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A PREVALENÇA DO

DESTINO

de

José Rubens Siqueira


2

PERSONAGENS
Índio
Velha Dona Neném
Moça 1
Moça 2
Moça 3
Moça 4
Moça 5
Moça 6
Zilda
Lico
Mocinha
T alhado
Cangaceiro 1
Cangaceiro 2
Cangaceiro 3
Cangaceiro 4
Cangaceiro 5
Cangaceira 1
Cangaceira 2
Laurino
Capitão
Dona Lulu
Dr. Dirceu
Dona Heloísa
Mariquinha
Conferencista
Macaco 1
Macaco 2
Fazendeiro
Padre
Professora
José Baldino
Macaco 3
Lampião
Maria Bonita
Cangaceira 3
Cangaceira 4
Irinéia
3

O cenário é o palco vazio, em dois níveis: ao fundo um praticável rústico, suficientemente

grande para acomodar quatro ou cinco pessoas em cima, suficientemente alto para caber

gente em pé debaixo.

O palco será caatinga, rua, salão, praça, igreja, cadeia, etc...

M óveis e objetos de cena ficam depositados junto à direita, ao fundo.

Os atores escolhem o que precisam e trazem para a cena.


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PRÓLOGO

Escuro.

Soa um chocalho.

Um raio de lua ilumina em contra-luz um índio adornado, de cócoras no plano elevado.

Ele tira baforadas grandes do cigarro de palha grosso.

Imóvel, concentrado, sacode o chocalho a intervalos regulares.

Sua respiração se acelera aos poucos, se transforma em estertores irregulares. Ele se

levanta, lento e solene.

O palco vazio abaixo dele se banha de luz vermelha como fogo, como sangue.

O índio abre os braços abarcando todo o sertão ardente.

Em transe, profetiza:

INDIO - Birré berré barrâ a-borrô (respira com ruído)

vitane niení kie-tcé (respira com ruído)

ritço-terrada borrô pli (solta o ar num silvo entre dentes)

Ritço-terrada... pli... ritço-terrada... pli... ritço-terrada... pli... ritço-

terrada... pli...

E continua repetindo enquanto o luar se apaga.


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CENA 1

Na luz vermelha do palco entram oito mulheres.

Sete delas trazem almofadas de renda de bilro. Sentam-se no chão.

A Velha traz sua cadeira e senta-se no centro, mais ao fundo.

Usa chapéu de abas redondas e um retângulo de pano que cobre inteiramente seu rosto.

O vermelho se apaga à medida que a luz se acente sobre elas.

Começam a tecer. A Velha não tece: vigia, narrando sua história.

VELHA - Cauã ele chamava. Era o pajé mais velho dos índios Xucuru. No último

dia do século ele subiu na serra. Lá do alto, olhou aquela vastidão de terra

do sertão até o sol se deitar. Depois, na escuridão, chamou os espírito de

Tupã, de Anhangá, pra perguntar pra eles os mistério do novo tempo que

ia começar. Ficou a noite inteira lá, retorcendo nas visão do outro mundo.

E o que ele viu foi duas cobra versidade de vez se ligando e se vastando,

desenhando coisa que só ele entendia até se juntar na forma de dois ésse.

De manhã Cauã desceu do monte e profetizou assim pra tribo: Birré berré

barrâ a-borrô

Vitani niení kie-tcé

ritço-terrada borrô pli.

Sabe o que é que quer dizer?

M OÇA 1 - Conta, madrinha, conta.

VELHA - Um novo tempo se abre com duas vibra trançada: seca e sangue.

M OÇA 3 - (se benzendo) Cruz credo!


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VELHA - O índio Cauã tava certo. Desde que começou o século que só se viu nesse

sertão esses dois ésse enganchado, feito cobra malina: seca e sangue, seca

e sangue, seca e sangue...

M OÇA 2 - Qual, madrinha, tá querendo botar susto na gente. M eu pai disse que no

tempo dele já era anssim tombém.

VELHA - Seu pai é muito moço pra lembrar.

M OÇA 4 - M as seca não é de hoje que tem, né, madrinha?

M OÇA 3 - E bandido cangaceiro tombém, Deus nos livre e guarde!

VELHA - M as naquele tempo era diferente. É... muito mais diferente de hoje. Teve

a pior seca que já teve foi em setenta e sete. Durou três anos, durou. M il

oitocentos e setenta e sete, setenta e oito, setenta e nove. M orreu tudo. Os

gados, as miunça, as plantação. Água não tinha nem em talo de xique-

xique, de mandacaru. Tudo seco. Os sertanejo morto de fome largava

tudo, se arretirava pra longe. O mais das vez nem voltava. Tudo largado,

abandonado. As terra era dos coroné, não tinha governo pra dar ordem.

As luta era de família contra família, não fazia judiação com o povo. Até

cangaceiro era honrado... Antonio Silvino... homem de honra, cavalheiro,

justiceiro respeitador. Não matava sem necessidade, não judiava...

Depois do mil novecento foi que tudo se transformou. Esse mundão

do sertão virou inferno dos demônio cangaceiro. Sinhô Pereira,

Lampião...

M OÇA 2 - Pois eu acho que é tudo igual. A senhora é que nem minha avó. Sempre

acha que era melhor nos tempo de antes.

M OÇA 4 - (cochicha) Não provoca a madrinha, Berré.

M OÇA 5 - (cochicha) É. Senão ela dá castigo pra gente.

M OÇA 6 - (cochicha) E a gente perde o rasta-pé.

VELHA - Sinhô Pereira foi o último cangaceiro honrado. Foi. Tanto que deixou o

cangaço e foi viver vida de gente em Goiás. Não é que nem Lampião e

esses cabras dele. Tudo safado, gosta de vê sangue, de abusá de mulher...


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M OÇA 1 - Dixéro que foi Sinhô Pereira que botou Lampião no cangaço. Verdade,

madrinha?

VELHA - É. Ele mais os irmão. Antonio, Livino, Ezequiel. Verdade, sim. Lampião

já tava destinado de ser cangaceiro. É, sim. A mãe dele, M aria Lopes, eu

conheci. “Não tenho filho pra guardar no baú”, ela dizia. “Filho meu tem

de enfrentar tudo como homem: o trabalho, o amor, a vida, a provocação,

a luta e até a morte!”

As meninas riem da imitação dela.

A velha se levanta e passeia entre as moças, examinando os trabalhos.

Detém-se na almofada da última que até agora nada disse, nervosa.

VELHA - Zilda errou. Olha aí. Não fez quase nada. Tá doente, menina?

ZILDA - Não senhora.

VELHA - Tá, sim. Tá toda suada, tremendo. Que que foi?

ZILDA - Nada não senhora.

VELHA - Se tá doente vai pra casa se deitar. Se não tem nada, tome jeito. Senão lhe

seguro aqui até terminar seu dever. Não vai querer perder a festa, vai?

ZILDA - Não senhora.

M OÇA 6 - Ó, madrinha, minha renda tá quase pronta. Se vosmecê deixar eu ajudo

Zilda despois.

VELHA - Vocês faz como quiser. Quero é o serviço pronto.

A velha sai, levando sua cadeira.

Assim que ela desaparece, as meninas correm e cercam Zilda, excitadas.

M OÇA 6 - É verdade mesmo?

ZILDA - É.

M OÇA 3 - Você tá com medo?


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VELHA - Tô.

M OÇA 3 - Eu no teu lugar já tinha me acabado. Vixe Nossa Senhora!

M OÇA 1 - Como é que era o recado? Conta!

M OÇA 4 - Foi teu irmão que falou com ele?

M OÇA 5 - Você vai ter coragem de ir, vai, Zilda?

ZILDA - Não sei, não sei.

M OÇA 6 - Contou pra sua mãe?

ZILDA - Deus me livre! Coitada, se a mãe sabe, é capaz de ter um negócio!

M OÇA 2 - Por que? Pode ser até que ela faça gosto da filha se juntar com

cangaceiro.

M OÇA 1 - Não provoca! Que mãe vai querer que cangaceiro leve sua filha pro

cangaço?

M OÇA 2 - M inha mãe contou que a mãe de M aria Déa foi quem mandou recado pra

Lampião oferecendo a filha a ele.

M OÇA 4 - Nada disso! Foi ela mesma que quis ir.

M OÇA 5 - É, sim. Lampião foi lá na sapataria do marido dela e M aria Bonita quando

viu ele foi falando anssim:

M OÇA 2 - “Vai me levar ou quer que eu lhe acompanho?” eu tombém já sei dessa

história. M as foi a mãe dela que mandou chamar o tinhoso. Foi minha

mãe que me disse.

M OÇA 6 - E como é que tua mãe sabe? Vai ver que tá querendo entregar a filha

pralgum bandido tombém.

As moças riem. Moça 2 fica brava.

M OÇA 2 - M inha mãe não é dessas, não, tá ouvindo? M inha família não tem medo

de cangaceiro. É tudo gente valente, de honestidade. Não é coiteiro, não.

A velha entra a tempo de ouvir a última frase.


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VELHA - (enérgica) Quem foi que falou isso?

M OÇA 2 - Foi eu.

VELHA - Olha aqui, menina. Não quero saber dessas conversa na minha casa não.

Tá ouvindo? Essas intrigas não faz bem a ninguém. A gente já vivemo

aperreado, com a seca, inda tem de ficar espremido no meio de duas

desgraça: de um lado os bandido cangaceiro, de outro as volante da

polícia. Não chama ninguém disso, nem daquilo não, tá ouvindo? Deixa o

povo escolher se ajuda a lei ou se dá pousada pra Lampião. Que a vida já

é difícil por demais...

M OÇA 2 - M eu pai... ele falou que a senhora fala mal dos cangaceiro, diz que não

gosta dos bandido, mas é só pra disfarçar. Disse que a sua casa é coito de

Lampião e que tem até gente sua mesmo no bando dele. Vosmecê é

coiteira, madrinha. Coiteira de cangaceiro.

A Velha se descontrola e dá uma bofetada na Moça 2.

Antes, porém, que possa haver reação, entra um grupo de três cangaceiros armados até os

dentes, olhando em torno, alertas.

Um deles traz uma cangaceira grávida montada a cavalo em suas costas.

As meninas gritam e correm para um canto. A Velha se mantém calma, firme.

O cangaceiro deposita no chão a mulher.

Mocinha se põe de cócoras, aperta a barriga, geme de dor, mas forte, calma.

Entra outro cangaceiro, altivo e forte. É Lico, que vai até a velha.

LICO - A benção, madrinha.

VELHA - Deus lhe abençoe.

Mocinha deita-se no chão, cabeça voltada para o lado da platéia, as pernas, dobradas e

abertas voltadas para o fundo do palco. Geme alto, numa contração, apertando a barriga.
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M OCINHA - M e acuda, dona Neném.

A Velha vai até ela. Ajoelha-se a seu lado. Apalpa a barriga, encosta o ouvido para ouvir o

feto. Mocinha relaxa. Dona Neném levanta sua saia, e a examina com a mão examina.

VELHA - Três dedos... Inda demora um pouco, M ocinha.

M OCINHA - Eu sei. Só de estar do lado da senhora já fico mais sossegada.

A Velha se põe de pé. Dirige-se a Lico, dá uma olhada para o grupo de moças

atemorizadas.

VELHA - Por que não me avisaram que vinha?

LICO - Tivemos de dar volta pela serra, dona Neném. M acaco pra todo lado.

Mocinha se contrai e dá um longo gemido. Todos olham, as meninas se apavoram.

Lico vai até Mocinha, ela agarra a mão dele, com dor, sem medo.

A Velha vai até as moças.

VELHA - Que é que tão aí feito manteiga derretida, suas tontas? Nunca viram

mulher parir, não? Pois vão ver agora. Zilda, venha me ajudar.

A Velha sai. Zilda com ela.

LICO - Carma, M ocinha. A madrinha vai lhe assistir.

M OCINHA - Eu sei. Já chegaram? O bando todo?

LICO - Inda não. Talhado ficou de vigia. Vem me avisar quando eles entrar no

terreiro.
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A Moça 2 se arma de coragem, destaca-se do grupo de moças, vai para a saída.

Dois cangaceiros bloqueiam seu caminho, ela se detém.

Lico percebe o movimento e volta-se. Vai até ela.

LICO - Onde é que vai?

M OÇA 2 - Eu... quero voltar pra minha casa.

LICO - Não pode sair, não.

M OÇA 2 - Eu tô presa? Vosmicê não pode me prender não.

LICO - Ninguém não vai prender ninguém. Tem de esperar chegar os outros meu

companheiro, tá ouvindo? Depois vorta cada uma pra suas família.

