Lobisomem No Brasil

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O Lobisomem Doente de Amor

Shirlei Massapust

Nunca vi rastro de cobra


Nem couro de lobisomem
Se correr o bicho pega
Se ficar o bicho come

Ney Matogrosso, Homem com H.

Como se cura um Lobisomem? O cinema comumente sugere que apenas uma bala
de prata no coração poderá eliminar o problema. Porém, no folclore brasileiro, existem
tratamentos para curar o manhoso sem sacrificá-lo.
Certa vez o poeta Décio Gonçalves transcreveu diversos relatos compilados pelo
palhaço Arrelia durante uma excussão ao redor do Brasil, que tinha por objetivo ensinar às
crianças sobre o folclore e costumes das diferentes regiões do país. Na parte final o grupo
chega a uma fazenda no interior do Estado de São Paulo onde o empregado Nhô Zico
assegura que existe um modo de desencantar um lobisomem: A mulher amada deve
encontrar o lobisomem no cemitério, na madrugada de sexta feira, na hora em que o dito
começar a se transformar novamente em homem, e espetá-lo com o espinho duma
laranjeira que tenha sido plantada numa sexta feira à meia noite. Depois ele não mais se
transformará em bicho durante o tempo que ela viver.1
Repare que a variante narrada diante de crianças pequenas é uma parábola que torna
o discurso incompreensível aos não entendedores: A laranjeira não tem espinhos. Esta
planta era o símbolo das núpcias. Tanto em Portugal quanto no Brasil a grinalda do véu da
noiva que casa na igreja era feita de flores de laranjeira a fim de representar o
defloramento na lua de mel como rito de passagem, pois a crença popular afirmava que o
cheiro da vagina é igual ao da flor da laranjeira. Gilberto Freyre descreve a cura do
lobisomem mais explicitamente em Assombrações do Recife Velho (1955):

Também se diz, no Recife, do lobisomem, que chupa sangue: Sangue de moça e


sangue de menino. Sangue de moça bonita e sangue de menininho cor de rosa. (...) Em
Berberibe, contam os antigos que há muitos anos houve um lobisomem assim, velhote de
família conhecida e famoso pelo perfil nobremente aquilino. Família aparentada com a de um

1
RIBEIRO, Gonçalves. Estórias e Lendas do Brasil: Vol 5. Brasil, Formar, não datado (década de 70), p 26 e 36.
presidente da República e com mais de um barão do tempo do Império. (...) Era o velhote
branco como um fantasma inglês que nunca tivesse visto o sol do Brasil. (...) Sua brancura
dava nojo. (...) Vinha espojar-se nas areias do Salgadinho e até nas lamas de Tacaruna. (...)
Desse lobisomem se conta que se curou mamando leite de mulher. Leite de cabra-mulher.
Uma mulata de peito em bico e de filho novo teria sido seu remédio. Montou o velhote casa
para a cabra-mulher que lhe dava leite de peito como a um filho. O homem foi ganhando cor
até deixar de correr o fado. Branco exagerado não deixou de ser nunca. Mas perdeu o ar de
chuchado de bruxa e os traços do seu rosto dizem que voltaram a ser os de brasileiro fidalgo
e bom. Tudo graças ao leite da mulata mamado no próprio peito da mulher de cor.2

Em 1956, certo Viriato Padilha ouviu de seu camarada, Cândido, colega de Juca
Bembém, residente de Iguassu ou Itaguaí, que testou uma fórmula mais agressiva para
desencantar Joaquim Pacheco, filho varão do velho Pacheco, negociante de secos e
molhados em Maripicu: Em sua concepção o lobisomem é “o dízimo do Diabo”. Se uma
mãe tiver sete filhos machos “pode ter certeza que um deles vira lobisomem”. Ou, sendo
sete meninas, uma vira bruxa.3 Cândido sempre trazia no pescoço “uma oração que é
mesmo um porrete bendito para tudo quanto é coisa má”.4 Juca Bembém foi corajoso e
enfrentou o bicho numa luta corporal. “É crença geral que fazendo-se sangue na pessoa,
quando ela se acha transformada nesse animal fantástico, o Diabo vem lamber o sangue,
considera-se pago do seu dízimo, e a pessoa isenta-se do seu sombrio fadário”.5

