando só da gente. Tem não cair no mesmo erro.
trocentas bandas, aqui em Pernambuco, que fazem um
tipo de música totalmente diferente. Na verdade, não Hugo – Vocês têm ideia de quanto tempo por ano pas-
tem espaço, a não ser que você adote o modelo exótico. sam fora do Recife?
Hugo – É por isso que vocês acham que não saíram do Cannibal – A gente desce, pelo menos, umas três, qua-
país ainda? tro vezes. A base é São Paulo. Ano passado, a gente
conseguiu fazer Goiânia e alguns shows no Rio. A gente
Neilton – A gente já saiu. Só que faltou alguém que recebe muita proposta para tocar em Minas Gerais, mas
fizesse o resto do caminho.
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é aquela coisa amadora. E a gente não está mais naquele era o vinil pra pegar uma caixinha desse tamanho que é
lance de pagar pra tocar. o CD. Eu sou muito frustrado porque não consegui fazer
uma capa de vinil. Quando a gente começou a gravar já
Hugo – Já estão com material novo?
era CD. Eu lembro que eu fiz uma capa gigante para colo-
Neilton – Não. car uma fitinha demo. Só pra ter uma capa grande. E o
Cannibal – A gente vai fazer agora igual a Sandy e Junior lance todo é esse. Eu sou fã da tecnologia, mas eu sou
(risos)... fã da gente explorar a tecnologia até o seu limite. Não dá
pra gente pagar sempre pra alguém ficar produzindo e
Guilherme – Mas vocês pensam em fazer outro CD de inventando novas tecnologias enquanto ainda não usu-
nove, dez faixas? fruímos o bastante do que temos à nossa disposição. A
Cannibal – Vai ter a coletânea ao vivo. sonoridade do vinil era melhor. O CD fodeu tudo. O MP3
está fodendo mais ainda.
Neilton – A gente vai fazer o ao vivo e depois vai pensar.
A gente nunca coloca o carro na frente dos bois. Porque Guilherme – A história toda é o formato. Ainda existe
a gente está produzindo muita coisa. aquela coisa de ter que fechar um CD com 12 músicas?
Na Internet, raramente você escuta dez músicas de uma
Cannibal – E fazer por etapas também. banda. E a gurizada vai baixando a esmo. Hoje em dia, é
Guilherme – E esse formato de CD? Vale a pena ainda muito melhor você ter três, quatro músicas boas, que ter
lançar CD? 12 meia boca, precisar fazer “coxinha” pra preencher um
CD, de ter que colocar remix. E a Fresno, por exemplo,
Cannibal – Isso vai, com certeza.
lança uma música por mês na Internet. E você vai nos
Neilton – É o seguinte: eu estava discutindo dia desses shows e vê a gurizada cantando tudo. De repente, eles
sobre o possível fim do CD. Como se pensava que teria encontraram o formato deles.
o final do vinil. Na Europa, ainda se vende muito vinil.
Neilton – O mais doido dessa história é que a gente está
Nós ainda somos bem atrasados em termos de menta-
indo para o lado de deteriorar as coisas. Esse lance da
lidade de mídia. A gente fica muito bitolado com as novas
Fresno realmente funciona pra eles porque a gurizada tá
tecnologias. A gente paga o desenvolvimento de uma nova
a fim de consumir rápido. Mas também é uma coisa des-
tecnologia. E nem usufrui o suficiente daquela tecnolo-
cartável. E a gente pensa numa coisa mais duradoura.
gia que está em desenvolvimento pra partir pra ser ainda
Quem me dera se a gente tivesse a possibilidade de vol-
mais moderno. Tudo tem que ser feito com equipamento
tar a usar vinil single. A qualidade de áudio seria outra.
de ponta. A gente, na verdade, precisa reaprender a reuti-
É isso que se perdeu. A galera está mais interessada
lizar as coisas. Que ainda têm uma vida útil muito grande.
em consumir do que propriamente em curtir. A curtição
Mesmo que a gente não enxergue. O CD como um suve-
virou outra situação. É um chiclete. Você mastiga e joga
nir não vai acabar. Não vai ser tão fácil trocar uma mídia.
fora. Tanto que a gente fica pensando nas possibilidades
Já se tinha o saco de você perder um álbum bonito como
de não desvincular o CD do encarte. Como a gente estava
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falando antes. Fizemos questão que o nosso último tra- é chamado de doido. Porque essa questão de você pegar
balho (“Flores com espinhos para o rei”, 2006) respirasse. o CD e querer o encarte é um negócio que está morrendo.