M OÇA 2 - Eu não vou esperar nada. Quero ir já. (avança para sair)

LICO - Quieta aí!

Agarra Moça 2 pelo braço e empurra violentamente na direção das outras.

Moça 2 cai. Moça 3 dá um gritinho medroso.

M OÇA 3 - Vixa M aria Santíssima, valei-nos!

M OÇA 2 - (furiosa) Bandido da peste! Tu vai ver o que meu pai vai te fazer. Vai te

sangrar vivo, ele vai.

Lico agarra a Moça 2 pelos cabelos, ri, olha para os outros.

LICO - Êta! Parece onça braba! Será que é essa que Zé Laurino escolheu?

Os outros riem.

LICO - Quem é que é teu pai?

M OÇA 2 - Tira essa mão de cima de mim.

LICO - Quem é que é teu pai?


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M OÇA 1 - É o seu Neco da Pedra.

M OÇA 2 - Cala a boca!

LICO - Ah! Seu Neco da Pedra... Apois, é com ele mesmo que nós temos umas

conta pra acertar.

M OÇA 2 - M eu pai não tem nada que acertar com cangaceiro sujo nenhum.

Lico bate na moça que cai aos pés das outras, chorando.

LICO - Neco da Pedra é o sem-vergonho que mandou macaco atrás de nós.

M OCINHA - Deixa ela, Lico, você...

Mocinha não termina a frase. Contrai-se e dá um gemido longo, baixo.

Lico vai até ela.

As moças ajudam Moça 2 a se levantar e a protegem no centro do grupo.

Lico se curva sobre Mocinha, preocupado. Grita para dentro.

LICO - Dona Neném! Dona Neném! M adrinha...

A Velha entra com panos limpos na mão, Zilda atrás com uma bacia de água quente.

VELHA - Tô aqui...

A Velha se curva sobre Mocinha, sente a barriga, examina a dilatação, enquanto Zilda põe

a bacia no chão e forra com os panos em torno de Mocinha. A respiração da cangaceira

está muito mais rápida, ela faz força a cada contração. A criança está começando a

nascer.
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VELHA - (para os cangaceiros) Que é que tão olhando, vocês aí? Vira a cara pra lá

que isso não é coisa pra homem assistir. (para as moças) E vocês chega

aqui pra mode ajudar nos serviço.

Os cangaceiros obedecem, viram-se de costas.

Menos Lico, que fica observando à distância, nervoso e atento.

As moças cercam a parturiente cobrindo-a da visão do público.

Por entre as pernas delas se entrevê a Velha fazendo o parto, Zilda segurando as mãos de

Mocinha que faz muita força, gemendo.

M OÇA 3 - Virgem Santíssima. Virgem antes do parto, Virgem durante o parto,

Virgem depois do parto, tal foi a obra do Espírito Santo que gerou em

Vosso ventre imaculado o esplendor do mundo Vosso adorado e precioso

filho Nosso Senhor Jesus Cristo. Ó bem aventurada Virgem, quando

depois da Anunciação do Anjo e do Vosso adorável consentimento o

Divino Verbo se cobriu de nossa mortalidade no Vosso puríssimo ventre,

donde passados nove meses saiu a visitar, instruir e remediar o mundo, a

todo momento precisam os pecadores de Vosso amor e de Vossa

bondade, porém nunca como nesta hora, dando-me um bom sucesso e a

todos quantos imploram o Vosso Santo Nome. Amém.

Algumas moças viram o rosto. Uma chora. A Moça 2, ainda perturbada, assiste tudo de

olhos fixos, muda, cheia de nojo.

VELHA - Êhê! Pronto! (dá uma palmada) Êta cabra macho! Não chorou nem pra

nascer.

M OCINHA - (ofegante) Tá respirando, tá?

VELHA - (lavando a criança na bacia, ouve-se o ruído da água) Tá que já tá

querendo correr atrás dos macaco.


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As moças riem, histéricas, emocionadas.

Os homens se aproximam.

M OCINHA - É perfeito, é?

VELHA - Tá tudo no lugar. Olha aí!

LICO - É home? É home?

VELHA - (Abrindo os panos que envolvem a criança) Olha só a macheza dele!

Os homens riem, satisfeitos.

A Velha entrega a criança envolta em panos para Mocinha.

Zilda enrola os panos embaixo das costas de Mocinha, formando um ninho mais

confortável, enquanto as moças vão se afastando.

Moça 1 sustentando a Moça 2 que está muito estranha, perturbada, olhar fixo.

VELHA - (para Zilda) Tu fica aí com ela. (para Lico, que está ao lado da mulher e

se levanta) Lico, eu queria que você deixasse essas menina voltar pra

casa. Deixa.

LICO - A madrinha desculpe, mas nós tem que esperar chegar os cabra tudo do

bando. Não podemo arriscar, madrinha. Tem gente aqui na vila que quer

cortar a cabeça da gente.

Entra Talhado. Todos se voltam para olhar.

TALHADO - Pronto, Lico. Chegou tudo. E já tão tudo nos lugar que você mandou.

LICO - Teve tiroteio?

TALHADO - Nenhum.

LICO - Bão... Antão vocês podem ir.


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As moças começam a sair, apressadas.

A Moça 2 passa por ele, olha cheia de ódio.

Lico a segura pelo braço.

LICO - Você fica.

VELHA - Deixa ela ir também.

LICO - É filha do Neco da Pedra, verdade, madrinha?

VELHA - É. Eu sei que vocês quer acertar o homem, mas a moça não tem nada com

isso. Deixa ela ir também. Deixa.

LICO - (pensa) M adrinha pediu, eu deixo. Ademais, Laurino já deve de tá lá com

o fuzil nos gargomilo dele.

Ao ouvir o nome de Laurino, Zilda dá um pulo, sobressaltada.

Lico e a Velha voltam-se para ela.

Moça 2 aproveita e sai correndo.

Lico aproxima-se de Zilda, examina a moça dos pés à cabeça.

LICO - É tu que Laurino vai levar pra mulher? (Zilda fica muda) Como é que

você chama?

ZILDA - Zilda.

LICO - Hum... Tá bão. Antão você já fica aí, ajuda tratar de meu filho. Tá

ouvindo? (olha a criança, levantando os panos com a ponta dos dedos,

olha carinhoso para Mocinha) Tá mais sarada, M ocinha, tá?

M OCINHA - Tô.

LICO - Antão vou cuidar do serviço que Laurino deve de estar me esperando.

(tira um saco de dinheiro de dentro do embornal) M adrinha, este aqui é

pras necessidade. M ocinha tá precisada de comida de sustança.

Lico vai saindo com os outros três cabras.


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LICO - Vocês dois cabra fica de guarda aí na porta. Você vem, mais eu, pra

cuidar de Neco da Pedra. (saem todos)

VELHA - Zilda... é verdade o que ele disse?

ZILDA - É sim, madrinha. Foi meu irmão que trouxe o recado ontem.

VELHA - Tua mãe que é que disse?

ZILDA - Vixe! Ela não sabe não, madrinha.

VELHA - Por que não contou pra mim, minha filha?

ZILDA - Não quis lhe dar consumição.

VELHA - Você quer ir?

ZILDA - Se tiver jeito, eu não vou. M adrinha me ajuda?

VELHA - Ajudar? Eu mesma não sei que que é melhor: ir ou ficar.

M OCINHA - (que acompanhou a conversa atentamente) Dona Neném, eu queria beber

um pouco dágua.

VELHA - Já lhe trago, M ocinha. (Velha pega a bacia e sai)

M OCINHA - Não se avexe não, Zilda. Sente aqui de meu lado que lhe falo um pouco

da vida da gente.

Zilda se acomoda ao lado dela.

Black out.

Ao se iniciar a música, cantada na coxia, toda a cena se ilumina de vermelho.

Mocinha com seu filho no colo, Zilda a seu lado, aninhadas no chão, no mesmo lugar.

M úsica - “Se os homens desse aos vivente

O que açambarca os banqueiro

E dividisse as quitanda

E tudo nos mossoqueiro

Neste mundo de miséria

Não haveria cangaceiro


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Não haveria cangaceiro

Não haveria cangaceiro...”

Risos, aplausos lá fora.

A música continua, sem versos, para ser dançada.

Acende-se foco sobre Mocinha e Zilda.

A luz vermelha vai se apagando muito lentamente durante a fala de Mocinha.

M OCINHA - Passei num rio com água pelo pescoço, chuva, tempo ruim. Eu já com

dor, subi uma ribanceira, entramos num mato. Você sabe o que é tiririca,

né, de espinho? Era quebrado com pau pra se passar. Andei duas légua.

Sabia que os macaco tava atrás da gente. Aí, me apanharam, me botaram

nas costa do cabra, subimos uma barranca adiante e tava aqui. O resto

você sabe.

ZILDA - (olha o bebê no colo dela) Dá tempo de amamentar, M ocinha?

M OCINHA - Dá. Quer dizer, num tiroteio não dá não. Fica é tudo. Se morrer fica lá,

fica bornal, fica tudo. (olha a criança, carinhosa) Filho se tem é pra zelar.

Este aqui, igual que o outro, tem enxoval, tudo direitinho que em cada

lugar eu tenho um bocado de coisa. Encomendo, faço, num sabe? Da

outra vez, eu fiquei três mês com o menino até que num tiroteio a bala

quase pega o bichinho. Antão mandei entregar pra quem já tava certo de

entregar. Fica escondido os meninos, criados pelos outro. Quando eu

quero ver, num pode. Pru mode não perseguirem o coitadinho. Este aqui

não vou nem levar. Já fica com dona Neném pra entregar pra quem já tá

combinado.

ZILDA - Você... você não tem medo?

M OCINHA - Óxente! Claro que tenho! A vida no cangaço é muito sofrimento. M as tem

muita fartura também. A gente sofre, mas goza tombém.


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Zilda baixa a cabeça e começa a chorar.

Mocinha se enternece, levanta o queixo dela, olha seus olhos.

M OCINHA - Criança... Tu é moça bonita. Seque as tuas lágrima e vai se acostumando

logo na vida nova, porque elas vão ter de secar mesmo sem ajuda de

ninguém.

De repente, Lico, os três cabras que estavam de vigia, mais dois cangaceiros cantadores,

com seus instrumentos, entram acompanhados de mais duas mulheres cangaceiras,

algumas das moças rendeiras, menos a Moça 2 e Moça 3.

Já entram tocando e cantando, cercando Zilda e Mocinha. Ritmo alegre, como num

desafio, os cantadores se alternam nas quadrinhas.

CANTADOR 1 – Querendo tangê comboio

Inté sou bom comboeiro

Querendo fazê sapato

Inté sou bom sapateiro

CANTADOR 2 – Querendo andá no cangaço

Inté sou bom cangaceiro

Que isso de matá gente

É serviço mais maneiro.

Risos, aplausos

CANT. 1 - M ió vida do que esta

Nunca quis, num quero não

Bóia boa e um pau de fogo

Na tropa de Lampião

CANT. 2 - É mió sê cangaceiro


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E poeta cantadô

Que sê bispo ou deputado

Ou mesmo governadô

CANT. 1 - Nesta vida de cangaço

Tem tudo que a gente qué

Bom queijo, boa cachaça

Dança, musca e muié.

Risos, aplausos.

Os cangaceiros cercam Mocinha, uma das cangaceiras pega seu filho no colo.

O bebê passa de mão em mão, todos falam ao mesmo tempo.

TALHADO - É home, M ocinha, é?

M OCINHA - Home, sim, Talhado.

CANGACEIRA 1 - Êh, beleza de meninão forte.

CANGACEIRA 2 - Dá ele aqui, dá.

A criança roda de mão em mão, os homens chegam a jogá-la de um para o outro,

ousadamente, mas com cuidado.

Lico ri, preocupado. Mocinha ri muito, estende os braços.

M OCINHA - Assim vocês mata meu filho, minha gente.

Devolvem a ela a criança. Ela aninha o filho no peito.

Zilda observando tudo, atenta, fascinada e temerosa ao mesmo tempo.

LICO - Agora vamo saindo que M ocinha tem de descansar. Vamo saindo.

Começam a sair todos, os cantadores retomam a cantoria e saem cantando.


20

CANT. 1 - Pra havê paz no sertão

E a gente pode vivê

CANT. 2 - E o mato pode crescer

CANT. 1 - E as muié podê rezá

CANT. 2 - E os matuto trabaiá

CANT. 1 - E os menino adiverti

CANT. 2 - É perciso uma inleição

Pra fazê de Lampião

Presidente do Brasil

Risos e aplausos lá fora.

Mocinha ri gostosamente, Zilda se deixa contagiar e ri um pouco.