2
FREYRE, Gilberto. Assombrações do Recife Velho. Rio de Janeiro, Record, 1974, p 104-105.
3
PADILHA, Viriato. O Livro dos Fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956, p 45.
4
PADILHA, Viriato. O Livro dos Fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956, p 45.
5
PADILHA, Viriato. O Livro dos Fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956, p 54.
FIGURA: A vampira Angelike fica excitada ao descobrir que seu amante é um lobisomem e sugere
uma sessão de sexo selvagem. – Detalhe do romance gráfico “Lobisomem contra o Estranho
Vampiro!”, reimpresso no segundo número da minissérie em três volumes Lobisomem: O Demônio
da Noite (Editora Ninja, sem data). O roteiro é de Gedeone Malagoa (1924-2008) e o desenho de
Nico Rosso (1910-1981).

Fios no dente

Apesar do aspecto amarelo pálido, Joaquim Pacheco “era um rapaz sem defeitos e
com um começo de fortuna”.6 Casou-se num sábado com Cecília, filha de Basílio Moura.
Ela estranhou o fato do esposo sair toda sexta feira, à meia noite, e retornar muito alterado
em fisionomia e modos.7 Cecília o seguiu, testemunhou a transformação, deixou escapar
um grito e ele a perseguiu:

Era noite de lua cheia e tudo estava claro. (...) Dez minutos durou a perseguição, e de
uma vez o porco chegou a deitar-lhe os dentes no roupão de lã que se rompeu com o
esforço empregado pela moça. Afinal dona Cecília, sem afrouxar a carreira, chegou à beira

6
PADILHA, Viriato. O Livro dos Fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956, p 46.
7
PADILHA, Viriato. O Livro dos Fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956, p 47.
de um regato que atravessava o caminho e o transpôs de um salto. O mostro ia-lhe ainda
ao encalço, mas ao ver a água estacou e retrocedeu, sempre batendo os dentes.8

No dia seguinte o sogro encontrou fiapos do roupão de lã cinzenta da sua filha nos
dentes do genro lobisomem. Fiapos de pano constituem a prova clássica fartamente
repetida no folclore brasileiro. Por exemplo, Nhô Zico narrou igualmente ao palhaço Arrelia
sobre como uma jovem da região descobriu que o segredo do namorado:

Imaginem a surpresa da moça quando um bicho enorme saiu do mato, os dentes


arreganhados que dava medo. Embora a Ritinha nunca tivesse visto aquilo, não teve dúvida:
Era um lobisomem. Quis fugir, mas o bicho mordeu-lhe o braço. Sorte que pegou somente o
pano da sua blusa vermelha. O pano rasgou, e a Ritinha conseguiu fugir. (...) No dia seguinte
(...) a moça havia notado um fio de sua blusa entre os dentes do Arlindo.9

Parece que os lobisomens nunca acertam o alvo e não escovam os dentes! O sogro
de Joaquim Pacheco enviou Juca Bembém para tomar providências. Quando o penitente se
transformou novamente ele recebeu um golpe na orelha e foi curado, mas não gostou de
ter uma parte do corpo amputada. Ao invés de agradecer Joaquim voltou com uma
espingarda carregada, disparou contra seu benfeitor e fugiu para os sertões de Minas ou
de Goiás. O imóvel onde residia permaneceu abandonado, sendo apelidado de “Casa do
Lobisomem”.10 Anos depois Viriato Padilha se admirou ao “ver em tal estado de abandono
uma morada que parecia oferecer regular conforto, quando miseráveis palhoças,
esburacadas e mal cobertas, achavam-se atulhadas de gente”.11