Não é só uma discussão nossa, é uma discussão mundial Essa gurizada nova não quer. Ela está sendo mal-ensi-
de quem trabalha com áudio. Da música ser valorizada nada. Menosprezando o papel, o toque, o tato.
pela gravação, e não pelo mercado.
Hugo – Vocês conseguiram renovar o público dos Devo-
Hugo – Qual o disco dos Devotos que vocês ficaram mais tos ou é só velho que continua curtindo?
satisfeitos com o resultado final?
Neilton – Não, tem muita gurizada. Tem o vovô, o pai e
Todos – “Flores com espinhos para o rei”. o neto.
Cannibal – O pior é o primeiro. Celo – Impressionante, cara.
Hugo – Eu costumo dizer que o primeiro tem o melhor Neilton – É massa, cara. Ficam os pirralhos na frente
repertório com a pior produção. fazendo a roda, os pais tentando proteger e os avós lá
atrás só olhando (risos).
Cannibal – Justamente.
Celo – Aí é que eu fico pensando: tem muito tempo
Guilherme – Quem foi que produziu o primeiro?
mesmo que a gente tem a porra dessa banda (risos)...
Cannibal – Lúcio Maia.
Guilherme – Das bandas que vocês viram nos anos 1990,
Guilherme – Pô, Hugo. Você tá pulando pra caramba. Tem o que vocês acham que poderia ter vingado e ficou no
que conversar com essa gurizada que acessa o site. meio do caminho?
Hugo – A gurizada que se vire e pesquise (risos). Cannibal – Moral Violenta era uma banda que… ixe! Era
Cannibal – Esse negócio que Neilton falou. Teve uma uma banda que tinha aqui, e ensaiávamos juntos: Moral
menina que entrou hoje no Orkut e me perguntou onde Violenta e SS-20. Só que SS-20 era tipo Exploited. Era
achava o primeiro disco dos Devotos. E dizendo que que- a coisa mais radical que tinha no punk daqui. E o Moral
ria muito o disco, embora tivesse as músicas já. Ela que- Violenta fazia um estilo meio Cólera. As músicas eram
ria o encarte e tal. E era uma menina que devia ter uns 15 bem pegajosas. Os caras eram do IPSEP. E tudo de temá-
ou 18 anos. Eu disse pra ela ir até a Galeria do Rock (com- tica social. Cada letra do caralho. É uma banda que se
plexo de lojas de discos em São Paulo) que ela acharia ainda tivesse trampando ia dar muito o que falar. Mas
entre os usados, embora devesse ser caro. Tem gente é porque, naquela época, nos anos 1980, só quem tinha
que ainda quer o disco. grana era que conseguia gravar. Tanto que a única banda
que gravou na época foi o Câmbio Negro. Foi pra São
Neilton – Isso é muito doido. O gringo quando é fã é fã Paulo, voltou pra Pernambuco e acabou a banda. Mas
mesmo. Aquela galera que curte Jornada nas estrelas (a era a única banda que conseguia gravar disco.
série de filmes) faz questão de ter tudo sobre o filme, de
se vestir igual. Aqui quase ninguém faz isso. E quem faz Neilton – E a gente escutava pra caralho.
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Cannibal – Eu ia muito pros shows deles. Ia pros ensaios, Neilton – Ali no Maluco Beleza, todos os shows, todas as
ficava vendo os caras tocarem. cinco edições do Abril Pro Rock, a gente foi andando.
Neilton – Teve uma época que a gente não tinha grana Cannibal – A gente passava no meio da galera carre-
pra ensaiar, e eles liberavam o estúdio pra gente. Nós gando os instrumentos.
éramos bem amigos deles.
Hugo – Do Alto até lá?