M OCINHA - Ai, ai! Inté que era bão: Lampião, presidente do Brasil! Ia ser muito

bão. A gente não ia mais precisar de viver nessa correria. Lampião é o

chefe de nós tudo, não sabe? Não teve nunca cangaceiro que nem ele.

Os bando sai, cada um pra suas terra, com seus chefe, mas é Lampião o

chefe de nós tudo. Homem de sabedoria muita. Conhece essas caatinga

tudo feito bicho do mato. Onde passa cascavel, também ele passa. Pra

onde vai, sabe onde fica os poço, as cacimba, as nascente. Tudo

gravado na mente. Ele olha assim o vento no ar, o cheiro da terra, o

vôo, o canto dos passarinho e entende o mistério das coisa. Entende o

que ninguém entende.

Mocinha suspira, sonhadora e olha o bebê em seus braços.

A Velha entra e pára diante delas.

Zilda se levanta ansiosa.


21

ZILDA - Falou com ele, madrinha?

VELHA - Falei.

ZILDA - O que é que pai falou?

VELHA - Nada, coitado. O que é que ele pode fazer? Se for dar parte à polícia, a

polícia persegue ele porque a filha é cangaceira. Se entrar na tropa pra

perseguir vocês é pior... E os outro filho, a mulher, a família toda dele?

M elhor perder uma filha só. Ele sabe disso.

Zilda cobre o rosto com as mãos e chora.

Ouve-se um grito lancinante lá fora.

A Moça 2 irrompe em cena, os dois cabras que estavam de guarda tentando impedir sua

entrada. Ela está chorando, roupa em frangalhos, rosto ferido, descalça, sangue nas

pernas, na roupa.

VELHA - Deixa ela entrar.

CABRA 1 - Pode não, dona. Seu Lico mandou.

VELHA - (firme) Larga a moça que eu tô mandando

O cabra obedece e se retiram os dois, contrafeitos.

A Velha acode a Moça 2, Zilda também. Mocinha olha.

A Moça 2 já não chora. Continua soluçando, o olhar perdido.

VELHA - Que que foi, filha?

M OÇA 2 - (olha a Velha, olha Zilda, olha Mocinha) Primeiro veio um... um dos

que matou pai... Tô abrindo a vereda, ele falou. Enfiou a carne dele em

mim... M e furou... me desonrou... Doeu... Depois veio outro. Depois

mais outro... mais outro mais outro. M e comeram, madrinha... me

comeram... M e mata, eu pedi, me mata, me mata... Não quero parir

bandido... me mata, me mata, me mata, eu pedi...


22

Moça 2 se deixa cair sentada no chão, começa a oscilar o corpo para frente e para trás.

Velha e Zilda trocam um olhar, olham para Mocinha.

Mocinha suspira e lamenta o fato, sacudindo a cabeça.

Moça 2 começa a cantar.

M OÇA 2 - Coração Santo, tu reinarás,

Tu, nosso encanto, sempre serás!

Jesus amado, Jesus piedoso,

Pai amoroso, frágua de amor!

Aos teus pés venho, si tu me deixas,

Sentidas queixas, humilde por!

No meio da canção Lico entra, muito nervoso, acompanhado de outro cangaceiro, Laurino.

Moça 2 continua a cantar, alheia a tudo.

Laurino estaca e olha Zilda fixamente, Zilda compreende quem ele é e fica rígida, cabeça

baixa.

LICO - Por que fez isso, M adrinha?

VELHA - Vocês já não esfolaram o pai dela? Destruíram tudo, tomaram sua

vingança? A moça agora tá sem família. Vou cuidar dela do mesmo

jeito que cuido de vocês.

LICO - Cumpadre Lampião não vai gostar de saber disso.

M OCINHA - (firme) Não, Lico. Não ameaça a dona Neném. Ela sabe o que faz. O

capitão confia nela.

Lico fica confuso com a intervenção de Mocinha. Não sabe o que fazer. Grunhe um

protesto feroz, dá um tapa na perna e sai depressa.

A Velha vai saindo, conduzindo para fora a Moça 2 que ri, baixinho, louca, mansa.
23

Laurino continua no mesmo lugar, olhando Zilda imóvel no mesmo lugar.

Mocinha percebe a situação, ocupa-se de seu filho, disfarçadamente atenta aos dois.

Laurino avança a mão para tocar os cabelos de Zilda.

Ela afasta um passo, temerosa.

LAURINO - Óia, menina, eu não sou onça pru mode tá comendo gente não, ouviu?

Vosmicê pode ficá à vontade. Ninguém vai lhe fazer mal. No meio da

gente só tem mulher decente. Tudo gente de valor: dona M aria Bonita,

Dadá de Corisco, Enedina, M ocinha... Eu... gostaria de ter vosmicê pra

minha muié.

Zilda levanta o rosto e olha para ele, surpresa com a delicadeza e beleza de Laurino.

Mocinha acompanha a cena com um sorriso malicioso e satisfeito.

LAURINO - Ocê quer?

ZILDA - E eu posso não querer?...

Mocinha ri gostoso.

Laurino tira do pé a alpercata direita e coloca no chão diante do pé esquerdo de Zilda.

LAURINO - Carça.

Zilda obedece, Laurino coloca as mãos sobre a cabeça de Zilda e fecha os olhos, contrito.

Reza enquanto gira em torno dela, aplicando-lhe passes nos ombros, na cabeça, nos

braços, no ventre.

LAURINO - Justo Juiz de Nazaré, filho da Virgem M aria que em Belém nasceste

entre as idolatria, eu vos peço Senhor, pelo vosso sexto dia e pelo amor

de meu padrim Cícero que meu corpo não seja preso, nem ferido, nem
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morto, nem nas mão da justiça envorto. Pax tecum, Pax tecum. Se os

meus inimigos vier pra me prender, terão olhos e não poderão me ver,

terão ouvidos, mas não me ouvirão, terão boca, mas não falarão. Com

as armas de São Jorge serei armado, com a espada de Abraão serei

coberto, com o leite da Virgem M aria serei borrifado, na arca de Noé

serei guardado, onde não me possam ver, nem ferir, nem matar, nem o

sangue do meu corpo tirar. Seja eu guardado de noite como de dia,

assim como andou Jesus no ventre da Virgem M aria, Deus adiante, paz

na guia. Amém.

M OCINHA - Amém.

Laurino e Mocinha ficam esperando.

Zilda olha de um para o outro sem entender. Por fim compreende e diz:

ZILDA - Amém.

LAURINO - Agora, vá se aprepará que nóis vamo embora assim que raiá o dia.

ZILDA - Pra onde?

LAURINO - (ri) Óxente, e cangaceiro lá tem rumo? Nóis vamo indo pra onde Deus

é servido.

Laurino sai.

Apaga-se o foco, acende-se a luz vermelha.

Zilda ajuda Mocinha a se levantar com o filho no colo.

A Velha entra e se coloca diante delas.

Lico e Laurino se colocam atrás das duas.

Mocinha avança até a Velha. Olha o bebê, chora manso, abraça com força a criança,

entrega para a Velha. Afasta um passo, torna a avançar, olha o bebê outra vez, curva-se,

beija o filho e se afasta chorando.

Ao passar por Lico, ele coloca o braço em seus ombros e saem juntos.
25

O foco se acende lentamente sobre a Velha, Zilda avança, entra na luz.

ZILDA - (emocionada) A benção, madrinha.

VELHA - Deus lhe abençoe, filha. Tome conta do seu homem. Cuidado pra ele

não morrer de amor.

LAURINO - M orro não, dona Neném. Tô muito menino ainda.

VELHA - Hã! Já vi muito hóme morrer engasgado e nem não foi no cangaço não,

tá ouvindo?

Zilda chora.

VELHA - Óxente, menina. Chore não. Seje forte. Vai em paz, minha filha. A

Virgem M aria guarde vosmicês.

Zilda vai saindo, Laurino passa o braço por seus ombros.

Antes de saírem, Zilda olha ainda.

A Velha acena um brevíssimo adeus para ela.

Zilda e Laurino saem.

A Velha olha o bebê em seus braços. O foco vai se apagando sobre ela, e a Velha sai de

cena na penumbra.

CENA 2

À esquerda do palco acende-se uma área de luz. Para ela avançam lentamente o Capitão e

Lulu, sua esposa, recebendo em visita o Dr. Dirceu, sua esposa dona Heloísa e

Mariquinha, sua filha adolescente, de óculos.


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CAPITÃO - Os cangaceiros só entram em combate quando estão seguros de vencer.

Recorrem muito a emboscada e fugas. Não é raro eles começarem um

tiroteio violento em boa posição, em terreno conhecido e, de repente,

perceberem que o inimigo é muito mais numeroso. Eles não hesitam:

abandonam a luta. Não lutam para vencer só, mas pra se salvar,

sempre.

DR DIRCEU - As volantes tem mais honra, claro. Não devem abandonar o campo de

batalha, não é mesmo?

CAPITÃO - Os soldados lutam sempre com um inimigo praticamente invisível.

Sabem da existência deles porque recebem tiros de resposta aos seus

tiros. Além disso, os cangaceiros fazem muito alarde para atirar. No

aceso da luta cantam...

M ARIQUINHA - (interrompendo, cantarola) Olê muié rendera, olê muié rendá...

D.HELOÍSA - Quieta, menina, que é isso?

CAPITÃO - (sorri e prossegue) E descompõem os soldados, relincham, imitam

animais. De repente, desaparecem. Volta o silêncio, fica tudo calmo.

(pausa) Uma calma que às vezes dá mais medo que o tiroteio.

DR DIRCEU - Guerra de nervos. Sei.

CAPITÃO - É. Não há dúvidas de que Lampião tem um trunfo nas mãos, uma

vantagem certa sobre as tropas volantes: ele conhece o terreno como a

palma da mão. E tem um instinto de tática militar pra fazer inveja a

muito oficial. Sabe cobrir a retaguarda para dar tempo para a retirada,

conduzir os feridos. E depois oculta as pegadas e as pistas da fuga que

muito rastejador acostumado a seguir onça, veado e tatu pelo mato

perde duma vez a trilha dele.

DR DIRCEU - M as apesar dessa perícia toda, Lampião foi ferido pelas tropas

pernambucanas.

CAPITÃO - Seis vezes.

DR DIRCEU - E perdeu os irmãos abatidos pela tropa.


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CAPITÃO - Antonio, Livino e Ezequiel.

D.HELOÍSA - Dizem que ele sentiu muito a morte do irmão.

CAPITÃO - É verdade.

D.HELOÍSA - Quem diria! Um bandido daqueles!...

CAPITÃO - Apesar de bandido, ele parece manter alguns preceitos. É homem

religioso, de honra. Nas duas ou três vezes que me encontrei com ele

foi muito educado.

D. LULU - Sabe, Heloísa, depois que mataram o irmão mais velho dele, Livino...

CAPITÃO - Antonio, meu bem.

D. LULU - Isso, Antonio. Lampião não quis mais cortar o cabelo, e agora é de

uso: cangaceiro tudo tem cabelo comprido até o ombro.

D.HELOÍSA - Deve ficar ainda mais nojento.

M ARIQUINHA - Eu acho bonito.

DR DIRCEU - O senhor acha então que ainda vai demorar muito tempo pra nos livrar

do flagelo do cangaço.

CAPITÃO - Depois de martelar muitos anos numa maneira sistemática de

perseguição chegamos à conclusão de que estávamos labutando em

erro. Concluímos que para combater os cangaceiros é necessário ser

igual a eles em tudo.

DR DIRCEU - M enos nos crimes, espero.

CAPITÃO - (sorriso) M enos nos crimes, está claro. As marchas forçadas pelas

caatingas não admitem equipamento nem fardamento regulamentar do

exército pelo motivo de não haverem distâncias limitadas a vencer, dia

determinado a chegar, víveres e munições para reabastecimento, nem

água para saciar a sede e se banhar. Tudo é incerto. Tão incerto quanto

a vida dos perseguidos.

DR DIRCEU - Perseguidos e perseguidores vão ter de viver igual.


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CAPITÃO - Cada comandante de força volante é, por si mesmo, um esforçado além

das possibilidades, motivado pela esperança de capturar o inimigo vivo

ou morto.

DR DIRCEU - Visando as recompensas que faz juz da parte do Estado, claro?

CAPITÃO - E também o interesse de se apossar dos tesouros que os cangaceiros

transportam.

DR DIRCEU - M as isso acontece?

CAPITÃO - É impossível evitar. Barbaridades acontecem dos dois lados.

DR DIRCEU - Então é verdade o que se tem comentado nos jornais e na intimidade?