A proteção da Rainha do Mar

A sugestão da atividade sexual aparece na famosa música de Zé Ramalho, Mistérios


da Meia Noite, em cujo enredo, ambientado nos “impérios de um lobisomem”, uma
menina desamparada se entrega ao seu amor, “seu professor”, porque não quis ficar como
os beatos... Os escravos e seus descendentes temiam os brancos a ponto de imaginar que
uns e outros eram inumanos. Outro relato compilado por Gilberto Freyre foi narrado por

8
PADILHA, Viriato. O Livro dos Fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956, p 50-51.
9
RIBEIRO, Gonçalves. Estórias e Lendas do Brasil. Brasil, Formar, década de 70, Vol 5, p 33.
10
PADILHA, Viriato. O Livro dos Fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956, p 45.
11
PADILHA, Viriato. O Livro dos Fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956, p 43.
volta de 1930, por uma negra idosa chamada Josefina Minha-Fé, atacada por “um
lobisomem doutor” no Poço da Panela, numa noite escura e chuvosa de Sexta-feira.

Josefina era então negrota gorda e redonda de seus 13 anos. E não se chamava ainda
Minha-Fé. Ao contrário: Havia quem a chamasse “Meu Amor” e até “Meus Pecados” —
Josefina Meus Pecados — arranhando com a malícia das palavras sua virgindade de moleca
de mucambo. E quem assim a chamava não se pense que era homem à toa, porém mais de
um doutor. (...) Lobisomem era assombração. E assombração parecia a Josefina, já menina
moça, conversa de negra velha e feia, de que negra nova e bonita não devia fazer caso. (...)
Seguia assim Josefina para a venda, quase sem medo de lobisomem nem de fantasma,
quando, no meio do caminho, sentiu de repente que junto dela parava um não-sei-quê
alvacento ou amarelento, levantando areia e espadanando terra; um não-sei-quê horrível;
alguma coisa de que não pode ver a forma; nem se tinha olhos de gente ou de bicho. Só viu
que era uma mancha amarelenta; que fedia; que começava a se agarrar como um grude
nojento ao seu corpo. Mas um grude com dentes duros e pontudos de lobo. Um lobo com a
gula de comer viva e nua a meninota inteira depois de estraçalhar-lhe o vestido. (...) Ela
gritava de desespero. (...) O que salvou Josefina foi ter gritado pela Senhora da Saúde, da qual
o lobisomem, amarelo de todas as doenças e podre de todas as mazelas, tinha mais medo do
que do próprio Nosso Senhor. Aos gritos da negrota, acudiram os homens que estavam à
porta da venda. Inclusive, o português que, não acreditava em bruxas, passou a acreditar em
lobisomem. A negra foi encontrada com o vestido azul-celeste em pedaços. Metade do corpo
de fora. Os peitos de menina-moça arranhados.12

A mãe de Josefina era escrava dos Baltar. Foi ela quem encontrou pedaços do vestido
azul da filha enquanto lavava a roupa de um doutor de “cartola, croisé, pince-nez e rubi no
dedo magro” que “dizia ter mais raiva de negro do que de macaco”. O doutor era tão
branco que chegava a ser pálido “de um amarelo de cadáver velho”. 13 Vivia tomando
“remédio de botica e remédio do mato, feito por mandingueiro ou caboclo” para ganhar
sangue e cor de gente viva.14 Uma vez identificado, o bacharel pálido tornou-se o terror da
gente pobre, moradora nos mucamos daquelas margens do Capibaribe. Mesmo admitindo
não haver visto quem atentou contra seu pudor no escuro, Josefina confia e confirma as
descrições das lendas onde o lobisomem é um pecador terrível que saí a correr pelos
matos, pelos caminhos desertos, pelos ermos: “Tomava forma de cão danado, mas tinha