Cannibal – O legal daquela época era a irmandade que
Neilton – Daqui pra lá, cara! Não tinha ônibus e não
rolava entre as bandas. O Alto seguia a cartilha do movi-
tinha van. A gente saia a pé e colocava os instrumen-
mento punk, as bandas eram muito unidas. Todo mundo
tos nas costas. Era do caralho porque tinha uma galera
ensaiava com o mesmo instrumento.
bombadinha que ia de carro. Cada carrão do caralho, e
Guilherme – O metal era muito maior nessa época, né? a galera passava gritando pra gente: “Porra, Devotos é
do caralho! E vruuuuuuuuummmmmmm (risos).” Teve
Cannibal – Sempre foi e ainda é. O metal ainda é muito
uma que eu nunca vou esquecer. A gente foi participar
grande. E a gente estava no esquema deles. A gente
daquela premiação da MTV, em 95 ou 96. Aí Cannibal
era fodido demais, muito tosco. Tocávamos sem equi-
caprichou, pegou um casaco de general, que ganhou do
pamento. Tem uma foto de uns shows antigos em que
Chico Accioly. A gente foi de ônibus e chegou no aero-
não tinha nem pedestal pro microfone. Ficava um cara
porto, foi a primeira vez que a gente viajou de avião. Aí
segurando o microfone pra eu poder cantar. E gente pra
chegamos na MTV, Cannibal vestiu a roupa e a gente ani-
caralho. E o som tosco. Só escutava o pém, pém , pém…
mado pra caralho. Entramos na fila pra entrar no local e
E a gente ia na traseira dos ônibus. Os shows eram no
vimos Frejat no final dela, lá atrás, e a gente todo feliz
Curado e a gente ia daqui pra lá na traseira do ônibus.
porque estava na frente do Frejat, Paula Toller (risos).
Quem tinha grana passava com os instrumentos e o
Aí depois da festa teve uns comes e bebes. E na festa
resto pulava aquela gaiola que existia nos ônibus. E vol-
colocaram a gente na primeira fila, e a gente achando
tava do mesmo jeito. Aí, quando chegava no Alto, levava
lindo tudo aquilo. Os caras do Pato Fu sentados e a gente
um baculejo da polícia. Toda vez era isso, não tinha jeito.
acenando pra eles (risos). Maior goga a gente (risos). Aí,
Deitava no chão, abria as pernas, aquela palhaçada
quando a gente percebeu, começou a encher de gente,
toda. E era sempre o mesmo policial que fazia a mesma
que é onde a galera coloca gente pra dançar (risos). Cada
coisa com a gente.
um de nós foi pra um lado e eu fiquei sentado na escada.
Hugo – Teve um show dos Raimundos em 94, no Circo No vídeo em que Marcelo D2 está cantando com Falcão,
Maluco Beleza, que vocês fizeram a abertura e estavam do Rappa, dá pra me ver sentado na escada. Aí no final
tocando em outro lugar e foram até o Circo a pé. nós fomos pra um comes e bebes. Arnaldo Antunes gra-
Cannibal – A gente tava tocando no Forró Chique. E vando clipe, casa cheia de artista. E uma mesa gigante
fomos a pé até o Circo. Naquele tempo, a gente bebia pra com comida. Ficamos eu e Siba roubando comida por-
caralho. que a gente não sabia se ia ter o que comer no hotel. Aí
voltamos, dormimos no hotel, pegamos o voo de volta e
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chegamos no aeroporto do Recife sem um puto no bolso chinelo para encher nossas garrafas de água. O passa-
e perguntado: “Meu irmão, como é que a gente vai voltar tempo da gente era ficar olhando as meninas na praia.
pra casa (risos) ?” Foi todo mundo na traseira do ônibus.
Hugo – Da nova geração de bandas do Recife, o que tem
Celo – Esse foi um dos bons momentos (gargalhadas). chamado a atenção de vocês?
Cannibal – E foi bom também porque eu lembro que Celo Cannibal – Rapaz, é difícil. Eu tenho escutado muita
era vegetariano. Quase que virava emo (risos). Aí ia ter velharia, muito dub e outras vertentes do reggae. Mas
que tirar ele da banda, não ia ter jeito (risos). E ele não aqui de Recife (pausa). Eu tenho visto os shows da Plu-
comia carne. E a gente foi pra um lugar pra gravar o pri- gins, do D’Miopis, duas bandas promissoras.
meiro disco e não deu certo. A gente ficou numa casa
Neilton – Eu só escuto coisa antiga.
em que tomava o café da manhã e guardava o resto pra
comer de noite. Uma miséria do caralho. Aí teve um dia Cannibal – Eu apresentei a última edição do Pátio do
que colocaram uma carne lá. Eu e Neílton começamos a Rock. Essa Júlia Says, que vai tocar no Rec-Beat, pra
nos servir de carne. Aí perguntamos: “Celo não vai que- mim vai ser a banda! Assim que essa galera conseguir
rer, né?” E ele: “Não vou querer uma porra (risos)!” Uma gravar e alguém que produza os caras, eu acho que vai
fome do caralho, ele acabou com a carne toda (risos). ser A banda. Eu vejo uma vida ali. Mas estamos em épo-
cas diferentes. É tudo muito diferente do que era nos
Neilton – Eu tava falando pro Hugo daquela nossa pas-
anos 1990. Naquele tempo, existia um corpo a corpo
sagem pelo Rio, lembram?