CAPITÃO - Só quem está nesse serviço pode fazer idéia do que é a oposição que as

volantes encontram da parte dos que moram nos matos. Uns, por medo

dos cangaceiros, outros porque acham que eles são amigos e até

benfeitores.

DR DIRCEU - M as chegam a falar de barbaridades...

CAPITÃO - Alguns comandantes de tropas têm apertado coiteiros em busca de

informações. Espancamentos, violações, até mortos mesmo.

D. LULU - Isso não é conversa para senhoras. Vamos para a outra sala, vou

mandar preparar um refresco.

As mulheres se encaminham calmamente para o extremo oposto do palco, à direita, onde

se acende uma luz para elas.

Enquanto elas caminham os dois homens continuam a conversa.

CAPITÃO - Quanto a mim, nunca dei uma pancada em ninguém. Que me

desmintam os sertanejos se não falo a verdade. Se me dão notícias dos

bandidos, agradeço. Se ocultam, eu não ligo importância e continuo

procurando.

As mulheres chegam ao seu campo de luz.


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M ARIQUINHA - É verdade que a senhora viu o Lampião, madrinha?

D. LULU - É, sim.

M ARIQUINHA - Conta, conta.

D.HELOÍSA - M ariquinha, se comporte! Deixe Lulu sossegada. Eu avisei você lá em

casa.

D. LULU - Deixe, Heloísa, é natural que ela tenha curiosidade. Afinal, não se fala

de outra coisa. No sertão, nas vilas, até aqui, na cidade grande o

assunto é Lampião. Imagine que Sabina minha prima, lembra dela?

D.HELOÍSA - Pois como não havia de lembrar!

D. LULU - Pois então, Sabina vai indo muito bem no Rio. Está contente com o

casamento e tudo. M e escreveu uma carta linda. E contou que até lá,

no Rio de Janeiro, imagine você! estão publicando a vida de Lampião

em capítulos num dos maiores jornais.

D.HELOÍSA - É mesmo?!!

D. LULU - Pois o homem agora é assunto internacional.

M ARIQUINHA - E como foi que a senhora viu ele?

D. LULU - Bom, a gente estava viajando, o Capitão e eu, com escolta pequena,

voltando para cá. Pernoitamos numa fazenda, em casa da viúva Sinhá

Pereira. Ela recebeu a gente muito bem e tal e depois de conversar um

pouco fomos dormir. À meia noite mais ou menos, acordei com um

tropel. Bateram na porta. Três vezes. A dona da casa, que já devia

saber o que era, nem deu sinal de vida. M eu marido, que também já

sabia quem era, foi abrir.

M ARIQUINHA - Eram eles!

D. LULU - Eram.

M ARIQUINHA - São bonitos eles?

D.HELOÍSA - M ariquinha!!
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D. LULU - Bonitos? Não sei. São vistosos, chapéus cheio de medalhas, anéis nos

dedos, bornais coloridos, bordados. M as o que me impressionou,

Heloísa, foi o cheiro.

M ARIQUINHA - Ruim?

D.HELOÍSA - Só pode ser, essa gente não toma banho nunca.

M ARIQUINHA - Deixa ela contar, mãe.

D. LULU - É um cheiro forte. Cheiro de... de bicho. Que eles tentam esconder

usando muito perfume.

D.HELOÍSA - Que horror!

M ARIQUINHA - As mulheres também cheiram?

D. LULU - Não tinha nenhuma mulher com eles esse dia.

D.HELOÍSA - Você não teve medo, Lulu?

D. LULU - Sou nascida e criada no Pajeú, terra de onde saem todos os

cangaceiros. E ademais, estava com meu marido, o capitão. Eles

respeitam muito o capitão.

M ARIQUINHA - Duvido que M aria Bonita seja fedida. M ulher fedida não ia ser

chamada de Bonita.

D.HELOÍSA - M as que menina!

D. LULU - (sorri) É, M ariquinha, acho que você tem razão. Dizem que ela é muito

bonita mesmo.

D.HELOÍSA - Pior ainda! M oça bonita, podia casar bem, acabou mulher de bandido.

Dá até pena, coitada.

M ARIQUINHA - M as foi ela mesma que quis, mãe!

D.HELOÍSA - Onde é que a senhora anda sabendo dessas coisas, onde já se viu! Nós

vamos ter uma conversinha quando chegar em casa, vamos sim. Eu

vou contar pro seu pai, eu vou.

D. LULU - É verdade, M ariquinha. É uma história até bonita pra quem gosta de

romance, de aventura. M aria Bonita se chama na verdade M aria Déa.

Residia perto da cachoeira de Paulo Afonso, esposa de um sapateiro


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muito competente. M ulher forte, aventureira. Dizem que bonita

mesmo, só um pouco simpática demais, me entende, Heloísa?

D.HELOÍSA - (maliciosa, censurando) Sei.

M ARIQUINHA - Sirigaita?

D. LULU - (ignorando) Antes mesmo de conhecer Lampião, ela já gostava dele

por ele ser o que é. Um dia um cangaceiro lá do bando, foi encomendar

alpercatas pro marido dela. M aria foi, arrumou um jeito de mandar

recado pra Lampião. Quando o cangaceiro veio buscar as percatas, dias

depois, veio junto Lampião em pessoa. Entrou, olhou assim pra M aria.

Assim que M aria viu Lampião entrar na sapataria do marido, falou

assim: ‘Este é o homem que eu amo’.

D.HELOÍSA - Virgem M aria Santíssima! Na frente do pobre?...

M ARIQUINHA - Que lindo!

D. LULU - (continuando) – ‘Como é, vai me levar ou quer que eu lhe

acompanhe?’ ‘Como você quiser, M aria, eu também quero’, Lampião

respondeu. Se quiser me acompanhar é pra sempre.

D.HELOÍSA - Óxente! E o marido?

M ARIQUINHA - O marido era um frouxo!

D.HELOÍSA - M ariquinha!!!

Apaga-se a luz nas mulheres que saem.

Os homens que conversavam em voz inaudível, tornam a falar alto.

DR DIRCEU - O senhor chegou a cortar a cabeça de algum cangaceiro, capitão?

CAPITÃO - Eu mesmo não corto. Os soldados é que cortam. Eu mando cortar pra

tirar uma fotografia e coisa. Depois, mando para o Instituto, na Bahia.

DR DIRCEU - Instituto?

CAPITÃO - O Instituto Nina Rodrigues, Dr Dirceu.

DR DIRCEU - Claro, para as pesquisas dos caracteres da criminalidade, já ouvi falar.


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CENA 3

A luz se apaga bruscamente, eles saem.

Um pequeno foco se acende no proscênio. O Conferencista se coloca, atrapalhado com os

papéis que tem na mão. Dirige-se diretamente à platéia.

CONFERENCISTA – Seleto auditório, senhoras, senhores, boa noite. M ais uma palestra

sobre cangaceiros, dirão alguns. Sim, mais uma palestra sobre

cangaceiros. E bastante meditada. Evitei no possível os excessos de

linguagem técnica, procurando ater-me à simplicidade de estilo. Não

poderei evitar, entretanto, certos coloridos literários, naturais no meu

temperamento. Afirmo, porém e com ênfase devida, não haver

comprometido a realidade dos fatos. Fiz algumas viagens ao sertão e

pude aquilatar a importância imensa do problema. Vi de perto a

realidade sombria do cangaço e dos cangaceiros, grandes e impetuosos

delinquentes que, porém, no meu entender, não deixam de ter sua

alma. Em meu cargo no M useu de Antropologia Criminal do Instituto

Nina Rodrigues, recebi e venho recebendo numerosas cabeças de

cangaceiros, as quais, depois de devidamente mumificadas são

expostas ao público, permitindo esse recurso o estudo acurado e sem

pressa desses tipos humanos. Permanece na obscuridade o modo como

interfere a herança genética na eclosão do crime e, mais ainda, são

desconhecidas as proporções dessa interferência. Face à

inexeqüibilidade do método experimental no caso, há de o

criminologista cingir-se aos dados da observação não provocada. E

esta reforça a hipótese de que o fruto da concepção deve trazer uma

espécie de suscetibilidade ou menor resistência. O meio cósmico e


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social atuando sobre um terreno que se diria “apropriado”, responde o

organismo a seu modo, na conformidade de sua “estrutura”, o

koeperbau da biotipologia alemã ou, mais amplamente, de acordo com

a personalidade global, o que envolve a forma corpórea, todo o sistema

celular e endócrino e, destacadamente, o neurônio, suscetível de

incapacitar-se, total ou parcialmente, desde a vida intra-uterina, em

consequência de traumatismo, desvios alimentares, fadigas maternas

ou intoxicações. M uitos indivíduos que, supreendentemente, se matam,

ou se envolvem em práticas delinqüenciais inesperadas, ou “adotam”

inconformes estilos de vida, estariam pagando o preço de

imperceptíveis ocorrências durante o parto: anóxias, asfixias causadas

por inércia uterina, distocia fetal ou de bacia, que provocam trabalho

demasiado lento e que não foi, em tempo, abreviado pela obstetrícia...

M as passemos às nossas considerações no domínio da biotipologia.

Enquanto em primeiro plano, em seu foco, o conferencista prossegue sua palestra, a

grande penumbra vermelha se acende e, um a um, os cangaceiros vão entrando, armando

a torda, arrumando o acampamento.

CONFERENCISTA – Uma circunstância ressalta quando se observa o cangaceiro: nenhum

deles é gordo, nem propenso à calvície. Homens esguios, raramente

baixos, normalmente altos, predominando os tipos aproximados do

metro e setenta. Pernas e braços finos, deixando porém perceber

relevos musculares, principalmente ao nível do bíceps. Coxas e

panturrrilhas fortalecidas pelo hábito da montaria ou longas

caminhadas a pé. Rosto comprido, ombros pouco largos, barriga

murcha, bacia estreita. Tórax excursionando amplo à respiração, deixa

em relevo os arcos costais. Um leptossomático nítido. Certas

fotografias por aí espalhadas podem dar a impressão de indivíduos


34

arredondados, balofos. O que, entretanto, ocorre é trazerem eles os

pertences principais achegados ao corpo, dando a ilusão de pessoas

demasiado robustas ou volumosas, pançudas. M as a regra geral está

firmada. Os adiposos, exibindo curvas ou proeminências em vez de

linhas retas ou quebradas; os tipos grandalhões ou baixotes, de braços

e dedos curtos; tendência à calvície e à proeminência abdominal; os

pícnicos, em suma, da classificação de Kretschmer, nunca fizeram

parte dos grupos. E se evitam o cangaceirismo, não terá sido em razão

das dificuldades de se transportarem, de se locomoverem ou por se

fatigarem facilmente. Não, não foi por isso, nem por sua escassez nos

sertões. Os pícnicos possuem, até, resistência notável à fadiga física, e

são bem mais agitados que os magros. O motivo de sua inexistência no

banditismo sertanejo estaria, antes, na própria psicologia dos biotipos.

Os magros (leptossomáticos) são, em regra, interiorizados, menos

comunicativos, menos expansivos, menos faladores, menos alegres e

mais frios, mais retraídos, mais irritáveis, mais apegados aos próprios

interesses. Caracteristicamente autistas, voltados para dentro da própria

alma, guardam melhor, muito melhor as ofensas, esquecendo-as com

dificuldades. As notas de egoísmo em sua individualidade, criam-lhe

certo grau de indiferença pela sorte alheia. Todos esses atributos do

leptossomático são inerentes à personalidade do cangaceiro que não

pode conversar demais, nem ser derramado em excesso ou preferir o

samba à retirada incontinenti para evitar o fogo das brigadas perigosas.

Lentamente a luz vai se apagando sobre ele, que continua a falar, mesmo no escuro.

Enquanto isso, a luz vai se acendendo sobre o grupo de cangaceiros, que termina de

arrumar o acampamento.

São eles: Zilda, Laurino, Mocinha, Cangaceira 1, Cangaceira 2, Cabra 1, Cabra 2,

Talhado.
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CONFERENCISTA – Descrever a esquizotimia, forma temperamental mais comum aos

magros ou leptossomáticos seria praticar uma espécie de radiografia da

existência psicológica dos cangaceiros. A cuidadosa observação

retrata-os como acentuadamente pedantes e a pedantice faz parte da

alma dos longilíneos. Da mesma sorte, o fanatismo, a rudeza, a

inflexibilidade. Lampião e seus cabras mostram-se extravagantes e as

extravagâncias são muito mais dos leptossomáticos. Atos anti-sociais

muito grosseiros ou estúpidos e as tendências revolucionárias não

ocorrem, costumeiramente, entre os tipos adiposos, ou musculares. São

expressões, antes, do comportamento dos esquizotímicos e que se

ajustam à alma tumultuosa do cangaceiro. A tenacidade, o maior dos

atributos dos lutadores sertanejos, constituindo elemento básico da

personalidade dos fanáticos de Canudos e dos homens do cangaço

pertencem mais, bem mais, aos magros, do que aos indivíduos

somaticamente fortes ou enxundiosos. Uma apreciação mais demorada

e melhor do temperamento e do caráter dos leptossomáticos, a qual

porém, deixarei para uma outra ocasião, nos conduzirá ao

reconhecimento de sua concordância com o temperamento e o caráter,

nos traços gerais, do cangaceiro. M uito obrigado. (sai)

Assim que o Conferencista sai, ouve-se um grande trovão, seguido pelo clarão do raio.