12
FREYRE, Gilberto. Assombrações do Recife Velho. Rio de Janeiro , Record, 1974, p 48-50.
13
FREYRE, Gilberto. Assombrações do Recife Velho. Rio de Janeiro , Record, 1974, p 51.
14
FREYRE, Gilberto. Assombrações do Recife Velho. Rio de Janeiro , Record, 1974, p 51.
alguma coisa de porco. Toda noite de Sexta-feira estava (...) cumprindo seu fado nas
encruzilhadas. Espojando-se na areia, na lama, no monturo. Correndo como um
desesperado. Atacando com o furor dos danados a mulher, o menino e mesmo o homem
que encontrasse sozinho e incauto, em lugar deserto”.15

Chafurdando na lama

É comum dizer-se que o mito do lobisomem chegou ao Brasil trazido da Europa pelos
colonizadores portugueses, pois não há lobos em nosso país. Porém o mito naturalizou-se
de tal forma que acabou transmutado numa coisa à parte. Todo lobisomem brasileiro
apresenta a mesma palidez amarelada de um enfermo de ancilostomíase. Por isso ele
também é chamado pelo nome popular da doença “amarelão”. Somente aqui é possível
curar um lobisomem fornecendo uma mulher para lhe exaurir o ímpeto sexual enquanto
ele possuir forma humana. Em nenhum outro lugar a besta precisará rasgar todas as
roupas de cor azul antes de fazer o que tem de fazer caso a vítima grite pelo nome de
Iemanjá. Conforme conceituado por N. A. Molina, lobisomens “são homens que à meia
noite das sextas-feiras se transformam em lobos e saem à procura de gente para sugar-lhe
o sangue”, com ou sem lua cheia.16 Nhô Zico complementa:

Quando é sexta-feira, à meia-noite, ele procura uma encruzilhada, atira-se ao chão e


começa a rolar na poeira. Logo se transforma em lobisomem. (...) Faz lembrar um enorme
cachorro e tem as unhas muito grandes. (...) Como ele precisa de sangue, depois que se
transforma em lobisomem anda a cata de algum leitãozinho, cachorro novo e até criança de
colo. Em último caso ataca mesmo gente grande. Antes de amanhecer, o lobisomem sempre
procura um cemitério e lá consegue voltar à forma humana.17

Se houvesse espaço geográfico disponível “o encantado corria sete freguesias, e das


sete os cemitérios delas, em igual número, quando encantado estava, de noite. Antes do
amanhecer retornava ao ponto de partida onde, de novo, virava gente”. 18 A necessidade de
chafurdar na lama é outra peculiaridade do folclore brasileiro. De acordo com a tese

15
FREYRE, Gilberto. Assombrações do Recife Velho. Rio de Janeiro , Record, 1974, p 48.
16
MOLINA, N. A. Antigo Livro de São Cipriano : O Gigante e Verdadeiro Capa de Aço. Rio de Janeiro, Editora
Espiritualista, não datado, p 216.
17
RIBEIRO, Gonçalves. Estórias e Lendas do Brasil. Brasil, Formar, década de 70, Vol 5, p 26.
18
SALES, Herberto. O Lobisomem. Rio de Janeiro, Edições de Ouro, p 21.
defendida pela professora Maria do Rosário de Souza Tavares de Lima perante a banca
examinadora na Escola de Folclore de São Paulo, antes de assumir a forma de animal “o
condenado chafurda num lugar sujo, como um chiqueiro ou o chão de um galinheiro”. 19 Na
narrativa de Viriato Padilha, por exemplo, quando Cecília Pacheco seguiu o marido até o
chiqueiro ela testemunhou coisa extraordinária:

Dirigiu-se lento, cabisbaixo e muito triste na direção de um telheiro onde dormiam


os porcos; e ao aproximar-se dele começou a emitir os singulares grunhidos que tanto
haviam apavorado a moça. (...) Sempre grunhindo, Quincas Pacheco aproximou-se do
telheiro e os porcos ao pressentirem-no levantaram-se e fugiram. Então Quincas Pacheco
tirou a roupa, e atirando-se na poeira que servia de leito aos bacorinhos, espojou-se
durante longo tempo, sempre grunhindo ferozmente. (...) Viu Quincas Pacheco erguer-se,
não sob a figura humana, porém sim transformado em um grande porco, de cerdas eriçadas
e presas salientes, o qual pôs-se logo de pé e começou a bater os dentes e a abanar as
orelhas de uma maneira horrível! Os olhos dessa coisa monstruosa luziam como brasas, a
dentição branca, cerrada e pontiaguda destacava-se no negrume dos pêlos.20