maior. Você sentia originalidade entre as bandas. A
Cannibal – Puta que pariu, só bons momentos (risos)... galera hoje não pesquisa muito, e acaba fazendo uma
banda só por fazer mesmo. E acaba ficando tudo muito
Neilton – A gente ficou num hotel perto da gravadora
igual. Tem que achar uma identidade, senão você fica
(BMG). Hotel três estrelas, com uma delas já apagando e
igual a todo mundo. A gente toca muito em São Paulo
caindo (risos). E a gente tinha a grana contada pra tocar
por causa disso. Porque o hardcore da gente é diferente,
e passar um mês lá. E o café da manhã da gente era pão
muito neguinho já disse isso. E se fosse igual às outras
com queijo, uma banana e café com leite. Aí ficava assim
bandas não rolava da gente ir sempre pra lá. Hoje eu
até a hora do almoço, geralmente às quatro e meia da
vejo, criativamente falando, a coisa muito menor do que
tarde, pra gente poder compensar o jantar, que não ia
era nos anos 1980 e 1990. Criou-se uma peneira de lá pra
ter. Todo dia era isso. E o resto da noite era a barriga
cá e só ficou quem era original. Teve até gente que saiu,
roncando.
mas por outros motivos, porque arrumou família e preci-
Hugo – E vocês passavam por tudo isso sendo contrata- sou arrumar um meio de sustento fora da música.
dos da BMG?
Guilherme – Como é que está o CD de dub que você está
Cannibal – Contratados! produzindo?
Neilton – Bicho, era foda. A gente entrava naquele puta
prédio da gravadora, cheio de seguranças, de bermuda e
304 Devotos 20 anos Entrevista Devotos 20 anos 305
Cannibal – Eu pedi pra fazerem umas oito bases de músi- ao ar aos domingos. A emissora não tem nenhum com-
cas porque eu tinha umas letras sobrando. Aí quando promisso social. Seria melhor se fosse veiculado na TV
ficou pronto fiquei com vontade de reescrever as letras. Universitária.
Aí escrevi tudo e entramos em estúdio e gravamos. Mas
Guilherme – E como vai ser o show do Rec-Beat?
aí tem umas coisas que ainda não estão legais. Princi-
palmente de voz, coisa que ainda não está muito segura. Cannibal – A gente está ensaiando umas músicas antigas
Tem muito buraco, muita coisa espaçada. Mas basica- do Inocentes. A gente não sabe ainda como vai ser a par-
mente é um CD de dub com participação de Zé Brown, de ticipação dele no show, se ele vai entrar no meio e ficar
um poeta de Peixinhos e de Fred Zero Quatro que faz os até o final. E a ideia é ele fazer umas da gente também.
cavaquinhos. E ele foi a principal influência do estilo da banda. Eu,
particularmente, quando pensei em fazer uma banda,
Guilherme – Tem previsão de lançamento? Nome?
foi quando escutei Inocentes, o “Pânico em SP”, que era
Cannibal – Não sei. A ideia era só gravar as músicas e um single com quatro músicas. Parecia que ele estava
colocar na Internet pra galera baixar. Mas não sei se vai falando do Alto José do Pinho. E na época eu andava com
ter nome. Eu só sei que não quero fazer show. Vai ser a a rapaziada do punk mas eu curtia muito metal: Iron Mai-
Enya da Jamaica (risos). É só uma coisa que eu gosto de den, AC/DC. Mas só fui me identificar com algo mesmo
fazer e que a galera não vai ouvir muito nos Devotos. quando ouvi Inocentes. Vi uma matéria sobre eles na
Bizz e comprei o disco deles num sebo. Me identifiquei
Guilherme – E o Estereoclipe?
muito com as letras. Daí resolvi fazer a banda. Eu não
Cannibal – Me chamaram pra apresentar o programa. Já saco nada de inglês, tudo que escuto é nacional. E a
tinham me chamado antes, quando China ainda partici- gente é filho do rádio. Não tínhamos dinheiro para com-
pava. Mas eu disse que não era a minha praia. E disse prar discos, então o jeito era ouvir rádio, que naquela
que não ia fazer o negócio porque eu não sei nem ler! Aí época, nos anos 1980, ainda tocava rock. Tá certo que
combinaram da gente fazer um piloto. Só que o piloto foi era um rock babaca do caralho, mas era rock.