CANGACEIRA 1 - Ocêis dois, Curuca e Pitu, vai apanhar lenha depressa antes do toró

cair. Senão nóis tudo vai ter de comer farinha fria e rapadura.

Os dois vão indo, mas ouve-se nova trovoada, novo raio e o ruído da chuva forte.

M OCINHA - Vixe M aria!


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Os cabras voltam depressa para a torda, todos se abrigam. Ficam olhando a chuva cair.

Cangaceira 2 estende a mão para fora, sente a chuva.

CANGACEIRA 2 - Cada pingo, um pote!

Olham a chuva um tempo.

LAURINO - Ixe! Vai encher tudo. Ó a enxurrada que já fez!

M OCINHA - Bonito!

ZILDA - Bonito é, mas dá medo tomém.

M OCINHA - M edo de que?

ZILDA - Com o céu preto assim, desabando água a gente vê como que somos

pequeninos.

Olham a chuva um tempo.

CANGACEIRA 1 – Vamos dizer reza.

CANGACEIRA 2 - Vamos sim. A das 13 palavras dita e retomada.

Fazem todos o sinal da cruz.

CANGACEIRA 1 - Digo uma.

CANGACEIRA 2 - Uma é a Casa Santa de Jerusalém onde Jesus Cristo nasceu. E eu digo

dois.

M OCINHA - Duas são as tábua de M oisés que Nosso Senhor Jesus Cristo trouxe em

seus sagrados pés. Digo três.

LICO - Três são os três cravo que cravaram Nosso Senhor na Cruz. E digo

quatro.
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LAURINO - Quatro são os quatro evangelhista:

LAURINO e CABRA 1 – (juntos) São João, São M ateus, São M arco e São Lucas.

LAURINO - Digo cinco

CABRA 1 - Cinco são as cinco chaga de Nosso Senhor Jesus Cristo. E digo seis.

ZILDA - Seis são os seis filho bento da Casa Santa de Jesusalém. Digo sete.

TALHADO - Sete são os salmos de Nossa Senhora. Digo oito...

CABRA 1 e CABRA 2 – (juntos) Oito são os oito corpos san...

Os dois se calam. Cabra 2 faz sinal, Cabra 1 prossegue.

CABRA 1 - Oito são os oito corpo santos de Casa Santa de Jerusalém. Digo nove.

Nove.

CABRA 2 - Nove são os nove coro de anjo que para o céu subiu, digo dez.

(tempo, ninguém fala)

ZILDA e M OCINHA – (juntas, sorrindo) Dez são os mandamentos de meu Senhor Jesus

Cristo.

M OCINHA - Digo onze.

CABRA 2 - Onze são as onze mil virge que estão na companhia de meu Senhor

Jesus Cristo. E digo doze.

TODOS - Doze sãos os doze apóstolos de Nosso Senhor Jesus Cristo.

TALHADO - Digo treze.

TODOS - Treze são os treze reis que parte tudo e arrebenta assim com eu hei de

arrebentar o coração de meu bem. Amém.

Talhado, durante a reza, já começa a dedilhar preguiçoso o violão. Quando a reza termina

ele para. Silêncio, frisado apenas pelo ruído da chuva mansa. Ele começa meio cantar,

meio recitar.
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TALHADO - Lampião tem muita idéia.

Sua vida está segura

Atirá nele é bobage

A bala bate e num fura.

(risos)

TALHADO - O rifle de Lampião

É na verdade um tesouro

O cano é todo de prata

E a coronha é de ouro.

CABRA 2 - (rindo) Tá lascado!

TALHADO - Ninguém pega Lampião

Que ele tem muita mandinga

Se envulta em toda parte

quando mais lá na caatinga

Tempo. Todos esperam.

TALHADO - Vai ocê, Laurino.

LAURINO - Lampião é rapaz moço

Pode ter vinte e oito ano

Tem cartuchera de prata

E um rifle americano.

LICO - Lampião é home rico

Tem dinheiro com fartura

No lugar por onde passa

Dá esmola e faz figura

Tempo. Zilda se mexe, demonstra estar indisposta.


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Mocinha percebe, mas não alerta ninguém.

TALHADO - (para Cangaceira 1) Vai ocê agora.

CANGACEIRA 1 - Eu não!...

TALHADO - Óxente! Vai ter vergonha da gente agora?

CANGACEIRA 1 - Eu não sei.

CANGACEIRA 2 - Sabe sim, eu ajudo, vamo, aquela das moça...

CANGACEIRA 1 e 2 – (juntas) As moça do São Francisco

São pobre mas tem ação

Guardam queijo e rapadura

pro borná de Lampião

M OCINHA - A muié de Lampião

É faceira e é bonita

Cada cacho de cabelo

tem cinco laço de fita.

Zilda se levanta e sai apertando o estômago.

LAURINO - Que foi, Zilda? Olha a chuva.

M OCINHA - Deixa. (Levanta-se) Tem vigia, num tem?

LAURINO - Dançarino e Pipoco.

M OCINHA - Então não tem perigo. (sai atrás de Zilda)

TALHADO - (rindo) A mulher de Lampião

teve dois lampiãozinho

sendo uma menina feme

e um menino machinho .

CANGACEIRA 1 e CANGACEIRA 2 se levantam e saem também.


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LAURINO - Que que tem essas muié que não para quieta?

LICO - M elhor dá mais proteção pra elas que o lugar aqui não é dos melhor.

Lico sai na mesma direção por onde saíram as moças.

Durante o diálogo, o Cabra 2 está cantando baixinho:

CABRA 2 - Lampião o São Francisco

atravessa onde qué

da piranha cai o dente

perde a força o jacaré

O silêncio cai sobre eles. Um tempo. A chuva parou.

LAURINO - E aí, Talhado? Secô os verso?

TALHADO - Não... Tô lembrando aqui de Pedra Grande. Chovia assim que nem

hoje. Ocê tava, Laurino?

LAURINO - Não.

CABRA 1 - Eu tava.

CABRA 2 - Eu tomém.

TALHADO - Cês lembra? Cumpadre Lampião deu as ordem mais bonita de toda a

inzistença dele. Dividiu os cabra em três grupo de vinte e os macaco

comero fogo de três lado que foi uma bagacêra. E nóis trincherado nas

melhor posição. Depois do fogo num sobrou nem duzentos home.

M orreu mais de cem macaco.

CABRA 1 - Cento e treze.

TALHADO - Ué, tu contou?

CABRA 2 - Ele e eu, a mando do padrim Lampião.

TALHADO - Nunca nóis viu o cumpadre melhor que nesse dia. Disposição como

trinta e as orde rigorosa, bem dada de fazê gosto. Foi ou num foi?
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CABRA 1 - Foi.

CABRA 2 - Foi, sim.

TALHADO - Ah, cumpadre Lampião é um prínspe!

Mocinha retorna, meio amparando Zilda.

LAURINO - (alarmado) Que foi, Zilda?

M OCINHA - (rindo maliciosa) Nada, não. Canseira, nervosia. Já já passa.

CANGACEIRA 1 - Antão, vamo acendê o fogo?

M OCINHA - Cadê Lico?

LAURINO - (atento) Foi atrás de vocês, deve de estar espiando os mato.

M OCINHA - Ocês viram ele?

CANGACEIRAS 1 E 2 – Não. Não vimo nada, não.

M OCINHA - Dançarino e Pipoco ainda estão na vigia?

LAURINO - Estão. Sossega, M ocinha.

CANGACEIRA 2 - Curuca e Pitu, vai pegar lenha.

CABRA 1 - Vai tá tudo moiáda...

CANGACEIRA 1 - Ocês qué comê frio?

LAURINO - M elhor não fazer fogo mais hoje, não. M ió não revelar nossa posição

antes de Lico voltá. (para Zilda) Tá mió, fia?

ZILDA - Sei não. M ocinha tá com umas conversa esquisita. Diz que tô

esperando neném.

LAURINO - Vixe M aria! Será que Cristo Nosso Senhor vai conceder essa graça

prum miseráve que nem eu?

CANGACEIRA 2 - Óxente, Laurino, pruque vosmecê fala ansim?

CANGACEIRA 1- É isso mesmo. Tu é home de bem, Laurino. Deus não ia te negar um

filho não, home.


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LAURINO - Ah, mas fio não devia de nascer nesse inferno, não. Se os macaco não

matar a gente, a fome, o sol e essa vida excomungada da gente vai

martratá o inocentinho. (abraça Zilda, meio sem jeito)

M OCINHA - Laurino... O Lico?...

LAURINO - Sossega muié. Eu tomém tô sentindo.

Ficam todos em guarda, farejando o ar. Atentos, imóveis, concentrados.

ZILDA - (baixinho) Que é?

LAURINO - Sente. (inspira o ar, Zilda imita) Sentiu?

ZILDA - É bicho?

TALHADO - Cheiro de sovaco mal lavado. Tem macaco perto. (vai sair)

LAURINO - (sussurra) Talhado! Fica aqui...

TALHADO - (também baixinho) Tenho reza forte no bolso, Laurino. A bala bate em

cima do papel e se achata. Punhá resvala e não penetra. Eu vou.

LAURINO - Tu fica. Se a chuva molhou tua reza teu corpo tá aberto.

TALHADO - É “Prece de Deus Padre”, Laurino, só água de rio e de mar é que pode

quebrar ela. Deixa eu ir.

LAURINO - (pensa um instante) Vai.

Talhado olha os companheiros e corre para fora, silencioso como um gato.

VOZ 1 - (berrando da coxia) Laurino! Corno fio de uma puta, tu pensava que podia pegar a

gente? Tu não é home, cabra descarado!

LAURINO - Corno é esse tenentinho besta que tu beija a mão, macaco!

VOZ 2 - Cala a boca, fio de uma jéga! Tu num presta nem pra ter mulher.

Laurino atira na direção da coxia.


43

LAURINO - Toma, cabra da bexiga!

VOZ 1 - Tá de muié nova, Laurino? Foge e deixa ela pra nóis que nóis mostra

pra ela o que é home.

Zilda se abraça nele. Ele a afaga e afasta.

LAURINO - Se quiser muié, fio duma égua, pruque num dorme com tua irmã que

vive raparigando com tudo que é macaco que aparece na caatinga?

VOZ 2 - Bala nesses safado! Ladrão! Cangaceiro apustemado.

Laurino atira, os cabras atiram, gritando e zurrando feito burros enquanto as mulheres

catam os pertences apressadamente, preparando a fuga.

VOZ 1 - Besouro, perdemo dois home.

LAURINO - Besouro, tu é besourim vagabundo, não vale nada. Tu é rola bosta,

macaco safado! Caminha pra cá que é pra nós arrancá teu rabo!

VOZ 2 - Corno safado, cangaceiro nojento. Ganhou mas não leva. Tu só escapa

daqui vivo se for fio do cão!

LAURINO - Fogo! Fogo nessas puta da caatinga!

Laurino, os dois cabras, Mocinha, Zilda e as duas cangaceiras vão recuando e atirando.

De repente, ouve-se um grito terrível, de dor. É Lico.

LICO - M OCINHAAAAA....... Foge, M ocinhaaaaaa....

Mocinha estaca.

M OCINHA - (sussurra)Lico.... (e grita) LICO!....


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Ela corre para a coxia, Zilda tenta impedi-la.

Laurino impede Zilda e eles saem, o grupo para um lado, Mocinha para o outro.

Tiros repetidos. De repente, o silêncio. Um tempo.

Um macaco, em tudo igual a um cangaceiro, entra em cena arrastando Mocinha.

Ela está ferida, com muita dor, o pé ensanguentado.

Macaco 2 entra em seguida.

Macaco 1 atira Mocinha ao chão. Ela grita de dor.

M ACACO 1 - Cala a boca, sua puta véia.

M OCINHA - Puta é tua mãe, macaco descarado. M e respeite que sô casada. M e dê

um fuzil e me chame de puta pra ver.