Pormenores específicos parecem análogos àqueles de criaturas similares de outras


partes do planeta, como o Witiko ou Wendigo de origem algonquiana (povo índio da
América do Norte), que é um índio canibal transformado em ente fabuloso. “O Witiko não
usa roupas. (...) Tem o hábito de se coçar, como os animais, contra os abetos e outras
coníferas resinosas. Depois de coberto de resina e de goma, rola na areia”.21 Um hábito
similar é atribuído aos Chenoo de Passamaquoddy, que se esfregam inteiramente com
resina odorífera de pinheiro para em seguida rolar sobre o solo, de tal forma que tudo se
adere a seu corpo. “Este hábito faz pensar fortemente nas armaduras de pedra dos
Iroqueses, gigantes canibais sedentos de sangue, que se cobriam diligentemente com breu
e rolavam em seguida na areia ou nas encostas das dunas”.22 Impossível não lembrar do
oneroso banho de lama em fontes termais incorporado aos costumes dos brancos ricos de

19
GOLDEFEDER, Sônia e LEITE, Mário. Pobres Vampiros. Em: Globo Ciência, ano 4, nº 40. Rio de Janeiro,
Globo, novembro de 1994, p 53.
20
PADILHA, Viriato. O Livro dos Fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956, p 50-51.
21
GUINARD, Reverendo Joseph E. O Witiko entre os Cabeças-redondas. Em: Primitive Man, nº 3, 1930. Citado
por: BERGIER, Jacques. O Livro do Inexplicável. Trd. Francisco de Souza. São Paulo, Hemus, 1973, p 150.
22
COOPER, John M. A Psicose Cree do Witiko. Em: Primitive Man, nº 6, 1933. Citado por: BERGIER, Jacques. O
Livro do Inexplicável. Trd. Francisco de Souza. São Paulo, Hemus, 1973, p 150-151.
todo o mundo desde que o pioneiro Samuel Brannan, na época da corrida do ouro,
mergulhou nos ancestrais banhos de lama da tribo Wappo:

FIGURA: Pessoas se divertem chafurdando na lama.

Hoje muitos dos melhores spas oferecem o serviço de banhos de lama em luxuosas
banheiras para esfoliar e rejuvenescer a pele... Mas na falta da lama limpa destas termas
especiais o lobisomem rola sobre a areia da praia, lama comum, poeira de estrada, esterco
ou qualquer outra coisa capaz de formar uma crosta sobre seu corpo, dificultando o
reconhecimento por parte dos transeuntes que eventualmente o vejam andando nu.
Curioso notar que o sujeito será chamado de lobisomem mesmo que se transforme
num porco ou num monstro de forma híbrida indefinida. Não existe consenso sobre como
surge o lobisomem. Geralmente ele é o sétimo filho homem nascido após seis meninas ou
seis outros meninos. “O lobisomem é o sétimo filho de um casal: O caçula”. 23 Mas há
variantes dessa superstição onde ele pode ser qualquer um dos sete filhos varões e não
necessariamente o último a nascer.24 Outra versão assegura que “se uma família tiver 13
filhos, todos homens, o último será lobisomem, e sairá de casa todas as sexta feiras à meia-
noite”.25 Segundo a folclorista Maria do Rosário, “homens chamado Bento ou Custódio,
batizados pelo irmão mais velho, seriam os mais sérios candidatos à maldição”. 26