uma armadilha, porque já estava rolando. Depois disse-
ram que ia rolar uma graninha e eu topei fazer. E a his-
tória é desconstruir a imagem do apresentador. Na ver-
dade, eu dou um tema e deixo a galera falar. Se você for
ver o programa, eu falo muito pouco. E está sendo legal
porque o programa está indo muito pra área social, que é
um lance que a gente trampa já há algum tempo. Mas eu
nem vejo o programa. Eu vi uma vez e achei uma merda.
Não o programa, mas o meu desempenho. Aí resolvi não
ver mais. E acho que deveria sair daquela emissora, que
é religiosa e tal. O programa é gravado nas quartas e vai
308 Devotos 20 anos Tudo que eu queria 309
Imagens: índice
P.85 Devotos no estúdio de ensaio
foto: Michele Souza
P.86-87
Alguns integrantes de bandas e amigos do Alto José do Pinho
P.24-25 Fiteiro do pai de Adilson Ronrona e Mercado Municipal P.112 Capa da primeira fita demo do Matalanamão feita por Neilton
do Alto José do Pinho
foto: Guilherme Moura P.115
Integrantes do Matalanamão em 2000
foto: Jaqueline Maia (Jornal Diário de Pernambuco)
P.26-27 Fachada da associação dos amigos do dominó
foto: Guilherme Moura P.119
Neilton, Celo e Cannibal
foto: Michele Souza
P.29
Sede do afoxé Ylê de Egbá
foto: Guilherme Moura P.125 Cartaz da versão paulistana do festival Rec-Beat, em 1994
P.32-33
Muro do Bonsucesso
P.128
Set list de show dos Devotos
foto: Guilherme Moura
foto: Fred Jordão - Imago
P.34-35 Alto José do Pinho
P.130-131 Devotos e Seu Antônio, inspiração para “Vida de Ferreiro”
foto: Guilherme Moura
em 1995
P.42-43 Devotos no início da carreira foto: Gil Vicente
foto: Junior “Petardo”
P.134-135 Capa da fita demo “Vida de ferreiro”, feita por Neilton em 1995
P.54-55 Cartaz do primeiro show dos Devotos do Ódio
P.140-141 Cartaz do festival “Recife Summer Fest”, desenho feito por
P.60-61
Show dos Devotos do Ódio, em 1989, no bairro UR6, região Neilton em 1994 e Cartaz do evento “natalino punk” “Não Papai
metropolitana do Recife Noel”, em 1989
foto: Marcus Asbar
P.152-153 Neilton, Cannibal e Celo no Alto José do Pinho em 1993
P.67 Cartaz de festival punk na periferia do Recife em 1990 foto: Fred Jordão
P.70-71 Guitarra feita por Neilton e Neilton com seu irmão Nilson e sua P.154-155 Show dos Devotos na segunda edição do festival Abril Pro
primeira guitarra, uma Giannini Sonic (1988) Rock – Recife em 1994
Arquivo de família foto: Fred Jordão
P.174-175 Tatuagem de Cannibal com uma estrofe da música “Alien” P.250-251 Amplificador Altovolts, feito por Neilton, em 2009
do CD “Devotos” lançado em 2000 foto: Neilton
foto: Neilton
P.256-257 Fachada do estúdio da Rádio Alto Falante
P.177 Capa feita por Neilton de “Agora tá Valendo”, lançado em 1997 foto: Guilherme Moura
P.196-197 Devotos na cidade de Lisboa (Portugal), outubro de 2000 P.306-307 Show dos 20 anos dos Devotos, no Alto José do Pinho em 2008
foto: Paulo André foto: Michele Souza
P.198
Capa feita por Neilton do disco “Devotos”, e o single “Alien”, P.308-309 Capa feita por Neilton do CD “Devotos 20 anos” em 2009 e
lançado em 2000 Primeiro show dos Devotos do Ódio no festival punk 3º Encontro
Anti Nuclear, no centro do Recife, em 1988
P.201
Cenário dos shows dos Devotos feito por Neilton para o show foto da capa: Michele Souza
do CD “Devotos” em 2000
foto: Cannibal