M ACACO 1 - Seu tenente, vamos acabar de matar essa puta que já tá com o pé

esbagaçado. Olha aí, só tá pendurado duns trapinho de carne.

Toca o pé ferido de Mocinha com a ponta da bota. Mocinha uiva de dor.

M OCINHA - M e dá uma faca.

M ACACO 1 - Tu tá é louca.

M OCINHA - (grita) M e dá uma faca! Quero cortar fora. Não guento mais a dor.

M ACACO 1 - Imagina se alguém vai te dar uma faca na mão.

M OCINHA - (geme alto) Então corta você mesmo. Corta... CORTA,

CORTAAAAA.

M ACACO 2 - (detendo o outro, que está apavorado) M anda os homens acampar aí

mesmo. E traga aquele que nós pegamo. Vamos levar no caminhão

junto com essa aí.

Macaco 1 sai.
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M ACACO 2 - Eu sei quem que tu é. Tu é M ocinha de Lico, verdade? Óia, ninguém

não vai lhe desrespeitar não, tá ouvindo? Eu não deixo. Lhe respeito

porque vosmecê é guerreira. Vale mais que muito cabra macho que

conheço. Vamos na cidade. Lá tem médico pra lhe curar, tá ouvindo?

Eu garanto. Seu home, ele...

Macaco 1 entra, arrastando Lico muito ferido, semi consciente.

Ele passa e sai, seguido de Macaco 2 que ajuda um pouco a carregá-lo.

M OCINHA - (ainda no chão, olhando) Lico... Lico! Lico!!!

M ACACO 2 - (saindo com o outro) Leva ele e depois vem buscar essa daí. Óia que

quero respeito com ela, tá ouvindo?

Saem. Mocinha, chorando de dor, arrasta-se penosamente para a coxia por onde eles

saíram.

Durante o trajeto dela, a grande penumbra vermelha se instala, a luz se apaga.

Ela consegue se arrastar para fora.

CENA 4

No vermelho ouve-se música alegre, risadas na coxia. É uma festa.

Entram em cena Padre e Fazendeiro com pratos na mão.

A luz se acende sobre eles que comem enquanto falam.

Logo depois entra a Professora com um copo na mão.

FAZENDEIRO - Quero mais antes me ver neste oco do mundo às volta com bandido

que com soldado de polícia. M e creia que os mata-cachorro quando sai

da capital vem com o pensamento fixo em que todo matuto protege


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cangaceiro. Querem, por fina força que a gente descubra o roteiro dos

criminoso. Se o freguês diz que inguinora, apanha pra descobrir; se

descobre, também apanha da polícia porque é sinal que, conhecendo,

protege quem eles caçam. Nem tem pronde correr; ninguém escapa...

PROFESSORA - M e admira ver o senhor falar assim. Eu tenho sabido de tanta

crueldade de Lampião... Ele pilha os armazém, toca fogo. Corta as

orelhas, castra os inimigo. Violenta as moça solteira, espalha doença

venérea. Violenta mulher casada na frente dos marido.

PADRE - M inha filha, não fica bem uma moça falando dessas coisas.

PROFESSORA - É, seu vigário, Lampião é também conversador que nem o senhor. Diz

que mulher de cabelo curto ele manda um tal de Zé Baiano, cabra lá

dele, marcar com ferro em brasa. Na cara, nas parte, nas coxa.

FAZENDEIRO - A senhorita então que se cuide.

Professora ri, ajeita o cabelo curto, faceira.

PADRE - Tem muito exagero nas coisas que dizem dele. Faz muitos anos cruzei

com o bando quando estava rodando o sertão pra batizar o povo. M e

trataram muito bem. Tentei quanto pude fazer Lampião entender que

devia mudar de vida. Ele ouve, de cabeça baixa. Não responde. É um

homem muito especial. Devoto e alerta como ele só. Foi ele que me

mostrou os mistérios das caatingas, com todas as suas fontes ocultas,

em lugares ressequidos e pedregosos. É difícil acreditar na existência

de água ali. M as Lampião sabe tudo. Água boa no sertão é coisa rara,

mas em todos os esconderijos que ele me levou as águas eram ótimas,

sendo porém que a da serra do Peitudo é uma verdadeira maravilha.

Fica na meia serra, num precipício acessível somente para as onças,

gatos, aves e para Lampião. É um homem muito especial, ele. Pelo que

conheço, acho que tem muito exagero no que contam.


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PROFESSORA - Sei não. Eu mesma vi, em Vila Bela, um pobre que ele tinha acabado

de judiar. O homem estava inteirinho catucado com a ponta da

peixeira, assim bem de leve, mundaréu de cortezinhos no corpo todo.

O coitado tava todo sarapintado que parecia que tinha moléstia de pele.

JOSÉ BALDINO - (chegando ao grupo, fumando) E não é só isso, não. Se quiserem ouvir

desgraça, eu sei de muitas.

PADRE - Francamente, não creio que isso seja assunto para festa.

PROFESSORA – (seduzida pelos olhares de José Baldino) Por que não, seu padre? Deixe

o homem falar. É sempre bom saber do que o diabo é capaz.

JOSÉ - Quando eu estava em Pedra Branca, Virgulino entrou em uma casa,

mandou uma velha coitada tirar a roupa e ficar subindo e descendo

uma ribanceira pelada, de quatro no chão. E ele e o bando assistindo e

se rindo. Depois pegou as quatro moça da casa, mandou tirar a roupa

toda e dançaram a noite intera com elas nua nuela em pelo. De manhã

cedo, Lampião violentou as quatro. Dizem que foi Lampião sozinho,

mas eu não acredito. Foi o bando.

PADRE - Bem, bem... se diz muita coisa e...

JOSÉ - A história não acaba aí, não, seu padre. De manhã cedo, veio o

subdelegado protestar. Lampião foi, mandou tirar a roupa dele

também, enfiou uma vela atrás do pobre, acesa, e fez o homem passear

pela rua (Professora ri, maliciosa). Ficou todo queimado que não

poude sentar mais de quinze dias.

PADRE - É inútil continuar citando. Essas histórias são sempre as mesmas. Já

ouvimos contar mais de cem vezes.

JOSÉ - Os senhor vão me perdoar, mas eu tava ouvindo a conversa antes e

queria saber do senhor uma coisa: se as poliça comete tanto absurdo

por que é que o senhor não denuncia pras autoridade?


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FAZENDEIRO - Só se fosse maluco! Ter questão com soldado é ter questão com os

gunverno e ter questão com os gunverno é não ter amor à vida. Um

tenente no sertão manda mais que um juiz de direito.

José Baldino dá uma gargalhada. Todos estranham, Fazendeiro prossegue.

FAZENDEIRO - Se dependesse de mim, os gunverno não mandava força pro interior. A

gente ficava só com os cangaceiro, era só uma desgraça em vez de

duas. Quer que eu seje franco?

JOSÉ - Seja, seja.

FAZENDEIRO - M uito desprepósito, muito abissurdo que se cuida por aí afora foi feito

por cangaceiro, uma ova! Foi mas foi pela poliça!

JOSÉ - Nesse caso por que o senhor não trata de restabelecer a verdade, meu

Deus?

FAZENDEIRO - Está doido? A gente se cala por que? Não vê que é muito mais fative a

poliça se vingar do que os bandido? Cangaceiro não lê jornal e quando

enfia o pé na pregata e bota espingarda na cacunda não é pra dar

sastifação de seus ato a ninguém. Cum a gente do gunverno não é

assim: o negócio fia mais fino. Viver destacado no sertão pra eles é

como um pão com dois pedaço. Andam eguando por aqui e voltam pra

beira do mar com os bolso recheiado. Ninguém é besta de negar

comida, roupa, cigarro ou cachaça a cangaceiro. Por que diabo, então,

é que bandido vai querer dinheiro? Só pode ser pra comprar a poliça

que lhe arranja munição ou o chefe que lhe dá o coito.

JOSÉ - (sério, sorrindo fixo) Em que consiste esses abuso cometido pela

poliça?

FAZENDEIRO - Quer que eu diga, eu digo. Eles açoita, prende, judia, desonra, mata,

tocam fogo, rouba, tudo o que a professora aqui tava dizendo, tudo é
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espritação do demônio. Imitam os bandido desde o procedimento até

os traje. Viu um sordado em diligência, dê por visto um cangaceiro.

PROFESSORA - A diferença é que a poliça quer mesmo é acabar com o banditismo.

FAZENDEIRO - Conversa! Então eles hão de querer acabar com o meio de vida deles?

É exato que eu conheço oficial que me parece que só não brigam

porque não acham com quem. M as a maioria querem que o fuzuê

continue pra poderem levá a vida que gostam. Esse tal Virgulino, por

graça de M aria Santíssima, nunca me apareceu aqui, não. Vejo se dizer

que esse Lampião é um satanaz de perverso. M as não vejo é poliça

perseguir pra matá como devêra.

PROFESSORA - M atar Lampião não resolve nada. O problema é social. Tem que acabar

é com as causa do banditismo. Se matá Lampião aparece outro.

FAZENDEIRO - Se estivesse nas minhas mão, ele era preso e não morto. Ele devêra era

tomar galés perpétua não só pra purgar os crime que pratica, mas

também pra desmascará muito oficial e chefão a quem deu dinheiro.

JOSÉ - Aí o senhor já vai longe por demais. A poliça merece respeito.

FAZENDEIRO - O senhor acha.

JOSÉ - Acho.

FAZENDEIRO – Se me perdoa, apesar de estar na minha fazenda, casamento de minha

filha e tudo, não sei quem o senhor é. Amigo do noivo?

JOSÉ - José Baldino, às suas orde. Tenente da polícia na persiga de Lampião.

O padre pigarreia e a professora sorri, sem jeito, mas divertida.

FAZENDEIRO - (olha José nos olhos um tempo) Bom, seu tenente, agora já falei, não

vou desfalá. Falei o que acho, o que achamo nóis tudo fazendeiro

daqui.

JOSÉ - Eu... eu sou uma pessoa pacata, nunca quis andar com esse negócio de

arma na mão pra fazer mal aos outro. Agora, quando Lampião me
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convidou pela terceira vez pra entrar no bando dele, eu vi que daquele

dia em diante ele findava ou me matando ou eu pegando em arma

contra ele. Aí, tratei de pegar em arma contra ele. Até nem acho que

ele é tão perverso. Tem pior no bando, em outros bando debaixo das

órde dele. Lampião é meu inimigo e coisa, mas eu, falá a verdade, o

que fizeram com Lampião era pra ele fazer mais do que vem fazendo.

Quem vê seu pai e sua mãe morta, sem dever coisíssima nenhuma, só

pode fazê o que ele faz. M as escolheu o lado do banditismo é bandido.

De muita virtude, reconheço. Tá na briga faz já muitos ano, em sete

estado, com intervenção federal. M e enganou muitas vez. É uma

cabeça pensante, nunca vi tanto tino que nem o dele na caatinga. Não

tem. A moça professora tá errada: no banditismo, pra chefiá, num vem

nunca mais outro Lampião. M as a liberdade que ele vive é que não tá

direito, é coisa fora de termo e regra. O governo gasta centenas de

conto de réis com esse excomungado. Os pessoal é incompetente,

maioria, concordo, mas gente de respeito que nem o senhor não devia

falar assim da ação da poliça. É nós que vamo ter que acabar com

Lampião. Vivo ou morto-matado, não interessa, porque esse homem

não é um bandido comum. Se deixá, ele abala a sociedade inteira do

Brasil inda mais do que já abalou. Agora, até Padim Ciço, que seu

padre aqui me perdoe, até Padim Ciço ele já meteu no bolso.

PADRE - O senhor não tem direito de ofender a igreja! M ais respeito.

JOSÉ - Não tem ofensa nenhuma. A verdade é que Lampião agora é capitão.

Capitão Virgulino Ferreira da Silva Lampião.

Ao fundo, sobre o praticável acende-se muito lentamente uma luz difusa, recortando a

silhueta de Lampião inteiramente equipado, que ali ficará até o final da peça.

JOSÉ - Assim que ele assina agora os bilhete exigindo dinheiro dos fazendêro.
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PADRE - E o que é que Padre Cícero Romão tem a ver com isso?

JOSÉ - Foi ele quem deu a patente.

PADRE - Não acredito!

JOSÉ - Pois pode acreditar. Com essa história dos revoltoso comunista que

andou pelo sertão, essa Coluna Preste, padim Ciço se empenhou na

luta contra. Arranjou um jeito de fazer um funcionário do governo

federal em Juazeiro assinar documento dando patente ao capitão

Lampião. Armamento e munição, farda e tudo, pro bando de

cangaceiro ajudar na luta dos batalhão Patriótico contra a Coluna

Preste.