23
RIBEIRO, Gonçalves. Estórias e Lendas do Brasil. Brasil, Formar, década de 70, Vol 5, p 26.
24
PADILHA, Viriato. O Livro dos Fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956, p 45.
25
KLOETZEL, Kurt. O Que é superstição. São Paulo, Brasiliense, 1990, p 7.
26
GOLDEFEDER, Sônia e LEITE, Mário. Pobres Vampiros. Em: Globo Ciência, ano 4, nº 40. Rio de Janeiro,
Globo, novembro de 1994, p 53.
Nos romances gráficos do gênero terror quem é mordido por um lobisomem sempre
vira lobisomem. Para melhor explicar isto ele é normalmente um monstro hematófago,
como um vampiro, pois se fosse carnívoro e devorasse a vítima não sobraria muita coisa
para converter em novo monstro... No romance O Coronel e o Lobisomem (1964) de José
Cândido de Carvalho o personagem principal, coronel Ponciano de Azeredo Furtado,
resolve contar histórias de assombrações para meter medo em seu amigo Juca Azeredo:

Desencovei um livro de São Cipriano que vivia amedrontado no fundo do gavetão dos
meus charutos. (...) Puxei o lobisomem do livro de São Cipriano para dentro dos ouvidos dele.
Uma assombração danada de um cristão lidar com ela. Uivava de cortar o coração mais de
pedra. Digo que fiz chicana de doutor velho, pois não segui tintim por tintim o que a letra de
forma estipulava. Pulei, misturei, inventei em favor do lobisomem maldade de arrepiar.
Juquinha amarelou e no fundo da cadeira mais parecia um rato assustado. E eu no serviço do
mal-assombrado. Quando, lá para as tantas, fiz a apresentação do amaldiçoado em tamanho
natural, olho em brasa e dente cerrado, o parceiro Juquinha não agüentou. Pregou na testa o
sinal-da-cruz e mergulhou o corpanzil no corredor.27

Ponciano continou a fazer chacota do “tal lobisomem do livro de São Cipriano” até a
besta aparecer numa noite de sexta feira para tirar vingança do coronel trocista que, apesar
de tudo, saiu vitorioso da luta corporal... O que pouca gente sabe é que, ironicamente, o
livro verdadeiro citado neste texto fictício repreende a credulidade excessiva, informando
que “há lugares onde se fala tão-só da existência de bichos, como se a menção da palavra
lobisomem fosse bastante para delimitar o aparecimento de um. Alias, é crença muito
espalhada entre camponeses que não se deve chamar as doenças nem o demônio pelo
nome certo, pois aquele que pronunciar o nome de uma doença poderá contraí-la e
aquele que pronunciar o nome do diabo está convidando-o a aparecer para fazer das suas.
Daí o recorrem os campônios a várias palavras para indicar o diabo e as doenças, contanto
que não digam o nome correto. Aplica-se o mesmo raciocínio para o lobisomem, e talvez
para outras entidades”.28

Qual a causa remota do fado?

27
CARVALHO, José Cândido de. O Coronel e o Lobisomem. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora,
1983, p 38.
28
MOLINA, N. A. Antigo Livro de São Cipriano: O Gigante e Verdadeiro Capa de Aço. Rio de Janeiro, Editora
Espiritualista, não datado, p 217.
Se o lobisomem ou lobanil é um penitente ele paga promessa ou purga exatamente o
que? Não pode ser algum pecado cometido em vida posto que antes de nascer o sétimo
filho já estava condenado. Tampouco tratar-se-ia de maldição hereditária visto que os pais
do lobisomem não são necessariamente lobisomens! Herbnerto Sales solucionou o mistério
num engenhoso conto onde a personagem D.ª Aninha vê frustrada sua pretensão de ter
um filho homem. Embora seja uma católica praticante, deus não atendeu suas preces,
pondo em risco a continuidade do sobrenome da família sem um herdeiro varão. Após
conceber sete meninas indesejáveis a matriarca resolve ter esse filho “nem que seja com a
ajuda do Diabo”.29 Consultou Honorina, uma negra velha que jogava búzios, e escutou que
o próximo rebento a nascer seria filho homem, mas teria de cumprir um fado, “que é o
fado de todo filho homem nascido depois de sete filhas”. 30

Homem-bicho, bicho-homem, lobisomem. (...) Quando o menino completasse 13 anos,


o fado ia se cumprir. Era um encanto, que estava nas mãos da mãe quebrar, tirando sangue
do encantado, pelo meio que ela quisesse ou pudesse, na hora. Vigiasse na Quaresma, de
Sexta para Sábado, e preparada ficasse; ela, a mãe, melhor que ninguém, embora qualquer
pessoa pudesse fazer a mesma coisa. Com faca, ou pau (...), ou mesmo com um simples
alfinete, enfim: Com o que pudesse servir para tirar sangue do encantado, sem risco de
morte, na hora do encanto.31

O menino cresceu perrengue, amarelo e tristonho. “Era aquela cor de opilado”. Não
havia mezinha ou remédio que o animasse. Acabou se transformando às doze badaladas
da meia-noite numa sexta feira após a data marcada.

[D.ª Aninha] viu o vulto do filho sair pela janela do quarto e vir andando, meio
agachado, até o lugar onde o jumento se espojara. (...) O filho chegou a tirar a roupa; e
quando ela pensou que ele ia ficar assim nu, como tinha nascido, ele vestiu de novo a roupa,
pelo avesso. Depois, se deitou no chão, bem na espojadura do jumento, e começou a se
espojar, igualzinho ao dito animal (...) rolando para cá e para lá, na areia. (...) O filho ela não
mais viu, naquele lugar; mas um bicho, menor que um bezerro e maior que um cachorro, os
dois misturados no feitio, animal esquisito e orelhudo. Um sopro ela ouviu, que nem de fole,

29
SALES, Herberto. O Lobisomem. Rio de Janeiro, Edições de Ouro, p 19.
30
SALES, Herberto. O Lobisomem. Rio de Janeiro, Edições de Ouro, p 19.
31
SALES, Herberto. O Lobisomem. Rio de Janeiro, Edições de Ouro, p 20-21.
mas sendo de bicho resfolegando, continuado e feroz. (...) E assim, no assopro, saiu o filho
andando, de quatro, em bicho já transformado.32

Mãe e filho travaram luta corporal até ela conseguir sangrá-lo enfiando um espeto de
pau “na altura da perna direita do bicho” e, assim, curá-lo do fadário ao qual ela mesma
deu causa ao solicitar auxílio das artes negras para a concepção de um herdeiro varão. “Mal
o sangue saiu, escorrendo perna abaixo, o dito bicho, com um gemido, estrebuchou-se,
rápido e todo, como para tirar de cima de si uma coisa incômoda, um peso. E lobisomem já
não sendo, por efeito do sangue derramado, tornou a virar gente, de novo feito em filho,
tal e qual como era em antes”.33

Um mito em mutação

Com a proclamação da república e subseqüente ascensão dos partidos políticos


populistas as famílias nobres praticamente deixaram de existir. Enquanto isso os vampiros e
lobisomens da ficção e folclore foram empobrecendo vez mais. Em 1989 a antropóloga
Sheila Maria Doula defendeu a tese A Metamorfose do Humano em seu trabalho de pós-
graduação na Universidade de São Paulo (USP), onde tenta mostrar que os lobisomens de
hoje são representados por seres humanos desajustados:

O novo lobisomem continua vivo, mas não é mais o mesmo, afirma Sheila. O
lobisomem de agora, além de ser uma pessoa desajustada, está ausente da comunidade, não
tem família, trabalho nem moradia. É pouco sociável e sofre de uma profunda apatia e
indisposição. A cor amarelada e os olhos profundos talvez sejam os únicos vestígios que
restam do lobisomem de outrora. Os lobisomens do século 20 percorrem as ruas das cidades
mendigando um pedaço de pão.34

As lendas falam em outras características, como magreza, palidez, tristeza, orelhas


grandes, nariz levantado.35 Muitos homens possuem bastante cabelo no corpo. (Desde que
o peludo ator Tony Ramos começou a atuar, seu nome passou a ser citado como exemplo