PADRE - Padre Ciço deve ter agido de boa fé. Tentando puxar o bandido para

uma vida melhor, do lado de Deus e da legalidade.

JOSÉ - Acredito. M as o fato é que Lampião nem foi lutar. A polícia de

Pernambuco não aceitou as patente, ele retornou pra vida de antes. Já

fez muita miséria depois de ser capitão. E vai continuar fazendo se não

se der fim nesse diabo.

Súbitos estouros lá fora. Todos se assustam.

José Baldino tira a arma, imediatamente em guarda, pronto para a luta. Mais estouros.

JOSÉ - Pro chão! Todo mundo pro chão!

Todos se abaixam, só ele em pé, arma na mão.

Entra a noiva correndo e estaca ao ver a cena, boquiaberta.

JOSÉ - Que foi que houve, menina?

NOIVA - Eu... vim chamar pra ver soltar os rojão...

Black out
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CENA 5

Um foco se acende em primeiro plano, a silhueta de Lampião permanece no fundo.

Na luz, está Lico em uma cadeira, sonolento, cansado, rosto inchado e arroxeado, grande

curativo na testa, cercado por dois homens, montados em cadeiras de costas para a

platéia, e um terceiro que anota depressa.

LICO - Cumpadre Lampião é cabra sestroso e adivinha as coisa. Pur disconfiá

de veneno, nunca vi ele enterrá nas comida a faca de prata que ele tem,

como dizem no sertão. Basta oiá. Ô bicho danado! Gosta também de

fazê os paisano prová, antes de nóis, um conhaque, um feijão... (ri,

ofegante. Tempo) Cumpadre Lampião, às vez, parece que adivinha o

que nóis qué dizê. (tempo) Nenhum home dos grupo há sido jamais

mordido de cobra, mesmo correndo todo dia o reino das cascavé. Sabe

por que? Sabe por que? Nóis é tudo rezado. É. (tempo, respiração

difícil) Quaji todo cangacêro não vem por querê. Não... Não hai

justiça, não hai dinheiro, só hai miséria, duença, cumpricação...

(tempo. Ele adormece. Um dos homens o sacode pelo ombro, rude,

mas não brutalmente. Lico volta a si, tonto.) Em tudas viaje de nóis,

nóis ia tomando pelos caminho dinhero e tudo que prestasse dos home

e das casa de recurso. E quando topava inimigo o mosquetão trabaiava.

Ou entonce o punhá. M as frasco de cheiro nóis não dechava ficá. Os

menino percisava anda cheroso.

(tempo. Acomoda-se na cadeira com dificuldade)

Num passô três dia e nóis se ajuntou, mais compadre Lampião. (ri)

Compadre Lampião é cabra danado, já sabia de tudo. A persiga tá

braba, capitão, uma por riba da outra. Caminhemo três dia consecutivo,
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caminho desgraçado... caatinga espinhenta... arraiá... estrada de carro

véio... M as porém nóis perfere percata que casco de burro. Canela de

cangacero não esmorece, perna de burro se cansa. (tenta olhar em

torno, o movimento é muito doloroso. Sussurra) M ocinha...

(tempo. Nervoso, agitado, ele fala como para si mesmo, relembrando

uma regra importante)... quanto mais volante, mais os grupo da gente

deve de ser menó... órde de Lampião... grupo de poco pessoá nóis se

mexe... (respiração muito difícil. Um dos homens dá a ele um pouco

de água. Lico vai pegar o copo, suas mãos estão amarradas. O homem

dá-lhe de beber desajeitadamente, ele respira melhor) Nóis tem

ouvido que enxerga às vez mió que os óio...

(respira fundo, olha em torno, registra a presença dos homens. Se

apruma na cadeira, desperto, retomando um tom sério de confissão,

fluente. Enquanto ele fala, a penumbra vermelha se acende muito

lentamente)

Cumpadre Lampião chamou nóis e botemo pra riba das força. Nóis era

vinte e dois home com Lampião. Fiquemo arraiado e ouvimo barulho

dos macaco...

HOM EM 1 - Olha o respeito!...

HOM EM 1 - (toca o braço do Homem 1 para contê-lo. Homem 1 entende e cala)

LICO - (continua a narrativa sem se interromper)... campado no mato em

algum lugar desncansando, cozinhando. Quando clareou o dia nóis

saímo no faro dos rasto pra atirá onde encontrasse. Gavião e Preto

começaro a tussir. Eles tava resfriado, entonce fizemo eles voltá pro

pouso adonde nóis tinha deixado as muié.

Lentamente, a silhueta de Maria Bonita vai subindo no praticável e se coloca ao lado de

Lampião, onde ficará até o final da peça.


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Ao mesmo tempo, um homem ou mulher de branco empurra para o centro do palco, na

penumbra vermelha, um carrinho com um corpo coberto por um lençol.

Lico nada vê, prosseguindo a narração.

LICO - Eles podia brigá, mas porém tussindo dava aviso aos macaco... Nós

perfiria menas gente contanto que nóis caísse em riba de... ocêis de

supetão. Eu olhei pro chão dijunto e vi uns rasto vivo com os sinal bem

claro de num tê por riba o sereno da noite. A gente conhece os rasto

bem novo no chão sem o sereno da noite no lugar das pisadas. Fiz sinal

pra Lampião e ele balançô a cabeça que tava veno, mas sem falá nada.

Corri a vista na capoeira e avistei um rapaz de fuzí, bem por detrás

duma caatinga de porco. Ele vinha se aproximando de nóis, sem

enxergá ninguém. Tava de sentinela, bestando, sem conhecê os mistéro

da caatinga e a proteção que ela dá pra nóis. Disparemo a arma nele,

antes de nóis sê descoberto. Os tiro partiro de mim e de Lampião.

Peguemo entonce uma brigada sem os macaco esperá. Foi papôco pa

peste! O sargento que comandava morreu enganchado, atravessando a

cerca da capoeira. Cabeça do lado de fora, os pé do lado de dentro.

Parece que queria pulá. (ri gostoso e o riso produz um ataque de tosse.

Ele se recompõe, olha intensamente os homens à sua volta)

M ocinha?... Posso... vê a minha muié?

Os dois homens de costas se entreolham.

Homem 2 olha para Lico e aponta para o carrinho com o corpo ao fundo, na luz vermelha.

Lico se volta lentamente, sem se levantar.

A luz se acende sobre o corpo.

Lico dá um grande grito, a luz sobre o corpo se apaga. Lico se contrai na cadeira,

embolando-se e chorando como uma criança dolorida.

Os três homens se entreolham, um deles tosse, constrangido. Desviam o olhar.


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As luzes se apagam lentamente, restando apenas a silhueta de Lampião e Maria Bonita.

Acende-se uma área de luz.

Entram Zilda grávida acompanhada de Cangaceiras 1, 2, 3, 4 e de Irinéia, uma menina

nova. As cangaceiras transportam dois sacos grandes muito cheios de coisas.

Zilda ajuda o pouco que sua enorme barriga permite.

Irinéia limita-se a caminhar ao lado, como sonâmbula.

Alegres, as quatro cangaceiras começam a examinar o conteúdo dos dois sacos de estopa,

despojos de um ataque a vila ou fazenda: objetos de metal que parecem prata, roupas que

elas colocam na frente do corpo para ver o efeito, chapéus, etc..

Zilda consola Irinéia, que está chorosa e agitada.

ZILDA - Se avéxe não, Irinéia. O começo é mesmo assim. O medo é muito. A

gente fica perdida, perdida. É medo do hóme, saudade da mãe, do pai e

irmão... Não é?

IRINÉIA - Eles mataro tudo.

Zilda olha demoradamente a menina, vai até ela e abraça.

ZILDA - Óia, quando Laurino me escolheu eu também sofri muito tombém.

M as tinha M ocinha, já falecida, que me ajudou, me ensinou muito pra

mim. Ocê agora tem eu. Despois vai tê também maria Bonita, que é

meia mãe de nóis tudo as muié do cangaço.

CANGACEIRA 3 - M enos de Dadá de Curisco.

CANGACEIRA 4 - Óia, nóis tudo enfrentemo a mesma coisa que ocê tá passano agora. E

agora gostemo dessa vida.

ZILDA - É vida boa, Irinéia. Pode crê em mim. Logo-logo tu pega amor no teu

home e vai ficar mais alegrinha. E vai conhecer compadre Lampião.

Ocê não qué?

IRINÉIA - Eu quero, né.


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ZILDA - A primeira vez que vi o capitão Virgulino fiquei nem sei quanto tempo

assim olhando aquele hóme danado de bonito: moreno, cara magra,

nariz comprido, o olho sereno, a fala mansa. O rei do Cangaço! Eu

nem não acreditava que tava ali na frente dele. E de M aria Bonita, a

mulhé que depois da minha madrinha Nenêm, foi a mais boa pra mim.

O capitão me olhou e me disse assim: ‘Já ouvi falar que você entrou

pro cangaço. Vida dura, fia. Estrada sem vorta. Se tá disposta a

caminhar, fia, vem com a gente. Onde é que arranjô esse imborná tão

bonito?’ ‘Fui eu que fiz, capitão’, eu disse. ‘Óia, foi tu mesmo,

menina?’, ele perguntou. ‘Foi sim, capitão’, Laurino pegô e disse. Aí,

num sei que que deu ni mim eu peguei o borná e dei pro capitão. Ele

agradeceu e disse que ia usar pra sempre. E usou mesmo, usa até hoje.

As cangaceiras encontraram um monte de jornais e revistas entre os pertences dos sacos.

Folheiam os exemplares.

CANGACEIRA 1 - Óxente! Esses jorná e revista tudo fala da gente!

CANGACEIRA 2 - Será que argum disgramado de paisano fazia coleção de notiça de

nóis?

IRINÉIA - É tudo de Zeferino, meu irmão. Ele queria sê cangaceiro. Ou puliça.

M as agora não vai sê mais nada, não. O hóme, aquele de marca na

cara...

ZILDA - Talhado.

IRINÉIA - ... ele nem deixô Zeferino falá, sangrou meu irmão de faca. (começa a

chorar, descontrolada)

ZILDA - Chore não, fia.

IRINÉIA - (com raiva) Os óio é meu, choro quanto quisé.

Zilda ri, sacode a cabeça e abraça a menina.


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CANGACEIRA 3 - Iscuta só: (lê com fluência, titubeando numa ou outra palavra) “A ar...

ar-gú-cia de Lampião, a par de sua admirável resistência física e

lucidez de raciocínio, valeram-lhe a reputação de ser considerado

como o único guerre... gue-rri-lhei-ro de sua espécie que fez o maior

número de vítimas e que empenhou-se em combates sem conta, não

havendo outro que o iguale nos anais do crime, não somente no Brasil

e na América do Sul, mas também nas outras Américas.

Dobrou a cer... cer-viz de todos os fortes chefes políticos sertanejos

que dispunham de cabras, assim como de quase todas as famílias

privilegiadas.

Esse dominador do sertão, Lampião, humilhou a todos a tal ponto que

muitos com ele fizeram pactos de amizade. M uitos há que se fazem de

inimigos do bandido e à socapa estão com ele conferenciando.

Seria de tremer a terra se aqui aparecessem comprovadamente as

personalidades que se entendem com Lampião.”

CANGACEIRA 4 - Aqui diz ansim, escuta essa: (hesita, leitura claudicante) “Recebe

Lampião em seu bi-va-que, bivaque, cargas e mais cargas de munição

adquiridas a 5 mil réis a bala, que são distribuídas a seus fiéis

servidores a 10 mil réis. Na proporção que vai sendo gasta a munição e

revendida por ele, ganhando cento por cento, é o bastante para

Lampião enricar, acumulando milhões.”

CANGACEIRA 2 - Óxente, se fosse assim nóis tava robada. Já pensou ter que pagar por

tiro?

CANGACEIRA 1 - Não ia ter dinheiro que chegasse no sertão. E o cumpadre ia tá mais

rico que o Imperador Pedro II.

Risos de todas, menos de Irinéia, que a tudo escuta de olhos arregalados.


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CANGACEIRA 4 - (prosseguindo a leitura) “O cangaceiro vive cercado de gente gran-

fina, jogando noite e dia, sendo servido da mais fina bebida e se

nutrindo da melhor alimentação.”

CANGACEIRA 3 - Esses danado da cidade inventa o que quer.

CANGACEIRA 1 - Esse que escreveu isso aí, vai ver que queria era levá esse vidão

CANGACEIRA 4 - Vida bêsta: só comê, bebê e jogá.