32
SALES, Herberto. O Lobisomem. Rio de Janeiro, Edições de Ouro, p 24.
33
SALES, Herberto. O Lobisomem. Rio de Janeiro, Edições de Ouro, p 25.
34
LOBISOMEM: AINDA EXISTE? Em: FERREIRA, Fernando Mendes (editor). Axé. Brasil, Ninja, 1989, nº 1, p 38-
39.
35
GOLDEFEDER, Sônia e LEITE, Mário. Pobres Vampiros. Em: Globo Ciência, ano 4, nº 40. Rio de Janeiro,
Globo, novembro de 1994, p 53.
de forma cômica quase sempre quando o assunto é lobisomem). As pessoas mais visadas
são as que moram sozinhas, evitam o contato humano, mostram sinais de problemas
mentais e tem pouco cuidado com a aparência pessoal. Atitudes como deixar as unhas
crescerem e desprezar cuidados corporais pode fazer com que um indivíduo adquira uma
aparência e um cheiro animalesco. Acresça o habito de andar sorrateiramente pelo matagal
ou cemitério, um temperamento agressivo, etc., e semelhante figura assustará mesmo
quem nunca acreditou em lobisomem!

A arte nacional soube aproveitar o mito

No filme Quem Tem Medo de Lobisomem? (1974) os personagens confundem o


lobisomem com um vampiro e, a partir de então, muitos romances gráficos desenvolveram
a mesma idéia. Um bom exemplo de mescla é o traje com capa preta do personagem
principal da série de romances gráficos Lobisomem, com roteiro é de Gedeone Malagoa
(1924-2008) e o desenho de Nico Rosso (1910-1981). No enredo da série brasileira o Conde
Louis Von Boros leva vida dupla viajando pelo mundo, seduzindo lindas mulheres para
satisfazer seus desejos humanos e caçando outras tantas para beber sangue. Quando útil
ele viola a regra do fictício “Código do Diabo” que proíbe um monstro de matar outro
monstro, caçando vampiros.
Detalhe extraído do romance gráfico Lobisomem contra o Estranho
Vampiro! O roteiro é de Gedeone Malagoa (1924-2008) e o
desenho de Nico Rosso (1910-1981).

Um brocado popular do século XX afirma que “homem com homem da lobisomem”


e “mulher com mulher da jacaré”. Dentre os maiores sucessos gravados por Ney
Matogrosso consta as músicas O Vira (composta por João Ricardo, em 1973) e Homem
com H (de Antônio Barros, 1981), contendo menções a um lobisomem genérico que todos
deduzem ser gay... Em 2009, o ator Paulo Silvino criou e interpretou o personagem
Lobichomem para um quadro semanal no programa de comédia Zorra Total, exibido na
Rede Globo. Sempre que consegue conquistar uma linda mulher o machão vê a lua cheia,
sente “aquela coceirinha particular” e se transforma num lobisomem gay sedento por carne
masculina. Quando volta ao normal percebe que a mulher fugiu e não entende o que
aconteceu, pois ele não se lembra de nada.
A busca pelo lobisomem que assustava os habitantes da fictícia cidade de Asa
Branca, ao som da música Mistérios da Meia Noite, de Zé Ramalho, foi uma das atrações da
telenovela Roque Santeiro; escrita por Dias Gomes e Aguinaldo Silva, produzida e exibida
pela Rede Globo de 24 de junho de 1985 a 22 de fevereiro de 1986. No último capítulo a
identificação e transformação do professor Astromar Junqueira (Ruy Resende) marcou o
pico de audiência do horário nobre. Posteriormente o ator Ruy Resende escreveu o livro
Um Lobisomem Passado a Limpo, narrando sua experiência na novela.
Atualmente o pastor evangélico Jorge Val, dito ex ialorixá e babalorixá Jorge de
Oxossi, tem incluído em seu testemunho durante as pregações a afirmação de haver
trabalhado como dublê do lobisomem na novela Roque Santeiro, sem apresentar nenhum
meio de prova... Que lástima!

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