CANGACEIRA 1 - Inté que era bão. Que mais se pode querê?

CANGACEIRA 2 - Ficá livre das persiga.

CANGACEIRA 3 - E furnicá com o hóme que a gente gosta.

Grandes risos de todas, até Irinéia não deixa de sorrir, medrosa.

Laurino, Cabra 1 (Pitu), Cabra 2 (Curuca), e Talhado entram silenciosos, em guarda.

LAURINO - Ocêis tome termo que isso é risada pra quem tá em casa no conforto.

M ió recolher tudo. Vam’bora.

CANGACEIRA 1 - M acaco?

As cangaceiras começam imediatamente a recolher os pertences de volta.

TALHADO - Inda não, mas sobrou muito ente vivo, não demora a chegá tropa.

ZILDA (indicando Irinéia) - A menina deve de tá cum fome.

LAURINO - Pitu, cuida aí da tua muié. Vam’bora logo. Tá errado montá torda

perto, despois de ataque grande que nem o de hoje.

Saem todos, carregados.

Diante de Irinéia assustada, Cabra 1 procura no embornal um pedaço de rapadura.

Ouve-se a canção “Muié rendera” cantada baixinho, a boca chiusa, ao longo de toda a

cena seguinte.

O Cabra 1 estende um pedaço de rapadura a Irinéia.


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Ela recusa com um movimento negativo de cabeça e recua um passo.

CABRA 1 - Pega. Dá sustança pra aguentá o puxado da caminhada.

Irinéia hesita e aceita.

O Cabra 1 vai indo embora, ela fica, rapadura na mão.

Cabra 1 se volta.

CABRA 1 - Vamo.

Irinéia olha para ele, faz um dengue com o corpo, de quem está começando a gostar.

E vai. Saem os dois.

A luz se apaga, ficando apenas as silhuetas de Lampião e Maria Bonita.

De repente, a luz oscilante de um projetor de cinema varre o palco e ilumina frontalmente

Lampião e Maria Bonita sobre o praticável.

Ouve-se a voz gravada de Abrão Benjamim com leve sotaque árabe.

ABRÃO - Durante os seis meses que passei com o bando, Lampião me deixou

filmar tudo que eu quisesse. Harmonia, união, disciplina é o que tem

aquele bando. Virgulino, na intimidade de sua gente, não tem nada de

bandido e nem todo pai trata os filhos com a finura que ele trata o seu

povo. Todo mundo aceita as ordens dele sem comentário, sem

hesitação. Nunca vi, em nenhum outro ambiente, mais honestidade nos

pequenos e grandes negócios. M aria Bonita é os sonhos de sua vida. É

mulher forte no físico e na luta. Durante todo o tempo que eu estive

com o grupo, nunca vi M aria Bonita ter medo. Todos obstáculos que

Virgulino passa, ela também passa sem ser preciso estender a mão para

ajudar. Quando a gente é de confiança do bando, como eu acabei

sendo, o tratamento é da maior amabilidade. Os cangaceiros gostam de


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comer bem, de cantar e dançar sempre que podem. O meu maior

desejo era filmar um combate...

Durante a fala, os atores vão se colocando na luz, ensaiando movimentos.

Ao terminar a fala de Abraão, a música “Muié rendera” cresce, cantada agora com sua

letra e os atores se dividem em dois grupos num combate meio-dançado, meio-lutado.

Ao terminar, saem todos. A luz do projetor se apaga subitamente, restando apenas as

silhuetas. A música prossegue ainda um momento e termina.

A velha dona Neném avança, a luz se acende sobre ela.

Entram sete meninas rendeiras com suas almofadas, falando todas ao mesmo tempo, rindo.

Vão se colocar, como no início da peça, mas dona Neném as impede.

VELHA - Hoje não vai ter trabalho, vocês tá dispensada. Pode vortá pra suas

casa.

M OÇA 3 - Aconteceu alguma coisa, M adrinha?

VELHA - Não, nada. É quizila de véia, cousa à toa. Acordei arreliada por dentro.

Quem sabe a chuva que tá pra chegá... Quem sabe alguma coisa que tá

pra chegá... Quem sabe o que tá pra chegá?

A Moça 2, louca, entra com uma trouxa no colo, que nina como uma criança, cantarolando

baixinho a sua canção de igreja.

As moças rendeiras cochicham entre si, riem baixinho, maldosas com a louca.

A Velha ignora a reação das meninas, acaricia os cabelos da louca que deitou a cabeça em

seu ombro.

Pouco a pouco as moças se calam, olhando.

Um breve silêncio. A velha suspira e fala de muito longe.

VELHA - Vosmicês, meninas, toma cuidado com cangaceiro pru mode não ser

roubada, tá ouvindo? M as tem cuidado também com as volante pra não


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ser tirada de casa. Eles tudo é pió que Satanáis. Roba o que nóis tem,

bate na gente pra falá o que a gente sabe e inda abusa das muié. Ocêis

se guarde pra podê um dia amá hóme que amô, é só o que a gente

carece nesta vida. (respira fundo) Agora vão se embora.

As moças saem silenciosas.

Moça 3 fica.

M OÇA 3 - M adrinha, quer que eu fique pra lhe fazê companhia?

VELHA - Carece não, fia. Tu é moça, vai cuidá dos seus afazê. Não perde tempo

comigo. Adespois, já tenho ela. Pruma véia caduca, uma louca mansa é

o que basta de companhia.

Faz um carinho maternal na Moça 3, que sai.

A Velha vai até a extrema esquerda do palco, onde estão uma cadeira de balanço e um

grande rádio antigo sobre uma mesinha.

Ela se senta e liga o rádio.

A louca Moça 2 acomoda-se a seus pés como um cachorro, com seu filho de trapos.

O rádio estala e chia e por fim toca um fox-trot americano, alegre e agitado.

A Velha ouve um tempo.

VELHA - Ixe...

Ela não gosta da música e procura outra estação: chiados, zunidos, estalos de estática.

Zilda entra silenciosa com seu filho no colo.

A Velha e Moça 2 não se dão conta.

Zilda, imóvel, olha as duas um tempo.

ZILDA - M adrinha...
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VELHA – (A velha se volta e olha) Que é? Quem que tá aí? (tempo) Zilda? É

Zilda, minha fia? É tu?

ZILDA - É eu.

A Velha desliga o rádio e vai até ela, Zilda também avança.

ZILDA - A benção, madrinha.

VELHA - (abraça e beija Zilda) M inha fia!... Que saudade! (olha o bebê) Ixe

M aria, que beleza di minino! É seu, tô vendo pela cara.

ZILDA - Eu... não pude avisar, mas vim.

Laurino entra e coloca-se atrás de Zilda, orgulhoso.

LAURINO - Bença, madrinha.

VELHA - Deus te abençoe, meu fio.

A louca Moça 2 se aproxima com seu filho de pano. Olha o filho de Zilda, olha o seu e ri,

contente. Mostra a boneca a Zilda.

VELHA - Antão. Berré também teve criança, viu?

M OÇA 2 - É. Neném não é fio de cangaceiro, não. É meu fio. Só meu de mim

mesma, sabe? M adrinha é que disse.

VELHA - Apois, antão. Agora tá na hora do inocente mamá, Berré. Tu não vai

cuidar dele?

M OÇA 2 - É, vou. Tá na hora, né? Neném tá com fome, tá? (tira o seio para fora

e sai de cena alimentando a trouxa de pano)

ZILDA - M adrinha... Eu vim trazê o menino.

VELHA - (finge ignorar a tristeza dela) Vão ficar tempo, não vão?
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LAURINO - Tamo só de passage. O capitão Lampião mandô chamá todos do bando

disperso pra se encontrar com ele nos Angico.

VELHA - (aperta o coração com a mão) Ai... Eu.. queria que ocês ficava aqui

um tempo. Não vai a Angico, não.

LAURINO - Dessa veiz num é possíve. As brigada e as persiga tá que tá danada.

ZILDA - Na vorta quem sabe, né, Laurino?

LAURINO - Quem sabe... Bão, ocê fica um pouco com a madrinha que eu vou

postá os hóme de vigia. É pouco tempo, mas não é bão facilitá. A

bença, d. Neném. Té a vorta. Zilda, não demora. (sai).

As duas frente a frente. A Velha examina Zilda.

VELHA - Ocê ficou muié feita. Tão bonita... Laurino é bão procê, é?

ZILDA - É. Home mió eu nem não podia pensar.

VELHA - E como é que é a vida no cangaço. Como é? M e diga.

ZILDA - Ói, madrinha, às vez eu paro e penso e acho que nóis é tudo que nem

um bando de criança brincando de bandido, num sabe? A gente quer

ser bão e faz o mal em vez. A gente ri e chora e o vivê só tem valor

porque a gente pode morrer daqui um minuto. Cum nóis é tudo de cara

lavada, de coração limpo. O cangaço é o destino dos oprimido, dos

injustiçado, porque a lei... a lei é feita pra proteger os que já tem poder,

não é? O cangaço é o jeito da gente vivê sem a canga que os coroné

quer sempre botar nos pequeno. Do outro lado de lá de nóis tem os

pistolero, os jagunço. Eles é dono da vontade deles. Tão sempre

fazendo o serviço dos outro. Cangaceiro não. Só faz o que acredita, é

dono de seu nariz, vai onde quer. Nóis é fora da lei, mas é dono do

destino da gente. O cangaço, madrinha, é a prevalença do destino.

As duas frente a frente, em silêncio.


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A Velha enxuga os olhos e assoa o nariz por baixo do lenço preto que recobre seu rosto.

ZILDA - M adrinha, não chore, que quem tem que chorar sou eu. Vim pra lhe

entregar meu filho.

As duas se olham, imóveis.

Laurino surge, sente o clima.

LAURINO - Zilda... tá na hora. (ele sai)

As duas se olham ainda um breve tempo.

Em silêncio, a Velha recebe o filho das mãos de Zilda.

Zilda beija a criança. Vira-se para sair, estaca e volta.

ZILDA - M adrinha... posso lhe perguntar uma coisa?

VELHA - Pergunte, minha fia.

ZILDA - Por que é que a senhora sempre escondeu a cara dos óio di nóis?

VELHA - (longa pausa) Um dia, Zilda, eu também fui moça bonita que nem ocê.

Também tive o meu amô que, mais que o meu coração, marcou com

ferro a minha cara, pra eu não ser mais de ninguém.

Pausa.

As duas se olham.

A Velha não revela o rosto.

ZILDA - M adrinha... cuide bem dele.

VELHA - Assossegue, fia. Este eu num entrego pra ninguém. Teu fio agora é o

fio que eu não tive. Deus te guarde que presente melhor tu não podia

nunca dá pruma véia que nem eu.


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Zilda cobre o rosto com as mãos e sai depressa.

A Velha aperta a criança no colo. Caminha para a cadeira de balanço, senta-se e liga o

rádio. Estalos, chiados, zumbidos.

A Velha balança a criança suavemente na cadeira, debaixo de um pequeno foco de luz.

Ao fundo, a silhueta de Lampião e Maria Bonita.

VELHA - A vida é como um segredo

O mundo um cruel degredo

onde um mistéro se encerra.

No rádio, subitamente, o prefixo da Hora do Brasil.

LOCUTOR - Passamos a apresentar a partir deste momento: a Hora do Brasil.

Senhores ouvintes, boa noite. (Últimos acordes do prefixo musical)

Exterminado em Sergipe o cangaceiro Lampião. Às primeiras horas da

manhã de hoje, o tenente João Bezerra, da força sergipana,

comandando um pequeno grupo de homens, atacou de surpresa o

esconderijo dos cangaceiros na fazenda Angicos. Atingido por uma

rajada de metralhadora, o bandido Lampião teve morte instantânea.

Sua companheira, M aria Bonita, e outros membros do bando foram

também colhidos pelos disparos da tropa legal. Os terríveis bandidos

foram imediatamente degolados para que suas cabeças possam servir

de prova perante o povo e autoridades. Termina assim, um dos maiores

flagelos que já assolaram o nordeste do país. Por ordem superior,

guarda-se segredo em torno do nome da pessoa que informou da

presença do cangaceiro na fazenda Angicos. As cabeças, por

determinação do excelentíssimo presidente da República, depois de


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identificadas, deverão ser exibidas nas principais capitais do país.

(Música de prefixo)

Lentamente apaga-se a luz sobre a Velha.

Ficam apenas a silhueta de Lampião e Maria Bonita.

No escuro, ouve-se o choro do bebê.

A luz se apaga lentamente sobre as silhuetas de Lampião e Maria Bonita.

Black out.

O choro do bebê cessa.

FIM

São Paulo, 1986

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